Revisão Periódica Universal (UPR) 27a sessão Situação dos Direitos Humanos no Brasil Apresentação conjunta submetida por: Conferência da Família Franciscana do Brasil – CFFB Comissão Brasileira de Justiça e Paz – CBJP Cáritas Brasileira Comissão Pastoral da Terra - CPT Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia - SINFRAJUPE Genebra, 4 Outubro 2016 1 INTRODUÇÃO 1. A presente submissão visa contribuir para a Revisão Periódica Universal (UPR) do Brasil durante seu terceiro ciclo, que terá lugar em 2017 na 27ª sessão. Este relatório foi elaborado por uma coalizão de organizações do Brasil – Conferência da Família Franciscana do Brasil (CFFB), Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), Cáritas Brasileira, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Serviço Interfranciscano de Justiça, Paz e Ecologia (SINFRAJUPE) - através da investigação e análise colaborativa das informações coletadas e compiladas no local. 2. A apresentação centra-se em mudanças estruturais nas instituições e políticas, que são de grande preocupação para organizações da sociedade civil por causa dos efeitos negativos previsíveis sobre a realização dos direitos humanos, especialmente aqueles setores mais marginalizados e discriminados da população no país. Em especial, descreve, referindo-se a dados oficiais, o desmantelamento dos direitos sociais e políticas públicas no Brasil, desencadeado pelo governo do Presidente Michel Temer desde que assumiu o cargo após o impeachment da presidente eleita Dilma Vana Rousseff. 3. De fato, em 2012, no curso dos debates realizados no segundo ciclo de Revisão Periódica Universal, o governo brasileiro recebeu um número significativo de recomendações insistindo para o fortalecimento do sistema de direitos humanos no país. Durante os últimos quatro anos, este processo revelou-se lento e frágil, e não pode satisfazer as expectativas do segundo ciclo. No entanto, após o golpe parlamentar de 2016, esta situação foi fortemente exacerbada pelos recentes acontecimentos políticos e a chegada ao poder do novo governo liderado pelo presidente Temer. O Brasil está em uma trajetória descendente no cumprimento das recomendações feitas em 2012. Por estas razões, o desmantelamento dos direitos humanos e políticas públicas será o foco principal do presente relatório. I. Um frágil processo de construção de instituições e políticas para a promoção e proteção dos direitos humanos. 4. No final da ditadura e no início do processo democrático, o Congresso Constituinte foi eleito com o mandato de elaborar uma nova Constituição Federal. A Constituição Federal de 1988 foi elaborada com ampla participação da sociedade. Ela foi marcada por contribuições dos setores populares organizados, o que deu ao texto um conteúdo claro de Estado do BemEstar Social, como garantidor dos direitos individuais, sociais, econômicos e culturais, e criou uma rede de segurança social e processos participativos cruciais na formulação de políticas públicas e para assegurar o controle social. 5. Para além das obrigações contraídas pelo Brasil como parte de diversos instrumentos jurídicos de direitos humanos a nível regional e internacional, a Constituição de 1988 engloba um conjunto de artigos que reconhecem direitos e obriga a sua aplicação progressiva. A Constituição e o mecanismo de participação social permitiu a criação de vários programas, sistemas de proteção de direitos e redes durante as últimas décadas. 6. Desde a adoção da nova Constituição, governos eleitos promoveram a participação social na elaboração de políticas públicas visando à universalização dos direitos; desenvolveram uma rede de segurança social e garantiram recursos para a sua implementação. Este processo histórico ocorreu em um momento em que as ideologias neoliberais foram predominantes no 2 cenário internacional, defendendo um Estado mínimo e políticas de privatização. A partir do governo Fernando Henrique Cardoso ( 1995-2002) e em particular, as últimas quatro administrações, presidente Luis Inácio Lula da Silva (2003-2010) e presidente Dilma Vana Rousseff (2011-2016) destacaram-se pela implementação de processos de inclusão social. Estas iniciativas induziram mudanças nas prioridades orçamentárias na direção da redução das desigualdades sociais e regionais e no aumento da aplicação dos direitos de milhões de famílias que antes sofriam de exclusão social e pobreza. II. Do não cumprimento das Recomendações 7. O Informe do Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, de 09 de julho de 2012, trouxe Conclusões e/ou Recomendações ao Brasil. A nosso ver, essas Recomendações não foram plenamente implementadas e nem tão pouco assumidas como políticas de estado, o que impediria retrocessos em momentos de crise institucional, como a atual. 8. No entanto, embora reconhecendo e acolhendo esses avanços, as organizações que apresentam esta submissão insistem no fato de que, embora o projeto de ambas as administrações Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Vana Rousseff, ter o objetivo de inclusão social, foi marcado pela persistência de uma discriminação e violações dos direitos dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. Não foram plenamente cumpridas as recomendações para garantir os direitos dos povos indígenas e afrodescendentes, como a recomendação 119.162; e para garantir os direitos territoriais e culturais dos povos indígenas, como as recomendações 119.163 até 119.1690, do Informe do Grupo de Trabalho sobre a Revisão Periódica Universal, de 09 de julho de 2012. 9. As políticas governamentais de crescimento e de desenvolvimento econômico levaram a várias e numerosas violações dos direitos desses povos e comunidades. Na mesma linha, a realização de grandes projetos de infraestrutura nas cidades-sede da Copa do Mundo (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016) impactaram negativamente sobre os direitos tanto civis e políticos, tais como a liberdade de expressão e direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito à moradia, de extensos grupos da população. 10. O fracasso do Estado em implementar as medidas necessárias para proteger e promover o acesso à terra e a outros recursos naturais do camponês tradicional, comunidades indígenas e quilombolas levou a numerosas e generalizadas violações de uma gama de direitos humanos dessas comunidades, incluindo os direitos a um padrão de vida adequado, para habitação digna, alimentos e água, como expressas nas recomendações 119.131 até 119.145 (Redução da pobreza e das desigualdades sociais e regionais) de 09 de julho de 2012. O Brasil, como parte de diversos instrumentos internacionais de direitos humanos que garantam esses direitos, nomeadamente o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, tem a obrigação de respeitar, proteger e cumprir esses direitos para todos. 11. As organizações que apresentam este documento estão profundamente preocupadas com os direitos humanos dos camponeses, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais que foram enfraquecidos pela implementação lenta e frágil das políticas relativas à demarcação de seus territórios. Além disso, a reforma agrária não foi implementada pelas administrações Dilma Vana Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva, uma vez que as principais políticas e prioridades do orçamento foram direcionadas para o fortalecimento da grande propriedade da terra dedicada à monocultura do agronegócio. 3 12. A Relatora Especial das Nações Unidas de sobre os Direitos dos Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, afirma em sua declaração no final da missão que teve lugar em Março de 2016: “Povos indígenas do país inteiro repetidamente enfatizaram que, devido à ausência prolongada de uma proteção eficaz do Estado, eles se veem forçados a retomar suas terras para garantir sua sobrevivência. Muitos até declaram que, caso recebam ordens de despejo ou reintegração de posse, não deixarão suas terras e, se necessário, morrerão por isso. Efetivamente, por meio de sua paralisia, o Estado brasileiro parece estar criando as condições para um conflito que trará, em última análise, um efeito devastador para os povos indígenas e a sociedade como um todo”.1 13. Apesar das insuficiências, da lentidão e das fragilidades na construção de um sistema de direitos humanos no Brasil para os segmentos mais vulneráveis, setores conservadores, presentes na sociedade e no Estado brasileiro, que se julgavam prejudicados pelo processo político em curso, articularam a queda da presidente Dilma Vana Rousseff através de um golpe parlamentar, um processo de impeachment que contemplou o aspecto político formal, mas que não comprovou a existência de crime para justificar o impeachment. 14. Desde março de 2016 e a declaração da relatora especial, os motivos de preocupação não diminuíram. Desde que o Vice-Presidente Michel Temer assumiu interinamente a Presidência, em abril de 2016, ele desencadeou o processo de desmantelamento das políticas públicas, direitos sociais, rede de segurança social e de vários mecanismos de participação social, a inclusão social e controle sociais criados após a promulgação da Constituição Federal de 1988. III.Cortes de recursos e ameaças à realização dos direitos: o projeto de Emenda Constitucional 241/2016 (PEC 241) e o Projeto de Lei do Orçamento de 2017 (desmantelamento da Constituição Federal de 1988) 15. A PEC 241/2016 foi desenvolvida para limitar os gastos públicos e, é uma proposta de emenda constitucional, que, se aprovada, irá introduzir um novo regime fiscal a vigorar para os próximos vinte anos financeiros e estabelece, para cada ano, um limite máximo para as despesas primárias globais aplicáveis ao Executivo e demais setores do governo federal.2 As organizações que apresentam este documento, bem como muitas outras organizações da sociedade civil, antecipam com grande preocupação que os cortes e limites nos recursos públicos que podem ser alocados a programas sociais fundamentais e à acessibilidade efetiva e funcionamento dos serviços públicos essenciais, irão prejudicar gravemente o gozo dos direitos humanos, especialmente por parte dos indivíduos e grupos mais marginalizados e desfavorecidos. Importante notar que duas instituições de pesquisas, uma ligada ao governo federal, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e outra da sociedade 1 Relatora Especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas, End of Mission Statement, 17 Março 2016 2 Para 2017, o limite será calculado mediante a aplicação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA-IBGE) à despesa primária efectuada no ano fiscal de 2016. Para os anos seguintes, serão calculados de acordo com o teto de cada ano anterior, ajustados para a taxa de inflação aplicável. Com o intuito de verificação do cumprimento com cada limite anual, será considerada a despesa global para um determinado ano, incluindo os débitos residuais relacionados com as despesas primárias. 4 civil, o Departamento Intersindical de Estudos Econômicos e Sociais, chegaram a estas mesmas conclusões.3 16. Em outras palavras, esta proposta congela a despesa pública em termos reais, retirando a decisão de despesa da esfera política, através do estabelecimento de um índice econômico fixo. Este índice não possui qualquer relação com arrecadação (receita) ou com as demandas por bens e serviços públicos (despesas), que são as variáveis fundamentais da função alocativa de qualquer governo.4 17. Assim, a PEC 241, se aprovada, irá interromper o financiamento das políticas sociais brasileiras, eliminando a vinculação de receitas para a educação e orçamento da proteção social, composta de políticas de saúde, segurança social e assistência social. Tal afetação reflete conquistas sociais que foram garantidas na Constituição de 1988, com vista ao estabelecimento de prioridades e para a preservação da despesa pública nestas áreas sociais, independentemente do governo em exercício. A PEC 241 irá reduzir a capacidade do Estado para cumprir as suas obrigações nacionais e internacionais de direitos humanos. Pode tornarse um problema fundamental na proteção social no Brasil, estabelecida pela Constituição de 1988 e, em particular através da sua secção sobre a Ordem Social, a partir do artigo 193 para o artigo 232. Todos os direitos nela consagrados ou inspirados estão ameaçados. Esta seção inclui sete capítulos: a Seguridade Social (Saúde, Previdência social e Assistência Social); Educação, Cultura e Desporto; Ciência e Tecnologia; Comunicação; Meio Ambiente; Família, Infância; Adolescentes e Idosos; e Povos Indígenas. 18. As perdas totais de fundos federais previamente destinadas a áreas sociais seriam muito significativas, caso a PEC 241 seja aprovada no Congresso. Em uma simulação para o período de 2003 a 2015, em valores reais de dezembro de 2015, a PEC 241 teria retirado R$ 3,2 trilhões de recursos federais aplicados na política social. O Gasto Público Federal seria 37% menor do que os recursos alocados para as políticas sociais nos governos anteriores. A PEC 241 pretende projetar no futuro a restrição orçamentária atual para os próximos 20 anos, mesmo quando o país retome o crescimento e as receitas governamentais voltem a crescer acima da inflação.5 19. A desigualdade e a pobreza continuam elevadas no Brasil, apesar do fato de que a “proporção da população classificada como pobre reduziu cerca de 10 pontos percentuais (....) e o Coeficiente de Gini, que mede a concentração de renda familiar per capita, diminuiu 3 O novo regime fiscal e suas implicações para a política de assistência social no Brasil, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Nota Técnica – numero 27- Setembro 2016 - DISOC http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_27_disoc.pdf; O impacto do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e a realização do direito à saúde no Brasil, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) - Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, Nota Técnica –número 28 - setembro – DISOC http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160920_nt_28_disoc.pdf; PEC 241/2016: o novo sistema fiscal e seus possíveis impactos, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE), Nota Técnica setembro 2016 - número 161 http://www.dieese.org.br/notatecnica/2016/notaTec161novoRegimeFiscal.pdf 4 Idem nota 3 Daniel Arias Vazquez, O Plano Temer/Meireles contra o povo: O Desmonte Social Proposto pela PEC 241, online : http://plataformapoliticasocial.com.br/wp-content/uploads/2016/07/DesmonteSocialPlanoTemer.pdf 5 Idem nota 4 5 de 0,5942 em 2002 para 0,5227 em 2014” 6 , sob a administração dos dois governos anteriores. Esta tendência descendente de desigualdade no Brasil é semelhante à observada nos países desenvolvidos, hoje em dia, mas esse caminho atual tem de ser mantido durante um tempo mais longo - 25 ou 30 anos - para alcançar níveis semelhantes aos existentes hoje naqueles países; 20. Na verdade, a preocupação das organizações que apresentam este documento é confirmada pela proposta de orçamento para o ano de 2017 que prevê cortes bilionários de recursos para setores como habitação popular, desenvolvimento regional e reforma agrária. Outros programas também perderam recursos: pesca e aquicultura; redução do impacto social de álcool e outras drogas; esporte, cidadania e desenvolvimento; recursos hídricos, promoção da igualdade racial; políticas para mulheres e desenvolvimento, entre outros.7 21. O orçamento proposto para 2017 levou em conta o chamado teto máximo para a despesa pública, embora o Congresso ainda não tenha aprovado o mecanismo previsto pela PEC 241. Se a PEC 241 for aprovada, os gastos do governo para o próximo ano não poderão crescer acima do índice de inflação do ano anterior. Assim, os gastos do governo em 2017 não poderiam crescer mais do que 7,2%, que é a inflação esperada durante todo o ano de 2016. 22. Em termos absolutos, o maior corte na proposta de orçamento para o ano 2017 foi no programa de moradia digna. São R$8,14 bilhões a menos, redução de 51%. Por meio deste programa, o governo coordena ações que incluem o apoio técnico a estados, municípios e setores produtivos, a promoção de mecanismos de participação e controle social nos programas habitacionais federais e o fomento para a produção, aquisição ou requalificação de imóveis residenciais. 23. Em um momento no qual os governadores do Norte e do Nordeste pedem mais recursos para compensar perdas por conta da queda de repasses, o governo federal também diminuiu os valores propostos para o desenvolvimento regional – que busca diminuir as chamadas “assimetrias regionais brasileiras”. Nesse programa, o corte foi de R$3,69 bilhões, o equivalente a 79% - a maior redução em termos percentuais. 24. O orçamento de 2017 propõe reduzir a alocação de recursos para programas relacionados com as pessoas que vivem em áreas rurais: recursos para obtenção de terras para a reforma agrária, redução de 52%; recursos para promoção de educação no campo, redução de 56%; o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que beneficia os agricultores familiares e 6 Gasto Social do Governo Central: 2002 a 2015, Tesouro Nacional – Ministério da Fazenda, online: http://www.stn.fazenda.gov.br/documents/10180/318974/Gasto+Social+Governo+Central/c4c3d5 b6-8791-46fb-b5e9-57a016db24ec 7 O Orçamento da União de 2017, que o presidente Temer propôs ao Congresso, impõe uma redução média de 30% nos valores para os 11 principais programas de governo na área social, considerando a inflação do período (Índice Geral de Preços de Mercado - IGP-M - nos últimos 12 meses). Esta redução corresponde a R$ 29,2 bilhões a menos para este conjunto de programas (após aplicação da taxa de inflação do período), em comparação com o que foi apresentado por Rousseff, já sob o efeito da crise económica, no ano passado. Estes dados podem ser constatados ao compararmos os programas e seus valores, do Orçamento da União 2017 e com os de 2016. Para ver os Orçamentos da União 2017 e 2016 consulte: http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2017/proposta/proposta.pdf http://www.camara.leg.br/internet/comissao/index/mista/orca/orcamento/OR2016/Proposta/projeto/volume2 /01_progr_tematicos.pdf 6 comunidades tradicionais, redução de 55%; ampliação de armazéns públicos para estocagem de alimentos, corte de 97%; desenvolvimento regional e territorial, corte de 82,8%; o apoio ao desenvolvimento sustentável das comunidades quilombolas, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais terá corte de 26%; o programa “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas” terá um corte de 14,4%; reconhecimento e indenização de territórios quilombolas terá um corte de 48,8%; obtenção de imóveis rurais para criação de assentamentos da Reforma Agrária terá corte de 52%; a inclusão produtiva rural terá corte de 47,4%; pesca e aquicultura, corte de 68,3%; o fortalecimento do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA – terá corte de 23,2%; subsídios para o abastecimento móvel fluvial na Amazônia terá corte de 96,6%.8 25. Em termos totais, o programa de reforma agrária teve sua previsão de gastos reduzida, de R$2,08 bilhões, em 2016, para R$1,1 bilhão em 2017, um corte de R$980 milhões ou 47%. Esporte e Cidadania, nesta comparação, perderam R$ 618 milhões e devem contar no ano que vem com R$722 milhões, queda de 46,11%. Programas menores também sofreram redução. É o caso das políticas para mulheres, que na proposta de orçamento de 2016 contavam com R$121 milhões e, em 2017, terão R$81,6 milhões, corte de 32,5%. Também caiu a previsão de gastos com promoção da igualdade racial, corte de R$13,3 milhões ou 35,4% e promoção de direitos da juventude, com redução de R$7,8 milhões ou 33,9%.9 26. Além disso, as organizações que apresentam este documento antecipam uma regressão na igualdade de gênero onde o orçamento proposto para 2017 apresenta cortes no programa "Políticas para as Mulheres: promoção da igualdade e combate à violência" de 40% comparado com o orçamento previsto pelo governo Dilma Rousseff, há um ano. Esse percentual é semelhante ao recuo de 42,2% previsto pelo governo para o programa "Promoção da igualdade racial e superação do racismo" em 2017. A este respeito, as organizações que apresentam este documento chamam atenção para o fato de que apenas uma mulher foi nomeada para encabeçar um Secretariado (nenhuma como Ministro) sob o novo governo. IV. Enfraquecimento das políticas e dos recursos das áreas de desenvolvimento territorial; trabalho forçado; saúde pública e educação pública 27. A política de desenvolvimento regional e territorial no Brasil foi implantada como um modelo de gestão de políticas públicas descentralizado, participativo e voltado para a inclusão de pessoas e lugares pobres. O Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) era a entidade pública responsável pela execução das políticas de desenvolvimento territorial no Brasil. Como resultado da adoção do programa "Territórios da Cidadania", vários ministérios adotaram a abordagem territorial para implementar políticas públicas integradas nos municípios menores e mais remotos do Brasil. A abordagem territorial do desenvolvimento obteve, também, adesão das pequenas cidades rurais, onde se concentra parte da população pobre. Nessas regiões, caracterizadas pelo inadequado acesso a serviços e equipamentos públicos que garantem direitos e qualidade de vida, se encontravam integrados à política de desenvolvimento territorial 243 municípios, já reconhecidos pelo 8 Gerson Teixeira, Um Panorama do Agrário na PLOA 2017, Publicação interna Congresso Nacional. Alexandro Martello, Habitação e reforma agrária podem ter corte bilionário no orçamento 2017, G1 Globo, 7 September 2016, online : http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/09/habitacao-e-reforma-agraria-podemter-corte-bilionario-no-orcamento-2017.html 9 7 Programa Nacional de Territórios Rurais.10 Com os cortes acima descritos o governo Temer interrompe e compromete a execução desta política territorial. 28. O Brasil tornou-se uma referência internacional na luta contra o trabalho forçado, tanto do ponto de vista de suas políticas públicas e sua implementação. Este foi particularmente o caso em relação às suas atividades de proteção dos trabalhadores escravizados, promovendo a sua inclusão social e punindo empresas que utilizam trabalho forçado. Desde 1995, essas políticas ajudaram a salvar mais de 50.000 pessoas de trabalho forçado. 29. No entanto, aqueles que se beneficiam da escravidão moderna começaram a mostrar resistência considerável. 11 Ataques dos detratores da luta contra o trabalho forçado assumiram a forma de muitos processos judiciais e tentativas de demolir a estrutura legal e institucional subjacente à política. Os seus alvos específicos são: o conceito jurídico em vigor desde 2003 (Lei 10.803, que altera o artigo 149 do Código Penal), a neutralização da Lista Suja; a flexibilização da legislação e liberalização da terceirização. É bom salientar, como exemplo, o fato de que o Brasil ainda não ratificou importantes convenções, como a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias. Além disso, a adaptação da sua legislação em conformidade com as disposições do Protocolo de Palermo ainda está pendente. 30. Com o governo instalado pelo golpe parlamentar de agosto de 2016, os setores que se esforçam há anos para flexibilizar os direitos dos trabalhadores e a legislação do trabalho aumentaram claramente a pressão sobre direitos sociais. Em particular, eles procuram maximizar e facilitar a terceirização nas relações de trabalho; favorecer o negociado sobre o legislado na efetivação dos direitos; restringir a definição de trabalho forçado; enfraquecer a inspeção do trabalho, tanto em termos qualitativos e quantitativos. Em poucas palavras: abrir a porta para o recrudescimento do trabalho forçado. 31. Há sinais de que estamos em rota de desmobilização no combate ao trabalho escravo e em direção a um eventual desmantelamento de instrumentos fundamentais desta política, contribuindo à maior ocultação da questão. Neste cenário de possíveis retrocessos, as recomendações formuladas pelo escritório da ONU no Brasil resumem de forma adequada os anseios da sociedade civil e de todos os setores empenhados na erradicação efetiva do trabalho escravo.12 32. Na questão da Saúde, em pouco mais de três décadas o Sistema Único de Saúde (SUS) mostrou-se não só viável como essencial. É um pilar da garantia dos direitos sociais em contraposição ao mercado. É responsável por 90% a 95% das cirurgias de coração, 10 Huberto Oliveira, et al., Política Territorial e Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: Sem democracia não há desenvolvimento, nem esperança para os territórios rurais no Brasil, Plataforma Política Social, 25 June 2016, online: http://plataformapoliticasocial.com.br/artigo-29-politica-territorial-e-objetivos-dedesenvolvimento-sustentavel-sem-democracia-nao-ha-desenvolvimento-sustentavel-nem-esperanca-para-osterritorios-rurais-do-brasil/ 11 Xavier Plassat, OP, Trabalho Escravo, 2015: Recuo dos números, crescimento das ameaças, Comissão Pastoral da Terra, 10 january 2016, online : http://www.cptnacional.org.br/index.php/publicacoes/noticias/trabalhoescravo/3050-trabalho-escravo-2015-recuo-dos-numeros-crescimento-das-ameacas 12 ONU.BR Position Paper - Trabalho Escravo ABR 2016.pdf https://www.dropbox.com/s/2mgu47p650pixgk/ONU.BR%20-%20Position-paper-trabalhoescravo%20ABR%202016.pdf?dl=0 8 tratamentos oncológicos e transplantes de órgãos. Realiza um milhão de internações por mês; 3,5 bilhões de atendimentos por ano e a assistência primária cobre 60% da população com a Estratégia de Saúde da Família.13 33. O SUS como um sistema público de saúde se encontra em um processo de desmantelamento, sendo levantadas várias propostas por parte do novo governo no sentido de reduzi-lo ou entregá-lo às empresas privadas. Importante lembrar que com a PEC 241 irá promover um forte desmonte material do SUS, com a fixação do financiamento do sistema pelo governo federal, sem levar em conta o crescimento da população e o comportamento da sua curva etária ou a presença de novas epidemias. 34. Aprovado pelo Senado, o fim do controle da exploração do pré-sal pela Petrobrás promete comprometer uma das fontes de recursos mais importantes para a educação pública no longo prazo. A tendência é de redução da receita de royalties do petróleo para o Fundo Nacional do Pré-Sal, que destina 75% dos recursos à educação pública. Recentemente, o Ministério da Educação e Cultura interrompeu a concessão de novas bolsas de intercâmbio internacional do “Ciência Sem Fronteiras” para estudantes de graduação. Além disso o Ministério suspendeu a abertura de novas vagas e não deve disponibilizar mais oportunidades para os estudantes de ensino técnico e universitário em 2016.14 V. CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES 35. À luz do exposto, as organizações que apresentam este documento requererem ao Estado brasileiro que mantenha o progresso anterior na proteção social e mantenha a consolidação institucional, política e o quadro jurídico que apoiou o processo passado, com base no diálogo democrático com a sociedade como um todo e com a participação da sociedade civil organizada nas instancias responsáveis pela concepção, monitoramento e melhoria permanente das políticas públicas. Em particular, apelamos a que o Estado brasileiro: - Não aprove o projecto de alteração PEC 241 que autoriza os cortes e limites para gastos públicos sociais, etc. - Certifique-se de que a transformação da MDA em secretariado sob Casa civil não afete as capacidades, prerrogativas/poderes e recursos das instituições e prossiga com seus programas. -Assegure e garanta os direitos dos quilombolas e povos indígenas. -Assegure a igualdade de gênero e a sua promoção, em particular reverta as últimas tendências na redução da representação das mulheres no Poder Executivo. 13 Amélia Cohn, A ofensiva raivosa no desmonte do SUS, Plataforma Política Social, 11 June 2016, online: <http://plataformapoliticasocial.com.br/artigo-15-a-ofensiva-raivosa-no-desmonte-do-sus/. 14 Miguel Martins, “Escola sem Estado”. Revista Carta Capital, 14 de setembro de 2016. Miguel Martins, Escola sem Estado, Revista Carta Capital, 14 September 2016, online : http://www.cartacapital.com.br/revista/918/em-curso-o-desmonte-da-educacao-publica 9 - Abstenha-se de passar leis e políticas que resultem em uma prevenção mais difícil de combate do trabalho forçado. 36. Finalmente, que o Estado brasileiro respeite a mobilização popular e acolha a participação social na consolidação das suas conquistas, aprimorando sempre tais processos e nunca permitindo o desmonte das políticas públicas e dos direitos constitucionais no país. 10