UNISALESIANO Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Direito Civil e Processual Civil Luís Henrique Ferreira A PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA LINS - SP 2008 LUÍS HENRIQUE FERREIRA A PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA Monografia apresentada à Banca Examinadora do Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, como requisito parcial para obtenção de título de especialista em Direito Civil e Processual Civil sob a orientação do Professor Dr. Sérvio Túlio Marques de Castro e M.Sc. Heloísa Helena Rovery da Silva. LINS - SP 2008 LUÍS HENRIQUE FERREIRA A PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA Monografia apresentada ao Centro Universitário Católico Salesiano Auxilium, para obtenção do título de especialista em Direito Civil e Processual Civil. Aprovada em: __/__/__ Banca Examinadora: Prof. Sérvio Túlio Marques de Castro Mestre em Direito pela Universidade de Marília ______________________________________ Profª. Ms. Heloísa Helena Rovery da Silva Mestre em Administração pela CNEC/FACECA – MG _______________________________________ LINS - SP 2008 Dedico este trabalho à minha esposa Flávia e à minha filha Lívia. AGRADECIMENTOS Aos professores: Prof. Dr. Sérvio Túlio Marques de Castro e Ms. Heloísa Helena Rovery da Silva, pela orientação deste trabalho e pela atenção dispensada no convívio acadêmico. A todos os professores do curso, que souberam transmitir seus conhecimentos e, sobretudo sabedoria. À minha família, pela compreensão em meus momentos de ausência e o total apoio em minha vida profissional. E soberanamente à DEUS, pela sua plenitude. RESUMO A família passou por inúmeras transformações ao longo da história da humanidade. Mudanças essas que vieram a modificar, conseqüentemente, a disciplina jurídica da filiação, buscando-se, mais do que nunca, atender ao princípio da igualdade. Entretanto, somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 é que se atingiu este objetivo plenamente. A nova legislação provocou uma importante alteração no Direito de Família através do principio da igualdade da filiação, objetivando imprimir preceitos básicos no sentido de proteger os desiguais, através da concessão de vários direitos inerentes às pessoas. Introduziu no ordenamento jurídico uma mudança de valores nas relações familiares, que influenciou na determinação de uma nova modalidade de paternidade, que estava à margem da lei, fruto do afeto, objeto de análise no presente trabalho e que é um elemento indispensável para a formação do caráter, da honestidade e da índole da pessoa. Neste diapasão, procura-se demonstrar a importância da noção da posse de estado de filho, para o estabelecimento da paternidade sócio-afetiva e que é possível utilizá-la no nosso ordenamento jurídico, a partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e o princípio dos melhores interesses da criança, estampado no Estatuto da Criança e do Adolescente. Desta forma, faz-se relevante abordagem da repercussão do sistema unificado da filiação na ordem jurídica nacional, além dos seus efeitos quanto aos direitos pessoais e patrimoniais. Imprescindível a menção à posição dos doutrinadores brasileiros, bem como às decisões judiciais que formam o atual entendimento dos tribunais, no caminho da consagração do tema da presente pesquisa bibliográfica. Palavras-chave: Igualdade. Afeto. Filiação. ABSTRACT The family has gone through many transformations throughout the history of humanity. Change those who came to change, consequently, the legal discipline of membership, looking up, more than ever, take the principle of equality. However, only after the promulgation of the Constitution of 1988 is that this goal is achieved fully. The new legislation has caused a major change in the Law of Family through the principle of equality of membership, to print basic precepts in order to protect the uneven, through the granting of various rights inherent in person. Introduced in the legal system a change of values in family relationships, which influenced the determination of a new type of fatherhood, which was outside the law, the fruit of affection, object of analysis in this work and it is an indispensable element for the formation of character, honesty and character of the person. In crotch, seeks to demonstrate the importance of the concept of possession of membership, for the establishment of paternity and socio-affective that you can use it in our legal system from the constitutional principle of human dignity and the principle the best interests of the child, printed in the Statute of the Child and Adolescent. Thus, it is important approach of the impact of the unified system of membership in the national legal system, in addition to its effects on personal and property rights. Essential to mention the position of brazilian indoctrinated as well as judicial decisions that make the current understanding of the courts in the path of the consecration of the theme of this bibliographic search. Key-words: Equality. Affection. Membership. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................9 CAPÍTULO I – FAMÍLIA, FILIAÇÃO E PATERNIDADE..................................11 1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA........................................................11 CAPÍTULO II – ESPÉCIES DE FILIAÇÃO.......................................................20 2 CONCEITOS GERAIS....................................................................................20 CAPÍTULO III – A POSSE DO ESTADO DE FILHO........................................27 3 A POSSE DE ESTADO DE FILHO................................................................27 3.1 A participação do filho sócio-afetivo como herdeiro legítimo na sucessão............................................................................................................31 CAPÍTULO IV – FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA..................................................33 4 PATERNIDADE PRESUMIDA E PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA ...........33 CONCLUSÃO....................................................................................................39 REFERÊNCIAS.................................................................................................41 9 INTRODUÇÃO O objetivo desta pesquisa é tentar demonstrar que a relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho, e sim, da relação fundada no afeto e no desejo de estar junto, assumindo os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação. Direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar. Neste contexto: A paternidade sócio-afetiva deve ocupar lugar de destaque e merece maior atenção da área jurídica? Pretende-se demonstrar que a ascensão da paternidade sócio-afetiva originou-se mediante diversos fatores, como observaremos no primeiro capitulo, ao relatar as inúmeras alterações que a família vem sofrendo, ao longo dos séculos. Com a decadência do patriarcalismo surgiu a possibilidade da família se organizar de maneira diferente, valorizando o individual, respeitando o espaço de cada membro, em busca de um entendimento que abrangesse o todo familiar. Este trabalho objetiva apresentar essas mudanças através da ótica do escritor Friedrich Angels e de diversos outros autores contemporâneos, dentre os quais destacam-se: Gustavo Tepedino, Pontes de Miranda, Maria Helena Diniz, Maria Berenice Dias, César Fiúza, João Baptista Vilella, Pedro Belmiro Welter, Luiz Edosn Fachin, que intitulam a nova família como mutante, múltipla. Nenhuma outra ciência pode dizer ao direito como legislar, para tutelar ou mesmo protegê-la, pois o que se tem hoje, não é uma única família, mas sim, várias. Todas essas mudanças têm refletido sobremaneira no direito de família, o ordenamento jurídico pátrio houve por bem abraçar e introduzir novos valores, muitos dos quais abstratos, como o afeto, o amor, a felicidade, possíveis, agora, principalmente, pela constitucionalização da família, o que 10 veio prestigiar o individuo como ser sentimental, desvinculando-se das amarras legalistas e objetivas do homem com bem material. No segundo capítulo, conceitua-se a paternidade e as espécies de filiação, existentes no nosso ordenamento jurídico e de como essas formas de diferenciação foram eliminadas com o advento da Constituição Federal de 1988, que determina que o reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo. No terceiro capítulo, verifica-se a importância da noção de posse de estado de filho para o estabelecimento da paternidade sócio-afetiva, quando da existência de conflitos de paternidade, tendo em vista, que não raras vezes existirá um conflito entre a três linhas que a compõe: a jurídica, a biológica e a sócio-afetiva, esta ultima surgindo como solução deste conflito, estabelecendo a paternidade calcada nos laços de afeto, dentro desse novo conceito de família, estampado na Constituição Federal de 1988 e que é possível utilizá-la em nosso ordenamento jurídico, a partir do principio constitucional da dignidade da pessoa humana. A Doutrina sugere que para a caracterização da posse de estado de filho, é necessária a existência de três elementos: Nome, Trato e Fama. No quarto capítulo, verifica-se a paternidade presumida, através do enunciado da Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça e a paternidade sócio-afetiva, com a polêmica de qual delas seria a melhor. Apresenta a afirmação do afeto como quesito apto a determinar a verdadeira relação de paternidade, posto que exercida com a responsabilidade idealizada pela lei, uma vez que ela não faz menção à proibição do reconhecimento de filiação, muito pelo contrário, deixa-nos uma brecha para que se reconheça a paternidade sócio-afetiva. Faz-se referência ao texto da Desbiologização da Paternidade do autor João Baptista Vilella e mostra qual o posicionamento dos nossos tribunais com relação ao valor jurídico do afeto. 11 CAPÍTULO I FAMÍLIA, FILIAÇÃO E PATERNIDADE 1 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA FAMÍLIA A família, ao longo da história da humanidade, sempre existiu, porque o homem é um ser sociável, que não consegue viver sozinho, por conta disso, sempre buscou estar junto de outras pessoas, constituindo grupos, tribos. Esses grupos de pessoas eram de diversas formas e com diferentes finalidades, porém, todos tinham um objetivo comum, que era o cooperativismo, a assistência mútua e sobrevivência da espécie. Mas essa formação familiar, nunca obedeceu a um modelo único, cada qual era diferente, de acordo com as condições existentes nos locais onde se iniciavam. Segundo Friedrich Engels, (2002, p. 34) “A família é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado”. Num primeiro momento, não havia normas que disciplinassem as uniões, ainda segundo Friedrich Engels, (2002, p. 35) “nesta época primitiva, imperava no seio das tribos, um comercio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia a todos os homens e cada homem a todas as mulheres”. Logo após, os homens deixaram de ser nômades começaram a estabelecer em locais permanentes e a desenvolver técnicas de agricultura para a sua sobrevivência. A mulher passou a ter um papel fundamental no seio da sociedade familiar, era comparada à terra, geradora da vida e responsável pelo crescimento da família. Friedrich Engels, (2002, p 41/42), concluiu que desse estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se: 12 a) A família consangüínea, a primeira etapa da família. Nela, os grupos conjugais classificavam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entre si; o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, por sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. Nessa forma de família, os ascendentes, os pais e filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) dos matrimônios. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vinculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua. b) A família punaluana. Se o primeiro progresso na organização da família consistiu em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos. Esse processo foi infinitamente mais importante que o primeiro, e também, mas difícil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é, irmãos por parte de mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral e acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos colaterais. c) A família sindiásmica. No regime de matrimônio por grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o homem tinha uma mulher entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. À medida, porém, que evoluíam as gens e iam-se fazendo numerosas as classes de irmãos e irmãs, entre os quais agora era impossível o casamento, a união por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. Neste estágio, um homem com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em 13 comum, sendo o adultério destas cruelmente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, como antes, os filhos pertencem exclusivamente à mãe. d) A família monogâmica. Nasce conforme indicamos, da família sindiásmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie; seu triunfo definitivo é um dos sintomas da civilização nascente. Baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se essa paternidade indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos bens de seu pai. A família monogâmica diferencia-se do matrimônio sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer uma das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher. Ao homem, igualmente, se concede o direito à infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume, e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa a evolução da sociedade. No tocante às relações sociais, a vida está em constante movimento, e, desde o início da humanidade, ocorreram e vêm ocorrendo transformações de valores e conceitos. O Direito deve acompanhar essas mudanças, para que cumpra o seu papel de solucionar os conflitos que lhe são apresentados. Principalmente no que se refere ao Direito de Família, por ser um ramo extremamente dinâmico e complexo. A realidade da família brasileira foi mudando a medida em que os acontecimentos históricos, a ascensão cientifica revolucionaria do homem foi refletida em um novo horizonte em que a rigidez do contorno familiar rompeuse, dando espaço a um novo lar, um lugar de afeto e realização das potencialidades de cada um de seus membros. Diante do dinamismo e da complexidade das relações sociais, em especial o âmbito familiar, surgiram cada vez mais situações envolvendo, normalmente, crianças e adolescentes que, afastados dos seus pais no plano biológico ou jurídico, passaram a se relacionar, no campo afetivo com pessoas que assumiram faticamente a posição de pai e mãe. 14 Portanto, o conceito de família vem se modificando com o tempo, as relações sociais são dinâmicas e o Direto de Família deve acompanhar essas transformações. Friedrich Engels, (2002, p. 84/85), afirmou que: A família deve progredir na medida em que progride a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu até agora. A família é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema. Tendo a família monogâmica, melhorado a partir dos começos da civilização e, de maneira muito notável, nos tempos modernos, é lícito pelo menos supor que seja capaz de continuar seu aperfeiçoamento até que chegue à igualdade entre os dois sexos. Se, num futuro remoto, a família monogâmica não mais atender às exigências sociais, é impossível predizer a natureza da família que a sucederá. Friedrich Engels escreveu o Livro A Origem da Família e das Sociedades Comerciais em 1884, e, no entanto, seus ensinamentos estão em sintonia com os dias atuais. A família e o direito devem seguir o progresso da sociedade, esse processo de modificação deve ser simultâneo, para que as pessoas tenham a segurança de que todos os acontecimentos oriundos dessa transformação sejam amparados pela lei. A filiação sócio-afetiva é resultado do caminho trilhado pela doutrina com a finalidade de trazer para o mundo do Direito, uma realidade que existia apenas no mundo dos fatos. Ou seja, uma relação afetiva que se fortalece com o decorrer do tempo e que comina com papéis distintos, de um lado, alguém assume o papel de pai e de outro alguém assume o papel de filho, tendo como ponto fundamental para sua ocorrência, a convivência afetiva. A Constituição Federal de 1988, ao admitir que a família possa surgir tanto do casamento, como de união estável e da monoparentalidade, desvincula a filiação como decorrência exclusiva da existência de núpcias entre os pais. A família passou a ser fruto de uma comunhão de afeto recíproco, independentemente de imposição legal ou vinculo genético, tendo por fim o desenvolvimento e a felicidade de seus membros. A partir desta nova concepção, a paternidade não está somente vinculada à relação biológica existente entre pai e filho, mas sim, na paternidade sócio-afetiva, seja ela biológica ou não. 15 Ocorreu a partir daí, uma valorização da paternidade que aconteceu mesmo não havendo vínculo biológico, mas que se fortaleceu, com o decorrer do tempo, através de laços de afetividade, cumplicidade e carinho entre aquele que assumiu a condição de pai e aquele que ficou no papel de filho. A verdadeira paternidade é aquela que se molda na convivência do dia a dia, nos acontecimentos cotidianos, somente é pai, aquele que participou desde o inicio da vida do filho. Elementos sociais e comportamentais influenciaram na determinação de uma nova paternidade, a sócio afetiva, que baseia-se na convivência entre pai e filho que não estão ligados por laços genéticos. Maria Berenice Dias, (2004), ensina que a mudança dos paradigmas da família reflete-se na identificação dos vínculos de parentalidade, levando ao surgimento de novos conceitos e de uma linguagem que melhor retrata a realidade atual: filiação social, filiação sócio-afetiva, posse do estado de filho.Todas essas expressões nada mais significam do que a consagração, também no campo da parentalidade, do mesmo elemento que passou a fazer parte do Direito de Família. Tal como aconteceu com a entidade familiar, agora também a filiação passou a ser identificada pela presença de um vínculo afetivo paterno-filial. O Direito ampliou o conceito de paternidade, que passou a compreender o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. Ninguém questiona que pai é que quem, por meio de uma relação sexual, fecunda uma mulher que levando a gestação a termo, dá à luz um filho. A lei, no entanto, desvincula-se da verdade biológica, gera uma paternidade jurídica baseada exclusivamente no fato de alguém haver nascido no seio de uma família constituída pelos sagrados laços do matrimônio. Tal presunção de paternidade busca prestigiar a família, único reduto em que a procriação sempre foi aceita como legítima. A necessidade de preservação do núcleo familiar é que enseja o estabelecimento de presunção de paternidade e maternidade, afastando-se do fato natural da procriação. Esse foi também o motivo que levou a legislação civil de 1916 a rotular os filhos de forma absolutamente cruel, fazendo uso de uma terminologia encharcada de discriminação, aos distinguir os filhos 16 ilegítimos, espúrios, adulterinos, incestuosos dos naturais. Dita classificação tinha como único critério a circunstância de a prole haver sido gerada dentro ou fora do casamento. A situação conjugal do pai e da mãe refletia-se na identificação da prole. Dita catalogação conferia ou subtraía do filho não só o direito à identidade, mas até o direito à sobrevivência, pois sequer podia pleitear alimentos. A nova ordem jurídica introduzida em 1988, pela Constituição Federal priorizou a dignidade da pessoa humana e proibiu qualquer designação ou discriminação relativa à filiação, assegurando os mesmos direitos e qualificações aos filhos havidos ou não da relação de casamento, como também ao vínculo gerado pela adoção. O Código Civil atual persiste com presunção de paternidade, nos mesmos moldes da legislação preteria. Além de repetir o elenco de presunções de paternidade já existente, criou novas hipóteses em se tratando de inseminação artificial homóloga e heteróloga. Esse panorama legislativo serve para a identificação dos vínculos parentais dentro da estrutura familiar convencional. No entanto, mister questionar esses arranjos legais quer diante do atual conceito de família, quer diante da moderna doutrina, que, de forma segura, não mais define o vínculo de parentesco em função da identidade genética. Cada vez mais a idéia de família se afasta da estrutura do casamento. O divorcio e a possibilidade de um novo casamento, o reconhecimento da existência de outras entidades familiares, bem como a liberdade de reconhecer os filhos havidos fora do casamento, ensejaram verdadeira transformação no próprio conceito de entidade familiar. A família pluralizou-se. Já não se vincula aos seus paradigmas originários: casamento, sexo, procriação. O movimento de mulheres, a disseminação dos métodos contraceptivos e os resultados da evolução da engenharia genética evidenciam que esse tríplice pressuposto deixou de servir para balizar o conceito de família. Caiu o mito da virgindade. A concepção não mais decorre exclusivamente do contato sexual, e o casamento deixou de ser o único reduto de conjugalidade. As relações extramatrimoniais até dispõem de assento constitucional, e não se pode mais deixar de albergar no âmbito do Direito de Família, as relações homoafetivas. 17 O desafio dos dias de hoje é buscar o toque diferenciador das estruturas familiares que permita inseri-las no Direito de Família. Mister isolar o elemento que enseja delimitar o conceito de entidade familiar. Para isso, é necessário ter uma visão pluralista das relações interpessoais. Induvidosamente são o envolvimento emocional, o sentimento de amor, que fundem as almas e confundem patrimônios, fazendo gerar responsabilidades e comprometimentos mútuos, que revelam a presença de uma família. Assim, não se pode deixar de reconhecer que é o afeto que enlaça e define os mais diversos arranjos familiares. Vínculo afetivo e vínculo familiar se fundem e se confundem. Frente à nova realidade familiar, há que questionar também os vínculos parentais. Além da reviravolta na família, também a filiação sofreu significativas vicissitudes. A possibilidade de identificação da realidade genética, com altíssimo grau de certeza por meio dos exames de DNA, desencadeou uma verdadeira corrida na busca da verdade real, em substituição à verdade jurídica definida muitas vezes por singelas presunções legais. De outro lado, os avanços científicos, permitindo a manipulação biológica, popularizaram a utilização de métodos reprodutivos como a fecundação assistida, a cessão do útero, a comercialização de óvulos ou espermatozóides, a locação de útero, isso tudo sem falar na clonagem. Diante desse verdadeiro caleidoscópio de situações, cabe perguntar como estabelecer os vínculos de parentalidade. A resposta não pode mais ser encontrada exclusivamente no campo da Biologia, pois situações fáticas idênticas ensejam soluções diametralmente diferentes. Assim, não há como identificar o pai com o cedente do espermatozóide. Também não dá para dizer se a mãe é a que doa o óvulo, a que aluga o útero ou aquela que faz uso do óvulo de uma mulher e do útero de outra para gestar um filho, sem fazer parte do processo procriativo. Ante essa nova realidade, a busca da identificação dos vínculos familiares torna imperioso o uso de novos referenciais, como o reconhecimento da filiação sócio-afetiva, a posse do estado de filho e a chamada adoção à brasileira. São esses novos conceitos que necessariamente passarão a indicar o caminho, pois a verdade genética deixou de ser o ponto fundamental na definição dos elos parentais. Assim, a paternidade não pode ser buscada nem 18 na verdade jurídica nem na realidade biológica. O critério que se impõe é a filiação social, que tem como elemento estruturante o elo da afetividade: filho não é o que nasce da caverna do ventre, mas tem origem e se legitima no pulsar do coração. (DIAS,2004) A preocupação em descobrir a verdade biológica sempre foi de pais e filhos, mas nunca foi uma preocupação da lei. Investigar a paternidade, afinal, desatende os interesses de sociedades mais conservadoras. Por presunção legal, o marido da mãe é o pai do filho que nasce de suas entranhas. Também, até há pouco, bem pouco, os filhos havidos fora do casamento simplesmente não podiam ser reconhecidos enquanto o pai fosse casado. Rotulados como espúrios, ilegítimos ou bastardos, pagavam pela infidelidade do genitor, que havia cometido o crime de adultério. A ausência da possibilidade de investigar a paternidade gerava a irresponsabilidade do pai de prover o sustento do filho. Tudo isso em nome da preservação do núcleo familiar, da mantença da paz social e da sacralização do conceito de família, considerada base da sociedade. Ainda que tenha vindo a ordem constitucional proibir tratamento desigualitário entre os filhos, a nova lei civil continuou consagrando a identidade parental por meio de presunções. Inclusive foi alargado o leque de paternidades hipotéticas ao ser estabelecido que os filhos fruto de inseminação artificial igualmente se sujeitam a presunções de paternidade. Mesmo em época de pleno desenvolvimento da engenharia genética, que permite identificar com certeza quase absoluta a verdade biológica, persistem presunções na lei. Porém, nunca se emprestou tanta visibilidade ao afeto, quer para a identificação dos vínculos familiares, quer para definir os elos de parentalidade. Foi abandonada a idéia de que o casamento é o único elemento identificador da família. Também passou-se a desprezar a verdade real, quando se sobrepõe um vínculo de afetividade. O reconhecimento da posse do estado de filho fez nascer o que se passou a chamar de filiação sócio-afetiva e adoção à brasileira. 19 Quer as uniões estáveis, quer as uniões homoafetivas vêm sendo albergadas no âmbito do Direito de Família. O esgarçamento do conceito de entidade familiar leva à necessidade de reconhecer os vínculos de parentalidade no âmbito de qualquer família, independente da sua estrutura. Assim, é chegada a hora de em vez de se buscar identificar quem é o pai, quem é a mãe, atentar muito mais no interesse do filho de saber quem é o seu pai e a sua mãe de verdade. Pai é aquele que ama o filho como seu; filho é quem é amado como tal. Todo filho possui o direito ao reconhecimento da paternidade, independente de ser um pai e uma mãe, um ou dois pais, uma ou duas mães. (DIAS,2004) 20 CAPÍTULO II ESPÉCIES DE FILIAÇÃO 2 CONCEITOS GERAIS Para se conceituar a paternidade, antes de tudo, temos que discorrer sobre o direito de família brasileiro, que é o ponto de partida de tudo. O direito parental possui íntima ligação com a evolução da organização familiar e devido a isso, o direito familiar brasileiro está dividido em diversas relações jurídicas, tais como: as matrimoniais, as parentais e as assistenciais e, ainda, as relações de afinidade. Essa subdivisão é de suma importância para fins de estudo, de aplicação do direito e de análises de seus efeitos. O Código Civil de 1916 abordava a filiação como legitima e ilegítima. A filiação legitima era aquela advinda de relações sexuais matrimoniais e seus interesses eram defendidos e protegidos pela legislação. Não era permitido o reconhecimento dos filhos ilegítimos, ou seja, aqueles concebidos fora do matrimônio e, para eles, foram criadas diversas categorias, para as quais não foram concedidos os direitos, relativos à paternidade, tal qual os concedidos aos filhos legítimos. Além disso, existia ainda, a pater is est quem iustae nuptiae demonstrant, ou seja, o código consagrava a presunção de que a criança concebida na constância de um matrimônio seja filho dos pais casados. Essa presunção foi criticada por muitos autores que defendiam a sua relatividade. Muitas foram as conquistas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, porque, a partir de então, foi possível eliminar todo o tipo de diferenciação existente entre os filhos, sejam eles advindos de relações matrimoniais ou extramatrimoniais, excluindo assim, o casamento da legitimidade da filiação, conforme ensina Tepedino, (2001, p.81): 21 ... exsurgem, no ápice do ordenamento, três traços característicos em matéria de filiação: 1. A funcionalização das entidades familiares à realização da personalidade de seus membros, em particular os filhos; 2. A despatrimonialização das relações entre pais e filhos; 3. A desvinculação entre proteção conferida aos filhos e a espécie de relação dos genitores. Por muito tempo a paternidade jurídica advinda do casamento permaneceu quase absoluta. Mas com o advento da Constituição Federal de 1988, com a igualdade dos filhos, o pluralismo dos modelos familiares, essa paternidade presumida perde sua força, abrindo espaço para a busca da verdadeira paternidade. Com o surgimento do exame de DNA, possibilitou a identificação genética do pai e do filho, surgindo assim a paternidade biológica. Essa paternidade, por algum tempo, passou a imperar na sociedade, como verdadeira. No entanto com o repensar do direito à luz da psicologia e do Direito comparado, a paternidade passa a ser entendida muito mais com uma função, em que se prepondera o afeto, do que algo biológico. Com isso, apresentava-se a paternidade afetiva. O instituto do parentesco em si é tratado pelo Código Civil Brasileiro do seu artigo 1.591 a 1.595. Maria Helena Diniz (2002, p.367) leciona que “parentesco é a relação vinculatória existente não só entre pessoas que descendem uma das outras ou de um mesmo tronco comum, mas também entre cônjuges e os parentes do outro e entre adotante e adotado”. César Fiúza (2002, p.987) diz que “o estudo do parentesco diz respeito às relações entre certas pessoas pertencentes a um mesmo grupo familiar”. Analisando os conceitos supramencionados, conclui-se que parentesco é a relação de todas as pessoas que compõem uma família. E essa relação jurídica de parentesco pode ser natural ou por consangüínea, por afinidade ou civil. O Código Civil Brasileiro em seu artigo 1.593 classifica a relação jurídica de parentesco conforme resulte de consangüinidade ou outra origem, abrindo assim, possibilidades de estabelecimento do vínculo de parentesco para além da consangüinidade, podendo-se chegar até a parentalidade pela afetividade, 22 onde os vínculos estabelecidos são em decorrência do afeto e do carinho existentes entre as pessoas. Da Filiação Código Civil Brasileiro: Artigo 1.596. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Constituição Federal do Brasil, artigo 227, § 6º: Artigo 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação... § 6º. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Lei 8.560, de 29/12/92, Arts. 5º e 6º. Artigo 5º. No registro de nascimento não se fará qualquer referencia à natureza da filiação, à sua ordem em relação a outros irmãos do mesmo prenome, exceto gêmeos, ao lugar e cartório do casamento dos pais e ao estado civil destes. Artigo 6º. Das certidões de nascimento não constarão indícios de a concepção haver sido decorrente de relação extraconjugal. § 1º. Não deverá constar, em qualquer caso, o estado civil dos pais e a natureza da filiação, bem como o lugar e cartório do casamento. Proibida referência à presente lei. De acordo com Pedro Paulo Filho; Guiomar A. de Castro Rangel Paulo, (2006, p. 338), atualmente, devido o art. 227, § 6º, da Constituição Federal, de 1988, ao art. 1.607 do novo Código Civil, ao art. 26 da Lei nº 8.069/90, à Lei nº 8.560/92 e aos Provimentos ns. 494/93 do CSM e 10/93 da CGJ, poder-se-á reconhecer, no Brasil, tanto o filho natural como o adulterino ou o incestuoso, sem quaisquer restrições (RJTJSP 129/175, EJSTJ 18/58, AASP 1.742/147 e sem discriminações. Tal reconhecimento poderá preceder o nascimento do 23 filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes (Lei nº 8.069/90, art. 26, parágrafo único). O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercido contra os pais ou seus herdeiros, sem quaisquer limitações, observado o segredo de justiça (Lei nº 8.069/90, art. 17 e Lei nº 8.560/92. À luz do que dispõe o art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, e do texto das Leis ns. 8.069/90 e 8.560/92, não se pode mais fazer tais distinções, eis que os filhos havidos ou não do casamento têm os mesmos direitos e atributos, sendo vedadas quaisquer designações discriminatórias. A discussão, porem, sobre qual a verdadeira paternidade, atualmente, é tema polemico entre juristas, apesar de haver uma tendência a se exaltar o critério sócio-afetivo como o verdadeiro. Gama, (2000, p.125) exalta a paternidade sócio-afetiva: (...) Diversamente do modelo tradicional, o vínculo familiar moderno é formado por laços sócio-afetivos, restando superado o dogma da unicidade da paternidade e da maternidade. (...) A natureza jurídica da paternidade, maternidade e filiação resultantes da adoção de técnicas de reprodução assistida, sob a modalidade heteróloga, ou mesmo sem vínculo genético entre os envolvidos, deve ter em conta sentimentos nobres, como o amor, o desejo de construir uma relação afetuosa, carinhosa, reunindo as pessoas num grupo de companheirismo, lugar da afetividade. (...) O instituto da adoção, como atualmente é concebido pela Lei nº 8.069/90, pode ter perfeita aplicação aos casos envolvendo as técnicas de reprodução humana medicamente assistida sob a modalidade heteróloga ou mesmo em relação às pessoas desimpedidas... Há, na legislação brasileira, a previsão a respeito da possibilidade de uma criança ter dois pais, o biológico e o sócio-afetivo, o que vem a excepcionar o princípio da unicidade do vínculo paterno em conseqüentemente, do vínculo materno. (...) Evidentemente, no caso de reprodução humana medicamente assistida, há diversas peculiaridades, sem que, no entanto, haja prejuízo na aplicação dos princípios gerais e norteadores da adoção, tal como o instituto é concebido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sob inspiração dos preceitos e normas da Constituição Federal de 1988. 24 A família antiga era composta por muitos membros, consolidada no casamento, tendo o pai poder de vida e morte sobre todos os que compunham a família. O Código Civil de 1916 apresenta uma família totalmente patriarcal, fundamentada no poder do pai, com funções hierarquizadas, direitos entre o marido e a mulher totalmente desiguais, discriminação dos filhos, a não aceitação das entidades familiares e a predominância dos interesses patrimoniais sobre os interesses afetivos. A família da atualidade tem um perfil totalmente contrário a esses aspectos, ela é formada pelo casamento, união estável e pela comunidade formada por qualquer dos pais e o filho, denominada família nuclear, pós-nuclear, unilinear, monoparental, eudemista ou sócio-afetiva. Atualmente, existe somente uma história a ser contada sobre a família: a democrática, com vida familiar individual e solidariedade social. A filiação sócio-afetiva compreende a relação jurídica de afeto com o filho de criação, quando comprovado o estado de filho afetivo (posse de estado de filho), a adoção judicial, o reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidades e a conhecida adoção à brasileira. Filiação afetiva na adoção: A adoção é um ato jurídico e um ato de vontade que se prova e se estabelece através de um contrato ou de um julgamento (ato da vontade do juiz, mas que supõe previamente a vontade do (s) interessado (s). Esse instituto não foi criado recentemente, constando no art. 185 do Código de Hamurabi (1728-1686 a.C.), pois a verdade sócio-afetiva é tão real como o que une o pai ao seu filho de sangue, e os efeitos que do primeiro emergem são tão reais como os que decorrem do segundo. Filiação sociológica do filho de criação: A filiação afetiva ocorre também, naqueles casos em que, mesmo não havendo nenhum vínculo biológico ou jurídico (adoção), os pais criam uma criança por mera opção, denominado filho de criação, (des) velando-lhe todo o cuidados, amor, ternura, enfim, uma família, cuja mola mestra é o amor entre seus integrantes; uma família, cujo único vínculo probatório é o afeto. Mas com relação a essa filiação, não há convergência na doutrina e na jurisprudência, o que se haure de dois julgamentos do tribunal de Justiça sul-rio-grandense: a) No sistema jurídico brasileiro não existe a adoção de fato, e o filho de criação não pode ser tido como adotado ou equiparado aos filhos biológicos para fins legais, tais como direito à herança. b) A despeito da ausência da regulamentação em nosso 25 direito quanto à paternidade sociológica, a partir dos princípios constitucionais de proteção à criança (art. 227 da Constituição Federal), assim como da doutrina da integral proteção, consagrada na Lei nº 8.069/90 (especialmente arts. 4º e 6º), é possível extrair os fundamentos que, em nosso direito, conduzem ao reconhecimento da paternidade sócio-afetiva, relevada pela posse do estado de filho, como geradora de efeitos jurídicos capazes de definir a filiação. Filiação eudemonista no reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou maternidade: quem comparece perante um Cartório de registro Civil, de forma livre e espontânea, solicitando o registro de uma vida como seu filho não necessita qualquer comprovação genética para ter sua declaração admitida, mas, em decorrência, somente poderá amanhã invalidá-la se demonstrar, por exemplo, que sua manifestação não foi livre, senão coacta ou produzia por erro, ainda que seja, efetivamente procriador genético. No reconhecimento voluntário ou judicial da paternidade ou da maternidade é estabelecido de filho afetivo (posse do estado de filho), não importando se biológico, ou não, o que atribui direitos que provocam efeitos, sobretudo morais (estado de filiação, direito ao nome, relações de parentesco) e patrimoniais (direito à prestação alimentar, direito à sucessão, etc.). Alerta João Baptista Vilella (1999, p.138-139): Verdade e falsidade no registro civil e na biologia têm parâmetros diferentes. Um registro é sempre verdadeiro se estiver conciliado com o fato jurídico que lhe deu origem. E é sempre falso na condição contrária. A chamada verdade biológica se for o caso de invocá-la ou faze-la prevalecer, tem um diverso teatro de operações: o das definições judiciais ou extrajudiciais. Para que chegue ao registro tem de converter-se em fato jurídico, o que, no tocante à natureza da filiação, supõe sempre um ato de vontade da pessoa, se for do declarante; político se for da autoridade e, portanto, um exercício de liberdade. Um cidadão que comparece espontaneamente a um cartório e registra, como seu filho, uma vida nova que veio ao mundo, não necessita qualquer comprovação genética para ter sua declaração admitida. Filiação sócio-afetiva na adoção à brasileira: A quarta identificação da filiação sociológica decorre da conhecida adoção à brasileira, em que alguém, 26 reconhece a paternidade ou maternidade biológica, mesmo não o sendo, de livre e espontânea vontade, cuja conduta é tipificada como crime (art 299, parágrafo único, do Código Penal). Para Belmiro Pedro Welter, (2002), a filiação afetiva dá-se nos casos em que, mesmo não havendo vínculo biológico ou jurídico, os pais criam uma criança por mera opção, revelada pela posse de estado de filho, tornando, dessa forma, irrevogável o estabelecimento da filiação, na forma dos arts. 226, §§ 4º e 7º, e 227 § 6º, da Constituição Federal de 1988, pelo que, a declaração de vontade, tendente ao reconhecimento voluntário da filiação, admitindo ser pai ou mãe de outra pessoa, uma vez aperfeiçoada, torna-se irretratável. Na jurisprudência também é dito que a adoção à brasileira torna-se irrevogável quando edificado o estado de filho afetivo, pois, nesse caso, nasce a filiação sócio-afetiva, reconhecida constitucionalmente (arts. 226, §§4º e 7º, e 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988), o que se infere dos seguintes julgados: a) Ação de anulação de escritura pública de reconhecimento da paternidade. Adoção à brasileira. O reconhecimento espontâneo da paternidade daquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, registra como sua a filha da sua companheira, tipifica verdadeira adoção, irrevogável, descabendo posteriormente a pretensão anulatória do registro de nascimento. Extinção do feito, sem julgamento do mérito (art. 267, inciso VI, do Código de Processo Civil). b) Registro de nascimento. Reconhecimento espontâneo da paternidade. Adoção simulada ou à brasileira. Descabe a pretensão anulatória do registro de nascimento do filho da companheira, lavrado durante a vigência da união estável, já que o ato tipifica verdadeira adoção, que é irrevogável. 27 CAPÍTULO III A POSSE DO ESTADO DE FILHO E A PARTICIPAÇÃO DO FILHO SÓCIOAFETIVO COMO HERDEIRO LEGÍTIMO NA SUCESSÃO 3 A POSSE DO ESTADO DE FILHO A Constituição de 1988 modificou inteiramente o instituto da filiação, colocou fim a todo tipo de discriminação em relação aos filhos, pois adotou um sistema unificado. O ordenamento jurídico ficou com a tarefa de obter meios sustentáveis para reconhecer a paternidade, mais condizente com a realidade daqueles que a procuram, dentre as três linhas que a compõe: a paternidade jurídica, a biológica e a afetiva. (WALD, 2000). O ideal seria se a paternidade fosse formada pelas três espécies, o que nem sempre acontece, existem casos em que as mesmas se confrontam, criando um grande problema jurídico para se definir a paternidade. O instituto da posse de estado de filho ganha destaque nessa busca incessante de encontrar subsídios probatórios suficientes para estabelecer a paternidade sócio-afetiva, no tocante ao estabelecimento da filiação extramatrimonial, que valoriza, sobretudo, as relações de afeto, caracterizandose não somente pelo fator biológico ou por uma presunção legal e sim, por uma intensa convivência entre pai e filho. Vale ressaltar, que na paternidade sócio-afetiva, pai não é apenas ligado por um laço biológico e sim, aquele ligado pelos intensos e inesgotáveis laços de afeto, ou seja, pai é aquele que cuida, protege, educa, alimenta, que participa do crescimento físico, intelectual e moral da criança, dando-lhe o suporte necessário para que a criança se desenvolva como ser humano e a posse de estado de filho valoriza as relações calcadas no afeto. Segundo Boeira, (1999), entende-se posse de estado de filho como sendo uma relação afetiva, intima e duradoura, caracterizada pela reputação frente a terceiros como se filho fosse, e pelo tratamento existente na relação 28 paterno-filial, em que há o chamamento de filho e a aceitação do chamamento de pai. No entanto, nosso ordenamento jurídico ainda não elevou a posse de estado de filho como elemento constitutivo da filiação nos casos de estabelecimento de paternidade extramatrimonial. A maior parte da doutrina sugere a presença de três elementos que caracterizam a posse de estado de filho: o nome, (nomem), trato (tractatus) e fama (fama). No que diz respeito ao primeiro elemento, o nome se caracteriza pelo uso do nome da família do suposto pai por seu pretenso filho, ou seja, a atribuição do nome do pai ao seu filho. Em relação ao trato, este resulta do tratamento dispensado à pessoa, a criação, a educação, enfim, que o presumido pai tenha tratado como seu filho. É considerado elemento objetivo, porque se caracteriza pelo comportamento do pretenso pai em relação ao suposto filho. Pode-se assim, reconhecê-lo, pela assistência material e moral dispensada ao filho, como por exemplo, o carinho, os cuidados, o afetos, a educação, a saúde, comuns a todos os pais no tocante a seus filhos. A fama é a exteriorização desse estado de pessoa para o público, isto é, que a sociedade conheça a pessoa como sendo filho daquela. Essas pessoas podem ser os vizinhos, amigos, empregados e, até mesmo, os parentes dos interessados, que mesmo podendo ser contraditados, não deixam de ter sua importância. Conforme entendimento de Pedro Belmiro Welter, (2003, p. 987), a doutrina é contra a fixação de um prazo mínimo para a configuração da posse de estado de filho, pois é necessário que sejam examinadas as singularidades de cada caso: [...] não pode ser estabelecido qualquer lapso prazal para a configuração da paternidade e da maternidade, porque, com isso, se estará, na verdade, ocultando, e não (re) velando, a verdadeira filiação, que somente pode ser vislumbrada na singularidade do caso, no momento em que a questão é posta em juízo, debruçando-se nos fatos postos no agora, na hora, no instante em que são debatidos. 29 Assim sendo, o papel do julgador é de extrema importância, cuja tarefa emerge da solução dos conflitos que lhe são apresentados, fundando suas decisões em princípios constitucionais do direito de família, suprindo, desta forma, vazios normativos que ainda existem em nosso direito, aqui, mais especificamente, em relação a não contemplação da noção da posse do estado de filho como elemento constitutivo da filiação, capaz, por si só, de estabelecer a paternidade sócio-afetiva. A jurisprudência, inicialmente, não permitia que um terceiro ou mesmo o filho adulterino ajuizassem ação de investigação de paternidade, tendo em vista que o estabelecimento da filiação era feito através da pater is est, sendo que, se o marido da mãe não havia contestado a paternidade, nenhum outro interessado poderia fazê-lo. Entretanto, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, diante da realidade apresentada em nossos Tribunais e das situações jurídicas criadas pela presunção pater is est. A jurisprudência começou a atenuar sua força, para, então, aceitar que o filho adulterino tem direito de investigar sua paternidade, através de ação investigatória. E em muitas decisões restam subsídios para estabelecimento de uma paternidade pautada em laços de afeto, proferida em ação de investigação de paternidade, ao revelar os elementos constitutivos da posse de estado de filho, declarando que a filiação admite qualquer tipo de prova, mesmo a testemunhal. Dada a importância, que esta noção aos poucos, assume nos tribunais, ela pode e deve ganhar novo status em nosso ordenamento jurídico, notadamente porque leva à abertura de um novo caminho no que tange ao Direito de Família, qual seja, a filiação sócio-afetiva. A posse de estado de filho pode ser considerada como causa suficiente para demandar o reconhecimento da filiação, e, por conseguinte, a declaração da paternidade, posto que somente esta é capaz de garantir a verdadeira estabilidade de alguém perante a sociedade. O relacionamento diário o reconhece como filho e a base emocional construída assegura-lhe um pleno e diferenciado desenvolvimento como ser humano, preponderando essa noção como referencial na determinação de uma paternidade responsável. 30 O afeto exerce no atual contexto brasileiro um papel muito importante, delineando as relações familiares e os novos paradigmas da filiação. Assim sendo, a posse do estado de filho é um requisito fundamental à caracterização da paternidade/filiação sócio-afetiva, traduzida na aparência/demonstração de um estado de filho, chamada, portanto, de estado de filho de afeto. Conforme Fachin, (2003), a verdade sociológica da filiação se constrói, revelando-se não apenas na descendência, mas no comportamento de quem expende cuidados, carinho e tratamento, quer em público, quer na intimidade do lar, com afeto verdadeiramente paternal, construindo vínculo que extrapola o laço biológico, compondo a base da paternidade. A posse de estado de filho não foi contemplada em nossa legislação como elemento constitutivo de filiação. Entretanto pode ser contemplada como elemento constitutivo da paternidade responsável, fundada nos laços de afeto, dentro da noção de família sociológica. O afeto possui grande relevância jurídica, especialmente no que diz respeito às relações de família, sendo entendido como razão de sua própria existência, diferentemente das relações tradicionais, nas quais a afectio era presumida, determinada por uma situação jurídica pré-estabelecida, fazendo com que nem sempre existisse no âmbito da família. O sentido de paternidade surge então em três formas: a paternidade jurídica determinada pela presunção pater is est, a paternidade biológica, que nos tempos atuais é revelada através do exame de DNA e, a paternidade sócio-afetiva, aquela fundada nos laços de afeto, cuja demonstração se dá diariamente, com pequenas doses de amor, de carinho e cuidados dispensados aos filhos. No que tange a paternidade jurídica, estabelecida através da presunção pater is est, como já visto, somente fazia sentido em uma sociedade essencialmente patriarcal e matrimonializada. A paternidade biológica, também não é mais suficiente, pois a certeza absoluta de origem genética não pode ser vista como único valor dentro do campo do estabelecimento da paternidade, pois é certo que a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, formada pelas relações de afeto, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo. 31 A paternidade sócio-afetiva surge então como sendo aquela emergente da construção afetiva, através da convivência diária, do carinho e cuidados dispensados à pessoa. Surge dentro do conceito mais atual de família, ou seja, da família sociológica, unida pelo amor, onde se busca mais a felicidade de seus integrantes. No sistema codificado prevalece a presunção pater is est, ou seja, determina-se a paternidade jurídica, porém coexistem ainda, a paternidade biológica e a sócio-afetiva. Assim, faz-se necessário a busca pelo equilíbrio das verdades biológica e sócio-afetiva, que deve priorizar sempre, o interesse da criança, pois será ela quem sofrerá diretamente com as conseqüências de uma solução que não encontra respaldo na realidade por ela vivida. Deve-se, para tanto, dar especial importância aos princípios estampados na Constituição Federal de 1988, que prioriza, acima de tudo, a dignidade da pessoa humana, que começa a conquistar a importância social e a adquirir valorização jurídica à paternidade, que também passa a ser vista por sua concepção cultural, com efeito fático, sustentado na afeição e não apenas na verdade biológica. 3.1 A participação do filho sócio-afetivo como herdeiro legítimo na sucessão Conforme entendimento de Douglas Policarpo, (2006), o desenvolvimento científico, que tende a um grau elevadíssimo de certeza da origem genética, pouco contribue para clarear a relação entre pais e filho, pois a imputação da paternidade biológica não substitui a convivência, a construção permanente dos laços afetivos. A identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo. Dessa maneira, entende-se que desde a infância até o final da vida do filho, estará sendo atendido o conteúdo do art. 227 da Constituição Federal de 1988, o qual prega o dever da família assegurar-lhe, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à personalização, à cultura, à dignidade, ao respeito à liberdade e à convivência familiar e 32 comunitária, além de colocá-la a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Não é um direito oponível apenas ao Estado, à sociedade ou a estranhos, mas a cada membro da própria família. Destarte, estando atendidos os valores humanos abstratos, pela inserção e vivência em determinada família, mesmo a não biológica, e, novamente baseado no princípio da dignidade das pessoas humana e os demais princípios constitucionais, entende-se deva ser autorizada a manutenção do status de legitimidade ao filho criado por família não biológica, e plenamente possível a legitimação para a sucessão dos bens de sua família, visto a convivência e eventual colaboração da construção do patrimônio familiar. Ao revés, crê-se estar impossibilitada a sucessão genética, tendo em vista não fazer parte do conceito de família, constando-se alheio sentimental e materialmente ao conceito de família, caso do reconhecimento extemporâneo da filiação. Por fim, destaca-se mais uma vez que a ausência de regulamentação não pode ser argumento para não proteção da família. A falta de previsão legislativa para uma gama de relações não implica em impossibilidade de tutela, que pode ser prestada através dos diversos mecanismos existentes, fundamentados, dentre outros, na vida digna do ser humano, como amplamente debatido acima. 33 CAPÍTULO IV FILIAÇÃO SÓCIO-AFETIVA 4 PATERNIDADE PRESUMIDA E PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA O tema gera muita polêmica, o ideal é que todas as formas de paternidade fossem sócio-afetivas, porém, não se pretende convencer de que existe uma solução ideal para todos os casos que envolvam a “melhor paternidade”. Cada caso deve ser analisado pelo julgador, como sendo único, com todas as suas nuances, porque, cada caso é um caso, e isso é o que parece valer... A Súmula 301 do Superior Tribunal de Justiça afirma em seu enunciado: Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade. (BRASIL, 2002b) O teor da Súmula veio suprir, muito especialmente, a lacuna aberta pela negatória injustificada do suposto pai de se submeter ao exame de DNA. Daí a conclusão mais próxima de que o investigado está fugindo da realidade ou da responsabilidade paterna. Portanto, é pai. E isso parece adequado diante da irresponsabilidade de alguns. Mas, será essa a melhor solução? De acordo com os princípios contidos na Constituição Federal de 1988, uma pessoa não é obrigada a se submeter a expediente que não queira, no caso, à coleta de material (sangüíneo, salivar ou outro) para análise laboratorial. Diante disso, afirmar que um investigado é pai genético de uma criança, mesmo não o sendo, seria o melhor para aquela criança? Por outro lado, o que se pode vislumbrar na paternidade sócio-afetiva, se convencido o Judiciário de sua efetividade, não será uma dúvida ou uma mentira, mas a verdade, provada por todos os meios de instrução processual. O juiz atua com discricionariedade, como deve o ser. Não se está a contestar o 34 exame em DNA, nem uma possível má conduta da genitora, mas o que é mostrado e vivido no meio familiar e social pela relação entre pai e filho. Mesmo confuso em sentimentos de tristeza, revolta e até vingança contra o ex-cônjuge ou ex-companheiro, se o demandante de uma ação negatória de paternidade não consegue se mostrar um pai incapaz e ineficiente diante do filho, da sociedade e da Justiça, há que se julgar improcedente o seu pedido, pois neste caso, o lugar e o papel de pai foram eficientemente cumpridos. Portanto, não se deixa de ser pai e ser filho. É elo eterno se um dia foi sentido e vivido. As angústias e as dores humanas são integrantes dos desafios de crescimento e amadurecimento das relações interpessoais. Talvez o que, em princípio, se apresente como o mais doloroso dos sentimentos, pode servir de direção e melhor conduta para um ou mais envolvidos na difícil tarefa de bemviver. A satisfação e a troca recíproca de sentimentos e atos maiores engrandecem o ser humano dotado de crença e esperança de que o amor pode vencer. Há muito tempo o direito se pergunta se a parentalidade se resume à relação biológica existente entre seres humanos ou vai além do exame de DNA. O Professor e grande mestre João Baptista Villela, (1980, p.50) escrevia em seu texto, então revolucionário, Desbiologização da Paternidade que: O conceito de nascimento já não se contém nos estritos limites da fisiologia e reclama um enfoque mais abrangente, de modo a alcançar, além da emigração do ventre materno, todo o complexo e continuado fenômeno da formação e amadurecimento da personalidade, ou seja, em outros termos, há um nascimento fisiológico e outro emocional. Neste entendimento, tinha que existir algo mais a unir as pessoas de um mesmo grupo familiar que só o sangue, somado ao fato de que a parentalidade civil, posta pela lei, já desvincula a idéia de parentalidade da consangüinidade quando, pela adoção, gera relações jurídicas de paternidade e filiação, portanto de parentesco. 35 Entende-se por desbiologização da paternidade, o reconhecimento da paternidade pautada especificamente no afeto, e não necessariamente na questão biológica. Por mais que o direito brasileiro queira atribuir a paternidade pelo laço biológico, exclusivamente, jamais conseguirá impor a paternidade. Não há possibilidade de se impor o afeto pela lei, a lei não tem como tornar alguém pai. A idéia sociológica de pai é aquele que sai de casa para prover o sustento do filho. Mas o exercício da paternidade, em um contexto mais amplo, é aquele pautado essencialmente no afeto, na convivência. A verdadeira e efetiva relação paterno-filial não pode apenas pautar-se na explicação jurídica da informação biológica. Necessário se faz a busca da paternidade de fato. A psicologia, a psiquiatria e a psicopedagogia, afirmam que o homem é um ser em constante construção e o grupo familiar ao qual pertence, é o responsável pelo seu desenvolvimento, estruturando sua existência e formando sua identidade psíquica. Afirma Jédison Daltrozo Maidana, (2004, p.55,56) em seu artigo O fenômeno da paternidade sócio-afetiva: a filiação e a revolução genética: A disseminação das manipulações biológicas nas diversas técnicas hoje existentes quebra os vínculos entre a carga genética e o sentido da paternidade, demonstrando a necessidade de se valorizar, mais do que nunca, os laços afetivos construídos na relação filial. O verbo criar não se limita nas estreitezas do ato do gozo e da fecundação, colhido na medíocre visada genética. O ser humano não é criado apenas pelo encontro dos gametas para a formação do zigoto, tampouco pelo acidente biológico da divisão celular. A contrário, a criação estende-se indefinidamente no desenvolvimento do embrião, do feto, da criança do adolescente, do adulto, do velho, numa construção contínua e progressiva do ser humano em suas mais complexas concepções. Por fim, ensina Rolf Madaleno (2000, p.41) que: O parentesco não é somente um fato da natureza, e sim uma noção social que varia de cultura para cultura e, em verdade, qualquer adulto pode se converter em um pai psicológico, dependendo da qualidade da interação diária, porquanto o verdadeiro pai é aquele que efetivamente se ocupa da função parental. 36 O princípio da afetividade tem como uma de suas mais relevantes conseqüências a jurisdicização da paternidade sócio-afetiva, abrangendo filhos de criação e garantindo o cumprimento das funções parentais, não pela coincidência da genética ou por derivação consangüínea, mas sim pelo cuidado e desvelo. Criada está a noção de parentalidade sócio-afetiva e esse é o valor jurídico do afeto. Pai não seria, necessariamente, o doador de material genético, mas sim aquele que cria, cuida, ama e se preocupa, perdendo noites de sono com as doenças dos filhos, chorando com seus sucessos e conquistas, e esperando, quem sabe um dia, que em sua velhice, ocorra a retribuição. Recentes decisões dos tribunais revelam um novo tratamento para a filiação, valorizando a verdade sócio-afetiva, que até mesmo prevalece sobre a verdade biológica, decisões estas que levam à abertura de um novo caminho no que tange ao Direito de Família, qual seja a filiação sócio-afetiva: 1) ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ADOÇÃO AFETIVA. Narrativa da petição inicial demonstra a existência de relação parental. Sendo a filiação um estado social, comprovado estado de filho afetivo, não se justifica a anulação de registro de nascimento por nele não constar o nome do pai biológico. Reconhecimento da paternidade que se deu de forma regular, livre e consciente, mostrando-se a revogação juridicamente impossível. NEGADO PROVIMENTO AO APELO. SEGREDO DE JUSTIÇA (TJ/RS, Apelação Cível n. 70012613139, 7ª Câmara Cível, rel. Maria Berenice Dias, julgado em 16/11/2005). 2) EMENTA: APELAÇÃO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. AUSÊNCIA DE ERRO. PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA. ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE NÃO DEMONSTRADA. Não restou demonstrada a alegação de erro substancial no momento em que a paternidade foi registrada. Ademais, com o tempo, restou configurada a paternidade sócio-afetiva, que prevalece mesmo na ausência de vínculo biológico. Descabe alterar o valor dos alimentos quando não demonstrada a alegada impossibilidade do alimentante em suportá-los. NEGARAM PROVIMENTO. (TJ/RS, Apelação 37 Cível n. 70012504874, Oitava Câmara Cível, rel. Rui Portanova, julgado em 20/10/2005). 3) EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. DECLARAÇÃO FALSA NO REGISTRO DE FILIAÇÃO. DESCONSTITUIÇÃO DO REGISTRO PÚBLICO. IMPOSSILIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Se o autor reconheceu formalmente o infante, sendo sabedor da inexistência do liame biológico, mas deixando evidenciada a situação de paternidade sócioafetiva, não pode pretender a desconstituição do vínculo, pretensão esta que se confunde com pedido de revogação. Vedação dos art. 1.609 e 1.610 do Novo Código Civil (e, também, do art. 1º da Lei nº 8.560/92). Recurso desprovido. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70007470297, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, JULGADO EM 10/12/2003). 4) EMENTA: NEGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM ANULATÓRIA DE REGISTRO CIVIL. MITIGAÇÃO DA COISA JULGADA EM INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE. Matéria especialíssima. Princípio da dignidade da pessoa humana sempre que contra a coisa julgada se levantem princípios de igual ou maior alcance, pode a mesma ser relativizada. Decisão que não afasta a questão da paternidade sócio-afetiva. Apelo provido, por maioria, vencido o Relator. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70007545114, SÉTIMA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, JULGADO EM 10/12/2003). 5) EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO À BRASILEIRA. Se o autor ao registrar a ré como sua filha sabia que ela não era sua filha biológica, operou-se a denominada adoção à brasileira, que é irrevogável. Apelação desprovida, por maioria, vencido o relator. (APELAÇÃO CÍVEL Nº 70003476488, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: JOSÉ ATAÍDES SIQUEIRA TRINDADE, JULGADO EM 06/11/2003) (NLPM). 38 6) NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. ADOÇÃO "À BRASILEIRA" Tendo o marido registrado o filho da esposa como sendo seu, mesmo sabendo que biologicamente não o era, impossível o uso dessa ação, uma vez que tal ato se equipara à verdadeira adoção, a qual é irrevogável. Embargos acolhidos. (Embargos Infringentes nº 70003466232 - 4º Grupo de Câmaras Cíveis - Horizontina - Relª Desª Maria Berenice Dias - Julgados em 10-05-02). 7) EMENTA: AGRAVO. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. PENSÃO. EXAME DE DNA QUE AFASTA PATERNIDADE BIOLÓGICA. POSSIBILIDADE DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Ainda que o exame de DNA tenha afastado a paternidade biológica, de se manter o pensionamento do agravante, pois há a possibilidade de existência de paternidade sócio-afetiva. Necessária ampla dilação probatória. DERAM PROVIMENTO (AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 70007173735, OITAVA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RS, RELATOR: RUI PORTANOVA, JULGADO EM 13/11/2003). 39 CONCLUSÃO Várias e importantes transformações ocorreram no Direito de Família com a Constituição Federal de 1988 e, em especial, com a disciplina jurídica da filiação. Alterou-se o próprio conceito de família, passando seus integrantes a receber outro tratamento legislativo. Antes, pelo sistema codificado, apenas o casamento legitimava a família. Fora desse modelo oficial, a união era considerada irregular e os filhos advindos desta eram considerados ilegítimos. A paternidade era estabelecida pela presunção pater is est. Entretanto, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, adveio a regra da igualdade dos filhos, porém, a paternidade fundada nos laços de afeto, a paternidade sócio-afetiva, ainda não tinha respaldo na Lei. Neste sentido, surge a noção de posse de estado de filho, que é fundamental para caracterizar a paternidade fundada mos laços de afeto. Pretendeu-se com esta pesquisa ilustrar a relevância da figura paterna. Buscou-se destacar a existência de diversos conceitos de paternidade e evidenciar as influências tanto para os aspectos jurídicos da filiação quanto em função da verdadeira comunhão entre pai e filho. Da paternidade, conceito relativo e histórico, formam-se as relações de sangue e afeto, pois dela decorre o direito ao nome e sobrenome, à origem, à identidade genética, em consonância com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Por outro lado, também são estabelecidas as relações patrimoniais decorrentes do Direito de Família, os deveres obrigacionais, os decorrentes da responsabilidade civil, além dos direitos sucessórios. Toda essa problemática gera novos conflitos a cada dia, e acerca dos conceitos e desafios da paternidade, os operadores do Direito deverão refletir na busca por soluções compatíveis com as demandas de efetividade da prestação jurisdicional de nossa sociedade. Conforme as reflexões deste trabalho, verifica-se que a paternidade sócio-afetiva deve sim prevalecer e ser considerada nas decisões judiciais, porque ela surge, como conseqüência da evolução dos hábitos e pensamentos da sociedade, a partir do momento em que as pessoas começam a se 40 desvincular das amarras de um pensamento tradicional e inflexível quanto à família e a aceitar e buscar o amor como aspecto imprescindível e preponderante na constituição das relações travadas entre os seres humanos. A paternidade sócio-afetiva deve ser considerada, sim, como uma das novas manifestações familiares instituídas através do afeto, sem o qual nenhuma base familiar pode resistir. Também deve ter sua importância reconhecida tal qual como sempre aconteceu em relação à paternidade biológica ou jurídica, pois com estas modalidades ela não guarda maiores diferenças, a não ser no que se refere à sua origem. Assim, não há como se negar que a paternidade constituída sob a forma sócio-afetiva é digna de reconhecimento jurídico e social, além do respeito e da transposição de preconceitos que só fazem por desconsiderar a forma mais sublime de alavancar sentimentos e relações humanas: o afeto. 41 REFERÊNCIAS BOEIRA, José Bernardo Ramos, Investigação de Paternidade: Posse de Estado de Filho: Paternidade Sócio-Afetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. BRASIL. Código Civil - Lei Federal nº 10.406, de 10 de jan. de 2002a. BRASIL. Constituição Federal - Código Civil – Código de processo Civil. Organização do texto: Yulssef Said Cahali. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002b. (Série RT minicódigos). BRASIL. STJ SÚMULA Nº 301 de 18/10/2004, Ação investigatória – Recusa do suposto pai – Exame de DNA – Presunção júris Tantum de Paternidade, publicada no DJ em 22/11/2004. DIAS, Maria Berenice. Entre o ventre e o coração. Informativo ADCOAS nº 73. RS, set/2004, p. 7. 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