Os guias da noite Quando as estrelas são mais que simples pontos luminosos ADRIANA OTERO, FERNANDA LIMA, LUCIANA FREIRE E VANESSA MASCARENHAS e hoje olhamos para as estrelas minar o período e as estações do ano. apenas para contemplar sua Para facilitar o reconhecimento do céu, algumas beleza e seu mistério, no final do civilizações resolveram agrupar as estrelas em século XV e início do XVI esses constelações, que formavam desenhos de figuras astros eram fundamentais para a legendárias daqueles povos e que lembravam o vida política e econômica da Europa, pois serviam período pelo qual estavam passando. Assim, a conscomo guias para desbravar ocetelação de Órion – o caçador anos desconhecidos e conquistar gigante, na qual localizamos hoje novos continentes. as Três Marias – representava a Acostumados a viajar apenas no época das caças. Os gregos foram os hemisfério norte e próximos à Arquivos do Museu de Astrologia primeiros a dar os costa européia, os navegadores de São Paulo (MASP), afirm a m tiveram que se valer de métodos já serem os gregos os primeiros a dar nomes às conhecidos de orientação, mas nomes às constelações, hoje uniconstelações, mas que permitissem a exploração de versalmente conhecidas. Mas foforam os árabes que mares nunca antes mapeados. Um ram os árabes que começaram a desses métodos foi a adaptação e nomear as estrelas, ainda no sécucomeçaram a nomear aperfeiçoamento dos conhecimenlo XI. Antes disso, apenas as mais as estrelas, ainda no tos de identificação do céu e de brilhantes, como Sirius e Antares, século XI instrumentos astronômicos. tinham recebido nomes. Muitos Segundo Fernando Vieira, astrômapas da esfera celeste foram nomo do Planetário da Gávea, no desenhados em pedra, em 70 a.C. Rio de Janeiro, a orienEssa identificação do tação a partir da identificéu e os estudos dos cação do céu surgiu quanmovimentos dos astros e do os homens, apro x ida Terra permitiram que madamente há oito mil os navegadores pudesanos, deixaram de ser nôsem se orientar no mades e se instalaram em tempo e no espaço nas l u g a res fixos. Saindo apelongas viagens dos temnas nos períodos de caça, pos modernos. eles podiam se afastar de Com a busca intensa suas aldeias com a cert e z a dos povos europeus por de reencontrá-las na volta. trocas comerciais lucratiO noturlábio é um tipo A balestrilha era usada Além de guias, as estrelas vas no início do século para determinar a latitude de astrolábio usado à noite durante à noite já eram usadas para deterXVI, os governos pas- Boas Noites 21 saram a investir nas simultaneamente, o horizonte e o astro, e medir a navegações para o distância de um para o outro. Com importantes Oriente. Estimuladas melhorias, o sextante é usado ainda hoje na navepela possibilidade de gação como complemento de outros sistemas mais novas conquistas, as modernos. técnicas náuticas e a Outro instrumento capaz de calcular a latitude à engenharia naval sonoite é a balestrilha, conjunto de duas réguas perf reram grandes inopendiculares entre si. A vertical se alinha com o vações revolucionáhorizonte e com a estrela observada. A partir da rias, permitindo a posição que as varas assumem é possível saber a realização de trajetos altura em graus do astro. Além desses, ainda havia longos. Se antes esses muitos outros, como o noturlábio – que funcionava n a v e g a d o res se baseda mesma maneira que um astrolábio – e o kamal, avam apenas na um pedaço quadrado de madeira com um fio todo Estrela Polar para marcado por nós preso em seu centro, que permitia calcular o ponto oncalcular a altura angular da estrela. O kamal, tamAs estrelas ganharam nomes de estavam, conforbém chamado de “Tábuas da Índia”, foi levado a ainda no século XI me foram naveganPortugal por Vasco da Gama, após tê-lo capturado do para o Hemisfério Sul novos conhecimentos do de pilotos árabes no Oceano Índico, para que os céu foram sendo necessários. A partir daí, para portugueses pudessem comparar sua eficácia. atender às novas demandas, insPreferiram, no entanto, o astrotrumentos astronômicos e mapas lábio. celestes foram sendo adaptados, Os navegantes portugueses, assim como as tabelas matemátiquando chegaram à América, pasMestre João, cirurgião cas com a declinação dos astro s saram a observar as estrelas do do rei D. Manoel, foram aperf e i ç o a d a s . Hemisfério Sul. Mestre João, A chamada navegação costeira, cirurgião do rei D. Manoel, ficou ficou conhecido como a mais usada até então, tal como o conhecido como o “narrador do o “narrador do céu nome sugere se restringia a viacéu astral e de suas estrelas”, assim astral e de suas gens que contornassem as costas. como Pero Vaz de Caminha Afastando-se da terra firme e descreveu em carta a terra e seus estrelas”, assim como lançando-se aos oceanos, os navehabitantes. Foi Mestre João quem Pero Vaz de Caminha gadores passaram a fundamentarnomeou a constelação do “Crudescreveu em carta se no tipo de navegação astrozeiro do Sul”, que tinha para os a terra e seus nômica. Nessa técnica, os astro s navegadores dos mares do Sul a s e rvem como pontos de referência mesma importância que a Estrela habitantes. para determinar as coord e n a d a s Polar teve nas viagens do Hede latitude e longitude, principal misfério Norte. O primeiro navei n f o rmação para se localizar em um gante, que se tem registro, a ver essa m a p a. constelação foi Alvise de Cadamosto, em 1455, Segundo arquivos da Marinha, para se saber a quando viajava pelas costas da África. latitude, bastava medir a altura máxima – chamaAtualmente, a navegação através dos astros é da culminação – de algumas estrelas em relação ao pouco empregada, porque há outros meios mais nível do mar, através do sextante, instrumento simples e seguros para se obter as coordenadas construído para ser usado em terra firme, sendo exatas. Os novos instrumentos, chamados GPS, adaptado aos movimentos dos navios. A partir de recebem sinais de satélites que permitem a um sistema de espelhos era possível observar, obtenção de posições precisas de qualquer embar- 22 Julho/Dezembro de 2003 O século XVI foi um período marcante para o aprimoramento das técnicas de navegação cação num exato momento, sem a necessidade de efetuar nenhum cálculo. Ainda hoje, nos surpreendemos com a coragem e a determinação daqueles navegadores de se lançarem nessas viagens de exploração, com pouca tecnologia naval e quase nenhum conhecimento das rotas marítimas. É difícil imaginar que utilizavam elementos disponíveis na natureza, sempre tão presentes no imaginário dos seres humanos, como as estrelas. No entanto, se ontem aqueles pontinhos no céu da noite foram essenciais para a construção do mundo em que vivemos, hoje são quase esquecidos na corre r i a dos tempos pós-modernos. Mapa celestial de Dendera com as figuras das constelações Os olhos da noite Não eram só os astros que facilitavam a navegação durante a noite. Quando as viagens eram feitas próximas à costa, os faróis se apresentavam como verdadeiras lanternas. O p r i m e i ro foi construído em 3 a.C., na Ilha de Pharos, nos limites do rio Nilo. Localizados na costa marítima, cada farol possui características pré-determinadas que, ao serem re c onhecidas pelo navegante, comunicam a posição e o local onde se encontram. Atualmente, no Brasil, cada Boas Noites um emite um sinal, uma cor, número e intervalo de piscadas d i f e rentes. Não existem dois faróis iguais no país. Através deles é possível também se localizar no mapa. Um navegador perdido poderia encontrar seu destino observando apenas como o sinal do farol está sendo transmitido: core s , piscadas e intervalos entre suas luzes. Capaz de atrair a atenção não só de navegadores como também de viajantes em terr a , amantes e até mesmo cineastas, os faróis resistiram aos avanços tecnológicos e são considerados, por muitos, um símbolo de romantismo. O filme brasileiro A ostra e o vento, por exemplo, teve como cenário o Farol das Conchas, localizado na Ilha do Mel, no litoral sul do Brasil. Os faróis dominam a paisagem, sinalizam a magia e são considerados os olhos da noite. Ao emitir luz avisam os navegantes que eles não estão sós, e testemunham a cada dia uma nova história de aventure i ro s que viajam pelos mares. 23