OS CONSELHOS GESTORES COMO MECANISMOS

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OS CONSELHOS GESTORES COMO MECANISMOS INSTITUCIONALIZADOS
DE CONTROLE SOCIAL: UM OLHAR GRAMSCIANO
Cristina Fioreze1
Resumo
Identifica-se contemporaneamente, como tendência a nível mundial, o estabelecimento de
novas relações entre Estado e sociedade civil, onde esta passa a ter maior protagonismo nas
questões de ordem pública, sendo chamada a constituir parceiras com o poder público para
formulação, execução e controle de políticas sociais. No Brasil, essa nova tendência
concretiza-se com a Constituição Federal de 1988, a qual prevê a criação de conselhos de
constituição mista e paritária como mecanismos legais de gestão descentralizada e
participativa das políticas sociais – os Conselhos Gestores. Esses novos canais de
participação são, assim, novidade na cena política brasileira. Contudo, eles carregam
consigo possibilidades contraditórias, ou seja, ao mesmo tempo em que podem ser espaços
de construção de uma nova cultura política, a partir da consolidação da esfera pública,
também podem constituir-se em espaços de legitimação das reformas de cunho neoliberal,
onde há o repasse das responsabilidades do Estado para a sociedade civil. Diante dessa
realidade, esta pesquisa tem por objetivo fornecer uma análise dos Conselhos Gestores a
partir do referencial gramsciano, uma vez que tal referencial possibilita uma leitura que
privilegia o destacado aspecto contraditório. A análise desenvolvida pela perspectiva
gramsciana fornece elementos que ajudam a refletir sobre as potencialidades dos Conselhos
Gestores num contexto de redimensionamento das relações entre Estado e sociedade civil,
apontando alternativas que preconizam a utilização desses espaços para a construção de
uma nova cultura, que dê as bases para a formação de uma ordem hegemônica renovada,
condizente com as reais necessidades das classes subalternas.
Palavras-chave: controle social, sociedade civil, participação, políticas públicas.
1
Autora e relatora, Assistente Social e aluna do Curso de Mestrado em Educação da Universidade de Passo
Fundo-RS. Endereço para contato: Rua Dona Elisa, 335, Bairro Fátima – Passo Fundo-RS. CEP: 99020-120.
E-mail: [email protected].
2
Introdução
O presente estudo busca, a partir do enfoque gramsciano, lançar um olhar sobre os
Conselhos Gestores, os quais constituem-se em mecanismos institucionalizados de controle
social2. Contemporaneamente, a ampliação desses mecanismos vem se colocando como
tendência observada em nível mundial. Essa tendência se justifica, por um lado, pela
adoção de políticas de orientação neoliberal pautadas no repasse das responsabilidades do
Estado para a esfera da sociedade civil e, por outro lado, pela luta histórica dos movimentos
sociais por maior participação nos processos decisórios.
A opção pela teoria gramsciana justifica-se em virtude de que ela fornece um referencial de
análise bastante pertinente para a compreensão desses processos de institucionalização de
canais de controle social sobre as ações do Estado. Com base nessa ótica, observa-se que
esses canais se constituem em espaços contraditórios, visto que, na medida em que são a
incorporação das reivindicações populares por parte do Estado, amenizam os conflitos de
classe, colocando-se, assim, como instrumentos para a legitimação das estruturas de
dominação. Porém, contraditoriamente, ao tempo em que possibilitam a ampliação da
participação popular nas ações do Estado, configuram-se em espaços possíveis de
construção da esfera pública e de fortalecimento da organização da sociedade civil,
colocando-se, então, como instrumentos para a formação de uma nova ordem hegemônica.
De acordo com a teoria gramsciana, a luta pela hegemonia de determinado bloco histórico é
uma constante que permeia os mais diversos espaços da sociedade e, como não poderia
deixar de ser, os mecanismos de participação popular sobre a gestão da coisa pública estão
visceralmente envolvidos nesse conflito. Então, dependendo das forças sociais imbricadas
na constituição e no desenvolvimento das ações dos Conselhos Gestores (CG), esses
poderão tanto reiterar a hegemonia de um bloco histórico reacionário, quanto contribuir
para a construção de um novo bloco histórico, com bases progressistas.
2
De acordo com a conceituação de Correia, controle social significa “atuação da sociedade civil organizada
na gestão das políticas públicas no sentido de controlá-las para que estas atendam, cada vez mais, às
demandas sociais e aos interesses das classes subalternas” ( 2002, p.121).
3
Assim, visando garantir os espaços institucionalizados de controle social como espaços
voltados para a construção de uma contra-hegemonia, observa-se a necessidade de
investimento num trabalho de educação política, ou seja, faz-se necessário que os grupos
sociais que passam a participar da gestão do Estado partilhem de uma nova concepção de
mundo, uma nova cultura, própria das classes subalternas3. E a difusão dessa nova
concepção é a tarefa pedagógica dos intelectuais organicamente vinculados às classes
subalternas4.
Dessa forma, visando desenvolver uma leitura dos Conselhos Gestores a partir da
perspectiva teórica de Gramsci, essa pesquisa orienta-se pela seguinte metodologia:
inicialmente, são abordadas categorias desse referencial teórico consideradas essenciais
para a discussão da temática proposta. Em seguida, para embasar a discussão sobre os CG,
são introduzidos alguns elementos acerca de sua constituição e de sua inserção no contexto
político contemporâneo. A partir daí, parte-se para a análise dos CG pela ótica da
perspectiva gramsciana.
Alguns apontamentos para uma aproximação com o referencial gramsciano
O italiano Antônio Gramsci (1891-1937) foi um ativo revolucionário socialista que fazia
clara oposição ao fascismo, o que lhe rendeu quase onze anos de prisão. No cárcere,
Gramsci escreveu sua teoria, a qual se constitui em leitura obrigatória para a compreensão
do marxismo, bem como da realidade atual.
Tendo a política como campo privilegiado de discussão, Gramsci trabalha com a categoria
da hegemonia, que está relacionada à direção política, à obtenção do consenso como base
para a dominação, na sociedade, de determinada classe social. A hegemonia de uma classe
3
Classes subalternas é uma expressão gramsciana. As classes subalternas, fazendo parte da complexidade da
realidade, abrangem os grupos sociais que se encontram em situação de dominação, exploração ou exclusão,
decorrente tanto de processos econômicos, quanto políticos e culturais. Nas classes subalternas encontram-se
os grupos sociais que estão submetidos ao exercício do poder e direção por parte das classes
hegemonicamente dominantes, os quais, portanto, são desprovidos de qualquer poder de mando ou decisão.
4
Os conceitos gramscianos de hegemonia, bloco histórico, intelectual orgânico, entre outros, serão tratados
em seguida.
4
permeia os mais diversos espaços do cotidiano – as manifestações culturais, o sistema
escolar, as relações familiares, etc. - constituindo-se no alicerce das relações de dominação.
Este conceito é o que explica o consentimento que o modo de produção capitalista goza
diante da classe trabalhadora. Segundo Gramsci, tal consentimento não é explicado pela
força nem pela lógica produtiva capitalista, mas, sim, pelo poder da ideologia e da
consciência. Então,
a hegemonia compreende as tentativas bem sucedidas da classe dominante
em usar sua liderança política, moral e intelectual para impor sua visão de
mundo como inteiramente abrangente e universal e para moldar os
interesses e as necessidades dos grupos subordinados (CARNOY, 1994,
p.95).
Diante disso observa-se que, mais do que lançar mão de mecanismos coercitivos, a
conquista da hegemonia coloca-se como condição para as classes que pretendem obter e
manter o poder. Assim, conforme Gramsci:
Um grupo social pode e deve ser dirigente antes mesmo de conquistar o
poder governativo (esta é uma das condições principais para a própria
conquista do poder); depois, quando estiver exercendo o poder, mesmo se
o mantém fortemente na mão, torna-se dominante, mas deve continuar a
ser “dirigente” também (1990, p.155).
Essa discussão remete a outro conceito gramsciano, o de bloco histórico, cujo significado é
de uma unificação global que compreende a relação dialética entre estrutura e
superestrutura, sendo capaz de realizar a hegemonia de uma classe na sociedade. No bloco
histórico, “as forças materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma” (GRAMSCI,
1995, p.63).
Avançando na sua teoria, Gramsci formula um conceito ampliado de Estado, a partir do
qual é possível identificar as bases materiais em que se fundam e se desenvolvem as
relações de hegemonia, de direção política e de coerção. Ao teorizar sobre o Estado,
Gramsci enriquece a teoria marxista clássica na medida em que inclui em sua análise a
categoria da sociedade civil. Na teoria do Estado Ampliado, o Estado não se constitui
apenas de mecanismos repressivos e coercitivos como no pensamento clássico, mas é
também formado pelos aparelhos privados de hegemonia. Segundo o próprio autor:
5
Por enquanto, pode-se fixar dois grandes ‘planos’superestruturais: o que
pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos
chamados comumente de ‘privados’) e o da ‘sociedade política ou
Estado’, que correspondem à função de ‘hegemonia’ que o grupo
dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de
comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’ (GRAMSCI,
1979, p.10-11).
Observa-se, diante dessa concepção, que o Estado se constitui de duas esferas (sociedade
política e sociedade civil) que devem ser levadas em conta no que tange às estratégias de
conquista e de manutenção do poder de determinado grupo social. Através da sociedade
política, formada pelos mecanismos legais de repressão e violência, as estratégias utilizadas
relacionam-se ao exercício da coerção e da ditadura. Já, através da sociedade civil, formada
pelas organizações da sociedade responsáveis pela elaboração e difusão de ideologias, as
estratégias voltam-se à busca do consenso e da direção política.
Segundo Coutinho, a novidade introduzida por Gramsci reside no fato de que “a hegemonia
- enquanto figura social – recebe agora uma base material própria, um espaço autônomo e
específico de manifestação” (1989, p.77). A sociedade civil possui, então, autonomia
funcional e também material com relação à sociedade política, sendo, portanto, necessária a
conquista do consenso para que um grupo social possa tornar-se dominante. Observa-se,
assim, a relevância da esfera ideológica como alicerce de toda a estrutura econômica e
política da sociedade.
Com base na sua teoria do Estado Ampliado, Gramsci chama atenção para uma diferença
essencial entre as sociedades capitalistas mais avançadas e as sociedades de capitalismo
ainda pouco estruturado. Para ele, as primeiras são caracterizadas por um maior nível de
autonomia da sociedade civil, onde há uma relação mais equilibrada entre esta esfera e a
esfera da sociedade política. As segundas caracterizam-se pela debilidade da sociedade
civil, havendo, então, o predomínio do Estado-coerção. Essa diferença apontada por
Gramsci é essencial na medida em que determina as arenas em que deve ocorrer a luta pela
conquista do poder, ou seja, dada a diferença indicada, tem-se que, nas sociedades de
capitalismo pouco desenvolvido, a luta caracteriza-se pelo choque-frontal, pela coerção – é
a guerra de movimento. Já, nas sociedades onde o capitalismo é avançado, a luta deve ser
pela conquista do consenso, tendo como espaço privilegiado a esfera da sociedade civil – é
6
a guerra de posição. Nessas sociedades, a luta pela obtenção do poder, pela constituição de
um bloco histórico, é de caráter processual e deve se iniciar pelo conquista da hegemonia.
Conforme Coutinho:
as batalhas devem ser travadas inicialmente no âmbito da sociedade civil,
visando à conquista de posições e de espaços (‘guerra de posição’), da
direção político-ideológica e do consenso dos setores majoritários da
população, como condição para o acesso ao poder do Estado e para sua
posterior conservação. (1989, p.89).
A partir daí, visando à conquista da hegemonia das classes subalternas via esfera da
sociedade civil, Gramsci defende a necessidade de uma reforma intelectual e moral, a qual
deve acontecer antes mesmo da obtenção do poder do Estado. Aliás, essa reforma é
condição para a obtenção e manutenção daquele poder, uma vez que fica clara em Gramsci
a premissa de que, antes da conquista do poder governativo, deve dar-se a conquista da
hegemonia. A reforma intelectual e moral diz respeito à construção de uma nova concepção
de mundo, de uma nova cultura. Ela acontece na esfera da sociedade civil e diz respeito a
uma renovação ideológica e cultural que se constitui na base para uma transformação
radical na estrutura societária. Ela integra a guerra de posição e prepara as condições para a
hegemonia das classes subalternas.
Segundo Mochcovitch, a reforma intelectual e moral
se traduz na construção e na difusão de uma concepção de mundo própria
das classes subalternas, atuando sobre o senso comum, popularizando as
conquistas filosóficas do marxismo e tendendo a desfazer, no plano das
relações sociais de dominação e da distribuição da cultura, a dicotomia
dominantes/dominados, inclusive em momentos anteriores à
transformação do Estado (1988, p.37).
Aqui entra a noção gramsciana de intelectuais orgânicos, os quais são os responsáveis pela
difusão dessa reforma intelectual e moral e, então, pela construção da consciência de
pertencimento a uma classe social. De acordo com a definição de Coutinho, os intelectuais
são “agentes da consolidação de uma vontade coletiva, de um bloco histórico” (1989,
p.108). Gramsci revela a centralidade do papel dos intelectuais quando coloca que “uma
massa humana não se ‘distingue’ e não se torna independente ‘por si’, sem organizar-se; e
não existe organização sem intelectuais” (1995, p.21).
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Há, no referencial gramsciano, de acordo com Simionatto (1995), duas categorias de
intelectuais: os intelectuais tradicionais e os intelectuais orgânicos. Os intelectuais
tradicionais são aqueles que, na formação de um novo bloco histórico, perderam a base
social à qual estavam vinculados, ou seja, assistiram ao desaparecimento do modo de
produção anterior e encontram-se desligados organicamente das classes sociais
fundamentais. Já os intelectuais orgânicos são os que estão vinculados organicamente a
uma classe social, participando efetivamente de um projeto junto às classes fundamentais
na sociedade.
As classes subalternas devem, então, produzir os seus intelectuais orgânicos, o que é
condição para a construção de sua hegemonia, projetando, assim, a formação de um novo
bloco histórico. Visando viabilizar esse processo de construção da contra-hegemonia,
o intelectual precisa provocar, no seio da classe a que está vinculado
organicamente, uma tomada de consciência de seus interesses, bem como
participar na formação de uma concepção de mundo mais homogênea e
autônoma. Pela função que exerce no modo de produção, a concepção de
mundo do proletariado está permeada pela ideologia de outras classes
sociais e, portanto, não consegue encaminhar o seu próprio projeto de
classe (SIMIONATTO, 1995, p. 60).
Com base no exposto, observa-se que as classes sociais fundamentais utilizam-se de
diversas estratégias na permanente luta que travam pela conquista e pela manutenção da
hegemonia de seu bloco histórico. De acordo com Gramsci, uma dessas estratégias é a da
revolução passiva ou revolução restauração, cuja atualidade é inquestionável quando se
analisam os processos políticos nacionais. A revolução passiva constitui-se numa
cooptação, pelo bloco dominante, das camadas potencialmente revolucionárias.
Caracteriza-se por uma mudança operada pelas elites, sem o protagonismo das classes
revolucionárias. De acordo com a análise de Coutinho (1989), a revolução passiva
constitui-se de dois momentos: um de restauração, que é o momento caracterizado pela
reação das classes dominantes às possibilidades de transformação pelas classes dominadas,
e outro de renovação, onde são assimiladas, pelas classes dominantes, reivindicações
populares.
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Então, à medida que as classes subalternas pressionam as instituições das classes
dominantes para que suas reivindicações sejam incorporadas - operando, assim, no sentido
da construção da contra-hegemonia -, essas classes reagem visando preservar sua
hegemonia. A essa reação contrária ao movimento da classe trabalhadora Gramsci
denomina de “revolução passiva”.
Para o autor,
pode ser aplicado ao conceito de revolução passiva [...] o critério
interpretativo das modificações moleculares que, na realidade, modificam
progressivamente a composição de forças precedente, tornando-se, então,
matrizes de novas modificações (GRAMSCI, 1989, p. 77).
A revolução passiva é, portanto, a incessante reorganização do Estado e de suas relações
com as classes subalternas visando garantir a hegemonia da classe dominante. Carnoy
(1994) cita como exemplo de revolução passiva a intervenção do Estado perante as
sociedades européia e norte-americana na década de 30, quando a hegemonia da classe
dominante, então enfraquecida, incorporou elementos das reivindicações populares, o que
garantiu a retomada da hegemonia capitalista.
Com essa breve “visita” a alguns dos conceitos fundamentais do referencial teórico
gramsciano, é possível empreender uma leitura dos Conselhos Gestores, os quais são
mecanismos de controle social sobre as ações do Estado. Porém, para o melhor
desenvolvimento desta proposta, é relevante compreender a inserção desses CG na
sociedade contemporânea. Portanto, algumas considerações preliminares acerca do tema se
fazem necessárias, do que se tratará a seguir.
Breve contextualização acerca dos Conselhos Gestores
Identifica-se, em nível mundial, uma tendência de democratização da gestão estatal,
caracterizada pelo estabelecimento de parcerias entre a esfera da sociedade política e a
esfera da sociedade civil. De acordo com Bobbio (1997), assiste-se hoje a uma ampliação
do processo de democratização, caracterizado pelo crescimento do poder ascendente, ou
seja, dos indivíduos enquanto cidadãos. Não é o surgimento de um novo tipo de
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democracia, mas, sim, “a ocupação, pelas formas ainda tradicionais de democracia, como é
a democracia representativa, de novos espaços [...]” (1997, p.55). É nesse cenário que
passam a ser constituídas novas modalidades de gestão e controle da coisa pública. E os
Conselhos Gestores representam uma dessas novas modalidades.
A compreensão do surgimento dos Conselhos Gestores no contexto brasileiro remete a dois
processos determinantes. O primeiro deles refere-se ao movimento de reorganização do
capitalismo em nível mundial, movimento este que, sob a orientação do ideário neoliberal,
resultou em novas formas de articulação entre o público e o privado, entre Estado e
sociedade civil. O segundo diz respeito ao fortalecimento da luta dos movimentos sociais
pela democratização da sociedade e pela construção de esferas públicas5.
Com relação ao primeiro processo, observa-se que, com a crise do Estado contemporâneo, a
instituição de mecanismos de participação da sociedade civil organizada apresenta-se como
estratégia constitutiva das reformas de cunho neoliberal, voltadas para o repasse das
responsabilidades do Estado para a esfera da sociedade civil. Os Conselhos Gestores
apresentam-se, então, como
fruto da crise das instituições públicas e parte constitutiva das reformas
estatais que implicam diminuição de custos e transferência de
responsabilidade na solução dos problemas locais para os cidadãos,
tratados como usuários ou clientes dos serviços públicos (GOHN, 2001, p.
94).
Nesta perspectiva, os CG passam a ser vistos pelos defensores da proposta do novo
liberalismo como mecanismos de colaboração para a implementação dessa proposta.
Por outro lado, no que se refere ao segundo processo apontado, nota-se que a constituição
dos Conselhos Gestores é resultado da luta nacional da sociedade civil organizada pelo
acesso e efetivação dos direitos sociais, bem como pela criação de canais que
possibilitassem a participação popular na gestão estatal, levando, assim, à redemocratização
5
A noção de esfera pública, segundo Raichelis, “baseia-se na idéia de que sua constituição é parte integrante
do processo de democratização, pela via do fortalecimento do Estado e da sociedade civil, expresso
fundamentalmente pela inscrição dos interesses das maiorias nos processos de decisão política” (1998, p.2526).
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do país. Nessa perspectiva, os CG são compreendidos como conquista resultante da luta
pela construção de esferas públicas.
A Constituição Federal de 1988 – reconhecida por seu teor “cidadão”- marca a
institucionalização desses mecanismos de controle social. Isso ocorre na medida em que ela
incorpora em seu texto a criação de conselhos de constituição mista e paritária (integrados
por representantes da sociedade civil organizada e do Estado) como mecanismos legais de
gestão descentralizada e participativa das políticas sociais.
Nesse sentido, a análise de Raichelis é bastante conclusiva:
Diante da crise do Estado, do agravamento da questão social e da luta pela
democratização do país, a busca por novos espaços de participação da
sociedade civil consubstanciou-se, entre outros aspectos, pela definição no
texto constitucional de instrumentos ativadores da publicização na
formulação e na gestão das políticas públicas. Estimulou-se a definição de
mecanismos de transferência de parcelas de poder do Estado para a
sociedade civil e foram induzidas mudanças substantivas na dinâmica
dessas relações” (1998, p.34).
A partir dessa contextualização inicial do tema dos Conselhos Gestores, começa a ficar
nítida a adequação, para sua interpretação, do referencial gramsciano. Então, é à luz deste
referencial que os Conselhos Gestores serão analisados em seguida.
Uma leitura gramsciana sobre a temática dos Conselhos Gestores
Primeiramente, é importante observar que a instituição, na sociedade brasileira, de práticas
de ampliação da participação da sociedade civil na gestão estatal, remete à discussão acerca
da luta permanente pela conquista e/ou manutenção da hegemonia de determinados grupos
de interesses.
Nessa perspectiva, nota-se que as classes dominantes, visando manter a hegemonia de seu
bloco histórico, incorporam reivindicações populares, gestando, assim, estratégias de
revolução passiva. Conforme Gramsci, essas estratégias se constituem numa reação das
classes dominantes diante da possibilidade transformadora dos movimentos populares. Elas
resultam em avanços na sociedade, porém efetivam-se com base em reformismos que são
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operados pelas elites, minimizando, com isso, o protagonismo das classes subalternas e
enfraquecendo seu potencial transformador.
A análise de Montaño (1999) é adequada para a compreensão dos Conselhos Gestores
como estratégias de revolução passiva e, assim, como espaços em potencial para a
reprodução da ordem hegemônica vigente. Para o autor, o Estado incorpora a lógica
democrática para garantir a reprodução da lógica do capital. Assim, a institucionalização de
espaços de controle social sobre as ações do Estado, que se caracteriza como forma de
introdução da lógica democrática, condiz com a necessidade de legitimação do capitalismo
perante as classes subalternas. Segundo ele, essa introdução da lógica democrática leva à
substituição do descontentamento, da insatisfação, da revolta popular (real
ou potencial) pela incorporação paulatina do povo à cidadania e seu
aprofundamento (ampliação quantitativa e qualitativa da participação),
bem como a promulgação de leis que “protegem” o trabalhador e o
desenvolvimento de políticas sociais (1999, p.54).
Entretanto, uma vez que a dinâmica de institucionalização de canais democráticos de
participação - como os CG - é resultante das pressões dos movimentos populares, os quais
se caracterizam pela busca de espaços e do consenso na esfera da sociedade civil, essa
dinâmica pode também ser entendida como elemento constituitivo da guerra de posição. A
guerra de posição, para Gramsci, caracteriza-se pela luta das classes subalternas visando à
conquista da hegemonia, como base para a construção de seu bloco histórico. Tal luta tem
como palco a esfera da sociedade civil.
Então, quando as organizações das classes subalternas, na busca da conquista de espaços
para a construção de sua hegemonia, pleiteiam maior participação nas decisões estatais,
pressionando as classes dominantes para que incorporem, via Estado, suas reivindicações,
pode-se identificar uma estratégia da guerra de posição. Isto é, a ampliação dos espaços de
participação significa a conquista de “posições” por parte das classes subalternas.
Diante disso observa-se, contraditoriamente, o duplo caráter dos mecanismos
institucionalizados de controle social, como os CG. Isso porque, ao mesmo tempo em que
possuem potencial para se constituírem em processos reformistas operados pelas classes
dominantes, visando amenizar os conflitos de classe e, assim, manter a hegemonia de seu
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bloco histórico, também apresentam potencial para se colocarem como estratégias das
classes subalternas para o fomento de uma contra-hegemonia. Esse caráter contraditório
deve-se ao fato de que, na sociedade brasileira, o Estado já assumiu uma dimensão
“ampliada”, nos termos de Gramsci. Isso significa que há certo equilíbrio entre a sociedade
civil e a sociedade política, o que faz com que o Estado tenha a necessidade de incorporar
demandas das classes subalternas. O próprio Estado é, portanto, concebido como espaço
contraditório, atravessado pela luta de classes.
A partir daí, defender que os CG se efetivem como espaços para a construção de uma
contra-hegemonia significa defender a sua constituição como instrumentos para a reforma
intelectual e moral apontada por Gramsci. Quer dizer que os CG devem ser instrumentos
para a criação e difusão de uma nova concepção de mundo e de uma nova cultura, próprias
das classes subalternas, que substituam o senso comum. E, para que isso aconteça, os CG
devem efetivar-se como espaços que demarcam um novo padrão de relacionamento entre
Estado e sociedade civil, o qual esteja assentado na perspectiva de construção da esfera
pública. Para tanto, devem constituir-se como espaços de democratização e de
representação dos reais interesses das classes subalternas.
Entretanto, para que os Conselhos Gestores se constituam, concretamente, nestes espaços
de transformação política, tem-se como ponto de partida a necessidade de que os grupos
sociais neles representados partilhem de um projeto comprometido com a construção da
contra-hegemonia. E levando em conta a reflexão de Gramsci com relação à tomada da
consciência de classe - condição para o posicionamento dos sujeitos em defesa de um
projeto de sociedade próprio das classes subalternas -, tem-se que, dada a dominação via
hegemonia e consenso que as classes dominantes exercem na sociedade, os grupos sociais
subalternos não conseguem, espontaneamente, elucidar os mecanismos de dominação e
apreender as relações de exploração entre classes. Assim, para que aconteça a construção
de uma concepção de mundo própria das classes subalternas, faz-se necessária a
participação dos intelectuais organicamente vinculados a estas classes, os quais possuem a
função de trabalhar as concepções populares e de elevá-las ao nível de uma concepção
transformadora.
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Isso posto, observa-se que, para que os CG se constituam realmente em espaços de
construção e difusão de uma nova cultura, é essencial a existência de um trabalho de
educação política por parte desses intelectuais. Essa educação política deve, então, estar
comprometida com a elucidação da consciência de pertencimento às classes sociais
subalternas dentre os representantes dessas classes que têm assento nos CG.
Esse trabalho de educação política é determinante no que tange ao caráter que irá
predominar nos CG, ou seja, no caso de sua inexistência, tende a predominar neles uma
perspectiva de colaboração e consentimento com relação às reformas de precarização das
políticas sociais públicas e de repasse das funções estatais para a esfera da sociedade civil,
já que esta é a cultura política tradicionalmente hegemônica no país. É, então, somente a
partir de um trabalho de educação política caracterizado pelo comprometimento com as
classes subalternas, que poderá se imprimir uma outra perspectiva às ações desenvolvidas
pelos CG. E, para tanto, os intelectuais possuem papel de destaque.
Diante disso, as considerações de Gohn, quando aponta para necessidades e lacunas dos
Conselhos Gestores, são bastante elucidativas:
Há necessidade de capacitação dos conselheiros (inclusive com cursos,
seminários, trocas de experiências, fóruns, espaços culturais, eventos,
etc.). A participação, para ser efetiva, precisa ser qualificada, ou seja, não
basta a presença numérica de pessoas porque o acesso está aberto. É
preciso dotá-las de informações e de conhecimentos sobre o
funcionamento das estruturas estatais. Não se trata, em absoluto, de
integrá-la, incorporá-las à teia burocrática. Elas têm o direito de conhecer
essa teia para poder intervir de forma a exercitar uma cidadania ativa, nãoregulada, outorgada, passiva (2001, p.95).
Então, a capacitação dos conselheiros, como forma de educação política, é essencial para a
constituição dos CG como esferas públicas e, mais do que isso, como espaços para a
construção de uma cultura contra-hegemônica. Nesse sentido, é importante ressaltar aqui a
existência de uma série de grupos formados por setores organizados da sociedade (como
organizações não-governamentais, partidos políticos de esquerda, universidades, entre
outras instituições) que desenvolvem este tipo de trabalho de capacitação junto a
integrantes de Conselhos Gestores.
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Conclusões
Como conclusão dessa pesquisa, importa demarcar duas questões. A primeira diz respeito
ao reconhecimento da atualidade do pensamento político de Gramsci, o qual é
extremamente coerente para a compreensão e análise dos processos contemporâneos de
manutenção da hegemonia das classes dominantes, bem como dos processos de luta das
classes subalternas pela conquista de espaços para a construção de uma contra-hegemonia.
Pela ótica gramsciana, é possível compreender os Conselhos Gestores a partir de sua
contraditoriedade, ou seja, tanto podem ser concebidos como espaços de legitimação das
estruturas de dominação, quanto como fruto da luta das classes subalternas por maior
protagonismo na sociedade. Ao mesmo tempo, o marco teórico de Gramsci serve de base
para a compreensão dos processos cada vez mais sutis de inculcação dos valores e da
cultura das classes dominantes, assim como ilumina uma interpretação contemporânea
acerca do papel dos intelectuais como educadores responsáveis pela disseminação de novas
bases ideológicas, que sejam o alicerce para a formação de um outro bloco histórico.
A segunda questão diz respeito às possibilidades de os Conselhos Gestores serem
efetivamente utilizados como espaços para a construção e difusão de uma contrahegemonia, ou seja, justamente por serem atravessados pela luta de classes, possuem um
caráter contraditório, o que os habilita a se constituírem em instrumentos importantes para a
formação de uma nova cultura política, contribuindo assim para nova hegemonia. Porém,
para que assim se constituam, faz-se necessário o trabalho de educação política
empreendido pelos intelectuais organicamente vinculados às classes subalternas. E este é o
desafio que, desde a época da qual Gramsci foi contemporâneo, coloca-se aos setores da
sociedade que buscam o fim das relações de dominação-exploração. Quer dizer, o desafio é
fazer frente aos mecanismos sutis de manutenção da hegemonia das classes dominantes,
enfrentamento este que deve acontecer a partir da utilização de espaços da sociedade civil
para o fomento da hegemonia das classes subalternas e, então, para a construção de novas
bases culturais e morais – é a guerra de posição. Essa disputa, que é lenta e processual, tem
como atores centrais os grupos organizados que se constituem em intelectuais orgânicos das
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classes subalternas, uma vez que eles têm o dever de difundir a nova concepção de mundo e
os Conselhos Gestores são espaços em potencial para isso.
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