DANIEL ROCHA ESTE SUPLEMENTO FAZ PARTE INTEGRANTE DA EDIÇÃO Nº 8117 DO PÚBLICO, E NÃO PODE SER VENDIDO SEPARADAMENTE Sexta-feira | 29 Junho 2012 | ipsilon.publico.pt O olhar proibido sobre a guerra e as colónias Os negativos da nossa História Carlos Ruiz Zafón O escritor que reinventa Barcelona David Foster Wallace a sua piada de mil páginas dá trabalho Centro de Estudos Sociais Coimbra DANIEL ROCHA 6 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 O nosso Apocalypse Now Primeiro esquecidas pelo mundo e depois registadas em meiadúzia de documentários estrangeiros, as guerras de libertação das excolónias portuguesas sobrevivem até hoje nos arquivos. Filmes que completam a visão parcial que tínhamos da guerra colonial imposta pela propaganda do regime, são como uma visita descida guiada aos infernos de um império terminal. Não são propriedade nossa. Mas são parte do nosso património. Ana Dias Cordeiro A guerra em directo S ão filmes pouco conhecidos dos portugueses. Proibidos até ao 25 de Abril de 1974, fizeram o seu caminho apesar da censura, e também por causa dela. Com eles se desafiaram Salazar e Marcello Caetano. Com eles se mostrou o lado da guerra colonial que o regime queria ocultar: o sofrimento, as atrocidades, o absurdo do conflito e as razões da luta. São documentários ou longas reportagens, filmados por televisões dos EUA, Reino Unido, França ou Suécia entre 1961 e 1971. Impuseram-se e talvez tenham ajudado a despertar consciências nos bastidores da ONU. Raramente estes filmes foram exibidos em Portugal, e nunca pela televisão pública, mas são parte do nosso património de imagens. Hoje estão guardados em armários ou em cofres nos arquivos da Cinemateca Portuguesa, do Centro de Audiovisuais do Exército e da RTP. Completam a visão parcial gravada na memória daqueles que apenas viram os filmes do Exército, obedientes à censura do olhar imposta pela propaganda do regime. Contam uma parte da nossa História e por isso são importantes. Mas de que forma entraram no nosso imaginário? Angola, ano zero Angola – A Journey to War (Angola — Jornada para a Guerra), produzido e exibido pela televisão norte-americana NBC, foi o primeiro. Filmado na aurora da luta de libertação em Angola, em 1961, ano zero da guerra portuguesa no Ultramar. O país está em guerra e fechado a jornalistas estrangeiros. Robert Young e Charles Dorkins entram pelo Congo com a União das Populações de Angola (UPA), ex-Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) de Holden Roberto. Percorrem centenas de quilómetros de mato. Filmam “uma longa e única caminhada” às profundezas de “um dos lugares mais dramáticos e ignorados do mundo”. Mostram em silêncio os corpos deixados pelos massacres da UPA, no Norte de Angola, de populações brancas e dos seus trabalhadores negros. (São imagens de indizível violência — entre as vítimas estão crianças). Exibem também o rasto de destruição deixado por bombas napalm lançadas por aviões da Força Aérea portuguesa. Penetram no “reino do silêncio” dos revoltosos. “Para um repórter, a grande emoção é ver o que mais ninguém viu”, dirá o apresentador do programa. Este, como os outros documentários estrangeiros sobre o papel de Portugal na guerra, mostra o que ninguém tinha visto. Desconstrói o discurso oficial do regime de Salazar de que as colónias eram Portugal e de que todos os habitantes queriam permanecer portugueses. A imagem de uma livre convivência entre brancos e negros, diz o narrador de Angola – A Journey to War, oculta uma realidade desconhecida: menos de um por cento dos nativos conseguiu a cidadania e o analfabetismo é muito elevado. Por trás disto, continua, “existe um sistema que só pode ser descrito por estas palavras: trabalho forçado”. Pelos trilhos da caminhada que Filmes como A Group of Terrorits Attacked... destapavam a sombria realidade das muitas mortes de soldados portugueses numa guerra perdida por Portugal. Enquanto nos documentários da propaganda, as cenas de guerra são encenadas, filmes como este captam o conflito em tempo real e propõem oferecer a “verdade mais pura” os repórteres iniciam ao lado dos rebeldes, há marcas de uma revolta de trabalhadores contratados, numa plantação de café com três portugueses mortos. É como a visita guiada de uma descida aos infernos. Na escola da aldeia de Buela, na sala de aula, escrito a giz no quadro: “15 de Março de 1961: Independência de Angola”. Data dos massacres da UPA. Nessa aldeia, agora vazia e em ruínas, o administrador do posto e a mulher, portugueses, foram assassinados; a população fugiu; quando as tropas coloniais entraram, foi para se vingarem. Quando por ali passa a câmara de Robert Young e Charles Dorkins, das 150 casas apenas restam ruínas. A haver uma frase capaz de derrubar a imagem composta pelo regime de uma convivência sã entre colonos e colonizados, seria esta, em voz-off: “Parecia que os portugueses tinham reagido como se todos os africanos fossem contra eles”. Mais à frente, mais vestígios de bombas incendiárias lançadas por aviões militares portugueses. O ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 7 napalm vem da NATO, de que Portugal é membro; as munições espalhadas no rasto dos revoltosos trazem a marca da Checoslováquia ou da Alemanha de Leste, de Cuba, da Coreia do Norte, da China comunista. Pelo caminho, outra aldeia. Todas as casas destruídas. Mais mortos. E caveiras. Em Cokilenga, 17 homens foram levados para o mato e executados. Um rapaz não chegou a ser abatido. Caiu como se estivesse morto. Mas apenas desmaiou. Sobreviveu para contar a história: “Este rapaz perdeu o pai, este homem um irmão, esta criança o pai.” Um país em negação Esta mãe perdeu um filho. Este homem está de luto pelo irmão. Sentada, está uma senhora que agora ficou viúva. Não há voz-off mas adivinha-se por que estão estas pessoas nas celebrações do 10 de Junho de 1963, filmadas pelo Ministério do Exército. “Os heróis não morrem efectivamente, elevam-se acima dos outros homens”, diz o narrador do filme Aqueles que por obras valerosas, numa evocação de Camões. Imaginam-se os soldados que tombaram aqui — encarnados pelos familiares, vestidos de preto, recebendo humildemente condecorações póstumas. Como tristes espectros no meio de um imponente desfile militar no Terreiro do Paço, em Lisboa, em que tudo converge para enaltecer o sentido patriótico de um país em negação. Uma parte importante destes filmes, como de outros registos da propaganda do regime na guerra, foi realizada por equipas de audiovisuais do Exército em trabalho nas províncias ultramarinas. Em 1967, “Por quem combatemos”, também realizado pelo Exército, mostra a pompa das paradas e das festividades frente ao palácio do governador em Bissau, num ritual repetido todos os domingos, “como símbolo para as gerações futuras de coragem, fé e certeza no dia de amanhã”. Homenageia os soldados brancos e negros, “chamados a defender um património sagrado” num combate “pela grandeza da nação”. E faz um louvor ao general Schultz, governador da Guiné entre 1964 e 1968, “o homem, o governante, o amigo, a certeza de que Portugal está e continuará a estar na Guiné”, a prova da convicção de que “a luta só terminará pela derrota do invasor”. Filmes estrangeiros como A group of terrorists attacked… (1968), do britânico John Sheppard, para o programa World in Action, e Nô Pintcha (Em Frente, 1970), do trio francês Tobias Engel, René Lefort e Gilbert Igel, desconstroem esses mitos. Abrem portas para uma sombria realidade: as muitas mortes entre soldados portugueses e a dificuldade do regime em sustentar a guerra e em ganhá-la, apesar de quase metade do orçamento do Estado ser destinada a despesas militares. Enquanto nos filmes da propaganda, as cenas de guerra são encenadas, os documentários estrangeiros 8 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 A imagem fabricada de uma “grande N nação” PEDRO CUNHA PEDRO CUNHA Os investigadores Maria do Carmo Piçarra e José de Matos-Cruz O chefe da propaganda de Salazar, admirador de Mussolini, antecipou o sucesso da estética de Leni Riefenstahl, a cineasta que filmou a ascensão de Hitler. Através do cinema, António Ferro criou uma imagem idealizada do Estado Novo. Nenhum olhar pessoal — e alternativo — era tolerado. Ana Dias Cordeiro CINEMATECA PORTUGUESA - MUSEU DO CINEMA as várias camadas de um filme, há o que não se vê mas se adivinha. Planos e formatos impostos, legendas que enaltecem a política do Governo, cenas revistas, diálogos alterados por ordens ou recomendações subtis. São os retoques para chegar à imagem idealizada e projectada pelo Governo de Salazar (de si próprio). Quando se preparava para filmar A Revolução de Maio (1937), António Lopes Ribeiro, cineasta do regime, expõe num documento de 1936 os “pontos cardeais” da obra: servir o cinema português, o público português, a propaganda do regime, a política de Salazar. Num só: servir Salazar. António de Oliveira Salazar não era cinéfilo, no sentido de dedicar muito tempo à sétima arte. Mas era sensível à força das imagens e escolheu, para dirigir a propaganda do regime, um homem que admirava Mussolini e que olhava para o cinema (e para a arte) como uma forma de servir o poder. “António Ferro era o nosso Goebbels”, diz Maria do Carmo Piçarra, investigadora que estuda a memória cinematográfica do colonialismo durante o Estado Novo e autora de Salazar vai ao Cinema — ‘O Jornal Português’ de Actualidades Filmadas (2006) e Salazar vai ao Cinema II — A ‘Política do Espírito’ no ‘Jornal Português’ (2011). A especialista conta que, nos anos 1930, para A Revolução de Maio, Ferro e Lopes Ribeiro tentaram contratar, sem êxito, um director de fotografia que mais tarde trabalhou com Leni Riefenstahl nos filmes de propaganda do regime nazi. “Durante o período António Ferro, há efectivamente uma vontade de instrumentalizar o cinema e uma crença nas suas possibilidades”, aponta. Começa por haver dinheiro para a Um dos dois mais importantes filmes de propaganda nacional - o outro é, Revolução de Maio, também de Lopes Ribeiro “como meio indispensável da sua acção”. E garantir que as legendas alusivas ao Estado Novo são obrigatoriamente incluídas nos filmes. Quando sai do Secretariado Nacional da Informação (SNI), que entretanto substituira o SPN, em 1949, Ferro deixa como herança a Política do Espírito, apoiada na noção de que era possível, por via da cultura, construir uma ideia de nação. Mais tarde, com o advento da televisão, em 1957, o poder das imagens transfere-se, em parte, para o pequeno ecrã. “Mais importante do que a película, para a influência sobre a população, era a produção televisiva da época, em séries, reportagens e nas próprias mensagens de Natal e Ano Novo com os soldados a combater nas colónias”, diz o investigador José de Matos-Cruz. “O contexto emocional, de coacção psicológica, era aí muito mais forte.” Essa estética de poder é fruto da propaganda; e da censura. Da Inspecção-Geral dos Espectáculos, espera-se que cumpra a “rigorosa interdição”, instituída pela censura em 1927, de exibir “fitas perniciosas para a educação do povo, do incitamento ao crime, atentatórias da moral e do regime A Política do Espírito É de Ferro a ideia de criar o Cinema Popular Ambulante e as suas sessões de propaganda, em 1935. Duas carrinhas — o Cinema A e o Cinema B — percorrem o país e chegam a lugares recônditos para mostrar filmes com um pendor nacionalista ou militarista, vindos dos EUA ou da Alemanha, e produções nacionais de propaganda explícita, de actualidades ou ficção, como A Revolução de Maio, “usadíssimo nessas sessões”, diz Carmo Piçarra. Este é o primeiro dos dois mais importantes filmes (o segundo é O Feitiço do Império, também realizado por António Lopes Ribeiro, em 1940) da propaganda explícita do Estado Novo. Em ambos, o protagonista tem um momento de revelação a partir do qual se deslumbra com o Governo: no primeiro caso, quando ouve um discurso de Salazar; no segundo, quando viaja para África e fica rendido à obra do regime nas colónias. Oficialmente, como especificado num decreto-lei, compete ao Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) de António Ferro utilizar o cinema “Mais importante do que a película, para a influência sobre a população, era a produção televisiva da época, em séries, reportagens e nas próprias mensagens de Natal e Ano Novo com os soldados a combater nas colónias” José de Matos-Cruz político e social vigorante.” O Ministério do Interior, o Ministério do Ultramar e a Agência Geral do Ultramar também interferem — estes dois últimos depois de 1961, com o início da guerra colonial. Os cortes na película eram entregues pelo realizador aos censores — e destruídos. Mas ainda se encontram, nos arquivos da Cinemateca Portuguesa, latões com alguns cortes, recuperados dos gabinetes dos censores no Palácio Foz, depois do 25 de Abril, diz Joana Pimentel. Um cinema estropiado Na maioria dos casos, porém, é um material que desaparece “para sempre”, frisa Carmo Piçarra. “Em relação à produção portuguesa, houve muitas vezes necessidade de restaurar os filmes fragmentados, estropiados”, considera José de Matos-Cruz. “A versão final que chegou ao público acabou por ser uma versão incompleta. Muitas vezes era completamente impossível restaurar o olhar ou a expectativa dos cineastas que os produziram ou realizaram”, acrescenta o autor de dezenas de obras sobre cinema, entre as quais O Cais do Olhar, Prontuário do Cinema Português ou 30 Anos com o Cinema Português. Para ele, isso é “trágico”. O realizador Fernando Matos Silva não viu o seu primeiro filme cortado — viu-o proibido. Hoje recorda uma noite, no princípio de 1974, em que conseguiu, com o distribuidor, organizar uma sessão clandestina de O Mal-Amado na antiga sala do Cinema Roma, em Lisboa. “No passe-a-palavra, a sala quase encheu”, diz ao Ípsilon. Como o seu O Mal-Amado, também Sofia e a Educação Sexual, de Eduardo Geada, Nojo aos Cães, de António de Macedo, Índia, de António Faria, e outros só puderam ser exibidos depois da queda do Estado Novo. O olhar crítico sobre a guerra colonial, a repressão sobre os estudantes, a questão familiar — com a libertação que o protagonista João ( João Mota) propõe às irmãs, a cena em que a mãe (Helena Félix) questiona as amarras que a prendem a um papel imposto, pela moral, à mulher na sociedade, e o sexo quase explícito entre Inês (Maria do Céu Guerra) e João — faziam de O Mal-Amado um filme previsivelmente proscrito. O guião não foi enviado ao exame prévio como era obrigatório e o realizador não se autocensurou. Filmou e concluiu a longametragem — “um objecto cultural com uma posição clara de denúncia” — como se vivesse num país livre. E, como se adivinhasse que um 25 de Abril se preparava, esperou tranquilamente até poder exibi-la. O Mal Amado foi o último filme a ser proibido pela censura e o primeiro a ser estreado depois de Abril de 1974. teatro © Anders Nilsson projecção de filmes estrangeiros, depois para a produção de actualidades cinematográficas e finalmente o investimento foca-se na ficção e em filmes como A Revolução de Maio e O Feitiço do Império. Mais tarde é criado um Fundo do Cinema Nacional que apoia filmes se forem nacionalistas — casos de Camões, de Leitão Barros, ou Chaimite, de Jorge Brum do Canto. Por fim, são concedidas bolsas a jovens para estudarem cinema no estrangeiro. Sem saber, a propaganda estava a alimentar um cinema de ruptura; é quando surgem realizadores como Manuel Faria de Almeida ou Joaquim Lopes Barbosa, que oferecem um olhar alternativo sobre as colónias mas não o podem mostrar. Catembe e Deixem-me ao menos subir às palmeiras de um e de outro, respectivamente, são proibidos. Com 103 cortes, Catembe foi o filme mais censurado de sempre. Mesmo depois dos cortes, não foi autorizada a sua exibição. Como aconteceu a António de Sousa com O Esplendor Selvagem e a António Campos com A Invenção do Amor, parábola sobre o país totalitário inspirada num poema de Daniel Filipe que circulava na oposição. O que distingue estes quatro filmes — cada um com o seu registo distinto — da lista de censurados (como Maria Papoila, Os Verdes Anos e outros) foi o impasse em que colocaram os seus autores. Não reviveram com o 25 de Abril. Não tiveram estreia comercial. Ficaram restritos a pequenos círculos, ou foram esquecidos. tg STAN Nora de Henrik Ibsen Inserido no 29.º Festival Internacional de Teatro de Almada 6 a 9 julho 21h30 15€ / Com desconto 7,50€ | M/12 Em inglês com legendagem Um projeto HOUSE on FIRE financiado com o apoio do Programa Cultura da União Europeia Dia do Manifesto crianças & jovens aoarlivre Manifestos ao ouvido Sopa Fresca música Tiago Sousa Coro das Vontades Celebramos o último dia da temporada com um programa dentro e fora de portas dedicado ao tema Manifesto sábado 14 julho 16h00 às 20h30 Entrada Livre www.teatromariamatos.pt tel. 218 438 801 ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 9 CARLA ROSADO Manuel Faria de Almeida Um olhar livre condenado pela censura Catembe , sobre a vida em Lourenço Marques nos anos 60, não desafiava a censura, fazia como se ela não existisse A lembrança desse dia quase se apagou da memória de Manuel Faria de Almeida. “Mil parabéns. Ganhámos Catembe”, dizia o telegrama do produtor António da Cunha Telles, em 1964. Tinha 30 anos. Hoje, o realizador não sabe se há de olhar para trás ou esquecer que Catembe (1965) existiu. O filme foi uma conquista. E uma perda. Um olhar livre, logo condenado à nascença, sobre a vida em Lourenço Marques, nos sete dias da semana, organizado como o Cléo de 5 à 7 de Varda. Um filme que não desafiava a censura, fazia como se ela não existisse. Um filme raro no panorama de outros filmes apoiados pelo Fundo do Cinema Nacional e formatado pela vontade da propaganda. E no entanto, também ele foi subsidiado. Mesmo antes da rodagem, já havia alertas da PIDE. Catembe teve depois 103 cortes da censura tornando-se o filme mais censurado de sempre, com menção no Guiness. Os 87 minutos do original foram cortados para 48 minutos pela Agência Geral do Ultramar. Faria de Almeida remontou o filme, para lhe dar sentido com o que lhe restava. Mesmo assim, a Inspecção-Geral dos Espectáculos proibiu o filme. Faria de Almeida desistiu. Não queria fazer mais cortes. A censura deixou-lhe marcas. 10 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 “Na altura sim. Senti-me atacado na minha criatividade. Fiquei sem saber o que fazer.” Decidiu: “Não faço mais filmes de fundo. Vou dedicar-me ao documentário.” Virou a página. Mais tarde, ganhou prémios como documentarista. Foi presidente da Tobis e do Instituto Português de Cinema. Na RTP, foi responsável de produçãorealização e de formação. Em nenhum momento pensou em não pôr no filme o seu olhar poético e a visão realista que tinha das colónias. O seu cosmopolitismo abre-lhe horizontes. Dá à obra esse “olhar de subtileza crítica”, nas palavras do investigador José de MatosCruz, e traz-lhe novidades sobre o que era Moçambique nos anos 60. Depois de concluir o curso em Londres, de vencer o 1º prémio do Festival Cinestud de Amesterdão com a curta Streets of Early Sorrow e de estagiar na cinemateca francesa, Faria de Almeida estava cheio daquela ideia do cinema “Senti-me atacado na minha criatividade. Fiquei sem saber o que fazer” captam o conflito em tempo real, propõem “a verdade mais pura”, como A Group of Terrorists Attacked… quando mostra o ataque do Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) ao quartel de Buba: 12 minutos de película, 12 minutos de trincheiras. O ataque podia ter corrido mal para os guerrilheiros do PAIGC, mas o movimento entrara numa fase da luta em que não duvidava da vitória. E em que se concentrara no desenvolvimento de escolas e hospitais — alvos prioritários dos bombardeamentos — nas zonas libertadas. De metralhadora em punho, elementos da Milícia Popular Armada acompanham um grupo de crianças a uma escola improvisada sob um telhado de palha. A câmara do realizador de Nô Pintcha segue-os. Filma o momento em que o grupo fica debaixo de um intenso bombardeamento e foge. Os ataques surgem a qualquer momento. “A alfabetização é um dos grandes medos dos colonialistas portugueses”, diz o narrador. As imagens alternam com as palavras de Amílcar Cabral: “Lutamos para que o nosso povo seja livre, independente e soberano.” Longe das posições da tropa portuguesa, a câmara filma fotografias de soldados brancos com crânios de negros mortos, como troféus. Um “mini-Vietname” A censura deixou marcas em Faria de Almeida directo, muito montado, sincopado, que vira em Londres. Era admirado de Varda, Chris Marker, Resnais. “Quando decide fazer um filme, Faria de Almeida está muito mais próximo daquilo que se passa no mundo e num regime mental muito mais aberto do que alguns realizadores a filmar em Portugal que conheciam os limites e sabiam até onde podiam ir”, diz Maria do Carmo Piçarra, investigadora. Catembe não sabia ser outra coisas que não ela própria: a outra margem de Lourenço Marques, vila de pescadores de andrajos e olhar intenso, cuja imensa pobreza contrasta com o bemestar dos colonos em Lourenço Marques, ou a personagem imaginada por Faria de Almeida, com o mesmo nome. “Fiz Catembe por gostar muito de mostrar o que achava que não estava bem.” O filme estava pronto em 1965 mas nunca teve estreia. Foi visto depois do 25 de Abril na Cinemateca e numa sessão no Nimas. Em Setembro, vai ser exibido no Department of Arts, do Goldsmiths College, na Universidade de Londres. A.D.C. O que diria Francis Ford Coppola destas guerras? Num dos primeiros planos de A group of terrorists attacked…, e depois de um breve retrato do país e da apresentação de alguns comandantes da guerrilha do PAIGC, a voz-off do narrador marca o tom: “Estas pessoas não querem ser portuguesas; a sua guerra é um mini-Vietname, com a diferença de que não enchem as primeiras páginas de jornais; a inspiração destes combatentes vem do Vietname do Norte; chamam-se a si nacionalistas, mas são tratados por comunistas”. O filme de Tobias Engel retrata um Exército português em desvantagem, recolhido nos aquartelamentos, e uma presença portuguesa “paralisada” nas cidades — “o mato estava interdito ao general Spínola”, então governador —, enquanto os filmes da propaganda apresentam o cenário exactamente oposto. “Sejamos dignos deles e não vacilemos da decisão”, diz Marcello Caetano sobre imagens de negros e brancos, juntos sob a bandeira portuguesa, no filme Angola na Guerra e no Progresso — neste filme, também de 1971, os movimentos rebeldes são descritos como “bandos embriagados pela droga” que “destruíam tudo o que encontravam sem qualquer finalidade”. A propaganda apostava também nas actualidades cinematográficas, nos filmes de acção psicológica, feitos pelo Exército, ou nas mensagens de Natal e Ano Novo exibidas, em projectores portáteis, para os soldados portugueses no mato. “Desde o princípio dos anos 1920, as Forças Armadas tiveram núcleos de audiovisuais. Esse sentido de propaganda era muito importante para Joaquim Lopes Barbosa Criador de metáforas políticas do Moçambique rural Deixem-se ao menos subir às palmeiras foi o primeiro rodado no Ultramar por ultramarinos, olhar crítico e alegórico sobre o colonialismo A o telefone, começam por se ouvir interferências, mas Joaquim Lopes Barbosa capta o essencial. O pedido de entrevista a partir de Lisboa é para que fale sobre Deixem-me ao menos subir às palmeiras... (1972) a partir de Maputo. “É um filme histórico”, diz. A linha melhora e a conversa flui: “É um dos raros filmes anticoloniais feitos na clandestinidade e com grandes dificuldades em Moçambique. Vencemos as batalhas todas”. Não foi vencida a última: a da censura. Lopes Barbosa já contava com isso. “O filme era muito violento para a época, era um tabu falar dos moçambicanos negros na era colonial. Essa realidade não era mostrada, falada, filmada.” Como Catembe, Deixem-se ao menos subir às palmeiras ficou na sombra; quase desconhecido. Ganhou notoriedade mais pelo simbolismo e não tanto por ser exibido. Raramente o foi, nunca teve estreia comercial. Fez história e não só do ponto de vista do realizador: “Foi o primeiro rodado no Ultramar por ultramarinos”, escreveu Luís de Pina, antigo director da Cinemateca, em História do Cinema Português que o refere como “uma obra de ficção exemplar sobre o colonialismo, numa perspectiva crítica e alegórica”. Enquanto Faria de Almeida tem “um olhar mais urbano e de testemunho social”, Lopes Barbosa “quer criar uma metáfora política sobre a situação que se vivia”, diz ao Ípsilon o investigador de cinema José de Matos-Cruz. Realizador marxista e inspirado pelo cinema soviético, é também o primeiro em Moçambique a fazer a apologia da libertação. Inspira-se do conto Dina do moçambicano Luís Bernardo Honwana. E retrata, através da história de Madala, Maria, Djimo e o capataz do fazendeiro, a exploração de trabalhadores nas fazendas de proprietários brancos, a humilhação e a violência. Malangatana Valente, na altura ainda não conhecido como pintor, também entra no filme. No vazio da existência, no ciclo de escravatura, de que era difícil sair, Djimo encarna a esperança. Vestido de fato e camisa, de mala na mão, nega o trabalho escravo e parte da aldeia. “É uma forma de se libertar. “É um dos raros filmes anticoloniais feitos na clandestinidade em Moçambique” Realizador marxista e inspirado pelo cinema soviético, é o primeiro em Moçambique a fazer a apologia da libertação Vai à procura de soluções e uma delas é a guerrilha, a luta de libertação”, diz Lopes Barbosa. Mesmo tentando criar ilusões aos censores – de que este não era um filme sobre Moçambique – com a escolha de um negro para capataz do fazendeiro branco e este último a falar inglês e não português, o filme foi proibido. Como Faria de Almeida, também Lopes Barbosa estava envolvido no movimento do Cinema Novo. Como ele, perdeu o que podia vir depois – uma carreira promissora no cinema de ficção. Mas ganhou, pela liberdade. “Na altura, estive 100 por cento livre”, longe do “cinema falso do Estado Novo”. Quando descobriu a literatura angolana, de Viriato da Cruz ou António Jacinto, viu que ela fazia “o retrato autêntico do homem”. E pensou: “É isso que eu vou fazer.” Juntou as influências do neo-realismo italiano, da Nova Vaga de cinema francês, do Cinema Novo brasileiro e do cinema soviético mudo. O filme teve projecções independentes e pontuais em Moçambique ou Portugal. Foi recentemente exibido pela Cinemateca, onde o produtor Courinha Ramos, ao fim de muitos anos, depositou o negativo e a cópia de 35 mm. A.D.C. ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 | 11 CENTRO DE AUDIOVISUAIS DO EXÉRCITO À luz do Exército CENTRO DE AUDIOVISUAIS DO EXÉRCITO Como noutros filmes da propaganda, Angola - Decisão de continuar apresenta a mobilização militar como forma de unir os portugueses contra os massacres as instituições militares portuguesas”, diz José de Matos-Cruz, investigador de cinema, na Cinemateca até 2008. Além de Angola na Guerra e no Progresso, o tenente-coronel Quirino Simões realizou também Moçambique, Missão de Combate (1968) e Guiné, a Caminho do Futuro (1971). Neles se acreditava num Portugal vítima de uma guerra imposta por movimentos terroristas, motivada por uma conspiração comunista, mas determinado a progredir e a defender a grandiosidade do seu invencível império. Este é um sonho a desmoronar-se em Portugal – A Dream of Empire (1971), da britânica Yorkshire TV, que põe claramente em dúvida a capacidade de Portugal fazer a guerra. Como esse, os outros documentários estrangeiros dizem muito do que foi a obstinação de Portugal em manter as colónias quando os líderes africanos já as viam como nações independentes. Hoje, podem ser lidos como um prenúncio do que viria a acontecer. São eles próprios gestos de libertação. Nascimento de uma nação Alguns incluem imagens de arquivo feitas por africanos que lutavam pela independência. Um deles: Flora Gomes, conhecido realizador da Guiné-Bissau. NAMING SPONSORS SPONSORS APOIOS MEDIA PARTNERS 12 | ípsilon | Sexta-feira 29 Junho 2012 ORGANIZAÇÃO Os documentários estrangeiros dizem muito da obstinação de Portugal em manter as colónias. Podem ser lidos como prenúncio do que viria a acontecer Quando começa a luta de libertação no seu país, em 1963, depois de Angola (1961) e antes de Moçambique (1964), Flora Gomes tem 14 anos. A mãe manda-o do arquipélago dos Bijagós, onde nasceu, para junto de Amílcar Cabral. Queria que entrasse na luta para seguir os estudos. Uma coisa estava ligada à outra. E a decisão partiu de Amílcar: “Vais estudar, mas não Medicina ou Engenharia. Vais estudar cinema, porque a nossa guerra tem de ser documentada.” Flora Gomes parte então para Cuba, como muitos jovens que se juntaram à guerrilha. Mais tarde, as imagens únicas que filma da guerra de libertação são utilizadas no filme The Birth of a Nation (1973), no qual os suecos Robert Malmer e Ingela Romare registam a declaração unilateral da independência pelo PAIGC, um ano antes do 25 de Abril, na Madina do Boé. A dupla sueca já antes tinha filmado In Our Country the Bullets Begin to Flower (1971), sobre o papel da poesia dos fundadores do movimento de libertação em Moçambique — como Marcelino dos Santos, Sérgio Vieira ou Jorge Rebelo — na mobilização para a luta. Icónico, Amílcar Cabral, também poeta, surge nos filmes que acompanham a guerrilha do PAIGC com o carisma e a mensagem que fizeram dele um líder respeitado mundialmente, até ser assassinado em Janeiro de 1973, poucos meses depois de ter anunciado, num discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, que a GuinéBissau se preparava para declarar a independência de Portugal, nas zonas libertadas pelo seu movimento — mais de dois terços do território. Mais do que uma vez, diz, em entrevista filmada, que o objectivo do PAIGC não era lutar contra Portugal ou os portugueses mas contra o domínio colonial. Pontualmente, estes retratos “por dentro” dos movimentos de libertação são vistos em secções temáticas de festivais que focam a guerra colonial. Mas foi logo a seguir ao 25 de Abril, que o seu visionamento em sessões restritas abriu uma janela para o outro lado da guerra, cuja realidade ainda estava presente. Nos anos da censura em Portugal, eram a PIDE e o Exército a saber primeiro da existência destes filmes, diz Joana Pimentel, responsável de aquisições de depósitos da Cinemateca Portuguesa — Museu do Cinema. Antes de a maioria destes documentários chegar ao Arquivo Nacional das Imagens em Movimentos (ANIM), departamento da Cinemateca, já estavam no Exército. Eram adquiridos e vistos pelos militares como filmes de instrução. Também o Ministério dos Negócios Estrangeiros, através das embaixadas, tentava adquirir toda a produção de televisões estrangeiras sobre Portugal, as colónias e a guerra colonial, ainda durante o Estado Novo. Nalguns círculos em Portugal ligados a pessoas no exílio, sabia-se da sua existência. Mas cá só puderam ser vistos depois do 25 de Abril, na Casa de Angola ou no CIDAC – Centro de Intervenção para o Desenvolvimento Amílcar Cabral. O preço a pagar Quem viu os documentários estrangeiros “ganhou um sentido mais humano e mais concreto do que se passava no outro lado” da guerra, diz José de Matos-Cruz. “Eram fortes elementos de informação, mais do que os relatórios políticos escritos e que transitavam pelos bastidores de assembleias internacionais.” Os documentários podiam ter também a sua carga política e, nalguns casos, até um pendor propagandístico pela independência. Presente neles, um olhar político e humano sobre a realidade, sem distância e com o absurdo da guerra à flor da pele. Quando se fecha a cortina de Angola – A Journey to War, resta o testemunho do repórter. “Olho para trás e penso nas crianças e nos velhos e pergunto-me se sobreviveram, penso nas salas vazias e silenciosas das herdades portuguesas, nas coisas terríveis que se passaram neste país, penso nos jovens, nos soldados portugueses que não compreendem porque estão aqui, todos apanhados numa confusão, nenhum querendo que as coisas se passassem assim. Que horrível preço a pagar pela liberdade.”