PET FILOSOFIA/UFPR Aluno: Luan Gonçalves da Silveira Data: 08/10/2014 Fichamento do capítulo IX, “Deus e o mundo: espaço, matéria, éter e espírito”, do livro Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, de Alexandre Koyré *** No capitulo IX de Do Mundo Fechado Ao Universo Infinito, intitulado Deus e o mundo: espaço, matéria, éter e espírito, Alexandre Koyré se foca, principalmente, no exame das concepções metafísicas presentes na filosofia natural de Isaac Newton; tais concepções são desenvolvidas – “de maneira mais precisa e mais clara do que em qualquer outro lugar”, afirma Koyré – nas questões acrescentadas, em relação à edição inglesa de 1704, à edição latina de 1706 da Ótica de Newton. Apesar de apontar para a dificuldade de estabelecer o motivo do acréscimo na obra de Newton, Koyré descarta a possibilidade das perguntas serem motivadas por De Spatio Reali, obra de Joseph Raphson publicada em 1702, já que se fosse o caso Newton teria se posicionado acerca de Raphson já na edição inglesa de 1704, e conjectura que a obra do Dr. George Cheyne1, Princípios Filosóficos da Religião Natural, tenha dado ensejo para Newton “abrir suas defesas e sair em campo aberto”. O primeiro ponto da concepção de mundo newtoniana, presente na 20° Pergunta (28), analisado por Koyré é a rejeição do plenum e a defesa da existência de um “éter extremamente rarefeito, fino e tênue, cuja densidade pode ser considerada tão pequena quanto desejarmos (não é nosso ar „à altitude de 70, 140, 210 milhas, 100.000, 100.000.000.000 ou 100.000.000.000.000 vezes mais rarefeito, e assim por diante‟ que nossa Terra?), o que implica a estrutura granular desse éter, a existência de um vazio e a rejeição de um meio contínuo.” (KOYRÉ, A. 2006, pg.184) 1 O escocês George Cheyne (1671-1743) foi médico, físico, filósofo e matemático, mais conhecido por advogar em prol do vegetarianismo. No campo da medicina, escreveu vários trabalhos abordando temas como nutrição, exercícios e depressão. Além de seu trabalho no campo da medicina, também publicou trabalhos de cunho metafísico, tal como a obra citada por Koyré, Princípios filosóficos da religião natural, onde defendia a impossibilidade da vida surgir naturalmente da matéria inorgânica e a necessidade desta ter existido durante toda a eternidade. Cheyne e Newton se conheciam pessoalmente e, aparentemente, este se recusou a vê-lo novamente depois de Cheyne ter recusado auxílio financeiro para a publicação de sua obra Fluxionum Methodus Inversa. 1 A menção à diferença de densidade entre a terra e o ar em altitudes mais elevadas parece servir para ilustrar a maneira não uniforme em que o éter está distribuído pelo espaço, o que descaracterizaria um meio contínuo. Só por meio de uma estrutura granular tal distribuição não uniforme do éter pode ser explicada, pois somente ela permite diferenças graduais na densidade deste por meio da maior ou menor concentração de suas partículas, o que não se daria caso o éter fosse uma substância inteiriça, o que descaracterizaria inclusive seu caráter de fino e tênue. Tendo em vista essa estrutura granular do éter, fica fácil entender a necessidade do vazio na concepção de mundo de Newton, pois é esse vazio que permite a distribuição não uniforme das partículas etéreas pelo espaço: quanto menor a concentração de tais partículas em uma determinada região do espaço, maior é o vazio nessa região. O trecho da 20° Pergunta (28) citado adiante por Koyré evidencia a importância das concepções metafísicas dentro da concepção de mundo newtoniana, assim como a rejeição de um mundo explicado de forma puramente mecânica. No trecho, Newton, retomando a visão atomista clássica do mundo, em que o vacuum, os átomos e a gravitação dos átomos constituem os princípios primeiros do pensamento sobre a constituição do cosmos. Segundo Newton, os filósofos atomistas atribuíam tacitamente a gravidade a uma causa não material, contrastando com a concepção mecanicista posterior: Filósofos posteriores banem da Filosofia natural a Consideração de tal Causa, imaginando Hipóteses para explicar todas as coisas mecanicamente, e remetendo outras Causas à Metafísica: Enquanto a Ocupação principal da Filosofia natural consiste em raciocinar a partir dos Fenômenos, sem imaginar Hipóteses, e deduzir Causas de Efeitos, até chegarmos à Causa primeira, que certamente não é mecânica; e não somente descortinar o Mecanismo do Mundo, mas principalmente resolver essas e outras Questões semelhantes, a saber: O que existe em lugares quase vazios de Matéria, e por que o Sol e os Planetas gravitam uns em direção dos outros, sem Matéria densa entre eles? (...)Ocorrerá que o Olho tenha sido imaginado sem conhecimento de Ótica – e o ouvido sem Conhecimento do Som? Como os Movimentos do Corpo atendem ao Desejo, e de onde vem o instinto nos Animais? Não será o Sensoriumdos Animais aquele lugar onde está presente a Substância sensível, e para o qual as Espécies sensíveis de Coisas são levadas dos Nervos para o Cérebro, para que possam ser percebidas devido à sua presença imediata nessa Substância? E sendo essas coisas corretamente consideradas, não se deduzirá, devido aos Fenômenos, que exista um Ser incorpóreo, vivo, inteligente, onipresente, que está no Espaço infinito, como se estivesse em seu Sensorium, vê as coisas intimamente, percebe-as inteiramente e as compreende com perfeição pela presença imediata delas em si mesmo? Coisas essas das quais somente as Imagens, levadas pelos Órgãos dos Sentidos para nossos pequenos Sensoria, são aí vistas e percebidas por aquilo que em nós percebe e pensa? E embora cada passo avante dado nessa Filosofia não nos leve imediatamente ao Conhecimento da Causa primeira, 2 leva-nos para mais perto dela, e por isso deve ser altamente estimado. KOYRÉ, A. 2006, pg.185) A maneira pela qual Newton defende uma causa imaterial para a gravidade transparece, além da diferença radical de concepção do mundo, uma diferença metodológica fundamental entre ele e os mecanicistas: descarta-se a construção de uma teoria apoiada em hipóteses e adota-se um método que parte dos fenômenos para suas causas. Seria errôneo, portanto, atribuir à ideia da causa metafísica da gravidade o estatuto de hipótese, ao invés do estatuto de dedução a partir do que é observado. Além disso, as questões da filosofia natural são colocadas como uma forma de aproximação ao conhecimento da Causa Primeira, sendo este o seu objetivo último; dentro do pensamento newtoniano, física e metafísica são inseparáveis de tal modo que a física, ao mesmo tempo, depende e leva necessariamente à metafísica. As questões apresentadas no trecho citado mostram claramente tanto a metodologia de dedução a partir da observação quanto a relação entre filosofia natural e metafísica, na medida em que os fenômenos observados dão o “material” necessário para um pensamento, que se pretende não hipotético, sobre a natureza última do mundo. Assim sendo, é a consideração da constituição do espaço celeste, da ordem e da beleza presentes na natureza, da constituição física dos viventes, etc., que permite a Newton deduzir a existência de Deus, que compreende e percebe com perfeição o todo “como se estivesse em seu Sensorium2”. Após tratar da questão do éter e do vácuo e dar um primeiro apontamento para a importância da ação divina no mundo newtoniano, Koyré então passa para o exame dos “Poderes” das pequenas partículas constituintes dos corpos, presente na 23°Pergunta (31), que servirá para explicitar o fundamento metafísico da filosofia natural de Newton. Apesar de Newton deixar a questão em aberto e não explicar a natureza de tais “Poderes”, diz Koyré, estes são considerados como “constituídos de uma energia não mecânica, imaterial e até mesmo „espiritual‟, exterior à matéria.” São os “Poderes” que permitem a um corpo agir à distância em outro; as ações a distância entre os corpos são entendidas por Newton como atrações tais como a gravidade, o magnetismo e a 2 O termo Sensorium, em português “sensório”, designa a totalidade do aparelho sensorial de um indivíduo. Talvez seja em virtude desse sentido demasiadamente corpóreo que Newton, em um primeiro momento, afirma que Deus vê e compreende as coisas no espaço infinito “como se [o espaço infinito] estivesse em seu Sensorium” (no original: Who in infinite Space, as it were in his Sensory, fees the things themselves intimately, (NEWTON, I. 1730, pg.345)). Posteriormente, como veremos, Newton traça uma distinção qualitativa entre o Sensorium Dei e os demais Sensoria, o que o permitirá utilizar o termo para se referir à “percepção” divina e identificá-lo com o espaço infinito. 3 eletricidade. Newton ainda admite a possibilidade de atrações que “alcancem distâncias tão pequenas que até agora hajam escapado à Observação”. E são justamente essas atrações em distâncias ínfimas que são inferidas como fundamento da coesão dos corpos. Os átomos são unidos graças a esses “Poderes”, sem eles a constituição de um corpo parece simplesmente impossível dentro de uma concepção atomista. Diz Newton: Pois tais Partículas duras, sendo amontoadas juntas, mal podem se tocar umas às outras senão em poucos Pontos, e portanto devem ser separáveis com muito menos Força do que se requer para romper uma Partícula sólida , cujas Partes tocam-se em todo o Espaço entre elas, sem quaisquer Poros ou Interstícios que debilitem sua Coesão. Mas como tais Partículas duríssimas, que são somente amontoadas juntas e tão fortemente como fazem, sem a ajuda de alguma coisa que as faça ser atraídas ou impelidas umas para as outras, é muito difícil compreender. (KOYRÉ, A. 2006, pg.188) Tais interações que permitem a essas partículas manterem-se agrupadas e coesas não podem ser explicadas, afirma Koyré, atribuindo-as à ação de partículas menores e “etéreas” já que a própria interação destas carece da mesma explicação. Atribuir esta função às partículas etéreas, segundo Koyré menores que as que compõem a matéria densa, acarretaria numa regressão ao infinito já que para explicar a interação entre elas haveria a necessidade de um postulado de um ultra-éter que, por sua vez, também necessitaria da mesma explicação, e assim por diante3. Koyré chama a atenção para a possível objeção ao apego de Newton à clássica concepção atomista, que, segundo ele, colocaria grandes dificuldades para a dinâmica. A consideração do átomo, sendo o componente último da matéria, como uma partícula dura, impenetrável e indivisível, impossibilita uma explicação puramente material para o comportamento de dois corpos perfeitamente duros que colidissem. Ora, se dois corpos iguais e perfeitamente duros, ou seja, inelásticos e indeformáveis, se chocam numa mesma velocidade é impossível determinar se esses corpos saltariam ou anulariam o movimento um do outro, já que, por um lado, a elasticidade é condição necessária para esse salto e, por outro, a perda de movimento decorrente da falta de elasticidade desses dois corpos que se chocam, implicaria a desaceleração da “máquina do mundo”. Assim sendo, a possível objeção, a qual Koyré se refere, relacionaria essa aporia diretamente com a concepção metafísica dos “Poderes” das partículas, pois é por meio deles que Newton resolve tal dificuldade (como veremos posteriormente). Já que, 3 Koyré parece considerar o éter como um tipo especial de matéria, já que, ao mesmo tempo em que suas partículas necessitam de uma força externa para sua coesão da mesma maneira que as partículas que compõem a matéria densa, elas são consideradas menores do que estas. Assim, a natureza fina e tênue do éter não é simplesmente decorrente de um determinado arranjo de suas partículas, mas da natureza delas. 4 para Newton, a composição dos corpos por partículas duras é inferida naturalmente da experiência, pois: (...)de outra forma os Fluídos não se solidificariam; como fazem a Água, os Óleos, o Vinagre e o Espírito ou o Óleo de Vitríolo pelo congelamento; o Mercúrio por fumos de Chumbo; o Espírito do Salitre e do Mercúrio, pela dissolução do Mercúrio e evaporação da Flegma; o Espírito do Vinho e o Espírito da Urina pela sua deflegmação e mistura; e o Espírito da Urina e o Espírito do Sal por sua sublimação em conjunto para formar o Sal amoníaco. (...) E, portanto, a Dureza pode ser reconhecida como a Propriedade de toda Matéria simples. Pois todos os Corpos, até onde mostra a Experiência, ou são duros ou podem ser endurecidos; e não temos nenhuma outra Evidência da Impenetrabilidade universal senão uma ampla Experiência, sem uma só exceção experimental.(KOYRÉ, A. 2006, pg.187) Tendo em vista a dificuldade da explicação da manutenção do movimento dentro de um modelo atomista e o apego de Newton a esse modelo, Koyré reitera o entrelaçamento entre filosofia natural e metafísica no pensamento newtoniano, que afirma a necessidade de forças imateriais na estrutura do mundo. Apesar da filosofia natural renunciar a discussão da natureza última das forças imateriais, elas, entendidas como forças matemáticas, desempenham um papel fundamental na explicação dos fenômenos observáveis, que são tomados como seus efeitos. Lembrando que eletricidade, magnetismo e gravitação são exemplos dessas forças imateriais, fica evidente o caráter calculável de tais forças, assim como a importância desses cálculos para a explicação dos fenômenos naturais. O autor contrasta, assim, a filosofia natural newtoniana com a filosofia dos atomistas gregos e com a de Descartes, que tinham uma concepção de mundo puramente material. Ainda sobre o papel das forças imateriais na constituição dos corpos, Koyré cita uma passagem de Newton onde são descritas as maneiras pelas quais esses corpos estão arranjados. Quanto maior o grupo de partículas unidas pela atração, menor a força (virtude) dessa atração. Essa variação na força da atração das partículas determina as qualidades dos corpos observáveis, assim: Se o Corpo é compacto, e se curva ou cede interiormente à Pressão sem qualquer deslizamento de suas Partes, ele é duro e elástico, retornando à sua Forma com uma Força que advém da Atração mútua de suas Partes. Se as Partes deslizam umas sobre as outras, o Corpo é maleável ou mole. Se deslizam facilmente, e são de uma Dimensão apropriada a serem agitadas pelo Calor, e se o Calor é bastante forte para mantê-las em Agitação, o Corpo é fluído; e se ele é apto a aderir às coisas, é úmido; e as Gotas de todo fluído assumem uma Forma redonda pela Atração mútua de suas Partes, como o Globo da Terra e do Mar assume uma Forma redonda pela Atração mútua de suas Partes. (KOYRÉ, A. 2006, pg.187) 5 Além da explicação da coesão dos corpos, Koyré ainda aponta uma “vantagem inestimável” da admissão de forças imateriais que atuam sobre a matéria. Trata-se da possibilidade de “superpô-las mutuamente e até transformá-las em seus contrários”, o que dá um enorme aparato para a filosofia natural de Newton, já que, como dito anteriormente, essas forças são entendidas como conceitos e relações matemáticas. Um dos exemplos dados por Newton desse jogo de transformações das forças é o comportamento das partículas de água quando esta evapora; quando a força atrativa que mantém as partículas unidas no estado líquido é superada pela influência do calor, que agita as partículas, essa força é convertida em uma força repulsiva que dispersa as partículas que antes compunham a água em seu estado líquido. Uma filosofia que excluísse da natureza as forças imateriais, portanto, não daria conta de explicar nem a coesão dos corpos, nem a manutenção do movimento no mundo, pois: A vis inertiae é um Princípio passivo pelo qual os Corpos persistem em seu Movimento ou em seu Repouso, recebem Movimento em proporção à força que o imprime e resistem na mesma Medida em que sofrem resistência. Por esse Princípio tão-somente jamais poderia haver qualquer Movimento no Mundo. Algum outro Princípio era necessário para pôr os Corpos em Movimento; e agora, quando estão em Movimento, é necessário algum outro Princípio para conservar o Movimento.(KOYRÉ, A. 2006, pg.191) Levando em conta o fato dos corpos constantemente oferecerem resistência uns aos outros (por atrito, por exemplo) e, ademais, não possuírem uma elasticidade absoluta, pois são compostos por partículas perfeitamente duras, a tendência do movimento é perder-se até o ponto de um repouso absoluto. Dessa maneira, mesmo que o movimento fosse possível em um mundo pleno de matéria, como o mundo cartesiano, ele cessaria rapidamente, por conta da imensa resistência que suas partes ofereceriam umas às outras. O último ponto a ser levantado por Koyré nesse capítulo é a caracterização dessas forças imateriais como ação constante de Deus no mundo. A matéria, segundo Newton, sendo constituídas por partículas duras por escolha divina, permanece sempre fundamentalmente a mesma, isto é, os átomos não se desgastam de nenhuma maneira já que “nenhum Poder ordinário é capaz de dividir aquilo que o próprio Deus fez uno na primeira Criação”. Portanto, as mudanças ocorrentes na natureza se dão por meio de mudanças nas associações e movimentos dessas partículas. Mas, pelos motivos anteriormente examinados – a desaceleração do movimento e a impossibilidade da coesão dos corpos numa concepção puramente materialista – faz-se necessário que Deus 6 aja no mundo, por meio das forças imateriais, para a manutenção de sua ordem e de sua estrutura, e isto por escolha divina, não por acaso ou necessidade. Afirma Newton: (...) Pois, embora os Cometas se movam em Órbitas muito excêntricas, em toda a sorte de Posições, a Necessidade cega jamais poderia fazer com que todos os Planetas se movessem ao mesmo sentido em Órbitas concêntricas, excetuadas algumas Irregularidades desprezíveis que podem ter sido produzidas pela Ação mútua de Cometas e Planetas uns sobre os outros, e que estão sujeitas a crescer até que este Sistema exija uma Reforma. Tal admirável Uniformidade no Sistema Planetário deve ser compreendida como Efeito de Escolha. Assim compreendamos também a Uniformidade nos Corpos dos Animais...(KOYRÉ, A. 2006, pg.194) Portanto, para Newton, a uniformidade da estrutura do mundo é evidência da: (...) Sabedoria e Conhecimento de um poderoso Agente eterno, que, estando em todos os Lugares, é mais capaz de, por sua Vontade, mover os Corpos dentro de seu ilimitado Sensorium uniforme, e assim formar e reformar as partes do Universo, que podemosnós, por nossa Vontade, mover as partes de nossos próprios Corpos. E, no entanto, não devemos considerar o Mundo como o Corpo de Deus, ou as diversas Partes do Mundo como partes de Deus. Pois Ele é um Ser uniforme, desprovido de Órgãos, Membros ou Partes, e eles são Suas Criaturas, a Ele subordinadas e subserviente à Sua Vontade.”(KOYRÉ, A. 2006, pg.194) Chegamos assim, finalmente, à identificação do espaço com o Sensorium Dei, no qual o universo está contido e onde Deus atua sobre a criação. A menção ao modo que agimos, ou movemos, o nosso corpo serve de analogia para o modo pelo qual Deus age no mundo. Porém, nessa analogia deve ser considerada uma diferença fundamental, a saber: enquanto o que nos é permitido mover diretamente é o nosso próprio corpo, a ação de Deus no mundo não é uma ação sobre seu corpo, já que Deus, enquanto Ser incorpóreo e onipresente, não se confunde com Sua criação. E mais: há uma importante diferença qualitativa entre o Sensorium divino e os sensoria dos homens, na medida em que os homens percebem as coisas criadas, e as compreendem de maneira parcial, através de seus órgãos sensitivos, enquanto que Deus as percebe e as compreende perfeitamente e diretamente, sem a necessidade do intermédio de órgãos. Ademais, a própria realidade dessas coisas depende da percepção divina, já que Deus percebe e conhece tudo o que existe. Ora, se o Sensorium Dei é o que possibilita tanto a existência das coisas materiais quanto os seus movimentos, ele não é outra coisa senão o que chamamos de espaço; o espaço, por sua vez, sendo Sensorium Dei, e, portanto um atributo divino, só pode ser infinito. Assim, Koyré termina sua exposição da interessante cosmologia newtoniana, que concebe um mundo não pleno situado em um espaço infinito, que é o próprio sensório 7 divino, e cuja coesão, dada a natureza inerte da matéria que o compõe, depende do ato contínuo do Criador. Bibliografia KOYRÈ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. NEWTON, I. Opticks: or, a treatise of the reflections, refractions, inflections and colours of light. Londres: William Innys, 1730. NEWTON, I. Óptica: livro III, parte I, referente às questões. São Paulo: Nova Cultural, 2005. (Coleção Os Pensadores). 8