apontamentos sobre o nascimento da sociologia

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Apontamentos sobre o nascimento
da sociologia
Por Ricardo Musse.
A sociologia surgiu, na primeira metade do século XIX, sob o impacto da Revolução Industrial e da
Revolução Francesa. As transformações econômicas, políticas e culturais suscitadas por esses
acontecimentos criaram a impressão generalizada de que a Europa vivia o alvorecer de uma nova
sociedade.
O papel decisivo da “dupla revolução” foi amplificado pelo debate intelectual da época. A discussão
girava em torno do caráter exemplar desses eventos, com as opiniões divididas na avaliação de que se
tratava ou não de desdobramentos irreversíveis da história. As divergências na atribuição de
significado à “nova sociedade” consolidaram três correntes intelectuais e políticas: conservadores,
liberais e radicais.
A sociologia nasce, portanto, como uma reflexão acerca dos contornos da nova configuração histórica
– daí sua preocupação permanente em distinguir e contrapor a sociedade moderna às sociedades
tradicionais. E num ambiente marcado pela competição entre as visões de mundo do conservadorismo,
do liberalismo e do socialismo – daí seu esforço constante para se distinguir dessas correntes,
apresentando-se como uma alternativa, científica ou mesmo crítica, em relação a tais modelos
explicativos.
A ambição intelectual da sociologia, a tentativa de compreender, em um registro científico, a origem,
o caráter e os desdobramentos dessa nova sociedade, levou-a a se apresentar como uma espécie de
contraponto em relação às demais disciplinas das “ciências humanas”. Assim, desde o início, a
sociologia procurou diferenciar-se da economia, da história, da geografia, da filosofia, da psicologia
etc.
O esforço para construir uma identidade própria por meio da superação das disciplinas rivais não se
deu apenas pela absorção de temáticas alheias, recuperadas como partes específicas do saber
sociológico, se prendeu, sobretudo, à pretensão de atingir um padrão de cientificidade na explicação
da vida social equivalente àquele alcançado pelas ciências naturais.
A sociologia concebe-se, assim, não apenas como a disciplina central no campo das “ciências
humanas”, mas como um saber comparável, em termos de explicação e previsão, às próprias ciências
naturais. Essa posição, no entanto, será contrabalançada, paulatinamente, pela compreensão de que as
determinações das possibilidades futuras da sociedade não podem ser preditas a partir dos modelos do
passado, o que levou a sociologia a situar-se, muitas vezes, como uma perspectiva crítica perante as
relações sociais vigentes.
Nas últimas décadas do século XVIII surgiram, na Europa, dois fenômenos decisivos para a
configuração do mundo moderno: a concentração da produção de bens na “fábrica”, base do sistema
econômico fabril, e a comunidade política de “cidadãos”, livres e com direitos iguais, vinculados ao
Estado-nação.
Hoje, tendo em vista os desdobramentos dessa matriz econômica e política, bem como o seu alcance
mundial, tornou-se consenso considerar tais transformações equiparáveis a marcos históricos como a
invenção da agricultura, da metalurgia, da escrita ou da cidade.
Os contemporâneos desses eventos nunca entraram em acordo acerca da provável extensão dessas
mudanças. Mas isso não os impediu de vislumbraram prontamente a importância do conjunto de
acontecimentos que deflagraram as transformações econômicas ocorridas na Inglaterra a partir do fim
da década de 1760 e a reconfiguração política iniciada na França em 1789. Tais mudanças foram
percebidas, já à época, como uma reviravolta sem precedentes, como rupturas abruptas, como
“revoluções”, sobretudo por seu contraste com as formas predominantes no passado.
A Revolução Industrial surgiu na Inglaterra. O pioneirismo inglês explica-se pela consolidação, ao
longo do século XVIII, de uma série de fatores: (a) relações econômicas capitalistas que abrangiam
não só o comércio, as finanças e a produção manufatureira, mas inclusive as atividades agrícolas; (b)
uma política governamental orientada para favorecer o desenvolvimento econômico; (c) uma cultura
coletiva que não rejeitava o predomínio do dinheiro, valorizando, por conseguinte, a busca de lucro;
(d) um mercado mundial monopolizado pela supremacia militar e naval da Inglaterra, consolidado
pelas práticas do exclusivismo colonial e do escravismo.
No decorrer do século XIX, a industrialização, e os processos que a acompanham, expandiu-se pela
Europa e por determinadas regiões do planeta (como o norte dos Estados Unidos e o Japão). Em todos
esses lugares ocorreu um deslocamento de trabalhadores e de recursos monetários da agricultura para
a indústria, com o consequente aumento da sua participação no total de riquezas produzidas. Com isso,
o predomínio econômico da vida agrária, bem como a estrutura social assentada em privilégios
derivados da posse da terra, foi sendo substituído por relações econômicas e sociais tipicamente
urbanas.
O mundo do trabalho já havia se modificado substancialmente a partir do século XVII, sobretudo na
Inglaterra, com a penetração de relações capitalistas no campo. O cultivo comunal e a agricultura de
subsistência cederam lugar a uma atitude comercial, logo monetária, diante da terra. A implantação de
relações salariais no setor agrário, no entanto, foi uma modificação pequena perante o que aconteceu
na indústria.
Primeiro, a produção deixou de ser uma atividade individual, realizada na própria casa do trabalhador
segundo o ritmo ditado por sua habilidade e capacidade física. Tudo isso, em intervalos de tempo que
lhe permitia dedicar-se a outras tarefas, como a criação de animais e o cultivo da terra.
Os trabalhadores passaram a se concentrar em um só local, em fábricas, cada vez maiores,
intensificando a forma de organização iniciada pela manufatura. O trabalho parcelar tornou-se
coletivo, subordinado a um mecanismo constituído por máquinas capazes de realizar as mesmas
operações das ferramentas e movidas por uma única força motriz.
As aptidões especiais do artesão especializado tornaram-se dispensáveis. A racionalização dos
procedimentos, a divisão do trabalho no interior do processo produtivo, a linha de montagem abriram
espaço para a utilização do trabalho feminino e infantil. A disciplina implantada nas fábricas
subordinou a ação humana aos movimentos do maquinismo, mas também às relações salariais, à
vigilância da supervisão do capitalista e ao ritmo inexorável, à “tirania”, do relógio.
O modelo em que a produção era realizada por artesões, localizados em seus domicílios, em pequenos
vilarejos, desempenhando simultaneamente vários ofícios, tornou-se rapidamente obsoleto. O sistema
produtivo moderno subdividiu o trabalho entre imensas fábricas, superespecializadas, que utilizam
matérias-primas dos países mais distantes e abastecem com seus produtos os mercados do mundo
inteiro.
A Revolução Industrial não modificou apenas os ritmos e as modalidades de organização do trabalho.
Alterou significativamente as formas e estilos de vida, o cotidiano e a cultura de todos os segmentos
da população.
O fator que mais abalou as maneiras tradicionais de viver foi a crescente urbanização. A concentração
das fábricas em cidades manufatureiras, devido às facilidades de escoamento da produção, assim como
o incremento de atividades administrativas, educacionais, dos serviços em geral, incentivou uma
maciça transferência populacional. As cidades inglesas tornaram-se, em breve, as maiores da Europa,
um surto de crescimento intensificado pela redução das taxas de mortalidade, que deram início ao
ininterrupto aumento populacional característico do mundo moderno.
As principais consequências sociais da Revolução Industrial foram o crescimento da desigualdade e a
intensificação do conflito entre as classes. As novas relações de produção cristalizaram a separação
entre trabalhadores destituídos de meios de produção e empregadores capitalistas, aumentando
exponencialmente a disparidade social. O empreendimento fabril, cada vez mais complexo, passou a
exigir vultosos investimentos, consolidando uma restrita classe de capitalistas. Esta se mostrou
destemida a ponto de enfrentar os antigos senhores, e poderosa o suficiente para determinar os rumos
da vida política e econômica.
As figuras corriqueiras de capitalistas, o comerciante e o banqueiro, foram ofuscadas pelo “capitão de
indústria”, o responsável pela organização e controle das atividades na fábrica, que exercia o comando
impondo uma rígida disciplina sobre um exército de trabalhadores.
A classe trabalhadora, por sua vez, apesar do empobrecimento material e do desenraizamento social,
tornou-se mais numerosa, homogênea e concentrada. Nos grandes centros fabris, nas cidades
manufatureiras as rebeliões não tardaram.
Primeiro, foram insurreições contra as máquinas que dispensavam o trabalho do mestre ferramenteiro
ou economizavam trabalhadores. Nas primeiras décadas do século XIX, o movimento ludista (que
tomava por alvo as inovações, as mercadorias, e até mesmo os inventores) foi suplantado por novas
formas de conflito. O embate entre empregadores e empregados deslocou-se para a luta sindical e
política, estabelecendo outros objetivos: a redução da jornada diária de trabalho para 10hs, a
implantação da assistência social pública, a reforma do sistema eleitoral e do parlamento. Os
trabalhadores agruparam-se em partidos influenciados pela democracia radical e pelo socialismo.
A Revolução Industrial desencadeou e intensificou um incessante movimento de inovação
tecnológica, econômica e social – a generalização da economia industrial –, que mudou a face da
Terra. As novas relações econômicas decorrentes da organização do sistema produtivo em torno das
fábricas foi a chave para a implementação de “um novo ritmo de vida, uma nova sociedade, uma nova
época histórica”.
A passagem de sociedades tradicionais ao mundo moderno tornou-se um ideal e um objetivo quase
universais. O primeiro passo para a modernização social consistiria, então, em repetir os movimentos
da revolução industrial inglesa. O que aconteceu lá, de forma contingente e quase aleatória, tornou-se
objeto de planejamento, de ação deliberada. Na ausência das mesmas condições da Inglaterra à época,
a teoria social procurou destacar os elementos centrais daquele processo, repensando as origens
históricas e o desenvolvimento da sociedade moderna.
Para alguns se tratava de um processo puramente econômico dependente de altas taxas de acumulação
de capitais e de investimentos; de juros baixos; de uma gestão empresarial racionalizada; de inovações
tecnológicas e da ampliação do consumo. Para outros, as mudanças nas formas de produção só se
deslancham a partir da intervenção do Estado. Supõe uma burocracia governamental eficaz voltada
para a transformação da ordem social e institucional, facilitando uma maior disponibilidade de capitais
e de força de trabalho, de matérias-primas e de infraestrutura, promovendo a desregulamentação do
sistema produtivo e corporativo, incentivando reformas no setor agrário, ampliando o sistema
educacional etc.
O triunfo da indústria capitalista modificou profundamente as mentalidades, consolidando os valores
propostos pelo Iluminismo. O projeto de libertar os indivíduos do tradicionalismo, da superstição, da
hierarquia baseada em critérios irracionais tornou-se um dos pilares da emergente sociedade burguesa.
Até mesmo o cultivo do “individualismo secular e racionalista” foi vinculado à perspectiva de um
crescimento econômico incessante.
A própria concepção de vida social alterou-se bruscamente. Não se tratava mais de seguir a tradição,
a estática de uma posição estabelecida pelo nascimento, mas de situar-se em uma dinâmica social em
constante transformação e movimento. O ritmo da modificação econômica fortaleceu a convicção
iluminista de que a racionalidade, o conhecimento, a riqueza, a tecnologia, o controle sobre a natureza,
em suma, a sociedade estaria sujeita a um progresso ilimitado.
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