a dimensão imaginária do vírus hiv-aids entre homens

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REVISTA CIENTÍFICA DA UFPA – EDIÇÃO Nº 01, MARÇO, 2001
A DIMENSÃO IMAGINÁRIA DO VÍRUS HIV-AIDS ENTRE HOMENS
HOMOEROTICAMENTE ORIENTADOS QUE TÊM OU TIVERAM
RELACIONAMENTOS AFETIVO-SEXUAIS ESTÁVEIS
Roberta Gilet Brasil (Bolsista PIBIC/CNPq)
Prof. André Maurício Lima Barretto (Orientador, Departamento de Psicologia
Clínica/CFCH-UFPA)
RESUMO
O imaginário psíquico não é somente produtor de fantasias, é também
participante ativo nas ações humanas. Para esclarecer alguns aspectos da
dinâmica imaginária referente à sexualidade, esse estudo foi desenvolvido.
O fator imaginário investigado foi a fidelidade amorosa. Visando entender
se, em um relacionamento afetivo-sexual estável, o fato de considerar-se
comprometido poderia ser um fator influente sobre a exposição ao risco de
morte em práticas sexuais desprotegidas. METODOLOGIA – Os sujeitos
foram homens homoeroticamente orientados, da classe média de Belém,
com grau de instrução universitário. Utilizou-se a metodologia qualitativa,
abordagem História de Vida. Coletou-se os dados através de entrevistas
semidirigidas. RESULTADOS – As entrevistas demostraram que o
significado da fidelidade foi permeado pelas idéias de “confiança”,
“sinceridade”, “exclusividade”. A importância desse valor nos
relacionamento em questão era muito elevado. Colocando a fidelidade
como uma “barreira imaginária” à prevenção de AIDS, pois os sujeitos
tiveram a dimensão imaginária do vírus HIV diminuída, não percebendo o
alto grau de exposição a que estavam submetidos. CONCLUSÃO – O fato
dos sujeitos estarem comprometidos em um relacionamento estável, levou
a criação de uma “barreira imaginária” protetora ao vírus por dois motivos:
restringir-se as relações sexuais a um único parceiro e acreditar-se na
fidelidade amorosa.
ABSTRACT
The psychic imaginary is not only fantasy producer it is also an active
element in human action. This study was carried out in order to make some
aspects clear about the imaginary dynamic referring to the sexuality. The
imaginary factor analyzed was the lover’s faithfulness. In a stable-sexualrelationship the fact the person considers to be engaged to someone else
could be an influencing factor regarding the exposition to risks of death
caused by unsafe sexual practices. METHODOLOGY - The individuals were
homosexual men, was belonged to Belém middle class, with university
degree. The methodology used was qualitative, Life History approach. The
data was collected through semi-directed interviews. RESULT – The
interviews showed that the meaning of the word faithfulness was
surrounded by the ideas of “confidence”, “sincerity”, “exclusivity”. The
importance of this value in this relationships was highly measured. They put
the faithfulness as an “imaginary wall” to AIDS protection, because these
individuals had the imaginary dimension of the HIV virus diminished, not
realizing the high exposition level to which they were submitted.
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CONCLUSION – The fact that the individuals were engaged to a serious
relationship, ended up in creating an “imaginary wall” from the HIV virus
because of two reasons: for being restricted to one sexual relationship
partner only, and for believing in lover’s faithfulness.
DESENVOLVIMENTO
O homem é um animal que saiu da condição primitiva, construiu instrumentos,
organizou-se em comunidade, constituindo-se como único ser vivo liberto da
opressão de seus instintos. Essa liberdade veio acompanhada de uma enorme
evolução de seu processo psíquico, fazendo com que sua condição biológica
preenchesse apenas parte de sua vida. O homem passou a definir-se como um ser
biopsicossocial. Contudo, essa evolução psíquica não pode ser traduzida pela
racionalidade. A velha idéia de que “o homem é um ser especial porque possui a
razão” não é, na perspectiva desse estudo, a grande responsável pelos feitos
humanos.
Ser um animal racional, sem dúvida, é importante na medida em que
possibilitou o estabelecimento da teia simbólica que rege a vida humana em
comunidade. Essa teia simbólica transcende qualquer indivíduo, o qual nasce imerso
em sentidos sócio-culturais instituídos.
O movimento humano em direção a esses sentidos sócio-culturais tem duas
vertentes: a reprodução do que está estabelecido como norma e a criação de novos
significados.
Nesse estudo, a atenção está voltada para esse segundo movimento, ou seja,
essa capacidade humana de criar novos significados que se denomina imaginação.
Contudo, não se está falando apenas de uma capacidade de fantasiar e sim de um
processo constante e indeterminado de atribuição de diferentes significados a algo
que possui uma definição estável.
Para simplificar poder-se-ia pensar no seguinte exemplo: a palavra CASA,
como todas as outras na língua portuguesa, tem uma definição estável e comum a
todos que estão inseridos na sociedade brasileira:
“Morada, moradia, habitação, residência” (Holanda, 1986, p. 362)
Entretanto, quando se busca saber o conceito subjetivo que cada pessoa
possui da palavra CASA, pode-se descobrir infinitos significados diferentes dessa
mesma palavra. Isso porque, quando se descreve de maneira particular, o que se
esse entende por algo, estão implícitas nesse significado as representações sociais,
as vivências individuais e uma maneira singular de articular as idéias de cada um.
Todo esse processo ocorre em função de que:
“O homem é um ser que procura sentido. E para satisfazer sua necessidade de
sentido, cria o sentido” (Castoriadis, 1992, p. 93 in Augras, 1999)
Esse artigo se propõe a apresentar um estudo realizado sob a perspectiva de
investigar e discutir esse chamados significados imaginários que compõem a vida de
cada ser humano, especificamente tratando-se da sexualidade.
A importância que o imaginário para a sexualidade humana pode ser
dimensionado, tendo-se em vista que o sexo para os homens traduz-se numa busca
incessante pelo prazer e que esse prazer, advém da articulação do instinto biológico
aliado aos significados imaginários. Como ressalta Bloom, 19931:
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Bloom, 1993 p.22 in Costa, 1998 p.142.
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“Não se pode fazer sexo sem imaginação, embora possamos estar famintos e comer
sem nenhuma imaginação. A fome é um fenômeno puramente corporal e pode sem
dúvida ser deixada aos cientistas e, agora, aos dietistas. Mas nossos dietistas
sexuais são absurdos. O melhor que podem fazer, negligenciando e denegrindo a
imaginação, é empobrecê-la e torná-la devassa.” (p. 22)
A limitação que o surgimento da AIDS e as condições de prevenção que o
vírus HIV impôs à obtenção desse prazer tem sido sentida por todos os que, na
atualidade, passaram a ter que modificar sua prática sexual em nome da
preservação da vida. Uma vez que a AIDS exige na relação sexual “procedimentos
de segurança” que visam separar, impedir o toque ou contato físico direto, num
momento em que tudo que se deseja é justamente o contrário.
Entretanto, por diversos motivos, muitas pessoas não mudaram sua prática
ou de vez em quando “burlam” a norma e se expõem deliberadamente ao vírus HIV.
Para discutir acerca da participação do imaginário individual em práticas sexuais
perigosas foi realizada no Rio de Janeiro a pesquisa A dimensão imaginária do risco
de morte em práticas sexuais desprotegidas entre homens homoeroticamente
orientados (Barretto, 1998).
Considerando que atualmente existe um discurso preventivo de longo alcance
que propaga as formas e os meios de transmissão do vírus HIV. Considerando, que
as pessoas em sã consciência não pretendem se arriscar a serem infectadas por um
vírus letal e considerando-se ainda que somente a questão do prazer não é
suficiente para responder a essa exposição ao vírus, buscou-se em outro lugar, os
motivos que esclarecessem essa dinâmica de exposição ao HIV. Esse outro lugar foi
o imaginário.
Acreditando portanto, que os significados imaginários permeiam e conduzem
as práticas sexuais, foi que, vinculado ao projeto acima citado, originou-se o Plano
de Trabalho que nesse artigo está sendo exposto.
O fator imaginário nele abordado e analisado foi a fidelidade amorosa.
Tendo a intenção de entender se, em um relacionamento afetivo-sexual estável, o
fato de considerar-se comprometido com uma pessoa poderia ser um fator influente
sobre a exposição ao risco de morte em práticas sexuais desprotegidas.
Baseado no contexto de que o “sexo seguro” (medida preventiva tida como
solução para a exposição ao vírus HIV) por algum motivo não consegue fazer parte
do cotidiano sexual de muitos casais, buscou-se entender a dinâmica imaginária de
parceiros afetivo-sexuais estáveis quando o assunto é o uso do preservativo (a
prevenção). Procurando-se perceber, a representação do vírus HIV e sua
interrelação com a idéia da fidelidade frente ao risco de contaminação.
Este artigo trata de um acontecimento muito atual, na medida em que visa
discutir a AIDS no âmago dos relacionamentos afetivos estáveis, onde a
contaminação tem crescido espantosamente. No decorrer da leitura você entenderá
alguns aspectos acerca da dinâmica imaginária de pessoas comprometidas afetivosexualmente, o processo imaginário que se desenvolveu nos relacionamentos
amorosos dos entrevistados e as razões de se indagar ser a fidelidade uma nova
“barreira” à prevenção de AIDS.
METODOLOGIA
Esta pesquisa foi elaborada sob a perspectiva da metodologia qualitativa, a qual não
visa quantificar os resultados. Ela prioriza os sentidos e as significações abstraídas
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visando explicar fenômenos que estão intimamente entrelaçados à subjetividade do
homem.
A escolha por essa forma de análise e interpretação dos dados deveu-se à
natureza do fenômeno a ser analisado, pois como o enfoque eram as articulações
imaginárias implícitas ao discurso do sujeito, considerou-se que a metodologia
qualitativa propiciaria a emergência do discurso dos sujeitos de forma menos restrita
ao pensamento do pesquisador, fazendo com que se pudesse observar, com
amplitude, as conexões imaginárias que o próprio sujeito faz.
Pretendeu-se também, utilizar uma metodologia que permitisse levantar
dados correspondentes a significações subjetivas e não apenas quantificação do
fenômeno, pois quantificar tais resultados não atingiria o objetivo de explicar as
questões propostas.
E por fim, que permitisse a viabilização da análise do discurso do sujeito,
como ferramenta para se interpretar os resultados obtidos. Por acreditar ser a
linguagem, o meio que melhor concentra as significações realizadas pelos homens,
em cada lugar e época. Nessa perspectiva o instrumento de coleta de dados foi a
entrevista que possibilita se obter o discurso do sujeito de forma mais abrangente,
como ressalva Ecléia Bosi (1998):
“... flexibilidade, pelo contato mais próximo com o sujeito, pela possibilidade de
colher sua atitude geral ante uma pergunta. Muitas pessoas acham difícil escrever
longamente; e, embora gostem de explicar bem suas respostas, são impedidas pela
inibição. (...) a entrevista cria uma atmosfera de confiança, sendo possível
tranqüilizar o sujeito desde o início, afastando seus temores e esclarecendo os
propósitos da pesquisa” (p. 200)
1. Os Sujeitos
Foram homens homoeroticamente orientados, pertencentes à classe média de
Belém, com nível escolar universitário. Eles eram todos ativos sexualmente desde os
anos 80, período no qual a AIDS surgiu no Brasil, que mantinham ou mantiveram
relacionamentos afetivos sexuais estáveis.
O recrutamento foi realizado através de rede de amizades e de indicações de
pessoas já entrevistadas.
O critério de estabilidade desses relacionamentos dos sujeitos não foi
preestabelecido cronologicamente. Utilizando-se o critério subjetivo de cada
entrevistado, a partir do que simbolicamente está instituído na língua portuguesa:
“Assente, firme; fixo. Sólido, permanente, duradouro”. (Holanda, 1986, p.717)
2. O Procedimento
Optou-se por uma abordagem biográfica ou história de vida. Considerando-se que a
compreensão do modo de agir de alguém só é possível quando este modo de agir é
percebido sob o ponto de vista da própria pessoa. (Haguette2, 1997).
Os relatos de vida foram colhidos através da entrevista semi-dirigida. Ao todo
realizaram-se quatro entrevistas. Foi proposto ao sujeito que contasse sua vida.
Esse relato foi sendo direcionado para o objetivo da pesquisa através de
interpelações do entrevistador que o conduziam a falar em particular de um ramo de
sua vida – a sexualidade.
Foi elaborado um roteiro com pontos “chaves” a serem seguidos a fim de que
os objetivos da entrevista não fossem perdidos, ou seja, interpelações acerca do
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Haguette, Tereza M. Metodologias qualitativas na Sociologia. 5ª edição. Petrópoles: Vozes,1997.
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entrelaçamento entre as representações de fidelidade e do vírus HIV em práticas
sexuais desprotegidas. A única pergunta pré-estabelecida era a primeira, que fazia
referência ao impacto do vírus HIV, para que assim se pudesse introduzir o assunto
com o entrevistado.
O roteiro adotado tinha o que Nicolaci-da-Costa (1989) chama “estruturação
invisível” pois, os tópicos ficavam só na mente do entrevistador, utilizando-se como
único instrumento na entrevista o gravador. Esse roteiro abordava os seguintes
pontos: Impacto da AIDS, Assunção da sexualidade e Fidelidade entre parceiros.
A análise dos resultados foi feita através da interpretação do discurso, "sem o
objetivo específico de ganhar conhecimento sobre a natureza do fenômeno
lingüistico per se" (Nicolaci-da-Costa, 1994:325). Pretendendo-se perceber e
compreender as singularidades subjetivas de um fenômeno. Dessa forma, os dados
fornecidos pelos sujeitos não possibilitam fazer generalizações, pois por princípio
metodológico, a visão única de cada um é o que interessa enquanto dado
qualitativo.
Para analisar de forma ampla a questão foram formuladas categorias de
análise ou núcleos temáticos que faziam referência aos assuntos abordados em
todas as entrevistas e que foram de maior relevância enquanto resposta aos
objetivos pretendidos. Foram elaboradas 4 núcleos distribuídos em: Impacto do vírus
HIV, Sexualidade, Estabilidade e Fidelidade x Prevenção.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
1. O Impacto do Vírus da AIDS
Os sentimentos relatados pelos entrevistados de uma forma geral, fizeram sempre
referência ao medo, receio, temor e horror. Embora, cada um, pela maneira singular
que tomou conhecimento da existência do vírus, tenha construído significações
articuladas a representações bem diferentes. Como se pode notar a seguir:
O sujeito A só deu importância ao que era AIDS quando um amigo começou a
desenvolver a fase terminal da doença, o que o impressionou muito, desencadeando
nele um processo de grande angústia, bem como um processo paranóico,
acreditando também estar contaminado, que o fez desenvolver um processo de
somatização da doença apresentando sintomas associados a um real portador de
HIV.
Seu relato deixou transparecer que o vírus passou a representar uma peste,
um castigo ou algo extremamente impregnante a ponto dele achar que “pegava no
ar, pegava no beijo, pegava no toque”. (sic)
Para o sujeito B, O impacto da AIDS, desencadeou sentimentos como receio,
atordoamento e sensação de estar tolhido de fazer certas coisas que antes se podia
fazer.
O sujeito C, teve um “primeiro contato” semelhante ao do primeiro
entrevistado, e relata também ter medo da doença, contudo o que parece ter ficado
mais evidente ao acompanhar um doente terminal foi a discriminação sofrida pelo
portador de HIV.
O sujeito D relata que o impacto da doença, o medo de pegar AIDS e a
consciência do que era o vírus só foi desencadeado após a morte de um colega: “–
Pô, essa porra mata, esse negócio mata e eu tenho que fazer alguma coisa pra me
prevenir. Foi a partir daí que eu comecei a tomar de fato conhecimento da AIDS.”
(sic)
2. A Sexualidade
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A decisão de assumir a opção sexual, os momentos de angústia, o medo de contar
para os familiares, a própria não aceitação de sua inclinação homoerótica e o
relacionamento entre homens homoeroticamente orientados foram pontos discutidos
durante as entrevistas e que de forma direta ou indireta em todas elas se fizeram
presentes no discurso dos entrevistados. E em três dos quatro entrevistados há uma
alusão muito carinhosa e de gratidão ao apoio dado pelas mães no momento
delicado dessa assunção.
Para o sujeito A, a tendência homoerótica nasce com a pessoa. Aos treze
anos de forma muito confusa e impactante, segundo sua descrição, teve a certeza
dessa natureza homoerótica, mas não pode evitar a princípio o peso social que foi
contrariar o dito padrão “normal” na sexualidade. O primeiro impacto ao ver
manifestações de carícias homoeróticas e de também trocar carícias foi
“assustador”, mas em seguida diz ter tido a sensação de “estar em casa” e a
percepção de que esse era homoeroticamente orientado: “A primeira impressão que
tive foi um choque, mas depois, logo me senti em casa... porque você sabe: você é
gay, você sabe nesse momento”. (sic)
O sujeito B, relatou que somente a partir dos 17 anos começou a vivenciar
desejo e experiências homoeróticas. Não relatou nenhum fato angustiante ou
traumático da mudança de escolha sexual, definindo-se atualmente, como um “não
homossexual invicto”, pois embora sua preferência seja por homens, diz se
relacionar muito bem com as mulheres. Sua única ressalva quanto a ter começado a
se relacionar homoeroticamente foi quanto ao fato de que para ele o relacionamento
com mulheres é mais “fácil” do ponto de vista da entrega pessoal ao relacionamento,
devido ao maior grau de sensibilidade das mulheres, o que, na sua opinião é mais
difícil acontecer entre homens:
” .. era mais fácil (se relacionar) com meninas, porque elas esperam..., elas se
doam mais, elas são mais sensíveis em relação a tudo, a sexo, amor, a
sentimento. O homem não, o homem é mais tolhido, é mais na dele ... eu sendo
criado como um homem chegar perto dum homem, e querer me doar já fica mais
difícil e ele ainda idem pra mim” (sic)
O sujeito C não fez referências a nenhum sentimento de confusão ou
sofrimento ao sentir desejo homoerótico, seu relato enfatizou a dificuldade de contar
para a família sua preferência sexual e principalmente o relacionamento que já
estava tendo com um amigo, que freqüentava constantemente sua casa. O medo da
forma como a mãe ia receber a notícia, o fez, por diversas vezes, adiar a conversa
com ela, que estava sendo cobrada a tempos.
Para o sujeito D a assunção foi um drama pessoal que quase o fez cometer
suicídio. Por estar muito envolvido quase toda sua adolescência com o movimento
jovem da Igreja Católica, considerava o homoerotismo um pecado. Assim, a falta de
aceitação própria, a idéia de ser um pecador, o medo de contar para a família e por
fim uma paixão por um amigo o fizeram chegar a um alto nível de sofrimento e
desespero que quase acabam com sua vida. Como relatou o entrevistado ao falar de
sua assunção homoerótica:
“Foi horrível. Tanto que eu tentei até me matar..., eu não consegui sentir atração
por mulher e eu rezava toda noite Meu Deus por favor me ajude... “ (sic)
3. A estabilidade nos relacionamentos
Uma das principais capacidades do imaginário é a de se apropriar do discurso
simbolicamente instituído pelo contexto sócio-cultural e atribuir às experiências de
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vida de cada um, significados diferentes e singulares. Assim, considerando esse
aspecto é que se avaliou como necessário e indispensável saber o que para cada
entrevistado significava ter um relacionamento estável. A seguir serão expostas as
várias significações.
As significações de uma forma geral, demonstraram as diferentes
associações feitas à palavra estabilidade, que na língua portuguesa tem o sentido
de: “Assente, firme; fixo. Sólido, permanente, duradouro.” (Holanda, 1986, p. 717).
As variações no significado realizadas pelo imaginário singular, acabaram por
estabelecer diversas acepções desse termo, o que fez de cada definição singular.
Para o sujeito A muito além da questão da duração e da frequência dos
encontros, o importante é o companheirismo, a possibilidade de dividir não só as
alegrias, mas também os problemas com outra pessoa, dessa forma para ele:
“Estável é um relacionamento onde há uma divisão. Uma relação não só para
passear. Tem que haver compromisso. Dividir a vida. Aturar. Ficar no dia a dia
não só para o ôba-ôba Que seja da grana ao remédio. Companheirismo.” (sic)
A caracterização da estabilidade para o sujeito B, parte da reciprocidade na
relação, do estabelecimento de um grande freqüência de encontros e da
manutenção de uma rotina, de um cotidiano compartilhado mesmo que não se more
junto. Ele explicou ter, atualmente, um relacionamento estável porque um participa
da vida do outro e vice-versa. Relatando que:
“É uma coisa assim ....é... só de namorar nos finais de semana, não, a gente liga
todo dia, fala todo dia, fala toda hora, até porque ele trabalha na ...(companhia
telefônica) ai toda hora ele tá me ligando, ai, mas a gente se fala por telefone só
finais de semana que a gente se encontra, se vê, se fala, fica junto” (sic)
O sujeito C falou também da freqüência com que se vê a pessoa, do fato de ir
morar junto, do estabelecimento de uma relação sentimentalmente forte e
acrescentou um dado até então não falado, que é o fato das famílias de ambos
terem sido apresentadas, se envolvido na relação e principalmente aprovado. Como
ele explicou:
“Nós ficamos, eu levei ele para conhecer minha família. Ele me levou para
conhecer a família dele. E a gente ficou assim. Foi forte porque ambas as
famílias gostavam. Tanto a família dele gostou de mim e quanto a minha gosto
dele....A freqüência com que a gente começou a se ver aumentou até o ponto da
gente ir morar junto.” (sic)
Para o sujeito D além do fato de estar freqüentemente perto, até chegar ao
ponto de ir morar junto. De compartilhar os problemas e as alegrias e de se
preocupar com o outro, o principal é ter a sensação de estar construindo algo junto
tanto material quanto sentimentalmente. Como ele relatou:
“ Porque a gente sempre fazia as coisas junto, a questão do cuidado, por exemplo
eu chegava do trabalho ele tava lá em casa, meu jantar tava pronto, aquela coisa
de chegar o quarto tava limpinho, de se preocupar de vir e perguntar ei, como foi
teu dia hoje? E tal, tá cansado, aconteceu alguma coisa, que tal? A gente sentava
e conversava. Então, eu considerava estável, pelo fato da gente tá junto, da gente
tá construindo alguma coisa junto assim com o relacionamento.” (sic)
4. Fidelidade X Prevenção:
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Nesse tópico concentrou-se o foco de análise de todas as entrevistas. Em seguida,
serão descritos os significados atribuídos à palavra fidelidade e como a crença
nessa fidelidade fez com que, em dado momento do relacionamento desses sujeitos,
eles abandonassem o preservativo, acreditando que por estarem se relacionando
com uma única pessoa e de não haver possibilidade de traições, de ambas as
partes, estariam protegidos da contaminação do vírus HIV.
O sujeito A teve um relacionamento de três anos e meio com um rapaz. A
relação se dava da seguinte forma: ambos moravam juntos e dividiam
financeiramente todas as despesas. Quando o relacionamento começou, por
estarem morando em estados diferentes, não havia um compromisso firmado, mas
segundo o sujeito, a partir do momento em que o relacionamento começou a ficar
sério começou a haver a fidelidade. A fidelidade para ele tinha o sentido de
exclusividade na relação sexual e sinceridade. Assim, ele diz que foi:
“... Fiel em tudo, em cama, em beijo e em outras coisa.” (sic)
Logo a princípio, nas várias respostas dadas, afirmou veementemente que a
melhor prevenção é a camisinha. Entretanto, quando começou a falar desse
relacionamento de quatro anos, houve em seu discurso nítidas contradições quanto
a sua conscientização, uma vez que em declarações como: “Hoje se você tem
consciência você vai reduzir, não o fazer sexo, mas o número de parceiros, sair com qualquer
pessoa...” (sic), equivocou-se ao considerar a redução de parceiros uma forma de
diminuir a exposição ao perigo.
Ao longo da entrevista foi possível entender que, o fato desse relacionamento
de três anos e meio ter terminado em “traição”, foi o que verdadeiramente motivou o
sujeito a usar a camisinha. Tomado por sentimentos de revolta, de ressentimento, de
mágoa e de traição, por ter se entregado afetivamente de forma intensa a um
parceiro que lhe traiu a confiança e o expôs ao risco de contaminação, passou a se
prevenir por desacreditar nas pessoas e no estabelecimento de uma possível
relação em que a fidelidade existisse.
Para ele, a fidelidade foi um pacto implicitamente selado entre os dois e que
lhe dava além de prova de amor, garantias de saúde. A fidelidade e o risco de
contaminação se interrelacionaram de tal forma, que ele abandonou o preservativo
sem considerar-se, entretanto, em situação de risco. Como ele mesmo explicou ao
ser perguntado, o motivo que o levou a abandonar a camisinha sabendo do perigo
de contaminação:
“Por que eu não pensava como hoje. Eu confiava.. Eu achava que uma relação
estável era uma proteção. Ele tá comigo não tem problema. Ele não tem e eu não
tenho. Porque o abandono foi depois de uma conversa, fizemos o exame e
abandonamos (a camisinha).” (sic)
Portanto, o que pode ter ocorrido foi uma associação entre
amor/confiança/proteção, e ao mesmo tempo, com a “traição” sofrida o mecanismo
inverso relacionou desconfiança/descrédito com necessidade de prevenção. E foi
essa carga afetiva que o levou a se prevenir não necessariamente da contaminação
do vírus, mas das pessoas que possam lhe provocar sentimentos tão desagradáveis
quantos os experimentados. Tais sentimentos vividos ainda tão intensamente
provocaram a tentativa de uma defesa consciente, ao possível envolvimento afetivo
mais profundo com outra pessoa, ao mesmo tempo, que ainda existe em seu
discurso uma esperança de estabelecer relações confiáveis com alguém.
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A permanência dessas associações entre descrédito nas pessoas e
prevenção; e entre amor e sentimento de proteção quanto ao risco de contaminação,
são compreensíveis na medida em que remete-se ao pressuposto da lógica
inconsciente que segue o princípio da não-contradição, onde duas idéias
contraditórias podem coexistir sem excluírem-se mutuamente.
Assim, mesmo tentando não criar conscientemente o vinculo amoroso com
alguém, os sentimentos de confiança e fidelidade não conseguiram ser dissociados
da idéia de proteção ao risco de contaminação. A exemplo disso, teve-se resposta à
pergunta – se fazia diferença conhecer ou não conhecer uma pessoa no risco de
contaminação - cuja resposta foi:
“Com certeza faz. Se você conhece a pessoa você pode avaliar o medo que a
pessoa tem, o que há com a vida dela, se ela se previne ou não. Se você não
conhece vai dorme e não sabe se a pessoa faz parte do comportamento de risco”
(sic)
O sujeito B, quando começou a se relacionar homoeroticamente, já tinha
consciência do risco que práticas sexuais desprotegidas poderiam acarretar.
Entretanto, ao manter um relacionamento estável de quatro anos, acabou por
abandonar o método de prevenção que já sabia ser necessário para sua proteção
frente ao vírus HIV.
Novamente a fidelidade atravessou a “visão” de um amante e acabou
deixando obscurecido a face mortífera do perigo de exposição ao HIV. Como o
imaginário possui um flexibilidade criativa, a fidelidade enquanto valor, pode ser
interpretada conforme as articulações de sentidos feitas por cada pessoa. Assim, de
acordo com o entrevistado existem dois tipos de fidelidade: uma mais restrita, que se
refere à exclusividade física e outra mais ampla, que se refere à confiança,
sinceridade e renúncia que uma pessoa pode fazer pela outra.
Assim, no seu relacionamento estável de quatro anos, foi firmada uma
fidelidade de acordo com o segundo sentido referido acima. O pacto, era portanto de
que, “...quando a gente se encontrar a gente não vai transar com camisinha... Caso a gente
transasse com alguém transaria com camisinha” (sic)
Essa “prova de amor” marcava a diferença entre o que se pode chamar por
sexo-instinto e sexopulsão. Isto é, para ele há uma distinção entre o sexo que se faz
por necessidade fisiológica e que pode ser feito sem o sentimento amoroso, e o
sexo-pulsão aquele que se precisa não só do sentimento como das representações
psíquicas e afetivas para se realizar. Como o próprio sujeito explicitou com o
parceiro afetivo-sexual estável:
“Veio a paixão... quer dizer, paixão você esquece camisinha, AIDS e tudo mais...
Então, foi isso que aconteceu quando eu conheci essa pessoa eu não queria saber
de camisinha, AIDS, a gente transava numa boa, num queria nem saber porque
gostava mesmo (...) porque no fundo, no fundo com outras pessoas eu tava
fazendo sexo, com ele não, eu tava, sabe pô, eu gostava do cara então, pra mim,
eu tinha que ficar com o cara sem camisinha” (sic)
A fidelidade funcionou de novo como “barreira imaginária” e ao ser
perguntado sobre o que imaginava na época que poderia acontecer com ele, o
depoimento do entrevistado traduziu em poucas palavras toda a dimensão
imaginária dessa questão:
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“Ah, na época tu imagina que não, que com a cabeça que eu tinha na época que
nunca ia pegar esse tipo de doença, que sabe a última pessoa que ia pegar era eu,
você nunca imagina que você possa pegar um tipo de doença desse, né?” (sic)
Esse ideal de prevenção funcionou até o momento em que houve a “traição”.
Nesse momento, toda a dimensão real do vírus HIV pode novamente ser imposto a
consciência porque, como afirmou o sujeito “Quebrou, quebrou o pacto, o pacto foi
rompido, ...a partir do momento que eu descobri que ele tinha transado e ele não me falou”
(sic)
O sujeito C, disse na data da entrevista ter terminado ainda naquela semana
o relacionamento estável que mantinha com um rapaz há quatro anos. Embora ele
não tivesse a exata certeza de que permaneceriam separados. Esse rapaz foi o
primeiro com quem se relacionou dentro do meio homoerótico, tendo antes, tido
alguns “namoricos” com mulheres.
Segundo ele, camisinha é fundamental para a segurança, entretanto explicou
que quando o relacionamento começou a se firmar e eles passaram a morar juntos,
nos dois primeiros anos, por trabalharem no mesmo local e por isso estarem a maior
parte do tempo juntos, se estabeleceu uma relação de confiança e de crença na
fidelidade mútua.
Para ele, a fidelidade consistia tanto na exclusividade física quanto na
sinceridade. Embora, tenha afirmado várias vezes que durante os quatros anos
desse relacionamento foram poucas as vezes que não usou camisinha, sendo essas
vezes, justificadas por ocasião de um porre ou pela falta do preservativo na hora da
relação sexual, depois acabou se contradizendo com o seguinte depoimento:
“.... o fato de gostar, de confiar contava muito. A gente não pode só achar né,
mas eu achei que tinha confiança. E que a gente poderia ... ter feito como nós
fizemos, de confiar, até porque a gente vivia praticamente junto os dois, era muito
difícil ele sair só ou eu sair só.” (sic)
Com o passar do tempo, começaram as brigas, desentendimentos e “traições”
o que levou o sujeito passar a exigir o uso do preservativo nas relações sexuais.
Mais uma vez, a “barreira imaginária” e a idéia de prevenção alicerçada na fidelidade
foi quebrada e como o relacionamento durou mais dois anos, nesse período, a
camisinha se tornou um instrumento de desconfiança mútua entre os parceiros,
como relatou o entrevistado:
“Depois de um tempo pra cá, de uns dois anos pra cá que começou a haver
brigas ... aí desde lá eu passei a fazer questão que tinha que ter, porque bem
antes de todas as vezes que nós transamos sem, eu tinha confiança nele. (...) Ele
perguntava: Ah, porque a gente vai usar? Porque a gente tem que usar. Tu tá
desconfiando de mim é?” (sic)
O sujeito D, teve dois relacionamentos estáveis um de cinco anos e seis
meses e outro de um ano e dois meses. Nesse primeiro relacionamento estável,
além de ser novo, pois estava com dezoito anos, era uma das suas primeiras
relações homoeróticas assumidas.
De acordo com seu relato, nessa idade era um “garoto muito bobinho” (sic) e
não tinha muita experiência de vida, pois tinha passado grande parte da sua
adolescência sob as normas da Igreja. Com esse rapaz aprendeu de uma só vez a
beber, a fumar e a sair para a boate, chegando até a ter por um período
experimentado drogas ilícitas como maconha e cocaína. Esse rapaz foi morar na
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casa da mãe dele. Eles tinham uma vida sexual muito ativa e durante todo o tempo
que passaram juntos nunca usaram preservativo. Ele afirmou que sabia da
existência da AIDS, mas que não parecia ser uma realidade no Brasil, pouco se
falava no assunto e eles tendo como pressuposto a fidelidade, achavam que
estavam protegidos desse vírus. Como ele próprio explicou:
“... ainda era uma coisa muito distante (a AIDS) e eu não me prevenia. Nunca
usei camisinha nesse meu relacionamento de cinco anos, depois só, mas era
questão de fantasia, ah! bora transar de camisinha e tal. Mas não por causa da
prevenção. Não. Vamos usar a camisinha porque a gente precisa se prevenir.
Porque até então a gente acreditava muito naquela questão da fidelidade, que a
gente se amava, se gostava muito, então a gente é, ia muito por essa idéia aí,
nunca vou pegar nada, nunca vou pegar algum tipo de doença porque eu só
transo com ele.” (sic)
Para ele e o parceiro a fidelidade implicava numa exclusividade que ia do
sentimento ao pensamento, como ele próprio colocou:
“Pra gente era do sentimento, ao pensamento, as ações, tudo, tudo, tudo era
exclusivo nosso” (sic)
A fidelidade foi tão presente nesse caso que parecia não fazer a menor
diferença se havia uma doença transmissível sexualmente que podia matar, para
eles o perigo foi simplesmente ignorado como algo importante em suas vidas, como
pode-se notar no discurso do sujeito:
“.... não existia nem aquela questão da possibilidade de se trair porque a gente
sempre tava junto. Então, a gente sempre confiava nisso, eu sempre tô com ele e
ele comigo então não tem como um dar uma escapadinha pro lado. Então, a
gente sempre mesmo que desse aquela idéia de que a AIDS tá chegando, taí e tal,
mas não, comigo não, porque tem aquela história com todo mundo acontece, mas
comigo não.” (sic)
Com o decorrer do tempo surgiram as brigas devido ao ciúme e ao
envolvimento com drogas tornando a situação insuportável ao ponto de haver
agressões físicas. As “traições” e uma rotina de constante desentendimento levou o
término desse relacionamento.
Logo após um tempo se envolveu novamente com um parceiro estável e não
adotou o uso do preservativo. Esse fato ele descreveu da seguinte forma:
“Eu comecei com essa figura de um ano e dois meses, mas a gente não usava,
mas eu já tinha consciência, eu já sabia que era preciso usar,” (sic)
Nunca houve uma conversa franca e aberta sobre a fidelidade dos dois, o
assunto só era tocado em tom de brincadeira. Até por acreditar ter sido traído o
entrevistado para dar “troco” se envolveu em um relacionamento paralelo. Essa
“traição” mútua nunca foi discutida, porém a partir daí o uso da camisinha foi
adotado. Ter que usar o preservativo nessas circunstâncias despertou sentimentos
de incomodo pelo fato de, segundo o sujeito, saber que estava usando a casinha por
ter cometido um “erro”. Era como se usar a camisinha fosse o castigo. A “prenda” a
ser paga pela “traição” cometida.
O relacionamento acabou e hoje o entrevistado está sem parceiro afetivosexual estável, entretanto contou que durante esses anos que passaram, mesmo
não estando mais comprometido com seus antigos parceiros estáveis, de vez em
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quando ao se encontrar com eles manteve ou ainda mantém relações sexuais
desprotegidas. Possivelmente pelo fato de ainda estarem presentes sentimentos
amorosos que devolvem ao imaginário as representações de confiança, antes vivida.
Por fim, é interessante enfatizar que esse foi o único sujeito que falou
claramente de seus anseios e desejos de ainda poder travar um relacionamento em
que haja confiança e em que ele possa ficar novamente desobrigado de usar o
preservativo. Em suas palavras:
“o ser humano é uma eterna busca” e mesmo muitas vezes parecendo que falar
de fidelidade é uma coisa ultrapassada, que se tornou obsoleta, no fundo é um
desejo de todos “ter uma pessoa do lado, uma pessoa que seja fiel, uma pessoa
que te ame, que te dê carinho, que cuide de ti realmente.” (sic)
CONCLUSÃO
A análise dos depoimentos obtidos demonstrou como a prevenção, em algum
momento da vida de uma pessoa informada sobre a AIDS e consciente das forma de
contaminação do vírus HIV, pode ser rompida em função da articulação de
significados imaginários presentes na vida de um homem. Esses significados, que
podem atuar de maneira fantasiosa, nesse trabalho “mostraram seu outro lado” ao
se revelarem participantes, também, de forma muito real e concreta nas ações
cotidianas de uma pessoa.
Os dados obtidos permitem considerar que a fidelidade e o risco de
contaminação do vírus HIV nos relacionamentos estáveis entre homens
homoeroticamente orientados se interrelacionam da seguinte forma: a representação
do vírus por mais ameaçadora que seja, sucumbe frente à crença ou à esperança de
que, ao se relacionar afetivo-sexualmente com uma pessoa que se ama e que se
supõe seja fiel, se estaria protegido do risco de contaminação do HIV.
Assim, pode-se dizer que, a luta pela prevenção da AIDS foi desafiada por
uma nova barreira. Uma “barreira imaginária” chamada - fidelidade, a qual operou
uma redução ou eliminação imaginária dos riscos de contaminação nas práticas
sexuais desprotegidas dos entrevistados.
Através do pensamento de que a fidelidade era uma proteção à contaminação
os entrevistados se expunham de maneira deliberada a práticas sem o preservativo,
só reassumindo o senso do perigo que corriam quando havia uma “traição”. Ser
traído quebrava o pacto de fidelidade e os redimensionava dentro da situação de
risco.
As significações imaginárias dos amantes em torno da prática sexual acabam
conduzindo suas ações, pois os vários sentidos atribuídos à fidelidade e a
importância dela dentro do relacionamento eram fundamentais no grau de exposição
ao vírus.
As implicações que o uso do preservativo tem, as dificuldades em conciliar a
idéia de confiança, fidelidade, exclusividade sexual, desconfiança possivelmente
foram “lugar-comum” a todos os sujeitos dessa pesquisa.
A fidelidade é um valor cultural muito articulado e enraizado dentro da cultura
Ocidental e o imaginário responsável pela apropriação de sentidos culturalmente
definidos e atribuição de significados próprios, acaba colaborando para que,
utilizando a fidelidade como sinônimo de sinceridade e/ou exclusividade física, a
prevenção acabe sendo burlada.
Essa pesquisa demanda uma reflexão, na medida em que demonstra que
pessoas envolvidas afetivo-sexualmente de maneira estável, em função de estarem
restritas a um único parceiro sexual e/ou acreditarem no pacto de fidelidade
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amorosa, podem ter a sensação de estarem praticando o dito “sexo seguro” mesmo
sem o uso do preservativo.
Isso expõe e compromete não só as pessoas que vivem um relacionamento
afetivo-sexual estável para uma reelaboração de suas práticas sexuais, mas acima
de tudo a sociedade em geral que precisa rever seus conceitos para que o uso do
preservativo seja ressignificado pelo imaginário não como um empecilho ou
obrigação na vida sexual, mas como um cuidado com o próximo: Um gesto de amor.
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