_____________________________________________________________________________________ INTRODUÇÃO Inúmeros processos no campo da informação governamental que hoje se vivem em Moçambique, e com os quais nos vimos confrontados, mergulham as suas raízes no caráter autoritário e patrimonialista que permearam e ainda permeiam a construção do Estado moçambicano. Esses processos se encontram arraigados em diferentes segmentos e atores institucionais do processo decisório, seja em nível central, seja setorial, inclusive no setor da informação – o que torna mais grave estruturar a sua perspectiva – em que a capacidade de influenciar depende dos interesses envolvidos e não da razão como fundamento do conhecimento. A ausência de estruturas de informação estatais e o caos informacional que assola a administração pública, em alguns casos, não resultam da falta de conhecimento técnicoprofissional da informação, mas da necessidade da manutenção de estratégias de poder e de interesses patrimonialistas e corporativistas. A título de exemplo, o Governo moçambicano instituiu um sistema nacional de arquivos em 1992, cujo processo de implementação não tem conhecido avanços, senão somar fracassos em meio de acusações entre os atores institucionais envolvidos. De um lado, encontra resistências político-administrativas para a sua implantação nos diferentes órgãos da administração estatal e, de outro, o seu coordenador central – o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) – não foi capaz até hoje de formular um modelo de gerenciamento de informação arquivística – mesmo de caráter interno – que servisse de protótipo a ser implementado no setor público como um todo. É nesta área que, progressivamente e de forma muitas vezes contraditória, se vão avolumando as discrepâncias em relação à informação governamental em Moçambique, quer em termos de seus 10 pressupostos político-ideológicos, quer no campo técnico-científico voltado para a gestão de recursos e processos técnicos da informação. As contradições inerentes a este quadro e a divergência de opiniões entre os diversos atores envolvidos têm aumentado de forma significativa o nosso interesse em torno do fenômeno informacional em Moçambique. Em nossa condição de arquivista a serviço do AHM, poucas vezes, porém, tivemos oportunidade de atuar diretamente no setor público em nome desta instituição. Maior parte da nossa atuação neste setor ocorre por iniciativa individual através de ações de consultorias. Em contrapartida, afetos (colocados) no setor de informática desta instituição arquivística de caráter nacional, tivemos a oportunidade de participar – em representação ao AHM – em diferentes debates públicos sobre iniciativas que envolvessem as tecnologias de informação, entre outros programas. Foi nesse quadro em que pudemos participar – a título de colaboração – nos debates da Agenda 20251 que, infelizmente, abandonamos2 por não concordar da perspectiva dada à questão da informação. As tentativas de colocar esse tema de forma mais ampla e abrangente na pauta dos debates foram frustradas. Prevaleceu a abordagem que trata a informação apenas dentro da perspectiva da comunicação social e da cultura, sem que houvesse consideração do papel da informação na solução de problemas e como recurso ao desenvolvimento, a partir do qual podia se pensar numa perspectiva para a área da informação em geral. Igualmente pudemos participar – em nossa condição de funcionário do AHM – em alguns seminários3 que precederam ou sucederam à institucionalização da Política de 1 Trata-se de um documento elaborado, a princípio, de forma independente, apartidária e profissional por um grupo de cidadãos, representando os mais variados setores da sociedade. O mesmo propõe-se como “um guião nacional para governados, governantes, profissionais, diversas organizações da sociedade civil e, em suma, de toda a Nação e dos parceiros de cooperação, na abordagem da problemática de desenvolvimento de Moçambique até ao ano de 2025” (AGENDA 2025, 2003, p. 134). 2 Decisão pessoal tomada individualmente depois de esgotar todas as possibilidades de representar o AHM e a área de informação. 3 Entre os eventos destaca-se o Seminário Nacional sobre a Política de Informática, que teve lugar de 16 a 17 de junho de 1999, o Simpósio Internacional sobre a Estratégia de Implementação da Política de Informática entre os dias 3 a 5 de outubro de 2001 e o Workshop sobre a Estratégia de Implementação da Política de Informática, todos realizados em Maputo. Nós participamos nestes dois últimos eventos. 11 Informática que veio introduzir oficialmente o discurso da sociedade da informação no país. Nesse contexto que se convencionou chamar de sociedade da informação e que emergiu nessa política, novos desafios se apresentaram. E essa circunstância nos leva a indagar: como se configura a questão da informação no novo discurso da sociedade da informação dominada pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC’s)? O reconhecimento desse desafio retoma um percurso iniciado com o processo que nos conduziu à elaboração da monografia de graduação em arquivologia pela Universidade Federal Fluminense intitulada “A política e o Sistema Nacional de Arquivos”, em 1999, na qual o Sistema Nacional de Arquivos é concebido como uma das formas de operacionalização de uma política de informação arquivística. Nestas circunstâncias em que o diálogo do percurso anterior não cessou de inquietar-nos e no qual se somam novos desafios, começaram então, a ocorrer, ainda que de forma difusa, as principais indagações sobre a natureza das relações entre o fenômeno informacional e a sociedade. Tais indagações viriam a consolidarse, até tomar a atual feição que configura este estudo, após sucessivas conversas com o Professor José Maria Jardim. Uma das questões que passou a ocupar um lugar central em nossas preocupações diz respeito aos mecanismos de mediação da informação no âmbito das relações entre Estado e sociedade moçambicanos num contexto marcado pela fragilidade de práticas, estruturas e recursos de informação e que agora são propostos no plano virtual – governo eletrônico. Entendemos que esses mecanismos de mediação informacional constituem uma conquista da democracia moderna na configuração das relações entre o Estado e a sociedade civil e se aplicam também na ampliação da esfera pública. Contudo, o Estado vale-se deles como instrumentos e para objetivos de poder. Reconhecido, de forma inequívoca, que a mediação informacional assente em estruturas e políticas de informação constitui uma das condições 12 para a efetividade da relação entre o Estado e a sociedade civil, essas estruturas e políticas simplesmente inexistem no contexto moçambicano. Um dos espaços onde se podem conformar relações entre Estado e sociedade civil com características mais marcantes da referida mediação informacional é o governo eletrônico. Em princípio, este apresenta traços fortes de uma política pública. Traços esses que, com maior ou menor grau, parecem configurar uma estrutura e política de informação no plano virtual, mas que, no caso moçambicano, o projeto de governo eletrônico, em suas políticas, não apresenta esta perspectiva. Em nossa proposta de pesquisa analisamos a essência das relações entre Estado e sociedade civil no que se refere à mediação informacional como um aspecto que resulta da perspectiva de formulação e implementação de políticas públicas de informação capazes não somente de orientar os processos de gerenciamento e acesso à informação, mas também de garantir a governança e o uso social da informação. Assim, nosso objetivo geral é examinar/estudar a informação governamental na sua dimensão política, social e técnico-científica, tendo em vista as relações dos diferentes atores e agências envolvidos na formulação e implementação do projeto de governo eletrônico em Moçambique e o reflexo dessa política sobre a governança e o uso social da informação, visando especificamente: • Identificar os atores e agências envolvidas na política de governo eletrônico em Moçambique e mapear o contexto institucional em que se relacionam; • Identificar os fatores que configuram ou não a institucionalização das políticas públicas de informação em Moçambique; • Verificar/avaliar em que medida a proposta de governo eletrônico de Moçambique se conforma ou não como uma política pública de informação, 13 particularmente no que se refere ao acesso à informação e à oferta de serviços à sociedade como aspectos inerentes à noção de governança; • Apreender as representações expressas nos documentos que consubstanciam o projeto de governo eletrônico em Moçambique sobre a questão da informação na sua dimensão política, social e técnico-científica; • Discutir a relação que envolve as políticas públicas de informação, governança e uso social da informação; • Obter um novo enfoque da relação informação e política, com o intuito de oferecer subsídios que ajudem a repensar as relações dos profissionais da informação com o Estado moçambicano. O objeto de estudo da nossa proposta de pesquisa é o projeto de governo eletrônico de Moçambique concebido como uma dimensão informacional que envolve produção, estocagem, disseminação, atores e agências de informação, tendo em vista as condições que definem a governança e o uso social da informação. A abordagem do nosso objeto de pesquisa insere-se no âmbito de um esforço de construção que busca um enquadramento teórico do mesmo no contexto da reflexão sobre políticas públicas de informação. A escolha do tema justificou-se, em primeiro lugar, pelo fato de que, não obstante a proposta de governo eletrônico ser um projeto associado à noção de sociedade da informação – uma representação um tanto contraditória, mas que oferece e constitui um espaço de reflexão em torno da questão da informação e que se potencializa com o uso da tecnologia para veicular essa informação –, torna-se um lócus privilegiado para o estudo da questão da informação e da estruturação das políticas públicas. É essencial frisar, contudo, que este não é um estudo sobre o projeto de sociedade da informação em Moçambique e muito menos sobre seus impactos, sendo resgatada apenas a título de referência – nos moldes previamente explicitados – na medida em que as iniciativas 14 de constituição de governo eletrônico se estruturam a partir dessa representação. Outro aspecto, nesse sentido, refere-se à questão tecnológica que é recorrente ao longo desta pesquisa em função de sua ligação inegável à constituição do governo eletrônico. No entanto, essa questão não se constitui em questão central desta pesquisa. Ela será usada tanto quanto for necessário para explicitar questões inerentes às suas inovações, modificações e impactos em relação ao uso da informação e suas demandas no contexto do discurso da sociedade da informação. Ao problematizar a questão da informação que perpassa o projeto de governo eletrônico em Moçambique, estima-se que o nosso estudo possa revestir-se de uma certa utilidade para os profissionais da informação e de outras áreas afins, servindo, ainda que modestamente, como suporte para novos estudos e abordagens bem como para repensar a informação governamental em Moçambique. Considerando o quadro histórico ao qual o objeto está referido, o estudo proposto mostra-se relevante também como uma singela contribuição para a formulação de políticas públicas de informação, estimulando o estabelecimento de mecanismos de mediação da informação nas relações entre Estado e sociedade civil, num contexto de aprofundamento da cidadania e do aprendizado democrático em curso no país, como desafios que se impõem no seio da sociedade moçambicana. Paralelamente, entende-se que o discernimento das políticas públicas de informação no quadro do governo eletrônico subsidiado pelos princípios da ciência da informação pode favorecer a representação desse segmento das políticas públicas no âmbito da noção da sociedade da informação e contribuir para responder às expectativas inerentes à questão da informação na nova representação da sociedade. A informação governamental no quadro do governo eletrônico como um pressuposto histórico referido no contexto da construção do Estado dentro do novo discurso da sociedade 15 da informação, faz jus ao resgate da dimensão histórica do Estado moçambicano. Este resgate faz-se essencialmente mediante o reconhecimento das suas principais características e trajetórias em sua constituição, desde 1975. Sob o comando da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) – partido no poder – o Estado moçambicano surge e vem se estruturando a partir de 1975, ano da conquista da independência nacional. Desde então, o seu percurso foi, num primeiro momento, marcado, sobretudo, pela ideologia política marxista do Partido Frelimo e por seus ideais revolucionários triunfantes, que se fizeram sentir em todos os setores da sociedade moçambicana e que repercutiram sobre as primeiras tentativas de reformas do Estado. Em um segundo momento, a trajetória do Estado, ainda sob a batuta do Partido Frelimo, se expressa pelo deslocamento da orientação político-ideológica do partido para uma abertura política a partir de 1989, seguida pela adoção do modelo capitalista de economia de mercado com a promulgação de nova constituição, em 1990. Tanto em um quanto noutro período, o Estado moçambicano implementou reformas que, em sua maioria, resultaram mais em fracasso do que em sucesso. O fracasso das reformas está intimamente associado às características que permeiam a gestão dos interesses estatais que muitas vezes se confundem com os interesses partidários e particulares. Não só a isso, como também à extrema fragilidade da capacidade estatal e institucional na definição e implementação de políticas públicas. Reconhecendo a trajetória da construção do Estado e sociedade moçambicanos, particularmente, a partir de 1975, este estudo prioriza o período 2000-2005. Esta opção justifica-se em função do debate iniciado em 2000, voltado para a introdução do que se convencionou chamar de sociedade da informação em Moçambique e que tem o projeto de governo eletrônico como um dos seus desdobramentos. Acrescenta-se também, o processo de consolidação do aprendizado democrático e de reforma em curso. Nesse período, forja-se o 16 discurso de revitalização de estruturas e processos de prestação de serviços públicos; de políticas públicas; de recursos humanos; da gestão financeira; e de governança e combate à corrupção. Destarte, essa reforma e as iniciativas de governo eletrônico não estão a salvo dos insucessos das iniciativas anteriores de reforma e das características que estimularam tais fracassos. Haveria um projeto político-social para reverter tais características e assim eximirse da reprodução dos fracassos? A forma negativa como as práticas e estruturas de informação foram representadas em tais experiências reformistas teriam colaborado para o fracasso das mesmas? Qual seria o papel da informação na relação entre o Estado e a sociedade civil? Através dos questionamentos acima suscitados, percebemos que a dimensão da informação no quadro do governo eletrônico oferecia várias possibilidades de pesquisa. Entretanto, optamos por concentrar nossa questão de pesquisa nos moldes que se seguem abaixo. A informação governamental que norteia os programas e ações governamentais no panorama moçambicano, em particular o projeto de governo eletrônico de Moçambique, não está explicitada. A falta de nitidez na questão da informação é evidenciada pela fragilidade de recursos e estruturas de informação e reiterada pela ausência de políticas públicas de informação que tendem a padecer de uma institucionalização igualmente precária. Como conseqüência disso, a dimensão da informação que envolve tais programas suscita questionamentos se considerarmos a informação governamental como fator otimizante dos mesmos e que apresenta relação com a capacidade governativa. Diferentemente de outros países como o Brasil – apontado por Jardim (1999) – onde as políticas públicas de informação tendem a ser um tema contemplado em menor escala, em Moçambique não se pode falar nem em menor escala. Além de não existirem estudos sobre este tema, faltam ações que sinalizem a existência deste segmento das políticas públicas em nível nacional ou setorial, com o agravante da existência de uma ineficiência governamental 17 na formulação e monitoria de políticas públicas em geral, ou seja, o Estado atuando com dificuldades em termos de eficácia e governança. A política do governo eletrônico em Moçambique reproduz e mantém essa contradição, ou seja, ainda que esteja definida a informação priorizada para a composição do projeto de governo eletrônico, a dimensão política, social e técnico-científica da informação que o perpassa não está consubstanciada em práticas, estruturas e políticas de informação. Esta situação reitera-se pela ausência de elementos que possam abonar a existência de políticas públicas de informação em nível setorial, regional ou nacional, como sejam: políticas de informação formalmente formuladas, anunciadas e implementadas; conhecimento consolidado sobre políticas de informação e; situação contrária à atual precariedade das instituições da área da informação. A persistência dessa perspectiva resulta no comprometimento da capacidade instrumental do Estado em um dos seus sustentáculos de poder – a informação, por um lado e, por outro, a insustentabilidade do projeto de governo eletrônico, tanto como um projeto que se estrutura em torno da chamada sociedade da informação, atrelado à capacidade governamental sob foco no uso das tecnologias de informação e comunicação e com funções recíprocas de governo para com a sociedade, quanto como extensão do governo real com uma dimensão política e cívica chamada “governança eletrônica”. Considerando os aspectos acima apresentados, os nossos pressupostos são os de que, em níveis gerais, o projeto de governo eletrônico de Moçambique não constitui uma política pública de informação e, como tal, não se mostra capaz de articular e servir às relações entre o Estado e a sociedade moçambicanos. A dimensão da informação expressa em sua formulação tem como paradigma as experiências dos outros programas governamentais que o precederam ou que ainda estão em 18 curso, e cuja essência reflete uma fragilidade de recursos e estruturas de informação, sendo caracterizada pela ausência de políticas públicas de informação. A profundidade desses pressupostos e das questões levantadas em torno dos mesmos não está vinculada somente ao desenvolvimento deste trabalho, mas também e principalmente, às experiências acima referidas, que foram acumuladas em nossa condição de profissional da informação no cenário moçambicano. Diante do novo cenário moçambicano de construção do governo no plano virtual – governo eletrônico –, associado à conformação do discurso da sociedade da informação em nível mundial, verifica-se uma demanda pela transformação do Estado e sociedade moçambicanos em suas formas de lidar com a questão de informação. Nesse sentido, analisamos o processo de construção do projeto de governo eletrônico em Moçambique a fim de apreender a representação que a sua política faz dos recursos e estruturas de informação, avaliar em que medida a lógica do processo de sua constituição está articulada com o momento histórico que o produziu, bem como com a posição que ocupa na mediação das relações entre Estado e sociedade civil. Ao tomarmos conhecimento das representações que a política do governo eletrônico em Moçambique faz das políticas públicas de informação, comprovamos o grau de fundamentação da noção de governo eletrônico como uma política pública capaz de promover boas práticas de governança e contribuir para uma mudança profunda na estrutura de governo, mediante o aumento de eficiência, transparência e desenvolvimento, bem como o provimento democrático de informações para decisão e cidadania. A essência da problemática estabelecida nesta pesquisa foi a de verificar a nitidez da dimensão da informação no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique que repousa, de um lado, no uso social do bem em questão, no caso, a informação e, de outro, nas 19 suas implicações na capacidade governativa, tendo em vista o aprofundamento da cidadania e do aprendizado democrático. A orientação metodológica que sustenta esta pesquisa enquadra-se na abordagem qualitativa, sendo constituída com base num referencial teórico-metodológico que supõe o Estado como uma dimensão analítica e que se consolida com a perspectiva da análise de políticas públicas de informação, repartida em três fases sucessivas: formulação, implementação e avaliação. Os procedimentos técnicos que norteiam este estudo situam-se no campo de análise bibliográfica e documental. Assim, a pesquisa, em sua fase bibliográfica, consistiu da seleção e levantamento do material em forma de livros e artigos – a maioria – sobre o tema, publicados em língua inglesa, espanhola e portuguesa. Essa fase visava, em seus objetivos, a nossa familiaridade com o tema, num primeiro momento, após a primeira leitura do material, e, posteriormente, após a segunda leitura, contribuir como base para a construção do marco teórico conceitual e das diferentes categorias analíticas do nosso objeto de estudo. Em sua fase documental a pesquisa guiou-se de um levantamento consubstanciado pela seleção e identificação de documentos de tipo oficial – decretos, leis, resoluções, etc. – e técnico – estratégias, programas, planos de atividades, relatórios, documentos normativos, etc. – que configuram o nosso universo de pesquisa, publicados ou não. O universo empírico da nossa pesquisa compreende o projeto de governo eletrônico de Moçambique referido no âmbito dos diferentes programas e políticas governamentais inerentes à construção e reforma do Estado e sociedade moçambicanos. Ele foi analisado em suas políticas a partir dos diferentes atores e agências nele envolvidos, do contexto institucional em que tais sujeitos se relacionam e da informação governamental em suas dimensões política, social e técnico-científica, configuradas por práticas e estruturas de informação. Neste sentido, por informação governamental, entende-se toda aquela de natureza 20 pública, produzida e acumulada por instituições governamentais, em razão mesmo de suas funções e atividades. Em relação ao governo eletrônico entendemos, entretanto, que seu foco incide sobre a informação governamental, de domínio público ou não. Os dados sobre o objeto empírico foram coletados junto aos principais atores institucionais voltados para a política do governo eletrônico em Moçambique – a Unidade Técnica de Reforma do Sector Público (UTRESP) e a Unidade Técnica de Implementação da Política de Informática (UTICT) –, através de levantamento feito direta ou indiretamente com os agentes das duas unidades, cuja escolha foi ocasional, circunstancial ou intencional, sem planejamento antecipado. Trata-se de um levantamento preliminar que ocorreu entre janeiro e fevereiro de 2006 e compreendeu uma conversa informal com agentes ligados às duas principais instituições de implementação da política do governo eletrônico – UTRESP e UTICT – para a compreensão dos aspectos organizacionais e a obtenção dos principais documentos. Esse levantamento preliminar foi complementado por outro (não presencial feito em ambiente virtual) que o antecedeu e decorreu até o fim da pesquisa, tendo como palco os sites dos órgãos governamentais presentes na Internet, em particular o da Comissão para a Política de Informática (www.infopol.gov.mz), cujas visitas foram mais freqüentes para acompanhar as notícias e demais desenvolvimentos sobre o tema. Não foi usado nenhum instrumento específico para coleta dos dados, tendo sido privilegiada a análise de documentos e o acompanhamento das ações em curso no âmbito dos diferentes projetos que compõem o projeto de governo eletrônico de Moçambique ou a ele referido, através de visitas constantes aos sites oficiais na Internet. Nesse contexto, foi usado, de forma informal, o e-mail como meio de comunicação com os agentes envolvidos nos vários projetos, quer para buscar novas informações, quer para esclarecer dúvidas que foram surgindo ao longo do desenvolvimento da pesquisa. 21 A organização dos dados deu-se a partir da leitura do material feita em dois momentos, cuja essência permitiu identificar temas e temáticas mais freqüentes, bem como aspectos significativos que configuram o universo da pesquisa, dos quais, de acordo com o objetivo do estudo, alguns foram destacados para posterior análise. A análise dos dados foi feita de acordo com o referencial teórico ou conceitual adotado nesta pesquisa, cujas indicações precisas sobre as dimensões e categorias de análise ou as relações esperadas entre as variáveis estudadas foram devidamente definidas no referido marco teórico-conceitual. Como foi descrito inicialmente, a leitura e análise do material bibliográfico forneceu a base para a construção do referencial teórico-conceitual. Já a leitura e análise do material documental colaborou no sentido de mapear os atores e agências envolvidas na política do governo eletrônico em Moçambique, o contexto institucional em que tais sujeitos se relacionam e verificar os procedimentos de representação da dimensão política, social e técnico-científica da informação governamental em relação às práticas e estruturas de informação e à própria formulação e implementação de políticas públicas de informação. Assim, algumas determinações fundamentais se destacaram nessa análise, como sejam a conjuntura sócio-econômica e política do país (Moçambique) e a história e política do projeto de governo eletrônico em Moçambique como primeiro nível de nossa interpretação ao qual segue o segundo (nível de interpretação), baseado no encontro com os fatos que surgem com a operacionalização da pesquisa. Esta operacionalização foi consubstanciada no mapeamento de todos os dados obtidos (organização e leitura do material), no questionamento sobre os dados com base na fundamentação teórica (leitura exaustiva e repetida do material para estabelecer interrogações e identificar aspectos relevantes) e no estabelecimento de articulações entre os dados e os referenciais teóricos da pesquisa, tendo como foco a resposta às questões da pesquisa baseadas nos objetivos da mesma. 22 Expresso o estudo nesses moldes, no segundo capítulo4 formulam-se os marcos teóricos que fundamentam a nossa pesquisa, traçando-se a relação entre Estado e informação. Esta relação é discutida através de um referencial teórico de autores que têm analisado o Estado como objeto susceptível de pesquisa. Assim, o enquadramento da dimensão teórica do Estado faz-se mediante a inserção deste numa lógica relacional historicamente construída e com a introdução e o mapeamento da dimensão simbólica do poder estatal baseada em informação. Buscando o entrecruzamento da dimensão teórica do Estado com a perspectiva de formulação, implementação e avaliação de políticas públicas de informação e a definição dos contornos do nosso objeto de estudo, o terceiro capítulo apresenta abordagens conceituais sobre políticas públicas de informação. Assim, este capítulo, define o escopo e abrangência de uma política pública de informação, discutindo os termos informação e política como elementos que compõem esta noção que é consolidada no âmbito da análise das políticas públicas. A partir dessa perspectiva, discute-se a trajetória histórica que acompanha as políticas de informação em sua configuração tanto como expressão da ação estatal quanto como área de pesquisa científica no âmbito da ciência da informação. O quarto capítulo apresenta os argumentos que vêm norteando a formulação de projetos de governo eletrônico nos últimos anos, como conseqüência do avanço das tecnologias de informação e comunicação e da noção da sociedade da informação inerente ao referido avanço nos países do capitalismo central e a imposição do discurso desta noção nos países periféricos, dedicando-se ao estudo dos principais aspectos relacionados à emergência e conformação da noção de governo eletrônico e suas características. Com base nos eixos teóricos esboçados nos capítulos dois e três, investiga a dimensão informacional no quadro da noção de governo eletrônico e identifica os elementos que configuram esta noção no contexto da mediação das relações Estado e sociedade civil. 4 O primeiro capítulo coincide com esta parte introdutória da dissertação que anuncia o problema e descreve os aspectos metodológicos da pesquisa. 23 No quinto capítulo apresentamos o quadro institucional e político-organizacional do Estado moçambicano e o contexto da construção do projeto de governo eletrônico em Moçambique. Neste contexto, levantam-se alguns elementos no âmbito da construção do Estado moçambicano, mapeando os principais programas e políticas governamentais que moldaram a sua constituição como Estado a partir de 1975 e as alterações que caracterizaram o seu percurso. A partir dos elementos identificados nesta trajetória, caracteriza-se a dimensão da informação do Estado moçambicano, tendo como pano de fundo as possibilidades de participação da sociedade civil, de existência ou não de estruturas concretas e de políticas de informação, como elementos fundamentais na configuração do atual projeto de governo eletrônico em Moçambique. A partir dos marcos teóricos formulados e discutidos nos capítulos dois e três e consolidados no quarto capítulo com a explicitação da noção de governo eletrônico, o sexto capítulo analisa a dimensão da informacional governamental e sua mediação na construção do projeto de governo eletrônico em Moçambique, destacando os principais aspectos da pesquisa. Nas considerações finais sistematizam-se as principais constatações da pesquisa e sugerem-se novos percursos para subsidiar o desenvolvimento da informação governamental e da respectiva área em Moçambique. 24 C AP Í TU LO 2 _____________________________________________________________________________________ ESTADO, GOVERNO ELETRÔNICO E INFORMAÇÃO: NOVOS ESPAÇOS, VELHOS DILEMAS NA MEDIAÇÃO INFORMACIONAL A abordagem da dimensão da informação no quadro do governo eletrônico lança-nos defronte e aproxima-nos bastante de um aspecto central do Estado: o “capital informacional” que, conforme Bourdieu (1994) constitui um capital propriamente estatal voltado para o exercício do poder. Sob esta perspectiva e tendo em vista o corpus tal como está sendo constituído nesta pesquisa, formulam-se duas chaves interpretativas - a categoria de Estado e a de políticas públicas de informação - a partir das quais um conjunto de referências teóricas emerge em torno do nosso objeto. A opção teórica do Estado como uma categoria analítica leva em conta as contradições que emergem das relações entre o Estado e a sociedade e que encontram profundidade sobre os mecanismos de mediação informacional. Justifica-se, então, a partir deste último aspecto, a adoção das políticas públicas como segunda chave interpretativa. Voltado para a construção dos marcos teóricos que embasam a nossa pesquisa, este capítulo se estrutura em torno de um esforço de construção que busca o enquadramento da dimensão teórica do Estado como uma relação e como um campo informacional. Estas dimensões são entrecruzadas com a abordagem das políticas públicas de informação, sugerindo a definição dos contornos do nosso objeto de estudo - governo eletrônico. Esta pesquisa constitui uma reflexão sobre políticas públicas de informação no quadro do governo eletrônico em Moçambique. Seu referencial teórico formula-se dentro dos pressupostos do Estado como relação em que Nicos Poulantzas se destaca como um dos principais representantes em sua formulação e articulação. 25 A partir dessa perspectiva e com ela, o Estado vislumbra-se em Jardim (1999) como um campo informacional, uma construção teórica que se esclarece em Bourdieu em torno do que designa de “capital simbólico” - como um capital propriamente do Estado e no qual se destaca o “capital informacional” - e em Giddens (2001) na sua perspectiva de Estado informacional. As duas perspectivas - capital informacional em Bourdieu e Estado informacional em Giddens – ressaltam, em conjunto, a questão da informação como um aspecto que permeia a mediação das relações de poder do Estado. A concepção do Estado como relação e sua reformulação como campo informacional desloca-se ao domínio específico do governo eletrônico. Em sua formulação mais ampla e no contexto dos aspectos que condicionam o seu progresso o governo eletrônico é concebido como uma política pública. E, numa formulação particular, em que se afigura como um território relacional de produção, armazenagem, uso e disseminação de informação ele é definido como uma política pública de informação. Além de sua concepção teórica como uma política pública o governo eletrônico é referido dentro da sua perspectiva histórica cuja origem está atrelada à noção de sociedade da informação. Resgatando a noção da sociedade da informação nestes moldes, a pesquisa reconhece a existência de duas abordagens distintas sobre os seus fundamentos teóricos. Sem se deter em tais fundamentos da sociedade da informação, a pesquisa concebe esta noção como um campo de reflexão que se estrutura em torno da questão de informação e que se potencializa com o uso intensivo da tecnologia para veicular o seu objeto estrutural – a informação. Trata-se de um referencial teórico ou conceitual fundamentalmente interdisciplinar que compreende a área de análise das políticas públicas dentro da ciência política, buscando os três momentos de políticas públicas – formulação, implementação e avaliação. Além disso, a área de administração também se faz presente neste referencial como campo específico de aplicação das políticas públicas e de produção e gestão da informação. A arquivologia se 26 constitui numa referência igualmente obrigatória na medida em que o governo eletrônico compõe-se, essencialmente, de informação de caráter arquivístico. A perspectiva da ciência da informação - como área de maior concentração da pesquisa - que embasa o estudo orienta-se para os aspectos informacionais na sua dimensão política, social e técnico-científica, cuja demanda exige a formulação e implementação de políticas públicas de informação para orientar a operacionalização da questão da informação no domínio do Estado e deste, na sua relação com a sociedade civil. Estado como relação O primeiro marco teórico dirige o foco da pesquisa para o Estado em suas relações de poder. Jardim (1999) analisa os trabalhos de Gramsci e Poulantzas para fundamentar a dimensão teórica de seu estudo, numa perspectiva de flexibilização das “relações entre os planos ideológico-político e econômico” e, a partir de uma vertente sociológica expressa nas reflexões de Bourdieu reconhece “o simbólico como espécie peculiar de poder”. Carnoy5 (1990) citado por Jardim (1999, p. 33-34) afirma que: Gramsci compreende o Estado como ‘todo o complexo de atividades práticas com o qual a classe dominante não somente justifica e mantém seu domínio, mas procura conquistar o consentimento ativo daqueles sobre os quais exerce sua dominação’ (...) Como tal, “o Estado é a sociedade civil (infra-estrutura em Marx e Lenin) mais a sociedade política: uma hegemonia revestida de coerção (Idem). Para Mendonça (1996, p. 2) o Estado é: (...) uma condensação de relações sociais cristalizadas numa dada ossatura material, junto à qual se inscrevem grupos e/ou seus agentes, previamente organizados ao nível da sociedade civil, em busca do monopólio do uso 5 CARNOY, Martin. Estado e teoria política. Campinas : Papirus, 1990. 27 legitimo não somente da violência física, mas também daquela de cunho simbólico sobre o conjunto da sociedade a ele correspondente. (Idem). Esta definição inspira as reflexões do Estado de Bourdieu sobre o poder simbólico e amplia a fórmula de Max Weber, encontrando-se referida, em parte, igualmente, no trabalho de Jardim numa perspectiva de Poulantzas. Um aspecto que sobressai nas duas definições é o Estado como produto da relação entre sociedade civil e sociedade política numa perspectiva em que a primeira refere-se à noção de legitimidade e a segunda ao exercício de coerção. Jardim distingue sociedade civil e sociedade política como: (...) duas dimensões no interior das superestruturas [nos seguintes termos]: a sociedade civil refere-se às instituições ‘responsáveis pela elaboração e/ou difusão de valores simbólicos, de ideologias, compreendendo o sistema escolar, as Igrejas, os partidos políticos, as organizações profissionais, os sindicatos, os meios de comunicação, as instituições de caráter científico e artístico etc.’, (...) [enquanto] a sociedade política designa os aparelhos coercitivos, ‘encarnados nos grupos burocráticos ligados às forças armadas e policias e à aplicação das leis’, que garantem à classe dominante o monopólio legal ou de fato da violência do Estado. (COUTINHO6 apud JARDIM, 1999, p. 34). Jardim prossegue observando ainda que a sociedade civil constitui uma “esfera específica, dotada de legalidade própria, funcionando como mediação necessária entre a base econômica e o Estado em sentido estrito” (Idem). Segundo Bourdieu (1994, p. 97-98), o Estado ao exercer uma violência simbólica se encarna, simultaneamente, na objetividade, sob a forma de estruturas e mecanismos específicos, e também na ‘subjetividade’, sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e de pensamento. Implicitamente a questão da subjetividade reflete o conceito de hegemonia. Este conceito mereceu a atenção de Jardim e foi referido sob a perspectiva do Estado em Gramsci em que “o Estado moderno funciona por consenso e não somente por violência” (JARDIM, 1999, p. 34). Neste contexto, “O Estado é, simultaneamente, um instrumento para a expansão 6 COUTINHO, Carlos Nelson. Dualidade de poderes: introdução à teoria marxista de Estado e revolução. São Paulo: Brasiliense, 1987. 28 do poder da classe dominante pelos aparelhos de hegemonia (sociedade civil) e uma força repressiva (sociedade política) que mantém os grupos subordinados e desorganizados” (Idem). Jardim (1999) recorre a Chauí (1996) para esclarecer que a: (...) hegemonia não se trata de um sistema, doutrinação, manipulação ou um conjunto de representações, [e sim], um conjunto de experiências, relações e atividades cujos limites estão fixados e interiorizados, mas que, por ser mais do que ideologia, tem capacidade para controlar e produzir mudanças sociais [sendo que], na verdade, a hegemonia refere-se a um corpo de práticas e de expectativas sobre o todo social existente e sobre o todo da existência social: constitui e é constituída pela sociedade sob a forma da subordinação interiorizada e imperceptível. (CHAUI7 apud JARDIM, 1999, p. 35). Mendonça (1996) também aborda o conceito de hegemonia afirmando que ele emerge da reflexão gramsciana e: (...) conota a direção imprimida por um dado grupo ou fração de classe a toda a sociedade e, por isso mesmo, umbilicalmente ligada à única dimensão unificadora e organizadora de atores sociais em permanente estado de disputa explícita ou latente: a cultura. Deter a hegemonia, neste registro, significa deter e fazer valer um dado corpo de representações, valores, em suma, um código cultural aceito e partilhado, ainda que inconscientemente, por todos, malgrado desavenças ou mesmo conflitos, sendo estes últimos significativos da tentativa de construção do contra-hegemônico. (MENDONÇA, 1996, p. 4). Esta perspectiva mostra que o conceito de hegemonia resulta da cultura e está relacionado a uma das formas de funcionamento do Estado que engendra consenso, sugerindo disputas. Dentro das duas dimensões que compõem o Estado – sociedade civil e sociedade política –, a política como prática de Estado e a cultura como seu principal instrumento encontram-se imbricadas na busca da legitimidade do Estado através do exercício de direção e consenso em equilíbrio com a dimensão coercitiva que produz violência física. (...) na medida em que o Estado pode ser visto como um conjunto ampliado que engloba sociedade civil e sociedade política, política e cultura se imbricam de modo inextrincável junto ao permanente processo de configuração estatal, já que, para além da dimensão coercitiva das agências públicas destinadas à perpetuar a violência física, o Estado também é direção 7 CHAUÍ, Marlena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1996. 29 e consenso, caso contrário ver-se-ia em permanente crise de legitimidade. (MENDONÇA, 1996, p. 4). Nessa perspectiva, Mendonça (1996) destaca a relação entre legitimidade do Estado, hegemonia e cultura, explicitando que da mesma forma que não existe legitimidade do Estado sem hegemonia, igualmente, inexiste legitimidade sem disputas e sem a imposição vitoriosa de uma dada representação, tida como legitima, da sociedade. “Estado, hegemonia e cultura são, portanto, dimensões inseparáveis e intercambiantes de uma mesma problemática: a do exercício da dominação de classe e de reprodução social” (Idem). Para a interpretação das três dimensões, Jardim (1999, p. 36) sugere o conceito de aparelho de hegemonia - como “um conjunto complexo de instituições, ideologias, práticas e agentes (entre os quais os intelectuais) que só encontra sua unificação através da análise da expansão de uma classe” (MENDONÇA apud JARDIM, 1999, p. 36) -, referido à classe e consubstanciado em múltiplos subsistemas tais como o aparelho escolar, o aparelho cultural, a organização da informação. Comparando os Estados modernos com a polis clássica, os impérios e as variadas formas de organização política da Europa Medieval, Morris (2005) afirma que os primeiros constituem “uma forma de organização política com meios de administração e controle altamente centralizados [que], em teoria (...), são ‘soberanos’ em seus territórios e reivindicam o monopólio do uso de força legítima dentro desse espaço”. (Ibidem, p. 33). Para Weber: (...) Estado é uma comunidade humana que reivindica, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território, [sendo que] o direito de usar a força física é concedido a outras instituições ou a indivíduos somente na medida em que o Estado permite. O Estado é considerado a única fonte do ‘direito’ ao uso da violência’. (WEBER, 1974, p.98). Os Estados modernos ao “reivindicarem o monopólio do uso de força legítima” estariam a reclamar “uma variedade de poderes para si próprios” e negando-os para “nãoestados” (MORRIS, 2005, p. 35). Discerne-se, assim, a autoridade dos governos (como 30 agentes ou representantes dos Estados) e dos governantes. Na verdade, o que está colocado em jogo é a soberania: “uma certa autoridade exclusiva sobre o (...) domínio [do Estado] e uma certa independência de outros Estados” (Idem). Isto é, significa a ‘idéia de que existe uma autoridade política final e absoluta na comunidade’ (HINSLEY8 apud MORRIS, p. 69). Morris (2005) assume o caráter imanente do Estado ao afirmar que ele “... não é uma entidade, menos ainda um organismo com vida e vontade separadas daquelas de seus membros ...” (Ibidem, p. 37). Morris (2005) distingue Estado de governo. Segundo ele o Estado exprime “uma particular forma de organização política” (MORRIS, p. 45) e o governo se apresenta como “agente ou representante do Estado” (Ibidem, p. 44). O caráter contínuo daquele e a disposição deste para mudança também sobressai na reflexão deste autor que deixa claro que “mudanças de governo não necessariamente ameaçam a existência do Estado” (Idem). De forma sintética e prática, Joseph Raz9 (apud MORRIS, 2005, p. 45) distingue Estado, governo e Lei nos seguintes termos: “Estado (...) é a organização política de uma sociedade; seu governo, o agente por meio do qual atua, e a Lei, o veículo pelo qual muito de seu poder é exercido” (Idem). Com base em princípios explicativos, como a imanência, o nominalismo e a perspectiva relacional, Benites (2004) sugere a ausência de poder do Estado para reconhecer a existência de “práticas estratégicas de poder” (Ibidem, p. 276) sob a égide do governo para animar o Estado. O Estado seria “uma entidade, essência ou sujeito [que] não passa de uma ficção (...) tomado em precárias e conflituosas táticas governamentais (...) assentadas em estruturas administrativas relativamente fixas ou permanentes” (BENITES, 2004, p. 275). Jardim (1999) destaca nas reflexões de Poulantzas (1985) uma crítica que rompe com as concepções do Estado como Coisa-instrumento ou como Sujeito. 8 9 HINSLEY, F. H. Sovereignty, 2.ª ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1966, p. 30-31) RAZ, Joseph. MOrality of Freedome (Oxford: Clarendon Press, 1986), p. 70. 31 O Estado como Coisa: a velha concepção instrumentalista do Estado, instrumento passivo, senão neutro, totalmente manipulado por uma única classe ou fração, caso em que nenhuma autonomia é reconhecida ao Estado. O Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui como absoluta, é submetida à sua vontade como instância racionalizante da sociedade civil. ...Ela relaciona esta autonomia ao poder próprio que o Estado passa por deter e com os portadores desse poder e da racionalidade estatal: a burocracia e as elites políticas especialmente. ...Não se trata de opor uma concepção que considera o Estado como um aparelho a uma outra que o tem como uma simples relação de classe, mas de opor uma concepção instrumentalista do Estado-coisa àquela que o considera como a condensação material de uma relação de forças entre classes. (POULANTZAS10 apud JARDIM, 1999, p. 41). A referida ruptura resulta, segundo Jardim (1999, p. 41), no que Poulantzas chama de “equívocos inerentes às concepções do Estado como Coisa ou como Sujeito” e como tal, para superar esses equívocos, sugere que: • • • • • • • • • • • o estabelecimento da política do Estado-relação resulta das contradições de classe e frações do bloco no poder inseridas na sua própria estrutura; o Estado não é um bloco monolítico sem fissuras, mas um campo de batalhas estratégico; o Estado não é, portanto, um dispositivo unitário, calcado numa repartição homogênea dos centros de poder, ‘em escala uniforme, a partir do ápice da pirâmide para a base’; a contradição entre classes dominantes e dominadas não está situada fora do Estado; o Estado é um lugar e centro do exercício do poder mas não possui poder próprio; Estado é uma arena de lutas: o conflito se dá entre aparelhos de Estado e no interior de cada um deles; há uma autonomia relativa do Estado em relação a uma ou mais frações do bloco no poder, necessária para a organização da hegemonia; as contradições no seio do bloco no poder atravessam a própria burocracia e o ‘pessoal do Estado’; o Estado constitui um campo e um processo estratégicos, onde se entrecruzam núcleos e redes de poder; a unidade-centralização do Estado está inserida na sua ossatura hierárquica burocratizada; o Estado concentra, não apenas a relação de forças entre frações do bloco no poder, mas também a relação de forças entre estas e as classes dominadas: o Estado encontra-se imerso em lutas que o submergem constantemente. (POULANTZAS apud JARDIM, 1999, p. 42). Os eixos teóricos aqui apresentados permeiam a configuração das políticas públicas de informação, sua formulação e implementação no âmbito dos diferentes programas e projetos governamentais, inclusive no quadro do governo eletrônico em Moçambique. 10 POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1985. 32 Estado como campo informacional A relação entre Estado e informação se estabelece no contexto das relações de poder do Estado sobre os demais. Benites (2004) entende que é necessário analisar as relações de poder entre os indivíduos ou grupos e não o poder em si. As relações de poder são organizadas por um governo como tática para “produzir um processo de estatização” (MACEDO11 Jr apud BENITES, 2004, p. 281) baseado em mecanismos individualizantes e de totalização. De um lado, o poder individualizante, “moldava individualmente cada membro da população”, e de outro, a totalização “transformava aqueles sobre os quais exercia sua força em um corpo único (a população)” (BENITES, 2004, p. 291). Este seria um processo que fortalece o Estado Ocidental desde o século XVIII e que equivale ao que Benites chama de “governamentalização do Estado”. Este aspecto leva Benites (2004) a introduzir a noção de biopolítica para assinalar o “nexo entre o controle e regulação da vida dos indivíduos (o ‘governamento dos outros’) na atividade dos trabalhadores no serviço público e as práticas exercidas por esses mesmos trabalhadores sobre si (‘o governamento de si’) como forma de prender o trabalhador à sua própria identidade” (Ibidem, p. 290). A lógica usada por Benites é esclarecedor do trabalho burocrático como um dispositivo de segurança estratégico no “governamento” da população e de subjetivação na produção do sujeito. Nas palavras do próprio Benites, “entre as correlações de força existentes no espaço da burocracia, o exercício do ‘governo de si’ é condição para o exercício do ‘governo dos outros’” (BENITES, 2004, p. 290). 11 MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Foucault: o poder e o direito. Tempo Social, Revista Sociologia USP, São Paulo, v. 2, n. 1, p. 155-176, 1990. 33 É importante não perdermos de vista a preocupação central de Benites, ou seja, os mecanismos estatais de controle. Sob prisma do controle sobre os agentes estatais ele identifica o caráter heterogêneo do Estado que se consolida no universo burocrático (“multiplicidade de agentes sociais, aparelhos administrativos, saberes, técnicas, e estratégias...”) (Ibidem, p. 283) e das formas de poder que circulam e atravessam as fronteiras estatais. Recorrendo a Weber, Benites reconhece a burocracia como “produto evolutivo da crescente racionalização da vida social das sociedades ocidentais” e afirma basear-se em “normas que devem ser aplicadas a todo o grupamento social, afastando, assim, os elementos sensíveis (amor, ódio, etc.) e as influências tradicionais (riqueza, vínculos de amizade e parentesco, etc.) da gestão dos negócios”, ressaltando “a hierarquia na organização, a impessoalidade no relacionamento, a especialização de funções, o recrutamento por meio de critérios objetivos, a resolução técnica dos problemas” como suas características principais (Idem). Trata-se da caracterização do “tipo ideal weberiano” que, segundo Benites, tem sido repensado por outros autores como Bourdieu, Christin e Will (2000), interessando-lhe neste contexto, as abordagens destes que buscam “articular as relações entre saber e poder na compreensão do espaço burocrático”. Assim, as “atividades fundamentais das modernas burocracias” estariam baseadas no “trabalho de vigiar e avaliar os seus próprios agentes, bem como suas próprias ações”, levando o controle burocrático a fundar a “própria burocracia” e não limitando-a (BENITES, 2004, p. 284). No entanto, a organização burocrática, na sua concepção, como “instrumento de dominação racional ou legal” exerce seu controle através de mecanismos associados a saberes específicos produzidos no interior do universo estatal, “materializados nos organogramas, regulamentos internos, memorandos, próprios de um trabalho de invenção de rotinas e 34 procedimentos que garantem a própria continuidade do Estado” (Idem). Estes saberes burocráticos constituem o que Bourdieu, Christin e Will12 apud Benites (Idem) chamam de ‘ciências do Estado’, ou seja, um conhecimento produzido no campo burocrático. Para Benites o “conjunto das rotinas e procedimentos burocráticos aos quais Max Weber associou a dominação burocrática não se aplicam somente à população, mas submete os próprios funcionários estatais” (BENITES, 2004, p. 285), o que segundo ele (Benites), na “perspectiva foucaultiana (...), para governar a população, é preciso que o Estado governe-se a si próprio” (Ibidem, p. 285-286). Deduz-se ainda que, a “produção das ‘ciências do Estado’, bem como todas as táticas de controle do corpo funcional está imersa no complexo jogo de governamentalização do Estado” (Ibidem, p. 286). Benites conclui afirmando que o produto do trabalho burocrático encontra-se “na ordem do simbólico, daquilo que envolve a linguagem, a comunicação, os afetos, que produz bens não-tangíveis (serviços direitos, afetividades), enfim que produz bens imateriais” (Ibidem, p. 287). A reflexão teórica sobre o Estado como campo informacional dentro da perspectiva da área de informação encontra densidade teórica no âmbito do estudo do Jardim (1999). Tratase de uma abordagem que resgata para a área de informação, a dimensão do Estado como um “campo e um processo estratégicos”, sem poder próprio, em que se “entrecruzam núcleos e redes de poder”, cuja informação se constitui numa base para o exercício dessas estratégias de poder. Na verdade, o Estado como campo informacional constitui uma construção (e não conceito) feita a partir de uma reformulação teórica dos estudos de Bourdieu. Conforme Jardim (1999) a teoria do Estado em Bourdieu refere que “o real é relacional” o que, segundo ele, sugere que “o Estado constitui um campo, ou seja, um conjunto de relações sociais que funciona segundo sua lógica interna, composto por instituições ou 12 BOURDIEU, Pierre, CHRISTIN, Olivier; WILL, Pierre-Étienne. Sur la science de l’État. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, nº 133, p. 3-9, jun. 2000. 35 indivíduos a competir pelo mesmo objetivo [sendo que para] alcançar o domínio num dado campo envolve o acúmulo máximo de capital simbólico” (Ibidem, p. 44). Bourdieu parte da dúvida para questionar os pressupostos e as pré-construções do Estado e o próprio pensamento sobre ele e propõe um modelo de emergência do Estado como pressuposto para desnaturalizá-lo. No pensamento de Bourdieu o Estado concentra diferentes tipos de capital que leva à emergência de um capital específico, propriamente estatal sendo que a construção do Estado é proporcional à construção do campo do poder. O capital informacional, neste contexto, configura-se tanto em seu aspecto inerente à constituição do capital simbólico quanto em sua dinâmica inerente aos mecanismos de estoque, de fluxo e de uso da informação em ambiente e contexto estatais e individuais. Para Bourdieu o capital simbólico tem sido ignorado, mesmo sendo fundamental, na medida em que, se não é condição, pelo menos acompanha o poder. A partir dessa perspectiva, Bourdieu destaca o caráter do capital informacional como constitutivo do Estado, nos seguintes termos: O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico (...), [sendo] a concentração de diferentes tipos de capital (...) o capital propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital. (BOURDIEU, 1996, p. 99). O caráter de informação como parte componente do Estado constitui um fenômeno muito antigo. Bourdieu explicita a questão do Estado como campo informativo ou a dimensão histórica dos laços que unem o Estado e informação ao referir-se da presença do capital informacional antes mesmo da configuração atual do Estado moderno: Muito cedo os poderes públicos realizam pesquisas a respeito da situação dos recursos (por exemplo, desde 1194, a ‘avaliação dos sargentos’, enumeração dos carretos e dos homens armados que 83 aldeias e abadias reais deveriam fornecer quando o rei reunisse seu exército; em 1221, um embrião de orçamento, um rol de receitas e despesa). O Estado concentra a informação, que analisa e redistribui. Realiza, sobretudo, uma unificação teórica. Situando-se do ponto de vista do Todo, da sociedade em seu conjunto, ele é o responsável por todas as operações de totalização, 36 especialmente pelo recenseamento e pela estatística ou pela contabilidade nacional, pela objetivação, por meio da cartografia, representação unitária, do alto, do espaço, ou simplesmente por meio da escrita, instrumento de acumulação de conhecimento (por exemplo, com os arquivos) e de codificação como unificação cognitiva que implica a centralização e a monopolização em proveito dos amanuenses ou dos letrados. (BOURDIEU, 1996, p. 105). A informação e o Estado como fenômenos históricos que se referem mutuamente levam a administração pública, como aparelho estatal, a tornar-se uma das maiores e mais importantes fontes de produção, estocagem e disseminação da informação em seus diferentes ambientes e contextos institucionais. Como tal, essa característica reflete-se no âmbito dos diferentes programas estatais. Ao mesmo tempo em que expressa a dimensão informacional do Estado, Giddens (2001) corrobora a perspectiva histórica existente entre Estado e informação, sintetizando um indicador desta dimensão da seguinte forma: Há um sentido fundamental (...) no qual todos os Estados foram ‘sociedades de informação’, já que a geração do poder de Estado supõe um sistema de reprodução reflexivamente monitorado, envolvendo a reunião regularizada, armazenamento, e controle da informação voltados para fins administrativos. Porém, no Estado-Nação, com seu peculiar alto grau de unidade administrativa, isso ocorre em um nível muito mais elevado. (GIDDENS, 2001, p. 199). O campo administrativo em Giddens (2001) está sendo construído informacionalmente, o que revela um novo momento da construção do aparato estatal e a ampliação da esfera pública. Aliás, conforme Giddens (2001), o crescimento da ‘esfera pública’ depende da informação publicizada. De uma forma geral, a informação referida em Giddens é essencialmente a informação governamental, a qual interessa-nos abordar em nossa pesquisa. A imprensa foi o primeiro grande passo na mecanização da comunicação (...) ao produzir documentos e textos amplamente disponíveis (...) O crescimento da “esfera pública” da administração do Estado é inseparável da organização textualmente mediatizada (...) Registros, relatórios e coleta rotineira de dados tornaram-se parte das operações diárias do Estado (...) As estatísticas oficiais incluem a coleta centralizada de materiais registrando nascimentos, casamentos e mortes, estatísticas relativas à residência, origem étnica e ocupação (...)” (GIDDENS, 2001, p. 200-201). 37 As características que norteiam a informação expressa por Giddens, em seu contexto de produção e acumulação, são inerentes à informação arquivística das instituições governamentais. Trata-se de uma informação registrada, independentemente da forma ou do suporte, produzida e/ou recebida no decorrer das atividades de instituições governamentais, dotada de organicidade13 e que possui elementos constitutivos suficientes para servir de prova dessas atividades. Fazendo uma analogia entre o poder simbólico em Bourdieu (1994) e o Estado informacional em Giddens (2001), nota-se que o capital informacional permeia todos os tipos de capital simbólico. Portanto, a abordagem teórica do Estado como campo informacional em Jardim (1999) implica uma reflexão do ponto de vista da produção, armazenamento e disseminação da informação, como um aspecto analítico sobre suas estruturas e recursos informacionais, sobre as políticas de informação, bem como sobre o uso social da informação em seu poder. A partir da perspectiva de Jardim (1999) e conforme ele, esta construção se materializa principalmente pelo fato de o Estado ser uma das maiores fontes de informação e cuja sustentação de existência se concretiza com base na grande quantidade de informação que controla e manipula, consubstanciando-se assim como uma dimensão susceptível de pesquisa em sua relação com a informação. Assim, a informação no quadro do governo eletrônico vincula-se à lógica dos processos e mecanismos inerentes às estratégias voltadas para a construção do Estado em seu campo de poder caracterizado por lutas sobre o capital estatal como garantia desse poder. 13 Constitui uma das características da informação arquivística. Segundo Fonseca (1999, p. 6), “os registros arquivísticos não são coletados artificialmente, mas acumulados naturalmente nas administrações, em função dos seus objetivos práticos; os registros arquivísticos se acumulam de maneira contínua e progressiva, como sedimentos de estratificações geológicas, e isto os dota de um elemento de coesão espontânea, embora estruturada.” 38 C AP Í TU LO 3 _____________________________________________________________________________________ POLÍTICAS PÚBLICAS DE INFORMAÇÃO Se antes da chamada era da informação e da sociedade interativa e interligada em tempo real, na qual vivemos, era difícil tanto a formulação e implementação de políticas de informação quanto a sua abordagem, hoje, ambas as tarefas são cada vez mais arriscadas e intricadas em função dos aspectos inerentes ao conceito de informação e à sua vinculação às tecnologias de informação, infra-estrutura de informação e ao processo de globalização. A correlação da informação com essas noções complica-se ainda mais quando se busca interpretar a sua relação com a noção de política como um viés referido à ação do Estado e diretamente atrelado às mutações da concepção do Estado na sua relação com a sociedade. As políticas de informação se expressam como projetos de planejamento e seu impacto se encontra referido no âmbito do atual discurso da sociedade da informação na medida em que refletem uma ordem no estabelecimento de mecanismos em torno da produção, processamento, uso e acesso à informação. Antes de entrarmos nas particularidades inerentes à noção da política de informação iremos, neste capítulo, apresentar breves considerações sobre os conceitos de informação e de política como elementos que compõem a noção da política de informação, aludindo também algumas características do conceito da política pública da qual, junto com aqueles elementos, decorre a noção da política de informação. Esta breve incursão pelos elementos que compõem a política de informação e dos quais é derivada, acreditamos, fornecerá as principais tendências e características inerentes à formulação e implementação e à abordagem das políticas de informação. 39 Informação Browne (1997a) ao analisar o termo informação como um dos elementos que compõe a noção de política de informação, apresenta uma dicotomia inerente à sua concepção, representada em duas abordagens amplas do conceito de informação. A primeira, denominada objetiva, concebe a informação como uma manifestação “real” ou tangível dos processos cognitivos que ocorrem no cérebro humano e escondidos da visão. Portanto, sendo resultado do processo cognitivo que ocorre na forma de uma entidade física, existiria, conforme Browne (1997a), como um artefato independentemente do cérebro humano que a criou e, em seus diferentes formatos, poderia, literalmente, ser localizada, movida, armazenada e assim por diante. (BROWNE, 1997a, p. 265) A segunda abordagem, apontada como subjetiva, assume que, na medida em que a informação existe no cérebro humano, apenas pode ser entendida em termos de seu impacto ou na forma como promove mudanças em situações ou pessoas. Nesse caso, a informação não tem existência real em si mesma. Os símbolos e sinais se tornam informação apenas quando são incorporados na estrutura cognitiva, sendo por isso mesmo, o significado construído pelo indivíduo na base de sua experiência. (Idem) Na impossibilidade de acomodar diferentes conceitos de informação causada por existência de noções correlatas como tecnologia de informação, política de comunicação e informação, infra-estrutura de informação, entre outros, Browne sugere, a partir do estudo de Braman (1989), um conjunto hierárquico de definições de informação a serem considerados na formulação da política de informação ou na sua análise. Esta hierarquia compreende: (1) informação como um recurso: noção clássica da informação sem relação com o conhecimento e, ela e seus produtores, processadores e usuários sendo vistos como entidades isoladas; (2) informação como commodity: valor agregado à noção de informação; (3) informação como percepção: modelo e contexto variam entre pessoas e por isso a informação é relativa: idéia de informação como fenômeno intangível e subjetivo; e 40 (4) informação como uma força constitutiva da sociedade: informação tem poder em si mesma e molda o contexto. (BRAMAN14 apud BROWNE, 1997a, p. 266, tradução nossa). Na abordagem de Browne (1997) a informação assume uma dicotomia do ponto de vista dos processos cognitivos envolvidos na sua geração, sendo de um lado, um produto que assume uma existência “real” ou tangível (objeto, recurso ou commodity) e a ser veiculado em um canal junto com o seu conteúdo. De outro, a informação não tem existência “real” em si mesma, sendo dependente da codificação humana para produzir impacto. Na abordagem objetiva, o governo eletrônico se conceberia como um ambiente em que ocorrem processos de informação através do uso de vários mecanismos e canais - incluindo os tecnológicos - para a produção, armazenamento, uso e disseminação dessa informação. E na subjetiva, o uso da informação, representada no âmbito do governo eletrônico, exigiria estruturas e capacidades cognitivas específicas para construir o significado dessa informação. Essa dicotomia conceitual da informação expressa um desafio na constituição do processo de construção do governo eletrônico que pode variar de acordo com o grau de estruturas, mecanismos e canais nele envolvidos, e o contexto político e sócio-cultural que o molda. Montviloff (1990) reconhece diferentes tipos de “informação” em função de seu papel, alcance, nível, canal e acessibilidade e delimita o conceito de informação no âmbito de seu estudo, privilegiando o papel da informação na solução de problemas e como recurso ao desenvolvimento, bem como à sua acessibilidade ao público. Em outras palavras, ele exclui de seu estudo “a informação de natureza geral difundida em grande parte pelos meios de comunicação e de publicidade e a informação reservada, destinada a um número limitado de usuários”. (MONTVILOFF, 1990, p. 5-6). 14 BRAMAN, S. Defining information: an approach for policymakers, Telecommunications Policy 13(3) (1989) 233–242. 41 A perspectiva de informação de Montviloff (1990), que aponta para o papel da informação na solução de problemas e como recurso ao desenvolvimento e sua condição de acesso público, cria uma ponte para a análise do governo eletrônico em sua dimensão informacional e de mediação das relações entre Estado e sociedade. De um modo geral, o termo informação caracteriza-se pelo transbordamento de estruturas, articulações e integrações que, mais do que nunca, requerem, cada vez mais, novas condições ou formas de mediação a serem convertidas em objetos de trabalho. Em outras palavras, tanto os aspectos apontados por Browne (1997) quanto os de Montviloff (1990) evidenciam o caráter de transbordamento da informação que excede as tentativas de sua representação em estruturas, articulações e integrações, exigindo formas específicas de sua mediação nos diferentes ambientes de trabalho. A partir dessas abordagens inerentes ao conceito de informação, nosso foco concentrase sobre a informação governamental, entendida como toda aquela que, produzida e acumulada por instituições governamentais, em função mesmo de suas funções e atividades, reveste-se de natureza pública. Cabe referir em conseqüência que, no caso específico do governo eletrônico, o foco incide sobre a informação governamental, de domínio público ou não. Considerando essas perspectivas teóricas e tendo em vista as particularidades da informação no quadro do governo eletrônico, entende-se que: • A informação reflete e fornece elementos à definição de processos de direção e articulação de ações e atividades em diferentes ambientes, inclusive na construção do governo eletrônico; • A informação excede as tentativas de sua representação em estruturas, articulações e integrações, exigindo formas específicas de sua mediação nos diferentes ambientes de trabalho. 42 • O poder da informação não reside em si mesma, ele se potencializa com a circulação e uso da informação, mediante estruturas e canais que envolvem o uso de capacidades adequadas à criação de sua significação para gerar conhecimento. • A racionalidade das estruturas e canais, bem como dos diferentes programas institucionais – ai incluído o governo eletrônico - que envolvem a produção, uso e disseminação da informação, encontra-se necessariamente referida às políticas de informação, em seu nível de atuação. • A informação representada no quadro do governo eletrônico - em função do contexto de sua produção - reveste-se de um caráter arquivístico. Política Em “Análise das políticas públicas”, Muller e Surel (2004) reconhecem o caráter polissêmico do termo ‘política’ e ressaltam a dificuldade que essa polissemia provoca na análise das políticas públicas, ao evocar simultaneamente acepções como a da esfera da política (polity) – que faz a distinção entre o mundo da política e a sociedade civil -, a da atividade política (politics) – referindo-se à atividade política em geral - e a da ação pública (policies) – processo pelo qual são elaborados e implementados programas de ação pública (MULLER e SUREL, 2004, p. 15). Sob prisma da metodologia de análise de políticas públicas, Dagnino et al (2005) sistematizam a contribuição de autores que buscam melhorar a maneira como o processo de elaboração de políticas se desenvolve no âmbito do Estado contemporâneo e analisam o 43 conceito de política (policy). Eles apresentam a concepção de política numa visão diferenciada por diversos autores: EASTON (1953, p. 130) considera “uma política (policy) uma teia de decisões que alocam valor”. Mais especificamente, JENKINS (1978, p. 15) vê política como um ”conjunto de decisões interrelacionadas, concernindo à seleção de metas e aos meios para alcançá-las, dentro de uma situação especificada”. Segundo HECLO (1972, p. 84-85), o conceito de política (policy) não é “auto-evidente”. Ele sugere que “uma política pode ser considerada como um curso de uma ação ou inação (ou “não-ação”), mais do que decisões ou ações específicas”. WILDAVSKY (1979, p. 387) lembra que o termo política é usado para referir-se a um processo de tomada de decisões, mas, também, ao produto desse processo. HAM e HILL (1993, p. 13) analisam as “implicações do fato de que a política envolve antes um curso de ação ou uma teia de decisões que uma decisão”. (DAGNINO et al, 2005, p. 2). Ham e Hill (2005) lembram quatro aspectos de destaque numa política: 1. há uma rede de decisões de considerável complexidade; 2. há uma série de decisões que, tomadas em seu conjunto, encerram mais ou menos o que é a política; 3. políticas mudam com o passar do tempo e, em conseqüência, o término de uma política é uma tarefa difícil; 4. o estudo de políticas deve deter-se, também, no exame de não-decisões. (HAM e HILL15 apud DAGNINO et al, 2005, p. 3). No entanto, as noções de “decisão” e “não decisão” traduzem-se, respectivamente, em ação e não ação e perpassam o conceito de política, tornando-se, contudo, a não decisão um aspecto muito forte que se constitui numa decisão na medida em que é diferente da inércia e da inépcia. Nesse contexto, e considerando que a noção de decisão é um recurso de poder e distingue-se da inércia e da inépcia, sugere-se um discernimento sobre os fundamentos da não decisão. Segundo Dagnino et al (2005) os elementos característicos do conceito de política resumem-se: numa teia de decisões e ações que alocam (implementam) valores; numa instância que, uma vez articulada, vai conformando o contexto no qual uma sucessão de decisões futuras serão tomadas; [em] algo que envolve uma teia de decisões ou o desenvolvimento de ações no tempo, mais do que uma decisão única localizada no tempo. (DAGNINO et al, 2005, p. 3). 15 HAM, Cristopher; HILL, Michael. The policy process in the modern capitalist state. Londres, 1993. 44 Os autores colocam ainda que, do ponto de vista de análise de políticas, o termo política compreende diferentes acepções, das quais destacamos a de “campo de atividade ou envolvimento governamental (social, econômica)”; “programa (“pacote” envolvendo leis, organizações, recursos)” e; “processo (enfoque processual)”. O pensamento de Dagnino et al (2005) em torno do conceito de política encontra maior expressão no que se pode chamar de princípios filosóficos apresentados pelos autores, cuja essência sugere a amplitude do conceito de políticas públicas: 5. a distinção entre política e decisão: a política é gerada por uma série de interações entre decisões mais ou menos conscientes de diversos atores sociais (e não somente dos tomadores de decisão) 6. a distinção entre política e administração 7. que política envolve tanto intenções quanto comportamentos 8. tanto ação como não-ação 9. que pode determinar impactos não esperados 10. que os propósitos podem ser definidos ex post: racionalização 11. que ela é um processo que se estabelece ao longo do tempo 12. que envolve relações intra e inter organizações 13. que é estabelecida no âmbito governamental, mas envolve múltiplos atores 14. que é definida subjetivamente segundo as visões conceituais adotadas. (DAGNINO et al, 2005, p. 3) Acreditando que a literatura sobre estudos de informação privilegia a apresentação de algumas características da política de informação sem discutir a natureza da política em si, Browne (1997a) define o termo política, considerando a abordagem pragmática de Hogwood e Gunn16 que descrevem o uso do termo nos seguintes moldes: (1) política como teoria ou modelo (ênfase nas metas do governo e nas conseqüências da sua ação) (2) política como expressão de um propósito geral ou estado de casos desejados (política como meta de uma atividade) (3) política como referência a um campo de atividade (referência a uma esfera específica de política) (4) política como conjunto de decisões do governo (5) política como propostas específicas (6) política como processo (BROWNE, 1997a, p. 268-269, tradução nossa) Além da análise da abordagem pragmática de Hogwood e Gunn, Browne (1997a) também trabalhou com a hierarquia dos objetos dos policy makers traduzida como um 16 HOGWOOD, B. W; GUNN, L. A. Policy analysis for the Real World. Oxford: Oxford University Press, 1984. 45 delineamento do escopo das atividades de política (numa perspectiva que valoriza a visualização do contexto do processo de formulação de política – pessoas, instituições e modos de pensar da sociedade) e conclui que o campo da política de informação refere-se à esfera pública sem se restringir apenas ao estudo das leis e das políticas formais documentadas. Conceito de política (policy) pública Para Melo (1999, p. 61) a análise de políticas públicas entendidas lato sensu como a análise do ‘Estado em ação’, identifica-se com a tradição anglo-saxônica, em particular norteamericana e funda-se no suposto das virtudes do good government, a partir da perspectiva de que o uso do conhecimento social equaciona os problemas de governo. Melo, citando Nelson, também evidencia a separação entre a assessoria independente - concentrada nos centros interdisciplinares e nas instituições de ensino e pesquisa - e a responsabilidade política como um aspecto institucionalizante da análise de políticas públicas. Esse americanismo pode ser melhor compreendido como uma visão sobre as políticas que assume a existência de democracia estável e a persistência de plataformas fora do governo de onde especialistas podem analisar e criticar a condução de ações públicas (NELSON17 apud MELO, 1999, p. 61-62). Na perspectiva de Lowi a expressão política pública é concebida - juntamente com as de escolha pública (public choice) e opinião pública/comportamento eleitoral - como uma subárea da ciência política cuja difusão acompanha os processos de democratização e institucionalização liberal e reflete valores políticos como a publicização de decisões e a noção da esfera pública como distinta da esfera estatal. 17 NELSON, Joan. Fragile coalitions: the politics of economic adjustment. Transaction Books, 1989. 46 A expressão política pública é um termo engenhoso que reflete a interpenetração entre o governo liberal e a sociedade, insinuando a existência de uma flexibilidade e reciprocidades maiores que do que permitem alguns sinônimos unilaterais como leis, estatutos, édito e semelhantes. (LOWI18 apud MELO, 1999, p. 65). Para Torres (2004, p. 27) o conceito de estruturação de políticas públicas propõe-se a explicar o processo mediante o qual um governante busca ordenar as partes de uma maneira tal que suas idéias ou intenções se projetem como formas, relações e significados de governo, pela sua equipe de governo e pelos governados, sendo um processo que ocorre em três dimensões distintas, mas estreitamente interrelacionadas: a) A dimensão extra-governamental, na qual o governante e os agentes e agências externos ao governo realizam cada um seu processo de S-J-A [seleção, hierarquia e apropriação]. O primeiro para expor e ajustar os assuntos mais relevantes ao seu projeto de governo e os segundos para expor e ajustar seus interesses e necessidades às expectativas de como vão ser governados; b) A dimensão inter-governamental, na qual o governante realiza seu processo de S-J-A com os governantes dos distintos níveis territoriais para expor seus propósitos e ajustar os recursos disponíveis, para cumprir com os compromissos assumidos perante os eleitores; c) A dimensão intra-governamental, na qual o governante e a sua equipe de governo realizam seus próprios processos de S-J-A. O primeiro para precisar o que se propõe levar adiante como programa de governo e o segundo para precisar os objetivos setoriais e ajustar seus recursos necessários para o cumprimento dos propósitos de governante. (Ibidem, p. 28, tradução nossa) A reflexão de Torres (2004) realça a formulação de políticas públicas como um aspecto que envolve setores do Estado e da sociedade civil. Nesse contexto, a formulação das políticas públicas ao envolver a dimensão da sociedade civil abre uma perspectiva em que o cidadão, longe de ser apenas objeto do processo das políticas públicas, torna-se sujeito no processo de formulação e implementação das mesmas. Para Muller e Surel (2004) uma política pública seria um construto social (conjunto de fins a se atingir) e um construto de pesquisa (trabalho de identificação e reconstrução dos objetivos da ação pública), expressando assim a construção de um quadro normativo de ação 18 LOWI, Theodore. O Estado e a ciência política ou como nos convertemos naquilo que estudamos. BIB, 38, 1994. 47 e, em conseqüência disso, susceptível de questionamento mediante um processo constante de redefinição da estrutura e dos limites dos campos políticos. Poderíamos definir assim uma política pública, seguindo Muller e Surel (2004), como uma construção social e de pesquisa devotada ao estudo da ação pública (policies) e vinculada às dinâmicas e aos atores que caracterizam a atividade política em geral (politics) e aos processos e às iterações que concorrem para a formação e a evolução da esfera da política (polity). Segundo Muller e Surel (2004) a análise das políticas públicas apresenta problemas do ponto de vista da distinção do sentido de uma política pública - explícito, que é definido através dos objetivos proclamados pelos tomadores de decisão, ou implícito, cuja determinação é feita com a intervenção de outros atores - e da noção de não decisão que envolve a não decisão intencional, a não decisão controvertida e a não execução. Abordagens do Estado e das Políticas Públicas Torres (2004) discute um modelo teórico e metodológico de estudo das políticas públicas em condições de precariedade política e informalidade institucional, como variáveis dependentes dos contextos políticos e institucionais em que são produzidas (só podem ser entendidas na perspectiva do tipo do regime político e da ação do governo de que emergem), tendo como pressuposto que a natureza específica de um regime político determina, de maneira crucial, a estruturação das políticas públicas. Torres (2004) apresenta as razões que justificam a referida centralidade do regime político no processo da estruturação das políticas públicas como sendo as seguintes: • O regime político é o ordenamento que confere corporeidade e identidade (própria e particular) à idéia abstrata de Estado, sob a forma 48 • • • de aparato estatal. O regime político imprime as características do Estado às instituições e define o sistema objetivo de instituições do Estado e os conteúdos que as diferencia das demais. O regime político confere organicidade e ordem ao conjunto de relações que se estabelecem em torno do Estado e da sociedade. Define e imprime um determinado sentido normativo e conteúdo valorativo às relações sociais. Por uma parte, sob a forma de ordenamento constitucional, estabelece os princípios, códigos e normas específicos que ordenam e regulam uma sociedade particular. E por outra, sob a forma de ordenamento institucional, estabelece os princípios que dão fundamento a uma particular especialização funcional e uma estruturação hierárquica do poder que tem de reger e regular a ação institucional do Estado. O regime político permite que o Estado se constitua e se projete como um gerador de ordem interna e externa. Interna, porque imprime princípios de unidade às instituições estatais como representação do Estado. Externa, porque é o fator de coesão das estruturas e princípios reguladores que regem a vida na sociedade, para manter o equilíbrio global de sociedade como uma unidade relativamente harmônica. O regime político se constitui no ordenamento através do qual o Estado confere poder e autoridade formal aos governantes para tomar as decisões (...) (TORRES, 2004, p. 14, tradução nossa) Cabe referir em conseqüência que, a maneira como as políticas públicas se plasmam também determina o caráter desse regime político. As políticas públicas modificam o regime político, o que supõe uma relação dialética entre ambos. Torres (2004) concebe a função governamental do ponto de vista da filosofia política clássica, considerando o governo como o “timoneiro que dirige a nave da sociedade e do Estado”. Nessa tarefa, o governo reflete o regime político que determina a forma de governo, como forma institucional, e o modo de governar, como prática cultural. De um lado, a forma de governo estabelece os laços que regem as relações entre o governante e o aparato do governo, assim como o campo de ação do governante na sua relação com os governados, numa perspectiva definida por relações: • • • de exterioridade (definem modalidades de ascensão ao governo e limites para seu exercício); de transcendência (definem instâncias e mecanismos institucionais de exercício do poder); e de unidade (definem princípios e mecanismos institucionais do grau de concentração do poder). (TORRES, 2004, p. 15, tradução nossa). 49 De outro, o modo de governar evidencia “tanto a cultura política e institucional que prevalece em uma sociedade, como o projeto político que está em jogo para impor um determinado curso à sociedade e ao Estado” (TORRES, 2004, p. 15, tradução nossa) e se expressa através: a) da maneira como se produz o diálogo entre governantes e governados na definição e gestão de assuntos políticos e institucionais; b) da maneira como se ordena o conjunto de táticas e estratégias governativas e se desdobram territorialmente as ações de governo para alcançar os resultados desejados e; c) do grau de consenso ou de repressão requerido para cumprir com os resultados. (TORRES, 2004, p. 15-16, tradução nossa). Apresentada a questão nesses moldes, fica evidente que abordar políticas públicas a partir dos problemas ou perspectiva do governo permite revelar o conteúdo democrático ou não de um determinado tipo de regime político. De um lado, o governo como conceito sintetiza os problemas da filosofia, política e economia e, de outro, o governo como processo (de condução) dá conta da nova consistência, viabilidade e transcendência das relações entre a sociedade e o Estado. Segundo Torres (2004), a natureza dependente das políticas públicas se expressa na sua: (...) capacidade para dar conta de uma particular dinâmica de exclusão ou de um esforço de incorporação dos governantes com respeito aos governados. Assinala em concreto a quem se orienta a ação governamental e a quem não e expõe as razões, evidenciando uma determinada correlação de forças presentes na sociedade. (TORRES, 2004, p. 16, tradução nossa). Dagnino et al (2005) também analisaram o papel da burocracia no Estado capitalista contemporâneo e identificaram algumas características definidoras da burocracia. Para eles, o paradigma ideal weberiano é adequado, mas funciona apenas em situações normais nos países capitalistas avançados onde existe dinâmica e cultura organizacionais adequadas ao paradigma. Em contrapartida, em países onde não existe tal dinâmica e cultura organizacionais adequadas ao modelo weberiano, a burocracia fica presa às formas de dominação existentes. Em outras palavras, isso significa que, se o modelo weberiano de burocracia é adequado e funciona apenas no cenário do capitalismo avançado, fora dele 50 persistem outras formas como o patrimonialismo e o corporativismo. Aliás, Torres esclarece este aspecto mais adiante. Torres (2004, p. 19) apresenta os elementos de diferenciação dos regimes políticos, enfatizando entre tais elementos, a territorialidade e a institucionalização da ordem como elos chaves da relação orgânica entre o Estado e o regime político e discorre – numa perspectiva que combina graus de territorialidade e institucionalização – sobre a institucionalização fragmentada da ordem (na sua versão formal e informal) e os problemas de estabilidade ou instabilidade do Estado e de estabilidade ou instabilidade do governo. Com esta análise identifica: a) Países que apresentam estabilidade estatal com estabilidade governativa (territorialidade completa [TC] e institucionalidade plena [IP]); b) Países que apresentam estabilidade estatal com instabilidade governativa (territorialidade completa e institucionalidade fragmentada [IF]) e; c) Países que apresentam instabilidade estatal com instabilidade governativa (territorialidade incompleta [TI] e institucionalização fragmentada [IF]). (Ibidem, p. 20-22, tradução nossa). A análise do quarto elemento - unidade de poder político institucionalizado/unidade de ação institucional - também é fundada na dupla territorialidade/institucionalização da ordem, à luz dos problemas de estabilidade/instabilidade estatal e estabilidade/instabilidade governativa e combina o grau da permeabilidade das estruturas aos interesses para identificar: • • • países cujas estruturas e práticas institucionais de poder político e ação estatal existem independentemente dos interesses privados – existência da unidade de poder político institucionalizado (UPPI) e unidade de ação institucional (UAI); países cujas estruturas e práticas institucionais de poder político e ação estatal são ocasionalmente permeadas por interesses privados – existência da unidade de poder político institucionalizado (UPPI), mas sem Unidade de Ação Institucional (UAI) e; países cujas estruturas e práticas institucionais de poder político e ação estatal dependem do momento que atravessam os interesses privados – ausência da unidade de poder político institucionalizado (UPPI) e da unidade de ação institucional (UAI). (TORRES, 2004, p. 23, tradução nossa) Torres (2004) também apresenta a tipologia dos regimes políticos configurada a partir do “desdobramento do par territorialidade/institucionalização da ordem nos pares 51 estabilidade/instabilidade estatal e estabilidade/instabilidade governativa” (TORRES, 2004, p. 23, tradução nossa). Assim, o regime político tipo I ou regime de obediência sólida refere-se aos casos da territorialidade completa e institucionalização da ordem plena. O tipo II ou de obediência porosa refere-se aos países onde a territorialidade é total e a institucionalização da ordem é incompleta. E o tipo III ou de obediência precária apresenta territorialidade parcial e institucionalização da ordem incompleta. (Idem) No âmbito das teorias da ação pública Muller e Surel (2004) abordam duas concepções tradicionais do Estado ou abordagens clássicas do Estado: a abordagem estatal ou a sociedade produzida pelo Estado e a abordagem pluralista ou o Estado produzido pela sociedade. A primeira representada por teorias que valorizam o papel central do Estado nas relações sociais, entre elas, as de Marx (Estado como instrumento da classe dominante) e Weber (Estado autônomo definido numa perspectiva do modo de dominação racional) postula que o Estado é “resultado de uma relação dialética com a sociedade. Produzido por ela, ele participa também na sua produção: a sociedade moderna não existe sem Estado” (MULLER e SUREL, 2004, p. 35). Para Muller e Surel essa abordagem, ao considerar a centralidade do Estado e de sua natureza monopolística, quanto ao exercício da dominação, estaria a ultrapassar “o quadro institucional do aparelho político-administrativo para descrever a ação do Estado como produto de uma relação institucionalizada entre um número limitado de atores públicos e privados” (MULLER e SUREL, 2004, p. 37). A segunda é de orientação americana e centra-se na análise dos processos de decisão, concebendo o “Estado como resultado de processos sociais irredutíveis. Longe de modelar a sociedade, o Estado é, pois, o produto da interação entre os grupos livremente formados, e constitui uma forma de ‘véu’ totalmente permeável aos interesses e à competição dos grupos que caracterizam as lógicas sociais”. (MULLER e SUREL, 2004, p. 38). 52 Nessa abordagem, o conteúdo de uma política resultaria da pressão dos grupos de interesses envolvidos (que impõem sua visão e convertem suas ações em decisões públicas) e que “existem independentemente de sua relação com o Estado” (MULLER e SUREL, 2004, p. 39). Para Muller e Surel essa perspectiva dificulta ou impede a ação pública em função da concorrência dos interesses e na medida em que ela interdita o livre funcionamento do mercado político e a expressão das preferências dos atores. Portanto, para esses autores, a análise das políticas públicas introduz uma ruptura com a concepção weberiana do Estado assim como com a tradição marxista ortodoxa e supõe a inexistência do Estado enquanto entidade global susceptível de tratamento específico, centralizando sua ação como objeto e evidenciando os múltiplos contatos que o Estado mantém com seu contexto. (MULLER e SUREL, 2004, p. 40). Esses fatores, que fazem com que “as contribuições teóricas a respeito das organizações e da burocracia pública ultrapassem a perspectiva do formalismo idealizado por Max Weber”, resultam no deslocamento de alguns estudos que passam a dar “ênfase para o ambiente das organizações” por um lado e, por outro, às regras e às estruturas, bem como às relações entre as organizações, os indivíduos e as estruturas informais”, o que evidencia “as conexões entre questões organizacionais internas e o contexto externo”. (DAGNINO et al, 2005, p. 15). Afirmando que as duas abordagens exprimem, cada uma à sua maneira, uma certa verdade do Estado e de sua ação, na medida em que o Estado exprime, ao mesmo tempo, a unidade (abordagem estatal) e a diversidade (abordagem pluralista) da sociedade, Muller e Surel apresentam novas abordagens: neo-institucionalismo e cognitiva. A abordagem neoinstitucionalista é concebida na perspectiva de ‘relativizar a dependência do sistema político em relação à sociedade a favor de uma interdependência entre as instituições sociais e políticas relativamente autônomas’ (MARCH, OLSEN19 apud MULLER e SUREL, 2004, p. 19 MARCH, J.; OLSEN, J. The new institutionalism. Organisational Factors in Political Life. American Political Science Review, 78, 1984, pp. 734-749. 53 42). Nesse contexto, as instituições são concebidas como ‘espelho’ da sociedade e formam um “quadro evolutivo dessas interações, cujas formas e modalidades mudam de modo progressivo pelo efeito mesmo destas interações” (MULLER e SUREL, 2004, p. 42). Trata-se de uma concepção que busca a ação pública pelo prisma das instituições que determinam o funcionamento e a evolução das interações sociais. Entretanto, a abordagem cognitiva das políticas públicas foi a que recebeu um enfoque particular de Muller e Surel. Ela procura compreender as políticas públicas como “matrizes cognitivas e normativas, constituindo sistemas de interpretação do real, no interior dos quais os diferentes atores públicos e privados poderão inscrever sua ação” (MULLER e SUREL, 2004, p. 47). Na sua composição, esta corrente caracteriza-se pela centralidade concedida aos valores, às idéias e às representações no estudo das políticas públicas e: busca ultrapassar o dilema do determinismo e do voluntarismo, propondo uma grade de análise que combina uma certa forma de determinismo estrutural (os atores políticos não são totalmente livres de suas escolhas) e uma certa forma de voluntarismo (as escolhas políticas não são totalmente determinadas pelas suas estruturas). (MULLER e SUREL, 2004, p. 53). Como observa Hofling (2001) a implementação de políticas não é automática e envolve contradições. As ações compreendidas pelo Estado não se implementam automaticamente, têm movimento, contradições e podem gerar resultados diferentes dos esperados. Especialmente por se voltar para e dizer respeito a grupos diferentes, o impacto das políticas sociais implementadas pelo Estado capitalista sofre o efeito de interesses diferentes expressos nas relações de poder. (Ibidem, p. 35) As políticas públicas também evidenciam o grau de controle do governante sobre o aparato estatal e a sociedade que governa e expressam tanto uma determinada intensidade dos recursos internos e externos de coerção ou de consenso para lograr penetrar o aparato governamental, quanto um determinado grau de conflito na sociedade. A função governativa determina a estruturação das políticas públicas da qual adquirem sentido e conteúdo como tal e, principalmente porque têm nela, o duplo caráter simbólico 54 (invocação da ordem de poder) e integrador (capacidade de indução) mediante o qual se cumpre a tarefa de governar a sociedade e o Estado. A partir do momento em que os regimes políticos determinam as formas de governo e os modos de governar, a estruturação das políticas públicas também se determina: a) pela maneira particular como os governantes dispõem os recursos institucionais e as práticas culturais de governo para obter os resultados desejados; b) pela luta entre as distintas forças de poder para impor desde o governo (ou contra ele) um determinado projeto de direção política e um projeto de direção ideológica ao Estado e a sociedade; c) pelo grau em que a distribuição do poder estatal se distorce em poder burocrático que emerge para interferir (ou potencializar) a consecução dos objetivos de governo; d) pelo tipo de instâncias e mecanismos comunicacionais que regem as relações entre governante e governados; e e) pelo grau em que as relações intergovernamentais se constituem ou não em uma correia de transmissão das ações e decisões de governantes e governados na consecução de um projeto de governo (TORRES, 2004, p. 16, tradução e grifo nossos). A abordagem de Torres evidencia o papel da mediação informacional no âmbito da construção de uma política pública. Este aspecto sugere a publicização das políticas públicas, ou seja, que uma política pública precisa estar comunicada e sendo que essa publicização está associada a mecanismos inerentes à gestão da informação. A questão da informação também é referida por Hofling (2001) – para quem, avaliar os resultados da política é diferente de avaliar politicamente a política - no âmbito da formulação de políticas nos seguintes termos: A relação entre sociedade e Estado, o grau de distanciamento ou aproximação, as formas de utilização ou não de canais de comunicação entre os diferentes grupos da sociedade e os órgãos públicos – que refletem e incorporam fatores culturais (...) – estabelecem contornos próprios para as políticas pensadas para a sociedade. Indiscutivelmente, as formas de organização, o poder de pressão e articulação de diferentes grupos sociais no processo de estabelecimento e reivindicação de demandas são fatores fundamentais na conquista de novos e mais amplos direitos sociais, incorporados ao exercício da cidadania. (Ibidem, p. 39, grifo nosso) 55 Torres (2004, p. 19) observa que o regime político, além de fundamentar a produção de políticas públicas também imprime sentido normativo e conteúdo valorativo às políticas em seu papel de veículo da interação governativa entre o Estado e a sociedade. Dagnino et al (2005) classificam os estudos de Análise Política (abordagens, perspectivas) em duas grandes categorias: estudos descritivos (análise do conteúdo da política) e os prescritivos ou propositivos (defesa de políticas). A partir dessas duas categorias eles esboçam duas abordagens diferenciadas – abordagem metodológica de pesquisa e a metodológica política – que chamam respectivamente de “estudos de política” (conhecimento do processo de elaboração de políticas) e “análise de políticas” (conhecimento no processo de elaboração de políticas) e distinguem sete tipos de Análise Política que compõem as duas abordagens. 1. estudo do conteúdo das políticas (study of policy content), no qual os analistas procuram descrever e explicar a gênese e o desenvolvimento de políticas, isto é, determinar como elas surgiram, como foram implementadas e quais os seus resultados; 2. estudo do processo das políticas (study of policy process): nele, os analistas dirigem a atenção para os estágios pelos quais passam questões e avaliam a influência de diferentes fatores, sobretudo na formulação das políticas; 3. estudo do resultado das políticas (study of policy output), no qual os analistas procuram explicar como os gastos e serviços variam em diferentes áreas, razão por que tomam as políticas como variáveis dependentes e tentam compreendê-las em termos de fatores sociais, econômicos, tecnológicos e outros; 4. estudo de avaliação (evaluation study), no qual se procura identificar o impacto que as políticas têm sobre a população; 5. informação para elaboração de políticas (information por policy making): neste caso, o governo e os analistas acadêmicos organizam os dados para auxiliar a elaboração de políticas e a tomada de decisões; 6. defesa de processos (process advocacy): os analistas procuram melhorar os sistemas de elaboração de políticas e a máquina de governo, mediante a realocação de funções, tarefas e enfoques para avaliação de opções; e 7. defesa de políticas (policy advocacy), atividade exercida por intermédio de grupos de pressão, em defesa de idéias ou opções específicas no processo de políticas. (DAGNINO et al, 2005, p. 6) De entre os sete tipos de Análise Política interessam-nos para fins do nosso estudo, os quatro primeiros que formam a abordagem metodológica de pesquisa. 56 Faria (2003) em “Idéias, conhecimento e políticas públicas: um inventário sucinto das principais vertentes analíticas recentes” corrobora a concepção das políticas como variáveis dependentes e sugere cinco variáveis independentes relacionados ao poder. Se o campo da análise de políticas públicas se institucionaliza com a definição das políticas como variáveis dependentes, as variáveis independentes na interpretação da produção das políticas passam a ser, inicialmente, quase exclusivamente aquelas relacionadas ao poder. Muito sumariamente, hoje parece pertinente distinguir, endossando a proposição de Peter John (1999), cinco grandes vertentes analíticas na subárea das políticas públicas, quais sejam: (1) a institucional; (2) a interessada em perceber as formas de atuação e o impacto dos grupos e das redes; (3) as abordagens que dão ênfase aos condicionantes sociais e econômicos no processo de produção das políticas; (4) a teoria da escolha racional; e (5) as abordagens que destacam o papel das idéias e do conhecimento. (Ibidem, p. 22) De entre estas variáveis independentes Faria deteve-se na última vertente, destacando algumas de suas principais ramificações. Assim, com base na formulação de Cláudio Radaelli (1995), refere que na análise tradicional do poder é concedido ao conhecimento, quando muito, apenas um papel justificatório ou de advocacy e distingue, então, “entre os modelos analíticos nos quais o conhecimento é endógeno ao policy process e aqueles nos quais ele nada mais é do que input à caixa preta eastoniana (ou apenas um argumento a mais no jogo de interesses)”. Entretanto, ele afirma que “cada vez mais o conhecimento, entendido como a instrumentalização de dados, idéias e argumentos, tem sido eleito como variável independente, como sugerido pela própria classificação proposta por Peter John.” (FARIA, 2003, p.22, grifo nosso). Do ponto de vista da análise da política e dos níveis de análise, Dagnino et al apresentam três eixos, concebidos como níveis em que se dão realmente as relações políticas (policy e politics) e como categorias analíticas dessas relações, nomeadamente: 1. do funcionamento da estrutura administrativa (institucional). É o nível superficial das ligações e redes intra e inter agências, determinadas por fluxos de recursos e de autoridade etc., em que a análise está centrada no processo de decisão no interior das organizações e nas relações entre elas. É o que se pode denominar nível da aparência ou superficial. 2. do processo de decisão. É o nível, em que se manifestam os interesses presentes no âmbito da estrutura administrativa, isto é, dos grupos políticos presentes no seu interior e que influenciam no conteúdo das 57 decisões tomadas. Dado que os grupos existentes no interior de uma instituição respondem a demandas de outros grupos externos, situados em outras instituições públicas e em organizações privadas, as características e o funcionamento da mesma não podem ser adequadamente entendidos a não ser em função das relações de poder que se manifestam entre esses grupos. É o que se pode denominar nível dos interesses dos atores. 3. das relações entre Estado e sociedade. É o nível da estrutura de poder e das regras de sua formação, o da “infraestrutura economicomaterial”. É o determinado pelas funções do Estado que asseguram a acumulação capitalista e a normatização das relações entre os grupos sociais. É o que explica, em última instância, a conformação dos outros dois níveis, quando pensados como níveis da realidade, ou as características que assumem as relações a serem investigadas, quando pensados como níveis de análise. Este nível de análise trata da função das agências estatais que, em sociedades capitalistas avançadas é, em última análise, o que assegura o processo de acumulação de capital e a sua legitimação perante a sociedade. É o que se pode denominar nível da essência ou estrutural. (DAGNINO et al, 2005, p. 10) Esses eixos permitem a análise dos recursos humanos e agentes envolvidos, nível de envolvimento dos cidadãos e suas capacidades cognitivas, entre outros. A análise e avaliação de políticas públicas fundamentam-se dentro do arcabouço teórico - próprio da ciência política - composto teoricamente por parâmetros, critérios e metodologias que permitem desenvolver modelos de análise e avaliação adequados às políticas públicas de informação. Teoricamente uma política pública envolve Estado e sociedade. Nesse contexto, pode se distinguir uma visão redutora no âmbito das políticas públicas quando as mesmas não contemplam a participação da sociedade civil. Por extensão, as políticas públicas apresentam graus diferenciados do ponto de vista democrático, sendo mais democráticas aquelas que envolvem a participação da sociedade civil. Existe uma distância entre a estrutura do Estado e as políticas públicas por ele formuladas. Na ação, a soma das políticas públicas não é igual ao Estado, na medida em que certas políticas públicas estão na retórica do Estado (não nomeadas) e outras na ação. Ainda que não anunciadas ou nomeadas, em alguns casos, são identificadas pelo pesquisador. 58 Histórico, emergência e configuração das políticas de informação A emergência do tema “política de informação” tem sido identificada, no âmbito da literatura da área (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002; JARDIM, 1995, 1999; BROWNE, 1997a; entre outros autores), como um aspecto inerente ao período logo após a Segunda Guerra Mundial voltado às questões de ciência e tecnologia. A sua configuração tem se caracterizado pelas vinculações políticas da informação e suas inscrições documentais e tecnológicas dentro do contexto da constituição do modelo moderno de soberania em que o Estado constitui agente privilegiado de produção, recepção e agregação das informações, gerando uma feição da capacidade instrumental do Estado em um dos seus sustentáculos de poder – a informação – e de seus domínios de intervenção territorial, social e simbólica. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002) A política de informação emerge como tema e domínio relativamente autônomo, em nível nacional e internacional, no cenário do pós-guerra, associada às políticas de ciência e tecnologia. O nexo da informação com a política seria então estabelecido por sua inclusão na esfera de intervenção do Estado, agora não só como dimensão de racionalidade administrativa, mas como fator estratégico do desenvolvimento científico-tecnológico. (Ibidem, p. 27). O domínio da relação entre política e informação se estabeleceria no escopo e abrangência do paradigma moderno de soberania com forte referência ao Estado e aos ensejos do exercício da condição comunicacional e informacional, sendo explicitado em termos de programas e políticas públicas a partir da década de 50. Parece oportuno e profícuo citar, nesse contexto, o “Science, Government, and Information”, conhecido pela comunidade de informação como o Weinberg Report (1963), como um documento que, sob responsabilidade do governo dos EUA, define a “transferência de informação científica como o escopo e abrangência de uma política de informação” (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 28), envolvendo na sua abordagem, as instituições do sistema de ciência e tecnologia. 59 O impacto do Weinberg Report refere-se ao pensamento dos líderes governamentais norte americanos e do setor privado sobre informação nele relatado e sintetizado. Conforme Herner (1984) a sua essência consistiu em dois grupos de sugestões, um da (e para) comunidade técnica e outro das (e para) agências do governo federal. Shera e Cheveland (1977) reportando-se à era da ciência da informação no âmbito da história e fundamentos dessa área mencionam o choque do lançamento do Sputnik pela União Soviética e o envolvimento de muita gente na criação e uso da informação científica e tecnológica e resumem a idéia central do Weinberg Report, relacionando-a ao crescente interesse pela informação: A transferência da informação constitui parte inseparável da pesquisa e do desenvolvimento. Todos os envolvidos em ações de pesquisa e desenvolvimento – cientistas, engenheiros, instituições acadêmicas e industriais de pesquisa, sociedades técnicas, agências governamentais – devem assumir a responsabilidade pela transferência da informação no mesmo grau e espírito com que assumem a responsabilidade pela pesquisa e pelo desenvolvimento (SHERA E CHEVELAND, 1977, p. 258, tradução nossa).20 Outro exemplo digno de realce são as iniciativas e intervenções internacionais da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) em que se orientavam a “estabelecer um programa intergovernamental e cooperativo para promover e otimizar o acesso e uso da informação, buscando superar as brechas científico-informacionais entre países centrais e periféricos e tendo estes últimos como alvo principal” (JARDIM apud GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 28) De uma forma geral, é importante referir que os exemplos aqui mencionados, coincidentemente, também se referem à história da própria ciência da informação, cujas circunstâncias de seu surgimento se inscrevem dentro do período que vai desde o fim da Segunda Guerra Mundial e cobre uma cronologia de eventos até 1962, ano que parece acolher 20 Herner (1984, p. 159) fornece mais detalhes sobre alguns pontos do Weinberg Report. 60 consenso da comunidade como de demarcação da ciência da informação entre o período de lançamento de suas raízes e o de sua afirmação como ciência. A partir dos anos 60, estimulados pelas experiências acima referidas e compelidos pelo rumo dos acontecimentos na área de informação científica e tecnológica que exigia respostas urgentes, muitos países começaram a envolver-se em ações de desenvolvimento ou revisão de programas específicos que resultaram no estabelecimento de políticas de informação científica e tecnológica. No domínio da organização do campo de definição da política de informação, como bem destaca González de Gómez (2002), “teríamos agora o Estado como agente privilegiado de sua elaboração e implantação, e a ciência e a tecnologia, como domínio de seu exercício”. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 28) Na medida em que esse quadro de programas e políticas públicas de informação não conseguiu se impor (no modelo de Estado vigente e à beira de crise) no âmbito da definição de prioridades conjunturais e em constante mudança, a partir do final dos anos 70, constitui-se um novo cenário moldado pela emergência das novas tecnologias de informação e comunicação, implicando assim, novos discursos e abordagens para enfatizar enunciados como “infra-estrutura de informação” e “sociedade da informação21”. Trata-se de um cenário cuja ênfase traduziu-se na substituição da questão do Estado por um discurso de cunho econômico. Segundo Castells, “o termo sociedade da informação 21 Conceitos abordados por González de Gómez (2002), a partir da visão da natureza e alcance das mudanças, com base em autores como, Poster (1997), Bell (1976), Tremblay (1995), Castells (1999), Latour (2000), Porat (1997), Schemmet (1990) e Zurkowiski (1984), para sublinhar a mudança de escopo e abrangência da política de informação e que implica a necessidade de reconstrução da relação entre política e informação. Esses conceitos encontram sua expressão em programas como: a) o Global Information Infrastructure – GII – (1994) do governo norte-americano e que consolida a associação dos conceitos de ‘rede’, ‘mercado’ e ‘globalização’; b) O documento Europa e a Sociedade Global da Informação, mais conhecido como Bangemann Report (1994), introduz o termo “sociedade da informação” no lugar do de “infra-estrutura” para designar as transformações de ruptura com a sociedade industrial e remete à revolução baseada na informação, ela mesma expressão do conhecimento humano; c) A partir de 1996 a UNESCO substitui dois de seus programas (General Information Programme – PGI e o Intergovernmental Informatics Programme – IIP) por um novo, cujo objetivo é ‘contribuir para configuração de uma sociedade da informação, justa e com objetivos de benefícios universais’ (Unesco, 2000); d) Em 1995 o grupo dos 7 anuncia sua colaboração para a construção da ‘infra-estrutura global de informação (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 29-31). 61 destaca o papel desta última na sociedade”, sendo que, por sua vez, o termo informação, em contraste com o seu sentido mais amplo – comunicação do conhecimento – indicaria “o atributo de uma forma específica de organização social na qual a geração, processamento e transmissão da informação convertem-se em fontes fundamentais da produtividade e do poder, devido às novas condições tecnológicas que surgem neste período histórico” (CASTELLS22 apud GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 30). Já o conceito de infra-estrutura, que deriva do programa de infra-estrutura global de informação (GII) do governo dos EUA, segundo González de Gómez (2002, p.30), “definido em seu sentido genérico como o conjunto de recursos, instalações e meios prévios requeridos para o funcionamento de uma atividade, organização ou sociedade, em composição com o termo informação, introduz uma ruptura paradigmática” (Idem). González de Gómez (2002, p. 32) explicita este conceito no contexto da informação nos seguintes termos: “considerado isoladamente, em seu sentido mais amplo, ‘infra-estrutura de informação’ designa a convergência das tecnologias [da] comunicação, telecomunicação e informática, tendo a Internet como principal locus de realização dessa convergência.” (Idem) Na perspectiva de Montviloff (1990), infra-estrutura de informação “consiste em recursos, serviços e sistemas de informação23, apoiados ou não por serviços de informática e de comunicação, que são necessários para a elaboração e a provisão de informação, [sendo 22 23 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Montviloff (1990) define recursos de informação como dados em forma textual, numérica, sonora ou gráfica, registrados em meios convencionais e não convencionais; compilações; conhecimentos técnicos individuais, conhecimentos técnicos institucionais; indústria da informação, etc.; serviços de informação como a provisão de informação e dados mediante sistemas e redes de diferentes tipos nos setores público e privado (bancos de dados; bases de dados; sistemas de bibliotecas; serviços de biblioteca; centros e serviços de documentação; centros e serviços de análises, consolidação e reestruturação da informação; arquivos; serviços estatísticos, etc.); sistemas de informação se compõem de uma série de unidades de informação, computadorizada ou não, que interagem entre si de acordo com um módulo coerente. (MONTVILOFF, 1990, p.6) 62 que] o tráfico no interior desta infra-estrutura é a própria informação”. (MONTVILOFF, 1990, p.6) A introdução de “ruptura paradigmática”, como não poderia ser diferente, ensejava novas abordagens na formulação e implementação de políticas de informação. No fundo, o propósito tematizado na década de 1960 sofre um deslocamento em função dos novos discursos apresentados em relação à configuração da sociedade e no trato da questão da informação e cujo diagnóstico indica, segundo esse discurso, uma alteração da cultura organizacional da sociedade. Política de informação enquanto área de pesquisa Frohmann (1995) aborda a política de informação enquanto área de pesquisa e destaca a existência, por um lado, de vários debates sobre o tema, porém, nunca viabilizados do ponto de vista de implementação da política de informação e, por outro, do fato da maioria dos instrumentos ou documentos de política não exercer nenhuma influência sobre os produtores de política (policy makers). Para Frohmann, o leque dos problemas encontrados na análise das diferentes concepções de política de informação, além de revelar uma excessiva complexidade do tema, sugere limitações específicas dos estudos sobre política de informação no âmbito da ciência da informação. Com estas constatações, Frohmann (1995, p. 2-4) desenvolve uma série de críticas sobre o que chama de limitações da literatura sobre política de informação em ciência da informação, destacando: 1. a interpretação da questão da política de informação sob o foco da produção documental governamental, ou seja, como política do governo para os documentos do governo; 63 2. a restrição do foco da pesquisa em política de informação aos problemas de produção, organização e disseminação da informação científica e tecnológica; 3. o foco epistemológico bastante estreito (narrow) da ciência da informação sobre política de informação; 4. o caráter instrumental da pesquisa, com ênfase na maximização técnica e gerencial do fluxo da informação (ênfase para a implementação de tecnologias, aprimoramento da comunicação entre departamentos no âmbito da administração pública, aumento do acesso aos documentos governamentais) e; 5. a ausência de ênfase na relação entre informação e poder, ou sobre como o poder é exercido em e através de relações sociais mediadas pela informação. (Idem, tradução nossa). Do ponto de vista de ferramentas e metodologias para a pesquisa em política de informação, Rowlands (1996) identifica cinco linhas metodológicas principais - com base na análise da literatura da política de informação de Trauth24, consubstanciada no modelo da matriz bidimensional que distingue estudos prescritivos (normativos) e descritivos (linha central do conteúdo ou linha central horizontal) de um lado, e, de outro, estudos concebidos como particulares ou integrativos (linha central do escopo ou linha central vertical) - e conclui, corroborando com Trauth, que a grande lacuna da área foi dispensar a análise interdisciplinar para enfatizar necessidades imediatas dos formuladores de política. Conforme Rowlands (1996), o interesse da comunidade científica em relação ao debate sobre política de informação ocorre no marco da discussão sobre a infovia de informação (superhighway) e outros desenvolvimentos relacionados, sendo caracterizado por dois fatores que, ainda segundo ele, teriam motivado as novas abordagens e experiências na área da política de informação: (1) a convergência de mídias, tecnologias e serviços que de forma significativa desafiam a política e a ordem de regulamentos estabelecidos; e (2) a existência de algumas abordagens que sugerem que a política de informação apresenta um potencial para contribuir positivamente no bem-estar econômico e social das sociedades (ROWLANDS, 1996, p. 13, tradução nossa). 24 TRAUTH, E. M. An integrative approach to information policy research, Telecommunication Policy 10 (1), p. 41-50, 1986 64 Além de Rowlands (1996) e González de Gómez (2002), outros autores como Caridad Sebastián, Méndez Rodríguez e Rodríguez Mateos (2000) e Lastres e Aun (1997), corroboram a dimensão dos fatores que motivaram uma aproximação à noção das políticas de informação. Caridad Sebastián, Méndez Rodríguez e Rodríguez Mateos (2000), por exemplo, discorrem sobre a dimensão das políticas de informação (como orientações ou diretrizes para a consecução do direito à informação e como conjunto de estratégias convergentes para estimular a nova era tecnológica que caracteriza a nova sociedade) e respectivos contornos ou contextos implicados na sua formulação e desenvolvimento (aspectos econômicos, sociais, culturais, estritamente políticos, o próprio mundo da informação e o contexto da investigação) e sugerem a definição de Hill como a mais condizente com estes aspectos: (...) as políticas de informação são projetadas para responder às necessidades e regular as atividades dos indivíduos, a indústria e o comércio, de todos os tipos de instituições e organizações e governos nacionais, locais, ou supranacionais. Devem regular a capacidade e a liberdade de adquirir, possuir e manter a própria informação, usá-la e transmiti-la. (HILL25 apud CARIDAD SEBASTIÁN, MÉNDEZ RODRÍGUEZ e RODRÍGUEZ MATEOS, 2000, p. 3, tradução nossa). Os autores admitem a diversidade de conceitos, mas também entendem que a concepção das políticas de informação se completa com o seu papel principal de prover o marco legal e institucional do qual decorre o intercâmbio formal de informação, o que, segundo eles, reflete objetivos políticos e burocráticos, dada a sua emergência na organização do governo e do aparato estatal. Este aspecto encontra-se na reflexão de Evelyn Daniel (2002), para quem uma política de informação “é o conjunto de regras formais e informais que diretamente, restringindo, impulsionando ou de outra maneira, formam fluxos de informação”. (DANIEL, 2000, p. 2, tradução nossa). Assim, e ainda conforme Daniel, a política de informação inclui, entre outros, aspectos como: “literacy, privatização e distribuição da informação 25 HILL, Michael W. Information policies: premonitions and prospects. Journal of Information Science, v.21, n. 4, p. 273-282, 1995. 65 governamental, liberdade de acesso à informação, proteção da privacidade individual e, direitos de propriedade intelectual” (Idem). Conforme González de Gómez, a relação entre política e informação ficou imersa nas novas configurações das infra-estruturas de informação e da noção de sociedade da informação, implicando a necessidade de sua reconstrução, fato que iria acontecer sob novos conteúdos e espaços de enunciação. As premissas (sustentadas na versão de Weinberg) que estabelecem, para a política de informação, uma relação estrutural e intrínseca entre a ordem política estadocêntrica e a ordem informacional, foram substituídas pelas novas premissas baseadas na concepção das redes e infra-estruturas de informação (com ênfase na institucionalização da Internet e na universalização do acesso a suas aplicações) que afirmam a relação estrutural da informação com a tecnologia e a economia. Em sua manifestação mais ampla e expressiva, a relação entre política e informação, nos novos cenários, deverá ser buscada em sua imersão nos domínios econômicos e tecnológicos, desde onde atua no plano implícito das micropolíticas, inscrita em componentes técnicos e não técnicos do desenho e operacionalização dos dispositivos de informação ou através de figuras econômicas – como as tendências oligopólicas ou monopólicas. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 32) Cubillo (2004) identifica a mudança de enfoque no interior dos organismos especializados e encarregados tradicionalmente de temas sobre informação que se desloca para novos “conceitos-metáfora e paradigmas-metáfora” não explicitados ou provados, dos quais destaca o de “sociedade da informação”, cuja ambigüidade, segundo ele, foi detectada nas sociedades de origem. Lastres e Aun (1997) sintetizam o quadro do desenvolvimento das políticas de informação afirmando que na década de 70 as tendências principais das políticas de informação “refletiam centralmente a ênfase ao desenvolvimento científico tecnológico, privilegiando a criação e armazenamento de informações correlatas” e, na década de 80, sob a influência dos avanços da difusão das tecnologias de informação e da aceleração do processo de globalização “as políticas passaram a valorizar a criação de infra-estruturas de informação 66 para a comunicação e utilização das milhares de bases de dados”. Já na década de 90, os avanços mencionados, associados aos avanços da informática e das telecomunicações - que passaram a agregar a comunicação com rapidez sem precedentes à ampla capacidade de armazenamento da informação - implicavam novos desafios no que se refere ao estabelecimento de prioridades enfocadas pelas políticas de informação. Na verdade, conforme Lastres e Aun (1997), “a grande virada da informação impressa para a eletrônica, incluindo a revisão do conceito de propriedade intelectual e da forma de como se deve definir, regular e conduzir a distribuição dessas informações” teria conduzido a importantes reestruturações e à conseqüente supervalorização do fator distribuição ou disseminação no ciclo de vida da informação. (LASTRES e AUN, 1997) As políticas de informação adquirem assim uma nova dimensão entre as políticas públicas (governos de diferentes países passaram a reorientar suas estratégias com relação ao desenvolvimento da área de informação), implicando em simultâneo a redefinição de seu escopo e abrangência. Os fatores que ditaram a nova dimensão das políticas de informação entre as políticas públicas e implicaram a redefinição de seu escopo e abrangência, teriam produzido tensão entre os atuais objetivos das políticas de informação e o fracasso das políticas existentes na altura. Os aspectos dessa tensão são explicitados com muita competência por Lastres e Aun (1997), retomando e reformulando a noção de tensão que marca os tópicos sobre a política de informação de Koenig (1995), nos seguintes termos: • • a capacidade de agregação de valor aos produtos e serviços intensivos [de] informação e ao fato de esta área passar a ser vista atualmente como componente fundamental para a competitividade de organizações e países; e o reconhecimento do papel da informação como bem e direito público, com suas características de transferência e distribuição de amplo acesso e baixo custo de reprodução, assim como com a sua importante contribuição nas áreas sociais. (LASTRE e AUN, 1997, p. 55) 67 Cubillo (2004) observa o lado sombrio da noção da sociedade de informação que se traduz no desconhecimento do que ela significa e como funciona, e da falta de clareza, inclusive nos países industrializados onde ela emerge, sobre a sua implantação e o grau de sua viabilidade em todos os ambientes e territórios, assim como da existência ou não de alternativas ou variantes. Apesar de mencionar esses aspectos inquietantes da sociedade da informação, Cubillo é otimista e enxerga novas oportunidades capazes de criar novos espaços para retomar o tema de políticas públicas de informação e manter vivas as discussões sobre o tema de informação e desenvolvimento. Tais oportunidades que visam “ressuscitar” o tema de políticas públicas de informação estão inscritas em cinco áreas de ação que incluem a necessidade de se considerar o ambiente global e local com os seus respectivos múltiplos cenários, conceitos e atores, nos seguintes termos: a) Construir um mapa dinâmico do conhecimento sobre políticas públicas de informação. b) Conhecer o que dizem e têm feito ‘os outros’ sobre as políticas em geral. c) Reposicionar o tema políticas públicas de informação nos âmbitos interdisciplinares de investigação. d) Reposicionar o tema políticas públicas de informação no âmbito dos programas de ensino e docência. e) Articular um conjunto de observatórios sobre as políticas públicas de informação (...). (CUBILLO, 2004, p. 5-8). A reflexão aqui apresentada mostra a trajetória das políticas de informação a partir do período pós-guerra e sua tendência atual, que busca o redesenho de seu escopo e abrangência no contexto dos novos ambientes marcados pela chamada sociedade da informação. Nossa pesquisa se inscreve dentro deste novo cenário das políticas de informação, buscando entender sua configuração no contexto da proposta de governo eletrônico em Moçambique como um projeto referido à noção de sociedade da informação e inserido dentro da perspectiva do Estado gerencial no contexto da invenção do consenso. 68 Em busca do aprendizado: algumas referências de análise das políticas de informação Dentro do cenário de abordagens das políticas de informação pretendemos apresentar aqui alguns indicadores que se manifestam no âmbito dos estudos e pesquisa sobre o tema como forma de reproduzir o panorama da área por um lado e, criar um referencial analítico das políticas públicas de informação no quadro da nossa pesquisa. Entre tais referenciais destacamos o regime de informação, a análise estrutural (frame analysis) e a abordagem de transferência de informação. Regime de informação Como uma categoria analítica a noção de regime de informação foi desenvolvida por Frohmann em 1995, dentro de uma perspectiva que, fundamentada na Actor Network Theory, busca levar o estudo da política de informação para além das fronteiras da ciência da informação. Frohmann (1995) acredita, a partir de estudos de Aines e Day26, que durante muitos anos houve maior elaboração e desenvolvimento de sistemas de informação e menos planejamento nacional. Para ele, os fluxos de informação, sejam eles de forma cultural, acadêmica, financeira, industrial, comercial, institucional ou em suas formas híbridas (discursiva, real e social), apresentam formas e estruturas específicas. Com este raciocínio Frohmann introduz categoria de regime de informação como: um sistema ou rede mais ou menos estável no qual informação flui através de canais determináveis, a partir de produtores específicos, via estruturas organizacionais específicas, para consumidores ou usuários específicos. Radio e TV, distribuição de filmes, publicação acadêmica, bibliotecas, todos 26 AINES, Andrew A; DAY, Melvin S. National planning of information services. Annual Review of Information Science and Technology, 10: 3-42, 1975 69 são nós de redes de informação ou elementos de um específico regime de informação. (FROHMANN, 1995, p. 4, tradução nossa) Conforme Frohmann (1995), um legitimo objetivo da pesquisa no campo da política de informação seria a representação de regimes de informação (descrição de uma política de informação torna-se numa descrição da genealogia de um regime de informação), ou seja, uma descrição sobre como se originam, como determinam relações sociais, e como as formas de poder são exercidas dentro e através deles o que, segundo ele, implica (essa descrição) em mapear um processo resultante de conflitos entre grupos sociais, interesses e discursos. (FROHMANN, 1995, p. 5) Na perspectiva de Frohmann, um regime de informação constitui uma construção aberta e não dada, cuja análise pressupõe a percepção dos processos resultantes de conflitos entre grupos sociais, interesses, discursos, e mesmo artefatos científicos e tecnológicos. A noção de “regime de informação” acima referida é retomada por González de Gómez (2002) que procura a sua reformulação mantendo, porém, a concepção híbrida (discursiva, real e social) dada pelo seu autor. Esta tarefa surge, segundo González de Gómez (2002), no contexto dos novos cenários políticos para a informação que implicam uma revisão das categorias de análise e dos procedimentos metodológicos com que se estudam essas novas figuras das redes e dos processos de informação em grande escala. Para González de Gómez (2002) o 'regime de informação', (...) designaria um modo de produção informacional dominante em uma formação social, conforme o qual serão definidos sujeitos, instituições, regras e autoridades informacionais, os meios e os recursos preferenciais de informação, os padrões de excelência e os arranjos organizacionais de seu processamento seletivo, seus dispositivos de preservação e distribuição (...) Constituiria, logo, um conjunto mais ou menos estável de redes sociocomunicacionais formais e informais nas quais informações podem ser geradas, organizadas e transferidas de diferentes produtores, através de muitos e diversos meios, canais e organizações, a diferentes destinatários ou receptores, sejam estes usuários específicos ou públicos amplos. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 34) 70 Para González de Gómez (2002) o regime de informação não se configura como um sistema de informação ou um ‘sistema de sistemas’. Ele designa uma morfologia de rede, sendo intermediático (TV, jornais, conversas informais, Internet, etc.), interorganizacional (empresa, universidade, domicílios, associações, etc.) e intersocial (atores comunitários, coletivos profissionais, agências governamentais, entre outros). Isto é, não se reduz a um meio só de comunicação, a uma organização ou a uma comunidade ou agremiação (Ibidem, p. 345). O regime de informação expressa uma manifestação de “vontades plurais” e, como tal, incorpora conflito. Esse pressuposto evidencia o auge da definição de uma política como resultado da vontade de sujeitos coletivos envolvendo, naturalmente, o Estado e a sociedade. Os contextos sócio-culturais e políticos, intricados e complexos, são cogentes e determinantes na negociação e definição da política de informação para ajustar situações cambiantes e promover um equilíbrio ao conjunto de práticas e/ou ações orientadas à manutenção, reprodução ou mudança e reformulação de um regime de informação. Esse cenário pode e deve consolidar-se no quadro das políticas públicas em geral, com a implementação de um marco legal amparado por meio de diretrizes e regulamentos, bem como na existência de uma instituição ou instituições (gestoras e parte, elas próprias, da política) específicas, competentes e fortes, e distribuídas pelos diferentes níveis de ação informacional para coordenar sujeitos coletivos em suas ações e decisões cognitivas e promover a sincronização e a harmonização da demanda e da oferta em matéria de informação. Tais instituições constituem-se em agências públicas e privadas de informação referidas no âmbito da agenda do governo e que levam à formação das políticas públicas de informação. Na verdade, esta constitui uma condição que as situa (as instituições) no contexto 71 da própria política onde passam a revelar, simultaneamente, as suas dimensões técnicocientífica e sócio-política. A noção de regime de informação sugere a análise do conjunto de todas as partes que compõem a política de informação. Nesse contexto, considerando a noção da política de informação como um tema complexo que exige uma visão integrada para a compreensão de todos os seus elementos componentes, a noção de regime de informação parece constituir-se numa alternativa para a análise da política de informação em relação às abordagens que tendem a desenvolver uma fragmentação do tema ao focalizar tópicos específicos do mesmo. Contudo, as dificuldades inerentes à organização e controle da totalidade levantam problemas ligados à aplicação da noção de regime de informação. Neste estudo a noção de regime de informação será usada como um indicador que expressa uma manifestação de “vontades plurais” na descrição de uma política de informação, como um processo resultante de conflitos entre grupos sociais, interesses e discursos. Análise estrutural (frame analysis or frame theory) Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) exploram a análise estrutural (“frame theory”) como uma ferramenta chave para uma compreensão mais explícita da política de informação. Com este propósito, Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) apresentam algumas evidências empíricas27 que sugerem que o discurso dominante da política de informação teria sido moldado pela economia política. Destacam, nesse contexto, a fragmentação das 27 Os autores reproduzem o mapa conceptual da política de informação concebido por um dos autores (ROWLANDS, 1999) no qual são relacionados os conceitos desta em espaços bidimensionais (openness vs control e market regulation vs State control) que resultam em cinco subconjuntos de conceitos igualmente relacionados e tomados para representar subdomínios dentro do amplo campo da política de informação. Com a interpretação do modelo de Rowlands constatam que o discurso dominante da política de informação foi moldado pela economia política. 72 responsabilidades dos formuladores de políticas, instituições e fóruns de discussão, apontando a necessidade de uma visão de integração ou regime de política de informação, numa clara alusão à tão expressa complexidade da política de informação. Com base no modelo de Rowlands (1999), Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) mostram – dentro do contexto dos fatores econômicos - o paradigma da “informação como uma entidade dentro da economia do mercado” para uso dos consumidores (informação tendo valor econômico e controlada pelo mercado) ou do Estado na formulação de políticas (informação controlada pelo Estado ou setor público). Nessa perspectiva, a informação sob controle do mercado configuraria um modelo legal de propriedade sustentado por leis de propriedade intelectual e, sob controle do Estado, persistiriam fatores políticos que incidem ou consistem nos direitos de acesso para cumprir vários ideais inerentes ao processo democrático, coesão social e desenvolvimento cultural. No caso do uso da informação, mesmo como recurso característico sob controle do Estado, porém, o paradigma do mercado ainda subsiste, o que, segundo os autores, exige, como alternativa, a percepção da “informação como força constitutiva da sociedade”, uma visão que se estabelece em estreita ligação com a visão da política da chamada sociedade da informação. O poder invisível da sociedade de informação se encontra nas redes globais que transmitem a prosperidade, o poder, a informação e as imagens. As redes da sociedade de informação fazem mais do que transmitem a informação e as atividades: são produtores e distribuidores reais de códigos culturais. (ROIVAS28 apud ROWLANDS, EISENSCHITZ e BAWDEN, 2002, p. 34, tradução nossa) Dentro da perspectiva do paradigma econômico cujas limitações impõem a emergência de novas alternativas, percebem-se ainda duas perspectivas inerentes à noção de usuários de informação. De um lado, como consumidores e, de outro, como cidadãos. 28 Roivas, S. Citizenship in the Information Society, Department of Social Policy, University of Tampere. (www.uta.fi/laitokset/seminars/rights/roivas.htm, accessed 12 October 2001). 73 Outros fatores não econômicos (non-market), conforme Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) emergem dentro do contexto da abordagem humanista (paradigma humanista da informação) que distingue o processo de troca de informação como uma interação social, cujo foco estende-se aos aspectos culturais e identifica a necessidade do exercício democrático dos direitos, além do tópico da natureza individual do conhecimento e seu valor individual para o detentor do mesmo. A reflexão de Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) enfatiza as limitações da estrutura dominante da economia política (dominant political economy frame) e busca alternativas fora dos fatores econômicos ou do mercado, procurando identificar a dimensão interativa humana e social da política da informação. Os aspectos não econômicos ou fora do mercado sobre a regulamentação da informação representam uma dimensão interativa humana e social às políticas de informação. A informação flui entre os indivíduos que a avaliam, a compreendem e a usam em maneiras muito diferentes, não todas iguais e nem todas previstas pelos criadores dos trabalhos. (ROWLANDS, EISENSCHITZ e BAWDEN, 2002, p. 36). Tecendo considerações sobre as implicações da política de informação para os “policy makers”, Rowlands, Eisenschitz e Bawden (2002) fazem uma analogia da política com a epistemologia de Popper segundo a qual, todo o conhecimento humano é imperfeito e como tal ninguém pode reclamar estar de posse da verdade. A partir dessa visão, afirmam que se essa epistemologia é aceitável, segue que nenhuma política pode ser concebida como correta e defendem o aprimoramento contínuo das políticas de informação – embora reconheçam que nunca serão perfeitas – através do exame crítico de seus resultados e da espontaneidade de seus formuladores em modificá-las, ou seja, o “policy maker” popperiano busca “falsear” constantemente as formulações de sua política de forma a aprimorá-la. A análise estrutural das políticas de informação se inscreve, nesta pesquisa, em sua perspectiva que enfatiza a dimensão interativa humana e social dos processos de informação envolvendo aspectos culturais, exercício democrático de direitos, bem como dos aspectos 74 inerentes ao uso individual da informação para a produção de conhecimento – e que orienta o aprimoramento contínuo das políticas de informação em sua formulação e implementação. Transferência de informação Para Browne (1997a), a ausência de coerência e integração das políticas de informação decorre dos fatores que contrabalançam a retórica do fenômeno da informação como “quarto recurso”, uma mágica que reduz incertezas, principal ferramenta dos gerentes, fazendo com que (primeira razão) os governos reajam a estímulos de grupos poderosos de partes interessadas sobre tópicos específicos por eles sugeridos. Esta seria uma barreira dos governos em relação à coerência da política de informação que, pela sua natureza decorreria de interesses corporativos (barreira exógena). Outra razão para a ausência de coerência, segundo Browne (1997a), refere-se à natureza do campo da política de informação, como um campo de estudo e seu estágio de desenvolvimento formado por um escopo extraordinário do conceito de informação em que os seus proponentes ressentem-se das dificuldades para comunicar a necessidade e parâmetros da política de informação, visto que informação pode significar tudo ou nada para quem lida com ela no seu dia-a-dia. Soma-se a isto, a ausência de uma ligação clara entre os proponentes da política de informação e a principal corrente da política pública, um isolamento que faz com que aqueles não consigam sustentar suas idéias junto aos governos. Este aspecto traduz-se numa segunda barreira para uma efetiva política de informação e que reside no problema da relativa imaturidade da política de informação como um campo de estudo e de pesquisa que ainda precisa estabelecer fundamentos teóricos ou conceituais substantivos (BROWNE, 1997a, p. 263). 75 O raciocínio de Browne confirma a perspectiva segundo a qual “o conhecimento é endógeno ao policy process (...) [e que] “entendido como a instrumentalização de dados e argumentos, tem sido eleito como variável independente ...” (FARIA, 2003, p.22) A explanação de Browne demonstra claramente a existência de barreiras exógenas e endógenas que se configuram, respectivamente, de um lado, no interior dos governos influenciados por interesses externos e, de outro, no interior dos proponentes da política de informação e a não ligação desta com a política pública em geral criando assim um cenário de déficit de conhecimento incapaz de sustentar a formação de políticas na área da informação. Estas barreiras afetam profundamente a questão da definição do escopo e abrangência da política de informação. Braman [1990] propôs que uma área da política define-se historicamente com a existência de abordagens consensuais em relação à tomada de decisão sobre algum fenômeno que liga partes em um ‘regime’ de política. Ela cita a definição de McDowell de um regime como um dispositivo de organização que focaliza nas expectativas convergentes a respeito dos princípios, das normas, das regras e dos procedimentos em tópicos particulares das áreas [Braman, 1990]. (BRAMAN29 apud BROWNE, 1997a, p. 270, tradução nossa) Browne menciona duas abordagens que contribuem para a definição do escopo da política de informação. A primeira considera as categorias de uso do termo política (policy) definidas por Hogwood e Gunn como ponto de partida para a análise do que acontece na prática da política de informação. E a segunda, refere-se à declaração (statement) da política de informação baseada no Quadro da Política de Informação de Queensland30 e sustentada por um conjunto de normas de informação que converge áreas de “copyright” e propriedade intelectual, infra-estrutura, retenção e eliminação de documentos do governo e de assuntos de gestão tais como a segurança e “outsourcing”. 29 BRAMAN, S. The unique characteristics of information policy and their US consequences. In: V. Blake and R. Tjoumas (eds), Information Literacies for the Twenty- First Century (Hall, Boston, MA, 1990). 30 Department of the Premier, Delivering Services in the information age: Government Information Policy Statement (Information Policy Board, Brisbane, Queensland, 1995). 76 Contudo, Browne (1997a) afirma que as duas abordagens tratam do mundo cotidiano sem cobrir o potencial alcance da política de informação, sendo por isso, necessário encontrar uma perspectiva normativa para identificar o escopo da política de informação. A partir desta constatação, Browne recorre a Braman (1990) que sugere que: uma efetiva abordagem será toda inclusiva, terá um valor heurístico e organizacional, fornecerá uma ligação entre a teoria e as atividades e modalidades do mundo real e modos de pensar e será sensível à política latente e manifesta”. (BRAMANN apud BROWNE, 1997a, p. 270, tradução e grifo nossos). Para Browne, outra característica importante de uma declaração normativa deveria ser um quadro conceitual que fosse simultaneamente detalhado e inteligível e permitir que os “policy makers” entendam a idéia fundamental da miríade de tópicos de informação, relacionando a idéia à declaração normativa (critério da clareza e utilidade). Em busca desse propósito, Browne (1997a) reproduz um quadro da literatura sobre política de informação e mostra o ponto de partida para o problema da definição do escopo do campo da política de informação e desenvolvimento da declaração normativa. Ressalta ser curioso, porém, que essas idéias não tenham sido usadas no âmbito da literatura sobre política de informação para dirimir o caráter iminentemente implícito de algumas noções sobre a área. Assim, considera tratar-se de declarações ou listas limitadas por não apresentarem uma relação entre os seus componentes, no contexto do fluxo da informação desde o ponto de sua produção até ao seu uso. (...) Hernon e Relyea [1968], fornecem uma boa sugestão à substância da política de informação. Estes escritores focalizam o conceito do ciclo de vida da informação no centro da área, o que significa que as políticas públicas que esbarram 'na produção, coleção, distribuição / disseminação, recuperação e eliminação da informação ' são relevantes. Burguer, ao discutir a matéria da definição, afirma acreditar que 'a política de informação estabelece os parâmetros dentro dos quais a informação é controlada (criada, sintetizada, analisada, armazenada, disseminada, recuperada, e usada) por seres humanos [Burguer, 1993]. Eisenschitz, embora não enumere os processos em nenhum detalhe, afirma que a idéia de processos de transferência de informação constitui o foco da política de informação [Eisenschitz, 1993]. Trauth vê o campo da política de informação como sendo uma extensão da qual o livre fluxo da informação é realçado ou restringido pela política atual [Trauth, 1986]. Braman define a política de 77 informação como 'relacionado a todo o estágio de uma cadeia da produção da informação que vá da criação através do processamento e armazenamento à destruição' [Braman, 1990]. (BROWNE, 1997a, p. 270-271, tradução nossa). Para Browne (1997a), no que se refere à visão da política de informação, a escala de modelos que tratam do fluxo da informação, com foco na informação em si, e que buscam “demonstrar a transmissão física dos sinais” (entre eles, os de Shannon e Weaver e os de infra-estrutura), e os modelos baseados na idéia do “ciclo vital da informação” sugerem parâmetros da área. Contudo, os mais valorativos, segundo ele, são os modelos que assumem o papel profissional, seja em nível organizacional ou humano, na facilitação do fluxo da informação desde seus produtores aos usuários para a geração de mais informação, com destaque para os genericamente chamados “modelos de transferência da informação”, cujo propósito, embora nem sempre, mas geralmente, reflete os processos na movimentação da informação na forma de documentos ao longo de uma cadeia das fontes aos usuários. Para ser ideal no delineamento dos parâmetros da política de informação, explica Browne: (...) um modelo de transferência da informação precisa incorporar, além do papel dos especialistas e organizações no processo de transferência da informação, muitas características tanto nos moldes do critério de Braman (1990), quanto do critério de clareza e utilidade do quadro conceitual (ambos acima referidos). O papel das partes interessadas (usuários, vendedores, coletores, entre outros) fora dos profissionais de informação e os processos através dos quais se acrescenta valor à informação são outros aspectos particulares às considerações da política de informação e que se devem incluir ao alcance da declaração ou modelo. (BROWNE, 1997a, p. 271, tradução e grifo nossos). Como se pode depreender, Browne constrói uma abordagem para a definição do escopo da política de informação baseada no processo de transferência da informação, numa perspectiva que busca assegurar o fluxo da informação e garantir a assimilação da informação pelo usuário. No fundo, trata-se de um enfoque sobre os aspectos técnicos da informação consubstanciados no ciclo da informação e no papel dos profissionais em nível organizacional 78 e humano na facilitação do fluxo da informação desde seus produtores aos usuários para a geração de mais informação. Conceito e características da política de informação Montviloff (1990) assinala a fase inicial em que se encontra o desenvolvimento/construção do conceito de política de informação caracterizado por teorias não consolidadas e por abordagens que frequentemente se prestam a controvérsias. (MONTVILOFF, 1990, p. 5) Na perspectiva de Montviloff (1990), política de informação constitui um conjunto de princípios e estratégias aplicadas ao campo da informação para orientar o curso de ação na concepção de estratégias e de programas destinados ao desenvolvimento e uso de recursos, serviços e sistemas de informação, podendo formular ou desenvolver-se em nível orgânico ou institucional (micropolítica), nacional, regional ou internacional (macropolítica). A ação da política de informação, neste caso, estaria condicionada aos instrumentos de política nos quais se encontra referida, entre eles, instrumentos jurídicos (constituição, leis e decretos do parlamento, regulamentos, tratados internacionais, etc.), instrumentos profissionais (códigos de conduta, deontologia, etc.) e instrumentos culturais (costumes e crenças, tradições, valores sociais, etc.) (Ibidem, p. 7). Ainda na perspectiva de Montviloff, os domínios de aplicação das políticas de informação incluiriam aspectos como recursos, serviços e sistemas de informação, os quais formam a infra-estrutura da informação. Segundo Weingarten (1989), política de informação “é o conjunto de todas as leis públicas, regulamentos e políticas que encorajam, desencorajam ou regulam a criação, uso, 79 armazenamento e comunicação da informação” (WEINGARTEN31 apud ROWLANDS, 1996, p. 14, tradução nossa). Rowlands sintetiza visões da política de informação para definir suas características comuns e, a partir da visão de Weingarten, aponta que “o papel fundamental da política é fornecer estrutura legal e institucional dentro da qual possa ocorrer a troca formal de informação”. Conforme Hernon e Relyea, não existe política de informação no singular, mas políticas que indicam problemas específicos e tópicos frequentemente contraditórios. (HERNON e RELYEA32 apud ROWLANDS, 1996, p. 14) Rowlands acrescenta, argumentando que não se pode qualificar políticas em “boas” ou “más”, mas, talvez, a existência de compromissos efetivos entre interesses em competição. Este aspecto é corroborado pela Caridad Sebastián, Méndez Rodríguez e Rodríguez Mateos (2000) que advertem para a necessidade de se avaliar o nível de compromisso entre os interesses competitivos, sobretudo, o uso e o acesso à informação dentro dos moldes da nova sociedade globalizada. Rowlands resgata ainda o ponto de vista do balanço de objetivos e interesses em competição de Galvin e sugere que a política de informação “(...) deveria ser flexível, dinâmica e responsiva às circunstâncias de mudanças (....) o objetivo chave para a pesquisa em política de informação devia, conseqüentemente, se inscrever na tentativa de estabelecimento de territórios e limites dessa incerteza.” (ROWLANDS, 1996, p. 15, tradução nossa) Um dos pontos críticos da abordagem de Rowlands, que deriva da assinalada complexidade e incerteza da política de informação, refere-se à sua característica de influenciar 31 e ser, simultaneamente, influenciada por eventos, constituindo-se, Weingarten, Fred W. 1989. Federal Information Policy Development: The Congressional Perspective. In McClure, Charles R., Hernon, Peter, and Relyea, Harold C. (eds.), United States Government Information Policies. Norwood, NJ: Ab lex Publishing Company. 32 HERNON, P.; RELYEA, H. C. Information policy. In: A. Kent and H. Lakour (eds). Encyclopedia of Library and Information Science: Volume 48, Supplement II. (Dekker, New York, 1968 -). 80 conseqüentemente, tanto como uma variável independente (analisada a partir de seus impactos e resultados), quanto como variável dependente (análise de fatores culturais, econômicos, sociais, entre outros que influenciam e orientam a política e sua implementação). Segundo Rowlands, essa concepção teria inspirado a definição de políticas de informação de Burger (1993), ainda mais ampla e inclusiva, como sendo “os mecanismos societários usados para o controle da informação e os efeitos societários de aplicação desses mecanismos” (BURGER33 apud ROWLANDS, 1996, p. 15, tradução nossa). Em síntese, Rowlands evidencia algumas características da política de informação, quais sejam, a complexidade e sua natureza abstrata, o conflito evidente entre interesses em competição e a necessidade de manutenção de compromissos efetivos, o apelo à flexibilidade, dinamismo e “responsividade” às mudanças, o caráter imprevisível de seus impactos e resultados (incerteza), além da sua particularidade como variável, simultaneamente independente e dependente. Sob o prisma das características de uma política nacional de informação, Montviloff (1990) sugere diferentes contextos de sua configuração, de acordo com a disponibilidade de infra-estruturas de informação e a existência ou não de uma política de informação, como sejam: 1. países que contam com escassas infra-estruturas de informação e que não têm nenhuma política de informação, o que pode ocorrer em países menos avançados; 2. países que contam com infra-estruturas de informação porém não têm nenhuma política de informação; pode tratar-se de países em desenvolvimento ou de países desenvolvidos que já estabeleceram alguns serviços de formação, mas não têm nenhum organismo nacional instituído nem legislação sobre política de informação; 3. países que contam com uma política de informação porém sem infraestruturas adequadas; pode tratar-se de países desenvolvidos ou de países em desenvolvimento que já empreenderam o trabalho de formulação de um marco legislativo; 4. países com infra-estruturas de informação adequadas e contam com uma ou várias políticas; trata-se de países avançados com políticas de 33 BURGER, R. H. Information policy: a framework for evaluation and policy research (Ablex, Norwood, NJ, 1993). 81 informação, mas sem harmonia em suas várias disposições.” (MONTVILOFF, 1990, p. 10) Como vimos na sistematização do quadro da literatura sobre políticas de informação feita por Browne no âmbito da proposta de uma abordagem de transferência da informação, e que vale a pena resgatá-la nesta seção, Eisenschitz, por exemplo, enfatiza a necessidade do estabelecimento de mecanismos que garantam todo o processo de transferência da informação. Por sua vez, Hernon e Helyea focalizam o ciclo de vida da informação, enquanto Burguer destaca o estágio da cadeia de produção da informação, indo desde a sua criação através do processamento e armazenamento à destruição. Abordando a política de informação no contexto da globalização, González de Gómez questiona se se pode trasladar política de informação dos espaços territoriais do Estado Nacional aos espaços comunicacionais da globalização. Dentro dessa contextualização, González de Gómez responde que, se antes podia se entender política de informação como ‘o conjunto explícito de princípios e escolhas coordenadas do que seria desejável e realizável para um país em matéria de produção, transferência e acesso à informação’ (GOMEZ34 apud GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 1997, p. 18-19) “hoje precisamos de uma abordagem complementar, ao mesmo tempo mais abrangente e mais ‘molecular’” no quadro da necessidade do (re)desenho de novas estratégias analíticas e metodológicas em relação ao estudo da nova feição das redes e dos processos de informação, como conseqüência da emergência de novos discursos e enunciados, bem como da formação de novos espaços sociais de práticas e interações no âmbito do exercício da condição comunicacional e informacional. Utilizando, nessa direção, a noção de regime de informação, uma política de informação, na sua nova feição, segundo González de Gómez (1997, p. 19), “seria o conjunto de práticas / ações encaminhadas à manutenção, reprodução ou mudança e reformulação de um regime de informação, no espaço local, nacional, regional ou global de sua manifestação”. 34 GOMEZ, M. Y. S. de F. O Estado e o processo de informação científica e tecnológica no Brasil. Ciência da Informação, v. 17, n. 2, p. 105-117, 1988. 82 A partir das características mencionadas acima, Rowlands (1996) conclui sugerindo um modelo hierárquico de três níveis para a política de informação e que compreende: (1) políticas de infra-estrutura que se aplicam transversalmente (através de) na sociedade e afetam direta e indiretamente o setor da informação, fornecendo um contexto social e econômico para suas atividades; (2) políticas de informação horizontais que se aplicam ao setor inteiro da informação para aplicações particulares, tais como políticas de controle de importações ou a lei da proteção de dados, e; (3) políticas de informação verticais que se aplicam a um sector específico da informação para uma aplicação particular, tais como uma comunidade geográfica de informação (ROWLANDS, 1996, p. 15, tradução nossa). Na verdade, Rowlands busca, com esse modelo, definir o escopo da política de informação. Contudo, mesmo reconhecendo a utilidade e produtividade do modelo que coloca as políticas de informação num contexto bastante amplo da conjuntura pública, considera que estende ainda mais o problema de escopo, tornando mais difícil a conceituação da política de informação em seu sentido mais inclusivo e mais detalhado. Para superar as implicações do modelo hierárquico das políticas de informação, Rowlands sugere a “necessidade de estabelecimento de um regime da política de informação, que seja detalhado, sensível à nova tecnologia e responsivo às implicações da era da informação”. (ROWLANDS, 1996, p. 16, tradução nossa) A sugestão de uma estrutura coerente feita por Rowlands encontra resposta na forma da matriz da política de informação proposta por Moore35 em 1993, cujo modelo “localiza objetivos da política de informação em um espaço bidimensional que focaliza a atenção nas diferentes necessidades da indústria, de organizações individuais e de sociedade”. (ROWLANDS, 1996, p. 16, tradução nossa) Como se pode depreender, a política de informação não é uma noção estanque. Ela apresenta uma dinâmica inerente à sua formulação, implementação e avaliação. 35 MOORE, Nick. Information policy and strategic development: framework for the analysis of policy objectives, Aslib Proceedings, 45(11/12), p. 281-285, 1993. 83 A noção de política de informação pressupõe sua inferência a partir do conceito de informação e não o contrário, sob o risco de se assumir um significado discursivo que surge simplesmente porque por de traz existem, inevitavelmente, outros sentidos implícitos. Na medida em que o sentido de informação não é menos ambíguo dentro do contexto da política, é importante que o seu conceito seja suficientemente cristalizado (consolidado), pois a formulação e implementação da política de informação depende da clareza do conceito de informação. O quadro de conceitos sobre políticas de informação aqui apresentado exprime a complexidade que atravessa a noção de políticas de informação, expressando cada um dos conceitos, em menor ou maior grau de profundidade, particularidades e aspectos inerentes à noção de políticas de informação, o que sugere a complementaridade no uso dos conceitos. Como cenário de fundo, a literatura sobre políticas de informação aponta um quadro de pesquisa sobre o tema que inicia na década de 90, como reflexo das transformações do contexto organizacional da sociedade, cujo ponto de referência são as noções de “infovias” de informação, da sociedade da informação e da globalização. Esse quadro de pesquisa está atrelado a uma “ordem internacional da informação”36 e concentra-se, na maioria dos casos, em alguns países do capitalismo avançado, dos quais identificamos, no âmbito deste estudo, países como EUA, Inglaterra, Espanha e Austrália, apresentando maior número de pesquisas e de pesquisadores envolvidos. Esta situação não é surpreendente. Ela reflete tanto o quadro histórico de emergência do tema política de informação moldado nos países do capitalismo avançado no período pósguerra quanto a origem das noções de “infovias” de informação, da sociedade da informação e da globalização, igualmente identificados naqueles países. 36 Expressão usada por Jardim para realçar a oposição entre países detentores de informações estratégicas, grandes centros de pesquisas e formação (centros informacionais) e aqueles nos quais predomina o analfabetismo e, portanto, sob o risco de serem excluídos das economias da informação (perferia não informada) (JARDIM, 1999, p. 28). 84 O tema políticas públicas demonstra uma densidade e riqueza na sua área de estudos e pesquisa, e consenso nas suas abordagens, fundadas num corpus teórico bastante consolidado no âmbito da ciência política ou das suas múltiplas subáreas e relações interdisciplinares. Ao contrário, o tema políticas de informação padece de densidade teórica nas suas abordagens, com o agravante da ausência de integração dos principais tópicos que compõem a sua temática no quadro dos estudos e pesquisa, além do seu distanciamento em relação ao quadro teórico das políticas públicas. O tema política de informação, enquanto área de pesquisa, não se mostra estável. A sua instabilidade ressalta-se pela diversidade que norteia suas abordagens, muitas vezes não menos divergentes entre si, e reitera-se pela ausência de consenso sobre seu escopo e abrangência e sua dimensão epistemológica. Contudo, a noção de política de informação pode-se consolidar no seu campo de estudo e de pesquisa que sugere a sua análise epistemológica (estudo da sua gênese e estruturação) para estabelecer fundamentos teóricos ou conceituais substantivos e construir um consenso a partir de sua inserção dentro da dimensão humana interativa e social em busca de explicitação da relação entre política e informação e referido no quadro das transformações, discursos e enunciados que caracterizam a sociedade. A inconsistência do tema políticas públicas de informação no seu campo de estudo e pesquisa, se não for exagero, parece sugerir uma inconsistência da própria ciência da informação em relação ao estudo e pesquisa nesta área. Enfatizados muitas vezes pela literatura da área e reificados (materializados) empiricamente, esses aspectos, porém, não tiram o mérito da política de informação como uma categoria ou noção operacional para a análise da dimensão da informação em seus diferentes contextos. Pelo contrário, entendemos que as abordagens de política de informação que enfatizam a noção de regime de informação (FROHMANN, 1995; GONZÁLEZ DE 85 GÓMEZ, 2002), a análise estrutural (ROWLANDS, 1999; ROWLANDS, EISENNSCHITZ e BAWDEN, 2002) e a abordagem de transferência de informação (BROWNE, 1997a; BRAMAN, 1990) formam, em conjunto, um exemplo de referencial de análise do nosso universo empírico consubstanciado no projeto de governo eletrônico em Moçambique. Nos termos desta pesquisa, entendemos políticas de informação dentro da perspectiva das políticas públicas onde elas emergem e se estabelecem como uma das suas dimensões, formuladas no âmbito da relação Estado e sociedade e constituídas por duas esferas (estatal e pública) distintas, mas entrelaçadas e sendo sua formulação susceptível de ocorrer em nível setorial, nacional, regional ou internacional, e sua ação condicionada aos instrumentos de política, entre eles, jurídicos, profissionais e culturais. Considerando as abordagens conceituais sobre políticas de informação no domínio da literatura sobre o tema e tendo em vista a delimitação do nosso objeto de estudo, consideramos que: • O uso social da informação reflete e fornece elementos ao processo de formulação e implementação de políticas públicas de informação e implica maior governança informacional; • A efetivação da governança informacional demanda a formulação e implementação de políticas públicas de informação; • As políticas de informação constituem uma das dimensões das políticas públicas; • A formulação e implementação de políticas de informação é um processo que envolve conflitos entre grupos sociais, interesses e discursos. • A fragilidade de políticas e estruturas de informação, bem como a institucionalização igualmente precária destas, favorece e reflete as estratégias de poder, em detrimento do uso social da informação. 86 Traçamos, portanto, a trajetória histórica que acompanha as políticas de informação em sua configuração, tanto como expressão da ação estatal, quanto como área de pesquisa científica no âmbito da ciência da informação, esboçando linhas teóricas que nortearão a discussão da noção de governo eletrônico como uma dimensão informacional na qual se conformam relações entre Estado e sociedade civil. 87 C AP Í TU LO 4 _____________________________________________________________________________________ GOVERNO ELETRÔNICO, SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO E AS RELAÇÕES ESTADO E SOCIEDADE CIVIL A sociedade tem se caracterizado por uma série de transformações sociais que marcam o seu processo de desenvolvimento. Dentre tais transformações pode se destacar desde as grandes navegações marítimas entre os séculos XV a XVIII com fundo em explorações geográficas passando pela Revolução Industrial, cujo fator chave foram os insumos “baratos” de energia, com intensidade sobre a produção de bens e máquinas industriais e seu testemunho, entre outros aspectos, sobre a formação de grandes monopólios, da rede ferroviária e de inventos que revolucionaram a comunicação. Este ciclo vai até às transformações econômicas do período pós-Segunda Guerra Mundial, em que a economia passa por um período de crescimento e pleno emprego, para um outro de crise e desemprego (pós anos 70). Esta situação teria induzido a reforma do modelo econômico até então vigente, bem como da política do Estado, favorecendo uma modificação do papel deste e o início da discussão do princípio da soberania do Estado-Nação, além da emergência de novos atores. Surge então um novo cenário geopolítico em que se enfatizam aspectos como a globalização, fragmentação e articulação; rigidez e flexibilidade; homogeneização e diferenciação; integração e exclusão; neoliberalismo e neoprotecionismo; modernidade e pós-modernidade, entre outros. O surgimento desses aspectos apontava para um novo paradigma técnico-econômico – caracterizado pela microeletrônica e novas tecnologias de informação e comunicação, maior complexidade e interpenetração de tecnologias mais baseadas em ciência, e maior velocidade em inovações – mais conhecido por “Sociedade da Informação”, que para uns trata-se de uma “Sociedade Pós-Industrial” (Bell, 1976), “Economia da Informação” (Porat, 1977) ou 88 “Sociedade em Rede” (Castells, 1999 e Latour, 2000), uma proliferação de designações que revela falta de consenso sobre o alcance e natureza das transformações que moldaram o novo paradigma, cuja economia é baseada em conhecimento. Alguns aspectos sobre a noção de sociedade da informação Oriunda de países industrializados, a noção de sociedade da informação tem sido um dos principais traços característicos do debate público sobre o desenvolvimento no atual século XXI, estimulado por propostas políticas desses países e de discussões acadêmicas que buscam explicitar a sua imprecisão conceitual em relação às mudanças do mundo contemporâneo e contribuir para a participação de todos nos esforços a favor de seu desenvolvimento. Santos (2002) afirma que o conceito de globalização surge a partir de experiências muito parciais sem fundamento histórico sobre a realidade e não da “intervenção científica dos analistas a partir de dados validados pelo tempo ou surgidos da análise histórica de longo curso”. (SANTOS, 2002, p. 2). Já a noção de sociedade da informação se reveste, segundo ele, mais de “inspiração de ideais e de especulações” sobre a atual lógica da transmissão da informação e da comunicação por meios tecnológicos, do que de uma perspectiva de benefícios para todos os integrantes da sociedade. (Idem) Conforme Santos (2002), a noção da sociedade da informação “surgiu na década de 90 coincidindo com a extinção da dicotomia entre os Estados Unidos e a União Soviética (...), a reestruturação da economia capitalista no que respeita à ‘flexibilidade de gerenciamento’ (...) e ao desmonte final do Estado de bem-estar social”. (Ibidem, p. 2-3) 89 Para Santos (2002), o primeiro fato histórico distingue os EUA como “orientador e responsável pela agenda geopolítica e econômica do mundo”, agora caracterizada pela interdependência e desigualdades econômicas. O segundo, reflete a intensidade na diminuição do impacto das forças produtivas e maior diversificação das relações de trabalho movidas por uma tendência à dependência tecnológica e informacional na produção de bens. E o terceiro assume orientações e intensidade novas e mais adequadas às novas exigências do mercado e aos recursos obtidos junto à sociedade. Estes aspectos, associados às contradições inerentes ao capitalismo teriam sido condicionantes da intensificação da construção de uma infra-estrutura de informação, cujos EUA figuram como pioneiros. (SANTOS, 2002, p. 3) A noção de sociedade da informação viria a surgir então como um fundamento dentro das tendências voltadas para o estabelecimento da infra-estrutura para dar suporte ao avanço à tecnologia de rede e às novas exigências do mercado, tendo a informação como um bem social e elemento de emancipação da cidadania e da ação governamental sem, contudo, se plasmar numa perspectiva igualitária sobre os benefícios que iria oferecer à sociedade. (...) o conceito fraco de sociedade da informação surge de uma ‘resposta da União Européia ao desafio lançado pelos Estados Unidos com a NII37 e, em seguida, com a GII’, consistente no esforço que se devia fazer no sentido de tornar a infra-estrutura informacional um meio capaz de envolver ‘aspectos multiculturais e multilinguísticos com uso social da tecnologia’, isto é, a tecnologia como propulsora dos tráfegos e da distribuição de informações e como catalisadora das comunicações não deveria fugir a determinadas regras sociais, como originalmente desejavam os Estados Unidos, de acordo com sua ênfase, de tornar as aplicações ‘livres, irrestritas, do jeito que os usuários quisessem’, e nem mesmo deveria ser um fim em si mesma, mas fazer parte de um sistema no qual fosse mediadora da informação enquanto bem social e facilitadora da execução de políticas públicas (Brasil, 2000). (SANTOS, 2002, p. 3-4) Uma das perspectivas que tem norteado o uso do termo sociedade da informação tem se caracterizado pela tendência à substituição do conceito de “sociedade pós-industrial” para 37 “Inicialmente voltado para o avanço da tecnologia de redes e computação nos EUA e com um viés basicamente acadêmico, expandiu-se a partir de 1993/94 para incluir a iniciativa da National Information Infrastructure (NII), impulsionada pela administração de Clinton/Gore, com foco na abordagem de desafios concretos da economia e sociedade americana. A chamada NII foi o mote inicial a partir do qual, em 1994, os EUA lançaram a idéia da Global Information Infra-structure (GII) como um desafio mundial a ser enfrentado por todos os governos” (Brasil, 2000).” (SANTOS, 2002, nota de fim de página n. 2, p. 62) 90 exprimir o novo paradigma técnico-econômico no contexto das transformações técnicas, organizacionais e administrativas, cujo fator chave são os insumos “baratos” de informação, decorrentes dos avanços tecnológicos na microeletrônica e telecomunicações. A ruptura do capitalismo industrial com o novo paradigma tem sido identificada com a essência das novas tecnologias, com ênfase na flexibilidade e na sua capacidade de influenciar a efetividade dos processos de desregulamentação, privatização e ruptura do modelo de contrato social entre capital e trabalho, sendo a sociedade da informação identificada, nesse quadro, com a expansão e reestruturação do capitalismo nos países centrais, desde a década de 80 do século findo. As principais características do novo paradigma estariam consubstanciadas, conforme Castells38 (apud WERTHEIN, 2000, p. 72), na informação como sua matéria prima, na alta penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias, no predomínio da lógica de redes, na flexibilidade e na crescente convergência de tecnologias. A literatura tem apontado críticas ao determinismo tecnológico e ao evolucionismo (sociedade da informação como etapa de desenvolvimento) na discussão do novo paradigma, sugerindo que o avanço tecnológico no novo paradigma e as iniciativas de desenvolvimento da noção de sociedade da informação resultam, em maior grau, da ação do Estado – tanto em países do capitalismo central quanto em países do capitalismo periférico – que lidera e/ou mediatiza a reestruturação do capitalismo e a difusão das novas tecnologias da informação, num contexto interativo com as forças sociais, gerando um processo de transformação social. Até porque os desafios da noção de sociedade da informação que consistem nas desigualdades de renda e desenvolvimento industrial entre os povos e grupos da sociedade e que se reproduzem no novo paradigma, poderão ser superados com a ação social consciente e não com o avanço tecnológico em si mesmo. 38 CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura. In: A Sociedade em rede. São Paulo : Paz e Terra, 2000. v. 1. 91 Conforme Cepík e Eisemberg (2002), a noção de sociedade da informação define-se como “uma rede transnacional constituída ao redor das novas TICs” (Ibidem, p. 292), sendo consubstanciada em três aspectos, tais como “uma economia baseada no conhecimento, um novo papel das finanças e uma nova sociabilidade em rede” (Ibidem, p. 294). O seu crescimento estaria baseado no conhecimento, manifestando-se através da indústria de computadores como a principal indústria de sua economia, em estreita relação com o setor financeiro em que ambos enfatizam novos valores nos mercados globalizados, na produção e circulação de bens. Esse círculo de interdependência se completa, ainda de acordo com Cepík e Eisemberg (2002), com a esfera do consumo de produtos, cuja circulação numa escala mundial cria novas formas de sociabilidade em rede que ultrapassa os espaços territoriais definidos. A noção de sociedade da informação como um paradigma associado às tecnologias da informação e comunicação apresenta novas exigências, requerendo maior preparo e educação permanentes para o desempenho das funções que estão em constantes mudanças. E, como tal, fazem ou farão parte dela, em condições de enfrentar os seus desafios e ameaças, e aproveitar as oportunidades em benefício da sociedade, somente os indivíduos bem preparados, que sabem transformar dados em informações e estes em conhecimentos, e com formação ética bastante acurada. A exemplo de outros paradigmas que a antecederam, a noção da sociedade da informação apresenta uma profunda relação com o funcionamento do Estado, com enfoque para os aspectos informacionais e tecnológicos que sustentam as atividades do aparato estatal. Malin (2003) concebe a sociedade da informação do ponto de vista da produção/tratamento/propagação de informações sobre informações (meta-informação) como um vasto campo de trabalho (MALIN, 2003, p. 15). 92 Malin (2003) faz um mapeamento dos importantes fatos constitutivos da relação Estado moderno e informação e destaca os laços constitutivos entre Estado e informação. Para ela, tais laços teriam relação com a transformação da informação em objeto de estudo no pósguerra dentro do cenário do avanço do industrialismo, da burocratização dos Estados e da organização de uma esfera pública, testemunhado pela formulação de planos nacionais e internacionais de informação centrados na problemática da informática, informação e sociedade (Ibidem, p. 58-61). Na verdade, quando Malin se refere ao período pós-guerra busca também a emergência da política de informação como tema e domínio relativamente autônomo no contexto do pós-guerra, associada à ciência e tecnologia e que se encontra referida à dimensão histórica dos laços que unem Estado e informação. As principais características da sociedade da informação ou pós-industrial são referidas a partir da nova economia informacional – “a capacidade para gerar, armazenar, processar e aplicar efetivamente o conhecimento baseado em informações determina a produtividade e competitividade dos agentes” (ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 2) – e global – “porque a produção, a distribuição e a concorrência são realizadas em uma rede internacional de interações” (Idem) – que emerge das novas tecnologias de informação e comunicação. Para Araújo e Gomes (2005), a emergência da noção da sociedade da informação associada à crise fiscal teria levado vários Estados a empreenderem reformas (primeira geração de reformas do aparato público) na sua administração e no seu papel diante da sociedade a partir do final dos anos 70 e início dos anos 80. Os autores se referem à existência do enfoque da tecnologia da informação no âmbito dessas reformas, cujo objetivo seria a disponibilização de informações públicas. Na exposição de Araújo e Gomes (2005), é evidente uma preocupação quanto à adaptação do aparato estatal aos novos moldes de gestão proporcionados pelas tecnologias de informação e comunicação, o que, segundo eles, exige que os governos promovam “alterações 93 em sua cultura e estrutura de forma a viabilizar o fornecimento amplo das informações, fortalecer a cidadania e a participação política na tomada de decisões”. (Ibidem, p. 8). Castells (1999) coloca a modernização tecnológica da administração pública como um princípio essencial para o uso contínuo de redes informacionais e de telecomunicações como instrumento de cidadania. É interessante na exposição desse autor o alerta para uma questão especial: “a introdução de tecnologias informáticas em organizações burocráticas as fazem ainda mais burocráticas, exacerbando seus problemas.” Logo, a introdução de novas tecnologias depende de uma nova cultura gerencial, voltada para os resultados para a sociedade e não o contrário. (CASTELLS39 apud ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 6). O conjunto de aspectos aqui apresentado constitui um desafio para a sociedade como um todo, na medida em que esta exige respostas claras aos problemas vinculados à noção de sociedade da informação, bem como a explicitação de seu sentido que, no entanto, vem dividindo a opinião de seus pensadores. A crença da sociedade da informação em seus fundamentos teóricos reside - em relação aos seus defensores como vimos até aqui - na suposta existência de “transformações suficientes em determinadas sociedades que justificam uma nova denominação”, sendo sustentada por meio de: 1) determinismo tecnológico baseado no “quantitativismo” sobre a disseminação e uso das tecnologias – âmbito tecnológico; 2) descrições quantitativas sobre mudanças econômicas que esbarram tanto em suas projeções quanto sobre os critérios de exclusão e inclusão – critérios econômicos; 3) projeções em ocupações de trabalho informacional marcadas, contudo, por “contradições e inconsistências nos critérios de distribuição dos postos por categoria” de trabalho – critério ocupacional; 4) análises econômicas e sociológicas que enfatizam as supervias ou autoestradas de informação na promoção de mudanças sociais, mas que levantam questionamentos sobre “critérios de transmutação analítica de quantidade em qualidade” e sua “comprovação pela medição dos fluxos informacionais” – critério espacial; 5) reconhecimento de uma extraordinária expansão do conteúdo informacional na vida cotidiana em algumas sociedades que, contudo, “aponta mais para mudanças de grau de intercâmbio simbólico do que mudanças qualitativas que possam caracterizar outro tipo de sociedade” – critérios culturais (FREITAS, 2002, p. 3-4). 39 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 94 As críticas à quantificação nas teorias sobre a sociedade da informação, apontadas por Freitas, sobretudo a partir de Webster (1994), ressaltam problemas técnicos sobre os critérios de quantificação. Não só isso, como também levantam questionamentos sobre a noção de quantidade muitas vezes traduzida em qualidade, como foi enfatizado acima. Conforme tais críticas, as sociedades dos países centrais estariam vivendo o “avanço do capitalismo internacional” e não um novo cenário que justifique novas teorias (WEBSTER40 apud FREITAS, 2002, p. 4). Este fato seria comprovado efetivamente pela existência de tantos esforços (apoiados por países centrais) nacionais e internacionais para a implementação da sociedade da informação (FREITAS, 2002). No fundo, o papel e a intensidade desses esforços, provavelmente, teriam estimulado a ampliação do discurso da sociedade da informação e sua afirmação em diversas áreas de conhecimento – incluindo a de informação -, bem como no desenvolvimento de projetos como o governo eletrônico. Soma-se, igualmente a esses esforços, o estímulo ao deslocamento do referido discurso dos países centrais para países periféricos como Moçambique, por exemplo. Como se destaca em Freitas (2002), ainda que o discurso sobre a sociedade da informação tenha e esteja se firmando na área de informação, a literatura desta área, contudo, ainda não conseguiu explicitar o uso cada vez mais crescente da noção de sociedade da informação em seus fundamentos teóricos. Freitas (2002), citando Duff41, aponta para a aceitação da noção de sociedade da informação e para a rejeição de seus impactos na área da informação, a qual, ainda segundo Freitas, teria sofrido maior impacto (debruça-se mais sobre ela) das teorias do “pósindustrialismo” e da sociedade da informação do que a área das ciências econômicas, por exemplo, onde a utilização de tal noção, inclusive, começou mais tarde. 40 WEBSTER, Frank. What information society? The Information Society, London, v.10, n.1, p. 1-23, jan./marc. 1994. 41 DUFF, Alistar S. The 'information society' as paradigm: a bibliometric inquiry. Journal of Information Science, v. 21, n. 5, p. 390-395, 1995. 95 Como foi abordado no capítulo anterior sobre políticas de informação, Freitas sublinha o deslocamento do enfoque das políticas de informação no âmbito de organizações internacionais como a UNESCO e a FID para adotarem a noção de sociedade da informação e sua dimensão de infra-estruturas de informação para fins econômicos e comerciais, próprios de países centrais. Freitas qualifica esse deslocamento de enfoque dos organismos internacionais como “vitória da sociedade da informação” na medida em que fez surgir uma “nova ordem internacional da informação” a favor dos países centrais e contra a perspectiva anterior dos referidos organismos internacionais que enfatizava a relação entre informação e desenvolvimento econômico a favor dos países periféricos42. A vitória histórica da sociedade da informação refere-se ao deslocamento do “campo discursivo do debate político” e sua inserção no “campo discursivo de ‘atual estágio da humanidade’ naturalizado” em que se testemunha a “hegemonização dos projetos dos países centrais capitalistas para a informação, assim como os sentidos privatizantes que os justificam” e cuja efetividade ocorre na “forma de planos nacionais e regionais de implementação da sociedade da informação, com forte apoio da área de informação e de outros setores acadêmicos”. (FREITAS, 2002, p. 16) A “interdição política que toma a forma do impossível” teria inviabilizado o sentido da informação como um produto e uma necessidade social no domínio de organizações internacionais como a UNESCO que, a partir da década de 90, adota o “discurso dos novos tempos” e empenha-se na implantação de superestruturas globais de informação, como propunham os países centrais. Cooperação, equilíbrio de fluxos, interdependência tecnológica, informação como bem social, controles nacionais, tecnologia apropriada etc. [perdem brilho]. Restam os sentidos vitoriosos e sua glorificação: infra-estrutura informacional global, competição internacional, desregulamentação, 42 Freitas (2002, p. 16) ressalta que a UNESCO teria sofrido pressão de países centrais como os EUA e a Inglaterra, os quais, inclusive, teriam se retirado daquela organização, respectivamente, em 1984 e 1985, direcionando, a partir de então, seus apoios financeiros, que antes eram alocados naquela organização, para o Banco Mundial e o FMI onde aqueles países tinham mais poder. 96 democratização via tecnologia, capital humano, educação-treinamento, privatização, informação-mercadoria etc. (Ibidem, p. 19). Como se pode depreender a partir do estudo de Freitas (2002), a área da informação assume a dianteira histórica do processo de incorporação e reprodução da noção de sociedade da informação desde a década de 70, um período que coincide tanto com a intensidade do debate internacional sobre a informação quanto com as “primeiras referências na área de informação aos novos papéis da informação na sociedade” (Ibidem, p. 8) Se o pressuposto da noção de sociedade da informação é a quantidade de informação que circula nas auto-estradas globais de informação, caracterizada pelo uso intensivo da tecnologia e sob o olhar “ingênuo” de garantir a participação dos indivíduos nas diferentes funções e papéis sociais e institucionais, essa quantidade aumenta desproporcionalmente em relação aos aspectos de inclusão, produzindo sujeitos e comunidades de excluídos. Em que pesem as desigualdades entre países centrais e periféricos e as distintas realidades de cada país, bem como os aspectos que permeiam as relações entre os governos e a sociedade em diferentes países, o discurso da sociedade da informação seguiu e segue se firmando em países como Moçambique na forma de projetos - apoiados por países centrais como o governo eletrônico. No âmbito da literatura sobre a noção de sociedade da informação reconhecem-se duas abordagens distintas: uma que defende a existência da sociedade da informação como um novo paradigma técnico-econômico com impactos sobre a sociedade, e outra que refuta a sua existência como paradigma, para reconhecer o avanço do capitalismo em algumas sociedades de países centrais e não efetivamente transformações societárias que justifiquem novas teorias. Sem ignorarmos estas abordagens, contudo, consideramos sociedade de informação, no âmbito desta pesquisa, como um campo de reflexão que se estrutura em torno da questão da 97 informação e que se potencializa com o uso da tecnologia para veicular essa informação, bem como para interagir com os envolvidos. Noção de capacidade governativa na construção do governo eletrônico Como foi mencionado anteriormente, há um desafio que remete à necessidade de aquisição de uma nova cultura gerencial nas organizações como uma das condições para que as tecnologias de informação e comunicação representem, no domínio das organizações públicas, a possibilidade de um novo foco na prestação de serviços e na disponibilização de informações públicas (ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 7). O aspecto das tecnologias de informação no provimento online de serviços e informações introduz a noção da governança eletrônica. Aliás, na perspectiva de Araújo e Gomes, a governança eletrônica se enquadra efetivamente dentro desse contexto. A temática de Governança Eletrônica insere-se exatamente no contexto de transformações da sociedade da informação, no qual as TIC’s permitem, por um lado, a melhoria na eficiência da prestação de serviços públicos e, por outro, incrementam a capacidade estatal de fornecer informações públicas aos diversos públicos-alvo que delas necessitam. A Governança Eletrônica se configura como uma oportunidade de relacionar as estratégias de reforma administrativa com a possibilidade de fornecimento de informações aos cidadãos. (Idem). A análise da noção de governança eletrônica parece extensiva à análise do governo eletrônico na medida em que se configura como uma dimensão política mais avançada desta e que se estabelece em referência ao Estado para servir como uma arena cívica, em contraposição a privatização da esfera pública. A abordagem sobre a perspectiva da governança eletrônica e do governo eletrônico leva-nos necessariamente a debruçar sobre o conceito de governabilidade e a noção de governança. 98 Mayntz (1997) destaca a origem da teoria da governanca no campo “da análise da atividade empreendida pela autoridade política no plano de modelar as estruturas e os processos sócio-econômicos” (MAYNTZ,1997, p. 1, tradução nossa) e ressalta o uso inicial do termo governanca como sinônimo de direção política (guia ou condução política). Numa primeira acepção, o termo governanca indicaria um novo estilo de governo fora dos moldes do controle hierárquico de decisões. Nesse contexto, governança seria simultaneamente entendida como alternativa ao controle hierárquico, ou seja, como modalidade de coordenação não hierárquica. Numa segunda interpretação, o tremo governanca seria mais geral e derivaria “(...) da economia dos custos de transação, e em particular da análise do mercado e da hierarquia como forma alternativa de organização econômica (Williamson, 1979)” (MAYNTZ,1997, p. 1, tradução nossa), constituindo-se, assim, numa “(...) modalidade distinta de coordenação das ações individuais, entendidas como formas primárias da construção da ordem social” (Idem), ou seja, indicaria qualquer forma de coordenação social, seja na economia ou em outro âmbito. Esta concepção mais ampla de governança como modalidade de coordenação parece que se enquadra perfeitamente nos moldes do conceito da globalização43 ou das estruturas e processos por ele gerados, pois está desligada da existência de qualquer tipo de estrutura política de controle. Citando Martins (1995), Araújo e Gomes lembram que a “governabilidade reflete as condicionantes do exercício do poder” enquanto que governança determina o modo como é 43 “Fala-se de globalização em referência aos processos conectados estreitamente (Stykow e Wiesenthal, 1996): a) a expansão da comunicação, fenômeno que concerne tanto o transporte como o intercâmbio de informação e a mobilidade pessoal crescente (como os fenômenos migratórios), e indicam que a formação de grupos sociais se faz sempre mais independente do lugar geográfico; b) o surgimento de mercados globais de capitais, bens e serviços, como conseqüência da liberalização, da desregulação e da crescente facilidade de comunicação.” (Mayntz,1997, p. 6, tradução nossa). 99 exercida a autoridade política. (MARTINS44 apud ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 8). E acrescentam recorrendo a Melo (1995, 1996), e Azevedo e Anastasia (2002): (...) a governança engloba, além do formato institucional e administrativo que determina sua capacidade de executar políticas públicas (MELO, 1996), os canais de interlocução e de troca de informações entre Estado e sociedade na concepção, execução e avaliação da ação estatal (MELO, 1995). A governança é condicionada pela instituição de canais de comunicação e de troca de informações que permitam a participação da sociedade na elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas públicas, e pela capacidade da burocracia estatal de gerenciar esses canais. Já a governabilidade, é dependente do grau de accountability e responsividade dos governos, que refletem a capacidade destes últimos de serem responsáveis e responsivos (AZEVEDO e ANASTÁSIA45 apud, 2002, p. 81). (ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 8). Araújo e Gomes se referem também à controvérsia existente em torno dos conceitos de governança e de governo eletrônico em que, segundo eles, alguns autores consideram o primeiro como componente do segundo. Contudo, Araújo e Gomes adotam outra perspectiva diferente daquela, concebendo: (...) o governo eletrônico (e-government) como o modo pelo qual as instituições se valem das TIC’s para o incremento na oferta de serviços prestados pelo governo (OKOT-UMA, 2000). Já governança eletrônica (egovernance), engloba as políticas, estratégias, visões e recursos necessários para efetivação do governo eletrônico, bem como a organização do poder político e social para utilizá-lo (RILEY, 2003). (ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 9). De um lado, e com base em Ferguson (2002), os autores (Araújo e Gomes) afirmam que a governança eletrônica ultrapassa o governo eletrônico - na medida em que este se configura como meio para efetivar as definições e políticas daquela – e, de outro, atestam, a partir da visão de Jardim (2000), que a governança ultrapassa os aspectos operacionais das políticas. O autor [Ferguson] define a governança enquanto ‘a união dos cidadãos, pessoas-chave e representantes legais para participarem junto ao governo das comunidades por meio eletrônico’. Essa definição é aderente à de Riley (2003), supramencionada. Dessa forma, a governança eletrônica ultrapassa o governo eletrônico, sendo este um dos meios de efetivar as definições e políticas daquela. Essa perspectiva permite reconhecer ainda a democracia 44 MARTINS, Luciano. Crise de poder, governabilidade e governança. In: VELLOSO, J.P.R., ALBUQUERQUE, R.C. (coords.) Reforma do Estado. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1995. 45 AZEVEDO, Sérgio de; ANASTASIA, Fátima. Governança, “accountability” e responsividade. Revista de Economia Política, v. 22, n.1, p. 79-97, jan./mar. 2002. 100 eletrônica ou cyberdemocracy, como integrante da governança eletrônica. Para Riley (2003), a democracia eletrônica lida com as interações entre governantes e governados e com as influências dos cidadãos sobre o parlamento ou o setor público, por meio eletrônico. Na visão de Jardim (2000), a governança, de fato, ultrapassa os aspectos operacionais das políticas, incluindo elementos como mecanismos de agregação de interesses, de decisões políticas, de redes informacionais e de definições estratégicas. (ARAÚJO e GOMES, 2005, p. 9). Jardim (2000), em “Capacidade governativa, informação, e governo eletrônico”, faz o reconhecimento da literatura sobre o conceito de “governabilidade” e sobre a noção de “governança”, abordando-os como “aspectos distintos e complementares, configuradores da ação estatal”. (Ibidem, p. 1). Para Jardim (2000), inspirando-se em Diniz (1996), enquanto: Governabilidade diz respeito ‘às condições sistêmicas mais gerais sob as quais se dá o exercício do poder em uma dada sociedade’ (Diniz, 1996, P. 12.13) tais como a forma de Governo, as relações entre os poderes, os sistemas partidários, etc., a Governança refere-se à capacidade governativa em sentido mais amplo ‘envolvendo a capacidade da ação estatal na implantação das políticas e na consecução das metas coletivas’, incluindo ‘o conjunto dos mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade’ (Diniz, 1996, p. 12-13). (Idem). Jardim (2000), analisando o conceito de governance em Santos (1997) e Costa (1998), em que ambos se referem à emergência desse conceito no âmbito da experiência do Banco Mundial, estabelece, de um lado, para a distinção dos dois conceitos, a “relação de legitimidade do Estado e do seu governo com a sociedade” (Ibidem, p. 1) como um aspecto que define a capacidade política de governar ou governabilidade. E, de outro, observa que a “governança seria a capacidade financeira e administrativa em sentido amplo de um governo de implementar políticas” (Idem). Nessa perspectiva, a governabilidade estaria condicionada à legitimidade do Estado e seu governo e a governança estaria intimamente ligada à capacidade governamental de implementar políticas públicas. Em ambos os casos, tanto o conceito de governabilidade quanto a noção de governança, seriam resultado da relação entre o Estado e a sociedade, sendo que a governança representaria ainda um aspecto de promoção dessa relação. 101 Analisado em seus aspectos operacionais e incorporado nas discussões, a partir da visão do Banco Mundial, o conceito de governance traduz o “modo como a autoridade é exercida no gerenciamento dos recursos do país em direção ao desenvolvimento” (SANTOS46 apud JARDIM, 2000, p. 2), distinguindo-se assim, do de governabilidade que “descreve as condições sistêmicas de exercício do poder em um sistema político”. (COSTA47 apud JARDIM, 2000, p. 2). Jardim (2000) observa, a partir da perspectiva de Santos (1997), a irrelevância da distinção destes conceitos e identifica, para fins analíticos, o termo capacidade governativa cujas reflexões, segundo ele, emergem na medida em que se busca a análise de experiências bem sucedidas ou fracassadas de reforma do Estado em alguns países. Nesse contexto, Jardim apresenta aspectos que considera serem comuns a tais experiências e enfatiza que em cada um dos referidos aspectos, “a questão informacional, em diferentes graus, aparece como um fator otimizante ou, quando não devidamente contemplada, como obstáculo ao alcance de níveis básicos de capacidade governativa”. (JARDIM, 2000, p. 3) No entanto, para Jardim, as políticas e estruturas de informação fornecem elementos à capacidade governativa, favorecendo ou dificultando-a. Assim, assinala que na perspectiva do “governo eletrônico (e-government)” encontra-se presente uma das dimensões da relação envolvendo capacidade governativa e informação. A noção de capacidade governativa se apresenta como um referencial no contexto dos esforços de formulação e implementação de projetos de governo eletrônico numa perspectiva que permeia quer, a dimensão diretiva e de articulação de ações e atores inerente à gestão governamental, seja a de eficiência e qualidade no provimento de serviços e informações para tomada de decisões, bem como para o exercício dos direitos de cidadania. 46 SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade, Governança e Democracia: Criação de Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no Brasil Pós-Constituinte. Dados, v. 40, no. 3, Rio de Janeiro, 1997 47 COSTA, Nilson do Rosário. Reforma administrativa, previsibilidade decisória e eficiência do Estado. (Disponível em http://www.fundaj.gov.br/docs/eg/semi5.rtf . 10 de julho de 2000). 102 Governo eletrônico A partir dos aspectos acima apresentados evidencia-se o alcance e abrangência do governo eletrônico como uma noção que se estrutura dentro da perspectiva da noção de sociedade da informação, bem como os contornos que estabelecem a sua relação com a capacidade governativa. A noção de governo eletrônico caracteriza-se pela sua centralidade no uso das novas tecnologias de informação e comunicação aplicadas na promoção das relações de uma série de funções do governo e deste para com a sociedade. Governo eletrônico como mediação de relações entre Estado e sociedade civil De acordo com Ruediger (2002b), as relações que o governo eletrônico sustenta se inscrevem no âmbito de: 1) aplicações web com foco para o segmento governo-negócio [G2B]; 2) aplicações web voltadas para a relação governo-cidadão [G2C]; e 3) aplicações web referentes a estratégias governo-governo [G2G]. (RUEDIGER, 2002b, p. 30) A partir desse conjunto de relações e quando promovidas em tempo real e de forma eficiente o governo eletrônico se conforma, tecnicamente como: • • • • Promotor de boas práticas de governança; Catalisador de uma mudança profunda nas estruturas de governo; Vetor de aumento de eficiência, transparência e desenvolvimento; Provedor democrático de informações para decisão (Idem) Na perspectiva de Ruediger, a efetivação deste conjunto de medidas, que indicam o potencial e consubstanciam uma versão mais ampla do governo eletrônico, traduz-se em governança eletrônica como uma noção que enfatiza uma dimensão política e cívica do governo eletrônico. 103 Barbosa, Faria e Pinto (2004) corroboram a existência das relações (acima referidas) sustentadas pelo governo eletrônico e acrescentam mais uma categoria dessas relações – “Governo-Servidor Público (G2E)” –, propondo-as como um modelo de referência de governo eletrônico que “organiza os diferentes componentes das TIC para que o governo, alinhado às suas estratégias, estabeleça as relações de fluxo de informação e transações entre os agentes governamentais e o cidadão, com a garantia do estabelecimento de indicadores de desempenho”. (BARBOSA, FARIA e PINTO, 2004, p. 5). Assim, partindo da perspectiva que tem como filosofia os princípios do governo centrado no cidadão, na qualidade e produtividade dos serviços públicos (Estado como provedor de serviços públicos), o modelo proposto destaca relações que se estabelecem em um “contexto externo – foco no cidadão –, [onde] as premissas baseiam-se na eficácia e qualidade dos serviços públicos, estímulo ao desenvolvimento da sociedade da informação, inclusão digital e controle social” (Ibidem, p. 6). E, de outro lado, em um “contexto interno – foco na gestão da administração pública –, [onde] as premissas baseiam-se na desburocratização, transparência, desintermediação e eficiência operacional” (BARBOSA, FARIA e PINTO, 2004, p. 6). No fundo, além de buscar a explicitação das relações sustentadas pelo governo eletrônico, o modelo evidencia o governo em suas “obrigações como gestor dos recursos públicos, provedor dos serviços públicos essenciais, agente de desenvolvimento econômico e agente regulador dos serviços de utilidade pública” (Idem). Os quatro níveis de relacionamentos sustentados pelo governo eletrônico e vice-versa, ressaltam em si mesmo, categorias de relacionamentos entre o governo e a sociedade, sendo ao mesmo tempo caracterizados pelos cidadãos, empresas, servidores públicos e o próprio governo, nos seguintes termos: a) G2B (Governo-Empresa) – caracterizada pela interação do governo com as empresas do setor privado na troca de informações e processamento 104 de transações eletrônicas, buscando reduzir ao máximo as barreiras para se fazer negócios com o governo; b) G2C (Governo-Cidadão) – caracterizada pela interação do governo, de forma ampla e completa, com o cidadão, provendo a ele informações e serviços públicos que atendam as suas necessidades de contribuinte, controlador das ações de governo, beneficiário e usuários dos serviços públicos ao longo de ciclo da vida – infância, adolescência, maioridade e terceira idade; c) G2E (Governo-Servidor Público) – caracterizada pela interação do governo com os funcionários do serviço público, provendo informações e prestação de serviços necessários para o desenvolvimento de suas atividades profissionais e benefícios decorrentes da sua relação com o governo; d) G2G (Governo-Governo) – caracterizada pela interação dos diferentes agentes [e agências governamentais na sua colaboração mútua em nível central e local, bem como com governos estrangeiros]. (BARBOSA, FARIA e PINTO, 2004, p. 5) Hiller e Bélanger (2001) também refletem a questão da categorização dos tipos de relacionamentos em que se manifesta o governo eletrônico. Conforme eles, o governo eletrônico se manifesta em cinco tipos de relacionamentos: 1. Governo prestando serviços aos indivíduos (G2IS): o governo estabelece maneiras de prestação de serviços ou de benefícios para os cidadãos; 2. Governo com os indivíduos como parte do processo político (G2IP): relacionamento entre o governo e seus cidadãos como parte do processo democrático; 3. Governo com os negócios no portal de compras (G2BMKT) e diretamente com o cidadão (G2BC): relacionamento do governo com os fornecedores (pessoas físicas e jurídicas) e com cidadãos que podem pagar por serviços especiais; 4. Governo com agentes públicos (G2E): relacionamento entre as agências governamentais e seus empregados ou servidores; 5. Governo com governo (G2G): relacionamento entre agências do governo colaborando umas com as outras em nível central e local, bem como com governos estrangeiros. (HILLER e BÉLANGER48 apud SANTOS, 2002, p. 6-7). Como se pode depreender, o governo eletrônico pode se manifestar em diferentes tipos de relacionamentos e, provavelmente, em graus de extensão que podem variar de acordo com a perspectiva do próprio conceito. No domínio desses tipos de relacionamentos em que o governo eletrônico se manifesta e nas quais se conformam relações entre o Estado e a sociedade, visualizam-se diferentes 48 HILLER, Janine S. e BÉLANGER, France. Privacy Strategies for electronic government. In: ABRAMSON, Mark A. e MEANS, Grady E. (Org.). E-government 2001. Lanham: Rowman & Littlefield, 2001, p. 163-198. 245p. 105 perspectivas inerentes à noção de governo eletrônico. Conforme Lenk & Traunmüller49 (apud JARDIM e MARCONDES, 2003, p. 3), tais perspectivas podem ser as seguintes: • • • • A Perspectiva do Cidadão - visando oferecer serviços de utilidade pública ao cidadão contribuinte; A Perspectiva de Processos - visando repensar o modus-operandi dos processos produtivos ora existentes no Governo, em suas várias esferas, tais como, por exemplo, os processos de licitação para compras (eprocurement); A Perspectiva da Cooperação - visando integrar os vários órgãos governamentais, e estes com outras organizações privadas e nãogovernamentais, de modo a que o processo decisório possa ser agilizado, sem perda de qualidade, assim como evitando-se fragmentação, redundâncias etc. hoje existentes nas relações entre esses vários atores; A Perspectiva da Gestão do Conhecimento - visando permitir ao Governo, em suas várias esferas, criar, gerenciar e disponibilizar em repositórios adequados, o conhecimento tanto gerado quanto acumulado por seus vários órgãos. (Idem) Outro aspecto que se pode aferir no domínio da noção do governo eletrônico, principalmente, a partir de suas manifestações e perspectivas, refere-se ao seu caráter indissociável a noções como “fornecimento de serviços eletrônicos”, “democracia eletrônica” e “governança eletrônica”, suscitando assim diversas interpretações. Ou seja, em suas interações e perspectivas, o termo governo eletrônico assume ou ressalta versões inerentes ao fornecimento de serviços eletrônicos, à democracia eletrônica e à governança eletrônica, podendo, sobretudo, ajustar-se em tais versões. Conforme Perri (2001) (apud JARDIM e MARCONDES, 2003, p. 3) a noção de governo eletrônico pode ser entendida através dessas três visões. Na verdade, em conjunto e em sua profundidade, essas três leituras de governo eletrônico suscitam uma relação entre a noção de governo eletrônico e a reforma do Estado, na medida em que a adequação e efetividade de tais visões no âmbito do governo eletrônico implica, necessariamente, aprimorar e estreitar as relações Estado-sociedade, principalmente, do ponto de vista da proximidade do governo eletrônico às demandas da sociedade. 49 LENK, K. ; TRAUNMULLER, R. "Broadening the Concept of Electronic Government", In: PRINS, J. E. J. (Ed.). Designing E-Government. [S. l.] : Kluwer Law International, 2001, p. 63-74. 106 O governo eletrônico também apresenta princípios que norteiam o planejamento das formas em que se exprime. Conforme Santos (2002), três princípios permeiam o planejamento das formas pelas quais se manifesta o governo eletrônico, nomeadamente: • • • Universalidade: consiste na disponibilidade de toda e qualquer informação não protegida por lei e dos serviços prestados aos cidadãos; Unicidade: existência de um portal virtual único mediante o qual o cidadão “possa ter acesso a tudo aquilo que corresponda às suas demandas e à sua participação no controle dos atos de governo e da própria máquina pública” (SANTOS, 2002, p. 26). Contudo, não significa a extinção das páginas oficiais e implica a unificação dos sistemas tecnológicos (múltiplas entradas uma única saída); Integralidade: oferta integral de informações e serviços e de forma segura, incluindo a participação do cidadão e responsabilidade e responsividade na oferta de informações e serviços. (SANTOS, 2002, p. 26) Entre as principais formas de governo eletrônico existentes, Santos (2002) destaca o “portal corporativo”, “portal de compras governamental” e o “fluxo e gerenciamento eletrônico de documentos”. O primeiro consiste no compartilhamento e integração de “conhecimento, materiais, perfis de pessoas e decisões” disponíveis nas instituições, cujo benefício resume-se na “acessibilidade às informações que fluem nos diferentes sistemas, arquivos e bases de dados das instituições e depende da forma de ‘interação dos usuários com sua interface’”. Nesse contexto, exige “negociação prévia” para permitir a inserção na ferramenta do máximo possível de informação disponível que seja relevante, por um lado e, por outro, facilidade de uso, aprendizado e satisfação dos usuários (SANTOS, 2002, p. 26). O segundo consiste no uso intensivo de tecnologias de informação para integrar: (...) as compras governamentais e as contratações de obras e serviços, permitindo que, num único ambiente seguro, fornecedores, sociedade civil e governo interajam segundo seus interesses declarados: a dos primeiros, obter informações e serviços que permitam oferecer produtos de acordo com as normas de licitação do Estado, a da segunda, exercer controle social sobre o governo, aproveitando os caracteres de publicidade, moralidade e transparência e a do terceiro, adquirir os produtos de uma forma econômica e satisfatória para a administração pública (Ibidem, p. 30) 107 O terceiro e último constitui uma área eminentemente de gestão de informação, inscrita no âmbito do gerenciamento de documentos eletrônicos (GED) e que consiste na “automatização das tarefas, decisões e direcionamento dos documentos aos diversos postos de trabalho no sentido de melhorar a qualidade e a produtividade, logo a eficiência administrativa, donde a necessidade de sistemas de fluxo de documentos (workflow) como solução” (Ibidem, p. 33). Na perspectiva de Jardim, os princípios do governo eletrônico residem na sua possibilidade de ampliar a efetividade dos governos quanto à (re)definição de políticas públicas, oferta de melhores serviços pelas organizações governamentais, integração de serviços e melhoria da comunicação pública como resultado de informação atualizada e compreensível. Jardim (2000), ao enfatizar princípios do governo eletrônico, os quais conferem vantagens aos governos reais na sua relação com a sociedade, lembra que os mesmos “esbarram em obstáculos diversos na execução de políticas que os viabilizem na realidade social” (JARDIM, 2000, p. 5) e chama a atenção dos governos para a necessidade de assumirem “a responsabilidade de supervisionar e coordenar o desenvolvimento do egoverment em benefício dos cidadãos” (Jardim, 2000, p. 5), considerando, nessa perspectiva, dois segmentos sociais em que se expressa a desigualdade no âmbito de uma sociedade da informação, entre eles, o “[d]aqueles que contam com qualificações e ferramentas para usar as novas tecnologias e [o dos] (...) que não dispõem destas condições” (Idem). Jardim (2000) conclui: As atuais condições sócio-técnicas do capitalismo ressaltam a histórica desigualdade na ordem internacional da informação. No entanto, favorecem e simultaneamente exigem que (...) o Estado defina e implemente estratégias que ampliem a sua capacidade governativa, sob pena de comprometer espaços hegemônicos nacionais e internacionais. Não por acaso, o conceito de governança tem no Banco Mundial uma das suas fontes promotoras. Neste quadro, a informação e os recursos que envolve alimentam projetos políticos cuja configuração implica necessariamente a participação da sociedade civil. Ao contrário, corre-se o risco de se forjar uma neo- 108 tecnoburocracia, amparada fortemente na tecnologia como instrumento de poder e numa retórica politicamente correta, porém socialmente insulada. As possibilidades de se evitar tal tendência encontram-se potencializadas na ação dos próprios atores presentes nesta cena: governos, organizações da sociedade civil, universidades, etc. Somam-se à esta cena, singularidades histórico-sociais de cada país (Ibidem, p. 5). Considerando esta rápida abordagem, que ressalta as principais interações e perspectivas da noção de governo eletrônico, e sendo objetivo desta pesquisa diagnosticar os moldes em que estão sendo construídas as políticas públicas de informação no quadro da iniciativa de governo eletrônico em Moçambique, os conceitos de governo eletrônico de Santos (2002) e de Jardim (2000) se mostram pertinentes na medida em que, além de sistematizarem os principais aspectos acima apresentados, visualizam a questão da informação como um aspecto inerente às políticas de governo eletrônico e de mediação das relações entre o Estado e a sociedade. Santos (2002), inspirando-se na definição de governo eletrônico do Gartner Group (2000) – “a contínua otimização de oferta de serviços, participação do eleitorado e governança mediante transformação de relacionamentos internos e externos com o uso da tecnologia, da internet e da nova mídia” (GARTNER GROUP50 apud SANTOS, 2002, p. 6) afirma que, longe das utopias, o governo eletrônico compreende o: (...) uso da tecnologia da informação e da comunicação para promover maior eficiência e maior efetividade governamental, facilitando o acesso aos serviços públicos, permitindo ao grande público o acesso à informação, e tornando o governo mais accountable para o cidadão. (SANTOS, 2002, p. 6) Conforme Jardim (2000): (...) o governo eletrônico expressa uma estratégia pela qual o aparelho de Estado faz uso das novas tecnologias para oferecer à sociedade melhores condições de acesso à informação e serviços governamentais, ampliando a qualidade desses serviços e garantindo maiores oportunidades de participação social no processo democrático". (JARDIM, 2000, p. 4) Em princípio, o governo eletrônico na sua dimensão política projeta-se na direção e articulação das diferentes estratégias dos atores internos e externos na formulação e 50 GARTNER GROUP. Key issues in e-government strategy and management. Research Notes. Maio, 2000. 109 implementação de políticas (como um aspecto inerente à capacidade governativa) para responder a demandas específicas dos governos reais em suas esferas de ação e relações com a sociedade, brindando esta - mediante diretrizes de ação -, no provimento de acesso às informações e aos serviços governamentais. Contudo, a falta de densidade teórica que ainda marca a noção de governo eletrônico tende a visualizar o sentido inverso, exprimindo-o como prestador de serviços com vista a potenciar ou reinventar as funções dos governos reais. A capacidade de planejamento das ações voltadas para a constituição do governo eletrônico depende muito de ampliação da circulação de informações entre formuladores de políticas, num contexto marcado por uma rotina de processos decisórios e sua democratização. É nesse sentido que a implementação de políticas públicas de governo eletrônico pode aprimorar as funções governamentais de direção e articulação de atores e ações, contribuindo para uma efetiva modernização do aparelho de Estado com a introdução de mais recursos para a ampliação da quantidade e qualidade dos serviços públicos e de mecanismos de controle e de transparência das atividades governamentais. Hoje em dia é inegável que as tecnologias de informação e comunicação sejam um dos “bens públicos” mais importantes na relação do cidadão com o Estado. Assim sendo, a democratização de seu acesso torna-se imprescindível para viabilizar as iniciativas de governo eletrônico em suas diferentes interações e perspectivas. Do ponto de vista de diretrizes para a implementação de políticas públicas e no que se refere ao uso sistemático das novas tecnologias de informação e comunicação, Eisenberg (2003) observa que a exclusão de acesso à Internet resulta de “dificuldades materiais, mas também culturais e educacionais”, advertindo, em seguida, que “deixada à sua própria dinâmica espontânea a nova sociedade da informação reforça as desigualdades já existentes e cria outras, como o fosso entre esses dois mundos paralelos dos ‘conectados’ e dos ‘nãoconectados’” (EISENBERG, 2003, p. 3). 110 Na verdade, uma das questões que se colocam em torno da noção de governo eletrônico é a tarefa inerente à definição e implementação da respectiva e efetiva política de governo eletrônico voltada à concepção e disponibilização de conteúdos, como processos que ocorrem na mesma proporção à definição dos objetos desses conteúdos (para quem se destinam), das formas de acesso a cada tipo de conteúdo (como acessar e com que disponibilidade tecnológica e cognitiva) e dos beneficiários de cada tipo de conteúdo (quem pode acessar o quê). Isto é importante do ponto de vista da interação entre o cidadão e a administração pública e numa perspectiva de “conteúdos relevantes” envolvidos nos serviços prestados (sem solicitação ou por solicitação), informações disponibilizadas (maior transparência administrativa e contorno aos problemas de ineficiência e corrupção), informações solicitadas (estruturadas em formulários, representam o direito do cidadão e a gestão de declaração de prioridade da informação para o cidadão) e reclamações feitas (EISENBERG, 2003, p. 9). Além disso, a perspectiva dos conteúdos pode envolver uma classificação em termos de “prioridade enquanto conteúdo, grau de preparo do setor responsável pela realização da atividade e tamanho do público-alvo daquele tipo de conteúdo” (Idem) e, vem, assim, somarse à perspectiva de acesso às tecnologias de informação e comunicação que, no caso, “não podem ser classificadas como responsáveis por conteúdos de alta ‘prioridade’”. (Idem) A noção de governo eletrônico, ao sustentar a perspectiva das novas tecnologias de informação e comunicação como “bens públicos”, assume como suas balizas norteadoras, a “modernização e eficiência, democracia e transparência, educação e inclusão digital”, tendo como pano de fundo ou horizonte normativo, a maximização do número de cidadãos utilizando as novas tecnologias de informação e comunicação e, em particular, atingir os menos favorecidos com as suas políticas. (EISENBERG, 2003, p. 16) Recorrendo à definição de governo eletrônico dada por Jardim (2000) (acima apresentada), a noção de governo eletrônico, ao expressar uma estratégia estatal em torno da 111 oferta de melhores condições de acesso à informação e serviços governamentais e o nexo desta oferta com os mecanismos de participação e interação social, ressalta um grau de capacidade governativa do Estado, enfatizando, ainda, a mediação da informação entre os diferentes agentes sociais envolvidos na referida estratégia. Sendo assim, vislumbra na perspectiva do governo eletrônico, uma dimensão envolvendo a relação capacidade governativa e informação. Esta dimensão pode se inscrever no domínio de estruturas e políticas de informação, bem como das condições que definem a governança informacional que, conforme González de Gómez (2002,) é definida “pelas condições de transparência, convergência e articulação das relações de comunicação-informação entre o Estado e a sociedade”. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 36). Nesse contexto, a transparência é: (...) entendida não como um atributo dos conteúdos de valor informacional oferecidos pelo Estado, mas como resultante das condições de geração, tratamento, armazenagem, recuperação e disseminação das informações adequadas para permitir a passagem de um ambiente de informação que de início se apresenta como caótico, disperso ou opaco, a um ambiente de informação que ‘faz sentido’ para os cidadãos, conforme uma pergunta, um desejo ou um programa de ação individual ou coletivo. (Idem). E ela (transparência) aumentaria em dois contextos de práticas: 1. do ponto de vista dos usuários: consiste na geração de recursos e serviços de informação que permitam mapear os domínios de atividades e os conhecimentos que lhe são associados; 2. no domínio das relações Estado-sociedade: depende da convergência dos sistemas e serviços de comunicação e informação pública, da coordenação administrativa de programas e ações de comunicação e informação, bem como da 'articulação' prático-contratual dos sujeitos envolvidos em processos progressivos de democratização. (Idem). O conceito de convergência designaria “a comutabilidade digital de meios e mensagens, referindo-se neste contexto à interoperabilidade dos diferentes recursos e serviços das administrações públicas, estejam ou não agregados em uma única plataforma de acesso online”. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 37). 112 E, finalmente, a “articulação das relações de comunicação-informação entre o Estado e a sociedade” reflete a “coordenação administrativa e a articulação política das ações de governos” como um aspecto inerente à “superação dos fatores que produzem a segmentação da vontade política, nos grandes quadros decisórios, como condição da governança informacional”. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002, p. 37). Referida dentro da perspectiva da sociedade da informação, a idéia de governança eletrônica, como uma noção muito recente, parece correlata à de governança informacional. Do ponto de vista de suas dimensões, esta é mais ampla do que aquela. Contudo, a noção de governança eletrônica que envolve e ultrapassa o governo da Internet parece uma questão mais encaminhada ou orientada que à de governança informacional. Estágios e condicionantes do processo de governo eletrônico Hiller e Bélanger (2001) afirmam que, de acordo com o uso de diferentes níveis de tecnologia de sofisticação no desenvolvimento de governo eletrônico, identificam-se cinco estágios do mesmo, conforme a sua evolução, nomeadamente: 1. Informatização: estágio do governo eletrônico em que o governo simplesmente põe informações em um website e que muda quando as informações tornam-se acessíveis, acuradas e disponíveis durante todo o tempo; 2. Comunicação em duas vias: estágio que consiste na existência de sítios ou portais governamentais com um canal de comunicação com os governados por meio, por exemplo, de e-mail, característico da maioria dos países em desenvolvimento; 3. Transação: consiste na existência de sítios governamentais mediante os quais é possível efetuar transações com os governados. Estágio atual do Brasil cujos serviços ainda não estão todos integrados; 4. Integração: estágio em que todos os serviços estão na forma de transação e estão integrados, quer entre as diferentes esferas de um mesmo poder, seja entre os poderes, eliminando toda a cadeia formal que a estrutura hierárquica produz. Isso pode ser conseguido mediante um portal único pelo qual os governados podem ter acesso a todos os serviços já na forma de transação; 113 5. Participação: estágio caracterizado pela generalização dos procedimentos de participação política nas decisões por meios eletrônicos que oferecem privacidade e segurança ao cidadão. Nenhum país já alcançou esta fase na sua plenitude. (HILLER e BÉLANGER51 apud SANTOS, 2002, p. 7) Conforme Santos (2002), no quadro dos estágios de governo eletrônico destaca-se um enfoque que se refere “ao valor gerado com a oferta de serviços” e outro que se refere “ao grau de escopo dos serviços”, gerando vertentes que compreendem, desde a simples conversão da forma convencional para a transacional (fase básica) usando meios eletrônicos “cujo pré-requisito é a informatização completa da administração (Protogoverno Eletrônico)” e em que o valor de cada serviço apenas começa a aumentar com o perfil do cidadão e sua interação com os sistemas e na medida em que o retorno dessa interação demanda alteração do desempenho do próprio serviço -, passando pela oferta de serviços em meios eletrônicos cujo estágio do escopo de serviços apenas alcança o nível de excelência quando todos os serviços estão integrados nas diferentes esferas e poderes da administração pública -, até atingir o ápice do valor e do escopo de serviços quando passa a integrar foco no cliente, bem como a integração de novidades. Do ponto de vista da situação do governo eletrônico no mundo, Santos (2002) destaca o relatório sobre o desenvolvimento humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). O estudo (2001), inscrito no referido relatório, define e mede o “Índice de Realização em Tecnologia (TAI)” de 162 países como indicador da “capacidade ou habilidade dos países para participarem da chamada era digital” obtido, não na medição da liderança global do desenvolvimento tecnológico do país, mas na determinação do grau de participação do país na criação e no uso da tecnologia. Santos acredita que o TAI, que capta o nível de criação e de difusão de tecnologia, bem como de criação de uma base de habilidade ou capacitação humana para esse fim, permite analisar a eficácia do governo eletrônico, na 51 HILLER, Janine S. e BÉLANGER, France. Privacy Strategies for electronic government. In: ABRAMSON, Mark A. e MEANS, Grady E. (Org.). E-government 2001. Lanham: Rowman & Littlefield, 2001, p. 163-198. 245 p. 114 medida em que este depende da tecnologia: “(...) deve-se imaginar que o TAI é altamente correlacionado com o grau do país para um Governo Eletrônico potencialmente bom, porque capacitação e aptidão para o uso da tecnologia são elementos necessários para os empreendimentos voltados para o Governo Eletrônico”. (SANTOS, 2002, p. 10) Assim, conforme PNUD52 (apud SANTOS, 2002, p. 11), o TAI, em sua composição, apresenta quatro dimensões: • • • • A criação de tecnologia: indica a capacidade de inovação tecnológica de um país, fundamentalmente dependente do capital intelectual possuído e das condições locais para a criação e que está consubstanciado em número de patentes e de licenças per capta; A difusão de inovações recentes: afere o grau de difusão da internet como elemento indispensável à participação na sociedade em rede; A difusão de inovações já consagradas: reflete o grau de difusão da tecnologia já estendida ao hábito da economia como um todo, bem como o estoque tecnológico, como a telefonia e a eletricidade; A habilidade ou capacitação humana: mede o nível de massa crítica apropriada pelo país para o uso e construção de tecnologia, fundamentalmente relacionado com educação formal, sobretudo em ciências, matemática e engenharia. (Idem) O referido estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD (2001) classifica os países em quatro grupos: 1. Países líderes (TAI acima de 0,5): composto por países líderes da economia mundial, onde a inovação tecnológica é alto-sustentável e, conseqüentemente, o Governo Eletrônico apresenta as melhores formas e as maiores diversidades de tipos, como Singapura, Finlândia e Suécia sem, contudo, conduzir necessariamente ao Governo Eletrônico ótimo, uma vez que a medida é indiretamente de eficácia, não de efetividade; 2. Países com potencial de liderança (TAI entre 0,35 e 0,39): formado na sua maioria por países assim agrupados em função do alto investimento em capacitação humana e difusão de tecnologias consagradas, mas com baixa difusão de tecnologias inovadoras; 3. Países em adoção dinâmica (TAI entre 0,20 e 0,34): constituído por países com dinâmica no uso de novas tecnologias, na sua maioria em desenvolvimento e com capacitação humana significativamente alta e indústrias importantes de alta tecnologia, mas com baixa difusão de tecnologia inovadora e de tecnologia consagrada, como o Brasil e a Índia; 4. Países marginalizados (TAI abaixo de 0,20): a difusão tecnológica e a capacitação são para esses países ainda um longo caminho a ser trilhado. Grande parte da população não é beneficiária da difusão de qualquer tipo de tecnologia. (UNDP apud SANTOS, 2002, p. 11). 52 UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME (UNDP). Human development report 2001. Oxford: Oxford University Press, 2001. 115 O estudo conclui que em apenas 72 países dos 162 analisados foi possível estimar o TAI em nível aceitável de qualidade variando entre 0,066 a 0,744. Na última posição, entre os 72 países, figura Moçambique. De acordo com Santos (2002), o uso intensivo de ferramentas de tecnologia da informação deve se integrar dentro de parâmetros estabelecidos pelas “relações Estado/sociedade (...) fundadas em conceitos e mecanismos que possibilitem resposta a demandas da sociedade, avaliação da atuação do Estado como provedor de bens e serviços, fiscalização do uso dos recursos públicos e publicidade das ações”. Tais conceitos e mecanismos estão consubstanciados em três grupos de interesse intervenientes nas relações Estado/sociedade, nomeadamente: a burocracia, os políticos e a própria sociedade. Em primeiro lugar, Santos (2002) entende que a burocracia tem interesses próprios e apresenta cultura e estrutura mediante as quais se manifesta, o que, segundo ele, acaba obstruindo a “implantação de medidas capazes de facilitar as relações Estado/sociedade”. Como tal e como condição institucional, é preciso exercer controle social sobre a burocracia para prevenir sua disfunção e buscar a satisfação do cidadão-cliente. Deduz-se, no entanto que, o direito à informação, consubstanciado no acesso à informação governamental e sustentado pela disseminação mais ampla e constante de serviços e informações de domínio público, constitui alternativa à formação de cartéis que propiciam o uso exclusivo de informações pelos burocratas e uma das condições fundamentais à manutenção dos direitos de cidadania, bem como para a constituição de políticas públicas de governo eletrônico. Em segundo lugar, no que se refere aos políticos e de acordo com Santos (2002), eles (os políticos) interferem nas relações Estado/sociedade tanto como tomadores de decisões quanto como canais para a intermediação de interesses, geralmente de grupos autônomos da sociedade no âmbito do poder Executivo. Assim, é preciso dotar o Estado de ferramentas que 116 maximizem o ganho da sociedade e minimizem a concretização de favores, pondo em prática todas as formas de participação da sociedade. Em terceiro lugar, e como condição institucional para o estabelecimento de políticas públicas de governo eletrônico, Santos (2002) aponta que: (...) a sociedade interfere nas relações Estado/sociedade pelo grau de exploração dos mecanismos institucionais de que dispõe para fazer chegar suas reivindicações ao Estado, bem como do grau de força que possui para estender os mecanismos presentes ou diminuir os constrangimentos que inibem esses mecanismos. (SANTOS, 2002, p. 16) Isto significa que, quanto mais apática for uma sociedade, menos benefícios políticos irá gerar “mesmo com a presença de ferramentas da tecnologia da informação e da comunicação”, conservando assim o estado de coisas existentes no âmbito do poder. (Idem) Além dos três grupos de interesse, cuja ação interfere na plenitude das relações Estado/sociedade e que exigem condições institucionais prévias, Santos (2002) sugere duas condições prévias mínimas que, em tese, devem ser observadas na implantação das políticas de governo eletrônico. A primeira condição consiste no fato de que a ação do Estado e os serviços por ele prestados refletem diretamente a cultura, a abordagem e a estrutura do Estado e, como tal, (...) as políticas de Governo Eletrônico devem ser sucessoras naturais das políticas de reforma do Estado tal como foram preconizadas originalmente, no tempo em que ainda não era possível vislumbrar a potencialidade do instrumental da tecnologia da informação e da comunicação, e não o contrário. (Idem) De um modo geral, isto significa uma necessidade de adoção de medidas gerenciais básicas com vista à redução das disfunções da burocracia, cujo resultado tem sido a gerência da máquina pública mediante práticas patrimonialistas. Ou seja, é imprescindível que a reforma do Estado e da sua máquina administrativa tenha alcançado um grau satisfatório de consolidação do funcionamento do aparato estatal nos moldes democráticos. E, de outro lado, a necessidade de implementação de mecanismos que impeçam a ação imprópria dos políticos e atenuem os problemas decorrentes da apatia da sociedade. 117 A segunda condição, dependente da primeira, exige “um grau médio ou superior de descentralização e de autonomia de seus órgãos e agentes”, implicando a existência de capacidade para a constituição de uma rede baseada num amplo programa em que, o governo central oferece serviços de cunho nacional e infra-estrutura, bem como a sua regulação, compreendendo ainda um grau aceitável de desconcentração referente à precisão e autonomia de atuação de cada setor da administração pública. Às duas condições mínimas sugeridas por Santos (2002), e que, segundo ele mesmo, não garantem o sucesso, mas a probabilidade de manutenção dos ideais iniciais à formulação das políticas públicas de governo eletrônico, soma-se o grau de governança gerencial, que, segundo Mayntz (1997), (...) indica um novo estilo de governo, distinto do modelo de controle hierárquico e caracteriza-se por um maior grau de cooperação e pela interação entre o Estado e os atores não estatais no interior de redes de decisões mistas entre o público e o privado. A governança como alternativa ao controle hierárquico tem sido estudado no plano da formação das políticas em nível nacional e sub-nacional (Kooiman, 1993; Rhodes, 1997), na arena européia (Bulmer, 1994), assim como no âmbito das relações internacionais (Rosenau, e Czempiel, 1992). (MAYNTZ, 1997, p. 1, tradução nossa). Considerando o governo eletrônico como um campo relacional de produção, disseminação e uso da informação, as medidas acima referidas - que representam a visão mais ampla do governo eletrônico e a efetivação da governança eletrônica - provavelmente podem efetivar-se numa perspectiva que envolve a questão da informação, na sua dimensão política, social e técnico-científica, ficando assim o governo eletrônico condicionado também à efetivação da governança informacional como uma noção que demanda a formulação e implementação de políticas públicas de informação. Desse modo, se o governo eletrônico reflete a governança eletrônica como sua dimensão política e cívica mais avançada, então, o governo eletrônico se manifesta no âmbito da relação que envolve capacidade governativa e informação, como um dos pressupostos básicos do seu potencial no que se refere ao processo político decisório. 118 Tanto a noção de governança eletrônica quanto a de governança informacional parecem revestirem-se de uma natureza eminentemente política e, portanto, pública, em que ambos se referem ao Estado, podendo ser visualizados como noções envolvidas ao aspecto de bens públicos em contraposição à privatização da esfera pública. Esta percepção emerge a partir da consideração de que ambas as noções incorporam a “capacidade do Estado de agir, formular e implementar (...) políticas públicas e cumprir (...) metas coletivas utilizando-se de mecanismos de incrementação da participação dos cidadãos” (ANDRADE e RIBEIRO, p. 7), bem como da transparência e de accountability. Conforme Ruediger (2002a), o governo eletrônico apenas se efetivará como mecanismo para a reforma do Estado se, no âmbito da sua concepção for além das iniciativas de promoção de sistemas voltados para a apresentação institucional do governo e, assim, agregar valor na rearticulação das relações entre o Estado e a sociedade, através da disponibilização de recursos que promovam o acesso à informação e a participação da sociedade na formação da agenda governamental e aos processos de tomada de decisões. Some-se a isso, adverte Ruediger (2002a), o problema inerente à cultura institucional marcada pelo patrimonialismo e burocratismo e a necessidade de sua transição para uma outra, efetivamente democrática e eficiente, que inclua padrões claros de accountability. Trata-se de uma dicotomia que afeta as reformas que buscam uma maior eficiência da esfera estatal. O desafio, portanto, é sua democratização, assumindo que a esfera pública abrange, centralmente, a própria sociedade e reconhecendo, ao mesmo tempo, sua pluralidade e seu papel chave, inclusive na própria transformação do Estado. Nesse sentido, a questão central, que deve ser destacada, aponta para a rearticulação das relações entre o Estado e a sociedade, no quadro de sua recuperação como esferas simultaneamente públicas e políticas. (GRAU53 apud RUEDIGER, 2002a, p. 3) Assim, ainda de acordo com Ruediger (2002a), o governo eletrônico poderá desenvolver a governança eletrônica se no plano da sua concepção ultrapassar o fundamento de ser apenas uma “agência de serviços” para conformar-se como uma “instância 53 Grau, Nuria C. (1997): Repensando o Público Através da Sociedade, Editora Revan. 119 republicana” no plano virtual que inclua o estabelecimento de um campo público de discussão. Este pressuposto, no desenvolvimento de governança eletrônica a partir da perspectiva do governo eletrônico, inclui também a necessidade de uma percepção crítica sobre as “capacidades cognitivas diferenciadas, decorrentes de processos históricos e de desigualdades sociais” e a própria “escassez de provimento amplo de meios físicos de acesso”, que juntos, produzem a chamada “Exclusão Digital” ou “Digital Divide”, contrariando a “perspectiva otimista de ampliação do acesso amplo e democrático ao Estado por mecanismos de governo eletrônico”. Fica evidente que a subsistência dessa dicotomia abre “espaço para a potencialização assimétrica de grupos já assimetricamente constituídos em suas relações de poder e acessibilidade aos mecanismos de Estado e cristalização de oligarquias dentro do Estado” (RUEDIGER, 2002a). Na verdade, o sucesso do governo eletrônico e da efetivação da sua dimensão política e cívica – governança eletrônica – “depende menos da tecnologia e mais do desenvolvimento social e cultural, prioridades governamentais, vontade política e da estrutura das instituições” (OECD54 apud RUEDIGER, 2002a, p. 5, tradução nossa). Como se pode depreender, o governo eletrônico constitui uma dimensão do discurso da sociedade da informação. A justificativa do esforço da sua construção prende-se às perspectivas que o mesmo oferece de avanços significativos na melhoria e eficácia dos serviços administrativos dos governos e na relação destes com a sociedade, elevando o patamar dos conhecimentos gerados e utilizados na sociedade e oferecendo o estímulo para constante aprendizado e mudança no contexto do dinamismo do referido discurso da sociedade da informação. Suas promessas, porém, não podem impedir a constatação de inúmeros desafios e problemas de natureza técnica, social e econômica que requerem um 54 ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT–OECD. Report on Impact of the Emerging Information Society on the Policy Development Process and Democratic Quality, OCDE, (1999). 120 compromisso político para assegurar o direito à informação e aos serviços oferecidos pelo Estado e minimizar as desigualdades inerentes a esse acesso e à exclusão digital em geral. Apesar de a já extensa literatura sobre o termo governo eletrônico estar em pleno crescimento, o conceito de governo eletrônico ainda se presta a um caráter emergencial, dificultando o seu discernimento e detalhamento, sobretudo, porque é muito abrangente. Como evidencia a literatura analisada, o governo eletrônico na sua concepção apresenta várias perspectivas, das quais destacamos a de provimento de serviços de utilidade pública ao cidadão (perspectiva do cidadão); reestruturação dos processos produtivos ora existentes no governo (perspectiva de processos); integração de órgãos governamentais, e estes com outras organizações privadas e não-governamentais (perspectiva da cooperação) e a de gestão e disponibilização de informações acumuladas em diferentes órgãos governamentais (perspectiva da gestão da informação e do conhecimento). Além de seu caráter emergencial e abrangente, aliado a diversidade de perspectivas, soma-se a sua ligação indissociável a noções como provimento de serviços eletrônicos, governança eletrônica e democracia eletrônica. A origem do governo eletrônico atrelado à noção da sociedade da informação (como destacamos acima) evidencia-o como resultado de países do capitalismo avançado com uma cultura política e organizacional avançada. Este aspecto sugere dificuldades na implementação do processo de desenvolvimento de governo eletrônico em países do capitalismo periférico, como ocorre com o processo de implementação da noção de sociedade da informação em tais países. O tema do governo eletrônico é muito recorrente ao de reforma do Estado. Assim, a literatura associa o sucesso do governo eletrônico ao sucesso da reforma do Estado, constituindo-se, assim, em dois conceitos complementares e mutuamente referidos, sobretudo porque o primeiro tem sua origem no contexto da reforma do Estado, propondo-se simultaneamente, como mecanismo a este mesmo fim que o deu origem. 121 Por outro lado, a ligação do governo eletrônico com a reforma do Estado evidencia a origem daquele (governo eletrônico) dentro da perspectiva histórica do Estado gerencial, identificada com a visão de bom governo no contexto da invenção do consenso. Assim sendo, a efetivação do governo eletrônico demanda sua aproximação à sociedade, bem como seu consentimento no estreitamento de relações entre o Estado e a sociedade para que o próprio governo eletrônico e a governança eletrônica possam se instituir como referenciais em busca por uma sociedade justa e participativa. O pioneirismo histórico da área da informação quanto ao seu envolvimento à noção da sociedade da informação, num período marcado tanto pela magnitude do debate internacional sobre informação, quanto pelos indícios da área da informação que ligam historicamente esta área ao novo papel da informação na sociedade, sugere a consideração do aspecto inerente à política de informação no ambiente do governo eletrônico como mecanismo na articulação de interesses quanto à mediação informacional em seu processo. Sob cenário sombrio da noção de sociedade da informação, a noção de governo eletrônico segue se afirmando, numa perspectiva não menos contraditória e sujeita a inconsistências - herdadas do seu contexto histórico atrelado àquela noção – sobretudo, quanto ao papel e uso da informação que norteia a sua constituição. Parece oportuno considerar o governo eletrônico não como um desígnio tecnológico predeterminado, mas como um projeto alternativo na mediação das relações entre Estado e sociedade, que envolve o uso da tecnologia. De uma forma geral, os aspectos que condicionam o progresso do governo eletrônico, na sua perspectiva mais ampla, permitem-nos abordá-lo como uma política pública. E, em conseqüência, considerando sua perspectiva particular e relacional que envolve a produção, armazenamento e disseminação da informação, o governo eletrônico conforma-se, no contexto da nossa pesquisa, como uma política pública de informação, voltada para a 122 governança e o uso social da informação no plano virtual. Do ponto de vista da informação que o governo eletrônico concentra, reconhecemos o foco que incide sobre a informação governamental, de domínio público ou não. Na análise do governo eletrônico, neste trabalho, serão privilegiados os aspectos inerentes ao seu caráter de mediador de relações entre o Estado e sociedade em seu contexto externo – foco no cidadão – e interno – foco na gestão da administração pública -, sendo contextualizado também em seus princípios de universalidade, unicidade e integralidade de serviços, incluindo o mapeamento dos diferentes níveis de tecnologia de sofisticação no seu desenvolvimento que permitem identificar o seu estágio de evolução. A análise desses elementos visa a fornecer um espaço adequado ao estudo das políticas públicas de informação no âmbito do governo eletrônico, as quais são formuladas no quadro das relações Estado e sociedade para orientar o curso de ação na concepção de estratégias e programas destinados ao desenvolvimento e uso de recursos, serviços e sistemas de informação que ele comporta. A partir dos aspectos observados pela literatura analisada, alguns eixos teóricos demarcam a nossa percepção sobre o governo eletrônico: • O governo eletrônico constitui uma dimensão informacional que envolve produção, estocagem, disseminação, atores e agências de informação, cuja viabilidade está sujeita à transparência inscrita do ponto de vista dos usuários e no domínio das relações Estado e sociedade, à convergência que designa a comutabilidade digital de meios e mensagens e à coordenação administrativa e a articulação política das ações de governos como um aspecto que busca a superação dos fatores que produzem a segmentação da vontade política. (GONZÁLEZ DE GÓMEZ, 2002); 123 • A participação da sociedade civil - como sujeito coletivo - é um pressuposto inclusivo e democrático e fator decisivo à configuração da dimensão informacional do governo eletrônico como uma política pública de informação; • O governo eletrônico em seus processos e políticas constitui um mecanismo de legitimação do Estado e de produção de consenso referido ao processo de acumulação de capital informacional, cujo exercício ocorre na forma da quantidade de informação acumulada e no uso dessa informação; • O governo eletrônico constitui um projeto que se estrutura em torno da noção da sociedade da informação cuja efetividade implica um grau de satisfação em capacidade governativa; • A ligação intrínseca do governo eletrônico ao uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação em suas funções de governo para governo e deste com a sociedade implica uma estrutura sócio-cultural e organizacional com capacidade humana e tecnológica aceitável. • A efetividade do governo eletrônico não prescinde de uma transição da cultura institucional marcada pelo patrimonialismo e burocratismo para uma outra, efetivamente democrática e eficiente que inclua padrões claros de accountability. • A efetividade do processo de construção do governo eletrônico pode variar de acordo com o grau de estruturas, mecanismos e canais nele envolvidos, e o contexto político e sócio-cultural que o molda. • Como um processo de gestão pública com uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação para ampliar a eficiência do governo e a sua capacidade de prestação de serviços, o governo eletrônico não prescinde da noção de inclusão digital. 124 A noção de governo eletrônico se entrecruza com as duas dimensões teóricas do Estado e com os eixos da abordagem das políticas públicas de informação, explicitados nos capítulos dois e três desta dissertação, respectivamente. Como tal, o governo eletrônico constitui um território relacional na produção, armazenamento e disseminação da informação e, simultaneamente, configura-se num dos mecanismos de mediação informacional no contexto do projeto de sociedade da informação como uma criação histórica do Estado e, das relações deste com a sociedade civil. 125 C AP Í TU LO 5 _____________________________________________________________________________________ ESTADO E GOVERNO ELETRÔNICO EM MOÇAMBIQUE Moçambique localiza-se na costa sudeste de África e faz fronteira com outros países da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) – da qual é membro –, a Norte com a República da Tanzânia, a noroeste com o Malawi e a Zâmbia, a Oeste com o Zimbabwe e a República da África do Sul, a Sul com a Suazilândia e ainda a África do Sul, sendo delimitado na parte Este pelo Oceano Índico, numa extensão costeira de cerca de 2.470 quilômetros. Caracterizado por uma assimetria de desenvolvimento nacional entre o Sul e o Norte do país e entre a cidade e o campo – o Norte e o campo mais desfavorecidos que o Sul e a cidade, respectivamente –, apresenta uma população de 19.888.701 habitantes numa área de aproximadamente 799.390 Km²55. Além do português como língua oficial, apresenta outras línguas nacionais, das quais cerca de 10 a 13 são as mais faladas. A história de Moçambique lembra, entre outros acontecimentos de destaque, o impacto da penetração, conquista e colonização portuguesas, a luta de libertação (1964-1974) e a conquista da independência nacional em 1975, a guerra de desestabilização (1976-1992) com intensidade a partir dos anos 80 e o processo da democratização do país e seu ponto mais alto, as eleições multipartidárias de 1994, 1999 e 2004. Hoje, sob um sistema político denominado “democracia multipartidária”, Moçambique encontra-se num estágio de construção de uma democracia política na medida em que, em certo grau, consideramos que ainda caminha para a satisfação das condições que Robert Dahl (1971) concebeu como poliarquia. O seu passado muito recente, caracterizado por um regime autoritário e consubstanciado num sistema de partido único, ainda não desapareceu 55 Fonte: http://www.ine.gov.mz/. Acesso em: 03 nov. 2006 126 completamente. Contudo, a consolidação do atual processo constitui um imperativo inadiável e um desafio para a formação de uma sociedade moçambicana mais justa e inclusiva. Pretende-se aqui, levantar alguns elementos no âmbito da construção do Estado moçambicano, mapeando os principais programas governamentais que moldaram a sua constituição como Estado a partir de 1975 e as alterações que caracterizaram o seu percurso. Este constitui um desafio e simultaneamente um recurso para a caracterização da dimensão da informação do Estado, através de seus programas de governo, tendo em vista as possibilidades de participação da sociedade, de existência ou não de estruturas concretas e de políticas de informação, como elementos fundamentais na configuração do atual projeto de governo eletrônico em Moçambique. Cenários da construção do Estado e sociedade moçambicanos pós-independentes Moçambique é um país jovem que conquistou a sua independência em 1975, após a penetração e dominação coloniais portuguesa, seguidos de dez anos de luta de libertação nacional. Esta luta, seguida pela conquista da independência, foi liderada pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), então movimento de libertação que, na altura, agregava quase todas as tendências políticas e que se transformara em partido político em 1977 no decurso da realização de seu III Congresso, adotando como ideologia o MarxismoLeninismo56 e o socialismo como sistema de desenvolvimento. 56 Estudos indicam que o marxismo da Frelimo era indefinido e ambíguo em função da conveniência face à correlação de forças mundiais, sendo adotado por força das circunstâncias como estratégia no contexto da guerra fria. Assim, em 1977 teria havido uma adoção formal dos desejos e objetivos já implícitos no pensamento da liderança da Frelimo. Para mais detalhes: BRITO (1995); comentários de Marcelino dos Santos e Eduardo Mondlane em EGERÖ, 1994, p. 23; CRUZ E SILVA. 127 Sob essa orientação, a Frelimo definiu-se como um partido de vanguarda de aliança operário-camponesa e dirigiu, em regime de partido único, todo o processo de construção do Estado moçambicano sob os princípios da ideologia Marxista-Leninista. Nessa conjuntura, o novo campo político, resultante da conquista da independência, estabelece-se na perspectiva da construção do Estado de caráter socialista em sobreposição à constituição do partido, ou seja, o Estado se ergue, em sua organização, confundindo-se com o partido e, muitas vezes, com o próprio governo. A falta de distinção entre Estado e partido caracterizou-se por uma tendência de concentração do poder e da decisão na direção do partido – tanto em nível local como central –, com a existência de indivíduos ostentando posições e conteúdos de trabalho em ambos os lados. Confundia-se com o governo na medida em que não havia clareza na distinção dos poderes Executivo, Legislativo e Judicial até 1990, período em que teve início o processo de sua separação, cuja consolidação começa a ser evidente nos últimos anos. Diferentemente da administração burocrática clássica weberiana – fundada na separação entre público e privado e entre político e administrativo – em que se adotava em substituição à administração patrimonialista – na qual patrimônio público e privado se confundia e o Estado se estendia como propriedade do rei –, por esta se mostrar inadequada ao capitalismo industrial e às democracias parlamentares, a construção do Estado moçambicano tende a ocorrer dentro dos parâmetros patrimonialistas. As organizações de classe também foram criadas nessas condições, sob a liderança do partido/Estado, sem capacidade e autonomia para desempenhar as suas funções de classe. Criadas como organizações cívicas – Organização dos Trabalhadores Moçambicanos (OTM), Organização da Mulher Moçambicana (OMM) fundada em 1973, Organização da Juventude Moçambicana (OJM), Organização Nacional dos Jornalistas (ONJ), entre outros – pela Frelimo e atreladas a ela sob a denominação de organizações de massas sempre revelaram 128 lealdade ao partido que sempre exerceu (e de alguma forma ainda continua exercendo) controle sobre as mesmas e traduziu-se num alto grau de controle sobre a sociedade civil57. O processo de construção da nação se efetivou sob uma estratégia de subordinação e submissão da população ao partido/Estado que a própria Frelimo esboçara nas “zonas libertadas” quando era urgente o alargamento de seu campo político à totalidade do território nacional e sua população e ainda ao buscar os primeiros passos para o funcionamento da máquina estatal. Entretanto, após a independência, prevaleceu um discurso de imposição da legitimidade como um aspecto inerente à “passagem da base política dos dirigentes da Frelimo do exército para o aparelho do Estado” (BRITO, 1995, p. 8), vis-à-vis à estruturação do novo poder, numa situação caracterizada pela ausência de pessoal qualificado e com competência técnica capaz de pôr a administração estatal em funcionamento. Trata-se de um processo de transformação das “zonas libertadas” num Moçambique independente em que o papel do exército se redefine e funda-se uma burocracia estatal e a formação de novas alianças. Nessa tarefa, a Frelimo vai buscar alternativas fora do partido, recrutando pessoas que se mostrassem com competência técnica, sobretudo, ativistas e jovens estudantes ligados a grupos associativos fiéis à sua linha política. No fundo, tratou-se de um recrutamento de estratos medianos, baseado em um mínimo de confiança e cooperação. Numa segunda fase, o recrutamento se traduz pela chegada de “cooperantes”, vindos, sobretudo, de países com quem a Frelimo mantinha laços de cooperação bilateral, os quais eram direcionados para projetos de desenvolvimento específicos ou funções de especialistas e das empresas estatais sob o pretexto de transmitirem conhecimentos e experiência aos moçambicanos (BRITO, 1995). Paralelamente ao esforço da constituição do corpo de funcionários para levar a cabo as funções do Estado, foram desenhados projetos que visavam o desenvolvimento do país, como 57 “Com a criação do Partido Marxista-Leninista, em 1977, criaram-se também os ‘movimentos democráticos de massas’ para enquadrar os trabalhadores, as mulheres, a juventude, organizações criadas ‘de cima para baixo’ sob a tutela e orientação do Partido.” (CRUZ E SILVA) 129 por exemplo, o “Plano Prospectivo Indicativo (PPI)58” orientado por uma visão do “desenvolvimento profundamente burocrático e tecnocrático (...) em que predomina a estatização da economia e o desenvolvimento das forças produtivas” (BRITO, 1995, p. 12) É importante frisar que Moçambique apresenta bases socialistas desde a luta de libertação, decorrentes de apoios multifacetados de países socialistas e que foram consolidados com a independência em 1975, em conseqüência ao combate do colonialismo e do sistema capitalista considerados como um inimigo comum. No rol dos acontecimentos, o projeto da construção do Estado de caráter socialista perde sua intensidade, como resultado, entre outros fatores, do alastramento da guerra de desestabilização e da deterioração da economia, obrigando o país a adotar a filosofia neoliberal com a sua adesão, em 1985, ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial como forma de sustentar a economia. Já estava decretado o fim da estratégia de desenvolvimento socialista. Com vista a reduzir as pressões políticas no âmbito interno e externo, a Frelimo inicia um processo de abrandamento de suas posições junto ao Ocidente e com a África do Sul. Ressalta-se, nesse sentido, uma aproximação com a África do Sul (a Frelimo assina o Acordo de Nkomati com a África do Sul, em 1984, um pacto de não-agressão, buscando o fim do apoio deste à Resistência Nacional Moçambicana - RENAMO) para pôr termo à guerra de desestabilização e o lançamento do Programa de Reabilitação Econômica (PRE), em 1987 (que representa a implementação dos acordos assinados com as duas instituições de Bretton Woods), bem como o de Reabilitação Econômica e Social (PRES), em 1990. 58 Segundo Macuene (2001, p. 263) este programa constitui uma estratégia de desenvolvimento que dava corpo às idéias socialistas, e que começou a ser implementado em 1980, sendo o Estado o principal promotor do desenvolvimento econômico. 130 Reforma e transição democrática pós 1975 Como se pode depreender, desde a proclamação da independência nacional e sua constituição em 1975, compreendendo os primeiros anos de governo até finais dos anos 80, o Estado moçambicano esteve sob a égide da ideologia marxista-leninista e do socialismo como seu sistema de desenvolvimento. A partir dos últimos anos da década de 80, começou a implementar profundas alterações que, em sua essência, representam diferentes fases de reformas e que, com maior ou menor profundidade, procuram ajustar o aparelho de Estado à evolução e às alterações introduzidas no modelo político-econômico do país iniciado naquele período. Estas fases de reformas formam um processo de reforma como um todo, inerente à edificação do Estado moçambicano e que compreende três momentos: A primeira (1975), decorrente da luta de libertação, foi a da constituição do novo Estado, optando (...) por um modelo centrado e centralizador apoiado num partido. A segunda (1986), início das reformas económicas, revisão profunda do modelo então vigente e mudança dos princípios básicos que o norteavam, resultando mais tarde a implementação do Programa de Reabilitação Económica (PRE) que gerou uma revisão profunda do próprio papel definido para o Estado. Num curto período o País passou de um modelo de economia centralizada com base na iniciativa do Estado para uma economia de mercado com base na iniciativa privada. Transitou-se de um modelo de Estado unitário centralizado para um Estado unitário gradualmente descentralizado e no qual foram consolidadas as relações regulares entre o executivo e o parlamento. A terceira fase, iniciada em 1990, com a introdução da nova constituição e consolidação do modelo político e econômico assumido e após as primeiras eleições gerais em 1994, esta fase, prolonga-se até hoje [2001] e pode ser caracterizada como um período de ajustamento do sector público ao modelo político actualmente vigente visando a sua consolidação e aperfeiçoamento. (CIRESP, 2001, p. 22-23). O Programa de Reabilitação Econômica (PRE) e o Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES) constituem dois programas complementares que configuram a segunda fase das reformas acima referidas, cujo reflexo foram as transformações que culminaram com adoção de um novo modelo político-econômico e a introdução da nova constituição. 131 Programa de Reabilitação Econômica (PRE) O Programa de Reabilitação Econômica (PRE) surge num contexto de revisão das estratégias socialistas, econômicas e políticas até então vigentes, implicando assim numa mudança da política econômica planificada para a economia de mercado, abertura política ao Ocidente e o abandono ao bloco do Leste. Na altura, o diagnóstico das instituições financeiras internacionais (FMI e Banco Mundial) atribuía o fracasso das reformas anteriores à fragilidade do Estado, recomendando, para o efeito do programa do ajuste estrutural, a necessidade de uma ajuda da comunidade internacional em meios técnicos e financeiros que compreendiam assistência técnica a projetos como recurso à criação da capacidade do Estado e financiamento de projetos econômicos essenciais ao processo de implementação de reformas. Concebido e executado sob um regime de partido único a vida útil do programa foi tão curta que além de não ter conseguido resolver os problemas sociais tornou-se insustentável ao testemunhar o agravamento da exclusão social, desemprego, pobreza, fome e criminalidade. A insustentabilidade do programa não se resume apenas na sua incapacidade em resolver problemas sociais e o agravamento de outros problemas que o seguiram. Está ligada também ao elevado grau de dependência do país aos recursos externos que, até certo ponto, representam mais os interesses externos do que propriamente a defesa dos interesses nacionais. Tais recursos, que vêm na forma de auxílio, caracterizam uma política dos países centrais em relação à periferia, cuja essência tem sido a “despolitização do governo”. Naturalmente que a dependência gera problemas de falta de autoridade no que se refere à coordenação de ações e estratégias, bem como na articulação dos diferentes atores envolvidos na implementação das reformas econômicas, resultando num círculo vicioso caracterizado pela incapacidade governamental na produção de políticas públicas. 132 O alto grau de dependência do Governo moçambicano distingue-se pela incapacidade de recursos financeiros os quais, na sua maioria, são alocados pela comunidade internacional na forma de ajuda financeira, alimentar ou de assistência técnica. Este grau de dependência se manifesta na medida em que a comunidade internacional ou doadores, ao destinarem recursos ao país, definem as prioridades de alocação de recursos e decidem as formas de sua canalização, interferindo, muitas vezes, na formação da agenda governamental e no desenvolvimento de políticas públicas. Este aspecto é evidenciado pelo elevado índice de crescimento de ONG’s e sua ação cada vez mais notável na distribuição da ajuda alimentar e na execução de projetos de investimento. No final dos primeiros três anos de implementação do PRE os pontos negativos foram mais salientes do que, evidentemente, os positivos, ficando, assim, a experiência de reforma em Moçambique marcada por fracassos. Contudo, o ideário de implementação do PRE inerente à introdução de mudanças na política econômica deu espaço ao de liberalização política, cujos fundamentos estão inscritos no âmbito das deliberações do V Congresso do Partido Frelimo (1989) – abandono da ideologia marxista –, com impacto na abertura do debate político mais amplo que culminou com a adesão do país ao modelo capitalista. O auge do processo da abertura política do país até então foi a promulgação da nova constituição em novembro de 1990 acompanhada, em sua essência, pela introdução do multipartidarismo, a transformação da denominação de República Popular para a de República de Moçambique, bem como a adoção da estrutura descentralizada para o aparelho do Estado. Cabe sublinhar que além de seu fracasso o PRE fez surgir no seu âmago desigualdades sociais acompanhadas pelo surgimento de “uma nova e pequena classe média urbana – composta por comerciantes, agricultores, empresários privados e chefes das estruturas estatais 133 e militares – (...) como a principal beneficiada das reformas econômicas” (MACUENE, 2001, p. 257-258). Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES) Outro aspecto importante é o pacote de medidas lançado a partir de 1990 – que ficou conhecido como Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES) - como resultado da pressão decorrente do processo evidente e irreversível de abertura política, buscando dar ênfase à questão da reabilitação social e de capacidade técnica do Estado sendo, de alguma forma, um complemento às reformas econômicas introduzidas pelo PRE. Com todos os problemas que se podem imaginar, sobretudo, os de caráter financeiro e técnico-institucional, este pacote de medidas (PRES) pretendia reforçar a capacidade do Estado, adotando, entre as suas estratégias de operacionalização, a: (...) priorização do setor agrário familiar, mediante a concessão de incentivos e orientação dos investimentos do Estado a este setor; reforço e desenvolvimento da capacidade institucional do aparelho de Estado; aperfeiçoamento do controle e da gestão das despesas públicas; prosseguimento da reestruturação e privatização do setor empresarial; e continuidade das reformas iniciadas no setor financeiro. (MACUENE, 2001, p. 258-259). Essas estratégias foram complementadas por outras, voltadas para a redução de custos de assistência técnica estrangeira, com a introdução de uma política nacional de cooperação técnica empreendida para o “treinamento de técnicos nacionais, racionalização da assistência técnica e sua orientação para setores prioritários, coordenação da ação dos doadores e avaliação sistemática dos custos e benefícios da assistência técnica” (WORLD BANK apud MACUENE, 2001, p. 261). Conforme indicam estudos nessa área, um dos objetivos do Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES) era lograr a passagem de uma economia planejada centralmente 134 para uma economia de mercado. A realização desse objetivo envolveu muitos constrangimentos em função, entre outros aspectos ligados a obstáculos externos59, ao papel do Estado que, segundo os credores internacionais representados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) (apud ABRAHAMSSON e NILSSON, 1994, p. 282), “devia ser tão limitado quanto possível, sendo o envolvimento estatal o menor possível”. O que foi conseguido com a imposição do déficit orçamental (cortes orçamentais) como condição para a continuação do financiamento internacional. Isso limitou a capacidade do Estado, fortemente afetada com a saída de maior número de pessoal qualificado para a iniciativa privada, inclusive para as organizações internacionais como o Banco Mundial e o FMI, onde recebiam regalias salariais extras. (ABRAHAMSSON e NILSSON, 1994). O grande fosso administrativo que essa situação criou reforçou o legado colonial em suas ações escassas desempenhadas na área de educação, que, inclusive, excluía a maior parte dos moçambicanos do exercício da atividade econômica. Além disso, o fosso de capacidade que afetava a administração estatal e, conseqüentemente, a execução do PRES, reforçava-se pelo fosso de informação que mediante as dificuldades de acesso à informação impediam o desenvolvimento de forças de mercado e das respectivas regras de jogo que dependem em maior grau da informação. O PRES, além de não ter resolvido, acabou criando mais problemas aos grupos populacionais desfavorecidos, principalmente nas zonas rurais, na medida em que o programa não foi capaz de cobrir o fosso financeiro e estabelecer o balanço macroeconômico, pois os investimentos privados se dirigem para áreas de maior procura e especulação e de acesso em termos de transporte. Os problemas da falta de capacidade técnica fizeram-se sentir com a existência de diversos projetos de desenvolvimento financiados por diferentes 59 Como a guerra de desestabilização que exigia planejamento e intervenção do Estado; a seca que assolou o país exigindo ações de emergência e o conseqüente crescimento da dependência; a orientação da cooperação muitas vezes condicionada à capacidade de recepção do país, tendo em vista os problemas de coordenação e as prioridades próprias dos doadores contrários às prioridades do programa. 135 doadores. Embora sejam concebidos para beneficiar o país, o Governo moçambicano não possui estrutura para coordenar as diferentes formas de assistência provenientes do exterior. Para contornar esta questão e os problemas que as reformas enfrentam devido à fraca capacidade técnica existente, foi realizado um projeto de construção de capacidade estatal e reforço institucional, com duração de cinco anos (1993-1998), denominado Capacity Building. O projeto, financiado pelo Banco Mundial e pela Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (Asdi), tem como objetivos o reforço do programa de reforma do serviço civil de Moçambique e melhoria da sua capacidade de administração e gestão, fortalecimento das instituições legais (incluindo o judiciário) e a formação de profissionais na área legal. (MOÇAMBIQUE apud MACUENE, 2001, p. 260). De natureza complementar, os dois programas (PRE e PRES) traduziram-se num mecanismo de ajustamento estrutural60 voltado para os problemas de estabilização econômica de curto e médio prazos e de transição do socialismo ao capitalismo sob a égide do FMI e do Banco Mundial, envolvendo, em seus pressupostos, o livre comércio, a desregulamentação e a privatização, testemunhando-se, assim, o fim da gestão do mercado pelo Estado e a introdução de mudanças nas políticas de saúde e da educação, cujo acesso passa a ser com base no rendimento individual (CRUZ E SILVA). O acesso aos serviços sociais, cuja incumbência de seu provimento igual e geral já não é tarefa primordial do Estado, e que tem como expressão, “a educação privada, a privatização da habitação, o desenvolvimento dos serviços legais e outros” (EGERÖ, 1992, p. 13), constitui uma nova tendência no contexto das mudanças iniciadas na segunda metade da década de 1980. No âmbito das reformas, o processo das privatizações teria mantido, como indica Macuene, um caráter de recolonização na medida em que a emergente burguesia nacional não dispunha de recursos financeiros para adquirir as empresas. No contrário, registrava-se um processo de sucateamento e corrupção em que os administradores das empresas estatais sucateavam para privatizar ou desviavam fundos das empresas para depois usarem na compra destas (MACUENE, 2001, p. 261). 60 Usamos a noção de ajustamento estrutural neste trabalho para exprimir o conjunto de transformações ocorridas nos campos político, econômico e social em decorrência da aplicação do Programa de Reabilitação Econômica e do de Reabilitação Econômica e Social. 136 Conforme Macuene (2001), na altura do lançamento das reformas econômicas no final da década de 1980, o setor público “padecia da fraca capacidade técnica, predominância do nepotismo e inexistência de uma burocracia com alto grau de qualificações acadêmicas” (MACUENE, 2001, p. 264). Um dos respaldos da fraca capacidade do Estado testemunha-se a partir dos finais da década de 1980 (como mencionado acima) com a proliferação de ONG’s que surgem acompanhando o volume dos recursos externos e investimentos canalizados ao país, com implicações diretas sobre o exercício de controle desses recursos e investimentos e de coordenação da ação do Estado. Em Moçambique, tanto o processo de reforma quanto o de transição democrática, todos são baseados somente em grupos de elite e não num suporte social amplo e estável, quando se sabe que o papel dos suportes sociais da sociedade civil é fundamental. A perspectiva da sociedade civil como um nexo entre o Estado e os cidadãos na intermediação da legitimidade simplesmente prevalece sem definição de seu conteúdo no contexto moçambicano. Portanto, verifica-se uma falta de organização da sociedade civil para preencher o vazio entre o Estado e o cidadão. Como assinalam Abrahamsson e Nilsson (2004), o número de organizações voluntárias cresce em Moçambique sem que isso signifique o reforço da sociedade civil. Pelo contrário, essas organizações, em prática, desempenham funções de parceiros de cooperação e implementadores de projetos de organizações voluntárias internacionais ou de doadores bilaterais. Como se pode depreender, o papel dessas organizações não é equiparável ao papel que uma sociedade civil em crescimento pode desempenhar num processo de reforma ou de transição democrática. A heterogeneidade da base partidária da Frelimo e de suas alianças, na formação do governo logo após a independência, influenciou as reformas. O processo de reformas ficou 137 refém da incapacidade do governo de controlar a sua coalizão ou de mobilizar os beneficiários das reformas, bem como das dificuldades inerentes à criação do clima social receptivo às reformas. O Governo moçambicano dispõe de uma frágil base de sustentação em suas reformas (bases sociais de sustentação), constituída por uma coalizão que mal controla e por um grupo de beneficiários aos quais não consegue incutir o senso de compromisso com o sucesso das mesmas. Trata-se de uma dificuldade inerente à coordenação das diferentes estratégias e ações dos atores envolvidos e que tem minado significativamente a credibilidade das reformas e do próprio governo, e provavelmente será um empecilho à consolidação e sustentabilidade das iniciativas de governo eletrônico. Um dos aspectos do fracasso das reformas no cenário moçambicano está associado ao caráter excludente das mesmas, bem como da incapacidade na mobilização dos beneficiários das suas políticas. A Frelimo é uma força política heterogênea, uma característica que favoreceu a sua inserção na sociedade durante o período socialista, mas que agora exprime dificuldades do governo em controlar sua coalizão. A heterogeneidade da base partidária e das alianças do governo impede uma coalizão forte e unida para sustentar as reformas. Ou seja, a falta de coesão interna tem ocasionado um fraco poder de coordenação. Concordamos com Macuene (2001) para quem, no enfrentamento dos problemas que enfermam os esforços inerentes ao processo de reforma em Moçambique, é preciso consolidar alguns aspectos, quais sejam: 1. A existência de um ator central – necessariamente o governo – de coordenação das estratégias dos diversos atores envolvidos nas reformas com capacidade na definição e execução de políticas e o reforço de sua capacidade institucional, incluindo o poder de decisão sobre a alocação de recursos; 2. A existência de um compromisso interno sobre a necessidade do reforço da capacidade do Estado e a criação de um ambiente social que exija do governo maior responsabilidade com seus cidadãos, numa perspectiva de consolidação da democracia e do desenvolvimento da sociedade civil 138 capaz de exigir do governo, maior accountability e impedi-lo de usar recursos do Estado como moeda para a manutenção das alianças que visem simplesmente aos interesses partidários e não os nacionais; e 3. A existência de um compromisso que considere as relações entre os diversos atores e o governo como partes importantes das reformas e partir para uma perspectiva que reconheça a importância da ajuda internacional, deslocando contudo, a ênfase das políticas que privilegiam a posição do país no sistema internacional – como a liberalização da economia e as políticas de estímulo às exportações – para políticas dirigidas à resolução de problemas nacionais (como saúde, educação, estímulo à indústria nacional, etc. (MCUENE, 2001) A dimensão da reforma e transição democrática A partir de 1989, no decurso das orientações saídas de seu V Congresso realizado nesse mesmo ano e, por força das circunstâncias, as mudanças no seio do partido começam a ser evidentes, sobretudo no campo de seus princípios, cuja revisão significou a sua transformação do partido de vanguarda Marxista-Leninista em partido de vanguarda de todo o povo moçambicano, testemunhando-se ainda, no ano seguinte, o fim de regime de partido único no cenário político moçambicano. Além disso, teve início no mesmo ano, um processo de separação completa entre partido e Estado, bem como a abertura do partido aos moçambicanos de todos os estratos. É importante referir que a adoção do Marxismo-Leninismo como princípio norteador do Estado e do socialismo como sistema de desenvolvimento, bem como a revisão dos fundamentos do partido e a adoção do multipartidarismo consubstanciado numa nova constituição em 1990 e que adota a economia de mercado como novo sistema de desenvolvimento, não foi um processo linear. Vários fatores contribuíram para que isso acontecesse, da mesma forma que as novas transformações exigiam novas formas de articulação. O fim da guerra e a introdução do multipartidarismo, por exemplo, culminaram 139 com a realização das primeiras eleições gerais multipartidárias em 1994, desenhando um novo quadro que implicava outros desafios como o aprofundamento da cidadania e do aprendizado democrático. O ciclo de reforma viria a assumir uma nova dinâmica com a assinatura do Acordo Geral de Paz, em outubro de 1992, em Roma e, em seguida, com a realização das primeiras eleições multipartidárias da história do país em que a Frelimo foi o seu vencedor. Contudo, cabe frisar que, se antes o país vivia sob suspeita do Ocidente devido à sua orientação político-ideológica (marxismo-leninismo) e que significava restrições no acesso a créditos externos para obrigar o seu abandono, o maior problema que se seguiu a esse foi a “fraca capacidade técnica e corrupção no setor público” (MACUENE, 2001, p. 262). Este aspecto mina profundamente os esforços voltados à eliminação de pontos críticos na implementação das reformas econômicas. A própria ajuda internacional, no lugar de assegurar a execução do processo de reforma, acaba contribuindo para o crescimento da corrupção, além de financiá-la. A nova constituição de 1990 trouxe novas transformações e esperanças na edificação do Estado e sociedade moçambicanos, introduzindo novos dispositivos legais que permitiram eleições multipartidárias, a liberdade de imprensa e o direito à greve. A assinatura dos Acordos de Roma em 1992, que destituiu o poder das armas e pôs fim à guerra de 16 anos, trouxe esperança ao povo moçambicano que, a partir de então, iniciava um novo percurso histórico pelo aprendizado democrático e que tem nas eleições gerais e multipartidárias (presidenciais) de 1994, 1999 e 2004, seus principais frutos. Somam-se a esse processo eleitoral, as eleições dos órgãos municipais (autárquicas) realizadas em 1998 e 2003 no âmbito do processo de descentralização e administrativa municipal. A trajetória histórica da construção do Estado moçambicano iniciada no decurso da conquista da independência nacional, inscreve-se no âmbito desses acontecimentos e, assim, o 140 sistema socioeconômico e político do país vem se consolidando nos últimos anos com base no multipartidarismo e na economia de mercado, sendo caracterizado por uma fragilidade em seu percurso. Entre os fatores de fragilidade do Estado moçambicano, pode se destacar: • O legado colonial português, bem como os mecanismos econômicos a ele relacionados - subdesenvolvimento, estrutura econômica deficiente, ausência de infra-estruturas físicas e de mão de obra qualificada, economia colonial voltada para a força de trabalho na África do Sul, Rodésia (atuais Zâmbia e Zimbabwe) e Malawi, economia colonial baseada na prestação de serviços e domínio da agricultura de subsistência; • Guerra de desestabilização 1976-1992; • Desequilíbrios econômicos regionais; • Excesso de medidas de segurança logo após a independência nacional (ex: postos de controle, guias de marcha, cartão de residente); e • “Operação produção” (envio de desempregados das grandes cidades às áreas rurais); • Elevado índice de corrupção; • Fraco desenvolvimento humano e social – “índice mais baixo no seio da SADC, PALOP e CPLP” (AGENDA 2025, 2003, p. 10); • Elevado grau de dependência a donativos e empréstimos estrangeiros. No computo geral, moldados no contexto de um processo histórico, estes elementos representam a dimensão dos principais acontecimentos sócio-políticos que se manifestaram desde os primeiros anos da construção do Estado e sociedade moçambicanos pósindependentes como reflexo dos dez anos de experiência da luta armada de libertação nacional ou de ideais concebidos nesse período, bem como de novas dinâmicas emergentes. 141 Tais acontecimentos imprimiram um quadro ideológico de reconstrução e mudança no qual surgiram conflitos e contradições na sociedade, dentro e fora das instituições políticas criadas em nome do “Poder Popular” como uma expressão que reforça a nova forma de divisão do poder na sociedade moçambicana. Entretanto, o projeto de construção do Estado configurou-se a partir de dois fatores contextuais internos ao incorporar uma dicotomia consubstanciada, num primeiro momento, pela política do “Poder Popular” como uma estratégia política de mobilização popular e democrática para a luta e conquista da independência até os primeiros anos de governo e, no segundo, pela estratégia econômica de modernização e industrialização dirigida pelo Estado. Outro aspecto a ressaltar, em resumo, é que, se a década de 1980 marca um período histórico de transição de uma economia centralmente planejada para uma economia aberta, de mercado, os anos 1990, traduzem-se pela efetividade desta transição política anteriormente iniciada, com ênfase para a introdução de uma constituição pluralista e a emergência de um processo de descentralização política e administrativa. De uma forma geral, confrontamo-nos, portanto, com um processo histórico de construção e reforma do Estado caracterizado pela fragilidade da capacidade interna do Estado que restringe e dificulta a formulação e implementação de políticas públicas. Novos cenários na reforma do Estado moçambicano A trajetória da construção do Estado moçambicano vem conhecendo um novo momento de debates visando o ajustamento do setor público ao novo modelo político, bem como a consolidação e aperfeiçoamento deste. Somam-se a esses ensejos, novos esforços ligados à perspectiva da economia globalizada e a inserção do Estado ao novo contexto caracterizado 142 pelo discurso da sociedade da informação. Interessa destacar, nesse sentido, a atual reforma do setor público em Moçambique e seus desdobramentos na área das TIC’s, com ênfase para a Política de Informática que anuncia a chamada sociedade da informação em Moçambique e vários projetos daí decorrentes, como o projeto de governo eletrônico de Moçambique. Reforma do setor público (2001-2011) A reforma do setor público em curso data do ano de 2001 e tem seu término previsto para 2011, sendo continuidade da terceira fase da reforma iniciada em 1990. A reforma em curso se reveste de uma perspectiva singular, quer no tempo, quer no espaço, marcadamente, pelo advento das tecnologias de informação e comunicação e da ênfase ao discurso da sociedade da informação. Aliás, o projeto de governo eletrônico em Moçambique - a exemplo do que ocorre em todo o mundo - surge dentro dessa perspectiva reformista, a partir de iniciativas lançadas em 2000, atrelado à construção da chamada sociedade da informação, tanto como produto da reforma e do discurso da noção da sociedade da informação, quanto como mecanismo para estimular a reforma do setor público e a construção da referida sociedade. A atual reforma do setor público em curso em Moçambique se propõe como “global, integrada e participativa” em contraste com as anteriores caracterizadas pela “ausência de estratégias sistematizadas que as conduzissem de forma mais consistente e coerente, no quadro de um processo contínuo e controlado, e com um horizonte temporal mais alargado” (CIRESP, 2001, p. 22-23). Ademais, também se apresenta, em seus objetivos, como instrumento operacional para a implementação do “Plano de Acção para a Redução da 143 Pobreza Absoluta (PARPA)”, na medida em que irá revitalizar o funcionamento das organizações do setor público. Definido como um movimento permanente e contínuo de ajustamento do setor público às alterações do contexto global e às políticas básicas do governo, a implementação do processo de reforma em curso foi estabelecida em duas fases interdependentes. A primeira fase compreendeu o período entre 2001 e 2004, destinado à criação das condições básicas para uma mudança de atitude, lançamento dos fundamentos da organização, planejamento e gestão, bem como a introdução de medidas de impacto imediato (curto prazo) capazes de dignificar a imagem do setor público. Contudo, uma análise preliminar das ações dessa fase mostra um déficit, não somente no cumprimento dos prazos, mas também e principalmente no conteúdo dos programas e projetos, em sua maioria ainda sem provocar impactos desejáveis. A segunda fase (2004-2011) estaria voltada a dar continuidade aos programas e projetos iniciados na primeira fase, com a ampliação dos efeitos da reforma através da execução de programas e projetos de impacto mais amplo, por forma a se identificarem no setor público, novas características como qualidade no seu funcionamento e novos padrões e valores que redefinem sua missão em sua nova feição voltada para resultados e para o cidadão (CIRESP, 2001, p. 29). Assim, a Estratégia Global da Reforma do Sector Público identifica cinco áreas temáticas ou componentes que embasam o processo da reforma como um todo, assim selecionadas como vertentes estratégicas rumo aos objetivos, nomeadamente: • • • • • estruturas e processos de prestação de serviços públicos (racionalização e descentralização); políticas públicas (melhoria do processo de formulação e monitoria); recursos humanos (profissionalização dos funcionários do setor público); gestão financeira (melhoria das finanças públicas); e boa governação e combate à corrupção (assegurar a implementação da reforma e a execução do plano anti-corrupção) (CIRESP, 2001, p. 29). Portanto, ainda que a atual reforma tenha tido seu início anunciado a partir de 2001, ela está referida em seu contexto nas três primeiras fases da reforma acima mencionadas, sendo 144 uma continuidade, por excelência, da terceira. Situado nesse contexto, a reforma em curso, em suas vertentes política, econômica, social e institucional, busca responder aos desafios do governo na erradicação da pobreza absoluta e na inserção do país no processo de globalização e da sociedade da informação, procurando, dessa forma, “institucionalizar os critérios de transparência no funcionamento do aparelho do Estado, promover a ética e a deontologia profissionais, melhorar a qualidade de prestação de serviços públicos e reforçar a participação democrática dos cidadãos aos diversos níveis de governação” (CHISSANO, 2001). Com essa reforma, o governo pretende que: (...) as funções do Governo sejam essencialmente voltadas para a formulação e monitorização de políticas, para o estabelecimento do quadro legal e regulamentar, para a facilitação de processos de desenvolvimento, para a fiscalização e avaliação de resultados (...) A prestação de serviços públicos seja realizada de forma descentralizada através de agências autónomas, poder local, sector privado e organizações da sociedade civil. Estejam institucionalizadas formas permanentes de participação dos cidadãos no processo de governação (CIRESP, 2001, p. 28). Por mais simples que pareça, a necessidade de adequar o conjunto das organizações que integram o setor público e superar os males de que este padece, bem como criar a legitimidade do Estado de direito em suas relações com a sociedade, constitui uma tarefa difícil (se não impossível), cujo desafio se dirige à capacidade do Estado de conduzir a atual reforma a um bom termo e da efetividade dos objetivos perseguidos. No fundo, a questão que se coloca reside em como alcançar esse ensejo com um formato de Estado sem iniciativa para políticas públicas. No âmbito dessa reforma, a sociedade civil não é entendida como uma esfera política e pública com capacidade própria para intervir e participar na formação da agenda pública. Ela será objeto de invenção e desenvolvimento pelo Estado no âmbito da reforma em curso, sendo prevista a sua participação no processo “através de processos contínuos de consulta e prestação de contas” (CIRESP, 2001, p. 47) para legitimar o processo e criar consenso. Serão ainda objecto da acção da reforma, as formas de relações entre o Estado, a Sociedade Civil e o Sector Privado no sentido de desenvolvê-las e 145 de potenciar a participação destes na geração e distribuição da riqueza, segundo critérios de boa governação. (CIRESP, 2001, p. 47). A reforma em curso entende o Setor Público, em seu sentido restrito, como o “conjunto de instituições e agências que directa ou indirectamente financiadas pelo Estado têm como objecto final a provisão de bens e serviços públicos” e, em seu sentido mais amplo, como a “actividade que é realizada pelo Governo Central, Ministérios, Governos Provinciais, Direcções Provinciais, Administrações de Distritos, Direcções Distritais, Postos Administrativos, Autarquias, as Empresas Públícas, os Intitutos Públicos e outras agências do Estado, todos trabalhando para o benefício da sociedade Moçambicana” (CIRESP, 2001, p. 47). Há que se destacar alguns problemas identificados no âmbito do próprio processo da reforma em curso e que podem deslegitimá-lo, caso não sejam devidamente equacionados e resolvidos. Tais problemas se referem, entre outros, à falta de clareza nas relações entre Estado e sociedade, consubstanciada pela ausência de políticas públicas que orientem o curso de tais relações, bem como de mecanismos e formas de participação da sociedade civil; deficiência e ineficiência no funcionamento do setor público; reduzido número de recursos humanos com qualificação no setor público, em que apenas “4% dos funcionários do Estado possui nível superior e destes, 85% estão em Maputo” (CIRESP, 2001, p. 51); dupla subordinação dos órgãos locais exercida diretamente por via das funções e indiretamente enquanto representantes do governo central; governação caracterizada pelo elevado índice de corrupção; alto grau de desigualdades sociais; cultura organizacional assente numa estrutura patrimonialista em que o patrimônio público e privado se confundem e o político não se distingue do administrativo; e persistência do nepotismo e do corporativismo. O equacionamento e solução desses problemas se faz necessário para o sucesso e a legitimidade do processo de formulação e implementação do governo eletrônico que, nesse sentido, deve ir além desses problemas e buscar a valorização da existência de estruturas concretas de 146 informação e do potencial que os arquivos, as bibliotecas e os serviços de documentação e informação encerram na construção de seu desígnio. O discurso da sociedade da informação em Moçambique e seu desdobramento em projeto de governo eletrônico Moçambique juntou-se aos esforços internacionais desencadeados por países do capitalismo central de construção de infra-estruturas de informação e do discurso da sociedade da informação a partir de 2000, ao aprovar a sua Política de Informática que concebe as tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) como uma “verdadeira alavanca para o desenvolvimento sustentável” (MOÇAMBIQUE, 2002, Prefácio). Entretanto, atribuída a responsabilidade de sua implementação a uma comissão específica – Comissão para a Política de Informática –, subordinada diretamente ao Conselho de Ministros, a Política de Informática foi concebida pelo Governo de Moçambique, através da Resolução 28/2000 de Conselho de Ministros para se constituir num “quadro de referência para o desenvolvimento harmonioso e sustentável da Sociedade de informação em Moçambique” (COMISSÃO PARA A POLÍTICA DE INFORMÁTICA, 2000, p. 9), perseguindo, entre outros, os seguintes objetivos: 1. Elevação da consciência nacional sobre o papel e o potencial das tecnologias de informação e comunicação no desenvolvimento sustentável de Moçambique; 2. Contribuição para a erradicação da pobreza absoluta e para a melhoria das condições de vida dos moçambicanos; 3. Proporcionar o acesso universal à informação a todos os cidadãos para melhorar o seu nível e desempenho na educação, ciência e tecnologia, saúde, cultura, entretenimento e nas suas actividades em geral; 4. Expansão e desenvolvimento do ensino de informática no Sistema Nacional de Educação; 5. Contribuição para o aumento da eficiência e eficácia dos sectores público e privado; 6. Criação de um clima favorável à indústria, negócios e investimentos na área das tecnologias de informação e comunicação; 7. Contribuição para a redução e eliminação gradual das assimetrias regionais, das diferenças entre a cidade e o campo, e entre os vários 147 segmentos da sociedade, no acesso às oportunidades de desenvolvimento; 8. Criação de um ambiente para a cooperação e parceria nas tecnologias de informação e comunicação entre os sectores público e privado, e entre todos os interessados ao nível nacional, regional e internacional; e 9. Potenciação e facilitação da integração do país na economia mundial e na Sociedade Global de Informação. (COMISSÃO PARA A POLÍTICA DE INFORMÁTICA, 2000, p. 9) Com vista a alcançar esses objetivos, o Governo se propõe a: 1. Aumentar a curto prazo, a base de recursos humanos com capacidade e conhecimentos sólidos em ICT’s e sua disponibilidade em todo o país; 2. Expandir e modernizar a infra-estrutura de telecomunicações; e 3. Definir a política de telecomunicações e implementar a reforma do Sector das Telecomunicações, para introduzir e promover a concorrência e atrair investimentos no sector. (MOÇAMBIQUE, 2005a, p.8) A sociedade da informação em Moçambique foi anunciada pelo respectivo Governo em 12 de dezembro de 2000 com a aprovação da Política de Informática pelo Conselho de Ministros, constituindo-se numa criação do Estado do que propriamente como resultado de um ambiente interno que indicasse ou justificasse a sua emergência. Esta afirmação se torna mais consistente examinando o percurso da construção e reforma do Estado moçambicano profundamente dependente de recursos externos, bem como a lógica que vem orientando a implementação da sociedade da informação em países do terceiro mundo como um reflexo de um imediatismo de respostas compulsivas à ditadura de um mundo regido pelo capital, traduzindo-se efetivamente numa imposição de países do capitalismo avançado. A adoção do projeto de sociedade da informação em nível nacional reflete interesses político e econômico inerentes à necessidade de atrair investimentos e financiamentos externos provenientes destes países. Nesse contexto, a sociedade da informação em Moçambique constitui uma retórica do Estado. No âmbito da Política de Informática foram identificadas seis áreas prioritárias, como sejam: educação, desenvolvimento de recursos humanos, saúde, acesso universal, infraestrutura e governação, distribuídas de forma integrada em projetos a curto, médio e longo prazos. 148 E para dar maior ênfase à coordenação, integração e optimização dos principais programas implementados no âmbito do processo da reforma como um todo, foram identificados projetos que passariam a explorar os benefícios das TIC’s nas seis áreas prioritárias identificadas na Política de Informática. Na seqüência, esses projetos foram inseridos nos seguintes componentes do “Programa Integrado de Acção”, definidos no âmbito da Estratégia de Implementação da Política de Informática: capacidade humana, conteúdos e aplicações, governo eletrônico, política e regulação, infra-estrutura e desenvolvimento empresarial. Nesse caso, por exemplo, o governo eletrônico aparece como componente da área prioritária denominada governação, tendo como seus projetos prioritários: • • • • • • • • • • Rede Electrónica do Governo (GovNet) Sistema de Informação do Pessoal do Estado (SIP 2000) Sistema de Administração Financeira do Estado (e-SISTAFE) Cadastro Digitalizado da Terra Balcão Único de Atendimento Público Sistema de Identificação Civil Portal de Desenvolvimento do País Levantamento sobre o Estado de ICTs nas Instituições Públicas Sistema de Informação para a Saúde Sistema de Gestão dos Processos Eleitorais (MOÇAMBIQUE, 2002, p. 11-12) Dentro da visão destes projetos e de acordo com a Política de Informática, o governo eletrônico compreenderia, entre as suas ações, a “criação de uma rede que interligue os serviços do Estado, a informatização dos serviços públicos, a formação básica em informática para dirigentes a todos os níveis e a presença dos órgãos do Estado na Internet” (Ibidem, p. 11). O governo eletrônico em Moçambique é um projeto em formulação no âmbito da ação da Política de Informática aprovada em dezembro de 2000, sendo desenvolvido em parceria com a Reforma do Sector Público (RSP) lançada em 2001. O processo de sua implementação se completará em 2010, um ano antes do fim da reforma em curso. Sua estratégia de implementação foi desenhada especificamente para apoiar a segunda fase da Reforma do 149 Setor Público programada para o período 2005-2011 sendo conjugada com esta, no período entre 2005 e 2010. A proposta de governo eletrônico de Moçambique constitui um desdobramento da Política de Informática, que tem como lema a construção da “Sociedade Global de Informação”, na qual surge como um projeto da área de “governação” e como parte integrante do Programa de Acção da Estratégia de Implementação da Política de Informática. O projeto de governo eletrônico em Moçambique surge e se estabelece numa perspectiva voltada para explorar as oportunidades oferecidas pelas TIC’s e elevar a eficiência das instituições públicas e do sistema econômico, aumentar a transparência e reduzir a corrupção, além de contribuir tanto para a inclusão digital, social e econômica quanto para atrair investimento estrangeiro (MOÇAMBIQUE, 2002, p. 11-12). Estes benefícios seriam alcançados com a melhoria das operações do governo, mediante o provimento de serviços e informação com rapidez, eficiência e a custos menores aos cidadãos e melhoria da comunicação entre estes e os governantes. Nessa perspectiva, o governo eletrônico é concebido como “uma peça fundamental do Programa da Reforma do Sector Público” que, em sua profundidade, “procura alcançar maior eficiência e descentralização dos serviços, começando por incutir nova cultura e atitude no funcionário público” (Idem). Em sua concepção, o governo eletrônico está consubstanciado numa estratégia que orienta a utilização das tecnologias de informação e comunicação no sector público em Moçambique, tomando como referência o Programa da Reforma do Sector Público (PRSP), o Programa Qüinqüenal do Governo61 e o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), todos em curso. A elaboração da referida estratégia consistiu de um debate que 61 Concebido no âmbito do Programa Qüinqüenal do Governo 2000-2004, a implementação do projeto de governo eletrônico em Moçambique vem decorrendo no âmbito do Programa Qüinqüenal do Governo 20052009. 150 compreendeu a realização de um workshop em nível central62 e três workshops regionais63 – zona sul (Maputo, Gaza e Inhambane); Zona Centro (Sofala, Manica, Zambézia e Tete) e zona norte (Nampula, Cabo Delgado e Niassa) – de consulta ao Sector Público. Os workshops foram promovidos e organizados pela Unidade Técnica da Reforma do Sector Público (UTRESP) e pela Unidade Técnica de Implementação da Política de Informática (UTICT), como os principais atores institucionais a quem foi incumbida a coordenação do processo de formulação da Estratégia do Governo Eletrônico, sendo dois órgãos de apoio técnico, respectivamente, à Comissão Interministerial para a Reforma do Sector Público e à Comissão para a Política de Informática, ambas presididas pela Primeira-Ministra, Luísa Dias Diogo. As duas comissões são órgãos do Conselho de Ministros e, aplicando a regra de transitividade matemática, portanto, a UTRESP e a UTICT – que coordenam, respectivamente questões de reforma do setor público e de implementação das tecnologias de informação e comunicação no sector público – também se subordinam àquele órgão que é o Governo da República de Moçambique. Com base num documento-base, os workshops consistiram na contextualização da estratégia de governo eletrônico no âmbito dos programas acima mencionados, sua apresentação geral, bem como dos projetos pilotos que a compõe, seguidos de debates. A Estratégia de Governo Eletrônico de Moçambique foi elaborada sob o lema “satisfazendo o direito de acesso à informação” e contou com a assistência do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (UNDESA), bem como dos serviços de 62 Este workshop foi realizado no dia 28 de Junho de 2005 na cidade de Maputo (Capital do país) em antecipação aos três sobre o tema, com a participação de Secretários Permanentes de Ministérios, Assessores de Ministros, Diretores Nacionais e outros quadros superiores do Setor Público. 63 Os workshops regionais foram realizados, respectivamente, em Inhambane (8 de setembro de 2005), e Sofala e Nampula (ambos em 15 de setembro de 2005), tendo como convidados, representantes dos governos provinciais (Directores Provinciais de Apoio e Controle, Membros dos Governos Provinciais, Chefes de Gabinete dos Governadores, Chefes dos Serviços Provinciais de Geografia e Cadastro e Delegados do Instituto Nacional de Estatística), Presidentes dos Conselhos Municipais, Administradores Distritais e outros responsáveis e quadros do Sector Público a nível provincial, distrital e municipal. 151 uma consultora nacional e de três consultores internacionais (dois de Malásia e um de Dinamarca). Os esforços de construção do processo de governo eletrônico em Moçambique estão intimamente associados às reformas em curso no país, encontrando-se diretamente inscritas no contexto de programas como: (...) o Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), o Programa da Reforma do Sector Público (PRSP) e a Estratégia de Implementação da Política de Informática, cujos vectores principais são retomados e consagrados no Programa Quinquenal do Governo (2005-2009) para enfrentar os desafios do crescimento, desenvolvimento e globalização (MOÇAMBIQUE, 2005a, p. 7) Presume-se que o sucesso do governo eletrônico em Moçambique, em seu desenho e desenvolvimento, esteja ancorado à “habilidade e capacidade de coordenar, fazer convergir e integrar os objectivos destes três programas, através da utilização das ICTs e da Internet” (Idem), resultando assim, em mudanças como, “maior transparência, melhoria na gestão e manutenção de dados, monitoria e acompanhamento mais focalizados de projectos, e generalização da formação e elevação de conjuntos de habilidades no sector público” (Idem). Portanto, o governo eletrônico em Moçambique, em seu contexto, concebe-se como elemento integrador e catalisador da reforma do setor público, numa perspectiva que busca responder os desafios do crescimento, desenvolvimento e globalização, tendo como seu grupo alvo principal o setor público. Em sua estratégia, o governo eletrônico em Moçambique se expressa como um vetor na disponibilização das tecnologias de informação e comunicação para impulsionar o alcance dos objetivos traçados no quadro da Reforma do Setor Público que, em conjunto, visa a “informar e fortalecer a formulação e monitoria de políticas, resultando na boa governação a todos os níveis do Governo” (MOÇAMBIQUE, 2005a, p. 9). A implementação do governo eletrônico em Moçambique está estruturada em projetos desenhados no quadro de sua estratégia, os quais enfatizam a aplicação das tecnologias de 152 informação e comunicação às áreas prioritárias da reforma do setor público e demonstram a efetividade e objetivos de reforma nos ministérios e instituições que operam em tais áreas prioritárias, “através da reengenharia dos seus processos, formação dos seus funcionários, desenvolvimento dos seus sistemas de disponibilização de informação e serviços e, generalização do uso das novas tecnologias” (Idem). Os objetivos do Governo Eletrônico de Moçambique estão estabelecidos em sua Estratégia de Implementação nos seguintes termos: • • • Melhorar a eficiência e a eficácia na prestação de serviços públicos; Assegurar a transparência e responsabilidade dos serviços públicos; e Dar acesso à informação para melhorar as actividades do sector privado e simplificar a vida dos cidadãos. (Ibidem, 2005, p. 13). Para alcançar estes objetivos a Estratégia de Governo Eletrônico de Moçambique prevê, como seus principais desafios: • • • • • A coordenação, integração e optimização dos principais programas implementados no âmbito do PARPA, da RSP e da Política de Informática, de modo a concorrerem para a boa governação; A optimização do financiamento actual (multilateral/bilateral) e das estratégias de facilitação ao nível dos projectos, com vista a integração dos programas e iniciativas sobrepostas; A capacitação institucional e em recursos humanos das instituições envolvidas na coordenação e implementação dos projectos, por forma a estarem à altura de assegurar a sinergia e integração dos projectos da Política de Informática e da RSP; A criação do quadro de integração arquitectónica do ambiente da estrutura electrónica para servir de estrutura da fundação necessária para o Governo Electrónico; A definição do papel e inclusão do Sector Privado e da Sociedade Civil na implementação do Governo Electrónico, como importantes parceiros da agenda nacional de desenvolvimento. (MOÇAMBIQUE, 2005a, p. 11). De uma forma geral, destacam-se como ações concretas desenvolvidas no âmbito do projeto de governo eletrônico em Moçambique, a execução em curso dos projetos que o compõem em sua concepção (mencionados anteriormente), dos quais já foi concluído o “Levantamento sobre o Estado de ICTs nas Instituições Públicas”, lançados o “Balcão Único de Atendimento Público” e a “Rede Electrónica do Governo (GovNet)” ou Portal do Governo (lançado oficialmente no dia 24 de julho deste ano (2006) em cerimônia presidida pela 153 Primeira-Ministra da República de Moçambique ). Soma-se a este conjunto de ações, o início do processo de informatização que antecede a execução dos outros programas que implicam em conteúdos de informação. No seu conjunto, a previsão de conclusão de todos os projetos componentes do governo eletrônico era de até 2004, exceto a construção do “Sistema de Informação para a Saúde” que iria até 2005. Portanto, com a exceção do levantamento sobre o estado das TIC’s nas instituições públicas que foi realizado em 2000, os outros projetos que compõem o governo eletrônico estão atrasados em relação ao que estava previsto em sua concepção. No entanto, não foi apurada a existência de serviços oferecidos pelo projeto de governo eletrônico, visto que ainda está em construção a infra-estrutura de base que irá sustentar o seu funcionamento. Ele ainda não está a funcionar em seu conjunto, estando ainda sob previsão o desenvolvimento de elementos chave para o seu funcionamento como um conjunto – previsto para até 2010 –, tais como a construção de uma “plataforma comum de comunicação” que compreende a “ligação e a funcionalidade mínima necessárias para todo o Sector Público (do Governo Central ao nível dos Distritos e Municípios) para se funcionar como um conjunto” (MOÇAMBIQUE, 2005a, p. 15); a formulação de “políticas e regulação” para reger a definição dos “privilégios de autoridade e acesso dos utilizadores e a informação que manipulam” (Idem); e a “capacitação institucional e humana” voltada para a criação de uma “liderança com ampla visão e uma massa crítica de trabalhadores do conhecimento a nível local” (Idem). Definido como um dos projetos da Política de Informática que enfatiza a introdução da noção da sociedade da informação em Moçambique, o projeto de governo eletrônico segue e reproduz os fundamentos que nortearam a emergência do discurso da sociedade da informação em Moçambique. Em sua concepção como um projeto político sob a implementação de políticos ou técnicos, seu marco como uma política pública não é definido 154 ou explicitado, sendo referido no âmbito do Programa da Reforma do Sector Público e da Política de Informática como um mecanismo para estimular o processo da reforma e contribuir para a melhoria e eficiência dos serviços do setor público. Tanto na Política de Informática como no projeto de governo eletrônico o processo da informação não aparece como um aspecto central em sua implementação. O mesmo pode se afirmar em relação à representação da sociedade civil em que sua participação se inscreve apenas em processos de consultas esporádicas para legitimar o processo de sua implementação e não em mecanismos institucionalizados para o efeito. A atual política da sociedade da informação em Moçambique não se faz representar por uma dimensão da política de informação, mesmo sendo um programa ou decisão pública que surge para garantir a participação do país na sociedade da informação, cuja profundidade, com certeza, regula-se com políticas de informação. Sem dúvida, ela demonstra uma decisão política de privilegiar o desenvolvimento de uma infra-estrutura tecnológica – se é que esta é dotada de capacidade para operar sem que isso implique em novos problemas sociais – como condição para o acesso à sociedade da informação, porém, sem pensar o nível de prioridade da infra-estrutura na construção de políticas e programas de informação. A política da sociedade da informação em Moçambique, ao voltar-se exclusivamente para questões de infra-estrutura sem incluir a perspectiva da política de informação, torna-se uma política parcial, carente de uma dimensão da informação, na medida em que a informação que trafega no interior da referida infra-estrutura fica refém de práticas e decisões políticas aleatórias e fora dos ditames que regem o processo da informação. A construção de políticas de informação compreende o desenvolvimento e implementação das tecnologias de informação e comunicação (TIC’s). Ao contrário de uma política da sociedade da informação voltada para a circulação e a livre concorrência do mercado, a construção de uma política de 155 informação pode contribuir para o desenvolvimento da sociedade de forma justa e democrática. A informação priorizada para trafegar no interior da referida infra-estrutura, por exemplo, foi selecionada no âmbito da Política de Informática na forma dos projetos que compõem o governo eletrônico, com destaque para o “Sistema de Informação do Pessoal do Estado (SIP 2000), o Sistema de Administração Financeira do Estado (e-SISTAFE), o Cadastro Digitalizado da Terra, o Sistema de Identificação Civil e o Sistema de Informação para a Saúde”. Porém, não estão claros os mecanismos inerentes à produção da informação governamental (estoques, estruturas e fluxos), às redes e sistemas de informação governamental, às unidades ou agências de informação (Arquivos, Bibliotecas e Museus) governamentais, bem como os mecanismos de acesso e uso social da informação. Contexto específico das tecnologias de informação e comunicação em Moçambique e sua distribuição Conforme um estudo do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento - PNUD (2001), Moçambique se situa no grupo dos países marginalizados com dificuldades na difusão tecnológica e na capacitação humana cujo Estado apresenta maior dificuldade de atuar, tanto em eficácia, quanto em governança. Em que pese o posicionamento periférico do país em nível mundial e os problemas de toda índole que enfrenta, Moçambique foi classificado, pelo estudo do PNUD (2001), na última posição entre os 72 países com o TAI em nível satisfatório de qualidade, como mencionado anteriormente. Há que se destacar também a relevância teórica da Estratégia de Governo Eletrônico de Moçambique que, entretanto, pode ser justificada pela participação de consultores 156 internacionais na sua elaboração, conferindo assim um elevado grau de consistência teórica à proposta de governo eletrônico neste país. Esta consistência teórica, contudo, não se verifica em sua implementação prática onde já não consegue superar os desafios em sua maioria identificados no âmbito da concepção da estratégia de sua implementação. Por outro lado, a referida participação de consultores internacionais confirma o estabelecimento da proposta de governo eletrônico em Moçambique como um projeto que se inscreve no contexto do papel e da intensidade dos esforços nacionais e internacionais voltados para a implementação da sociedade da informação em países periféricos sob assistência e apoio de países centrais para justificar e fortalecer o avanço do capitalismo internacional e o deslocamento do discurso da sociedade da informação destes países para aqueles. O posicionamento periférico de Moçambique e de outros países em vias de desenvolvimento, do ponto de vista do Índice de Realização em Tecnologia, parece confirmar a visão da sociedade de informação como um discurso e não como um fenômeno real, sustentando o avanço do capitalismo em países centrais. Ademais, e por extensão, evidencia a imposição desse discurso e de seu projeto de governo eletrônico em países periféricos como Moçambique. Em Moçambique, essa perspectiva pode ser aferida no âmbito do apoio, entre outras organizações internacionais e governos estrangeiros, do Governo do Canadá, através do Centro de Pesquisa para o Desenvolvimento Internacional - The Canadian International Development Research Centre (IDRC) - na elaboração da “Política de Informática” (2000) e, provavelmente, da que se convencionou chamar de “Política de Informação”, instituída em 1997, período abrangido pelas ações do IDRC na região. É importante registrar que a abordagem da política de informação adotada pelo manual do IDRC, denominado An Information Policy Handbook for Southern África, é baseada nas ações desse centro 157 canadense de pesquisa, consubstanciadas em programas como The Acacia Initiative64. No âmbito de seus programas na região da África Austral, o referido centro teria apoiado65, conforme a introdução do editor do manual – no caso específico de Moçambique, este fato confirma-se no preâmbulo do projeto de “Política da Informática” –, a elaboração de políticas de informação em países dessa região, em especial na África do Sul, Moçambique e Namíbia, onde sua ação é apontada ter sido mais ativa. Embora a abordagem do manual evidencie a concepção teórica da política de informação, apresentando seus níveis hierárquicos – Infrastructural Policies, Vertical Information Policies and Horizontal Information Policies (ROWLANDS, 1996) – e campos – technology, industry, telecommunications and media –, bem como a necessidade da convergência com políticas setoriais, seu foco, porém, orienta-se essencialmente para a construção da sociedade de informação, priorizando a visão das tecnologias de informação e comunicação. A construção da sociedade da informação, portanto, constitui foco central da “Política de Informática” de Moçambique. Contudo, não apresenta aspectos que possam caracterizar o foco de uma política de informação. Nessa tradução, as ações de apoio do IDRC na elaboração da “Política de Informática” em Moçambique impõem uma disciplina da sociedade da informação que implica uma fragilidade na capacidade de fazer política de informação ativa ou não. Dotado de conhecimento sobre política de informação, o IDRC em suas ações cuja essência orienta a concepção do An Information Policy Handbook for Southern África, contudo, empresta para a “Política de Informática” de Moçambique apenas o conhecimento necessário à construção da dimensão de infra-estruturas de informação voltadas 64 IDRC Initiative for Communities and Information Society in Sub-Saharan Africa De acordo com a introdução do editor do manual, as ações do The Canadian International Development Research Centre - IDRC em torno das iniciativas de desenvolvimento de política da informação na África Austral tiveram início em 1994 e terminaram em 2001, com maior intensidade a partir de 1997, ano da aprovação da Acacia Initiative, cuja maior componente para Moçambique foi o desenvolvimento de política da informação. 65 158 para a sociedade da informação, sem apoiar a constituição da dimensão política de informação nessa representação. Por um lado, o IDRC apóia a elaboração da “Política de Informática” sem dotá-la de uma perspectiva da política de informação e a nomeia explicitamente, como uma política de informação. Por outro lado, o Governo de Moçambique, contrariamente ao IDRC, não nomeia a “Política de Informática” como uma política de informação – e de fato não é –, mas institui e reconhece explicitamente em sua Resolução nº 3/97 de 18 de fevereiro de 1997, uma “Política de Informação” consubstanciada por essa Resolução, tendo um teor e perspectiva completamente diferente da atual “Política de Informática”. Aliás, as duas “políticas” não se referenciam mutuamente. Antes de analisarmos a “Política de Informação” instituída em 1997, parece interessante fazer uma ponte entre o TAI acima referido e outros aspectos inerentes à iniciativa da construção da chamada sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico em Moçambique, em particular no que se refere a disponibilidade das TICs para os cidadãos, organizações e a sociedade como um todo. Ainda que Moçambique tenha sido classificado entre os 72 países com o TAI aceitável, a disponibilidade das TICs e a oferta de seus serviços ainda constitui um problema sem solução a curto ou médio prazo para sustentar a iniciativa da sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico. A infra-estrutura inerente a estas iniciativas ainda é muito precária e com a distribuição de seus serviços ainda muito aquém da demanda. Esta situação pode ser visualizada na tabela 1 abaixo que sintetiza alguns indicadores (número de computadores e de técnicos de informática) sobre a capacidade informática do país em 2000, numa amostra de 1.155 instituições e empresas, distribuídas pelas 10 províncias, mais a capital do país (Cidade de Maputo). De acordo com o quadro dessa tabela, a Cidade de Maputo concentra o maior número, com 71,2 % do total de computadores existentes nas instituições e empresas abrangidas, seguida da Província de Sofala, onde se situa a segunda 159 maior cidade do país, com 7,6 % do total de computadores. O menor número de computadores registra-se na Província de Cabo Delgado com 0,6% seguido da Província de Inhambane com 0,7% do total dos computadores existentes nas instituições e empresas submetidas ao inquérito em referência. O mesmo se pode aferir em relação ao numero total de técnicos de informática existentes nas referidas instituições e no período considerado, 65,1 % na Cidade de Maputo e 14,5 % na Província de Sofala. Já o menor número de técnicos de informática registra-se na Província de Inhambane com 0,3% seguido da Província de Gaza com 0,5 do total dos técnicos existentes nas instituições e empresas inquiridas. Tabela 1: Quadro da capacidade informática do país em 2000 Designação Cabo.D elgado Niassa Nampul a Zam bézia Tete Manica Sofal a Inhamb ane Gaza Map. Prov. Maputo Cidade Total Computado res Existentes Técnicos de Informática 65 172 402 337 348 203 880 79 118 712 8201 11516 12 9 32 82 37 13 154 3 5 25 693 1064 Fonte: Política de Informática. In: Inquérito Nacional sobre a Capacidade Informática do País, 2000. O número total de computadores existentes nas instituições e empresas inquiridas em 2000 - conforme tabela 1 - confrontado com a disponibilidade destes equipamentos e sua distribuição por famílias (tabela 2) revela um grau de penetração das TICs muito aquém de suprir as necessidades e determinar um índice aceitável de construção da sociedade da informação em Moçambique. O mesmo observa-se, portanto, em relação ao índice de disponibilidade do telefone fixo66 e celular. Ressalta-se que a distribuição das TICs pela população é de 1.70 % das famílias com telefone fixo, 3.60 % com telefone celular, 0,30 % com computador, 6.30 % com televisão e 45.50 % com rádio. A indisponibilidade do computador e do telefone, muitas vezes, aponta uma situação que diminui ou impede o acesso 66 Segundo o relatório anual das Telecomunicações de Moçambique (TDM) referente a 2005, o quadro nacional do telefone fixo dos últimos cinco anos apresenta a seguinte situação: Capacidade instalada em comutação telefônica: 127.902 (2001), 138.482 (2002), 133.587 (2003), 131.967 (2004) e 134.774 (2005). Total de linhas de rede ligadas ao assinante: 89.488 (2001), 83.739 (2002), 77.576 (2003), 69.676 (2004) e 69.735 (2005). Teledensidade (por 100 habitantes): 0,51 (2001), 0,46 (2002), 0,42 (2003), 0,37 (2004) e 0,36 (2005). 160 à Internet67 e à possibilidade de mudança, revolução e desenvolvimento que geralmente se associa ao potencial desta. Se considerarmos a diferenciação desses elementos e seu impacto sobre a sociedade, o empreendimento da construção da chamada sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico em Moçambique torna-se ainda mais crítico. A título de exemplo, do total de 19888701 habitantes (2006) que o país possui atualmente – uma população distribuída numa área de 799.390 km² 68 –, 71% da população reside no campo contra 29% que reside na cidade69. Ademais, as estatísticas do “Observatório das ICTs”, da Unidade Técnica de Implementação da Política de Informática (UTICT) (tabela 2), mostram o nível de utilização das TICs pelo cidadão moçambicano e destacam diversos aspectos que podem caracterizar um fosso digital em nível nacional, acentuado ainda por uma desigualdade entre o meio urbano e o rural. Tabela 2: Acesso aos serviços de TICs: nível da utilização das TICs pelo cidadão (Dados de 2002/2003) 1. Acesso em casa Total 45.50 % 6.30 % 3.60 % 0.30 % 1.70 % Percentagem de Famílias com Rádio Percentagem de Famílias com Televisão Percentagem de Famílias com Telefone Celular Percentagem de Famílias com Computador Percentagem de Famílias com telefone Fixo Urbano 54.90 % 19.50 % 10.90 % 1.10 % 5.50 % Rural 41.50 % 0.70 % 0.50 % 0.00 % 0.10 2. Acesso Público e Comunitário70 Tipo de Ponto de Acesso N º Pontos de Acesso Acesso Comunitário 49 % Distritos % População % de centros % de centros % de centros c/ % de centros c/ % de centros c/ centros de c/ acesso aos c/ acesso a c/ acesso a acesso a acesso a c/ acesso a acesso centros Rádio TV Computadores Internet Telefone N/A N/A 94.00 % 29.00 % 29.00 % 16.00 % 24.00 % Fonte: http://www.observatorioict.gov.mz/IndFrmSociedadeCivil.aspx. 67 Conforme World Development Indicators database (2006), do Grupo Banco Mundial, o quadro de usuários da internet (por 1000 habitantes), em Moçambique, compreende os seguintes números: 1 (2000), 2 (2001), 3 (2002), 4 (2003) e 7 (2004). Já o de assinantes do telefone fixo e móvel (por 1000 habitantes), ainda de acordo com a mesma fonte, é de 8 (2000), 13 (2001), 18 (2002) e 27 (2003). Fonte: WDI 2006 Data. Disponível em: http://devdata.worldbank.org/data-query/. Acesso em: 01/11/06 68 Fonte: http://www.ine.gov.mz/. Acesso em: 03 nov. 2006 Dados do Balanço Econômico e Social do Governo de Moçambique referente ao primeiro semestre de 2006. Disponível em: http://www.govnet.gov.mz/. Acesso em: 17 set. 2006. 70 “Ponto de Acesso Público – Local público onde o cidadão pode aceder aos serviços de ICTs (telefone, Internet e/ou serviços de informática) em moldes comerciais; Ponto de Acesso Comunitário – Local dentro das comunidades onde o cidadão pode aceder aos serviços de ICTs ( telefone, rádio, televisão, Internet e/ou serviços de informática). É uma prestação de serviços sem fins lucrativos, sendo que o valor cobrado visa apenas garantir a sustentabilidade do empreendimento.” Fonte: http://www.observatorioict.gov.mz/IndFrmSociedadeCivil.aspx. 69 161 O quadro específico de algumas tecnologias de informação e comunicação aqui apresentado, e a sua distribuição, sinalizam para dificuldades inerentes à iniciativa da construção da chamada sociedade da informação e de seu projeto de governo eletrônico em Moçambique. E, por outro lado, expressam um risco de manutenção de desigualdades entre regiões, com destaque para a diferença entre espaços urbanos e rurais e a exclusão de comunidades socialmente carentes. No seio do risco da manutenção das desigualdades entre regiões, reside o ímpeto da exclusão informacional que inclui a exclusão digital e mina qualquer perspectiva do que se convencionou chamar de sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico. Estes eixos empíricos configuram a formulação do governo eletrônico em Moçambique como um projeto político referido no contexto da construção e reforma do Estado, com fortes traços dos principais programas governamentais que o precederam. A dimensão informacional governamentais do Estado moçambicano à luz dos programas A partir da análise da construção do Estado moçambicano feita acima, entendemos que em Moçambique já existe um ambiente que admite implicitamente a participação da sociedade. Esta participação ocorre sob forma de consultas e auscultação e de prestação de informações sobre o desenvolvimento dos diferentes processos da vida do país. Contudo, faltam mecanismos que explicitem e assegurem que esta participação seja efetiva em seu contexto em que a sociedade seja parte do processo de tomada de decisões em projetos específicos da vida política, social, econômica e institucional do país, discuti-lo, concordar ou discordar dele, tornando a sociedade civil não apenas em objeto – como geralmente tem sido 162 –, mas também, em sujeito das políticas públicas em seus contextos e fases de formulação, implementação e avaliação, e nas diferentes áreas específicas em que se dirigem. Se a “característica-chave da democracia é a contínua responsividade do governo às preferências de seus cidadãos, considerados como politicamente iguais” (DAHL, 1997, p. 25), a ausência de garantias institucionais como o acesso às fontes de informação, consubstanciado em estruturas concretas de informação, dificulta o processo de democratização do país no âmbito da construção e reforma do Estado moçambicano, pois impede a existência de condições que representam oportunidades dos cidadãos de “formular preferências, exprimir preferências e ter preferências igualmente consideradas na conduta do governo” (Ibidem, p. 26). A institucionalização dos meios de comunicação de massas tem conhecido uma nova dinâmica em Moçambique, à luz dos preceitos da liberdade de imprensa que acompanham a democratização do país, propiciando inclusive maior valorização de seu segmento profissional – profissionais da comunicação social – como veículos de informação. Somem-se também à institucionalização dos meios de comunicação, os atuais esforços inerentes ao processo de desenvolvimento e extensão da rede de infra-estruturas de profusão de informação. Em conjunto, estes elementos constituem parte do processo de alargamento do acesso à informação que, contudo, não bastam. O alargamento do acesso à informação se faz também e principalmente pela institucionalização de práticas, estruturas e políticas de informação, no que se referem aos mecanismos técnico-profissionais de gestão do ciclo de vida da informação – produção, armazenamento, uso e disseminação da informação – propiciando, neste contexto, o desenvolvimento de recursos, serviços e sistemas de informação que, pela sua natureza técnica, se encontram ligados profissionalmente às unidades de informação – arquivos, bibliotecas e centros e serviços de documentação –, compondo um conjunto de infra- 163 estruturas por onde trafega a informação. A perspectiva da gestão da informação, além de favorecer o desenvolvimento de recursos, serviços e sistemas de informação, contribui para a valorização de seu segmento profissional – profissionais da informação – incumbido da gestão e análise do processo da informação em seus diferentes contextos institucional, social, político e técnico-científico. Agindo-se dessa forma, estaria privilegiando o papel da informação na solução de problemas e como recurso ao desenvolvimento, bem como à sua acessibilidade ao público, como condição para a ampliação das oportunidades dos cidadãos na formulação e expressão de suas preferências em relação às políticas do governo. Não existe legislação em Moçambique que sinalize um certo grau de institucionalização de determinadas ações governamentais no campo da informação. O Decreto 33/92 do Conselho de Ministros, que institui o Sistema Nacional de Arquivos (SNA) e que poderia servir como uma referência na área da informação arquivística é marcadamente periférica em sua concepção e, em função disso, passados 14 anos após a sua institucionalização encontra dificuldades para a sua implementação. O estado dos arquivos em todos os setores da administração pública e em seus diferentes aspectos continua o mesmo de 14 anos atrás. Esta dura realidade tem privilegiado a manutenção da precariedade das práticas e recursos de informação, reiteradas pela ausência de políticas de informação. A estrutura de arquivos se inscreve em uma única instituição arquivística – o Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) – e nos serviços de arquivos existentes nos diferentes órgãos públicos. Mercê das características centralizadoras do Estado moçambicano que não estimulou a criação de arquivos públicos nas províncias, o projecto iniciado pela administração colonial [com a criação do AHM em 1934] não teve continuidade. Com efeito, a única referência que se tem nesta área é o próprio AHM, ou seja, a estrutura arquivística em Moçambique resume-se ao AHM e aos arquivos dos órgãos do Estado. As figuras de arquivos regionais e/ou provinciais e centrais (ministeriais) inauguram-se apenas com a institucionalização do SNA. Vale ressaltar que esses arquivos ainda não foram institucionalizados [até hoje]. Eles apenas existem na forma da lei que institui o SNA. (NHARRELUGA, 2002) 164 As bibliotecas, ainda que tenham uma representação em sua estrutura, consubstanciada pela existência da Biblioteca Nacional, bibliotecas provinciais e outras ligadas a diversas instituições, essas unidades de informação funcionam em condições - materiais, de infraestrutura e financeiros - muito precárias, inclusive sem capacidade humana qualificada para a realização de suas tarefas. Os diferentes textos constitucionais e programas governamentais têm sido omissos na questão da informação e quando a ela se referem – como no caso das últimas duas constituições, 1990 e 2005 – apenas resgatam a dimensão da comunicação da informação inscrita no âmbito dos preceitos da liberdade de imprensa e eximem-se da questão inerente à gestão e disseminação da informação, bem como do acesso do cidadão à informação. Assim o têm se manifestado também os principais programas governamentais desde a conquista da independência em 1975, entre eles, o Plano Prospectivo Indicativo (PPI), o Programa de Reabilitação Econômica (PRE), o Programa de Reabilitação Econômica e Social (PRES), o Plano para a Redução de Pobreza Absoluta (PARPA), a Política de Informática, o Programa de Reforma do Sector Público (PRSP), incluindo o governo eletrônico, bem como a Agenda 2025 que se apresenta como de caráter não governamental. Ainda que a natureza e profundidade dos objetivos perseguidos por estes programas exijam o desenvolvimento da perspectiva da gestão de recursos, serviços e sistemas de informação, no entanto, não fica patente a ação dos arquivos, bibliotecas e centros e serviços de documentação, muito menos a perspectiva de desenvolvimento e ampliação destas unidades de informação no âmbito dos referidos programas. Com efeito, vive-se um cenário sombrio quanto ao futuro dessas unidades de informação e da perspectiva do uso social da informação em Moçambique. A Comissão Interministerial da Reforma do Sector Público (CIRESP) em seu relatório de progresso, de abril de 2005, sobre a Implementação da Estratégia Global da Reforma do 165 Sector Público, fase 2001-2005, menciona como uma das ações prioritárias dessa fase, a necessidade de “aprovação da Política Nacional de Gestão de Documentos e Arquivos”. E a Comissão Interministerial da Reforma do Sector Público, em seu relatório de outubro de 2005, sobre as “Actividades da Reforma do Sector Público”, cobrindo o período de janeiroagosto do mesmo ano, refere-se ao lançamento do concurso e da contratação da assistência técnica para a elaboração da referida política, bem como do lançamento e conclusão de um outro concurso “público” para o apetrechamento do Centro de Documentação e Informação de Moçambique (CEDIMO), uma unidade específica do Ministério da Administração Estatal, sem estrutura e pessoal qualificado para exercer as funções inerentes à gestão de documentos e arquivos em nível nacional. Aliás, circulam informações71 consubstanciadas em seminários e consultorias internacionais, sem sucesso, que indicam a necessidade da criação de um arquivo nacional à revelia do atual arquivo – Arquivo Histórico de Moçambique (AHM) – e sem partir da perspectiva do estado atual da situação arquivística do país, alegadamente porque o AHM não serve aos interesses da administração pública atual. Sabe-se, no entanto, que o AHM constitui uma instituição arquivística de âmbito nacional e, por sinal, única de gênero em todo o território nacional, estando, inclusive, investida – pelo Conselho de Ministros - de funções de arquivo nacional e que concentra o maior e o mais importante capital arquivístico do país, consubstanciado num acervo (um dos maiores e mais importante da África Subsaariana) e experiência institucionais anteriores à proclamação da independência, infra-estrutura (ainda que seja precária) e técnicos com qualificação profissional. A situação que caracteriza a questão da informação no âmbito dos programas governamentais constitui uma pura forma institucionalizada de controle estatal, mantendo as assimetrias de informação na relação entre Estado e sociedade, sempre a favor do primeiro. 71 Informação obtida em contato verbal com os consultores (um nacional e outra internacional) do Ministério da Administração Estatal (MAE) em 2005 e através da nossa participação num dos seminários organizado pelo mesmo Ministério, realizado em Maputo entre os dias 14 e 16 de abril de 2004. 166 Em realidade, esta situação aponta para a questão da informação como um elemento básico para o controle do poder, nos moldes preconizados por Weber, em que, segundo ele, a burocracia se apresenta como um poder derivado da concentração da informação. Toda burocracia busca aumentar a superioridade dos que são profissionalmente informados, mantendo secretos seu conhecimento e intenções. A administração burocrática tende sempre a ser uma administração de ‘sessões secretas’: na medida em que pode, oculta seu conhecimento e ação da crítica. (...) O conceito de ‘segredo oficial’ é invenção específica da burocracia e nada é tão fanaticamente definido pela burocracia quanto esta atitude (...) (WEBER, 1974, p. 269-270). As poucas e precárias unidades de informação existentes na estrutura estatal não são concebidas como agências de informação do Estado, mas apenas como agências culturais do mesmo. Assim, elas não são visualizadas como elementos que viabilizam o acesso à informação e muito menos como objetos no processo de tomada de decisões. Elas estão situadas no âmbito da chamada política cultural do país inscrita na Resolução n.º 12/97, de 10 de junho de 1997 do Conselho de Ministros, que aprova a Política Cultural e sua Estratégia de Implementação. Os arquivos não são concebidos em sua dimensão informacional em que assuem papel de liderança na gestão da informação e na definição de políticas de informação arquivística, muito menos como instrumentos ao serviço da administração e de apoio à tomada de decisões. Eles são concebidos em seu sentido cultural que exprime a preservação da memória institucional e ações de pesquisa histórica. E como tal, encontram sua expressão no âmbito dos princípios e da estratégia de desenvolvimento cultural estabelecidos em 1997 e que permanecem atuais. A Política Cultural e Estratégia de sua Implementação aprovada pelo Conselho de Ministros em 1997 estabelece em seu parágrafo nº 3.2.3, que: Os arquivos têm por função a recolha, tratamento, conservação e difusão de documentos, essencialmente primários, em diferentes tipos de suporte. O Governo apóia as actividades dos arquivos existentes e encoraja a criação de outros de âmbito nacional e local, gerais e especializados. (MOÇAMBIQUE, 1997). 167 Neste contexto, as precárias ações e práticas de arquivo, bem como os fracos recursos e estruturas arquivísticas que deviam estimular a formulação e implementação de políticas neste setor constituem somente uma das dimensões das políticas públicas culturais do país e não das políticas públicas de informação. Quanto às bibliotecas, a referida política afirma em seu parágrafo nº 6.3, que: As bibliotecas, públicas e privadas, têm por função, a pesquisa, aquisição, tratamento e difusão de material bibliográfico, cinematográfico, iconográfico e fonográfico para consulta pelos interessados para fins de estudo ou deleite. O Governo promove iniciativas tendentes a melhorar a actividade das bibliotecas através da criação de mecanismos de facilitação da circulação do livro produzido dentro e fora do país. De igual modo, o Governo encoraja a constituição de bibliotecas junto de instituições de ensino, unidades produtivas e associações de interesse social, económico, cultural e juvenil, que complementem a função das bibliotecas públicas. (Idem). Esta política pode ser visualizada no âmbito do Programa Qüinqüenal do Governo 2000-2004, um programa que coincide com o período que marca o lançamento da chamada sociedade de informação em Moçambique e o início da formulação do seu projeto de governo eletrônico e que declara (MOÇAMBIQUE, 2000?, p. 34-35): Partindo da constatação de que os valores culturais se exercitam de diferentes e variadas maneiras, o Governo priorizará (...) no âmbito da preservação e divulgação do património cultural nacional: ( . . . ) Incentivar a maior utilização dos Monumentos, Museus, e outras instituições de preservação e divulgação cultural em colaboração com os sectores de educação e turismo. No âmbito do desenvolvimento da criatividade e promoção da indústria cultural: (...) Editar um directório nacional de artistas, instituições culturais já existentes (Casas de Cultura, Bibliotecas, Museus e Arquivos). (Idem) A situação se reproduz na chamada sociedade da informação em Moçambique. A informação não consta como elemento fundamental no âmbito da Política de Informática que anuncia o referido discurso. Ela não é visualizada nas áreas prioritárias da mesma e, muito menos, entre “Outras Áreas da Política de Informática”, um capítulo que cobre outras áreas consideradas no programa. Contudo, nesse capítulo, pode se destacar, entre outras, áreas como a de “Cultura e Arte” e a de “Comunicação Social”. Aliás, reiterando o preceituado na chamada política cultural que temos vindo a citar, os arquivos, bibliotecas e museus são 168 concebidos no âmbito da área de “Cultura e Arte”, a partir da qual se incentivará a “constituição de redes eletrónicas de instituições culturais como museus, bibliotecas, arquivos (...)”. (MOÇAMBIQUE, 2000, p. 26) O Programa Qüinqüenal do Governo 2005-2009 manteve a situação quase inalterável. Ele introduz a componente da Reforma do Setor Público em curso e propõe “implementar um sistema de gestão de documentos, registo e arquivo no Aparelho do Estado” (MOÇAMBIQUE, 2005b, p. 58). Na verdade, trata-se de uma proposta cuja implementação encontra nexo nos moldes acima referidos. O referido Programa também enquadra a comunicação social na perspectiva da reforma e define seu papel: “promover o desenvolvimento da comunicação social e reforçar o seu papel na difusão da informação e na educação dos cidadãos” (MOÇAMBIQUE, 2005b, p. 59). Nada contra a valorização das unidades de informação no âmbito cultural e muito menos contra a perspectiva de desenvolvimento da área da comunicação social. Contudo, o não reconhecimento total e completo da dimensão informacional das unidades de informação no âmbito dos diferentes programas e projetos governamentais ressalta uma autêntica ausência de estruturas e políticas de informação em nível nacional e setorial. Quando a questão da informação desponta como assunto de interesse no âmbito governamental, seu sentido é desviado e incorporado no contexto da comunicação social. A função de gestão e disseminação da informação, bem como o papel do profissional da informação se confunde com a função e o papel da comunicação social. No âmbito do Programa Qüinqüenal do Governo 2000-2004 (MOÇAMBIQUE, 2000?, p. 94), o Governo se propõe a primar, em seus objetivos incorporados na área da comunicação social, pelo “direito do povo à informação” e pelo “alargamento do grau de disseminação da informação”, procurando, em direção a estes objetivos: 169 • • • • Incentivar os cidadãos, empresas, associações ou organizações a contribuírem para a criação de órgãos de comunicação social no interesse de tornar a informação acessível aos cidadãos; Garantir aos profissionais da comunicação social o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e ao sigilo profissional; Incentivar a introdução de cursos de formação superior na área de Comunicação Social; Facilitar o acesso dos cidadãos e dos órgãos de comunicação social à informação sobre a actividade do Governo. (Idem) Essenciais à comunicação social e às garantias de liberdade de imprensa, estas ações, contudo, não garantem o direito à informação ao cidadão, porquanto este direito seja uma prerrogativa resultante de um processo de gestão do ciclo da informação e de sua disseminação ao cidadão através de agências profissionais apropriadas. Além do desvio de ações profissionais da área de informação para a de comunicação ou de cultura, onde acabam não sendo devidamente enquadradas, há um deslocamento de recursos para estas áreas, em detrimento daquela. Na verdade este problema resulta de uma lacuna da própria lei fundamental do país que ao abordar os “Direitos, Deveres e Liberdades” no seu Capítulo II, destaca as “Liberdades de expressão e informação” em seu Artigo 48, sendo omissa em relação à questão do direito à informação que consigna ao cidadão no n.º1 deste artigo, como segue: “Todos os cidadãos têm direito à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, bem como o direito à informação.” A constituição consagra nesse parágrafo o direito à informação ao cidadão comum sem, contudo, assegurar o seu exercício, como o faz com os meios de comunicação social. Já o n.º 2 do referido artigo explicita o exercício da liberdade de expressão, referido no número anterior, incorporando o exercício do direito à informação como uma das suas dimensões ou parte componente: “O exercício da liberdade de expressão, que compreende nomeadamente, a faculdade de divulgar o próprio pensamento por todos os meios legais, e o exercício do direito à informação não podem ser limitados por censura.” 170 E, por fim, no parágrafo n.º 3 do mesmo artigo, a liberdade de imprensa contém em si, a liberdade de expressão e o acesso às fontes de informação: A liberdade de imprensa compreende, nomeadamente, a liberdade de expressão e de criação dos jornalistas, o acesso às fontes de informação, a protecção da independência e do sigilo profissional e o direito de criar jornais, publicações e outros meios de difusão. Em princípio, a liberdade de imprensa constitui um pressuposto histórico do exercício profissional dos meios da comunicação social. Seguindo esse raciocínio e se for válido, a lei fundamental do país, ao subordinar a liberdade de expressão e o acesso às fontes de informação à noção da liberdade de imprensa, incorpora, automática e simultaneamente, o acesso à informação e o direito à informação – anteriormente declarados ao cidadão – dentro da perspectiva da comunicação social, retirando-os dos cidadãos que passam a exercê-los por intermédio dos profissionais da comunicação social. Todos os programas governamentais analisados e as leis em que estes se baseiam conjugam esta perspectiva. O documento denominado “Política e Estratégia de Informação” não foge à regra. Instituído e nomeado pelo Conselho de Ministros - em sua Resolução nº 3/97 de 18 de fevereiro de 1997 - como “Política e Estratégia de Informação”, o referido documento divide-se em “Política de Informação” e “Estratégia de Informação” e orienta-se para aspectos da comunicação social, envolvendo os meios e profissionais desta área, sem fazer menção à questão da informação em suas diferentes perspectivas e contextos que abarca unidades ou agências e serviços de informação. A Agenda 2025, um documento elaborado, de forma independente, apartidária e profissional por um grupo de cidadãos, representando os mais variados sectores da sociedade e que se propõe como “um guião nacional para governados, governantes, profissionais, diversas organizações da sociedade civil e, em suma, de toda a Nação e dos parceiros de cooperação, na abordagem da problemática de desenvolvimento de Moçambique até ao ano de 2025” também é omisso quanto à questão da informação. Referindo-se ao acesso à 171 informação como “uma das condições fundamentais para a garantia da transparência e da boa governação”, recomenda a necessidade da promoção da sua “disponibilização generalizada, de forma isenta, idónea, objectiva, clara e directa”, sem avançar em detalhes sobre aspectos da gestão e disseminação da informação, estruturas e políticas de informação como o faz com muita competência em relação à comunicação social (onde incorpora a noção de acesso à informação) e outras áreas. (AGENDA 2025, 2003, p. 134). Portanto, as práticas e estruturas de informação – inscritas nos arquivos, bibliotecas e serviços e centros de documentação – não fazem parte do conjunto de elementos definidos para a organização do Estado, ressaltando a ausência de políticas públicas de informação. Presume-se, no âmbito governamental, que a ação destas esteja refletida tanto na área da comunicação social quanto na de cultura. Na política governamental as ínfimas práticas e estruturas de informação são objeto de sua política cultural e não de políticas de informação, o que aponta para uma ausência destas. 172 C AP Í TU LO 6 _____________________________________________________________________________________ GOVERNO ELETRÔNICO E MEDIAÇÕES INFORMACIONAIS EM MOÇAMBIQUE Esta dissertação se propôs a discutir a informação governamental – que é por natureza pública, produzida e acumulada por instituições governamentais, em razão mesmo de suas funções e atividades – na sua dimensão política, social e técnico-científica, tendo em vista as relações dos diferentes atores e agências envolvidos na formulação e implementação do projeto de governo eletrônico em Moçambique e o reflexo dessa política sobre a governança e o uso social da informação. Lembramos igualmente que, no caso do governo eletrônico, o foco incide sobre a informação governamental, de domínio público ou não. Para a operacionalização da pesquisa considerou-se fundamental o estabelecimento da relação entre o Estado e a sociedade civil como um aspecto chave na formulação e implementação de políticas públicas de informação. Nesse contexto, a informação governamental mostrou-se ser um vetor na mediação das relações Estado-sociedade civil, cuja efetividade, no entanto, implicava necessariamente a formulação e implementação de políticas públicas de informação. A questão da informação governamental apontada por esta pesquisa pode ser expressa, de acordo com os limites e âmbito desta dissertação, pela relação contraditória entre as práticas, recursos e estruturas de informação em Moçambique. Esta relação contraditória efetiva-se pela ausência de políticas públicas de informação no país e gera implicações na mediação das relações Estado-sociedade civil. A dimensão informacional no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique foi traçada e analisada no âmbito da trajetória da reforma do Estado nesse país, 173 consubstanciada em políticas e programas governamentais desenhados e desenvolvidos no âmbito do processo da construção do Estado e sociedade moçambicanos. A dimensão do acesso à informação e sua relação com as políticas de informação A perspectiva do acesso à informação governamental referencia um aspecto na formulação e implementação de políticas de informação e conforma-se como uma das dimensões das políticas públicas de informação. Em nosso entender, a questão da informação reveste-se de suma importância tanto para o desenvolvimento quanto para a liberdade dos indivíduos e da sociedade em que estes vivem. Essa perspectiva tem levado organismos internacionais a reconhecerem a importância das políticas de informação e a formularem diretrizes que apóiam e justificam a questão da informação como elemento de desenvolvimento e fortalecimento dos cidadãos em diferentes sociedades, através do acesso e utilização da informação e do conhecimento. A título de exemplo, a Unesco, em sua Recomendação sobre a Promoção e Utilização do Multilingüístico e o Acesso Universal ao Ciberespaço, adotada em 2003, assume, particularmente, na seção sobre o Desenvolvimento de Conteúdos de Domínio Público a necessidade de, “junto com outras organizações intergovernamentais, preparar diretrizes para assessorar os Estados-membros no que diz respeito a políticas para o desenvolvimento e a promoção da informação de domínio público” (UNESCO, 2003, p. 4). Este anseio viria a concretizar-se com a publicação, em 2004, do documento denominado “Policy guidelines for the development and promotion of governmental public domain information” 72 que, na sua essência, discute questões-chaves, princípios, políticas e procedimentos capazes de auxiliar no 72 Traduzido para português em 2006. 174 desenvolvimento e na promoção da produção, disseminação, preservação e utilização da informação governamental de domínio público nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos, em nível nacional. Por sua vez a Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação (CMSI) reunida na sua primeira sessão realizada em Genebra, no ano de 2003, destaca em seu Plano de Ação, a necessidade específica de “desenvolver diretrizes políticas para o desenvolvimento e a promoção da informação de domínio público como essencial instrumento internacional para promover o acesso público à informação” (WSIS, 2003, p. 4, tradução nossa). A declaração de princípios da CMSI especifica que: Um domínio público rico constitui um elemento essencial para o crescimento da Sociedade da Informação, gera múltiplos benefícios, como por exemplo, um público educado, novos empregos, inovação, oportunidades de negócios e o avanço das ciências. A informação de domínio público deve estar facilmente acessível para dar suporte à Sociedade da Informação, e deve ser protegida contra a apropriação indébita. Instituições públicas como bibliotecas e arquivos, museus, coleções culturais e outros pontos de acesso baseados na comunidade devem ser fortalecidos ou reforçados como forma para fomentar a preservação de registros documentais e o acesso livre e equânime à informação. (WSIS, 2003, p. 4, tradução nossa). Como se pode depreender, a regulamentação do acesso à informação recai, sobretudo, àquela de domínio público que, na definição da Unesco e em sua distinção, compreende a informação não sujeita a qualquer forma de proteção estatutária ou que os termos de sua proteção tenham expirado e àquela de natureza intrinsecamente pública (informação governamental de domínio e de disponibilidade pública). A informação de domínio público refere-se à informação publicamente acessível, cuja utilização não infringe qualquer direito legal, ou qualquer obrigação de confidencialidade. Refere-se, portanto, por um lado, ao domínio de todos os trabalhos ou objetos associados a tais direitos, os quais podem ser explorados por todos sem qualquer autorização, por exemplo quando a proteção não é concedida por lei nacional ou internacional, ou devido à expiração do termo de proteção. Refere-se, por outro lado, a dados públicos e informações oficiais produzidas e voluntariamente 175 disponibilizadas por governos ou organizações internacionais. (UHLIR, 2006, p. 24)73. As Diretrizes Políticas da Unesco abordam também a informação do setor público concebendo-a como uma categoria mais ampla que compreende a informação governamental de domínio público e adverte que, o “governo nacional deve certamente assumir a liderança na organização do acesso e disseminação da informação pública em nível nacional, [sem subestimar] o papel e a relevância da informação produzida por autoridades públicas subnacionais ou locais” (UHLIR, 2006, p. 26, grifo nosso). De um lado, a concepção de “informação do setor público” como “qualquer informação que seja produzida por uma entidade do setor público74” (UHLIR, 2006, p. 25) ressalta a perspectiva da composição desta categoria de informação por diversos documentos sobre diversos assuntos e reflete as atividades e funções governamentais em seus diferentes níveis organizacionais. De outro, a advertência da Unesco realça a necessidade da existência de um corpo de agências governamentais investidas de funções profissionais próprias da área de informação. Entre tais agências podem-se destacar os arquivos, bibliotecas, museus e outros serviços e centros de documentação e informação que, em conjunto e quando estruturados nos diferentes níveis de poder e de organização governamental formam uma estrutura de informação. Na perspectiva da Unesco pode-se perceber ainda que o desenvolvimento e a promoção da produção, da disseminação e da utilização da informação governamental de domínio público passam necessariamente pela formulação de uma política nacional de informação cuja implementação se efetiva agindo em três áreas principais: 73 Definição originalmente apresentada no anexo (Definitions) do documento da Unesco “Recommendation Concerning the Promotion and Use of Multilingualism and Universal Access to Cyberspace” 74 Ao mesmo tempo em que as Diretrizes Políticas da Unesco definem entidade do setor público como “um órgão governamental de nível nacional, subnacional ou local, ou em certos casos, uma organização internacional” (UHLIR, 2006, p. 26), entendem que “a informação do setor público deve ser produzida por autoridades públicas, ou sob sua supervisão” (Idem). Enfatizam ainda que “a definição de informação por si só também deve ser considerada na determinação do tipo de informação do setor público que deve ser acessível para o bem público, [não devendo], de forma alguma, ser limitada a apenas ‘notícias’ ou ‘fatos’” (Ibidem, p. 27.) 176 • • • A definição do escopo da informação a ser disponibilizada; O estabelecimento do acesso e da utilização da informação pública como princípio legal e; O desenvolvimento e a promoção de programas para a gestão dos recursos de informação e para a disseminação da informação pública. (UHLIR, 2006, p. 37) O conjunto de decisões envolvidas nestas três áreas principais configura recursos, práticas e estruturas de informação que, além de serem objeto de uma política pública de informação, podem sinalizar a sua institucionalização no plano nacional, regional ou local. Faz parte deste plano de ação, a perspectiva de estabelecimento ou da revitalização das instituições profissionais da área de informação, bem como a capacitação e valorização dos respectivos profissionais dessa área. Ao contrário da perspectiva da Unesco, que aponta a existência de países com legislação que facilita o acesso à informação governamental e de outros em processo de promulgação de suas legislações, em Moçambique, os diversos dados coletados no decurso da pesquisa, ilustram a não existência de legislação nesse domínio e muito menos uma abertura profissional na gestão e disseminação da informação. Ainda de forma adversa em relação aos outros países, a situação encontrada em Moçambique faz com que a presunção do segredo governamental provoque a retração da liberdade de informação ou de suas leis em detrimento da perspectiva que indica a necessidade de estabelecimento do direito legal ao acesso e utilização da informação pública. Estes aspectos são evidentes e influenciam a configuração da dimensão informacional no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique. De acordo com a Unesco: • • • • O direito dos cidadãos ao acesso à informação governamental deve ter suas bases na lei através da constituição nacional e ser implementada por estatuto; O tipo de informação governamental que deve ser ativamente disseminado deve ser definido (...); Um órgão público que é solicitado a permitir acesso a um determinado item de informação não deve controlar o interesse pessoal do solicitante; As exceções ao princípio de disponibilidade devem ser determinadas cuidadosamente (...) (UHLIR, 2006, p. 41-42) 177 As Diretrizes Políticas da Unesco se referem igualmente a razões que, sem criar aura de segredo desnecessária sobre a informação governamental, justificam a retenção de informações governamentais para salvaguardar interesses, definindo restrições tais como, restrições de segurança nacional, proteção de privacidade pessoal e de segredos comerciais. Entretanto, referido à Lei fundamental do país (Moçambique), o direito dos cidadãos ao acesso à informação governamental tem como foco a perspectiva dos meios de comunicação social, sendo implementado por um estatuto voltado para aquele setor profissional e não para o cidadão comum. Constatamos, ao longo da pesquisa, restrições ao acesso à informação que têm, como pano de fundo, a ausência de políticas nessa área. Muitas restrições relativas ao acesso e uso público da informação resultam da ausência de uma lei de liberdade de informação e de acesso à informação governamental para implementar, em nível nacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos75, nesta matéria, e configurar o acesso e uso da informação e do conhecimento em um direito básico orientado à liberdade de expressão e à participação do cidadão na vida cultural e no progresso científico76. Naturalmente uma lei de liberdade de informação que não seja compatível com a proteção de propriedade intelectual, segurança nacional, privacidade, confidencialidade e outras considerações, em nada valerá a sua formulação. O mesmo se aplica para uma lei dessa natureza que não seja associada à perspectiva de uma política de gestão e disseminação da informação calcada em moldes sócio-profissionais internacionalmente aceites e às condições individuais que tornam efetivo o acesso e uso da informação e do conhecimento. 75 Em seu Artigo 19, consagra o direito à liberdade de opinião e de expressão e explicita que o referido direito está condicionado ao direito de procurar, receber e difundir informações e idéias por qualquer meio de expressão. Neste contexto, a ausência de uma lei ou de leis de liberdade de informação e de uma abertura profissional na gestão e disseminação da informação compromete o direito à informação e, em conseqüência, o de liberdade de opinião e de expressão. 76 Ibidem, nota anterior, ver o Artigo 27, #1. 178 Em princípio, a disponibilidade ou a possibilidade de acesso à informação não garante por si só o uso efetivo da informação que pode gerar conhecimento. Esta perspectiva agravase ainda mais em realidades fragmentadas por desajustes sociais, econômicos e políticos como a moçambicana, em particular. Neste contexto, concordamos com Barreto (1994) para quem, democratizar a informação envolve a existência de programas que facilitem e aumentem o acesso à informação, bem como de condições individuais (contextuais e cognitivas) para a elaboração da informação e a possível transformação desta informação em conhecimento capaz de esclarecer e libertar o indivíduo e a sociedade. Trata-se de um aspecto que relaciona o acesso à informação com a perspectiva de formulação e implementação de políticas de informação, bem como sua avaliação e análise. Os resultados do nosso estudo indicam que a dimensão da informação no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique depende, sobretudo, de uma ação política voltada para a valorização dos processos informacionais – constituídos por ações de informação que se desenvolvem no meio social e são orientados por sujeitos profissionais específicos – no âmbito das políticas e programas governamentais, como elementos de organização do Estado e da sociedade, e recursos para o desenvolvimento nacional. De uma forma geral, o cenário moçambicano e, em particular do projeto de governo eletrônico em Moçambique, não contempla a concepção da gestão da informação do setor público e a designação legal dessa informação como de livre acesso ou disponibilidade. No entanto, entendemos ser preciso estimular a expansão do acesso aos vários tipos de recursos de informação governamental, estabelecendo mecanismos de gestão da informação acompanhados, conseqüentemente, pela definição legal da informação a ser disponibilizada ao público. Como tal, o estabelecimento de um equilíbrio entre estruturas e políticas de informação nos diferentes níveis do poder e de organização estatal parece ser de grande 179 utilidade e mais apropriado para o desenvolvimento harmonioso de recursos e fluxo de informação em nível nacional ou setorial. A abertura do acesso e utilização de dados e informações aos cidadãos pode contribuir para a governança ou estimular a sua transparência bem como a dos valores democráticos que, do contrário, poderão ser solapados de forma irreversível. Assim, para promover o acesso, parece interessante e necessário que sejam formuladas e implementadas regras regulamentares para assegurar a liberdade de informação e de expressão, bem como a proteção contra conteúdos prejudiciais e uso inadequado de informação privada como grandes desafios dentro do atual processo de aprendizado democrático em curso no país. Aliás, esta perspectiva exige, em contrapartida, o estabelecimento de um equilíbrio entre as restrições e os direitos inerentes à informação. A questão da informação e sua configuração na formulação do governo eletrônico em Moçambique Fragilizada historicamente no e pelo processo de construção do Estado moçambicano desde a sua constituição em 1975, a questão da informação não é visualizada nos diferentes programas e políticas governamentais como elemento de e para a organização do Estado e, muito menos, no projeto de governo eletrônico, em particular. Além de não ter criado condições para o desenvolvimento de práticas, recursos e estruturas de informação o Estado moçambicano não reconhece a necessidade da existência de agências estatais incumbidas de práticas governamentais em matéria de informação. A formulação do projeto de governo eletrônico em Moçambique vem se estruturando nessa perspectiva, sendo implementado como um modelo tecnocrático em que os políticos e administradores decidem sobre questões 180 político-administrativas da informação, desprezando os aspectos sócio-profissionais e técnicocientíficos da mesma, na sua produção, armazenamento, disseminação e uso. A questão da informação, nesse contexto, fica refém a interesses políticos que acabam comprometendo a dimensão social e técnico-científica da informação. A realidade moçambicana no contexto do nosso objeto de pesquisa coloca a dimensão política da informação acima dos interesses das outras dimensões (social e técnico-científica) e dirige a falta de nitidez da questão da informação nos diferentes programas e políticas governamentais – incluindo o projeto de governo eletrônico. Em nossa análise, observamos uma diferenciação explícita das diferentes dimensões da informação no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique. A tríplice dimensão da informação – política, social e técnico-científica – encontra-se diferenciada no que se refere à sua configuração e representação no referido projeto. Configurada nas e pelas decisões políticas, e representada pelo segmento político ou administrativo que dirige as políticas e programas governamentais, a dimensão política da informação tem sido privilegiada na formulação e implementação do projeto de governo eletrônico. Esta evidência observa-se a partir da escolha política da informação priorizada para compor o projeto de governo eletrônico sem a participação da sociedade civil que poderia ter prioridades diferentes. Soma-se a isso, a ausência de uma perspectiva profissional de gestão do ciclo da referida informação para sustentar a dimensão sócio-profissional e técnico-científica da mesma. Em princípio, a dimensão política da informação tem como foco os dispositivos estatais de regulamentação e deriva dos mecanismos de direção e controle exercidos no âmbito do poder administrativo do Estado. Escassos ou completamente ausentes tais mecanismos de direção no contexto informacional moçambicano em que prevalecem os de controle, o Estado 181 perde a direção ou a governança da informação para garantir apenas o seu controle como mecanismo de monitoramento do poder administrativo. A situação encontrada no âmbito da atual reforma no país e da formulação do projeto de governo eletrônico em Moçambique revela um quadro de participação da sociedade civil desvinculado de qualquer possibilidade de formação da agenda pública capaz de subsidiar decisões políticas de caráter democrático. Verificamos, portanto, a existência de processos esporádicos de consulta à sociedade civil, voltados para a legitimação do processo de formulação do projeto de governo eletrônico em Moçambique e que caracterizam a atual relação do Estado com a sociedade civil e a noção da participação desta no âmbito da proposta de governo eletrônico em Moçambique. Ao contrário da dimensão política, a dimensão social da informação perde a sua expressão em função da não representação da sociedade civil. E, em sua configuração social, a dimensão da informação se expressa pela ausência da perspectiva do profissional da informação na gestão e disseminação da informação, “substituído” que é pelo profissional de comunicação social na mediação, tanto da informação quanto dos direitos em torno da mesma. Esta aparente substituição do profissional da informação acarreta constrangimentos à dimensão sócio-profissional e técnico-científica da informação. Em nossa opinião, a dimensão social da informação encontra-se ligada ao uso social da informação – como um bem associado às noções de desenvolvimento e de liberdade dos indivíduos e da sociedade – como resultado do exercício de direitos instituídos e reconhecidos legalmente e, em cujo exercício, subsistem mecanismos sócio-profissionais e técnicocientíficos que garantem o fluxo da informação. Neste contexto, a participação da sociedade civil nos processos que orientam as decisões políticas em matéria de informação associa-se à perspectiva do exercício profissional da área por forma a propiciar o uso adequado da informação e a inclusão social. 182 Associado ao aspecto social da informação, a dimensão profissional e técnico-científica da informação possui como foco a própria área de informação, seu eixo sendo fornecido pelos mecanismos e processos técnico-profissionais e científicos voltados para os processos técnicos na produção, armazenamento, disseminação e uso da informação. Nesse contexto, ao fazer-se representar apenas de administradores e planejadores sob o amparo do poder político em suas decisões, sem incluir a participação de profissionais e especialistas da área de informação de diferentes esferas e em diferentes níveis, com intervenção ativa de grupos de usuários representativos, a política do governo eletrônico em sua formulação e implementação, desvirtua-se da possibilidade de este se configurar como uma política pública de informação capaz de impulsionar a questão da informação. Mais do que uma ausência de representação dos profissionais de informação no âmbito do projeto de governo eletrônico, o fato em si, demonstra o não reconhecimento desta categoria profissional pelo Estado, cujo exercício é reduzido à categoria da cultura e da comunicação social. O mesmo se pode afirmar em relação à ausência de representação de grupos de usuários de informação, ou melhor, do cidadão, em que se faz apenas por via ou intermédio do profissional da comunicação social, como resultado da política governamental que coloca este no centro das atenções em torno da informação onde, além de figurar como seu profissional, representa os direitos do cidadão à informação. É preciso dotar o cidadão de meios legais e de capacidades contextuais e cognitivas como condição para exercer o “direito de procurar, receber e difundir informações e idéias” como reza a Declaração Universal dos Diretos Humanos, sem esperar por um intermediário, ainda que este seja imprescindível para a consecução dos princípios de liberdade de imprensa. A questão da informação quando analisada do ponto de vista das políticas públicas constitui um mecanismo que flui na articulação e projeta-se simultaneamente como mediador das relações entre o Estado e a sociedade civil. Portanto, a informação assume este papel na 183 articulação de qualquer programa, como poderia ser no projeto de governo eletrônico em Moçambique, bem como na mediação das relações envolvidas na formulação e funcionamento desse projeto. Aliás, é de grande interesse observar que muitos programas fracassam em função da ausência de uma política de informação que, no caso específico do projeto de governo eletrônico em Moçambique, constitui ou deveria constituir uma de suas dimensões políticas. A fragilidade das dimensões sócio-profissional e técnico-científico da informação no quadro do projeto de governo eletrônico em Moçambique resulta num problema na mediação da informação e, com isso, das relações entre o Estado e a sociedade civil. Esta situação pode contribuir para o crescimento de constrangimentos77 e fazer com que o projeto de governo eletrônico em Moçambique não alcance os benefícios econômicos e sociais a que se propõe na sua essência, como desdobramento da noção de sociedade da informação. Aliás, mais do que constrangimentos ao desenvolvimento do governo eletrônico, estes problemas podem, em conjunto, significar ainda uma marca de exclusão informacional – a qual inclui a exclusão digital –, associada ao risco de enfraquecimento da atual e também fraca economia, coesão social e desenvolvimento da democracia no país. Consideramos que a questão da informação governamental encontra sua fundamentação técnico-científica mais elevada dentro do aparato sócio-profissional voltado para a sua gestão e disseminação. Nesse aparato, o profissional de informação constitui o principal ator e responsável pelo fluxo da informação governamental até sua comunicação através do uso de diversos canais e mecanismos. A partir dessa perspectiva, os processos informacionais – formados por ações orientadas por sujeitos profissionais num contexto social –, quando relacionados ao cidadão-receptor situam a informação governamental como mediadora da 77 Tal como apresentados no capítulo cinco, entre eles, ineficiência na formulação de políticas públicas e ausência de mecanismos de participação da sociedade civil nos projetos governamentais. 184 produção de conhecimento no indivíduo, associando-se a mesma informação governamental à noção de desenvolvimento e de liberdade deste. Um dos mecanismos que poderia visualizar a existência de políticas nacionais de informação e esclarecer a relação do Estado com os profissionais de informação dispersos pelas diferentes e precárias unidades ou agências de informação - arquivos, bibliotecas, centros de documentação e outros serviços de informação -, no âmbito dos programas e políticas governamentais, em especial o projeto de governo eletrônico, seria a existência de um plano explícito de reciclagem ou de formação dos mesmos no âmbito da reforma em curso. Contudo, esses mecanismos são completamente inexistentes. Alguns aspectos sobre recursos e estruturas de informação Além da configuração bastante precária das dimensões social e técnico-científica da informação no âmbito da formulação do projeto de governo eletrônico em Moçambique, outra situação igualmente pouco comum e difícil de entender refere-se à falta de organização das unidades ou agências estatais de informação e seu reflexo na estrutura organizacional do Estado. Sem estrutura que reflete suas funções de caráter nacional, o Arquivo Histórico de Moçambique/Arquivo Nacional – a única instituição arquivística em todo o país – encontra-se vinculado à principal instituição de ensino do país. A Biblioteca Nacional e seus segmentos nos diferentes níveis de organização do Estado (onde existem) encontram-se sob a gestão do Ministério da Educação e Cultura. Os centros de documentação e outros serviços de informação como arquivos dos órgãos centrais do Estado têm a sua subordinação ligada diretamente aos respectivos órgãos de tutela. Esta situação que revela fragilidade da estrutura de informação em Moçambique é esclarecedora da ausência de políticas nacionais de 185 informação. Em paralelo, a referida situação, dificulta a constituição de um modelo de gerenciamento da informação em nível nacional ou setorial (cuja concepção pode assumir a configuração de um sistema, rede ou programa de ação). A dificuldade, neste caso, emerge, sobretudo, quando o modelo de gerenciamento da informação é pensado do ponto de vista de sua constituição em seções baseadas, por exemplo, em segmentos como: de bibliotecas para o público em geral (formado pela Biblioteca Nacional e seus segmentos em diferentes níveis organizacionais); de arquivos (representado pelo Arquivo Nacional, compreendendo seus segmentos nos três poderes e níveis de organização estatal); de informação em ciência e tecnologia (integrado pelas bibliotecas universitárias e institutos de pesquisa); de informação em educação (composto por bibliotecas escolares); de museus (integrado por museus), entre outros. Além de serem bastante precárias e demasiadamente periféricas, as estruturas de informação não são reconhecidas no âmbito dos diferentes programas e políticas governamentais, inclusive no projeto de governo eletrônico. Em sua formulação, o projeto de governo eletrônico em Moçambique foi baseado em experiências e políticas governamentais anteriores carentes de práticas e estruturas informacionais. Este aspecto exclui este projeto da perspectiva das necessidades atuais de informação e das previsões sobre futuros serviços a serem oferecidos ao público. Nesta fase de sua formulação ele teria ficado à margem dos principais resultados a que se dirige – conforme Montviloff (1990) – a formulação de uma política nacional de informação, entre eles, a definição do objetivo geral da política de informação e justificação de sua necessidade; a avaliação do seu conceito e alcance; a identificação das principais questões a incluir na mesma e; a seleção das principais etapas de uma estratégia para a sua aplicação e funcionamento. A não realização desses resultados ou a ausência de elementos que viabilizem esses resultados diminui as expectativas do projeto de 186 governo eletrônico que, em seus objetivos, persegue, entre outros, a satisfação do direito de acesso à informação e a melhoria da eficiência e da eficácia na prestação de serviços públicos. Reconhecemos a existência de vários procedimentos quanto à formulação de uma política pública de informação que se estabelecem sob duas perspectivas: uma implícita no âmbito dos diversos organismos governamentais e a outra explícita em função de sua declaração formal pelo governo. No entanto, no contexto moçambicano, todos os programas governamentais analisados não revelaram a existência de nenhuma evidência – quer implícita, quer explícita – que consubstanciasse uma política pública de informação. Embora declarado formalmente pelo Conselho de Ministros, em sua Resolução n. 3/97, como “Política de Informação”, o conteúdo da referida Resolução não se refere, em momento algum, à questão da informação. Estes fatos constituem, em conjunto, uma evidência tanto da falta de conhecimento sobre a questão da informação quanto da noção de não decisão, como um recurso de poder que sustenta uma decisão política da não formulação de uma política de informação. Portanto, o campo empírico em análise produz uma evidência que parece justificar uma ausência de conhecimento em relação à questão da informação. E, por outro lado, a relação entre a falta de conhecimento com a inércia, parece sustentar uma política institucional da não decisão, entendida, neste caso, como uma decisão política. A ausência de conhecimento estaria situada no contexto de estranhamento do aparato organizacional do Estado moçambicano à área da informação, presente nos programas e políticas governamentais e, revela, ou melhor, é denunciada em especial, pela fragilidade das práticas, recursos e estruturas de informação. A não referência do projeto de governo eletrônico aos principais resultados que podem conduzir à formulação de uma política nacional de informação ressalta um projeto que exclui a política de informação em sua constituição. Paralelamente, faltam ao projeto de governo 187 eletrônico, elementos que garantam a sua vinculação à perspectiva profissional da informação e dos profissionais desta área. Esse cenário de ausência enfatiza, igualmente, a inexistência de uma perspectiva governamental de integração da dimensão das políticas públicas de informação na política de desenvolvimento nacional. Assim, o projeto de governo eletrônico em sua política, encontra-se desprovido da perspectiva de planejamento, aplicação e funcionamento (execução) de uma política nacional de informação, cuja essência inclui, entre outras etapas, mecanismos de coordenação, plano de ação e aspectos financeiros da mesma. Entre os fatores essencialmente técnicos e sociais da informação, os aspectos modernos de gestão e uso de informação participam do quadro legal de uma política de informação, oferecendo elementos configuradores ou sendo configurados pelas relações entre o Estado e a sociedade civil. A regulamentação voltada a orientar o fluxo da informação na sociedade, os processos técnicos de gestão e disseminação que propiciam o uso social da informação, entre outros, devem, em parte, ser necessariamente administrados de uma forma pública e coletiva. Sob este aspecto, a informação pode desempenhar um papel preponderante no desenvolvimento eqüitativo da sociedade. O desenvolvimento da questão da informação e sua mediação é uma condição de importância decisiva para a possibilidade de desenvolvimento da democracia e da inclusão social, embora não seja a única decisiva. Em sua perspectiva histórica, a informação consta como um dos recursos e fatores causais da formação do Estado moderno e, como tal, é impossível, sem dúvida, supor o desenvolvimento do Estado e sociedade moçambicanos sem incluir mecanismos de sua mediação no âmbito das relações que envolvem as duas esferas. Sob essa perspectiva, geralmente, o profissional da informação recebe do Estado uma incumbência sócioprofissional e técnico-científica de gerir os processos pelos quais se produz, comunica e usa a informação. E, em compensação, o cidadão exercita seu direito à informação com a prerrogativa de poder reclamar diretamente ao Estado o acesso às fontes de informação 188 governamental, num contexto em que, este cidadão encontra-se munido de capacidades cognitivas e estruturais e, ainda, sob condição de que, a referida informação esteja devidamente tratada e disseminada. Recorrendo às características de uma política nacional de informação definidas por Montviloff (1990) e apresentadas ao longo deste estudo, no capítulo três, observa-se que Moçambique situa-se no âmbito dos “países que contam com escassas infra-estruturas de informação e que não têm nenhuma política de informação” (MONTVILOFF, 1990, p. 10). É, aliás, de grande interesse observar que Montviloff aponta que as diferentes características de uma política nacional de informação interagem diretamente, não somente com as políticas de bibliotecas e arquivos, mas também com políticas em campos convergentes como da informática e das telecomunicações. Este aspecto explicita o posicionamento das políticas de bibliotecas e arquivos tanto como uma das dimensões das políticas públicas de informação quanto como um dos pressupostos na formulação e implementação destas. Não obstante, de acordo com a situação apresentada no capítulo cinco, em Moçambique, não existem políticas públicas de arquivos ou de bibliotecas. Esta ausência cria um pressuposto que inviabiliza a formulação e implementação de políticas públicas de informação – amplas ou não – capazes de operacionalizar a informação governamental e interagir com outras políticas em campos convergentes como a informática e as telecomunicações. 189 _____________________________________________________________________________________ CONSIDERAÇÕES FINAIS Retomando as premissas que norteiam a nossa pesquisa, lembramos que esta dissertação tem como foco a essência das relações entre Estado e sociedade civil. Estas relações são referidas no contexto da mediação informacional como um aspecto que resulta da perspectiva de formulação e implementação de políticas públicas de informação capazes, não somente de orientar os processos de gerenciamento e acesso à informação, mas também, de garantir a governança e o uso social da informação. Com esta proposta de estudo, especificamente, buscávamos compreender a existência ou não, no contexto da formulação e implementação do projeto de governo eletrônico de Moçambique, de um fundamento que o configurasse como uma política pública de informação e, a partir daí, apurar em que grau poderia ou não articular e servir as relações entre o Estado e a sociedade civil em Moçambique. Com este propósito, iniciamos o nosso estudo com a análise do Estado enquanto relação e campo informacional. Estas dimensões teóricas do Estado entrecruzam-se com a abordagem das políticas públicas de informação e configuram o nosso objeto de estudo – o projeto de governo eletrônico em Moçambique – como um campo informativo, cujo desdobramento é a sua origem como um projeto no contexto do discurso da noção de sociedade da informação – um espaço de reflexão que se estrutura em torno da informação e se potencializa com o uso intensivo das tecnologias de informação e comunicação. O enquadramento da noção de governo eletrônico dentro dessa perspectiva determinou a sua construção teórica como uma política pública de informação. A discussão, nesse sentido, exigia a identificação das condições gerais em que se deve realizar o fenômeno informacional, 190 em seus processos e definições, para a efetividade do governo eletrônico como uma política pública de informação dotada de capacidade para articular e servir as relações entre Estado e sociedade civil. A dimensão da informação dentro dos espaços institucionais do Estado – como é o caso do projeto de governo eletrônico em Moçambique – se efetiva, nesse contexto, a partir da análise deste como relação, na medida em que a política de Estado-relação estimula a incorporação da perspectiva de ordenação de infra-estruturas de informação e favorece a definição e implementação de políticas públicas de informação. Na política do Estado-relação encontramos os fundamentos da organização do Estado em seus núcleos e redes de poder e de viabilização da relação de forças entre classes, cuja essência exige, para a efetividade da dimensão informacional no quadro do governo eletrônico, políticas públicas de informação formuladas e implementadas numa perspectiva de conflito e negociação. A informação enquanto fator otimizante da ação estatal se efetiva através de interações entre sujeitos individuais e coletivos, mediadas (as interações) por processos políticos e sócioprofissionais baseados em estruturas concretas de informação. Compreendemos as políticas públicas de informação nesse contexto e na perspectiva das políticas públicas onde elas emergem, formuladas no âmbito da relação Estado e sociedade civil sendo sua ação condicionada pelos instrumentos de política, entre eles, jurídicos, profissionais e culturais. Desse modo, uma política pública de informação se constitui a partir da análise de um conjunto de processos e definições informacionais constituídos e baseados em interações sociais que se consolidam em práticas e estruturas de informação associadas à aplicação de instrumentos de política dentro de um contexto social específico. A essência dessa abordagem reside no fato de associar os aspectos da política do Estado-relação à busca do entendimento sobre as dimensões política e sócio-profissional da 191 informação – em especial a governamental –, bem como as interações envolvidas nessas dimensões. Assim, ela ultrapassa a perspectiva de uma ação política de escolha da informação priorizada e necessária para certos fins sem acomodar a dimensão da informação em seus diferentes processos, como é o caso do projeto de governo eletrônico em Moçambique. Alem de garantir o estabelecimento da análise da dimensão da informação no quadro dos espaços institucionais do Estado, a política de Estado-relação – que fundamenta esta dissertação – favorece a efetividade dessa dimensão nos referidos espaços. Nesse contexto, o fenômeno informacional se estabelece na referida dimensão relacional como resultado da definição e aplicação de um conjunto de dispositivos e mecanismos institucionais que sustentam e são sustentados pelo campo em que se delimitam as relações entre o Estado e a sociedade civil. A política do governo eletrônico em Moçambique vem conseguindo algumas realizações. À luz da escolha da informação priorizada para a composição do projeto de governo eletrônico algumas informações governamentais vêm sendo disponibilizadas no espaço virtual representado principalmente pelo Portal do Governo. Aliás, parte da coleta dos dados que possibilitaram a realização desta pesquisa constitui um dos indicadores das referidas realizações no âmbito do projeto de governo eletrônico em Moçambique. Em que pesem essas realizações, cabe-nos fazer outras considerações a respeito da dimensão da informação no quadro do referido projeto em Moçambique. A política de governo eletrônico em Moçambique não está pautada por uma perspectiva que incorpora a manifestação de vontades plurais em sua formulação, ou seja, não incorpora a perspectiva de disputas e conflitos que supõem negociação na definição de uma política pública. Este aspecto sugere a emergência desse projeto ou pelo menos a sua localização no contexto da relação de forças entre frações do bloco no poder, afastando o governo eletrônico de qualquer possibilidade de mediação de conflitos entre grupos sociais excluídos do bloco no 192 poder e o Estado. Formulado como um projeto estatal de exclusão de classes dominadas e com a inclusão apenas das classes dominantes (hegemônicas), a proposta de governo eletrônico de Moçambique não apresenta a mediação da informação como um processo que se relaciona com outros meios de mediação social. O fenômeno informacional no contexto moçambicano em geral e do projeto de governo eletrônico, em especial, situa-se no âmbito do discurso político moldado pelos ideais neoliberais que enfatizam os aspectos econômicos de construção de infra-estruturas de informação voltados para a perspectiva do mercado. As limitações que este modelo impõe se destacam, de forma particular, na formulação do referido projeto em Moçambique, pela ausência de uma ênfase sobre a dimensão interativa humana dos processos de informação e, se agravam pela existência fragilizada de espaços institucionais capazes de responder aos desafios inerentes à produção, armazenamento, disseminação e uso da informação neste novo espaço de governo. Nesse contexto, os aspectos culturais, o exercício democrático de direitos e o uso individual da informação - como aspectos direta e simultaneamente atrelados à perspectiva de formulação e implementação de políticas de informação - situam-se em segundo plano, impedindo o estabelecimento da relação da informação, em suas definições, com as noções de desenvolvimento e de liberdade do indivíduo e da sociedade em que este se encontra inserido. Estudos sobre o tema apontam que uma política de informação constitui um mecanismo na facilitação do fluxo de informação – desde seus produtores aos usuários – que incorpora o papel de partes interessadas e de especialistas e organizações em seu processo, pautando-se por uma perspectiva de abordagem inclusiva, heurística e organizacional, dentro de um quadro normativo detalhado e inteligível. Entretanto, nada se pôde aferir nesse sentido em relação ao projeto de governo eletrônico em Moçambique que pudesse abonar uma perspectiva de facilitação do fluxo da informação, assim como a existência de um enfoque 193 sobre os aspectos técnicos e sócio-profissionais da informação. Segundo a literatura, tais aspectos técnicos estão consubstanciados na gestão do ciclo da informação e no papel dos profissionais em nível organizacional e humano na facilitação do fluxo da informação desde seus produtores aos usuários para a elaboração de mais informação e, assim, poder produzir conhecimento. A análise dos programas e projetos governamentais, em particular, o do governo eletrônico em Moçambique, demonstra a ausência de estruturas e processos informacionais constituídos como projeto de racionalidade estatal, em seu campo administrativo – enfraquecimento da dimensão informacional do Estado inerente ao seu funcionamento como fenômeno histórico –, revelando assim, a ausência de momentos de construção do aparato estatal e de ampliação da esfera pública em termos informacionais. Em sua formulação e implementação, o projeto de governo eletrônico em Moçambique não pressupõe mecanismos e formas claras de participação da sociedade civil que possam suscitar a formação de uma agenda pública. Aliás, em Moçambique, o Estado inventa a sociedade civil e sua agenda, fato que fundamenta o papel da sociedade civil nesse país como objeto e não sujeito das políticas públicas e, no caso concreto, do projeto de governo eletrônico. Como observou Weber – citado no capítulo cinco –, pode se concluir, em última instância, que a ausência de um projeto estatal de informação consubstanciada pela fragilidade de estruturas e processos na área da informação em Moçambique, constitui uma postura política, cuja tendência é fortalecer as estratégias estatais inerentes ao exercício de poder. Sob esse aspecto, o projeto do governo eletrônico de Moçambique configura uma tendência claramente voltada para a ampliação da esfera política, em detrimento da natureza da esfera pública que o projeto insere e da possibilidade de articulação de um novo espaço discursivo da chamada sociedade da informação, em que figura como um de seus desdobramentos e na 194 qual ampliaria e incorporaria camadas cada vez mais amplas da população que se encontram excluídas desse espaço ou representação. Como corolário dessa postura política, de um lado, as deficientes estruturas de informação são visualizadas no âmbito da política cultural do governo e, de outro, o acesso às fontes governamentais de informação constitui prerrogativa apenas dos meios de comunicação social, o que sugere que o direito à informação, que a constituição declara ao cidadão, é exercido apenas por intermédio dos meios de comunicação social. Aliás, cabe enfatizar que este exercício também não é pleno. Os meios de comunicação social em Moçambique padecem, de certa forma, dos mesmos problemas que norteiam a concepção das organizações de classe, na sua maioria, criadas de cima para baixo sob a tutela e orientação do Partido/Estado. Nessas circunstâncias, acabam sendo reféns do poder estatal e sem independência para suprir as necessidades da sociedade civil, com o resultado de sua atuação, muitas vezes, restrita a linhas editoriais que refletem interesses políticos. As precárias agências ou unidades estatais de informação – arquivos, bibliotecas, centros e serviços de informação – vinculam-se ao Estado moçambicano apenas como agências culturais desprovidas de sua dimensão sócio-profissional e técnico-científica e sem recursos para o seu funcionamento. Enquanto isso, a ação informacional que deriva ou deveria derivar dessas unidades e os direitos inerentes ao uso da informação pelo cidadão comum vinculam-se apenas às funções da comunicação social dos respectivos órgãos desse setor, estatais ou não. Essa lógica nacional de vinculação das agências estatais de informação e da ação informacional, justifica a atual restrição do direito à informação à liberdade de imprensa. Em suma, a tendência de associar o direito à informação somente à noção de liberdade de imprensa demonstra claramente que a informação não é concebida, no contexto moçambicano, como um elemento otimizante da ação estatal. Assim, instrumentalizado para 195 exercer o acesso à informação governamental, o profissional da comunicação social – e não o cidadão comum, como aponta Jardim (1999) – configura-se como sujeito informativo. Entretanto, estamos diante de um processo de construção e reforma do Estado e, em especial, de formulação e implementação do projeto de governo eletrônico em Moçambique que não dispõe de uma rede de estruturas formais direcionadas à questão da documentação e informação, inclusive de arquivos. Esta situação, portanto, reflete uma fragilidade da dimensão da informação nesse processo e a ausência de políticas de informação em nível nacional, regional e setorial. A ação dos arquivos, bibliotecas, museus e centros e serviços de documentação e a perspectiva de desenvolvimento e ampliação destas unidades de informação no âmbito do processo da reforma do setor público em curso e da formulação e implementação do governo eletrônico é quase ou completamente nula. A situação demasiadamente periférica das estruturas de informação sustenta e é sustentada pela ausência de políticas nacionais de informação. Este quadro deriva simultaneamente da falta de conhecimento sobre políticas de informação – ou em relação à questão da informação em si – e é sustentado pela relação desta falta de conhecimento com a inércia. Deste modo, a prevalência da inércia parece evidenciar uma decisão política de resistência à mudança em relação a atual situação que aflige a área da informação em Moçambique. Observou-se ao longo da pesquisa um grau elevado de distanciamento do projeto de governo eletrônico quanto à possibilidade de acomodar novas condições ou formas de mediação da informação. A inclusão de novas condições e formas de mediação da informação poderia converter-se em novos objetos de trabalho, dentro de um processo de busca por respostas aos desafios inerentes ao caráter de transbordamento da informação que, muitas vezes, excede as tentativas de sua representação em estruturas, articulações e integrações, para exigir formas específicas de sua mediação nos diferentes ambientes de trabalho. Este aspecto 196 descaracteriza a perspectiva histórica de constituição do referido projeto como uma proposta atrelada às iniciativas inerentes ao discurso da sociedade da informação, porquanto seu êxito, se não for dependente, pelo menos, confunde-se com a perspectiva da mediação da informação. E, na medida em que a mediação informacional constitui não apenas um pressuposto, mas também, uma prerrogativa no âmbito do processo que orienta a oferta de serviços ao público, a sua ausência desqualifica-o em sua função fundamental de articular e servir as relações entre o Estado e a sociedade civil em Moçambique. Considerando o pressuposto de que a governança é condicionada pela instituição de canais de comunicação e de troca de informações que permitam a participação da sociedade na elaboração, acompanhamento e avaliação de políticas públicas, e pela capacidade da burocracia estatal de gerenciar esses canais (AZEVEDO e ANASTÁSIA, 2002), em Moçambique, confrontamo-nos com os contornos dessa suposição. Em conseqüência, a fragilidade de estruturas e processos de informação e da perspectiva de troca de informações caracteriza a também fraca participação da sociedade e associa-se à incapacidade estatal na gestão das poucas e precárias unidades de informação existentes no país, descaracterizando assim a governança no quadro do projeto de governo eletrônico e comprometendo a articulação das relações Estado-sociedade civil. De uma forma geral, o projeto de governo eletrônico em Moçambique não apresenta novas alternativas ou formas de mediação da informação que se convertam em novos objetos de trabalho no contexto do processo de sua formulação e implementação e das demandas de transbordamento de estruturas, articulações e integrações que caracterizam o termo informação. O discurso da sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico em Moçambique vêm sendo formulados e implementados sem uma política de informação – democrática ou não – e sem as instituições de informação e seus profissionais. 197 Cabe observar, nesse contexto, que na perspectiva de construção do governo no plano virtual – governo eletrônico –, associado à conformação do discurso da chamada sociedade da informação em nível mundial, verifica-se uma demanda pela transformação do Estado e sociedade moçambicanos em suas formas de lidar com a questão da informação. E, na medida em que esta demanda implica, necessariamente, levar as novas políticas de informação a refletirem os desafios não apenas de equacionar o novo discurso, mas também de serem definidas e implementadas nesse novo discurso político-institucional em conformação, surgem indagações subjacentes em nossos pressupostos formulados na introdução desta dissertação. A essência de tais indagações reflete a revisão do projeto de governo eletrônico em Moçambique e sua reformulação como uma política pública de informação capaz de articular e servir as relações entre o Estado e a sociedade moçambicanos. Se a política do governo eletrônico em Moçambique pretende estabelecer este numa posição forte e privilegiada de mediação das relações entre Estado e sociedade civil é imprescindível que o mesmo seja configurado como uma política pública - e, em especial, de informação - para se adequar aos desafios que tal mediação impõe. Assim, em seus objetivos concretos e derivados da finalidade de uma política pública de informação, poderia contribuir, como se pode depreender em Montviloff (1990), para o desenvolvimento de recursos e serviços de informação, o acesso à informação e sua difusão efetiva, à promoção do uso efetivo da mesma e, ao desenho e à coordenação das atividades nacionais de informação no campo virtual. Se a existência da tecnologia da informação é um pressuposto para a constituição do projeto de governo eletrônico em Moçambique, a gestão e uso desta tecnologia podem significar (e significa) um grande desafio, porquanto as capacidades e habilidades humanas sejam ainda limitadas no cenário moçambicano. É preciso considerar a disponibilidade de especialistas altamente qualificados em tecnologia de informação para contrariar o atual 198 estágio caracterizado por um déficit de capital humano. O ideal deveria ter sido a acumulação antecipada deste tipo de capital para facilitar a expansão da tecnologia e de postos de trabalho nesta área. Além de contribuir para a expansão e desenvolvimento de aplicações de software, de conteúdos e de serviços, seria um vetor na alfabetização de grandes massas da população no uso das tecnologias de informação e comunicação que hoje se encontra excluída do processo. O desenvolvimento do projeto de governo eletrônico em Moçambique não é espontâneo e muito menos deve ser vinculado apenas à perspectiva de desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. A abordagem do processo de seu desenvolvimento deve basear-se numa perspectiva de desenvolvimento de políticas públicas, buscando uma abordagem holística que privilegie o interesse de desenvolvimento do país como um todo, ao invés de políticas focalizadas estritamente em áreas específicas como a das tecnologias de informação e comunicação, cujo foco se dirige, particularmente, à visualização do país no exterior ou no mercado. Essa pretensão e os interesses econômicos a ela associados devem se fazer acompanhar por políticas internas no domínio do desenvolvimento da economia, da indústria, da ciência e tecnologia, do crescimento do emprego, da educação e da saúde, sendo estas, por sua vez, acompanhadas por mecanismos de gestão e disseminação da informação e por meios de comunicação desta informação mais eficientes e democráticas. A integração do projeto de governo eletrônico numa visão ampla de desenvolvimento como esta, estimularia a idéia das tecnologias de informação e comunicação como elementos para o crescimento econômico, político, social e intelectual contra a sua atual naturalização como metas em si mesmo. É preciso rever as prioridades nacionais e estabelecer novas políticas para adaptar as atuais estratégias governamentais de desenvolvimento e associá-las a novos métodos de provimento e aproveitamento de recursos de informação. A revisão de prioridades, 199 acompanhada pela adaptação de estratégias, pode contribuir para responder aos desafios inerentes ao progresso das tecnologias e à emergência da economia de serviços que caracterizam o desenvolvimento socioeconômico do mundo contemporâneo, em contraste com a antiga economia manufatureira. Acima de tudo, é preciso enfatizar a gestão da informação e a definição de políticas de informação, visto que a profundidade dessa temática reflete, conseqüentemente, a gestão das tecnologias de informação e comunicação e não o contrário. As liberdades individuais consagradas na Constituição da República de Moçambique e o desenvolvimento da sociedade a que se referem as reformas em curso, somente serão atingidos pela capacidade de cidadãos bem informados exercerem os seus direitos democráticos e desempenharem um papel ativo na sociedade. O mesmo ocorre em relação à participação construtiva e ao desenvolvimento da democracia que dependem profundamente da educação, bem como do acesso livre e ilimitado à informação e ao conhecimento. A proposta de governo eletrônico em Moçambique, como um projeto de construção e reforma do Estado, em sua perspectiva de uso intensivo das TIC’s na mediação das relações entre Estado e sociedade civil, não terá legitimidade social enquanto sua representatividade não incluir mecanismos claros de participação da sociedade civil. Esses mecanismos podem e devem se inscrever não somente numa representação numérica deste segmento da sociedade, mas também e principalmente numa participação efetiva e instruída através do acesso à informação, exeqüível com a inclusão de estruturas e processos de informação, bem como de categorias sócio-profissionais específicas às diversas dimensões da noção de governo eletrônico. A implementação do projeto de governo eletrônico de Moçambique pressupõe e deve garantir uma interação com a perspectiva de formulação e implementação não somente de políticas de informação, mas também das demais políticas de gestão do Estado. Desse modo, 200 é urgente a definição e implementação de um marco legal amparado por meio de diretrizes e regulamentos, bem como da existência de instituições específicas, competentes e fortes, e distribuídas pelos diferentes níveis de ação informacional para coordenar sujeitos individuais e coletivos em suas ações e decisões cognitivas e promover a sincronização e a harmonização da demanda e da oferta em matéria de informação. No quadro da reforma do setor público em curso e da formulação e implementação do projeto de governo eletrônico em Moçambique, é imprescindível o estabelecimento de uma infra-estrutura nacional de informação que consista de arquivos, bibliotecas, museus, centros de informação científica e tecnológica, etc. Ademais, é fundamental a aprovação de uma legislação nacional inerente à regulamentação da questão da informação no que se refere aos direitos dos cidadãos, à segurança e proteção, à responsabilidade do Estado sobre a gestão da informação, à institucionalização de um órgão ou órgãos de deliberação sobre políticas públicas de informação com a participação da sociedade civil. Nesse contexto, ao profissional da informação cabe o desenvolvimento de uma postura crítica que aponte para as disfunções do quadro histórico-político moçambicano sobre a área da informação e que, além de inibir o seu crescimento, afetam o papel da informação na sociedade. A continuação dos atuais esforços de investimento na infra-estrutura nacional de telecomunicações e de estabelecimento e/ou incentivo à indústria de tecnologia da informação e sua difusão na economia e no governo mostra-se ser de extrema importância e devem fazerse acompanhar por medidas voltadas para a universalização de acesso aos respectivos serviços ou benefícios, através de implementação de programas específicos de ensino e treinamento e custos menos onerosos para comunidades socialmente carentes. Pensamos que o estabelecimento de um modelo de gerenciamento da informação em nível nacional ou setorial – do qual se podem destacar, os organizados sob a estrutura de um sistema, da rede ou de um programa de ação –, como uma das formas de operacionalização de 201 uma política nacional de informação, tendo esta como o nível mais elevado para o funcionamento e eficácia daquele em seus diferentes contextos organizacionais e categorias sócio-profissionais, pode contribuir para os problemas levantados inicialmente nesta dissertação como a fragilidade de práticas, recursos e estruturas de informação. Fundamenta esse raciocínio, o reconhecimento de que as bases das atividades de informação se formalizam no contexto de um modelo nacional de gerenciamento de informação em seus diferentes contextos e níveis de organização sob responsabilidade do Estado e cuja composição compreende uma série de unidades de informação que interagem entre si dentro de uma certa coerência. Desse modo, a consolidação das atividades de informação no contexto de um modelo nacional de gerenciamento de informação pode concretizar-se com base na formulação e integração dos diferentes segmentos da informação, com a institucionalização de centros de coordenação em cada setor sob direção de profissionais de especialidade, em parceria com outros profissionais de áreas afins, agindo de acordo com as características nacionais, as opções econômicas, sociais e culturais e com o conjunto das necessidades de desenvolvimento nacional. Cabe ressaltar que, em princípio, qualquer tentativa de institucionalização de infra-estruturas organizacionais de informação pressupõe a formulação e implementação de políticas de informação. Embora, dependendo do caso, esses dois processos possam ocorrer em simultâneo. Enfim, assistimos em Moçambique, nos últimos cinco anos, à adoção generalizada do discurso da chamada sociedade da informação que vem sendo imposto no cenário nacional independentemente de políticas nacionais capazes de sustentá-lo e agravado ainda pela ausência de uma contrapartida nacional à gestão, tanto do imperativo tecnológico inerente ao referido discurso quanto de uma nova forma de organização social baseada em informação e conhecimento. O atual discurso da chamada sociedade da informação e seu projeto de governo eletrônico em Moçambique, ao invés de promover e articular uma iniciativa de 202 institucionalização de estruturas e políticas de informação pode significar uma desarticulação cada vez mais acentuada da dimensão sócio-profissional da informação em suas precárias estruturas e processos informacionais. A institucionalização de infra-estruturas organizacionais e de políticas de informação é um processo que deve se enquadrar dentro de um plano nacional mais abrangente que considere a necessidade da institucionalização do ensino e da pesquisa nesta área, bem como do fortalecimento da respectiva categoria sócio-profissional. Esse tipo de esforços, provavelmente, pode contribuir na produção de conhecimento preciso e imprescindível não somente à área da informação e ao tema de políticas de informação em particular, mas também à ação do Estado nessa área. Longe de cogitarmos a percepção de um caráter propriamente de conclusão, ao terminarmos a nossa pesquisa, percebemos um campo em construção e pouco explorado, repleto de sinuosidades, mas teórica e empiricamente relevante e pertinente ao escopo da ciência da informação, onde inclusive amplia esse escopo em função das novas dinâmicas históricas não somente nesta área, mas também em áreas afins como a arquivologia e a biblioteconomia, em particular. Enfim, talvez precisemos entender melhor o tema de políticas públicas de informação e, na sua esteira, a categoria do profissional da informação como intelectual a serviço do Estado na produção, armazenamento e disseminação da informação, para que possamos vislumbrar com mais clareza a dimensão da informação do Estado inerente ao seu funcionamento como fenômeno histórico. 203 _____________________________________________________________________________________ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAHAMSSON, Hans e NILSSON, Anders. 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