A cobrança pelo uso da água no Brasil : integração

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Universidade Federal de Pernambuco - UFPE
Faculdade de Direito do Recife
Programa de Pós-Graduação em Direito
PAULO JOSÉ LEITE FARIAS
A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA NO BRASIL:
INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS DIMENSÕES
PROTETIVAS ÉTICA E ECONÔMICA DO MEIO
AMBIENTE
Brasília
2003
1
PAULO JOSÉ LEITE FARIAS
A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA NO BRASIL:
INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS DIMENSÕES
PROTETIVAS ÉTICA E ECONÔMICA DO MEIO
AMBIENTE
Tese aprovada, em 8 de agosto de 2003, como requisito parcial para a conclusão do
Doutorado em Direito, sob orientação do Professor Doutor Inocêncio Mártires
Coelho, pela comissão formada pelos professores:
Prof. Dr. George Browne Rego (Presidente)
Prof. Dr. Cláudio Brandão
Prof. Dr. Geraldo Neves
Profa. Dra. Daisy Asper y Valdez
Prof. Dr. Lincoln Magalhães da Rocha
Brasília
2003
2
Reprodução parcial permitida desde que citada a fonte.
F224
Farias, Paulo José Leite, 1963- .
A cobrança pelo uso da água no Brasil : integração normativa
das dimensões protetivas ética e econômica do meio ambiente /
Paulo José Leite Farias. – Brasília : O Autor, 2003.
361 f.
Tese apresentada ao Curso de Doutorado da Universidade
Federal de Pernambuco como requisito parcial para a conclusão
do Doutorado em Direito, sob orientação do Professor Doutor
Inocêncio Mártires Coelho.
1. Recursos hídricos. 2. Uso da água – cobrança. 3. Direito das
águas. 4. Direito comparado. I. Título
CDU 340:556.18
Ficha Catalográfica elaborada por Tatiana Barroso de Albuquerque Lins / CRB 1 - 1588
3
44
Ao eterno mestre Josaphat Marinho in
memoriam, professor, jurista baiano,
constituinte de 1988, que sempre exerceu
as suas atividades com zelo, eficiência e,
acima de tudo, com ética pelo marcante
convívio
e
pela
concretização
da
realização de um curso de Doutorado em
Direito em Brasília-DF.
À Márcia, minha esposa, aos meus filhos
Antônio José, Maria Clara e Pedro Luís
com o afeto e a dedicação de sempre.
A meus pais, Elmano e Vera, e a meus
irmãos André e Lia, pelo ninho de apoio e
carinho que construíram para o meu
desenvolvimento mental, emocional e
intelectual.
Ao Ministério Público do Distrito
Federal e Territórios, instituição que
engrandece
a
luta
pela
proteção
ambiental no Distrito Federal.
44
45
AGRADECIMENTO
Ao Prof. Dr. João Maurício Adeodato, coordenador
do curso, pelo interesse na qualidade e pela amizade
construída na dificuldade.
Ao Prof. Dr. Inocêncio Mártires Coelho, orientador
da presente tese, pelo tempo dedicado à difícil
atividade de orientação acadêmica.
Aos professores do doutorado, pelas preciosas lições
transmitidas.
Aos colegas de doutorado e mestrado pela UFPE,
companheiros de árdua e profícua caminhada.
Ao Ministério Público do Distrito Federal e
Territórios,
instituição
que
investe
no
aperfeiçoamento de seus membros.
Aos meus alunos da pós-graduação da Associação de
Ensino
Unificado
do
Distrito
Federal
(AEUDF/ICAT), da Fundação Escola Superior do
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
(FESMPDFT), do Instituto de Educação Superior de
Brasília (IESB), pela oportunidade de convívio e
troca de experiências.
45
46
RESUMO
Esta tese tem por objeto provar que a cobrança pelo uso de água prevista na Política Nacional
de Recursos Hídricos (Lei n. 9.433/97), integra normativamente as diferentes dimensões
éticas e econômicas da Natureza. Na estreita relação do homem e da natureza com a água, a
cobrança pelo uso da água apresenta-se como um símbolo contemporâneo da síntese de
diferentes visões éticas e econômicas, garantidoras da proteção do homem e do ecossistema
na Política Nacional de Recursos Hídricos Brasileira. Historicamente, o bem ecológico e o
bem econômico sempre interagiram e estiveram próximos. Do mesmo modo, sempre houve
uma permanente tensão dialética entre o ser humano e outros seres animados e inanimados
que juntos formam um todo indissociável e interdependente. A visão de que há outros
interesses, além dos humanos, na proteção do meio ambiente (visão ecocêntrica), constitui
novo paradigma da proteção ambiental, que influenciou a Política Nacional de Recursos
Hídricos, estabelecendo como uso prioritário dos recursos hídricos a dessedentação de
animais ao lado do consumo humano (art. 1 da Lei 9.433/97). Por outro lado, a nova ótica
dada ao bem ambiental público de uso comum – água – considerado pela referida legislação
um recurso natural finito, de valor econômico a ser gerido de forma descentralizada por um
Comitê de Bacia, constitui sensível mudança de paradigma protetivo ambiental brasileiro.
Ênfase é dada aos instrumentos econômicos, à participação da sociedade na proteção
ambiental e à visão eco-hidrológica, em relação aos instrumentos normativos tradicionais de
comando e controle, ao papel preponderante das instituições estatais protetivas tradicionais e à
questão política-administrativa federativa brasileira. Hoje, portanto, a proteção ambiental
hídrica cria novos paradigmas de atuação da sociedade e do Poder Público, superando a visão
antropocêntrica de que a água é um mero instrumento de satisfação das necessidades
humanas. Fala-se em mecanismos normativos plurais e participativos de integração ética e
econômica no caso concreto (bacia hidrográfica), que exigem maior cooperação entre as
diferentes esferas do Poder Público e da sociedade civil, evitando-se o conflito das atribuições
administrativas e legislativas, e maximizando a eficiência e a eficácia do Estado e da
sociedade na defesa dos recursos hídricos (Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos). Assim, a simbiose entre os aspectos ecológicos e econômicos na cobrança pelo uso
da água permite um conjunto de soluções jurídico-normativas delimitadas pela ponderação
das éticas antropocêntricas da solidariedade e do utilitarismo-econômico em conjunto com a
ética ecocêntrica, enfatizando a prática de procedimentos comunicativos de união da esfera
estatal com a esfera civil para a escolha das melhores formas de gestão dos recursos hídricos.
Palavras-chave:
Recursos hídricos
Uso da água - cobrança
Direito das águas
46
47
ABSTRACT
The present thesis intends to demonstrate that the cost of the use of water, as foreseen in the
Brazilian National Water Policies (Law n° 9.433/97), connects Nature’s diverse ethical and
economical dimensions as stated in environmental policies and regulations. The charge of the
use of water is symbolic. It represents a synthesis of diverse ethical and economic points of
view, all of them concerned with the protection of the human being and the ecosystem. There
is a permanent interaction between Nature’s ecological and economical dimensions.
Accordingly, there is a permanent dialect tension between human beings and other animated
and inanimated things, which, together, form a complete and interdependent natural system.
This ecological approach considers that, besides the use of water by human beings, there are
other relevant aspects related to environmental protection which influence the creation of a
new paradigm for the Brazilian Water Law. Policy priorities were established to avoid an
environmental degradation by means of a non-economic perspective, thus preventing the
shortage of water for human and animal consumption (Law 9.433/97, Art. 1). On the other
hand, in a legal perspective, water is a finite natural resource, which must be managed mainly
by society in the River Basin Committee, because of its economic value and the extension of
Brazilian watercourses. This legal perspective permeates the entire Brazilian environmental
protective paradigm. Therefore, emphasis is given on economic instruments, the participation
of society in environmental safety and the geography of watercourses as opposed to the
traditional normative instruments of “command and control” as normally applied to Brazilian
public resources. A new conceptual framework, instructive of regulating water’s resources,
analyzes the relationship between society and the Government. The ethical anthropocentric
view of water as an instrument of satisfaction of human needs is now overwhelmed by this
new conception. It considers diverse normative mechanisms to deal with ethical and
economic problems, and it stresses cooperation among the different Government levels and
civil society to maximize effectiveness and efficiency in the protection of the Brazilian water
resources. The new regulation entitles a symbiosis among ecologic and economic aspects
related to the cost of the consumption of water, which brings a plurality of normative
solutions. These are inspired by the considerations of human rights ethics, utilitarian ethics
and ecocentric ethics, and give emphasis to an increased communication between different
levels of Federative power and the civil society, which are enlightened by the optimization of
water resources of each specific hydrographic basin.
Keywords:
Water resources
Water charges
Water Law
47
48
RÉSUMÉ
Cette thèse prétend prouver que le coût d'utilisation de l'eau, prévu dans la politique nationale
de ressources hydriques (loi n. 9.433/97) intègre, selon les normes, les différentes dimensions
étiques et économiques de la Nature. Considérant l'étroite relation de l'homme et de la nature
avec l'eau, le payement pour l'utilisation de l'eau se révèle un symbole moderne de la synthèse
de différentes visions éthiques et économiques garantissant la protection de l'homme et de
l'eco-système, dans la politique nationale de ressources hydriques brésiliennes. D'un point de
vue historique, le bien être écologique et le bien être économique ont toujours interagis et ont
toujours été très proches. De la même façon, il a toujours existé une tension permanente entre
l'être humain et les autres êtres vivants qui composent, ensemble, un tout indissociable et
dépendant les uns des autres. La pensée qu'il existe d'autres intérêts, en plus de ceux des
humains, dans la protection de l'environnement, s'est constituée en un paradigme de la
protection de celui-ci, qui a influencé la politique nationale de ressources hydriques, en
établissant comme utilisation prioritaire de celles-ci pour la consommation animale, au même
niveau que la consommation humaine (article 1 de la loi 9.433/97. D'un autre côté, la nouvelle
considération apportée à l'eau, produit environnemental public d'utilisation commune, est
considère par la présente législation, une ressource humaine finie, et de valeur économique, à
éte gérée de forme décentralisée par un “Comité du Bassin”, ce qui constitue un sensible
changement de paradigme de protection de l'environnement brésilien. Une importance est
donnée aux instruments économiques, à la participation de la société dans la protection de
l'environnement et à la vision éco-hydrologique en relation avec les instruments normatifs
traditionnels de commande et contrôle, au rôle prépondérant des institutions de protection
traditionnelles et à la question politico-administrative brésilienne. Aujourd'hui, pourtant, la
protection environnementale hydrique crée de nouveaux paradigmes d'action de la société, du
pouvoir public, en passant outre la pensée considérant l'eau en tant que simple instrument de
satisfaction aux nécessités humaines. On parle de mécanismes normatifs pluriels et
participants de l'intégration éthique et économique, dans ce cas concret (bassin
hydrographique). Ceux mécanismes exigent une plus grande coopération entre les différentes
sphères de pouvoir public et de la société civile, en évitant ainsi le conflit des attributions
administratives et législatives, et maximisant ainsi l'efficacité de l'Etat et de la société, dans la
défense des ressources hydriques (Système national de gestion des ressources hydriques).
Ainsi, la symbiose entre les différents aspects écologiques et économiques dans le coût pour l´
utilisation de l'eau permet une association de solutions juridiques, délimitées par la
pondération des éthiques anthropocentriques de solidarité, de l'utilitarisme économique liés à
l´ éthique écocentrique, avec emphase dans les procédures communicatives, en union de la
sphère de l'Etat et de la sphère civile dans le choix des meilleures formes de gestion des
ressources hydriques.
Mots clé:
Ressources hydriques
L'utilisation de l'eau - payement
Droit de l'eau
48
49
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURAS
Figura 1
Modelo de Interação Institucional de Talcott Parson, 191
Figura 2
Ciclo Hidrológico, 225
Figura 3
Distribuição de água por tipo de consumo consuntivo no Brasil, 284
Figura 4
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, 300
Figura 5
Comparação de indicadores de desenvolvimento de Minas Gerais e Alagoas:
entes federados da Bacia do São Francisco, 307
Figura 6
Participação territorial percentual dos entes federados na Bacia do São
Francisco, 308
Figura 7
Composição por ente federativo do Comitê de Bacia do Rio São Francisco, 309
QUADROS
Quadro 1
Esquema conceitual dos elementos estruturais da ecologia, 169
Quadro 2
Teorias do valor e meio ambiente, 178
Quadro 3
Ramos principais de suporte ao valor intrínseco da Natureza na “environmental
philosophy” americana, 178
Quadro 4
Comparação dos paradigmas cartesiano-newtoniano e sistêmico-holístico, 189
Quadro 5
Códigos, programas e critérios do sistema de Luhmann, 195
Quadro 6
Distintas concepções teóricas da relação entre mercado e direito na visão de
Reich, 202
Quadro 7
Quantidade de água doce existente na Terra, 224
Quadro 8
Situação hídrica pobre e crítica de Estados-membros brasileiros, 228
Quadro 9
Principais documentos internacionais relativos aos direitos fundamentais
reconhecidos internacionalmente e seus endereços eletrônicos, 253
Quadro 10
Quantidade de água básica para as necessidades humanas domésticas, 254
Quadro 11
Legislações hídricas a serem utilizadas no gerenciamento de recursos hídricos
da Bacia do São Francisco, 310
49
50
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADC
Ação Declaratória de Constitucionalidade
ADIN
Ação Direta de Inconstitucionalidade
ANA
Agência Nacional de Águas
C.F.
Constituição Federal
DJU
Diário da Justiça da União
DOU
Diário da Oficial da União
RDA
Revista de Direito Administrativo
RDP
Revista de Direito Público
RE
Recurso Extraordinário
RF
Revista Forense
Rp.
Representação
RT
Revista dos Tribunais
RTJ
Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
SINGERH
Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos
SISNAMA
Sistema Nacional do Meio Ambiente
STF
Supremo Tribunal Federal
50
51
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 AS DIMENSÕES DO FENÔMENO AMBIENTAL E SUA SÍNTESE-VALORATIVA PELA
NORMA AMBIENTAL BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS, 1
2 A ÁGUA COMO METÁFORA DE INTEGRAÇÃO DA DIMENSÃO ÉTICA E
ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO, 4
3 ANÁLISE DAS PARTES COMPONENTES DA PRESENTE TESE
3.1 Visão geral das partes e dos seus objetivos, 6
3.2 Contornos conceituais e metodológicos do trabalho, 7
3.3 Parte I – A dimensão ética da proteção ambiental: pluralidade de fundamentos para a
necessária evolução da visão antropocêntrica para a ecocêntrica, 9
3.4 Parte II – A dimensão econômica do meio ambiente: a riqueza dos recursos naturais como
direito do homem presente e futuro, 11
3.5 Parte III – O papel normativo do Estado Regulador de superação e síntese dos aspectos éticos e
econômicos do meio ambiente, 13
3.6 Parte IV – A cobrança pelo uso da água: mecanismos normativos plurais e participativos de
integração ética e econômica no caso concreto, 15
PARTE I
A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: PLURALIDADE DE
FUNDAMENTOS PARA A NECESSÁRIA EVOLUÇÃO DA VISÃO
ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA
1 O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA
1.1 A relação do homem com a natureza: evolução de sujeito passivo para ativo, 19
1.1.1 A modificação do meio ambiente: evolução, 19
1.1.2 A mutação do conceito de natureza, 22
1.2 A conscientização da degradação do meio ambiente no mundo contemporâneo, 18
2 “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO DO HOMEM?
2.1 Meio ambiente: conceito aberto para a proteção das pessoas e dos seres em geral, 27
2.1.1 Meio ambiente: conceito, 27
2.1.2 Meio ambiente: conceito no direito comparado, 27
2.1.3 Meio ambiente: conceito no direito brasileiro, 30
2.1.4 Direito ao “meio ambiente sadio” como direito fundamental da pessoa humana, 32
2.2 Sadia qualidade de vida do HOMEM, 34
2.3 Presentes e futuras gerações HUMANAS, 35
2.4 O macro e o microbem ambiental, 37
2.4.1 O macrobem ambiental como bem de uso comum do povo, 37
51
52
2.4.2 Os seres animados e inanimados (microambiente) como coisas de ninguém (res nullius) e
coisas abandonadas (res derelicta), 40
3 ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL
3.1 Um exemplo clássico de pensamento ético: o diálogo de Critão, 42
3.2 Fundamentos da ética clássica: a busca da felicidade do homem, 44
3.3 Macroética ambiental: uma ética coletiva que busca evitar a infelicidade da coletividade, 47
3.3.1 Macroética: uma ética de agrupamentos sociais, 47
3.3.2 Análise comparativa das éticas de Apel, Hans Jonas e Aristóteles, 51
3.3.2.1 O progresso tecnológico e o homo faber como mecanismos ensejadores de uma nova ética, 51
3.3.2.2 Semelhanças e diferenças das éticas de Apel, Jonas e Aristóteles, 52
4 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS QUANTO AOS ATORES DO CONSENSO: NOÇÕES
BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCENTRICA
4.1 Espécies de macroéticas , 54
4.2 A ética antropocêntrica: características básicas, 55
4.3 A ética ecocêntrica: características básicas, 55
5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO
EVOLUCIONISMO
5.1 O dualismo na visão de animal-máquina de Descartes, 59
5.2 Algumas objeções ao dualismo anteriores e posteriores a Descartes, 61
5.3 Leitura antropocêntrica da teoria da evolução de Darwin, 63
5.3.1 O positivismo e o determinismo-evolucionista de Darwin, 63
5.3.2 Darwin: autor antropocêntrico ou ecocêntrico?, 64
5.3.3 A origem das espécies e o capitalismo, 65
6 FUNDAMENTAÇÔES TEÓRICAS DE UMA ÉTICA ECOCÊNTRICA E A
PERSONALIDADE JURÍDICA
6.1 A evolução da consciência ecocêntrica em razão da destruição ocasionada pelo homo faber:
uma visão sociológica, 69
6.1.1 Labor, trabalho e ação: três atividades marcantes do homem no mundo, 69
6.1.2 O homo faber na visão de Hannah Arendt, 71
6.1.3 A instrumentalização do mundo e a destruição da natureza, 72
6.1.4 Conscientização ecológica e a “deep ecology” como suportes ideológicos para os
movimentos ambientais, 73
6.2 A teoria de Gaia e o ecocentrismo cosmogênico de James Lovelock, 78
6.3 A metodologia ecocêntrica da autopoiese de Maturana: o organismo e o ambiente como
interconstituintes, 81
6.4 Dificuldades de transposição da ética ecocêntrica para a ciência jurídica: a concepção de
personalidade como atributo exclusivo do homem, 85
6.4.1 Personalidade: conceitos básicos, 85
6.4.2 Personalidade e a escravidão, 87
6.4.3 Personalidade e a pessoa jurídica, 87
6.4.4 Personalidade e incapacidade, 88
6.4.5 Os entes não-humanos podem potencialmente ser personificados ?, 90
52
53
PARTE II
A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE:
A RIQUEZA DOS RECURSOS NATURAIS COMO DIREITO DO
HOMEM PRESENTE E FUTURO
1 AS DIMENSÕES (GERAÇÕES) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O FENÔMENO
ECONÔMICO
1.1 Dimensões dos direitos fundamentais, 94
1.2 Evolução dos direitos fundamentais na Idade Moderna, 97
1.2.1 Direitos fundamentais de primeira dimensão, 97
1.2.2 Direitos fundamentais de segunda dimensão, 102
1.2.2.1 Passagem do Estado Liberal para o Estado Social, 102
1.2.2.2 Conceito e fundamentos dos direitos fundamentais de segunda geração, 107
1.2.3 Direitos fundamentais de terceira dimensão, 109
2 CORRELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS ECONÔMICOS E AS DIMENSÕES DE
DIREITOS FUNDAMENTAIS
2.1 O liberalismo e os direitos de primeira geração, 114
2.2 O intervencionismo e os direitos de segunda geração, 116
2.3 O neoliberalismo, a globalização e os direitos de terceira geração, 118
3 O MEIO AMBIENTE E SUA VINCULAÇÃO JURÍDICA AOS SISTEMAS ECONÔMICOS
3.1 O princípio da defesa do meio ambiente como mecanismo conformador da Ordem Econômica,
124
3.2 O desenvolvimento sustentável como ética de desenvolvimento com a harmonização do
econômico e do ecológico, 129
3.2.1 Defesa do meio ambiente como objetivo da ordem econômica, 129
3.2.2 O conceito de desenvolvimento sustentável e a ética do desenvolvimento, 130
4 ECONOMIA DO MEIO AMBIENTE: BUSCA DA INCORPORAÇÃO DAS
EXTERNALIDADES AMBIENTAIS
4.1 Crescimento econômico contemporâneo e degradação ambiental: propostas de conciliação, 134
4.2 Economia ambiental, 135
4.2.1 Economia ambiental e a economia do bem estar, 135
4.2.2 Os componentes da valoração econômica ambiental, 138
4.2.3 Métodos de valoração econômica para determinação do valor de uso e de opção, 140
4.2.4 Críticas metodológicas e éticas à valoração ambiental, 141
5 USO DE INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NAS POLÍTICAS AMBIENTAIS:
INTEGRAÇÃO DO JURÍDICO E DO ECONÔMICO
5.1 Instrumentos econômicos: introdução, 143
5.2 Instrumentos econômicos na forma de incentivos estatais, 145
5.3 Instrumentos econômicos na forma de onerações estatais, 147
53
54
PARTE III
O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR:
SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS
DO MEIO AMBIENTE
1 O VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA
1.1 O valor e suas características na ontologia axiológica de Johannes Hessen, 150
1.2 Economia e ecologia: duas ciências afins com valorações diversas para o meio ambiente no
tratamento do efeito estufa, 152
1.2.1 Ecologia e economia: conceitos afins com pautas valorativas distintas, 152
1.2.2 O efeito estufa (aquecimento global) para a economia e para a ecologia, 154
1.2.2.1 O efeito estufa (aquecimento global): conceituação e problemática, 154
1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia, 156
1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia, 157
1.2.3 As diferentes hierarquias de valores presentes no debate internacional do crescimento
econômico e do efeito estufa, 159
1.3 Os recursos naturais como valores positivos com diferentes hierarquias para a Economia e para
a Ecologia, 160
1.3.1 Os recursos naturais como valor, 160
1.3.2 O valor dos recursos naturais para a economia, 161
1.3.2.1 Os recursos naturais e o sistema econômico de produção, 161
1.3.2.2 O valor e o preço dos recursos naturais, 162
1.3.3 O valor dos recursos naturais para a ecologia, 165
1.3.3.1 Origem do termo ecologia e as bases da sua valoração em Haeckel, 165
1.3.3.2 Os animais e o biótopo: valores equivalentes integrantes do ecossistema, 169
2 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO MEIO AMBIENTE
2.1 O utilitarismo e a teoria do valor de uso: o paradoxo do valor do diamante, da água e do ar para
Bentham e Stuart Mill, 171
2.2 A idolatria do mercado na Globalização e a mitigação da proteção estatal ao meio ambiente: o
caso Tuna-Dolphin, 172
2.3 Críticas de cunho ético à valoração do meio ambiente pelo mercado, 175
2.3.1 O meio ambiente: valor de troca, valor-trabalho ou valor intrínseco, 175
2.3.2 Críticas aos valores de mercado, decorrentes do valor intrínseco da Natureza e suas
diferentes fundamentações, 178
3 O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO
MERCADO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL
3.1 O horror ambiental e a necessidade do Estado interferir no mercado com visão sistêmica, 181
3.1.1 Os limites do Estado e a indispensável prevalência do político sobre o econômico na visão de
HABERMAS, 181
3.1.2 O horror ambiental, oriundo da falta de visão metodológica no trato da questão ambiental,
186
3.2 Análise da crise ecológica por LUHMANN
3.2.1 O enfoque sistêmico social como mecanismo de análise da crise ambiental, 188
3.2.2 Breve análise dos conceitos fundamentais da visão sistêmica social autopoiética de
Luhmann, 190
54
55
3.2.3 A análise da crise ecológica por LUHMANN com base nos subsistemas funcionais
relevantes, 194
3.3 As externalidades ambientais do mercado e o papel do direito econômico, 197
3.3.1 As externalidades ambientais do mercado, 197
3.3.2 Diferentes teorias sobre a relação Mercado e Direito na visão de NORBERT REICH, 198
3.3.2.1 A visão sistêmica de Norbert Reich, 199
3.3.2.2 O mercado e o direito como instrumentos de orientação social: semelhanças e diferenças, 200
3.3.3 O papel do Direito Econômico de proteção ambiental: integração normativa eficiente do
Jurídico e Político no Econômico, 203
3.3.3.1 Formas de intervenção do direito no mercado, 204
3.3.3.2 O papel dos instrumentos econômicos (microdireção indireta) e a ação participativa dos agentes
relevantes do mercado (ação concertada) na proteção ambiental, 205
4 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS ESFERAS SOCIAL,
ECONÔMICA E ECOLÓGICA NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
4.1 A necessidade de integração normativa dos diferentes valores subjacentes aos diferentes
subsistemas funcionais, 207
4.2 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração das esferas social, econômica e
ambiental, 207
4.2.1 Por que a preocupação com a esfera social?, 208
4.2.2 A Tragédia dos Comuns de HARDIN e o desenvolvimento sustentável, 208
4.2.3 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração no âmbito normativo interno
e internacional, 211
Parte IV
A COBRANÇA PELO USO DE ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS
PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E
ECONÔMICA NO CASO CONCRETO
1 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL FUNDAMENTAL ONTEM, HOJE E AMANHÃ
1.1 A água na visão cosmogênica dos filósofos pré-socráticos, 217
1.2 A água como símbolo cultural da integração do homem com a Natureza, 219
1.3 A água como recurso natural limitado, 223
1.3.1 A água no mundo, 223
1.3.2 A água no Brasil, 225
1.3.2.1 Situação hídrica brasileira, 225
1.3.2.2 A água, hidroeletricidade e o racionamento de energia elétrica ocorrido em 2001, 229
1.4 A água como o diamante azul do século XXI, 232
1.4.1 A água como recurso escasso valioso, 232
1.4.2 Guerras pela água e o papel do direito internacional, 234
1.4.3 A água e o desenvolvimento sustentável, 235
2 A CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS E A
CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À ÁGUA
2.1 Diferentes modelos internacionais de gestão, 237
2.1.1 Visão geral dos modelos analisados no direito comparado, 237
2.1.2 Estados Unidos da América, 238
2.1.2.1 Situação hídrica americana: um retrato histórico e geográfico, 238
55
56
2.1.2.2 Riparian rights, 239
2.1.2.3 Prior appropriation, 239
2.1.2.4 A água americana: bem público com permissão de uso privado com monitoramento federal e
estadual, 240
2.1.3 França
2.1.3.1 Situação hídrica, 242
2.1.3.2 Ordenamento institucional e legal, 243
2.1.3.3 Preço da água, 245
2.1.4 Alemanha
2.1.4.1 Situação hídrica, 246
2.1.4.2 Ordenamento institucional e legal: as associações de recursos hídricos e a gestão integrada, 247
2.1.4.3 Preço da água, 250
2.2 Contribuições dos tratados e das conferências internacionais à gênese de um direito
fundamental de acesso à água, 251
2.2.1 Argumentos contemporâneos favoráveis à construção do direito fundamental de uso da
água, 251
2.2.2 Conferências internacionais anteriores à ECO92, 255
2.2.3 Agenda 21, 256
2.2.4 Conferências internacionais posteriores à ECO92, 257
3 A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS (LEI FEDERAL N. 9.433/97) E
SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES
3.1 Importância dos princípios na compreensão da cobrança pelo uso da água, 261
3.2 A água doce como bem de domínio público: a esfera pública da água, 263
3.3 A água doce como recurso natural limitado com valor econômico intrínseco: a esfera privada
da água, 266
3.4 A gestão centrada na multiplicidade de usos da água e na proteção de preceitos éticos
vinculados à vida dos elementos sensitivos da biocenose, 269
3.5 A gestão de água descentralizada e participativa nos Comitês da bacia hidrográfica, 270
4 A COBRANÇA PELA UTILIZAÇÃO DA ÁGUA NA POLÍTICA NACIONAL
BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS
4.1 A cobrança como medida de valorização do recurso hídrico na esfera pública e privada, 275
4.2 Natureza jurídica privada da água e a sua classificação como bem, 278
4.2.1 Como podem ser caracterizados os recursos hídricos na classificação dos bens prevista no
novo Código Civil Brasileiro, 278
4.2.2 A água e a outorga de direitos de uso são um bem móvel ou imóvel?, 279
4.2.3 A água e a outorga de direitos de uso são bens fungíveis ou infungíveis?, 282
4.2.4 A água e a outorga de direitos de uso são bens consumíveis ou inconsumíveis?, 283
4.2.5 A água e a outorga de direitos de uso são bens divisíveis ou indivisíveis?, 284
4.2.6 A água e a outorga de direitos de uso são bens singulares ou coletivos?, 285
4.2.7 A água e a outorga de direitos de uso são bens principais ou acessórios?, 285
4.2.8 A água e a outorga de direito de uso são bens públicos federais, estaduais, distritais ou
municipais?, 287
4.3 Natureza jurídica da outorga
4.3.1 A natureza jurídica da outorga pelo uso da água e o fato de a água ser “bem de uso
comum”, 288
4.3.2 Deficiências normativas na especificação dos instrumentos de outorga e na outorga de
lançamento de resíduos, 291
4.4 Natureza jurídica da cobrança pelo uso da água
56
57
4.4.1 A cobrança pelo uso da água como um instrumento econômico, 293
4.4.2 A natureza jurídica da cobrança pelo uso da água: preço público, 295
5 DESAFIOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DA GESTÃO INTEGRADA PARTICIPATIVA
POR BACIA EM PAÍS FEDERADO
5.1 Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGERH) e o SISNAMA: um
paralelo necessário das competências hídricas e ambientais dos entes federados brasileiros, 297
5.2 O interesse local, a ocupação do solo e a atuação reflexa dos municípios na gestão das águas,
301
5.3 A gestão integrada federativa do saneamento da região metropolitana: engenhosa solução
legislativa para tormentoso problema jurídico, 303
5.4 Comitê da Bacia do São Francisco: exemplo concreto da complexidade de gestão de bem
público móvel com diversidade de dominialidade, 306
6 MECANISMOS NORMATIVOS DE RESOLUÇÃO DA LIDE PELA ÁGUA
6.1 Conflitos de uso e a categorização dos aspectos éticos, econômicos e normativos da cobrança,
312
6.2 A ética de solidariedade na utilização da água – bem de domínio público, 313
6.3 A ética utilitarista na utilização da água – bem econômico, 314
6.4 A ética ecocêntrica na utilização da água – bem ecológico do homem e do ecossistema, 315
6.5 A ética discursiva participativa na gestão hídrica – o consenso como forma de escolha dos
múltiplos usos da água de uma bacia hidrográfica
6.5.1 A regra de ouro para resolução dos conflitos hídricos no Estado Federado brasileiro: o
consenso do comitê de bacia, 318
6.5.2 O Comitê de Bacia como expressão do princípio da subsidiariedade e da prevalência da
participação social na resolução dos conflitos hídricos, 319
6.5.3 A ética discursiva participativa de HABERMAS e a busca de consenso no Comitê de Bacia,
321
6.5.4 A relevância do caso concreto para integração das distintas éticas previstas na Política
Nacional dos Recursos Hídricos: um paralelo com o pluralismo ético do pragmatismo
americano, 327
6.5.4.1 O pluralismo ético como resposta ao ceticismo do relativismo, 327
6.5.4.2 O pluralismo ético como mecanismo de valorização do caso concreto sem desrespeito aos valores
sociais normatizados, 329
CONCLUSÕES, 331
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 338
57
58
INTRODUÇÃO
1 AS DIMENSÕES DO FENÔMENO AMBIENTAL E SUA SÍNTESEVALORATIVA PELA NORMA AMBIENTAL DE RECURSOS HÍDRICOS
Na presente tese, demonstra-se a superação e integração das diferentes dimensões
éticas e econômicas da Natureza por meio da norma jurídica hídrica brasileira, concretizada
na cobrança pelo uso de água prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº
9.433/97).
Para tal objetivo ser concretizado, analisa-se, separadamente, a dimensão éticoecológica e econômica do meio ambiente, na busca de um caminho de valoração normativa
estatal de aspectos éticos e econômicos de utilização da água.
O bem ecológico, desde os primórdios do homem, sempre sofreu influência do
fenômeno econômico. Tal interação recíproca pode ser bem caracterizada pela origem comum
da etimologia da ciência “econômica” e “ecológica”.1
Ademais, não há dúvida de que os direitos de terceira geração, também chamados
“novos direitos”, estão vinculados ao fenômeno econômico. No âmbito dos direitos de
terceira geração, em especial, na proteção ambiental e no desenvolvimento, a relação
economia e meio ambiente mostra-se cada vez maior.2
O direito ao meio ambiente saudável, direito fundamental, positivado nas
Constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados
direitos de solidariedade. Por outro lado, na decantação de suas características básicas,
observa-se, ontologicamente pela noção de ecossistema, uma maior preocupação com os
outros entes componentes do sistema do que a ciência econômica procura valorar ao
considerar o meio ambiente como um mero fator de produção.
Assim, verificou-se, no passado e na atualidade, a permanente tensão dialética entre
o ser humano e os outros seres animados e inanimados que, juntos, formam um todo
indissociável interdependente. A água, por ser o sangue de nosso planeta, declara esta
dialética.
1
A palavra economia tem sua origem na expressão grega Oikonomia, composta a partir de dois radicais gregos:
Oikos, que significa casa; e Nomos, que significa lei ou regra. Etimologicamente, economia representa o
conhecimento prático da administração doméstica. Ecologia, por sua vez, expressão desconhecida na
civilização grega, foi composta por Oikos e por Logos, esse último radical significando reflexão ou estudo.
Assim, pode-se entender a ecologia, também, como ciência da nossa casa.
2
A relação de proximidade entre a proteção ambiental e o desenvolvimento no âmbito da comunidade humana
no Brasil, a nível normativo, pode ser corroborada com a presença desses elementos na ordem econômica
instituída na Constituição Federal de 1988, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente; VII – redução das
desigualdades regionais e sociais”.
58
59
À chamada visão antropocêntrica (aquela na qual a Natureza existe sempre como
valor instrumental cujo destinatário exclusivo é o homem) contrapõe-se uma visão
ecocêntrica, que considera relevantes todas as coisas animadas e inanimadas do meio
ambiente, possuindo valor que transcende a utilização instrumental pelo homem.
Esta visão de que há outros interesses além dos humanos na proteção do meio
ambiente, opõe-se à visão antropocêntrica trazida, dentre outros, na Idade Moderna, por
Descartes (1996, p. 65) (“animal-máquina”)3 e busca dar novas luzes à dimensão conflituosa e
perene da relação Homem e Natureza. Constitui-se, pois, em nova forma de visualização da
questão ambiental trazida pela filosofia contemporânea (environmental ethics), que não pode
ser desprezada pelo Direito.
Nesse sentido, Taylor (1997, p. 32) afirma que existem quatro princípios marcantes
da ética ambiental ecocêntrica: a) que os homens são membros da teia da vida, assim como os
outros seres vivos; b) que a espécie humana encontra-se em uma situação de
interdependência com as outras espécies e com os elementos físicos, químicos e
biológicos do ambiente; c) todos os seres são importantes como indivíduos únicos dotados
de dignidade; d) os seres humanos não são necessariamente superiores aos outros seres.
A necessidade de integração sistêmica das dimensões éticas (antropocêntrica e
ecocêntrica) e econômica junto aos recursos hídricos mostra-se, portanto, necessária para sua
efetiva proteção.
Os ecossistemas da Terra são sustentados e interligados pela água, que promove o
equilíbrio da biocenose. Nesse aspecto, Selborn (2002, p. 46) afirma:
Com efeito, a situação é apresentada muitas vezes como um conflito
entre demandas competitivas, como se estivéssemos diante de uma
opção entre a água para a populacão e para a vida selvagem. Ora, isso
não leva em conta os benefícios indiretos que os ecossistemas sadios
proporcionam à humanidade.
Indaga-se, pois, se é possível conciliar as diferentes dimensões éticas da proteção
ambiental entre si com a dimensão econômica caracterizada pela valoração da água como um
input e output do processo econômico (água como fator de produção e como resíduo do
processo produtivo).
A questão ambiental ganha novos matizes na definição de “valor” em uma ética
voltada para uma visão que ultrapassa a noção de que o homem é o único ser com fim em si
mesmo (valor intrínseco) e a da visão econômico-utilitarista do valor de mercado. Borbulham
inúmeras fundamentações filosóficas ecocêntricas, que defendem o valor intrínseco dos seres
não-humanos e do próprio ambiente natural.
A passagem do Estado Social para o Estado Neoliberal (ou Estado Regulador), com
a conseqüente diminuição seletiva das atividades estatais, provoca uma necessária revisão dos
sistemas de proteção nacional e internacional dos direitos humanos, devendo ser sintetizada
pela norma jurídica, para que se possa garantir uma efetiva proteção dos direitos
fundamentais.
Por outro lado, na decantação das características básicas do meio ambiente, observase, cada vez mais, a sua correlação com os sistemas econômicos. As amarras que unem o
econômico e o ambiental têm sua expressão maior na própria origem do fenômeno ambiental
3
Em sua filosofia, Descartes dividiu a criação em duas essências: a res cogitans (a que pensa) e a res extensa (a
que ocupa espaço), denominando os entes físicos não-humanos do mundo como objetos puramente mecânicos,
incapazes de qualquer tipo de pensamento.
59
60
que, muitas vezes, interferiu e sofreu os efeitos do fenômeno econômico, havendo, na
sociedade moderna do século XXI, exacerbação desta influência recíproca.
Para Sagoff (1996, p. 44), entretanto, nem todas as questões políticas devem ser
vistas como econômicas ou utilitaristas – baseadas na opção que garanta a máxima satisfação
dos indivíduos, vistos como consumidores ou fornecedores de bens e serviços,
inexoravelmente amarrados à Lei do Mercado. Kant (apud Sagoff 1996) destaca que as
políticas públicas devem ser julgadas com base maior na razão que nas preferências. Este
ponto de vista ressalta a noção de bem comum como algo passível de conhecimento. Assim,
determinados tópicos devem ser buscados na esfera pública, que ilumina a esfera privada, por
envolverem questões éticas transcendentes às econômicas.
Para Sagoff (1996, p. 45), as questões ambientais, certamente, encontram-se nas
elencadas à discussão ética e não só à discussão econômica.
No mesmo sentido, Gleick (1993c, p. 111), sobre a falta de água em diversas regiões
do mundo, afirma que:
Garantir uma adequada qualidade de vida para a população mundial
presente e futura requer cuidado com os nossos recursos atuais
fundamentais como a água [...] deve-se lutar, pois, para que a água
fresca seja disponível para qualquer pessoa na Terra.
Habermas (1980, p. 50) afirma que o Estado deve controlar a decisão dos agentes
econômicos para corrigir ou compensar os efeitos disfuncionais dos mecanismos de
mercado e do processo de acumulação.
Reich (1985, p. 55), do mesmo modo, defende, comentando as teorias de Habermas
sobre as funções do Estado, que este deve propiciar o cumprimento dos pressupostos da
produção econômica de acumulação do capital, não se esquecendo, entretanto, de controlá-lo,
para afastar os efeitos nocivos secundários do Mercado.
Como expressão da busca de integração da dimensão econômica e ética, ao lado das
tradicionais normas sancionadoras-regulativas da proteção do meio ambiente, surgem novos
mecanismos estatais jurídicos, vinculados ao fenômeno econômico. Assim, o Estado
brasileiro, em sua política ambiental, passa a utilizar-se de instrumentos econômicos, tal como
a cobrança pelo uso da água, recentemente introduzida no Brasil pela Lei nº 9.433/97.4
A nova ótica dada ao bem ambiental de uso comum – água – considerada, pela
referida legislação, recurso natural finito e de valor econômico, constitui uma sensível
mudança de paradigma protetivo ambiental. O bem ambiental, originariamente, considerado
res nullius e res derelicta passa a ter “valor de mercado”, “valor intrínseco” e “valor jurídico”.
Destaca-se a síntese feita pela norma jurídica entre a tese do “meio ambiente como valor de
mercado” e a antítese do “meio ambiente como valor intrínseco”.5
Por tudo isso, salienta-se, na presente pesquisa, a existência de uma integração
normativa da dimensão ética e econômica da proteção ambiental no estudo da cobrança pelo
uso da água, instituída pela atual Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos.
4
A Lei 9.433 de 8 de janeiro de 1997 institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta, dentre outros, o inciso XIX do art. 21 da Constituição
Federal, verbis: “XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de
outorga de direitos de seu uso”.
5
O artigo primeiro da Lei 9.433/97 prevê que: “[...] II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor
econômico; III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a
dessedentação de animais”.
60
61
2 A ÁGUA COMO METÁFORA DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS
DIMENSÕES ÉTICAS E ECONÔMICA DO HOMEM COM A
NATUREZA
O assunto é de relevante interesse, haja visto a estreita relação do Homem e da
Natureza com a água. A disponibilidade hídrica é condição de sobrevivência do homem e do
ecossistema.
Ademais, o desenvolvimento da pesquisa justifica-se, porque o objeto da tese, apesar
de sua relevância e atualidade, até hoje foi pouco explorado pelos doutrinadores. Embora
existam inúmeras obras sobre o direito ambiental, quase nada há sobre a proteção ambiental
hídrica realizada pelo Estado em análise integradora da dimensão ética e econômica no
contexto do fenômeno globalização. A tônica das obras brasileiras é a análise pontual do
direito ambiental positivo, no qual os recursos hídricos aparecem como um Capítulo de menor
importância, esquecendo-se da intensa correlação da água com os sistemas econômicos
(dimensão econômica) e com os fundamentos últimos da justificação da proteção hídrica
(dimensão ética do homem e do ecossistema).
Há diversas obras, ensaios e publicações jornalísticas sobre a degradação hídrica,
sobre reflexos econômicos, sobre questões éticas e sobre a globalização. Entretanto, tais obras
raras vezes correlacionam os temas, tratando de cada um deles de forma isolada, esquecendose da necessária integração sistemática.
Deve-se assinalar, também, a existência de estudos sobre os direitos sociais e a
globalização; entretanto, com relação ao tema do papel normativo do Estado na proteção
ambiental hídrica, no contexto da globalização econômica que superestima o mercado, não há
trabalhos monográficos de que se tenha conhecimento no âmbito da pesquisa acadêmica
universitária.
Por outro lado, a questão da exploração dos recursos hídricos é tema contemporâneo
e objeto de grandes controvérsias. A política nacional de recursos hídricos, recentemente
positivada em legislação infra-constitucional, possui inúmeras novidades no campo ambiental
e econômico, tal qual a cobrança pelo uso da água prevista nos arts. 19 a 22.
A água, nessa inovadora legislação, passa a ser reconhecida como bem econômico e
incentiva-se a racionalização do seu uso. Os recursos hídricos6 são, pois, retirados da
categoria de res nullius e de res derelicta.7
Torna-se, pois, efetiva a extinção do domínio privado da água doce8 e a implantação
de seu domínio público, preconizado na Carta Magna de 1988.
6
No presente trabalho, assim como na legislação brasileira federal (Lei 9.433/94, art. 1º), não se distingue
“água” de “recursos hídricos”. Em sentido contrário, Rebouças (1999, p. 1) afirma: “O termo água refere-se,
regra geral, ao elemento natural, desvinculado de qualquer uso ou utilização. Por sua vez, o termo recurso
hídrico é a consideração da água como bem econômico, passível de utilização com tal fim”.
7
O art. 19 da Lei 9.433/97 afirma: “A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I – reconhecer a água
como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso
da água; III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos
planos de recursos hídricos”.
8
“A classificação mundial das águas, feitas com base nas suas características naturais, designa como água doce
aquela que apresenta teor de sólidos totais dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/l. As águas com STD entre
1.000 e 10.000 mg/l são classificadas como salobras e aquelas com mais de 10.000 mg/l são consideradas
salgadas” (REBOUÇAS, 1999, p. 1).
61
62
Remonta-se, com tal tratamento, a uma preocupação do início da civilização
ocidental, já existente na filosofia dos pré-socráticos, mais especificamente na afirmação de
Tales de Mileto apud Kirk (1996, p. 82) de que: “A terra flutua na água, que é de certo modo
a origem de todas as coisas”.
Cheia de significados, a água é um elemento da vida que a evoca sob múltiplos
aspectos, materiais e imaginários. Nesse sentido, Eliade (1967, p. 127) destaca o aspecto
simbólico da água afirmando que “Las Aguas simbolizam la suma universal de las
virtualidades; [...] preceden a toda forma y soportan toda creación”.
Assim, na preocupação econômica com a água, encontra-se, também, uma
preocupação ética adormecida, que remonta aos primórdios da origem da civilização moderna
e foi trazida à tona na Agenda 21 (1997, cap. 18, p. 331), que prevê que a “água é necessária
em todos os aspectos da vida”.
A cobrança pelo uso da água, portanto, pode ser vista como uma metáfora, um
símbolo contemporâneo da síntese de diferentes visões éticas e econômicas, garantidoras da
integração do Homem com a Natureza (JUNG, 1964, p. 20).
Por outro lado, a pesquisa a ser desenvolvida pode esclarecer pontos obscuros no
processo de preservação ambiental brasileira, em especial de seus recursos hídricos, e na
conseqüente realização dos preceitos constitucionais de uma política nacional de recursos
hídricos (garantidora das aspirações de qualidade de vida colocadas em nossa Carta Magna),
sem que se perca a noção da crescente integração das economias intra-estatais (economia dos
estados-membros da Federação) e internacionais.
O Brasil destaca-se no cenário mundial pela grande descarga de água doce dos seus
rios, cuja produção hídrica - 177.900 m3/s e mais 73.100 m3/s da Amazônia internacional representa 53% da produção de água doce do continente Sul Americano (334.000 m3/s) e 12%
do total mundial (1.488.000 m3/s) (REBOUÇAS, 1999, p. 29).
Esses valores, aparentemente, caracterizariam a nossa abundância de água doce, o
que tem servido de suporte à cultura do desperdício da água disponível, à não realização dos
investimentos necessários ao seu uso e proteção mais eficientes, e à sua pequena valorização
econômica, isto é, a água tem sido considerada como um bem gratuito de uso comum.
Entretanto, o estigma da escassez de água fica caracterizado, quando se verifica que a
densidade de população na Região Amazônica é de menos de 2 a 5 hab/Km2, onde a
produção hídrica – Amazonas e Tocantins – é de 78% do total nacional. A densidade
demográfica já varia entre 5 e 25 hab/Km2 , na bacia do rio São Francisco, com apenas 1,7%
do total, e é da ordem de 6% na bacia do rio Paraná, cuja densidade de população varia entre
25 e mais de 100 hab/Km2 (REBOUÇAS, 1999, p. 29).
Busca, pois, de forma pragmática, não só justificar os direitos do homem, mas,
principalmente, protegê-los, ressaltando o papel político do Estado de proteção dos direitos
fundamentais, por meio de instrumentos econômicos e regulativos eficientes, sem a perda do
necessário suporte filosófico.
Finalmente, considerando-se os crescentes processos de desenvolvimento
tecnológico, industrial, humano e de urbanização, além da explosão demográfica e da
escassez de recursos naturais, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e o
acesso racional dos recursos hídricos são interesses da ciência jurídica que, hoje, deve ter
papel ativo para moldar as condutas, amparando os direitos fundamentais de acesso à
água, qualidade de vida e desenvolvimento (plano do dever ser) – valores imprescindíveis
da sociedade pós-moderna – e implantando-os na realidade social brasileira (plano do ser) .
62
63
3 ANÁLISE DAS PARTES COMPONENTES DA PRESENTE TESE
3.1 VISÃO GERAL DAS PARTES, DOS SEUS OBJETIVOS E DA METODOLOGIA
USADA
Tendo em vista a amplitude do tema, o próprio objeto da tese a ser investigado
(integração normativa de diferentes aspectos da água – éticos e econômicos) e a correlação de
diferentes objetos do conhecimento (a filosofia ambiental, a economia ambiental e o direito
ambiental com ênfase nos recursos hídricos), optou-se por dividir a análise, em um primeiro
momento, de cada um dos objetos de estudo.
Em seguida, os objetos são correlacionados na noção de “valor” – elemento
comum às ciências econômica, ética e jurídica – e integrados à análise dogmática da cobrança
pelo uso da água.
Na primeira parte da monografia – A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE:
pluralidade de fundamentos para a necessária evolução da visão antropocêntrica para a
ecocêntrica – analisa-se o surgimento de uma macroética ambiental, vinculada à realidade
tecnológica e globalizada contemporânea, que se dirige à conduta, não do indivíduo – como
ocorre com a ética aristotélica –, mas sim do coletivo (macroética). Descreve-se a ética da
coletividade e da co-responsabilidade, que surgem no contexto das éticas discursivas
contemporâneas, construindo uma ponte entre a teoria e a realidade. Nas justificações e nas
finalidades da criação de macroéticas ambientais, classificam-se dois grandes grupos: o
antropocentrismo (o homem é o destinatário exclusivo da proteção da natureza) e o
ecocentrismo (os seres animados e as coisas inanimadas, juntamente com o homem, são os
destinatários da proteção ambiental). Busca-se analisar as abordagens teóricas e práticas
dessas macroéticas contemporâneas e as dificuldades de implementação destas (especialmente
a ecocêntrica estrita, que defende a titularidade de valores morais transcendentes à valoração
humana para os entes da natureza) nas normas jurídicas.
Analisam-se, da mesma forma, nesta parte, as diversas teorias sobre a relação
conflituosa entre o homem e a natureza, para melhor compreensão das características
protetivas do meio ambiente no mundo contemporâneo.
Em um segundo momento – A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO
AMBIENTE: a riqueza dos recursos naturais como direito do homem presente e futuro–
correlaciona-se, de forma específica e delimitada, ao fenômeno econômico e às diferentes
gerações de direitos fundamentais, com ênfase para os direitos de terceira geração,
notadamente o direito a um meio ambiente sadio e ao desenvolvimento sustentável que se
preocupa com a humanidade em uma solidariedade transgeracional.
Pesquisa-se, ainda, a busca de integração do fenômeno ambiental e do fenômeno
econômico por meio da Economia do Meio Ambiente e dos Instrumentos Econômicos de
proteção ambiental, resposta do Neoliberalismo para a proteção do meio ambiente. Princípios
como o do poluidor-pagador (concretizados nos instrumentos econômicos) são analisados
nesta zona de transição entre o jurídico e o econômico-ambiental.
Na terceira parte – O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR:
superação e síntese dos aspectos éticos e econômicos do meio ambiente – correlacionam-se os
dois objetos de estudo das partes anteriores (DIMENSÃO ÉTICA e DIMENSÃO
63
64
ECONÔMICA) sob a ótica do “valor”, denominador comum do Direito (e do Estado), da
Economia e da Filosofia Moral, ressaltando o papel integrador da norma jurídica, na visão de
desenvolvimento sustentável, previsto como mecanismo de harmonização do
desenvolvimento econômico e da dimensão ético-ecológica da proteção ambiental.
Na quarta parte – A COBRANÇA PELO USO DE ÁGUA: mecanismos normativos
plurais e participativos de integração ética e econômica – desenvolve-se a tese propriamente
dita, por meio da análise da legislação federal de recursos hídricos (Lei 9.433/97) e das teses
secundárias corroboradas nas partes anteriores, com a utilização dos marcos teóricos,
desenvolvidos nas duas primeiras partes e já unificados na terceira parte (dimensão ética e
econômica do meio ambiente normativamente integrada pelo Estado Regulador).
Ressalta-se a presença de mecanismos normativos de integração e síntese da lide da
água, fundados em éticas plurais e aparentemente contraditórias que se superam e
integram, de forma discursiva-participativa, no caso concreto do uso da água em uma
determinada bacia hidrográfica.
3.2 CONTORNOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DO TRABALHO
A nível conceitual, o objeto desta tese – cobrança pelo uso da água como
mecanismo de integração valorativa – vincula-se às águas doces superficiais do Brasil, ou
seja, as águas interiores brasileiras dos corpos d´água superficiais (rios e lagos), excluídas
as águas subterrâneas, do mar, as águas internacionais e as águas minerais que se regem por
outras normas com princípios específicos, que não serão abordados no presente trabalho.
Também vincula-se ao núcleo do presente trabalho a legislação federal de águas
doces com concentração nos institutos da outorga e da cobrança pelo uso da água na Lei
9.433/97.
Não almeja o presente trabalho, como tema principal, a análise da vasta legislação
estadual hídrica, abordada, em certos momentos, de forma pontual meramente
exemplificativa.
Do ponto de vista do método, utiliza-se uma visão multidisciplinar na abordagem
do objeto da pesquisa, como método mais adequado para o tratamento do seu objeto que
possui, em si, também natureza multidisciplinar; não obstante seja dada ênfase a aspectos
jurídicos por vincular-se o presente trabalho à tese de doutoramento nesta área do
conhecimento.
Apesar da visão multidisciplinar impregnar todo o conteúdo do trabalho, pode-se,
entretanto, caracterizar as quatro partes do estudo em função da predominância de distintas
“áreas de conhecimento” a ela relacionadas. A própria estruturação da tese baseou-se na
predominãncia das áreas de conhecimento utilizadas (“dimensões éticas, econômicas,
político-sociais e jurídicas do meio ambiente e dos recursos hídricos”).
Assim, a primeira parte almeja em primeiro plano, uma visão filosófica, seguida de
visão histórica, jurídica e científica da relação homem-natureza. Nesse aspecto, buscou-se
analisar a relação do homem com a natureza do ponto de vista histórico-cronológico (“O ser
humano e a natureza na história”), jurídico (“Direito ao ´meio ambiente sadio’: direito
exclusivo do homem?” e segunda parte de “Fundamentações teóricas de uma ética ecocêntrica
e a personalidade jurídica”), filosófico (“Ética aristotélica e a macroética ambiental”,
“Espécies de macroéticas quanto aos atores do consenso: noções básicas da ética
64
65
antropocêntrica e ecocêntrica”, “Ética antropocêntrica: na visão do cartesianismo e do
evolucionismo”) seja na ética clássica grega, seja na environmental ethics americana, seja na
doutrina tedesca selecionada (JONAS, 1995; APEL, 1994; ARENDT, 2001).
Deve-se ressaltar que na visão científica (ciências físicas e biológicas) da primeira
parte, muitas vezes há confluência de elementos filosóficos intercalados com o
conhecimento científico, como ocorre com as partes nas quais são utilizados autores como
Darwin e Descartes, propositalmente escolhidos pelas características de suas obras, que
abarcam conceitos não delimitados claramente como científicos ou filosóficos.
Já a segunda parte concentra-se, em primeiro plano, na visão econômico-jurídica
dos direitos fundamentais e do meio ambiente, bem como no surgimento contemporâneo da
economia ambiental (braço protetivo do meio ambiente na área econômica neoclássica).
Nesse sentido, buscou-se analisar, em primeiro momento, a relação do homem
com a natureza do ponto de vista econômico-jurídico, na correlação dos sistemas
econômicos históricos e contemporâneos (liberalismo, socialismo e neoliberalismo) com as
gerações (dimensões) dos direitos fundamentais (“As dimensões (gerações) dos direitos
fundamentais e o fenômeno econômico”; “Correlação entre os sistemas econômicos e as
dimensões de direitos fundamentais”; “O meio ambiente e sua vinculação aos sistemas
econômicos”).
A seguir, com vistas ao objeto da tese primária (Cobrança brasileira pelo uso da
água como mecanismo de proteção ambiental), desenvolvem-se marcos teóricos basilares
sobre a economia do meio ambiente e a juridicização do econômico por meio dos
instrumentos econômicos (“Economia do meio ambiente: busca da incorporação das
externalidades ambientais” e “Uso de instrumentos econômicos nas políticas ambientais:
integração do jurídico e do econômico”).
A terceira parte, por outro lado, difere das anteriores, ao buscar, assim como a
quarta parte, sintetizar conhecimentos obtidos nas partes precedentes na defesa do papel
normativo do Estado de regular o mercado e proteger a sociedade das “externalidades”
sociais e ecológicas.
Esta parte constitui pré-requisito para a corroboração da tese primária do
trabalho, razão pela qual, metodologicamente, foi vista como tese secundária fundamental.
Uma vez que não se demonstrasse a necessidade de intervenção estatal na economia
contemporânea, mesmo com a predominância da ideologia neoliberal, não se poderia
defender, por incongruência lógica, o papel positivo e eficaz da cobrança pelo uso da água
(regulada pelo Estado) como mecanismo de integração ética do econômico e do ecológico
(tese primária).
Almeja-se, nessa parte complexa e ampla, de forma genérica no macroobjeto
“meio ambiente”, provar aquilo que a quarta parte demonstrará, de forma específica, no
microobjeto recursos hídricos, a saber: que o Estado, por meio do Direito, deve ser um
instrumento social de formação e controle do mercado na proteção da sociedade, dos recursos
naturais e dos recursos hídricos.
Em termos de áreas de conhecimento utilizadas, esta parte une algumas áreas de
conhecimento da primeira parte (jurídica, filosófica e científica) com as da segunda parte
(econômica, jurídica), cumuladas com uma visão sociológica-filosófica.
A construção de uma teoria social do meio ambiente em paralelo a uma teoria
axiológica ambiental (já desenvolvida nas partes anteriores, nesta parte completada com
visão utilitária econômica de Bentham, Mill e com a ontologia axiológica antropocêntrica de
65
66
Hessen) mostrou-se necessária e imprescindível para o escopo desta parte. Assim, procedeuse à escolha de dois autores germânicos Johannes Hessen (na análise de valor como atributo
positivo e negativo inerente à condição humana) e Nicolas Luhmann (na análise sistêmicafuncional da sociedade como uma integração de comunicações binárias, que devem perturbar
o Econômico, o Ecológico, o Social, o Político e o Jurídico para a solução da crise ambiental).
Assim, na parte filosófica-axiológica geral, desenvolve-se o primeiro capítulo – “O
valor do meio ambiente na ecologia e na economia”, na parte filosófica-econômica do
utilitarismo, desdobra-se o segundo capítulo – “Críticas de cunho ético às posturas utilitaristas
do meio ambiente”. Na porção de visão sócio-jurídico-econômica desenvolve-se o terceiro
capítulo – “O direito como instrumento social de formação e controle do mercado na proteção
ambiental”.
Por fim, para uma abordagem conceitual de transição entre a terceira e a quarta
parte desta tese, surge o quarto capítulo – “A necessidade de integração normativa das
esferas social, econômica e ambiental (ético-ecológica) no desenvolvimento sustentável”.
Na última e quarta parte da tese, desenvolve-se a tese primária de que a cobrança
pelo uso da água doce integra as diferentes dimensões da água (ética e econômica) por
meio de mecanismos normativos que premiam uma ética discursiva-participativa, na leitura
axiológica da Lei 9.433/97. Assim, analisa-se de forma específica os recursos hídricos, sua
importância cultural para o homem e para os ecossistemas, sua gestão internacional e
nacional, com vistas a identificar a razão e as finalidades éticas de cobrança pelo uso da água.
Almeja-se, nessa parte final e nuclear da tese, de forma específica no micro-objeto
“recursos hídricos brasileiros”, provar, com base nas premissas construídas nas partes
anteriores, que o Comitê de Bacias está dotado de mecanismos normativos baseados em
uma ética discursiva, que possibilitam, à luz do caso concreto de determinada Bacia,
ponderar os diferentes valores da água (bem de domínio público, econômico e ecológico)
resolvendo os seus conflitos por meio de uma ética pluralista-racional.
Em termos de áreas de conhecimento utilizadas predomina o enfoque jurídicodogmático à luz da Lei 9.433/97 concretizadora das normas constitucionais pertinentes (“A
política nacional de recursos hídricos (Lei Federal n. 9.433/97) e seus princípios
estruturantes”, “A cobrança pela utilização da água na política nacional de recursos hídricos”,
“Desafios jurídico-institucionais da gestão integrada participativa por bacia em país federado”
e “Mecanismos normativos de resolução da lide”).
Não obstante, a prevalência da dogmática jurídica nesta parte da tese, desenvolveu-se
no estudo da água, também, perspectivas filosóficas (“1. A água como recurso natural
fundamental ontem, hoje e amanhã”), científicas (“1.3 A água como recurso natural
limitado”), de direito comparado e internacional público (“A contribuição internacional da
gestão dos recursos hídricos e a construção de um direito fundamental à água”).
3.3 PARTE I – A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: PLURALIDADE DE
FUNDAMENTOS PARA A NECESSÁRIA EVOLUÇÃO DA VISÂO
ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA
A natureza, muitas vezes, é excluída do universo das preocupações dos seres
humanos. No âmbito jurídico contemporâneo, a natureza é protegida como um direito do
homem, tendo, como base imediata, a proteção do próprio ser humano e, com base mediata, a
garantia de um ecossistema sadio e equilibrado.
66
67
O homem é o ser, por excelência, provido de personalidade.9 Possui capacidade de
ser titular de direitos e obrigações. Os direitos fundamentais são direitos humanos. Não se fala
de titularidade de direitos para seres não-humanos, não obstante protejam-se tais seres como
bens jurídicos.
Os direitos fundamentais, tema característico da pós-modernidade, mostram-se em
constante evolução conforme a história demonstra. As dimensões (gerações) de direitos
fundamentais evidenciam e procuram sistematizar a constante ampliação das espécies de
direitos fundamentais.
Por trás, entretanto, das primeiras gerações fundamentais (primeira e segunda
geração) pode-se verificar somente uma preocupação de relação harmoniosa do homem com
outro homem e do homem com o Estado.10
Os outros entes da natureza são vistos como “coisas fora ou dentro do comércio”.
São, entretanto, sempre objetos de direitos subjetivos humanos.
Nesse contexto, os direitos de terceira geração buscam proteger a relação do
homem com a Natureza, por meio da noção de interesses difusos. Entretanto, não
transpõem a barreira protetiva da titularidade exclusiva de direitos do homem, não obstante
tais direitos admitam que tal proteção possa ocorrer, também, para as gerações futuras.
Indaga-se, pois, sobre a possibilidade de nova visão ética da relação Homem com a
Natureza? Podem, os elementos não humanos da Natureza, deixarem de ser objetos e
tornarem-se entes com capacidade de terem direitos?
Dentre os direitos de terceira geração, o direito ao meio ambiente ocupa papel de
destaque no novo milênio; seja pela crescente presença nos documentos internacionais e
nacionais, seja pela ênfase dada pela mídia, seja, principalmente, pela importância para a
qualidade de vida da humanidade.
O direito ao meio ambiente, direito fundamental positivado nas Constituições e nos
tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados direitos de
solidariedade, ao lado de outras que o diferenciam. O conceito de qualidade de vida une, por
exemplo, o direito ao meio ambiente e o direito ao desenvolvimento.11
9
Nesse sentido, o velho Código Civil (Lei nº 3.071, de 1ª de Janeiro de 1916) dispõe no seu art. 2º: “Todo
homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”.
10
Sobre as “gerações” dos direitos fundamentais, Cf. BONAVIDES, 1996, p. 516-524. Em termos apertados, os
direitos de primeira geração relacionam-se com o liberalismo e correspondem aos direitos de liberdade, aos
direitos individuais, aos direitos negativos; a segunda geração de direitos relaciona-se com a socialdemocracia do fim do século XIX, correspondendo aos direitos sociais, econômicos e culturais; direitos a
prestações do Estado, direitos à igualdade social e direitos positivos; a terceira geração de direitos surge a
partir da consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, que exige a
fraternidade, para a proteção do gênero humano, correspondendo ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à
paz, ao patrimônio comum da humanidade.
11
Para Derani (1997, p. 77), a expressão “sadia qualidade de vida” no âmbito do direito ambiental tem um
aspecto quantitativo (grande número de bens a disposição do ser humano) e, principalmente, um aspecto
qualitativo, verbis: “A inserção de tal expressão no direito ambiental brasileiro acaba por denunciar a busca por
um aspecto qualitativo, depois das decepções resultantes da adoção de um sentido unicamente quantitativo para
designar qualidade de vida, traduzida que era apenas por conquistas materiais. O alargamento do sentido da
expressão qualidade de vida, além de acrescentar esta necessária perspectiva de bem-estar relativo à saúde
física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito do homem fruir de um ar puro e de uma bela paisagem, vinca
o fato de que o meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, porém integrada à vida do homem
social nos aspectos relacionados à produção, ao trabalho como também no concernente ao seu lazer”.
67
68
Por outro lado, na decantação de suas características básicas, observa-se, cada vez
mais, maior preocupação com os outros entes componentes do sistema “meio ambiente”, nem
que seja de forma reflexa.
Assim, verifica-se, no passado e no presente, permanente tensão dialética entre o ser
humano e os outros seres que, juntos, formam um todo indissociável, interdependente, razão
pela qual um não pode ser analisado independentemente do outro.
A chamada visão ecocêntrica12 da macroética ambiental, aquela que considera
relevante os outros seres integrantes do meio ambiente e que se opõe à visão antropocêntrica
cartesiana (“animal-máquina”), busca dar novas luzes à dimensão conflituosa e perene da
relação Homem e Natureza. Constitui, pois, nova forma de visualização da questão ambiental,
trazida pela Filosofia, que não pode ser desprezada pelo Direito.
A visão ecocêntrica mostra-se necessária à evolução da ética ambiental para as
circunstâncias atuais de degradação ambiental. Não se trata de uma ética que surge do nada,
mas sim de mais uma reação à ação do homo faber dirigida à proteção ambiental.
Assim, nos dois primeiros Capítulos desta parte do trabalho (O SER HUMANO E A
NATUREZA NA HISTÓRIA e “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO
DO HOMEM?) analisa-se a relação conflituosa de poder entre o homem e a natureza, para
criticar, em seguida, a visão atual de que o direito fundamental de terceira geração – meio
ambiente ecologicamente equilibrado – seja exclusivo do homem.
No terceiro Capítulo (ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA
AMBIENTAL) compara-se a ética individual centrada nas virtudes de Aristóteles com as
propostas de criação de uma ética social (macroética) na visão de Karl-Otto Apel e Hans
Jonas.
No quarto Capítulo, com base na análise da “environmental ethics” americana,
diferenciam-se, de forma introdutória, as macroéticas ambientais quanto aos atores do
consenso em ética antropocêntrica e ecocêntrica.
No quinto e no sexto Capítulo, detalham-se algumas concepções teóricas éticocientíficas que fundamentam a ética antropocêntrica (Cartesianismo e Evolucionismo) e a
ecocêntrica (Teoria de Gaia e Autopoiese), pugnando-se pela ética da visão ecocêntrica,
principalmente pelo seu caráter de maior preservação do meio ambiente, não obstante se
visualizem dificuldades na sua implantação no mundo jurídico.
Destacam-se, também, as dificuldades transponíveis da ética ecocêntrica para a
ciência jurídica, com ênfase na discussão da personalidade como atributo exclusivo do
homem.
3.4 PARTE II – A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE: A RIQUEZA DOS RECURSOS
NATURAIS COMO DIREITO DO HOMEM PRESENTE E FUTURO
Os direitos fundamentais, bens jurídicos por excelência e tema característico da pósmodernidade, mostram-se em constante evolução, conforme a história demonstra.
12
Segundo Pepper (2000, p. 416), o ecocentrismo, “essencialmente, não é centrado no ser humano (visão
antropocêntrica) [...], mas sim nos ecossistemas naturais, em que o ser humano é considerado como apenas
mais um componente”.
68
69
As dimensões (gerações) de direitos fundamentais evidenciam e procuram
sistematizar a constante ampliação das espécies de direitos fundamentais.
Ao lado das diferentes gerações fundamentais, pode-se verificar simetria com a
evolução do fenômeno econômico. Aos direitos de primeira geração podemos associar o
liberalismo econômico, na figura expoente de Adam Smith; aos direitos de segunda geração, o
intervencionismo estatal, na figura de Keynes, restando a configuração dos direitos de terceira
geração e do fenômeno econômico, já se falando de uma economia ambiental ou de uma
ecologia econômica.
Estariam os direitos de terceira geração, chamados novos direitos, vinculados ao
fenômeno econômico? Em caso afirmativo, a necessidade de integração sistemática da
dimensão jurídica e econômica do meio ambiente mostra-se, portanto, necessária para
garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado .
Indaga-se, pois, se é possível correlacionar os direitos fundamentais de terceira
geração ao fenômeno intitulado neoliberalismo.
Dentre os direitos de terceira geração, o direito ao meio-ambiente tem papel de
destaque no novo milênio. Seja pela crescente presença nos documentos internacionais e
nacionais; seja pela ênfase dada pela mídia; seja, principalmente, pela sua importância para a
qualidade de vida da humanidade.
O direito a um meio ambiente saudável, direito fundamental positivado nas
Constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados
direitos de solidariedade, ao lado de outras que o diferenciam. O conceito de qualidade de
vida une, por exemplo, o direito ao meio ambiente e o direito ao desenvolvimento.
Por outro lado, na decantação das características básicas do meio ambiente, observase, cada vez mais, a sua correlação com os sistemas econômicos. Tal vinculação, que ocorre,
também, no conceito de desenvolvimento sustentável, tem sua expressão maior na própria
origem do fenômeno ambiental que muitas vezes interferiu e sofreu interferência do
fenômeno econômico, havendo, na sociedade moderna do século XXI, uma explicitação
tremenda desta vinculação sistêmica recíproca.
Expressões da busca de integração da dimensão econômica e jurídica, ao lado das
tradicionais normas regulativas da proteção do meio ambiente, surgem novos mecanismos
estatais vinculados ao fenômeno econômico. O Estado brasileiro, por exemplo, em sua
política ambiental, passa a utilizar-se de instrumentos econômicos, tal como a cobrança pelo
uso da água, recentemente introduzida no Brasil pela Lei nº 9.433/97.
Assim, verifica-se uma permanente tensão entre o ambiental e o econômico, razão
pela qual um não pode ser analisado independentemente do outro. Não se tratam de
fenômenos paralelos independentes, conforme análise feita nos dois primeiros Capítulos desta
parte do trabalho (“Dimensões dos direitos fundamentais e o fenômeno econômico” e
“Correlação entre os sistemas econômicos e as dimensões de direitos fundamentais”), mas,
sim, forças polares, cuja interação, por exemplo, explica as variações no trato da proteção
ambiental legislada em diferentes países, na cíclica tarefa histórica de busca da harmonia
entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico.
Estes importantíssimos direitos fundamentais de terceira geração – meio ambiente
sadio e desenvolvimento econômico – representativos da interação dialética homem-natureza
– merecem análise comparativa no terceiro Capítulo (“O meio ambiente e sua vinculação aos
sistemas econômicos”).
69
70
No quarto Capítulo (“Economia do meio ambiente: busca da incorporação das
externalidades ambientais”), caracteriza-se a criação na ciência econômica de um recente
ramo que introduz dimensões de valoração ambiental dentro do arcabouço teórico da
economia convencional.
No quinto Capítulo (“Uso de instrumentos econõmicos nas políticas ambientais:
integração do econômico e do jurídico”), destaca-se a utilização de instrumentos econômicos,
que afetam o cálculo de custos e benefícios do agente econômico, influenciando, portanto,
suas decisões com o objetivo de produzir uma melhoria na proteção ambiental.
3.5 PARTE III – O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR DE SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS
ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE
Com a globalização, as políticas públicas legislativas sofrem forte influência do
fenômeno econômico. Assim, a dimensão econômica tem adentrado a seara jurídica de forma
a modificá-la radicalmente. As transformações tecnológicas, que permitem uma maior
agilidade no processamento e transmissão de informações, influenciam as atividades
econômicas, modificando os mercados, tornando-os cada vez mais poderosos em relação às
soberanias nacionais, passando a determinar as políticas estatais e, até mesmo, o modo de
produção do direito.
Para Dahl (1999, p. 25), um dos delineadores da Agenda 21, verbis:
O problema hoje é que a maioria dos líderes põe a economia no centro
das nossas sociedades, muitas vezes à custa da exclusão de outros
valores, que são deixados a uma apreciação subjectiva ao nível
político ou cultural, se é que o são. Assim, aos valores materiais que
podem ser medidos em dinheiro é dada grande importância e são
usados para demonstrar o sucesso das nações e para definir o
desenvolvimento. Outros factores que poderiam ser igualmente
importantes (se não o são mais) para a qualidade da vida humana, são
geralmente ignorados.
A Globalização gera novos focos de poder, deslocando os conflitos sociais para o
âmbito econômico. Como ensina Faria (1999, p. 141), o Estado continua legislando,
entretanto, constrange-se a compartilhar sua titularidade de iniciativa legislativa com
diferentes forças que transcendem o nível nacional.
A política neoliberal, fruto dessa estrutura mundial globalizada, tem determinado a
diminuição do Estado que, monitorado pela filosofia da mínima-intervenção, passa a diminuir
consideravelmente o uso de seus instrumentos jurídicos tradicionais de controle e intervenção.
Dessa forma, o Estado – concebido originariamente segundo visão una e soberana – é
obrigado a conviver com formas paralelas de poder que afetam os valores básicos da
sociedade política. Dentre estes, situam-se os direitos fundamentais, em especial o de um
meio ambiente saudável, extremamente influenciado pelos elementos econômicos
(ARAGÃO, 1997, p. 18).
Assim, surgem indagações a serem respondidas no presente trabalho, tais como: O
Estado neoliberal deve legislar sobre meio ambiente, ou tem a obrigação de deixar que esse
70
71
valor seja determinado pela “mão invisível”13 do mercado? Os mecanismos de mercado
podem ser utilizados em favor da proteção ambiental? Em caso afirmativo, sempre ou em que
hipóteses? Como o Direito e o Político podem influenciar, de forma efetiva, o Econômico e
valorizarem os aspectos éticos e sociais do meio ambiente?
A natureza, vista isoladamente como valor intrínseco, muitas vezes é excluída do
universo das preocupações dos seres humanos. No âmbito jurídico contemporâneo, a natureza
é protegida, predominantemente, como recurso econômico utilizado no input do mercado e
como um ralo para os outputs indesejáveis do processo de fabricação.
Assim, no primeiro Capítulo desta parte do trabalho (“O valor do meio
ambiente na ecologia e na economia”), analisa-se a teoria geral dos valores, na
visão de Johannes Hessen, buscando sua aplicação na apreciação da relação
conflituosa de duas ciências assemelhadas em sua origem, mas distantes nas
soluções dadas aos problemas da relação Homem-Natureza: a Economia e a
Ecologia.
A análise do valor do ecossistema/recursos naturais mostrará, portanto, diferentes
matizes para a Ecologia e para a Economia, como se procura destacar na análise do debate
internacional do efeito estufa.
No segundo Capítulo (“Críticas de cunho ético-social às posturas utilitaristas do
meio ambiente”), compara-se a visão utilitarista-econômica da terra (Natureza) e do trabalho,
como simples instrumentos de produção valorados pela oferta e pela procura, com a postura
filosófica e social de que possuem valores em si mesmos.
Busca-se a análise teórica da corrente filosófica utilitarista de Bentham e de Stuart
Mill e sua adoção no mercado auto-regulável, que na visão de Polanyi, trata, indevidamente, a
Natureza e o Homem como mercadorias.
Aprecia-se, nesta parte nodal do trabalho, minuciosamente, as deficiências
valorativas do mercado para com essas mercadorias fictícias (trabalho e terra), por meio de
uma crítica histórica, sociológica e ética, transpondo os elementos desta análise para o mundo
contemporâneo com o fenômeno da globalização, que cria um horror social e ecológico ao
desrespeitar os contratos sociais e naturais.
No terceiro Capítulo (“O direito como instrumento social de formação e controle do
mercado na proteção ambiental”), com base na necessidade social e ambiental de intervenção
do Estado (e do Direito) no âmbito da economia de mercado, defende-se a postura reguladora
do mercado na visão de que o capitalismo (neoliberalismo) deve ser visto como objeto
jurídico necessitado de controle normativo para garantia de outros valores sociais relevantes,
tal qual a preservação do meio ambiente natural.
A partir da análise de sociólogos consagrados por seus estudos vinculados à crise da
modernidade: Habermas e Luhmann, empenha-se em definir o papel do subsistema político e
jurídico em harmonizar o subsistema econômico e ecológico, com base em metodologia
sistêmica e multidisciplinar.
No quinto e último Capítulo (“A necessidade de integração normativa das esferas
social, econômica e ambiental (ético-ecológica) no desenvolvimento sustentável”) defende-se
a efetividade do conceito de desenvolvimento sustentável como fim do Estado Regulador,
em uma terceira via que não se esqueça da globalização e nem do papel do poder público
nacional e transnacional de proteção das dimensões ética, social, ecológica e econômica do
homem, permitindo a síntese valorativa dos recursos naturais por meio de atos comunicativos
13
A metáfora da “mão invisível” foi criada por Adam Smith em 1776 na obra “Inquiry into the nature and
causes of the wealth of nations” (SMITH, 1999, v. 1, p. 668).
71
72
eficazes que superem a dicotomia crescimento econômico a qualquer custo (Economia) e
preservação (Ecologia).
3.6 PARTE IV - A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS
PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E ECONÔMICA NO
CASO CONCRETO
Com a nova legislação hídrica brasileira, estabelece-se uma revolução metodológica
na proteção ambiental no Brasil, com a utilização de instrumentos econômicos e com a
participação da sociedade, simultaneamente, agrupadas em uma valoração da água de cunho
ético (a água como bem público, dotado de valor econômico, com a preferência pelo consumo
humano e pela dessedentação de animais, bem como a participação social na definição dos
múltiplos usos desta).
A Lei 9.433/97, fruto de longo debate no Congresso Nacional, resgata e concretiza
valores constitucionais que representam uma valorização de aspectos ecocêntricos (a água
passa a ser vista como um bem com valor íntrinseco – valor ecológico e econômico,
deixando de ser res nullius e res derelicta, há a prioridade do uso da água para a
dessedentação de animais, simbolicamente colocado ao lado do consumo humano), buscando
claramente, uma nova concretização da proteção ao meio ambiente, que busca transcender a
mera ética antropocêntrica, caracterizadora da legislação pretérita, que tornava a água
propriedade de um único indivíduo, permitindo uso e abuso deste recurso imprescindível para
o desenvolvimento sustentado do planeta.
Para Thame (2000, p. 16), secretário de Recursos Hídricos do Estado
economicamente mais desenvolvido da Federação Brasileira, há a necessidade de
conscientização da sociedade e do Governo da importância da água, verbis:
O sucesso na instituição da cobrança dependerá da consciência
ambiental do real valor da água. A conscientização, mobilização e
organização das comunidades se constituem nos elementos
motivadores para gerar a vontade política, isto é, para que a questão
dos recursos hídricos deixe de ser um assunto apenas técnico e de
ambientalistas esclarecidos, ganhe o “status” de reivindicação popular
prioritária e consiga sensibilizar governantes, a ponto de incluir a
matéria em suas agendas políticas. Por isso, espera-se que também no
Brasil ocorra a crescente tomada de consciência que se constata em
âmbito mundial, e que vem permitindo e impondo um novo enfoque
econômico, jurídico, político e administrativo para a questão, numa
abordagem que privilegia o planejamento em termos mais amplos:
consolida-se o consenso de que é necessário um gerenciamento
multinacional, nacional e regional sobre a água e sobre os
ecossistemas que reciclam e garantem a qualidade e a quantidade dos
estoques de água do planeta.
Um desses elementos, favorável à proteção ambiental no âmbito dos recursos
hídricos, é a noção de cidadão planetário, trazido pela noção do contrato natural referido por
Serrés14 (1994), existente entre todos os seres humanos e o Planeta Terra, que na verdade
14
“Portanto, o retorno à natureza! O que implica acrescentar ao contrato exclusivamente social a celebração de
um contrato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio
72
73
pode ser denominado Planeta Água, em face da presença do oceano em três quartos do
planeta.
A diminuição da intervenção estatal direta (por meio de instrumentos de comando e
controle), característica neoliberal do Estado, almeja novos modelos de regulamentação,
buscando a realização do bem-comum, tal qual a participação popular e a utilização de
instrumentos econômicos vinculados a modelos bem-sucedidos em outros países, que no
mundo globalizado, tornam-se vizinhos cada vez mais próximos nas conquistas e nas derrotas
ambientais.15
Assim, surgem indagações a serem respondidas nesta parte final da tese, com o
suporte das construções teóricas desenvolvidas nas partes anteriores, a saber: Como o Estado
Brasileiro está buscando, em um mundo globalizado, resguardar os valores éticos e
econômicos inseridos no bem público água? A nova lei de recursos hídricos pode ser vista
como um paradigma de síntese normativa dos valores éticos e econômicos analisados, nas
partes pretéritas deste trabalho? Como o subsistema normativo valoriza o subsistema Político,
por meio da participação da sociedade (Comitês de Bacia – “Parlamentos da Bacia”),
buscando influenciar, de forma efetiva, o subsistema Econômico a resguardar o subsistema
Ecológico e o subsistema Social da água?
A água sempre foi um símbolo de vida e de integração da relação Homem–Natureza.
Possui, pois, uma essência simbólica da visão cosmogênica holística biocêntrica de Gaia,16
assim como a de um bem com múltiplas utilizações, as quais ensejam uma ética de
solidariedade comunicativa17 para a resolução dos conflitos de interesses de seu uso.
O solvente universal ainda possui um valor econômico, tendo sido, no período
clássico da Economia, inclusive, menosprezado pela sua suposta abundância, em comparação
feita por Adam Smith e David Ricardo da água com o diamante e da água com o ar,
respectivamente, nas obras “Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações” e
“Princípios de Economia Política e Tributação” (Smith, 1999, p. 119-120; Ricardo, 1982, p.
117).18
Os recursos hídricos constituem-se, por outro lado, elementos primordiais para o
desenvolvimento sustentável, mecanismo basilar de superação e síntese dos aspectos éticos e
econômicos do meio ambiente.19
e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e o respeito, em que o conhecimento
não suporia já a propriedade, nem a acção o domínio, nem estes os seus resultados ou condições estercorárias.
Um contrato de armísticio na guerra objectiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do
hospedeiro, enquanto o parasita – o nosso actual estatuto – condena à morte aquele que pilha e o habita sem
ter consciência de que, a prazo, se condena a si mesmo ao desaparecimento” (SERRES, 1994, p. 65-66).
15
“O efeito de aceleração advindo das técnicas avançadas de comunicação e de transporte possui uma
importância totalmente diferente para a modificação a longo prazo do horizonte cotidiano de experiências. Já
os viajantes que utilizaram em torno de 1830 os primeiros trens relataram as novas formas de percepçâo do
espaço e do tempo. No século XX o transporte automobilístico e o aéreo civil novamente aceleraram o
transporte das pessoas e dos bens e fizeram com que as distâncias continuassem a se encolher também do
ponto de vista subjetivo. A consciência do espaço e do tempo é afetada de um outro modo pelas novas
técnicas de transmissão, armazenamento e elaboração de informações” (HABERMAS, 2001, p. 57).
16
Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE.
17
Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE.
18
Assim, também, lembra Villiers (2002, p. 47) “Nos círculos ecológicos e hidrológicos já virou clichê que a
água é a um só tempo nosso bem mais precioso e abundante. Muitos anos atrás, Adam Smith salientou que a
água, que é vital para a vida, não custa nada, enquanto os diamantes, totalmente inúteis à vida, custam uma
fortuna”.
19
Cf. Parte III – “O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR DE SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS
ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE”.
73
74
No âmbito econômico contemporâneo, até pouco tempo, a água era protegida,
predominantemente, como fator de produção utilizado no input do processo produtivo e nos
outputs indesejáveis do processo de fabricação.
Entretanto, a água sempre foi, é e será um fator de produção para o desenvolvimento
econômico, social e ecológico.
Assim, no primeiro Capítulo desta parte do trabalho (“A água como recurso natural
fundamental ontem, hoje e amanhã”), analisa-se a importância da água para os pré-socráticos,
a água como símbolo cultural da integração do homem com a Natureza, bem como a visão
atual de que a água é um recurso limitado, para, por fim, sugerir que a água, pela sua
relevância ecológica e econômica, poderá ser o “diamante” azul do século XXI.
A análise da água, nesta parte, almeja destacar seu relevante valor para o Homem, a
Natureza, a Economia, a Ecologia, a Sociedade e a complexa relação sistêmica que os une.
No segundo Capítulo (“A contribuição internacional na gestão dos recursos hídricos
e a construção de um direito fundamental à água”), comparam-se as diferentes abordagens
internacionais à gestão da água, para demonstrar a existência de denominadores comuns –
esferas privadas e públicas da água. Também, visa-se mostrar, por meio das declarações
internacionais, a emergência de um direito fundamental de acesso à água.
Nesta análise tópica do direito comparado, destacam-se três modelos, com influência
no paradigma brasileiro incorporado na Lei 9.433/97, a saber: o modelo francês (o de maior
influência, responsável pela adoção da bacia hidrográfica como elemento básico da gestão de
águas), o modelo alemão (que se assemelha à problemática federativa brasileira) e o modelo
americano (que enfatiza os mecanismos de mercado e a esfera privada da água, tornando a
água uma mercadoria sujeita às leis de mercado).
Aprecia-se, de forma crítica, as vantagens e desvantagens de cada um destes
modelos, por meio de uma visão histórica, hidrológica e jurídica.
No terceiro Capítulo (“A política nacional de recursos hídricos (lei federal n.
9.433/97 e a cobrança pela utilização da água no Brasil”), procura-se caracterizar os institutos
jurídicos previstos nesta legislação inovadora e suas dificuldades de implementação fáticas,
com base na análise e interpretação do domínio normativo20 dos dispositivos previstos na
legislação referida sob a perspectiva de uma interpretação sistemática que não esqueça dos
princípios constitucionais e dos valores a eles subjacentes.
No quarto Capítulo (“A cobrança pela utilização da água na política nacional
brasileira de recursos hídricos”), busca-se analisar os institutos jurídicos positivados
fundamentais ao trabalho: a natureza jurídica da água, a natureza jurídica da outorga de uso e
a natureza jurídica da cobrança.
No quinto Capítulo (“Desafios jurídicos institucionais da gestão integrada e
participativa por Bacia em um País Federado”), verificam-se os contornos jurídicos do
Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGERH) com destaque para as
dificuldades de integração das diferentes esferas federativas na necessária gestão ambiental e
hídrica por bacia, para a análise pontual de questões jurídicas controversas como a
20
“As normas consagradoras de direitos fundamentais protegem determinados <<bens>> ou <<domínios
existenciais>> (exemplo: a vida, o domicílio, a religião, a criação artística)> Estes <<âmbitos>> ou
<<domínios>> protegidos pelas normas garantidoras de direitos fundamentais são designados de várias
formas: <<âmbito de proteção>> (<<Schutzbereich>>), <<domínio normativo>> (<<Normbereich>>) [...]
preferimos falar aqui em <<domínio normativo>>, para recortar, precisamente, aquelas <<realidades da
vida>> que as normas consagradoras de direitos captam como <<objecto de protecção>>”. (CANOTILHO,
1993, p. 632).
74
75
competência dos Municípios e das Regiões Metropolitanas e para a análise concreta dos
desafios do Comitê da Bacia do Rio São Francisco.
No sexto e último Capítulo (“Mecanismos normativos de resolução da lide pela
água”), destaca-se a multivaloração ética e econômica da legislação, buscando traçar
diretrizes para aplicação e resolução dos conflitos existentes entre “proteger o consumo
humano e a dessedentação de animais (valores éticos)” com os “outros usos” da água,
diretamente vinculados ao desenvolvimento econômico e eivados de preocupações
fundamentalmente antropocêntricas, por meio da aplicação de uma ética discursiva, fundada
na participação, na subsidiariedade da ação estatal e no respeito às particularidades concretas
de uma determinada Bacia Hidrográfica.
75
76
PARTE I
DIMENSÃO
ÉTICA
DO
MEIO
AMBIENTE:
PLURALIDADE DE FUNDAMENTOS PARA A
NECESSÁRIA
EVOLUÇÃO
DA
VISÃO
ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA
O ser humano e a natureza na História. Meio ambiente sadio: interesse exclusivo do
homem. Ética aristotélica e macroética ambiental. Espécies de macroéticas quanto
aos atores do consenso: noções básicas da ética antropocêntrica e ecocêntrica. Ética
antropocêntrica na visão do cartesianismo e do evolucionismo. Fundamentações
teóricas de uma ética ecocêntrica e a personalidade jurídica.
“O homem é a medida de todas as
coisas.”
Protágoras
“A natureza trabalha no método de um
por todos e todos por um.”
Ralph Waldo Emerson
76
77
1 O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA
1.1 A RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA: EVOLUÇÃO DE SUJEITO
PASSIVO PARA ATIVO
1.1.1 A modificação do meio ambiente: evolução
Conforme destaca Carson (1994, p. XV), a história da vida na Terra caraterizou-se
sempre pela interação entre os seres vivos e o seu ambiente. Entretanto, somente a partir do
século XX, uma das espécies – o ser humano – adquiriu tamanho poder de modificar o meio
ambiente.21
Do mesmo modo, Thomas (1988, p. 21-25), ao tratar da visão inglesa da Natureza
nas dinastias dos Tudor (1485-1603) e Stuart (1603-1714), séculos XV e XVIII, ressaltava a
absoluta superioridade do homem em relação aos outros seres animados e inanimados, o que
fundamentaria a sua relação de senhor da natureza, destacando:
[...] a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do
homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e
necessidades [...] A natureza não fez nada em vão, disse Aristóteles, e
tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos
animais e esses para o bem dos homens. Os animais domésticos
existiam para labutar, os selvagens para serem caçados
[...] Os vegetais e minerais eram considerados da mesma maneira,
Henry More pensava que seu único propósito era estender a vida
humana. Sem a madeira, as casas dos homens não passariam de “uma
espécie maior de colméias ou ninhos construída de gravetos e palha
desprezíveis e de imunda argamassa”; sem os metais, os homens
teriam sido privados da “glória e pompa” da batalha, ferida com
espadas, armas e trombetas; em vez disso, haveria somente “os uivos e
brados de homens pobres e nus espancando-se uns aos outros [...] com
porretes, ou brigando tolamente aos murros” Até mesmo as ervas
daninhas e os venenos tinham seus usos essenciais, notava um
herbanário: exercitavam “o engenho humano em eliminá-los [...] Não
tivesse ele nada contra que lutar e o lume de seu espírito estaria em
parte extinto.
21
Neste livro, considerado um clássico da proteção ambiental norte-americana e mundial pela novidade de sua
abordagem protetiva da natureza, publicação original (1962), a autora retrata, de forma detalhada e poética, a
destruição da natureza pelo homem. Na sua edição mais recente, o, então, Vice-presidente Al Gore, em
emotiva e exaltadora introdução à autora, destaca que: “Writing about Silent Spring is a humbling experience
for an elected official, because Rachel Carson’s landmark book offers undeniable proof that the power of an
idea can be far greater than the power of politicians. In 1962, when Silent Spring was first published,
´environment´ was not even an entry in the vocabulary of public policy. In a few cities, especially Los
Angeles, smog had become a cause of concern [...] Silent Spring came as a cry in the wilderness, a deeply
felt, throughly researched, and brilliantly written argument that change the course of history” (CARLSON,
1994, p. XV).
77
78
Entretanto, a relação do homem com a natureza modificou-se ao longo da sua
existência. Durante milhares de anos, desde a Pré-história até o Período Neolítico, a relação
entre o Homem e o meio ambiente que o rodeava caracterizou-se pela resignação do Homem
aos fenômenos naturais.22
Havia passividade do ser humano com relação à natureza. Os principais problemas
ambientais com os quais o Homem se defrontava, eram as catástrofes naturais, como
tempestades, terremotos ou inundações, a que estava sujeito e que via suceder
incompreensível e incontrolavelmente.
A força dos fenômenos naturais inspirou no Homem um temor reverencial profundo
pelas manifestações da Natureza, por não conseguir explicá-las a contento.
Conforme afirma Aragão (1997, p. 17) “Numa tentativa de compreensão,
antropomorfizou os elementos naturais que o rodeavam e transformou as suas manifestações
em ‘estados de espírito’ da Natureza”.
Na evolução da interação entre homem e natureza, grande marco foi a capacidade
humana de lidar com o fogo. Constituiu mecanismo de atuação do homem sobre a natureza
para moldá-la em seu benefício. Também foi a primeira extração química de energia. 23
Outro passo evolutivo relevante foi a prática agrícola, em que ocorre, talvez, a mais
expressiva modificação da situação de passividade do homem em relação à natureza. Nesse
sentido, Roberts (2000, p. 17) ensina:
Os primeiros assentamentos agrícolas tiveram vida curta; os primeiros
lavradores talvez ainda fossem cultivadores razoavelmente instáveis e
talvez praticassem a chamada agricultura do “corta e queima” [...]
Escolhe-se uma área de floresta (é provável que o solo seja bom por
causa do húmus acumulado pelas folhas e pelos detritos decompostos)
e as árvores são abatidas a corte [...] Depois de alguns anos a
vegetação rasteira torna-se novamente espessa demais [...] Durante
muito tempo toda a agricultura foi feita assim.
Observa-se, também, que a origem da agricultura ocorre junto com a domesticação
de animais; é atribuída ao período neolítico, indicando afastamento da vida nômade do
caçador-coletor. Está associada à vida sedentária, ao desenvolvimento dos assentamentos
permanentes e à aparição dos primeiros recipientes de barro para cozinhar e armazenar
alimentos (MORAES, 1996, v. 1, p. 45).
Contudo, à medida que o Homem foi adquirindo conhecimentos científicos, que lhe
permitiam explicar a complexidade dos fenômenos naturais do meio ambiente, foi perdendo o
respeito religioso pela Natureza. Os meios técnicos que dominava, contudo, eram ainda
escassos e demasiadadamente rudimentares para que conseguisse vencer a Natureza, controlála ou pô-la ao seu serviço.
22
“Esse seria o panorama dominante até o Neolítico, durante o qual o homem se tornou sedentário e passou a se
dedicar à agricultura. Começaram, então, a ser mais diferenciadas e especializadas as funções” (MORAES,
1996, p. 45). No mesmo sentido, Huberman (1986, p. 3), ressalta que a estratificação social de funções tornase possível com a agricultura: “Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e
padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pregadores e lutadores existia, na Idade
Média, um outro grupo: os trabalhadores”.
23
“Imediatamente significou calor e luz, a conquista do frio e da escuridão [...]. As famílias podiam sobreviver
mais do que antes em regiões mais frias e podiam habitar zonas temperadas com um pouco mais de
facilidade” (ROBERTS, 2000, p. 32-33).
78
79
Conforme enfatiza Jonas (1995, p. 26), em visão integradora da civilização, da
urbanização e da ação humana no meio ambiente:
[...] el hombre construye uma morada para su propria humanidad, a
saber: el artefacto de la ciudad. La profanación de la natureza y la
civilización de sí mismo van juntas. Ambas se rebelan contra los
elementos; la primera, por cuanto em el refugio de la ciudad y sus
leyes erige um enclave contra ellos. El hombre es el creador de su
vida como vida humana; somete las circunstancias a su voluntad y
necesidades y, excepto ante la muerte, nunca se encuentra inerme.
Inicia-se já entretanto, o uso econômico dos bens da natureza que, inclusive,
apresentavam-se como instrumentos de troca, conforme ensina Gilissen (1986, p 44):
Os bens de consumo corrente, sobretudo os alimentos, parece terem
sido alienados relativamente cedo, mas sobretudo sob a forma de
troca, uma vez que a moeda ainda não existia. Certas formas entre as
mais curiosas são o comércio dito “mudo” e o potlach.
No comércio mudo, um grupo depõe num dado lugar, em que sabe
que outro grupo passará os bens que deseja trocar, e depois abandona
o lugar; o outro grupo examina o que lhe é oferecido, põe outras
mercadorias ao lado, e depois retira-se [...].
O potlach, conhecido sobretudo dos Índios da América, mas também
dos Berberes, e sob o nome de Kula entre ao Polinésios, é a dádiva
pública e ostentatória de bens, de riquezas, ou até escravos, por um
grupo a outro. É uma espécie de desafio, porque o outro não pode
recusar; ele deve reagir aceitando, e entregando ao primeiro grupo de
bens do valor pelo menos igual. A operação está assim impregnada de
um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo
tempo, de uma certa ostentação de poder sem obrigar ao combate.
Até a Revolução Industrial, a utilização econômica dos recursos naturais não
conduziu à exaustão os recursos finitos e manteve a capacidade de auto-regeneração dos
recursos renováveis; também não gerou poluição. Porém, a passagem da economia de
subsistência para a economia de mercado e o avanço verificado nos conhecimentos científicos
e técnicos, após a Revolução Industrial, representaram salto qualitativo nos meios ao dispor
do Homem para controlar e utilizar economicamente os recursos naturais. Dá-se crescimento
exponencial da intensidade e da extensão de exploração econômica dos recursos ambientais.24
Para o homem, a Natureza é “reservatório de bens disponíveis”. No primeiro tratado
sobre o governo, Locke (1998, p. 299) afirma que os homens têm direito, inclusive, à
destruição da propriedade:
A propriedade, cuja origem se encontra no direito que tem o homem
de utilizar qualquer uma das criaturas inferiores para a subsistência e
conforto de sua vida, destina-se ao benefício e vantagem exclusiva do
proprietário, de forma que este poderá até mesmo destruir, mediante o
uso, aquilo de que é proprietário, quando o exija a necessidade [...]
Para o homo economicus, surgido com o liberalismo, a Natureza é um bem comum,
sujeito à apropriação pelo trabalho individual. No segundo tratado sobre o governo, Locke
24
Pesquisa divulgada pela revista Science revela que as ações humanas contra o meio ambiente tem origem na
Idade da Pedra. Os povos da antigüidade, portanto, antes da Revolução Industrial, já causavam expressiva
degradação ambiental (AGRESSÃO À NATUREZA É ANTIGA, 2001, p. 17).
79
80
(1998, p. 409-410) afirma que os homens têm direito à própria preservação e a tudo quanto a
natureza lhes fornece para a subsistência; por meio do trabalho, torna-se propriedade
privada daquele que a explora:
[...] Aquele que se alimenta das bolotas que apanha debaixo de um
carvalho ou das maças que colhe nas árvores do bosque com certeza
delas apropriou-se para si mesmo. Ninguém pode negar que o
alimento lhe pertença. Pergunto então quando passou a pertencer-lhe:
Quando o digeriu? Quando o comeu? Quando o ferveu? Quando o
levou para casa? Ou quando o apanhou? Fica claro que, se o fato de
colher o alimento não o fez dele, nada mais o faria. Aquele trabalho
imprimiu uma distinção entre esses frutos e o comum, acrescentandolhes algo mais do que a natureza, mãe comum de todos, fizera; desse
modo, tornaram-se direito particular dele.
Destaca-se, pois, na visão de Locke, que a propriedade do comum torna-se privada
com a exploração da natureza. Portanto, incentiva-se, por meio da exploração da natureza, a
aquisição da propriedade de coisas até então comuns. O trabalho do homem permite o “toque
de midas” na transformação do público (de todos) em privado.25
Ressaltando o marco da revolução industrial na história da proteção ambiental,
Aragão (1997, p. 19-20) assinala:
Com a revolução industrial, os papéis inverteram-se e
Natureza que carece de proteção contra a ação humana.
Os problemas ambientais com que o Homem moderno se
não são as catástrofes naturais de outrora, mas os efeitos
quantas vezes irreversíveis, que derivam de rupturas
equilíbrio ecológico pela acção do Homem.
agora é a
defronta já
nefastos, e
graves do
Antecedendo à Revolução Industrial, na Inglaterra dos séculos XV e XVIII, havia
uma série de justificativas para a superioridade humana em relação à Natureza; conforme bem
descreve Thomas (1988, p. 37), a busca do atributo diferenciador do homem em relação aos
outros seres foi um dos mais sérios desafios enfrentados pelos filósofos ocidentais:
Assim, o homem foi descrito como animal político (Aristóteles);
animal que ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utensílios
(Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund Burke); e um animal
que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como
observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi
definido como bípede implume, como animal que forma opiniões e,
ainda, animal que carrega um bastão. O que todas essas definições têm
em comum é que assumem uma polaridade entre as categorias
25
Nesse sentido, o revogado Código Civil (Lei nº 3.071, de 1o de Janeiro de 1916) dispõe nos seus arts. 592 a
610 sobre a ocupação, modo originário de aquisição de propriedade móvel, dos quais a caça e a pesca são
espécies. Sob tal direção, significativo o teor do art. 593, verbis: “São coisas sem dono e sujeitas à
apropriação: I - os animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; II - os mansos e domesticados
que não forem assinalados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam recolher-se, salvo a
hipótese do art. 596; III - os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colmeia, a que
pertenciam, os não reclamar imediatamente; IV - as pedras, conchas e outras substâncias minerais, vegetais ou
animais arrojadas às praias pelo mar, se não apresentarem sinal de domínio anterior”. O Novo Código Civil
(Lei nº 10.406, de 1o de Janeiro de 2002) continua dispondo sobre a ocupação no art. 1.263: “Quem se
assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”.
80
81
“homem” e “animal” e que invariavelmente encaram o animal como
inferior.
A superioridade humana, também, pode ser inferida da obra de Locke (1998, p. 408409), ao expor que a pessoa humana tem o poder, por meio de elementos intrínsecos a ela
(“trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos”), de transformar em próprio o que
originariamente era de todos os homens:
Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos
os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa.
A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de
seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele.
Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a
proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que
é seu, transformando-a em sua propriedade.
1.1.2 A mutação do conceito de natureza
Godard (1997, p. 248-253) ressalta a evolução dos conceitos de Natureza, em face do
enfoque dos discursos econômicos e da proteção do meio-ambiente, demonstrando a íntima
correlação entre a natureza e os sistemas econômicos, bem como a subordinação desta ao
Homem, notadamente com o sistema capitalista na visão de Natureza mercadoria e
Natureza industrial:
• a Natureza mercadoria (a Natureza é protegida porque e na medida
em que é fonte de mercadorias);
• a Natureza industrial (a Natureza é protegida porque e na medida em
que é “útil e funcional”, prestando serviços à indústria);
• a Natureza cívica (a protecção da Natureza traduz-se em garantir o
acesso a ela do maior número possível de cidadãos: estabelecer a
igualdade fundamental dos cidadãos face à Natureza. A Natureza é
valorizada por uma boa administração pública);
• a Natureza do renome (a Natureza só é protegida quando e na
medida em que se encontre incorporada em figuras mobilizadas pelos
mass media: um <<monumento>>, a <<paisagem>>, o <<turismo
cultural>>, e sobretudo se estiver sujeita a ameaças de tipo
<<catastrófico>>. A importância da Natureza depende dos índices de
notoriedade demonstrados em sondagens de opinião);
• a Natureza inspirada (a Natureza é o meio simbólico de acesso ao
que está para lá do Homem, e aquilo que põe limites à sua acção
identificando-se muitas vezes com uma visão religiosa);
81
82
• a Natureza doméstica (a Natureza está organizada segundo a
clivagem selvagem/doméstico segundo uma hierarquia de
proximidade à “casa”, A Natureza é o suporte simbólico da identidade
de um grupo social e traduz-se na categoria de <<patrimônio
natural>>).
A classificação de Olivier (apud ARAGÃO 1997, p. 20) destaca que:
[...] a consciência social da importância dos problemas ambientais não
foi imediata, também a reacção da própria comunidade científica,
nomeadamente da Ciência Econômica, a este estado de coisas, foi
diferida e paulatina.
1.2 A CONSCIENTIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NO MUNDO
CONTEMPORÂNEO
A história recente da humanidade é marcada por avanços jamais vistos no domínio
das técnicas e dos processos de produção de bens materiais. Hoje não só somos capazes de
produzir em quantidades maiores e com melhor qualidade tudo o que nossos antepassados
produziam, como temos, também, acesso a produtos que, há vinte anos atrás, não seriam
sequer imagináveis. Todo esse avanço, todavia, não terá o seu preço?
A preocupação com temas ambientais vem se tornando mais intensa com a entrada
no século XXI. Na Carta de São Francisco, que criou a Organização das Nações Unidas, o
tema não se apresentava com o destaque contemporâneo. Em 3 de Abril de 2000, o
Secretário-Geral da ONU, Kofi A. Annan, apresentou à Assembléia-Geral o relatório do
milênio. Nesse relatório, são identificados desafios ambientais e apresentadas soluções, no
Capítulo V, intitulado “Sustaining on Future”.
Assim, Annan (2000, p. 25) afirma:
Os fundadores das Nações Unidas estabeleceram, nas palavras da
Carta de São Francisco, o objetivo de promover o progresso social e
melhores padrões de vida por meio dos direitos fundamentais – acima
de tudo, liberdade de escolha e liberdade sem opressão. Em 1945, eles
não puderam, entretanto, antecipar a necessidade urgente e atual de
realização de um terceiro direito fundamental: o direito das gerações
futuras de terem suas existências garantidas no nosso planeta. Nós
estamos falhando na realização dessa garantia. Na verdade, nós estamos
legando a nossos filhos uma herança de arcar com nossas práticas
destruidoras do meio ambiente.
Para solucionar essa problemática, Annan (2000, p. 29-30) sugere a construção de
uma nova ética global, baseada em quatro objetivos:
- incremento da informação pública para que os
consumidores do mundo todo entendam que as suas
opções de consumo têm conseqüências ambientais
relevantes;
82
83
- colocação de temas ambientais nas políticas públicas,
evitando o trato isolado da questão ambiental a um único
Ministério;
- criação pelo Estado de mecanismos reguladores de mercado
incentivadores da proteção ambiental, cortando subsídios de
atividades econômicas poluidoras;
- criação de um sistema mundial de avaliação ambiental
(“Millennium Assessment of Global Ecosystems”), com o
objetivo de mapear a saúde da terra.
Verifica-se, pois, que todos os quatro objetivos elencados vinculam a questão
ambiental à econômica, o primeiro objetivo, ao tratar da relação entre os bens e os reflexos
ambientais de seu consumo. O segundo, com a colocação do tema ambiental nas políticas
públicas, inclusive com a realização de uma contabilidade pública que leve em conta os custos
e benefícios ambientais. O terceiro objetivo, com a intervenção estatal sobre o mercado. O
quarto, com o financiamento de um sistema de informação ambiental universal (ANNAN,
2000, p. 29-30).
Desde o final da Segunda Guerra Mundial, mais acentuadamente a partir dos anos
sessenta, a comunidade cientifica passou a preocupar-se com os danos ambientais - resultantes
do modelo de desenvolvimento tecnológico e econômico adotado - e suas conseqüências para
a sobrevivência de todas as espécies de vida neste planeta (DIAS, 1997, p. 11).
Em 1968, grupo de estudiosos publicou ensaio intitulado Limites do Crescimento,
onde sugerem resposta a essa pergunta: o ritmo de crescimento da economia mundial só se
sustenta graças à exploração crescente e insustentável dos recursos naturais e ao
comprometimento das condições do meio ambiente humano. Esse estudo teve grande
repercussão e gerou uma série de previsões catastróficas quanto ao futuro da Terra. Dizia-se,
por exemplo, que, até o ano 2000, ter-se-iam, praticamente, esgotado as reservas de
combustíveis fósseis (petróleo e carvão), o que tornaria insustentável a continuidade das
economias modernas (FAUCHEUX; NÖEL, 1995, p. 17).
Esse relatório foi encomendado pelo Clube de Roma26 e elaborado por grupo de
pesquisadores coordenados por Dennis Meadows (que deu o nome ao relatório). Nesse
documento, foram apresentadas algumas conclusões básicas. Dentre estas, destacam-se as
seguintes:
• Se as atuais tendências de crescimento da população mundial,
industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de
recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento
neste planeta serão alcançados
algum dia dentro dos próximos
26
“O Clube de Roma foi criado em Abril de 1968, por sugestão do industrial italiano Aurelio Peccei (19081984). Em março de 1972, com uma considerável repercussão, o Clube lançou o relatório“The Limits to
Growth”, preparado a seu pedido por uma equipe [...] do Núcleo de Estudos de Dinâmica dos Sistemas),
dirigido pelo Professor Jay Forrester, no Massachussetts Institute of Technology (MIT). O Relatório
Meadows, que tem o nome dos principais redatores, o casal Donella e Dennis Meadows, fez sensação. O
público, chocado, reagiu vivamente, mas os adeptos do crescimento econômico e do desenvolvimento
industrial conseguiram minimizar a gravidade da situação descrita no relatório, acusando imediatamente os
seus autores de alarmistas e de espalharem a catástrofe” (GRINEVALD, 1995, p.38).
83
84
cem anos. O resultado mais provável de se alcançar este limite será de
um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da
capacidade industrial.
• É possível modificar estas tendências de crescimento e formar uma
condição de estabilidade ecológica e econômica que se possa manter
até um futuro remoto. O estado de equilíbrio global poderá ser
planejado de tal modo que as necessidades materiais básicas de cada
pessoa na Terra sejam satisfeitas e que cada pessoa tenha igual
oportunidade de realizar seu potencial humano individual.
• Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter este
segundo resultado (estabilidade ecológica e econômica) , em vez de
lutar pelo primeiro, quanto mais cedo ela começar a trabalhar para
alcançá-lo, maiores serão suas possibilidades de êxito (MEADOWS et
al., 1972, p. 20).
A divulgação do Relatório Meadows, em maio de 1972, contendo proposta de
"congelamento do crescimento da população global e do capital industrial, em função da
limitação dos recursos", repercutiu negativamente no hemisfério norte e sul. Para o hemisfério
norte, visualizou-se diminuição da oportunidade de crescimento e melhoria da qualidade de
vida de sua população. Os países em desenvolvimento do hemisfério sul, por outro lado,
viram o Relatório como forma de manutenção do patamar de subdesenvolvimento e de
dependência aos países desenvolvidos, "justificando, essa prática, com retórica ecologista"
(BRÜSEKE, 1995, p. 30).
Alguns meses depois da bombástica divulgação do Relatório Meadows, foi realizada
a Conferência Mundial sobre o "Meio Ambiente Humano", em Junho de 1972, cujo tema
central se dirigia às relações entre o homem, o meio ambiente e a "poluição" urbana. No
âmbito dessa Conferência, foram estabelecidos vinte e três princípios com objetivo de
orientar a humanidade para a preservação e melhoria do ambiente humano. Com a
criação da Comissão Brundtland pela ONU em 1983, novos princípios, em escala evolutiva
crescente, são contemplados: a necessidade de preservação dos recursos naturais da Terra para
as atuais e futuras gerações; a manutenção, restauração ou melhoria da capacidade da Terra de
produzir recursos renováveis vitais; o reconhecimento do desenvolvimento econômico e
social como indispensável para assegurar ao homem ambiente de vida e trabalho favorável; e,
ainda, a necessidade de promover o desenvolvimento acelerado dos países subdesenvolvidos,
com a transferência maciça de recursos financeiros e tecnológicos (COMISSÃO MUNDIAL
SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 388-391).27
Paralelamente a esses debates, a sociedade civil americana e européia, organizou-se
para protestar, publicamente, contra a destruição do meio ambiente. Manifestações
ambientalistas cresceram, de forma exponencial, na década de 80, à medida em que foram
acontecendo vários desastres ecológicos, que afetaram a vida de milhares de pessoas, em
diferentes partes do mundo.28
27
28
“O relatório Brundtland, publicado em 1987, foi redigido pela Comissão para o Ambiente e o
Desenvolvimento da ONU, presidida por Gro Harlem Brundtland, então primeira-ministra da Noruega. O
relatório, chamado Our Commom Future, identifica os principais problemas ambientais que ameaçam e
entravam o desenvolvimento de muitos dos países do Sul: o crescimento demográfico, o esgotamento dos
solos provocado pela criação de gado e pela agricultura em excesso, a desflorestação, a destruição das
espécies, a alteração da composição química da atmosfera, que desestabiliza o clima mundial, etc. Segundo o
relatório, a proteção do ambiente deve ser uma prioridade internacional que obrigue a uma vasta
redistribuição dos recursos financeiros, científicos e tecnológicos à escala do Planeta” (DELÉAGE, 1995b, p.
43).
“Se nos anos 60 a preocupação científica pela questão ecológica está já consolidada e projetando-se sobre a
84
85
Tais movimentos representaram a tomada de consciência, pelos cidadãos comuns, de
que os altos níveis de poluição do ar, da água, do solo, a destruição das florestas e os demais
desastres ecológicos teriam suas raízes no modelo de desenvolvimento tecnológico e
industrial adotado. Nesse sentido, Deléage (1995a, p. 44) afirma:
A consciência ecológica permite distinguir duas representações da
natureza que apesar de serem falsas devido à sua extrema
simplificação, ainda predominam. A primeira assenta na divinização
duma antiga natureza e no desejo de voltar a um estado original que,
evidentemente, nunca existiu, a não ser nas fantasias da sociedade
contemporânea. A segunda, corresponde a uma imagem que se
impôs a partir do início da revolução industrial: a natureza não
seria mais do que uma simples realidade físico-química,
controlável por técnicas cada vez mais poderosas, segundo uma
lógica puramente economica e financeira (grifo nosso).
Com isso, segmentos da sociedade começaram a questionar o modelo de
desenvolvimento econômico, que visualiza a natureza como algo submetido à estrita
lógica do econômico-financeiro. Essas manifestações da sociedade civil, repudiando
publicamente as conseqüências nefastas da exploração da Natureza, tiveram grande
repercussão junto aos políticos, que passaram a colocar, como linha de frente de seus
discursos, as questões ambientais.
Nesse aspecto, na evolução da consciência mundial sobre a proteção do meio
ambiente, deve ser destacado o conceito de desenvolvimento sustentado, inicialmente
delineado no Relatório BRUNDTLAND,29 implementado na ECO92 30 e já objeto de controle
na RIO +10, realizada em Johannesburgo (África do Sul) em 2002 .31
Apesar de literatura mais recente Lomborg (2002), demonstrar que em determinadas
áreas houve melhora das condições ambientais do mundo, a preocupação com o meio
ambiente é assunto vinculado a própria existência do homem no século XXI. Nesse aspecto,
Gorbachev (2003, p.21-26) destaca que junto com a paz e a luta contra a pobreza, a proteção
do meio ambiente encontra-se entre os desafios contemporâneos.
opinião pública mundial (Rachel Carlson publica seu famoso Silent Spring em 1962, e a partir de 1968 o
Clube de Roma começou a trabalhar na série de seus famosos relatórios científicos), do mesmo modo, nos
anos 70, o ambientalismo não-governamental se encontra firmemente institucionalizado dentro das sociedades
americana e européia” (LEIS; AMATO, 1998, p. 80).
29
Cf. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE e DESENVOLVIMENTO (1991, p. 388-391).
30
Cf. Agenda 21 (1997, p. 13).
31
“Reaffirming in this regard the commitment to achieving the internationally agreed development goals,
including those contained in the United Nations Millennium Declaration, and in the outcomes of the major
United Nations conferences and international agreements since 1992” (UNITED NATIONS, 2002).
85
86
2 “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO DO HOMEM?
2.1 MEIO AMBIENTE: CONCEITO ABERTO PARA A PROTEÇÃO DAS PESSOAS E
DOS SERES EM GERAL
2.1.1 Meio ambiente: conceito
Diversos autores encontram dificuldade em dar uma definição ao termo
“ambiente”. A conceituação de “ambiente” é problemática por duas razões fundamentais:
a primeira, a abrangência; a segunda, a grande diversidade de significados.
O termo ambiente engendra variedade de significados, conforme o aspecto em
que é considerado. Na linguagem comum, pode ser entendido como “a esfera, o círculo, o
âmbito que nos cerca, em que vivemos” (SILVA, J., 1994, p. 1). Ainda, “o complexo de
relações entre o mundo natural e o ser vivo [que entendo só possa ser o humano], as quais
influem na vida e no comportamento do mesmo ser” (DOTTI, 1979, p. 501). Ou,
finalmente, “o conjunto dos sistemas físicos, químicos, biológicos e suas relações, e dos
fatores econômicos, sociais e culturais com efeito direto, ou indireto, mediato ou
imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem”.32
Observa-se que a definição de meio ambiente é aberta não só a proteção do
homem, mas, também, a todos os seres naturais.
Em face à necessidade metodológica
de definição de um conceito de meio
ambiente, para o presente trabalho, os
estudos, dirigidos para estabelecer a noção
jurídica do meio ambiente, foram divididos
em dois grupos conceituais: um no direito
comparado e outro no direito nacional.
2.1.2 Meio ambiente: conceito no direito comparado
Entre os especialistas italianos não se pode deixar de mencionar Giannini (1997, p. 2)
que, em 1973, foi dos primeiros autores a elaborar o conceito jurídico do termo “ambiente”
muito utilizado por doutrinadores brasileiros, definindo-o juridicamente sob três
conceituações:
− Cultural: o ambiente enquanto conservação da paisagem incluindo
tanto as belezas naturais quanto os centros históricos;
32
Lei no 11/87 (Lei de Bases do Ambiente, lei ambiental portuguesa de 07/04/1987). A Constituição Portuguesa,
desde a sua versão originária de 1976, inclui o ambiente no elenco dos direitos e deveres fundamentais dos
cidadãos, fazendo parte do Título que dedica aos direitos e deveres econômicos, sociais e culturais.
86
87
− Sanitária: o ambiente enquanto normativa relacionada com a defesa
do solo, do ar e da água; e
− Urbanística: o ambiente enquanto objeto da disciplina urbanística.
Tais conceitos, dados por Giannini, foram apoiados por muitos estudiosos e, também,
criticadas por outros, já que sugerem visão não-global do termo ambiente.33
Martín Mateo (1977, p. 74-75) concorda com Giannini quando subdivide o conceito
de ambiente em elementos constitutivos; esclarece, porém, que é necessário identificar quais
destes elementos devem ser considerados juridicamente relevantes, verbis:
Es evidente que en todos estos casos se trata má bien de
declaraciones de principio lejanamente orientadores de la política del
Derecho que de la adopción de postulados de trascedencia jurídica
inmediata. La posibilidad de acuñar en sentido técnico un Derecho
ambiental no puede hacerse sobre tales bases y exige una formulación
de objetivos concretos a cyo servicio, con una cierta coherencia
lógico-jurídica, se instrumentará un determinado sistema normativo
(36 bis) [...]
Pero en términos de operatividad es preciso llegar a una delimitacion
más estricta del concepto jurídico del medio ambiente que permita
perfilar el campo de esta disciplina superando tanto las
aproximaciones genéricas y meramente programáticas, como las
parcelaciones inconexas a que ha dado lugar el arrastre de una
legislación precedente que aisladamente se preocupaba de la higiene,
del orden público, del régimen sanitário de las aguas, etc. (39). El
problema ha sido visto com nitidez por Giannini al catalogar tres
posibles versiones del concepto del ambiente: el ambiente en cuanto
conservación del paisaje incluyendo tanto las bellezas naturales como
los centros históricos; el ambiente en cuanto normativa relacionado
con la defensa del suelo, del aire y del agua; y el ambiente en cuanto
objeto de la disciplina urbanistica.
Interpretando a definição de Giannini como sendo a individualização de três setores
nos quais o termo “ambiente” apresenta significados diferentes, podemos a eles associar os
respectivos bens ambientais. Assim, no primeiro setor, a conservação da paisagem, seja
natural ou artificial (monumentos, centros históricos); no segundo, a relacionada com a defesa
do solo, do ar e da água; e no terceiro, como objeto da disciplina urbanística. Essa definição
expressa, essencialmente, a idéia do ambiente como objeto de normas jurídicas, dividida em
três tipos de elementos: paisagem (natural ou artificial), recursos naturais e urbanismo.
Conti (apud SILVA, J., 1994, p. 2), faz referência à sentença no 210/87 da Corte
Constitucional Italiana, destaca a necessidade de apreciação unitária da questão ambiental,
não obstante possua diferentes aspectos:
Questa sentenza osserva che l'ambiente, nonostante possa essere
fruitibile in varie forme e differenti ruoli e possa essere oggeto di
numerose norme che assicurano la tutela dei diversi profili in cui si
estrinseca, deve essere considerato un bene unitario. Tale
concezione, sai per la Corte Costituzionale che per noi va riferita alla
33
“Portanto, para Giannini inexiste uma noção unitária de ambiente, posto que este pode ser considerado como
paisagem (noção cultural), como bem sanitário ou, ainda, como ordenamento do território (noção
urbanística)” (MUKAI, 1994, p. 5).
87
88
‘qualità della vita’, allo ‘habitat naturale’ nel quale l'uomo vive e
agisce come elemento necessario alla collettività, ossia i concetti che
hanno un indubbio valore unificante che prescindono da una visione
separata delle singole componenti ambientali (grifo nosso).
Martín Mateo (1977, p. 72-73) entende que o conteúdo semântico da palavra
ambiente, em termos gerais, corresponde à expressão inglesa environment e à francesa
environnement, verbis:
La palabra ambiente, en términos generales, corresponde a la
expresión inglesa ‘environment’ y francesa ‘environnement’ (34), que
han sido traducidas con acierto entre nosostros por “entorno”,
aunque con evocaciones de caráter urbanistico. Una primeira
aproximación al concepto de ambiente nos remite a una noción
amplia que incluye toda la problemática ecológica general y por
supuesto el tema capital de la utilización de los recursos, a
disposición del hombre, en la biosfera. Esta perspectiva globalista es
a veces la adoptada en ciertos pronunciamientos realizados en el seno
de organismos internacionales. Así, en la Conferencia de Estocolmo
de 1972, se afirma que “el hombre tiene el derecho fundamental a la
liberdad, la igualdad y el disfrute de condiciones de vida adecuadas
en un medio de calidad tal que le permita llevar una vida digna y
gozar de bienestar, y tiene la solemne obligación de proteger y
mejorar el medio para las generaciones presentes y futuras.
Para Martín Mateo, uma primeira visão do conceito de ambiente sugere noção
genérica, que inclui toda a problemática ecológica, e a questão principal que é a utilização dos
recursos, bem como a posição do homem na biosfera. Essa perspectiva globalista tem sido,
por diversas vezes, adotada em pronunciamentos realizados nos fóruns de organismos
internacionais.34
Martín Mateo (1977, p. 74) enfatiza que as conceituações gerais apresentam caráter
meramente referencial, sendo necessário recorrer a maior aprofundamento dos conceitos, de
modo a estabelecer-se conceito jurídico mais concreto do meio ambiente, verbis:
Es evidente que en todos estos casos se trata más bien de
declaraciones de principio lejanamente orientadores de la política del
Derecho que de la adopción de postulados de trascendencia jurídica
inmediata. La posibilidad de acuñar en sentido técnico un Derecho
ambiental no puede hacerse sobre tales bases y exige una formulación
de objetivos concretos a cuyo servicio, con una cierta coherencia
lógico-jurídica, se instrumentará un determinado sistema normativo
(36 bis).
Dessa forma, considera o ambiente como conjunto de elementos naturais, que
deixaram de ser “res nulius” para ser objeto de proteção jurídica, como bem comum:
Creemos que, efectivamente, el meollo de la problemática ambiental
moderna está en la defensa de unos factores que inicialmente podrían
haber sido calificados como ‘res nulius’, susceptibles de utilizazión
34
Nesse diapasão é significativo o primeiro princípio da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento (1992), verbis: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o
desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”.
88
89
sin límite por todos los individuos, pero que posteriormente se
transforman en bienes comunes sobre los cuales una mayor
intensidad de utilización, fruto de la civilización industrial y urbana,
va a amenazar precisamente las condiciones indispensables para el
aprovechamiento colectivo.
En realidad, de lo que aquí se trata es de las cosas a las que ya
aludían nuestros textos históricos en cuanto que ‘comunalmente
pertenecen a todas las criaturas que viven en este mundo [...] aire y
las aguas de la lluvia, la mar, sus riberas’, alguna de las cuales
posteriormente recibieron el tratamiento de bienes de dominio
público, dominio natural, mientras que otras, como el aire,
mantuvieron su condición de ‘res nulius’. Pero es lo cierto que con el
transcurso de los tiempos, tales caracterizaciones resultaron
inapropiadas al posibilitar aprovechamientos abusivos que a la larga
perjudicaron a los demás potenciales usuarios de estos bienes y a
propia esencia colectiva (MARTÍN MATEO, 1977, p. 74, grifo
nosso).
Do exposto, surge a necessidade de elaboração de conceito unitário de ambiente, a
ser adotado neste trabalho, razão pela qual se deve estudar o conceito dado pelos autores
brasileiros, comparando-os com as definições já vistas. Por outro lado, não se pode esquecer
de que as normas jurídicas, que hoje constituem objeto do Direito Ambiental surgiram de
forma individual e assistemática, na medida em que evoluía a própria concepção de proteção
do meio ambiente.
Mirra (1994, p. 4), nesse sentido, assinala, comparando a situação brasileira com a
dos outros países:
Além disso, no Brasil, como de resto na maioria dos países, as
normas jurídicas que no seu conjunto formam o Direito do Meio
Ambiente se encontram dispersas em inúmeros textos legais, os
quais apresentam conteúdo variado também. Tal situação pode ser
explicada pela circunstância de que esses diplomas legislativos
foram surgindo paulatinamente ao longo dos anos, na medida em
que evoluía a própria concepção de proteção do meio ambiente,
inicialmente voltada à conservação isolada de certos elementos da
natureza (florestas, flora em geral, fauna, águas e solos), depois
dirigida à preservação de ecossistemas (por intermédio da criação
de parques e reservas e do combate à poluição nas mais variadas
formas), e finalmente preocupada com o meio ambiente
globalmente considerado, entendido não só como mero agregado
dos elementos da natureza acima indicados, mas principalmente
como o conjunto de relações, interações e interdependências que se
estabelecem entre todos os seres vivos uns com os outros (incluindo
o homem) e entre eles e o meio físico no qual vivem.
2.1.3 Meio ambiente: conceito no direito brasileiro
89
90
Silva J., (1994, p. 1), baseando-se na doutrina estrangeira, entende que a palavra
ambiente indica a esfera, o círculo, o âmbito que nos cerca, em que vivemos. Em certo
sentido, portanto, nela já se contém o sentido da palavra meio. Entretanto, defende o uso da
expressão “meio ambiente”, verbis:
O ambiente integra-se, realmente, de um conjunto de elementos
naturais e culturais, cuja integração condiciona o meio em que se vive.
Daí por que a expressão meio ambiente se manifesta mais rica de
sentido (como a conexão de valores) do que a simples palavra
ambiente. Esta exprime o conjunto de elementos; aquela expressa o
resultado da interação desses elementos. O conceito de meio ambiente
há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e
artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo,
portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio
histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico.
O meio ambiente é assim, a interação do conjunto de elementos
naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento
equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca
assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos
recursos naturais e culturais (SILVA, J., 1994, p. 2, grifo nosso).
Em verdade, pode-se reconhecer que, na expressão “meio ambiente”, denota-se certa
redundância, já advertida por Martín Mateo (1977, p. 71), verbis:
Se observará que aqui se utiliza decididamente la rúbrica “Derecho
ambiental” en vez de “Derecho del medio ambiente”, saliendo
expresamente al paso de una práctica linguistica poco ortodoxa que
utiliza acumulativamente expresiones sinónimas o al menos
redundantes, en lo que incide el propio legislador, Reglamento de
Actividades de 1961.
A precisa definição de Silva J., (1994, p. 3) afasta-se, pois, da corrente doutrinária
italiana, já exposta, de Giannini, que prevê visão pluralista do conceito de ambiente. Aquela
definição adota, pois, visão unitária que ressalta três aspectos do meio ambiente:
I - meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano
construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço
urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas
verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto);
II - meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico,
artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial,
em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é
cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se
impregnou; e
III - meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, a água, o
ar atmosférico, a flora, enfim, pela interação dos seres vivos e seu
meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e as relações
destas com o ambiente físico que ocupam. É esse o aspecto do meio
ambiente que a Lei nos. 6.938, de 31.8.1981, define, em seu art. 3o,
quando diz que, para os fins nela previstos, entende-se por meio
ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de
90
91
ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas.
Portanto, a definição de José Silva segue a visão sistêmica unitarista, já que
conceitua o ambiente como unidade inter-relacionada e, assim, sugere a necessidade de
tratativa unitária, resultante da ampla multiplicidade e variedade de elementos que integram o
ambiente.
Em consonância com tal entendimento, Mukai (1992, p. 3), em lapidar conceito
sistêmico, ensina, verbis:
A expressão “meio ambiente” tem sido entendida como a interação de
elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o
desenvolvimento equilibrado vida do homem, não obstante a
expressão, como observam os autores portugueses, contenha um
pleonasmo, porque “meio” e “ambiente” são sinônimos (grifo nosso).
Machado P., (1995, p. 72), preocupando-se com o conceito de ambiente nas
legislações estaduais, assinala, verbis:
A legislação fluminense considerou como meio ambiente ‘todas as
águas interiores ou costeiras, superficiais ou subterrâneas, o ar e o
solo’ (art. 1o, parágrafo único do Decreto-lei 134/75). Em Alagoas
dispôs-se que ‘compõem o meio ambiente: os recursos hídricos, a
atmosfera, o solo, o subsolo, a flora e a fauna, sem exclusão do ser
humano’ (art. 3o da Lei 4.090/79). Em Santa Catarina conceituou-se
meio ambiente como a ‘interação de fatores físicos, químicos e
biológicos que condicionam a existência de seres vivos e de recursos
naturais e culturais’ (art. 2o, I, da Lei 5.793/80). Em Minas Gerais
‘meio ambiente é o espaço onde se desenvolvem as atividades
humanas e a vida dos animais e vegetais’ (art. 1o, parágrafo único da
Lei 7.772/80). Na Bahia ‘ambiente é tudo o que envolve e condiciona
o homem, constituindo seu mundo e dá suporte material para a sua
vida biopsicossocial’ (art. 2o da Lei 3.858, de 3.11.80). No Maranhão
‘meio ambiente é o espaço físico composto dos elementos naturais
(solo, água, e ar), obedecidos os limites deste Estado’ (art. 2o,
parágrafo único, a da Lei 4.154/80). No Rio Grande do Sul é o
‘conjunto de elementos – água interiores ou costeiras, superficiais ou
subterrâneas, ar, solo, subsolo, flora e fauna –, as comunidades
humanas, o resultado do relacionamento dos seres vivos entre si e
com os elementos nos quais se desenvolvem e desempenham as suas
atividades’ (art. 3o, II da Lei 7.488, de 14.1.81) (grifo nosso).
Assim, verifica-se que a maior parte das conceituações estaduais não limita o
conceito ambiental ao homem, mas a TODAS AS FORMAS DE VIDA. Nesse sentido,
corresponde à definição federal dada pela Lei 6.938/81 de 31/08/81, recepcionada pela
Constituição Federal, que conceitua o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis,
influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas”. Por outro lado, verifica-se certa variação terminológica legal do
conceito de meio ambiente nas diferentes legislações estaduais, o que retrata, no plano legal,
as sensíveis diferenças entre os Estados-membros da Federação brasileira.
Nesse sentido, Santos (1996, p. 221-222) ressalta, verbis:
91
92
A posição antropocêntrica de visão do mundo, que tem em Kant a sua
maior expressão, deve ser revista para a nova tomada de posição
filosófico-ambiental. Para esta visão o homem está no centro do
universo e a natureza está para servi-lo.
Para a nova filosofia proposta, a ecocêntrica – oikos = casa em grego
+ cêntrico = centrado na casa, sendo esta interpretada como o habitat
do homem, ou seja, centrado no todo, o homem passa a ser entendido
como um ente integrante da natureza, como todos os outros seres.
A Constituição da República submete a objeto de proteção o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, conforme se lê do artigo 225, caput, alçando-o à condição de
bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, a que todos têm direito.
Essa, portanto, é a característica finalística do meio ambiente, que deve ser
perseguida e preservada por toda Federação. A manutenção de ecossistema de forma nãoequilibrada ecologicamente, o exercício de atividade econômica que desconsidere a
determinação constitucional e o desenvolvimento de políticas públicas, que não observem
essa imposição, consubstanciarão clara afronta ao texto constitucional aplicável a todos os
entes federados.
A definição constitucional e a definição infraconstitucional apresentadas têm por
mérito, ademais, integrar o homem ao meio, rompendo com posições cartesianas que o
colocam ante o meio ambiente, dele destacado, em relação de dominação. Os textos legais
ensejam, por conseqüência, a preponderância da complementariedade recíproca entre o “ser
humano” e “o meio ambiente” sobre a ultrapassada relação de sujeição e instrumentalidade.
2.1.4 Direito ao “meio ambiente sadio” como direito fundamental da pessoa humana
O direito ao “meio ambiente sadio” é
reconhecido, nas legislações, como sendo um
dos direitos mais importantes, no final deste
século. Esse direito já está amplamente
inserido no ordenamento básico jurídico
nacional de muitos países e, até mesmo, como
parte das Constituições dos Estados-membros.
A título de exemplo, podem-se citar:
• Portugal: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.”(art. 66, item 1 da
Constituição de 1976);
• Colômbia: “Todas las personas tienen el derecho de gozar de um medio
ambiente sano.” (art. 79 da Constituição de 1991);
• Paraguai: “Toda pessoa tem direito de habitar em um meio ambiente
saudável [...]” (art. 7o da Constituição de 1992); e
• Cabo Verde: “Todos têm direito a um ambiente de vida sadio [...]”
(Constituição de 1992, art. 70).
92
93
Portanto, no âmbito da proteção jurídica nacional de diferentes países, este direito
está consagrado nos texto das respectivas Constituições. Observa-se que em todas as
definições apresentadas, o direito ao meio ambiente vincula-se ao homem (à pessoa
humana, titular, por excelência, de direitos e obrigações no ordenamento ocidental).
O meio ambiente, igualmente, está protegido por relevantes textos internacionais, tais
como:
• A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos: ‘Todos os povos
têm direito a um ambiente satisfatório e geral, favorável ao seu
desenvolvimento”;
• O Protocolo Adicional à Convenção Americana dos Direitos Humanos,
tratando dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, prevê que: “Toda
pessoa tem direito de viver num meio ambiente sadio e de ter acesso aos
serviços públicos básicos”; e
• A Declaração dos Direitos Humanos Fundamentais, adotada pela União
Européia em abril de 1989, ratifica “um direito fundamental à proteção
ambiental, à medida que obriga as instituições da União Européia a tomar
todas as precauções necessárias para a preservação, proteção e
melhoramento da qualidade ambiental” (AGELEN, 1995, p. 276).
Dando relevo à proteção ambiental no direito interno, Prado (1992, p. 83-84)
observa, verbis:
No plano do direito interno, em decorrência do conteúdo político e da
relevância do fenômeno ambiental, as constituições modernas,
sobretudo a partir da década de 70, passaram a dar-lhe tratamento
explícito em seus textos, evidenciando assim a necessidade de uma
tutela mais adequada. As Cartas francesas de 1946 e 1958 não fazem
referência expressa ao ambiente. Contudo, há em França uma ampla e
prolixa legislação ordinária a respeito. De modo similar, a Lei
Fundamental alemã tampouco trata diretamente do tema. O artigo 74
versa apenas sobre repartição de competência. Na Itália, a
Constituição de 1947 dispõe no artigo 9.2. sobre a “tutela da
paisagem, do patrimônio histórico e artístico da nação”. Esta norma é
interpretada extensivamente, como principio informador da ação
ambiental. Em geral, as Constituições Americanas mais recentes
consignam o aspecto ambiental. Assim, a Constituição do Chile de
1972 assegura a todas as pessoas um ambiente livre de contaminação,
sendo dever do Estado velar para que este direito não seja
transgredido e tutelar a preservação a natureza, podendo a lei
estabelecer restrições específicas ao exercício de determinados direitos
ou liberdades para proteger o meio ambiente (art. 198). A Lei Magna
do Panamá de 1972 estabelece ser dever fundamental do Estado
propiciar um meio ambiente são e combater as contaminações (arts.
114 a 117). A Carta do Peru de 1980 dispõe que todos tem o direito de
habitar em um meio ambiente saudável ecologicamente equilibrado e
adequado para o desenvolvimento da vida, e a preservação da
paisagem e da natureza, sendo obrigação do Estado prevenir e
controlar a contaminação ambiental (art. 123). No mesmo sentido,
têm-se as Constituições de Cuba de 1976 (art. 270) e de El Salvador
de 1983 (art. 117); da Guatemala de 1985 (art. 97) e do México de
1987 (art. 27).
93
94
Em nível internacional, reconhece-se que a proteção ambiental se fundamenta na
instrumentalização do direito à vida. Como diz claramente Aggelen (1995, p. 282):
It is obvious that the relation between the right to life and
environmental protection gained importance again in the wake of the
deliberate burning of the Kuwait oil fields by Saddam Hussein in
1991. Art.35, para. 3 of Protocol I additional to the four 1949
Conventions on the Laws of War prohibits “to employ methods or
means of warfare which are intendend, or may be expected to cause
widespread, long-term and severe damage to the national
environment”. A similar provision protects the natural environment in
article 55.
Já em 1972, a Declaração de
Estocolmo, no Preâmbulo, fixou que dois
aspectos do meio ambiente (o natural e o
artificial) são essenciais para o bem-estar do
homem e para o desfrute dos direitos humanos
fundamentais, até mesmo o direito à vida. Da
mesma forma, como extensão dos princípios
estabelecidos pela Declaração Universal dos
Direitos do Homem, em 1948, a Declaração de
Estocolmo estabeleceu claramente que o
homem tem direito fundamental à liberdade, à
igualdade e ao desfrute de condições de vida
adequadas, em meio ambiente de qualidade
que lhe permita levar vida digna e gozar de
bem-estar; por sua vez, o homem tem a
obrigação de proteger e melhorar o ambiente
para as gerações presentes e futuras. Assim,
vincula-se a proteção ambiental, também, à
dignidade humana de vida com qualidade.
Atualmente, a relevância do direito ao meio ambiente sadio leva alguns autores,
como Déjeant-Pons (apud MACHADO, P., 1995, p. 25), a afirmar que este direito constitui
um dos maiores direitos humanos do século XXI, na medida em que a Humanidade se vê
ameaçada no mais fundamental de seus direitos, o da própria existência. Portanto, claramente,
surge a vinculação entre o direito ao meio ambiente e o direito à vida.
Destacando a preocupação com a proteção ambiental, vista como direito
fundamental, Kiss (1995, p. 37) salienta que:
In the changing world of the second half of the 20th century two major
values have emerged: fundamental human rights and freedom on one
side, environment on the other. Both must be protected by law, the
objective of which is to protect fundamental social values. Both must
be approached at the international level. Thus, such protection is the
task of international law.
Conseqüentemente, tanto o ordenamento jurídico interno como o ordenamento
jurídico internacional concordam com a existência de direito fundamental ao meio ambiente.
Encontramo-nos, assim, diante de nova perspectiva do direito à vida humana como
principal fundamento da proteção ambiental, que é a responsabilidade comum de todos os
Estados, como ficou estabelecida, na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados
94
95
(1974, art. 30) “La protección, la preservación y el mejoramiento del medio ambiente para
las generaciones presentes y futuras es responsabilidad de todos los Estados.”
Assim, apesar da conceituação jurídica ampla de meio ambiente envolver outros
seres além do homem, verifica-se, em sua caracterização vigente, que é o ser humano, por
excelência, que o eleva, no âmbito jurídico, à categoria de direito fundamental.
2.2 SADIA QUALIDADE DE VIDA DO HOMEM
Para Derani (1997, p. 77), a expressão “sadia qualidade de vida”, no âmbito do
direito ambiental, tem aspecto quantitativo (grande número de bens à disposição do ser
humano) e, principalmente, aspecto qualitativo, verbis:
A inserção de tal expressão no direito ambiental brasileiro acaba por
denunciar a busca por um aspecto qualitativo, depois das decepções
resultantes da adoção de um sentido unicamente quantitativo para
designar qualidade de vida, traduzida que era apenas por conquistas
materiais. O alargamento do sentido da expressão qualidade de vida,
além de acrescentar esta necessária perspectiva de bem-estar relativo à
saúde física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito do homem
fruir de um ar puro e de uma bela paisagem, vinca o fato de que o
meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, porém
integrada à vida do homem social nos aspectos relacionados à
produção, ao trabalho como também no concernente ao seu lazer.
Por outro lado, mostra-se evidente que o conteúdo do termo “qualidade de vida”
difere entre as sociedades, entre os grupos sociais e, principalmente, é alterado ao longo do
tempo. Pode-se colocar a sadia qualidade de vida como o conjunto de condições objetivas,
externas à pessoa, compreendendo qualidade de ensino, de saúde, de habitação, de trabalho,
de lazer e, por óbvio, do ambiente, de molde a possibilitar o referido desenvolvimento pleno
da pessoa.35
É nessa medida que Silva, J., (1994, p. 54) coloca a tutela da qualidade do meio
ambiente em função da tutela da qualidade de vida, como objeto de proteção jurídica. Sua
observação é consentânea e harmônica com o expresso no texto constitucional, segundo o
qual o meio ambiente ecologicamente equilibrado é elemento essencial à sadia qualidade de
vida e, portanto, relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito
fundamental à vida.
35
Reale (1963, p. 65-71) observa que não se pode reduzir o indivíduo à sociedade ou ao Estado, ou diluí-lo no
processus objetivante da história, de um lado, ou limitá-lo a sua subjetividade desconsiderada do âmbito
social de vivência de outro. Reale aponta, então, que “o homem é a sua história, mas também” é a história
por fazer-se, em ambivalência e polaridade de “ser passado” e “ser futuro”, de ser mais que sua própria
história. Miguel Reale arremata: “e note-se que o futuro não se atualiza como pensamento, para inserir-se no
homem como ato – caso em que deixaria de ser futuro –, mas se revela em nosso ser como possibilidade,
tensão, abertura para o projetar-se intencional de nossa consciência, em uma gama constitutiva de valores”.
Assim, pelo pensamento de Miguel Reale, o ser pessoa, integral e plena, depende do devir, em formação
contínua e criadora, mutatis mutandi, a sadia qualidade de vida constitui-se conceito mutável adequável às
novas conquistas humanas.
95
96
A sadia qualidade de vida lembra que a regulação de atividades poluidoras funda-se,
também, na garantia do direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição Federal:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado garantido
através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do
risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e
recuperação (grifo nosso).
Nesse sentido, o direito à proteção integral da saúde da população é,
sem dúvida, de interesse social e, portanto, deve ensejar tutela estatal.
Assinala, também, que a regulação de atividades poluidoras funda-se não só
em meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da C.F.), mas, também,
na garantia do direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição Federal.
Essa expressão identificadora dos direitos de terceira geração permite
a necessária harmonização do desenvolvimento econômico e da proteção
ambiental. Tal dimensão de desenvolvimento sustentável da expressão
“qualidade de vida” é detalhada por Derani (1997, p. 78):
A aceitação de que qualidade de vida corresponde tanto a um objetivo
do processo econômico como a uma preocupação da política
ambiental fasta a visão parcial de que as normas de proteção do meio
ambiente seriam servas da obstrução de processos econômicos e
tecnológicos. A partir deste enfoque, tais normas buscam uma
compatibilidade desses processos com as novas e sempre crescentes
exigências do meio ambiente.
A Constituição Federal Brasileira contém este caráter integrador da
ordem econômica com a ordem ambiental, unidas pelo elo comum da
finalidade de melhoria da qualidade de vida [...]
2.3 PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES HUMANAS
Töpfer (1992, p. 1), em discurso pronunciado durante a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, no dia 3 de junho de
1992, afirmou, em clara alusão ao aspecto da solidariedade entre gerações, verbis:
“Somos um mundo só” – eis a mensagem que muitas crianças na
Alemanha me encarregaram de transmitir a esta conferência sobre
meio ambiente e desenvolvimento no Rio de Janeiro.
Esta mensagem nos impõe uma obrigação. Para garantirmos aos
nossos filhos e netos, neste mundo, um futuro que valha a pena ser
vivido teremos de agir em termos de uma parceira global. Para tanto, é
imprescindível uma mudança de atitude no mundo todo e,
especialmente para nós, do Norte, uma mudança de rumo. Sabemos
que, como países industrializados, estamos incumbidos de uma
particular responsabilidade.
96
97
Assumimos esta responsabilidade, considerando os danos que nossas
sociedades causaram ao meio ambiente global e ainda em função das
nossas possibilidades tecnológicas e financeiras.
O que não solucionamos hoje deixará uma pesada carga aos nossos
filhos e às gerações futuras. Este contrato entre as gerações nos
obriga. Portanto, conhecedores dos inúmeros problemas e tarefas, das
diversas responsabilidades e interesses, não podemos cair na
resignação. Muito pelo contrário, precisamos de otimismo realista
para, juntos, enfrentarmos os problemas urgentes do
subdesenvolvimento e da pobreza, da exploração predatória de
recursos e da destruição da natureza.
Assim, “a preservação ambiental para as presentes e futuras gerações” está
intimamente ligada ao espírito de solidariedade, que caracteriza os direitos a ações positivas
do Estado,36 vistos sob o prisma intertemporal.
Em outro enfoque, Warat (1994, p. 101) relaciona a solidariedade ecológica com o
dever de cuidado e com a cidadania, verbis:
Chegamos, assim, ao amor como cuidado. O amor é sempre uma
forma de cuidado. Amamos a vida quando a cuidamos; encontramos
a solidariedade quando cuidamos do outro; desenvolvemos nossa
subjetividade quando cuidamos para que nosso desejo não caia
prisioneiro de nenhum objeto. Resumindo: podemos estabelecer
algumas garantias para a continuidade da vida aprendendo a não
sermos maltratados. A pedagogia que transmita cuidados ao invés de
verdades.
A “prática do cuidado” é uma forma de forçar o poder para que
encontre limites com os quais deva negociar. A dimensão política do
cuidado passa pela necessidade de dizer não ao poder que nos
maltrata. Impondo-lhes limites, buscando por todos os meios evitar
que fiquemos atados por uma estrutura cesarista. Por aqui passa o
sentido estrito da palavra cidadania: o controle do limite, o que parece
essencialmente antagônico com as práticas “delegatórias da
democracia”. Por aqui começa o sentido mais amplo de cidadania
como uma forma solidária de encontrar-se, autônomo, frente à lei,
de exigir cuidado público da vida. A cidadania como uma questão
ecológica e de subjetividade: o mundo e o outro como limite que me
constitui autônomo (grifo nosso).
Nessa abordagem, constata-se que o dever de cuidado pode ser ampliado para
abarcar o cuidado com os outros seres.
Portanto, a norma-princípio do art. 225 da Constituição Federal possui rico domínio
normativo, conforme visto, exigindo do intérprete visão sistêmica do conjunto, sendo,
inclusive, possível enquadramento amplo para a proteção de outros seres.
Assim, não obstante a titularidade do direito ao meio ambiente seja exclusiva do ser
humano, o seu objeto é amplo e abarca a proteção de outros seres.
36
Assim, conforme afirma Miranda (1988, t. 4, p. 98), se os direitos de defesa “são direitos de libertação do
poder”, os direitos a ações positivas do Estado “são direitos de libertação da necessidade” – o âmbito dos
primeiros é configurado pela “limitação jurídica do poder”, o conteúdo irredutível destes últimos é a
“organização da solidariedade”.
97
98
2.4 O MACRO E O MICROBEM AMBIENTAL
2.4.1 O macrobem ambiental como bem de uso comum do povo
A maneira como o Direito encara o fenômeno ambiental e seu reflexo no econômico
modificou-se ao longo do tempo. Sob esse ponto de vista, interessante analisar as diferentes
terminologias utilizadas no trato do bem ambiental, por ressaltarem as diversas e progressivas
valorações dadas ao fenômeno ambiental sob o prisma de sua visão econômica.
A colocação, posta no texto constitucional vigente brasileiro, que qualifica o meio
ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo37, requer breve
estudo da classificação de bens corporificada no Código Civil quanto ao titular do domínio.
Assim, adverte-se que o meio ambiente constitui bem e não ente que titulariza
direitos e obrigações. O meio ambiente é visto como objeto de uma relação jurídica – um
bem (coisa). Nesse sentido, ilustrativa a conceituação de Alves (1978, p. 182):
Em acepção vulgar, a palavra coisa tem sentido muito amplo: ela
abrange tudo o que existe na natureza, ou que a inteligência do
homem é capaz de conceber.
Em sentido jurídico, no entanto, coisa é empregada em acepção mais
restrita: é aquilo que pode ser objeto de direito subjetivo patrimonial.
Preliminarmente, em visão sistêmica, fundamental é distinguirem-se as partes do
todo, ou seja, não confundir os elementos constitutivos do ambiente com o ambiente como
universalidade. É a distinção que Benjamin (1993a, p. 69-72) faz de bem ambiental,
categorizando-o em macrobem e microbem ambientais.
A visão esclarecedora de Benjamin pode ser entendida, também, à luz da
classificação legal, presente no atual Código Civil entre coisas singulares e coisas coletivas
(arts. 54 a 57 da Lei 3.071/1916), no destaque dado por Alves (1978, p. 188):
Esta classificação é originária da filosofia estóica. Coisa simples é
aquela que forma um todo orgânico (um animal, por exemplo); coisa
composta é aquela que forma um todo mecânico (assim, um navio); e
coisa coletiva é aquela que forma um todo ideal (por exemplo: um
rebanho, que é constituído de várias coisas simples – as ovelhas –,
mas que são consideradas, idealmente, como um todo, e são
designadas por um nome único: rebanho).
O ambiente, como “equilíbrio ecológico”, e macrobem ambiental, é essencialmente
imaterial e incorpóreo, não sendo passível de apropriação ou sobre o qual se possam conferir
direitos individuais. Os elementos corpóreos integrantes do meio ambiente têm regime
jurídico próprio e estão submetidos à legislação própria. Observe-se que, quando se fala na
37
O art. 225 da Constituiçao Federal de 1988 afirma, verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se
ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
98
99
proteção da fauna, da flora, do ar, da água e do solo, não se busca propriamente a proteção
desses elementos em si, mas, sim, deles como elementos indispensáveis à proteção do meio
ambiente como bem imaterial, objeto último e principal almejado pelo legislador. Sem
diminuir a importância da preservação dos elementos corpóreos – microbens –, deve-se
atentar para o fato de que eles são vistos e considerados não em sua individualidade
específica, mas como elos fundamentais da imensa cadeia, da grande teia que rege a vida de
forma geral (o meio ambiente) (BENJAMIN, 1993a, p. 70).
Nesse sentido, o enfoque de Benjamin
(1993a, p. 75):
Como bem – enxergado como verdadeiro universitas corporalis, é
imaterial – não se confundindo com esta ou aquela coisa material
(floresta, rio, mar, sítio histórico, espécie protegida, etc.) que o forma,
manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que
compõem a realidade ambiental [...] uma definição como esta de meio
ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de
que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as
coisas, por exemplo) que, em si mesmas, também são bens jurídicos.
As coisas e os bens38 podem ser classificados de conformidade com vários critérios.
Atende-se à natureza física dos bens, às suas relações recíprocas, aos seus titulares, à
possibilidade de comerciar ou não em relação a eles.
Nesta matéria, o próprio Código Civil (1916, cap. I, L. II, art. 43) definiu e
classificou meticulosamente os bens. Referiu-se inicialmente aos bens considerados em si
mesmos, caracterizando os bens imóveis, os móveis, as coisas fungíveis e consumíveis, as
divisíveis e indivisíveis e as coisas singulares e coletivas.
O Direito Romano conhecia a distinção entre res mancipi e res nec mancipi,
baseando-se na importância que certos bens tinham no regime econômico patriarcal da
época, considerando, entre as primeiras, o solo itálico, certos animais de tração, os
escravos, os instrumentos agrícolas e as servidões. As res mancipi necessitavam de maiores
formalidades para serem transferidas e eram consideradas como sendo de valor básico na
época.39
Do mesmo modo, podemos afirmar que a classificação dada ao bem ambiental, ao
longo dos tempos, representava a maior ou menor importância que se dava à preservação da
natureza pela sociedade.
A maneira como o Direito encara o fenômeno ambiental e seu reflexo econômico
modificou-se ao longo do tempo. Sob esse ponto de vista, interessante analisar as diferentes
terminologias utilizadas no trato do bem ambiental, por ressaltarem as diversas e progressivas
valorações dadas ao fenômeno ambiental em contraste com a sua visão econômica.
Coube ao Direito medieval salientar a importância da classificação de bens móveis e
imóveis, pois os últimos importavam em dar aos seus titulares o poder político, na época,
vinculado à terra. Constituíam a riqueza de importância social à qual se ligava o poder
político dos suseranos e a estabilidade econômica (WALD, 1989, p. 143).
38
No âmbito do nosso trabalho, a exemplo do que é feito no Código Civil (1916), não se distingue “coisas” e
bens, sendo ambos representativos de objetos da relação jurídica.
39
O interesse prático dessa classificação, enquanto ela teve razão de ser, ocorria quanto ao modo de aquisição da
propriedade; as res nec mancipi podiam ser adquiridas pela tradição (traditio), modo não solene de aquisição
da propriedade; as res mancipi apenas podiam ser adquiridas mediante modos solenes como a mancipatio e a
in iure cessio (ALVES, 1978, p. 195).
99
100
A escola dos fisiocratas40 de Quesnay, no século XVIII, continuava, aliás, a ver na
terra a única fonte real e autêntica criadora da riqueza. Assim, as legislações do século XVIII,
que mais influenciaram o nosso Código Civil – o Código de Napoleão e o Código Alemão
(BGB) – mantiveram o tratamento especial dado aos imóveis.
Atentando à qualificação que faz a Constituição de meio ambiente como bem de uso
comum do povo, necessário é recorrermos, preliminarmente, às palavras de Beviláqua (1980,
p. 193-194), que afirmava serem os bens, “em relação às pessoas, a quem os bens pertencem”,
divididos em públicos e particulares, verbis:
Os bens públicos, encarados do ponto de vista de sua utilização,
podem ser: de uso especial, de uso comum e particular ou dominicais.
São de uso comum os administrados pelos poderes públicos, e que
podem ser utilizados por quaisquer pessoas, respeitadas as leis e
regulamentos [...]. Os bens comuns, enquanto conservam esse caráter,
são inalienáveis e repelem o usucapião; os de uso especial e os
patrimoniais podem ser alienados, de conformidade com as leis que os
regulam.41
Entre os bens de uso comum da época, elencavam-se o mar territorial, os golfos,
baías, enseadas e portos; as praias; os rios navegáveis; as estradas e caminhos públicos,
excluídas as vias férreas federais, além do que também se classificavam extra commercium,
por serem de uso inexaurível, como o ar, as águas correntes, quando parte de rios públicos, a
luz e o mar alto (Beviláqua, 1980, p. 208).
A abundância desses bens fez com que permanecessem inapropriáveis e, nesta
lógica, excluídos da tutela jurídica.
A toda evidência, o termo “bem de uso comum” designa, no texto constitucional,
conceito diverso do descrito no Código Civil. Expressa, sim, o caráter difuso da proteção
ambiental, pois não sendo de ninguém, é de todos. Refere-se a expressão à titularidade do
bem e não à sua natureza.
O meio ambiente, como macrobem, é bem público, salienta Benjamin (1993a, p. 66),
não porque pertença ao Estado (pode até pertencê-lo), mas porque se apresenta no
ordenamento, constitucional e infraconstitucional, como “direito de todos”. É bem público em
sentido objetivo e não, subjetivo. Por sua natureza e pelos elementos que engendra, prematuro
é, entretanto, categorizar o bem ambiental no âmbito de “dominialidade coletiva”.
40
41
O conceito, conhecido como fisiocracia, foi elaborado no século XVIII pelos economistas franceses liderados
por François Quesnay, os fisiocratas acreditavam que todas as atividades sociais (inclusive as econômicas)
são regidas pelo Direito Natural, que nenhum governo pode comandar; deve-se, portanto, deixar que o
mercado siga o seu curso natural. Defendiam o comércio livre, o laissez-faire Conforme ensina Huberman
(1986, p. 138-139), verbis: “Os fisiocratas chegaram à sua fé no comércio livre por um caminho indireto.
Acreditavam, acima de tudo, na inviolabilidade da propriedade privada, particularmente na propriedade
privada da terra. Por isso, acreditavam na liberdade – o direito do indivíduo fazer de sua propriedade o que
melhor lhe agradasse, desde que não prejudicasse a outros. Atrás de sua argumentação a favor do
comércio livre está a convicção de que o agricultor devia ter permissão para produzir o que quisesse, para
vender onde desejasse. Naquela época, não só era proibido mandar cereais para fora da França sem pagar
imposto, como o próprio trânsito do produto de uma parte do país para outra era taxado. A isso se opunham os
fisiocratas. Mercier de La Rivière, autor da melhor exposição dos princípios defendidos pelos fisiocratas,
assinalou que a liberdade completa era essencial ao gozo dos direitos de propriedade” (grifo nosso).
Cumpre observar que o próprio Beviláqua (1975, p. 300), apontou que a inscrição original para o Capítulo dos
Bens era Dos bens em relação às pessoas, tendo sido suprimido pelo Senado em face de críticas de alguns
juristas à classificação dos bens que toma por base as pessoas, a que os mesmos pertencem (Planiol, Teixeira
D’Abreu). Beviláqua repele a crítica, ponderando ser a classificação feita “não do ponto de vista dos
proprietários, mas do ponto de vista do modo pelo qual se exerce o domínio sobre os bens”.
100
101
A noção de domínio, mesmo na modalidade coletiva, pressupõe o conceito de direito
subjetivo a amarrar o bem ambiental à perspectiva individualizante, contrariando as
construções doutrinárias até agora firmadas no campo dos interesses difusos.42
A titularidade dos elementos constitutivos do ambiente – microbens ambientais –,
assim como o feixe de interesses que lhe são correlatos, não interferem na fruição do bem
ambiental como bem de uso comum do povo. Em seu aspecto patrimonial, pode ser objeto de
direitos de propriedade ou de outros direitos reais. Como bem ambiental, é objeto de
interesses difusos, ensejando o dever de intervenção pelo Poder Público e pela coletividade
para sua defesa e preservação.
A propósito da qualificação do bem ambiental, Silva, J., (1994, p. 56) aponta
tendência da doutrina italiana na configuração da categoria dos bens de interesse público, em
que se inserem tanto bens pertencentes a entidades públicas como bens de sujeitos privados,
subordinados a peculiar regime jurídico relativo ao gozo e à disponibilidade, assim como a
particular regime de polícia, de intervenção e de tutela pública. Como tal, são dotados de
regime jurídico especial, porque essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a
fim de interesse coletivo. O proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da
qualidade do meio ambiente a seu talante, porque ela não integra sua disponibilidade.
Portanto, o bem ambiental, “bem de uso comum do povo”, não se identifica com a
definição de bens públicos e privados do Código Civil brasileiro.43 Sua titularidade não o
vincula somente ao Estado, mas à sociedade em geral. Por outro lado, não só os bens públicos
integram, os bens sujeitos à proteção ambiental também, os bens privados são protegidos no
enunciado constitucional.
Entretanto, a visão jurídica do meio ambiente, sob enfoque macro, restringe-se a de
objeto de relação jurídica de titularidade difusa.
2.4.2 Os seres animados e inanimados (microambiente) como coisas de ninguém (res
nullius) e coisas abandonadas (res derelicta)
Historicamente, os bens ambientais nem sempre foram vistos como bem de interesse
público, que limitam o direito de propriedade.
Em primeiro momento, os bens ambientais, nem suscetíveis de serem objeto de
relação jurídica eles eram, consideravam-se “bens livres”, conforme já visto, em contraste aos
“bens econômicos”, estes sim, úteis, escassos e acessíveis aos homens (ARAGÃO, 1997, p.
22).
Supunha-se que os bens livres eram infinitamente abundantes (“reservatório
inesgotável”) para Aragão (1997, p. 22) “capazes de satisfazer sem restrições toda a procura
que lhes fosse dirigida”.
Como não carecem sequer de ser transacionados no mercado, os mecanismos
econômicos dos preços não funcionam para os bens livres, pois tornam-os gratuitos, sendo
considerados “sem valor”.
A visão liberal torna-os sem valor, pois, conforme ensina Smith (1999, p. 160, 162):
42
43
Cf. MANCUSO (1988. p. 59-109).
“Os bens públicos são: I – de uso comum do povo, tais como os mares, estradas, ruas e praças [...]” (Art. 66 do
Código Civil).
101
102
O preço por que qualquer mercadoria á efectivamente vendida chamase preço de mercado. Tanto pode ser superior, como inferior, ou
exatamente igual ao seu preço natural.
[...] Quando a quantidade posta no mercado excede a procura efectiva,
torna-se impossível vendê-la.
Assim, o valor econômico de um bem vincula-se à sua oferta e à sua procura. Sendo
a oferta ilimitada, na concepção vigente até a Revolução Industrial, o bem ambiental carecia
de preço, bem como de proteção jurídica, razão pela qual era classificado como “res nullius”.
Ressaltando, a contradição da valoração de bens pelo sistema econômico liberal no
que se refere ao meio ambiente, Aragão (1997, p. 24) destaca que: “[...] O valor de troca do ar
que respiramos é nulo mas o seu valor de uso pode mesmo dizer-se que é infinito, pois o ar é
absolutamente indispensável à vida”.
Por outro lado, Aragão (1997, p. 29) considera que essa falsa consideração do bem
ambiental, residia “precisamente no empirismo do conhecimento da Natureza, que fez os
Homens acreditarem na aparente abundância e inesgotabilidade dos bens ambientais a que
chamam livres”.
Tendo incorrido em falsa noção do bem ambiental, os economistas e os juristas, por
muito tempo, identificaram os bens ambientais como “res nullius”, “res derelicta” e “bens fora
do comércio”.
Do mesmo modo Aragão (1997, p. 26-27) assinala que:
Na realidade, embora em muitos casos não existam direitos reais, em
sentido clássico, sobre os bens ambientais, sobre eles existe uma
comunhão geral, com vista à satisfação tanto de interesses colectivos
como de interesses individuais. A qualificação correcta destes bens
ambientais é a de res omnium.
Os falsos conceitos de bens livres, de res communes e de res nullius,
conduziram a um fenômeno conhecido como a tragédia dos comuns,
referência aos efeitos sociais e economicamente perniciosos da
acelerada e irresponsável delapidação dos recursos ambientais
comuns.
Assim, a categorização de bem de uso comum do povo posta no texto constitucional
vincula a fruição dos elementos integrantes do conjunto ambiental não somente à sua
utilização racional, mas ao respeito à função social da propriedade. Demonstra, portanto,
valorização da proteção do bem ambiental que por muito tempo foi considerado como res
nullius44 ou res derelicta45.
Verifica-se, pois, evolução na caracterização do microbem ambiental, que deixa de
ser coisa sem valor e passa a ser bem jurídico com valor, sujeita, portanto, à proteção jurídica
44
“Na generalidade dos casos, os recursos naturais que economicamente se tomavam por bens livres, eram
juridicamente qualificados como res nullius [...] São bens que não pertencem a nínguém, e como qualquer
indivíduo pode ter acesso a eles livremente, ninguém é responsabilizado pela sua degradação” (ARAGÃO,
1997, p. 25).
45
A res derelicta são bens de ninguém, porque foram abandonados pelo proprietário natural. “O ciclo económico
clássico abrangia só a produção, distribuição, e consumo, sem se preocupar com o destino dos resíduos em
cada fase do ciclo [...] Como as res derelicta são também res nullius, gozam das características atribuídas a
estes bens, nomeadamente a irresponsabilidade, aqui entendida já não como irresponsabilidade pela sua
degradação, mas irresponsabilidade pela emissão ou abandono” (ARAGÃO, 1997, p. 27).
102
103
como “coisa” dotada de significado jurídico e econômico, afastando-se da categoria “coisa”
de ninguém (res nullius) ou coisa abandonada (res derelicta).
103
104
3 ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL
3.1 UM EXEMPLO CLÁSSICO DE PENSAMENTO ÉTICO: O DIÁLOGO DE CRITÃO
Nas primeiras linhas de Ética a Nicômaco, Aristóteles (1992, p. 17-18) introduz com
destaque, na definição da ética e de seus fins, as noções de ciência política, de bem, de belo,
de justo, assim como a de humano.
Um exemplo prático de pensamento ético, envolvendo os elementos acima
mencionados (ética, seus fins, ciência política, bem, belo, justo e humano), pode ser buscado
nos Diálogos de Platão, mais especificamente no diálogo de Critão. Nesse diálogo, Platão
descreve a situação de seu mestre Sócrates, filósofo grego, julgado e executado pela, então,
Cidade-Estado de Atenas, sob a acusação de renegar os deuses e de corromper a juventude.
A riqueza do diálogo ocorrido na prisão de Atenas entre Sócrates (abreviado no
diálogo como “SÓC.”) e Critão (abreviado no diálogo como “CR.”), constituem excelente
material de análise para a conceituação da ética. Assim, transcrevemos, de forma
simplificada, trecho deste esclarecedor diálogo abaixo, verbis:
SÓC. – [...] Mas, afinal, para que vieste tão cedo?
CR. - Para trazer, uma noticia, Sócrates, dolorosa e desoladora - não
assim para ti, pelo que vejo - mas dolorosa e desoladora para mim e
para todos os teus amigos; acho que a poderia contar como uma das
que mais o sejam.
SÓC. - Que vem a ser?- Chegou de Delos o navio a cuja chegada devo
morrer?
CR. - Bem, chegar não chegou, mas calculo que deve aportar hoje,
pelo que noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As
novas dão a entender que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã,
Sócrates, que terás de cessar de viver.
SÓC. - Pois bem, Critão, à boa ventura! Se assim apraz aos deuses,
assim seja. Todavia, acho que não vai aportar hoje.
CR. - Em que te baseias?
SOC. - Vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia seguinte ao da
chegada do navio.
CR. - Ao menos, assim dizem as autoridades competentes.
SÓC. - Por isso, acho que não vai aportar no dia de hoje, mas no de
amanhã. Baseio-me num sonho que acabo de ter esta noite. Talvez
mesmo tenha sido oportuno não me haveres despertado.
CR. - Como foi o sonho?
SÓC. - Parecia-me que vinha uma mulher formosa, de lindas
feições, vestida de branco, me chamava e dizia: "Sócrates, depois de
amanhã poderás ter chegado às férteis campinas da Fitia".
CR. - Sonho esquisito, Sócrates!
SÓC. - De sentido claro, ao que penso, Critão.
CR. - Por demais, penso eu. Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma
vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a
morrer, a desdita não será uma só: à parte a perda de um amigo como
não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos
104
105
conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me
dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação
mais vergonhosa que a de fazer mais caso do dinheiro que dos
amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair
daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo.
SÓC. - Mas para nós, meu caro Critão, é tão importante assim a
opinião do povo? A gente melhor, com quem mais importa que nos
preocupemos, cuidará que as coisas se terão passado tal como se
tiverem passado.
CR. - Mas bem vês, Sócrates, que não se pode deixar de fazer caso
também da opinião do povo. Os fatos mesmos de agora dizem claro
que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas
como que os maiores; basta que entre ele se espalhem calúnias contra
alguém.
SÓC., - Oxalá, Critão, fôsse o povo capaz de praticar os maiores
males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria
esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar
o siso, bem como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso.
CR. - Vá lá que assim seja. Mas dize-me uma coisa, Sócrates: estás
procurando evitar, não é? que eu e os outros amigos teus, caso saias
daqui, venhamos, a ser molestados pelos sicofantas, sob a acusação de
te subtrair daqui, e obrigados a abrir mão de todos os nossos haveres,
ou pelo menos de grossas quantias, ou a sofrer, além disso, qualquer
outra pena? Se é isso que temes, manda o mêdo às urtigas. É justo
que nós, para salvar-te, corramos esse perigo e outros maiores
ainda, se for preciso. Vamos, dá-me ouvidos e não procedas de outra
maneira.
SÓC. - Estou evitando isso tudo, Critão, e muitas outras coisas.
CR. - Pois não tenhas esse receio. Não é muito o dinheiro que certas
pessoas querem receber para levar-te daqui e salvar-te [...]
SÓC. - Querido Critão! Quão precioso o teu ardor, se alguma retidão
o acompanhasse! Não sendo assim, quanto mais insistente, tanto mais
penoso. Temos, pois, de examinar se devemos proceder como
queres ou não. Quanto a mim, não é de agora, sempre fui dêste feitio:
não cedo a nenhuma outra de minhas razões, senão à que minhas
reflexões demonstram ser a melhor [...] Portanto, reflete: não achas
acertado dizer que a nem todas as opiniões dos homens se deve
acatamento, mas a umas sim e a outras não [...] (PLATÃO, 1978, p.
120-123).
Assim, colocando-nos na situação de Sócrates e contextualizando o diálogo
transcrito, devemos supor que enquanto ele estava na prisão aguardando ser injustamente
executado, seus amigos lhe propunham oportunidade de escapar, por que eles achavam que
essa era a melhor opção. Deveria Sócrates aproveitar tal “oportunidade”?
Essa é a situação de Sócrates. O diálogo dá-nos a resposta a essa questão de forma
fundamentada, utilizando elementos da ciência política (povo capaz de praticar os maiores
males, para ser capaz também dos maiores benefícios [...] ele obra ao sabor do acaso), do bem
(nem tôdas as opiniões dos homens se deve acatamento), do belo (a morte para Sócrates é uma
mulher formosa, de lindas feições, vestida de branco), do justo (se alguma retidão o
acompanhasse) e humano (é tão importante assim a opinião do povo).
Sócrates apresenta, nesse diálogo, alguns pontos importantes de como ser ético:
105
106
• Não devemos deixar a nossa decisão ser afetada pelas emoções, mas
examinar os elementos das condutas possíveis à luz da razão;
• Não podemos responder algumas questões, simplesmente, nos apoiando
na opinião da maioria das pessoas. Elas podem, todas, estarem erradas.
Devemos pensar por nós mesmos, com a nossa “consciência”;
• Nunca devemos fazer o que é moralmente incorreto. A única questão que
devemos responder é o que é CERTO e o que é ERRADO. Não devemos nos
preocupar com o aspecto pragmático (o que irá acontecer) da nossa decisão,
nem com o que as pessoas vão pensar do nosso ato, ou como nós nos
sentimos com o que irá acontecer.
Assim, a Ética pode ser vista como teoria de cunho prático. O que ela envolve foi
ilustrado pelo diálogo de Sócrates e Critão. O termo provém do radical grego ethos, que
significa “costume”. Em termos estritos, numa visão simplificada, a filosofia moral (ou ética)
propõe os princípios para alcançar a conduta correta.46
Deve-se destacar, entretanto, como faz Novaes (1992, P. 7-8), que as definições que
os antigos e modernos dão à noção de ética e felicidade são radicalmente diferentes, verbis:
[...] Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às idéias de
felicidade da vida presente e de soberano bem: ainda que os
comentadores tenham mostrado uma infinidade de distinções sutis na
moral antiga, é certo que o que está sempre em jogo é o desejo do
homem de realizar o soberano bem, isto é, a vida feliz; ou melhor, o
objetivo supremo da moral é “encontrar uma definição de soberano
bem de tal maneira que o sábio se baste a si mesmo, isto é, que
dependa dele mesmos para ser feliz, ou que a felicidade esteja ao
alcance de todo homem racional”. Victor Brochard anota que o que
todos combatem, em particular Epicuro, é a doutrina da felicidade tal
como a entendiam Platão e Aristóteles, que “subordinavam o bem de
certa maneira às circunstâncias exteriores ou à Fortuna”. Livrar-se do
fatalismo, dominar as paixões, eis os postulados dominantes. “Dizer
que o homem é livre, quando é um filósofo grego que fala, equivale a
reconhecer que a felicidade está ao alcance de cada um”. Hoje, a
felicidade não é pensada mais nos termos da moral antiga, mas em
termos de eficácia técnica, de consumo. Mais ainda, ela depende cada
vez mais da roda da Fortuna, das forças externas que tudo controlam e
dominam, o que por si só demonstra que entre as duas concepções
existe muito mais que simples diferença: há uma verdadeira ruptura,
uma contradição.
Da mesma maneira que Sócrates, a Ética de Aristóteles está fundamentada na
identificação da razão como principal faculdade humana e da virtude (no sentido socrático
de excelência e conhecimentos práticos) como bem supremo.
Para Aristóteles, a virtude se encontra a meio caminho entre os extremos do excesso
e da deficiência. A coragem, por exemplo, é a “áurea mediana” entre os extremos da
46
“Sua aplicabilidade prática, porém, permanece fiel ao sentido original de hábito, uso, costume, direito”
(ADEODATO, 1995, p. 200). “O que designa a ética? Não uma moral, a saber, um conjunto de regras
próprias de uma cultura, mas uma ´metamoral`, uma doutrina que se situa além da moral, uma teoria
raciocinada sobre o bem e o mal, os valores e os juízos morais. Em suma, a ética deconstrói as regras de
conduta, desfaz suas estruturas e desmonta sua edificação, para se esforçar em descer até os fundamentos
ocultos da obrigação” (RUSS, 1999, p. 8).
106
107
imprudência e da covardia; a justiça (como virtude aristotélica) consiste no equilíbrio
adequado entre abrir mão dos próprios direitos e abusar dos direitos de outrem.
Para Darbo-Peschanski (1992, p. 35), a ética na visão de Aristóteles:
[...] está subordinada à política, ciência prática arquitetônica que tem
por fim (télos) o Bem propriamente humano (tò agathòn anthrõpinon).
Se este último depende da política, é porque a humanidade do homem
prende-se à sua vinculação a uma comunidade (koinõnía) e a cidade
(pólis) constitui o fim de toda comunidade. Segue-se que o ser incapaz
de fazer parte de uma koinõnía e, com mais forte razão, de uma
cidade, ou o ser que não tem nenhuma necessidade de tal inserção
porque se basta a si mesmo, classifica-se seja entre os deuses seja
entre os animais. A ética, entretanto, não dá mais que um
conhecimento aproximado do belo (tà kalá) e do justo (tà díkaia), o
qual a política toma sob sua responsabilidade visando o bem e se
afasta da ciência de que depende, em particular porque examina
indivíduos imersos em comunidades que não são exclusivamente
cívicas, como, por exemplo, o povo (éthnos).
Observa-se, pois, subjacente à ética aristotélica uma preocupação com a vida em
coletividade, com o indivíduo no âmbito de uma coletividade.
3.2 FUNDAMENTOS DA ÉTICA CLÁSSICA: A BUSCA DA FELICIDADE DO HOMEM
Aristóteles analisa o comportamento moral do homem, enquanto “ser racional” e
enquanto “ser social”, respectivamente nos tratados sobre ética e sobre política.
Observa-se que, para Aristóteles (1992, p. 18), o nome genérico “política” designa as
ciências práticas que versam sobre a atividade moral do homem. Para Aristóteles, a Política é
a ciência suprema. A organização da pólis, com sua vida comunitária e com sua sábia
legislação, é que possibilita ao cidadão os meios para que ele chegue à virtude ética.47
Aristóteles (1992) estuda o ato humano. Tal ato é entendido como livre, consciente e
dirigido a um fim.
Vislumbra, pois, que o homem, quando age, livre e conscientemente, almeja um
determinado fim. Indaga, então, para que o homem age?
Aristóteles responde que o homem sempre age visando ao bem (ágathon), seja o
bem pessoal, seja o bem comum. O bem pessoal que lhe trará bem-estar (eudaimonía), ou
seja, felicidade, ou o bem comum, que trará bem-estar à sua comunidade.
Para Aristóteles (1992, p. 20-21), o homem pode confundir-se e praticar o mal, mas
só o pratica porque se deixou iludir. Enxerga no mal algum bem, seja ele o prazer, seja ele as
honrarias, seja ele as riquezas.
O prazer, porém, é um bem aparente. Ele acaba por acorrentar-nos como escravos,
tornando nossa existência digna de animais, que também vivem atrelados ao cabresto.
47
“Uma vez que a ciência política usa as ciências restantes e, mais ainda, legisla sobre o que devemos fazer e
sobre aquilo de que devemos abster-nos, a finalidade desta ciência inclui necessariamente a finalidade das
outras, e então esta finalidade deve ser o bem do homem” (ARISTÓTELES. 1992, p. 18).
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108
As honrarias são uma ilusão. Não dependem de quem as recebe. Dependem de quem
as confere.
A riqueza é mero meio para o fim, não o fim em si, ou seja, o bem supremo. Não
carregamos o ouro em nosso caixão. As riquezas ficam para os outros.
Só o bem supremo nos traz a verdadeira felicidade. Ele consiste na contemplação do
bem e da verdade, ou seja, da reta razão que só age visando o bem e a verdade.
Sendo o homem inteligente, percebe ele, nitidamente, que os bens não são iguais.
Alguns estão subordinados a outros em uma determinada escala hierárquica. Logo, por um
bem maior, vale a pena sacrificar um menor. "A função própria de um homem de bem é o
bom e nobiliante exercício [...] do bem, executado com a forma de excelência adequada"
(ARISTÓTELES, 1992, p. 24).
Ademais, na busca da virtude da reta razão, Aristóteles (1992, p. 25) assinala a
necessária constância na luta pela felicidade: “Devemos acrescentar que tal exercício deve
estender-se por toda a vida, pois uma andorinha só não faz verão [...] Da mesma forma, um
dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz o homem bem-aventurado e feliz”.
A felicidade é, portanto, a meta a ser alcançada pela conduta humana.48
Na busca de uma ética peripatética, duas palavras-chaves importantes são: alma e
virtude.
A alma para Aristóteles (1992, p. 32-33) (psyché) pode ser analisada em três
espécies:
• a alma vegetativa, comum a todos os viventes: "não é uma coisa
especificamente humana";
• a alma sensitiva (apetitiva e concupiscente), comum aos animais,
dos quais o homem é o mais nobre representante;
• a alma racional, peculiar ao homem. Aristóteles o definiu como
"animal racional" (zôon lógikon).
Para Aristóteles, a virtude é exclusiva da alma racional. Assim, alma e virtude são
conceitos que se correlacionam, sendo que só o homem pode ter virtude.
As virtudes, por outro lado, podem ser de dois tipos: éticas e dianoéticas, conforme
afirma Novaes (1992, p. 9):
A virtude tem, portanto, por origem o exercício prático, a ação; e é a
ação que dá sentido político à moral. O Bem é o ato próprio de cada
ser, e a felicidade está na atividade, em fazer, em se construir uam
ciência dos valores da ação, como disse Valéry, e não na
potencialidade. Pierre Aubenque comenta uma segunda idéia contida
nesta parte do Livro II da Ética a Nicômaco: o ato próprio de cada ser
é aquilo que está mais de acordo com sua essência, com a parte
essencial do homem, que é a alma. Ora, como existem duas partes
da alma, a racional e a irracional, existirão, segundo a ética de
Aristóteles, duas espécies de virtudes: as virtudes intelectuais e as
virtudes éticas. As virtudes intelectuais originam-se e se
desenvolvem principalmente através do ensino e, por isso, diz
48
“A felicidade é o melhor, mais belo e mais agradável dos bens”. É mais bela do que a justiça, mais bela do
que a saúde e mais agradável do que os outros bens, porque “possuímos o que amamos” (ARISTÓTELES,
1992, p. 27).
108
109
Aristóteles, “requerem experiência e tempo”; as virtudes éticas
procedem dos costumes, e exprimem a excelência (areté) daquilo
que “na parte irracional é acessível aos apelos da razão”. (grifo nosso)
As virtudes éticas estão inscritas em cada ser humano na sua potência. Mediante o
exercício, elas saem de sua potencialidade e se transformam em ato:
Os homens se tornam construtores construindo. Tornam-se citaristas,
tocando cítara. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos
justos; moderados, agindo moderadamente; e corajosos, agindo
corajosamente.
[...] A pedra, no entanto, que, por sua natureza, se move para baixo,
não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente
habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima (ARISTÓTELES, 1992,
p. 35).
As virtudes dianoéticas se adquirem e se desenvolvem por obra do ensinamento (ex
didaskaliás).
Quanto às virtudes morais (assim denominados pela identificação semântica de
ethos com “costume” e “padrão de comportamento”) é o exercício constante (ethiké
pragmateía) que lhes dá origem e as fortalece:
Há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande
parte, a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o
seu crescimento à instrução. Por isto ela requer 'experiência' e tempo.
Quanto à excelência moral, ela é produto do hábito ('hexis)’
(ARISTÓTELES, 1992, p. 36).
Para desenvolver e preservar a prática da virtude ética, objeto do estudo neste
trabalho, é necessário agir "de acordo com a reta razão", sendo que a reta razão molda-se pela
máxima "virtus stat in medio" (ARISTÓTELES, 1992, p. 36).
Nesse sentido, Novaes (1992, p. 10) ensina:
[...] Como a substância não é apenas alma, mas o composto de corpo e
alma, o ser por inteiro – corpo e alma – é afetado pelas paixões (ira,
medo, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, desejo, ciúmes e, em
geral, tudo o que vem acompanhado de prazer e dor). É por isso que
Aristóteles afirma na Ética a Nicômaco que as paixões são a matéria
da virtude, isto é, o uso mesurado das paixões torna o homem
virtuoso.
Para Aristóteles, de forma absoluta, em si, não há virtude. O que há é
(comparativamente) excesso ou escassez. Ou demasiado, ou pouco, ou excessivamente pouco
na concretude da situação fática. A virtude ética é, pois, procurar o meio-termo.
Exemplificando, Aristóteles ressalta que em relação ao medo e à temeridade, o meio-termo é
a coragem.
Uma expressão na obra “Política” de Aristóteles da busca do meio-termo, segundo
Bobbio (1998, p. 62), é o célebre elogio à classe média como ponto intermediário entre as
classes ricas e pobres e como fator de estabilidade dos Governos, uma vez que impediria as
revoluções pelos extremos e “excessos” decorrentes da riqueza e da pobreza.
Assim, a ética teleológica aristotélica destaca que o bem supremo do homem é a
felicidade (eudaimonía) (ARISTÓTELES, 1992, p. 25-27).
109
110
Quando, entretanto, Aristóteles vai detalhar o conceito de felicidade, assinala que há
imprecisões do que seja a felicidade para os homens. Mostra, não obstante, que a felicidade
pode ser alcançada como atividade, busca racional da virtude, sendo este o objetivo da ética
artistotélica (LORD, 1987, p. 124).
Trata-se, portanto, de ética primordialmente pessoal que almeja a realização plena do
homem-indivíduo, de forma direta; não obstante tal realização em nível individual, também,
de forma indireta, repercute para o bem-estar social.
3.3 MACROÉTICA AMBIENTAL: UMA ÉTICA SOCIAL QUE BUSCA EVITAR A
INFELICIDADE DA COLETIVIDADE
3.3.1 Macroética: uma ética de agrupamentos sociais
Quando falamos em "macroética", referimo-nos aos sistemas de reflexão sobre a
experiência ética da coletividade, uma ética de responsabilidade. Nesse sentido, a reflexão
tem tipicamente natureza filosófica como na ética de Aristóteles, de cunho individual, já
analisada, só que agora adquire cunho coletivo.
Apel (1994, p. 164) usa o termo “ética de responsabilidade” em contraponto à noção
tradicional de ética, que busca a resolução de problemas individuais. Por outro lado, refere-se
à “orientação ético-política fundamental” para designar o papel de uma ética de
responsabilidade solidária da humanidade, verbis:
Meu questionamento filosófico, em face da atual crise do sistema
planetário da humanidade, é, por conseguinte, a questão sobre a
possibilidade de uma orientação ético-política fundamental. E, quando
a isso, não é nada evidente que uma tal orientação normativa de base
seja realmente possível em sentido filosófico. Isso porque já se
discute, hoje em dia, se é realmente possível, ante os conflitos de
nossa época e as correspondentes controvérsias ideológicas,
fundamentar algo como uma ética de responsabilidade solidária.
Na idade da ciência, Apel questiona como não enfocar a necessidade de uma
fundamentação objetiva e racional da ética. A partir do risco de destruição pela guerra e pelas
técnicas modernas, verifica-se a necessidade de construção de uma ética que transponha os
campos individuais e que se direcione para a humanidade como um todo. A técnica industrial,
conforme já visto, conduz a uma problemática universal, posto que toda ecoesfera humana
está ameaçada. É, doravante, em escala planetária que se põem, na sua urgência, os problemas
éticos, ligados a uma responsabilidade coletiva.
Enfatizando a importância da construção de uma ética de responsabilidade
envolvendo a questão ambiental, em face das conseqüências tecnológicas atuais, destaca
Apel (1994, p. 193) que:
[...] tanto o perigo da guerra nuclear como também a crise ecológica
atingem a humanidade como um todo. Aqui, pela primeira vez na
história mundial transcorrida até agora, se torna visível uma situação,
110
111
na qual os homens, em face do perigo comum, são desafiados a
assumir coletivamente a responsabilidade moral.
O movimento ambientalista nesse sentido, também, pode ser considerado como
macroética, “não no sentido de fundamentação teórica, mas no de motivação imediata de
práticas de ação de agrupamentos sociais, tendendo a constituir verdadeiras ‘atmosferas
morais coletivas’ protetivas do meio ambiente” (VIEIRA, 1998, p. 160).
A grande crise ecológica da civilização técnico-científica desperta a construção de
teoria ética ecológica. Tal como a ética do discurso49, que surge com nossos dias, como
proposta inovadora de construção de ponte entre a teoria e as questões cruciais da
humanidade, a ética ecológica almeja iluminar a relação atual homem/natureza.
Conforme destaca Russ, o próprio Apel abre o debate atual sobre a ética do discurso,
desenvolvida, notadamente, por Habermas. Apel, em ensaio de 1967 – “O a priori da
comunidade comunicativa e os fundamentos da ética” – a partir da ética, analisa as aporias e
dificuldades contemporâneas de fundar racionalmente uma macroética, válida para a
sociedade humana no seu conjunto. Conclui que o cientifismo repele o problema do direito
(dever ser) e pretende se ater aos fatos (ser), razão pela qual visualiza o aparente paradoxo
da necessidade e da impossibilidade da macroética.
Buscando resolver este paradoxo, Apel demonstra que a lógica e a ciência se referem
implicitamente a uma ética, como condição a priori de sua existência. O argumento científico,
na sua validade lógica, remete sempre a uma comunidade de pensadores que chegam a uma
compreensão intersubjetiva. Todo cientista, mesmo considerado na sua investigação solitária,
submete, potencialmente, sua argumentação ou sua demonstração a uma coletividade, à qual,
ao menos em potência, ele se refere. Sua linguagem privada não o põe em condições de
construir a ciência: é preciso que ele recorra a uma argumentação racional comum a todos.
Apel reintroduz a linguagem comum no próprio seio da ciência, que se pretende
unicamente fiel ao fato, mas se refere a valores e não se mostra, pois, axiologicamente
neutra, como aparenta o cientista de visão obtusa (RUSS, 1999, p. 80-84).
Buscando provar a argumentação de Apel da posição axiológica da ciência por meio
da comunicação intersubjetiva da comunidade científica, pode-se citar o Relatório Meadows
na sua estrutura científica e mensagem valorativa. Recentemente, conforme previsto no
Relatório Meadows,50 evidenciou-se, por mecanismos argumentativos, que a ecosfera
planetária apresenta conjunto de recursos limitado. Tal concepção contradizia com o que até
então se imaginava do controle tecnológico humano.
Assim, a própria linguagem remete ao consenso, ao acordo, à comunicação
transparente, à escolha esclarecida de um conjunto de indivíduos que dialogam. Então, a idéia
de consenso vai marcar a investigação ético-moral coletiva.
Nesse sentido, Apel (1994, p. 167) afirma que:
[...] durante muito tempo se esteve habituado à concepção de que
controle científico-tecnológico do homem sobre a natureza tinha sido
definitivamente atingido e de que só era necessário complementá-lo
49
Ao falar da ética do discurso (“discourse ethics”), não se pode esquecer de Habermas. Na sua famosa
publicação da “Teoria da ação comunicativa”, ao estudar a linguagem, a hermenêutica e a verdade, constatou
que a compreensão do processo hermenêutico leva ao raciocínio de que a verdade só pode ser alcançada
quando se busca um consenso em uma com unidade limitada de intérpretes (OUTHWAITE, 1994, p. 38-39).
50
O Relatório Meadows constitui-se em um trabalho realizado em abril de 1968, pelo chamado Clube de Roma,
que visava “examinar o complexo de problemas que afligem os povos de todas as nações: pobreza em meio à
abundância, deterioração do meio ambiente”, dentre outros (Meadows et al., 1973, p. 10).
111
112
pelo controle do homem sobre o homem, no social engineering (na
engenharia social); em nossos dias, porém, fica claro, aos pouco que a
relação do homem com a natureza ainda inclui problemas bem
diversos do que a mera exploração tecnológica de nosso conhecimento
das leis causais (do anorgânico) para a realização de fins subjetivos de
ação humana.
Assim, na obra Estudos de moral moderna, coletânea de trabalhos anteriores, foram
publicados dois importantes trabalhos de Apel que destacam a busca de ética de
responsabilidade solidária, valorativa, em face da crise ecológica da civilização técnicocientífica: “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política
fundamental” e a “Situação do ser humano como problema ético”.51
Apel oferece argumentos robustos da possibilidade e necessidade de ética para a
relação do ser humano com a natureza, com tal argumentação correlaciona o mundo do ser
(científico, dos fatos) com o mundo do dever ser (ético-jurídico, das condutas aprovadas).
No ensaio “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política
fundamental”, Apel (1994, p. 164) afirma:
Em face das ameaças que pairam atualmente sobre a bio ou ecosfera
humana, por causa dos problemas de superpopulação, de escassez das
reservas energéticas, de destruição do ambiente, etc.; em síntese, em
face da crise ecológica e da problemática abordada pelo `Clube de
Roma', no sentido da moderna teoria sistêmica, é possível perguntar
pela correlação entre os conflitos humanos e a ameaça da biosfera
humana; e aqui emerge, de fato, a questão: por acaso se exige algo
semelhante a uma modificação de sistema em medida planetária? E
nesta correlação, é possível levantar a questão ético-política: o que
devemos fazer?
Conforme destaca Baracho Júnior (1999, p. 202):
Apel afirma que o potencial tecnológico da ciência teve como
resultado o risco das atividades humanas atingirem uma
amplitude assombrosa. Valendo-se da ilustração feita por Lorenz
sobre os problemas etológicos e éticos que decorrem desse fato, Apel
compara o homem do paleolítïco, armado com um machado, com o
piloto que transportou a bomba atômica lançada sobre Hiroshima
(grifo nosso).
Ressaltando a problemática contemporânea da destruição do meio ambiente e
fazendo referência à lógica aristotélica e à ética discursiva, Kaufmann (1999, p. 522), no
mesmo diapasão, entrevê a necessidade da busca de novos paradigmas filosóficos:
Desde Aristóteles hasta hoy se esfuerza la ética por presentar reglas
de conducta para el caso normal. Esto también es directamente
válido para la ética discursiva. Pero nuestra actual situación no es
normal. El presente está ante la siguiente alternativa: tendrá la
humanidad um futuro o va hacia su destrucción? (grifo do autor).
Kaufmann (1999, p. 522), também, apresenta, pois, a necessidade de ética da
civilização técnica. Destaca, nesse sentido, trabalho desenvolvido por Jonas: “Nadie se há
empeñado más por una ética de la civilización técnica que Hans Jonas, por una ética que no
tiene reglas para todo sino una ética para el estado de necesidad.”
51
Cf. Apel, 1994, cap. 3-4, p. 163-222.
112
113
Como destaca Mancini et al. (2000, p. 28), a obra de Jonas, filósofo alemão de
origem hebraica, que morreu em 1993, representa uma passagem obrigatória para a pesquisa
da macroética da humanidade. A importância da sua contribuição deriva, fundamentalmente,
da retomada da categoria da responsabilidade com o destino da humanidade futura no âmbito
do mundo tecnológico contemporâneo.
Jonas, na obra “O princípio da responsabilidade”, pode ser considerado como crítico
da sociedade moderna tecnicista,52 não obstante o eixo fundamental desenvolva-se no âmbito
de crítica à obra de Bloch, “O princípio da esperança” e ao utopismo marxista nela presente,
que levaria a um não-agir no presente na expectativa de um futuro promissor.53
Discípulo de Heidegger, Jonas analisa o marxismo, apreciando, com ponderação, os
argumentos favoráveis e contrários, destacando, entretanto, que, sob o ponto de vista
ecológico, o marxismo apresenta características maléficas.
Assim, sob o pano de fundo da visão marxista de exploração máxima dos recursos
naturais, Jonas constrói a época de sua obra ética do “futuro” que poder-se-ia chamar de
“contemporânea”.
De modo assemelhado ao raciocínio desenvolvido por Apel, das amplas dimensões
da relação do agir humano com os outros homens e com o mundo em geral, Jonas (1995, p.
23) destaca a necessidade de nova ética distinta das éticas até hoje formuladas em razão da
“modificação do alcance da ação humana”:
Todas las éticas habidas hasta ahora – ya adoptasen la forma de
preceptos directos de hacer ciertas cosas y no hacer otras, o de uma
determinación de los principios de tales preceptos, o de la
presentación de um fundamento de la obrigatoriedad de obedecer a
tales principios – compartían tácitamente las seguintes premisas
conectadas enre sí: 1) La condición humana, resultante de la natureza
del hombre y de las cosas, permanece em lo fundamental fija de uma
vez para siempre. 2) Sobre esa base es posible determinar com
claridad y sin dificultades el bien humano. 3) El alcance de la acción
humana y, por ende, de la responsabilidad humana está estrictamente
delimitado.
Assim, como há mudança no alcance da ação humana, deve haver maior
preocupação com a responsabilidade decorrente dessa ação.
Essa preocupação com o alcance da lesão causada pela conduta humana, decorrente
da quebra do preceito “neminem laedere”, já tinha sido objeto de preocupação no Direito
Romano e continua sendo no Direito Moderno.54
52
“La tesis de partida de este libro es que la promesa de la técnica moderna se há convertido em uma amenaza, o que
la amenaza há quedado indisolublemente asociada a la promesa” (JONAS, 1995, p. 15).
53
“O pensamento utópico do século XX tem se baseado na idéia de progresso que o século XIX incorporou à
utopia ao lado da ciência. A mais característica forma de utopia do século XX foi a idéia de socialismo,
embora o liberalismo também tenha uma dimensão utópica. Apesar de seus protestos em contrário, o
pensamento de Marx e Engels é profundamente utópico” (BURDEN, 1996, p. 788). Como destaca Mancini et
al. (200, p. 40) e se deflui da obra de Jonas sobre o princípio da proporcionalidade, a utopia referida vinculase a filosofia utópica de Bloch, “Nesta última concepção, o ser não está dado, mas está em devir, é um <<nãoser-ainda>> que chegará à sua identidade apenas no futuro de uma libertação total da humanidade e do
mundo. Mas, para Jonas, pelo contrário, deve ser reconhecido o valor intrínseco daquilo que já é, em vez de
reduzi-lo a uma simples prefiguração daquilo que ainda deve vir”.
Conforme Kaser (1999, p. 281): “Delictum(privactum) [...] é um facto antijurídico que lesa o INDIVÍDUO, a
sua personalidade, a sua família ou o seu património. Só este delito privado pertence ao direito privado. Os
crimina, os factos PÚBLICOS puníveis que causam uma grave injustiça à comunidade (como alta traição,
54
113
114
Assim, ao tratar da vulnerabilidade da natureza perante a ação humana, Jonas (1995,
p. 26) menciona, mais uma vez, a necessidade da construção de uma nova ética:
[...] La naturaleza, em cuanto responsabilidad humana, es sin duda
um novum sobre el cual la teoria ética tiene que reflexionar. Qué
clase de obligación actúa em ella? Se trata de algo más que de um
interés utilitário? Se trata simplemente de la prudencia que nos
prohíbe matar la gallina de los huevos de oro o cortar la rama sobre
la que uno está sentado? Pero, quén es esse <<uno>> que está em
ella sentado y que quizás caiga al vacío? Y cuál es mi interés em que
permanezca em su lugar o se caiga?
Portanto, para Jonas e Apel, a pretensão de mudar o mundo para construir o amanhã
(homo faber) deve ceder lugar ao dever de proteger a vida e de preservar o futuro (ética
da responsabilidade como preocupação com a existência e qualidade de vida das gerações
futuras).
3.3.2 Análise comparativa das éticas de Apel, Hans Jonas e Aristóteles
3.3.2.1 O progresso tecnológico e o homo faber como mecanismos ensejadores de uma nova
ética
Assim, Jonas e Apel, assustados com a realidade da exploração ambiental pela
tecnologia humana, elaboraram teorias macroéticas para o bem da humanidade.
Se Apel tenta construir uma razão prática independente da metafísica, com base na
ética do discurso científico, Jonas, ao contrário, evidencia a fundamentação de sua ética em
parâmetros metafísicos e ontológicos de um aluno de Heidegger. Ligada a uma ontologia, a
ética de Jonas explora a responsabilidade para com o futuro pelo qual os viventes presentes
são responsáveis.
Não obstante a diversidade de fundamentos da ética de Apel e de Jonas,
diversamente da ética aristotélica, individualista, analisada anteriormente, com base na obra
“Ética a Nicômaco”, tais éticas emergem de uma necessidade coletiva para resolução de
problemas coletivos.55
55
traição à pátria, homicídio, etc.) e, por isso, são perseguidos num processo penal e estatal muito mais rigoroso
e severo (embora muitas vezes a partir de uma denúncia particular), pertencem ao direito penal [...] Comum a
todos os delitos é o pressuposto da ilicitude da lesão.” No âmbito do Direito Moderno, a preocupação com a
responsabilização objetiva do Estado pela energia nuclear, prevista expressamente na Constituição Federal
Brasileira de 1988, na alínea “c” do inciso XXIII do art. 21 retrata a visão de que a amplitude do dano pode
ensejar uma responsabilização independente de culpa.
“[...] a necessidade de uma ética, intersubjetivamente vinculada, de responsabilidade solidária da humanidade,
diante das conseqüências de atividades e conflitos humanos” (APEL, 1994, p. 164-165) e “Lo que hoy puede
hacer el hombre – y después, em el ejercicío insoslayable de esse poder, tiene que seguir haciendo – carece
de parangón en la experiencia pasada. Toda la sabiduría anterior sobre la conducta se ajustaba a esa
experiencia; ello hace que ninguna de las éticas habidas hasta aahora nos instruya acerca de las reglas de
<<bondad>> y <<maldad>> a las que las modalidades enteramente nuevas del poder y de sus posibles
114
115
Também, ambas têm preocupação com o progresso e com o tecnicismo moderno.
Nesse sentido, ilustrativas são as passagens abaixo, respectivamente, de Jonas e Apel:
Tómese por ejemplo, como primer y mayor cambio sobrevenido em el
cuadro tradicional, la tremenda vulnerabilidad de la natureza
sometida a la intervención técnica del hombre, uma vulnerabilidad
que no se sospechaba antes de que se hiciese reconocible em los
daños causados (JONAS, 1995, p. 32).
Em síntese: A superação, pelo homo faber, das anteriores barreiras
instintivas, organicamente condicionadas, sua intervenção no
ambiente natural por meio de ferramentas e principalmente sua
mortífera ação armada contra animais e contra o próximo (APEL,
1994, p. 195, grifo nosso).
Esta preocupação com o processo e com o tecnicismo moderno no termo “homo
faber” merece ser aprofundada no contexto da abordagem de Arendt (2001) na obra “A
condição humana”, a ser desenvolvida no << item 6.1>> desta primeira parte.
Na percuciente análise de Arendt, comprova-se a importância da passagem do
homem de sujeito passivo da Natureza para sujeito ativo desta, na instrumentalização da
natureza pelo homo faber, fato este, também, destacado por Apel e Jonas.
3.3.2.2 Semelhanças e diferenças das éticas de Apel, Jonas e Aristóteles
A comparação da ética grega aristotélica com a ética moderna destaca, no dizer de
Novaes (1992, p. 8), o caráter facultativo da primeira e o “obrigatório” da segunda:
[...] uma perda irreparável, a idéia de felicidade, e a sua substituição
pelas noções de obrigação, dever, obediência; o desaparecimento do
modelo ideal de virtude, que poderia ser seguido optativamente, e o
surgimento das normas éticas e dos preceitos a que se deve obedecer.
Jonas (1995, p. 33), também, divulga rica passagem caracterizando a ética da
responsabilidade como ética antropocêntrica, o que a aproxima da ética clássica; mas, por
outro lado, a afasta, no que se refere à ética clássica trabalhar com condutas não
cumulativas, verbis:
En la medida em que es el destino del hombre, en su dependencia
del estado de la naturaleza, el referente último que hace del interés en
la conservación de ésta un interés moral, también aquí há de
conservarse la orientación antropocéntrica de toda la ética clásica.
No obstante, la diferencia sigue siendo grande. La limitación a la
proximidad espacial y a la contemporaneidad há desaparecido
arrastrada por el ensanchamiento espacial y la dilatación temporal
de las series causales que la praxis técnica pone em marcha incluso
para fines cercanos. Su irreversibilidad, asociada a su concentración,
introduce um factor novedoso en la ecuación moral. A esto se añade
creaciones han de someterse[...]” (JONAS, 1995, p. 15).
115
116
su carater acumulativo: sus efectos se suman, de tal modo que la
situación para el obrar y el ser posteriores ya no es la misma que
para el agente inicial, sino que es progresivamente diferente de
aquellá y es cada vez más el producto de lo que ya fue hecho. Toda la
ética tradicional contaba unicamente com comportamientos no
acumulativos (grifo nosso).
Outra diferença entre a ética de Jonas e a de Aristóteles pode ser vista na ênfase ao
destinatário da ética. Na ética aristotélica, a base essencial do destino é o indivíduo. Para
Jonas (1995, p. 37), a ética da responsabilidade dirige-se primordialmente ao ESTADO (na
confecção de políticas públicas que lhe dêem cumprimento), verbis:
Esto exige una nueva clase de imperativos. Si la esfera de la
produción há invadido el espacio de la acción esencial, la moral
tendrá entonces que invadir la esfera de la producción, de la que
anteriormente se mantuvo alejada, y habrá de hacerlo en la forma
de política pública. Nunca antes tuvo ésta parte alguna em cuestiones
de tal alcance y em proyectos a tan largo plazo. De hecho la esencia
modificada de la acción humana modifica la esencia básica de la
política
[...] La frontera entre <<Estado>> (polis) y <<Naturaleza>> há
quedado abolida. La ciudad del hombre, que antaño constituía um
enclave dentro del mundo no humano, se extiende ahora sobre toda
la naturaleza terrenal y usurpa su lugar (grifo nosso).
Há diferenças entre Apel e Jonas, apesar de ambos se preocuparem com o
tecnicismo. Jonas discute a possibilidade de ética ecocêntrica ao indagar se a Natureza tem
valor moral próprio (JONAS, 1995, p. 35), enquanto Apel, nos textos em análise, não trata
deste tema.
Ressalta Jonas, no âmbito da tradição européia, preocupação que, também, teve
expressão no continente americano, conforme veremos com a análise de correntes éticas
voltadas para a Natureza como valor intrínseco.
Jonas (1995, p. 35) destaca que esse tema, apesar de inovador e revolucionário no
âmbito ético e científico, tem expressão no âmbito religioso, na expressão de que o homem é
“fiduciário do criador”, verbis:
A excepción de la religión, ninguna ética anterior nos há preparado
para ello la visión científica hoy dominante de la naturaleza. Esta
visión nos niega decididamente cualquier derecho teórico a pensar
em la naturaleza com algo que haya de ser respetado, pues la há
despojado de la dignidad de los fines (grifo nosso).
Apesar de não se posicionar expressa e entusiasticamente em relação a esta visão
ética, Jonas dá vulto à abertura de apreciação filosófica desta questão (JONAS, 1995, p. 35).
No campo dessa ética ecológica de responsabilidade coletiva, passível de análise e
apreciação do Natural além do humano, podemos classificar algumas correntes – de
macroéticas – contemporâneas para o trato da questão ambiental.
116
117
4 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS QUANTO AOS ATORES DO
CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E
ECOCÊNTRICA
4.1 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS
A macroética ambiental quanto aos atores do consenso pode ser antropocêntrica
ou ecocêntrica.
Ambas, entretanto, visam sempre à universalização da solidariedade (seja ela
entre homens ou entre homens e outros entes), razão pela qual podemos afirmar que
podem ser vistas como macroéticas discursivas que almejam um consenso nos conceitos
apresentados por Apel (ética de responsabilidade coletiva moral) e de Jonas (ética voltada
para a civilização técnica contemporânea, expressa no imperativo da responsabilidade).
O que as diferencia, por outro lado, são exatamente os atores principais da
solidariedade proposta. Nesse aspecto, podemos falar de uma ética antropocêntrica e de
uma ética ecocêntrica, não obstante haja uma significativa gradação nesta última.
Nesse aspecto Elliot (2000, p. 178) afirma que;
Muitas respostas éticas à destruição ambiental são centradas no ser
humano e não buscam uma nova análise da preocupação ética e da sua
estrutura. Em princípio para esta visão, a ética ambiental é
simplesmente a aplicação de princípios e valores que são centralizados
no homem.
Entretanto, apreciando a ética ecocêntrica, afirma que: “O primeiro passo fora do
círculo dos interesses humanos está na inclusão dos interesses dos animais nas nossas deliberações
éticas” (ELLIOT, 2000, p. 179).
Mas a visão ecocêntrica deve limitar-se aos animais? Tal indagação faz com que
Elliot (2000, p. 179), no desenvolvimento do seu raciocínio, afirme que:
Assim, tem sido defendido que todas as coisas vivas devam ser
consideradas. Aqui, a relevância moral de um arbusto não se exaure na
relação do ato humano e do ato dos outros animais. A pretensão é a de
que o arbusto per si tenha direito a ser considerado moralmente.
Enfim, ampliando cada vez mais o círculo dos atores relevantes para o
consenso ético, Elliot (2000, p. 180) destaca a complexidade que a macroética vai
assumindo:
O tema torna-se mais complicado quando nós notamos que há mais
elementos a serem considerados na ética ambiental. Assim, há uma
extensão além das coisas vivas que alguns sugerem, segundo estas
sugestões todas as coisas naturais devem ser moralmente
consideradas, independente de serem ou não vivas.
Não obstante essa gradação acarrete cada vez maiores complexidades, não se
pode esquecer, segundo Elliot (2000, p. 181), que o aspecto fundamental do
117
118
desenvolvimento da ética ambiental tem sido o deslocamento da visão antropocêntrica para
a ecocêntrica.
4.2 A ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: CARACTERÍSTICAS BÁSICAS
A ética antropocêntrica vincula-se às relações existentes entre os homens e a
Natureza em geral, com a preocupação exclusiva de satisfação das necessidades
humanas; avalia as políticas ambientais com observância na forma como elas afetam os
seres humanos.
Por exemplo, na avaliação ética antropocêntrica da conduta de exploração de
recursos naturais, tal como a exploração de minerais em florestas onde vivem tribos
indígenas, levar-se-á em conta todos os seres humanos envolvidos, incluindo os índios, os
produtores, consumidores e usufrutuários da floresta que serão beneficiados ou prejudicados
pela exploração mineral. Não são levados em consideração os animais e os vegetais lá
existentes como atores, também, prejudicados por essa exploração.
Deve-se destacar, por outro lado, que a ética antropocêntrica, em si, já ampara e
protege o meio ambiente, requerendo, em muitos casos, mais proteção ambiental do que a
existente atualmente. O grau de proteção ambiental, nessa ótica, mostra-se relevante e
presente e é, pois, crítico à situação de degradação vigente.
A destruição indiscriminada dos recursos naturais e a modificação de destinação de
áreas naturais em áreas agrícolas ou urbanas, por exemplo para a ética antropocêntrica, são
práticas reprováveis, pois, muitas vezes, ocasionam aumento dos malefícios em detrimento
dos benefícios para os homens em geral, principalmente quando as gerações humanas
futuras são lembradas.
Ainda assim, muitos ambientalistas verificam que a ética antropocêntrica é
insatisfatória, porque ela não reconhece o direito das outras espécies de compartilhar o
planeta. Além disso, a ética antropocêntrica considera, de forma reducionista, somente o valor
da Natureza para os seres humanos.
A ética ecocêntrica procura corrigir essas deficiências, permitindo atribuirem-se
valores para criaturas não-humanas. Os homens têm direito sobre o meio ambiente;
entretanto, não se pode esquecer que as outras espécies também o têm. O espectro de atores
sociais é alargado, com a correspondente dificuldade para a busca do consenso.
No caso apresentado anteriormente referente à exploração mineral em uma floresta,
deveriam ser levados em conta não só a população indígena, os produtores e consumidores,
como também as espécies animais e vegetais que serão notoriamente prejudicadas pela
extração do minério (BARKDULL, 2000, p. 362).
Assim, mesmo que a não utilização do minério acarrete problemas no
desenvolvimento de uma determinada cidade (desemprego, falta de lazer, falta de recursos
financeiros), isto não cancela a prerrogativa ética dos animais de potencialmente continuarem
a viver no seu habitat.
4.3 A ÉTICA ECOCÊNTRICA: CARACTERÍSTICAS BÁSICAS
118
119
A divergência doutrinária sobre o pressuposto de que só os animais (almas sensitivas
e motoras) têm essa prerrogativa de respeito ao seu meio ambiente ou se os vegetais (almas
vegetativas) também o têm, varia de acordo com as diversas subteorias da corrente
ecocêntrica.56
Todas as subteorias ecocêntricas, entretanto, consideram que os animais (dando-se
destaque às suas almas sensitivas) têm certos interesses essenciais (notadamente à vida e à
integridade física) por serem criaturas capazes de sentir emoções e dor.
O conceito é rejeição implícita ao antropocentrismo corporificado, por exemplo, na
doutrina dualista ("animal-máquina") de Descartes,57 que afasta a possibilidade de os
animais poderem ter "interesses" que os humanos devam respeitar.
Do ponto de vista filosófico, a questão dos direitos dos animais encontra raízes na
teoria utilitarista de Bentham (apud SINGER, 1994, p. 83), que postulava no sentido de que,
embora possam divergir do interesse do ser humano, os interesses dos animais devem ser
igualmente respeitados.
Montaigne (2000, p. 369), ao discordar da relação de parentesco entre os animais e
os homens, salienta, entretanto, ao tratar da crueldade, que:
Mas, ainda que tudo isso seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito
, não somente pelos animais, mas também por tudo o que encerra vida
e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens, devemos
justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude
e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam
reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão
inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a
meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede.
Assim, também baseia-se na convicção de que os animais são seres sensitivos
capazes de sofrer e de que há obrigações recíprocas entre homens e animais. Logo, os animais
são fins em si mesmos (seres principais), e não simples meios (seres acessórios) para fins
determinados pelo homem.58
Esses princípios foram expressos, mais recentemente, pelo filósofo australiano
Singer (1991) em Animal Liberation.
56
57
58
Para a “deep ecology” de Arne Naess e para a “Teoria de Gaia” de Lovelock, todos os entes animados e
inanimados possuem tais “direitos” e para algumas correntes protetivas dos animais (almas sensitivas), tal
como a defendida por Peter Singer e Tom Regan, só os animais por sentirem dor possuem.
A filosofia cartesiana do dualismo distinguia estritamente entre espírito e matéria como duas espécies
distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os
animais pertenciam à segunda categoria, eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer
tipo de pensamento. A idéia de classes de substâncias mutuamente exclusivas deu origem ao problema
corpo/espírito humano: como poderiam os dois interagir? A resposta de Descartes era que os dois se uniam
na glândula píneal do cérebro.
Ilustrativa a retrospectiva de Montaigne (2000, p. 369-370) sobre os povos e o cuidado com os animais: “Os
turcos possuem estabelecimentos em que recolhem os animais e hospitais em que os tratam. Os romanos
alimentavam a expensas do tesouro os gansos que tinham salvo o Capitólio. Os atenienses haviam decidido
que as mulas e os burros empregados na construção do templo de Hecatompedon seriam deixados em
liberdade e pastariam onde quisessem sem que ninguém os pudesse impedir. Os agrigentinos tinham por
costume corrente enterrar cerimoniosamente os animais queridos, cavalos dotados de alguma qualidade rara,
cães e pássaros úteis ou simplesmente divertidos [...]”
119
120
Para Singer (1991, p. 5), o “princípio da igualdade” (na sua concepção de não
discriminação) dos seres não se restringe aos humanos; trata-se de obrigação de como
devem se tratar os seres em geral como merecedores de iguais preocupações.
Exemplificando, Singer (1991, p. 7) afirma que constitui uma conseqüência do
princípio da igualdade o fato de que devemos nos preocupar com os outros, considerando os
seus interesses independentemente das habilidades ou de como eles são, devendo ter
“interesses” todos aqueles que possuam a capacidade de sofrer. Da mesma maneira, que não
deve haver racismo nem discriminação em função do sexo, não deve haver “speciescism”.59
Os interesses dos seres sensitivos (humanos ou não-humanos (animais)) devem ser
sempre considerados. Portanto, o que está sujeito a variações são os tipos de interesses que
devem ser considerados. Exemplificando, Singer (1991, p. 5-7) comenta que, para as crianças
de certa idade, a educação para a leitura constitui interesse a ser alcançado; para o bem-estar
dos porcos, entretanto, basta que fiquem com os outros porcos em local adequado e com
comida para poderem viver livremente (“direitos” de liberdade).
Em resumo, para Singer (1991, p. 9) há paralelo entre o racismo, a discriminação
sexual e o antropocentrismo,por isso sua obra está centrada na “libertação dos animais da
dominação humana”:
Os racistas violam o princípio da igualdade ao darem maior peso aos
interesses dos homens da sua própria raça quando em choque com os
interesses dos de outra raça. As pessoas que discriminam os outros
pelo sexo violam o princípio da igualdade por favorecerem os
interesses do seu próprio sexo. De forma análoga, os antropocêntricos
permitem que os interesses da sua própria espécie suprimam os
interesses fundamentais dos membros das outras espécies. O
paradigma de comportamento, portanto, é o mesmo.
Assim, a visão ecocêntrica ampara os defensores dos “direitos” dos animais a
oporem-se à exploração e ao abuso de animais em condutas tais como: a vivissecção, a
criação para abate e o entretenimento em circos e rodeios.
Nesse sentido, Singer (1994) afirma que o uso de animais em experiências clínicas e
em testes de produtos constitui contradição lógica: julgamos aceitável sujeitar os animais a
experiências dolorosas que não infligiríamos aos seres humanos porque os animais não são
iguais a nós, mas, por outro lado, consideramos essas experiências cientificamente válidas
porque os animais são iguais a nós. 60
A doutrina dos interesses dos animais tem, pois, relação umbilical com os
movimentos ambientalistas e com a macroética da responsabilidade de Apel e Jonas, que
afirmam que a superioridade intelectual humana e o domínio da tecnologia, apesar de nos
59
60
No primeiro capítulo de sua obra “All animals are equal...”, o autor desenvolve a argumentação de que o
princípio moral da igualdade necessita ser estendido aos animais. Utilizando-se de argumentos de Thomas
Jefferson e Bentham sobre a necessidade de respeito a liberdade das pessoas independente de seus talentos ou
de suas características, esse filósofo australiano contemporâneo afirma que : “a capacidade de sofrimento é a
característica fundamental que fornece a um ser o direito de ser tratado com consideração”, com respeito a
determinados direitos inalienáveis. Desse modo, os animais, pelo menos, teriam direitos de primeira geração
(vida, liberdade e respeito a sua integridade física) (SINGER, 1991, p. 7).
“[...] pois os que fazem tais experiências quase sempre tentam justificar a sua realização com animais com a
alegação de que as experiências nos levam a descobertas sobre os seres humanos; se assim for, essas pessoas
devem concordar com a afirmação de que os seres humanos e os animais são semelhantes em aspectos
cruciais” (SINGER, 1994, p. 75).
120
121
proporcionarem a capacidade de explorar o mundo natural, não nos dão o direito de fazê-lo de
forma indiscriminada.
Assim, não há dúvida de que a teoria ecocêntrica seja mais exigente quanto ao grau
de proteção do meio ambiente, quando comparada com a teoria antropocêntrica.
Deve-se destacar, também, que alguns autores mencionam a existência de terceira
teoria – a teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363).
A diferença entre a teoria ecocêntrica stricto sensu e a biocêntrica está na colocação
de uma ética que vincula-se só aos seres animados (vegetais e animais) – teoria ecocêntrica
strito sensu, em contraposição a uma concepção, mais ampla, que vincula todos os entes
físicos e biológicos, sejam eles entes inanimados ou seres animados, sejam vistos como um
todo (teoria de Gaia) ou isoladamente – teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363).
No âmbito deste trabalho, adotar-se-á classificação binária, estando a teoria
biocêntrica contida na teoria ecocêntrica, aqui utilizada lato sensu em oposição à visão
antropocêntrica.
121
122
5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO
EVOLUCIONISMO
5.1 O DUALISMO NA VISÃO DE ANIMAL-MÁQUINA DE DESCARTES
A afirmação de que o mundo se compõe geral e fundamentalmente de duas
substâncias, denominadas espírito e matéria - ou de que haja mundo físico e mundo espiritual
foi objeto de trabalho de Descartes na sua obra Discurso do Método e Meditações.
O dualismo teve sua primeira expressão na oposição entre o bem e o mal que servia
de base ao mito da criação da religião de Zoroastro, fundada por volta de 1000 a.C. A batalha
entre o bem e o mal, Deus e Satanás, aparece em muitas tradições religiosas. A seita
maniqueísta, por exemplo, fundada na Pérsia do século II, encarava a existência como luta
entre as trevas (o corrupto mundo material) e a luz (o reino espiritual), e os profetas religiosos
como mensageiros enviados para libertar a luz, que estava aprisionada na matéria corrupta
(SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 100).
O choque entre o bem e o mal nas crenças religiosas é o paradigma da maioria dos
sistemas filosóficos dualistas. O dualismo implica polaridade e conflito, e não dialética (a tese
e a antítese não se amalgam na síntese).
Os dois lados geralmente estão em desequilíbrio; um deles, considerado superior ou
mais "real" do que o outro, assim como mais difícil de compreensão; na opinião de Descartes,
por exemplo, o reino do espírito é muito mais complexo e sutil do que o reino da matéria.
Em sua filosofia, Descartes dividiu a criação em duas essências: a res cogitans (“coisa
pensante”), seres que têm a faculdade da razão e a res extensa (“coisa extensa”), os entes
físicos do mundo denominados pela sua característica essencial de só ocuparem espaço.
(COTTINGHAM, 1995, p. 139).
A filosofia cartesiana do dualismo, portanto, distinguia estritamente entre espírito e
matéria como duas espécies distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que
simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os animais pertenciam à segunda
categoria; eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento,
comprovada pela inexistência de uma linguagem dos animais.61
A primeira obra de Descartes publicada foi o “Discurso sobre o método de bem
conduzir a razão e buscar a verdade nas ciências”. Na Parte IV, cerne metafísico da sua obra,
usual e resumidamente denominada “Discurso do Método”, Descartes relata a busca pelas
bases de sistema de conhecimento confiável; contém o famoso enunciado “penso, logo existo”
(na forma latina cogito ergo sum).
61
O termo “animal” relaciona-se etimologicamente ao termo latino anima (“alma”), havendo nele, portanto
vestígios da idéia escolástica de que as criaturas vivas distinguem-se das coisas não-vivas por serem
“animadas” ou dotadas de alma. Provêm, também, da concepção biblíca de que as coisas vivas são animadas
pelo “sopro da vida”, bem como da biologia aristotélica que distinguia os seres em uma hierarquia de
faculdades chamadas de “alma” (vegetativa, motriz, sensorial e racional). Aristóteles partia da crença comum
aos gregos que a alma é o princípio da vida. A forma básica de vida seria encontrada nas plantas, que
simplesmente se alimentam, crescem, se reproduzem e morrem (alma vegetativa). No caso dos animais
haveria um algo mais, a capacidade de percepção sensorial (alma sensorial) e, em alguns, a de se movimentar
(alma motirz). Nos seres humanos, manifesta-se tudo isso, mais a razão (alma racional). Assim, as coisas
vivas formam uma hierarquia encabeçada pelo homem. (HAMLYN, 1990, p. 84).
122
123
Para nosso trabalho, entretanto, o conteúdo a ser analisado é a Parte V, que esboça as
concepções de Descartes sobre a física e a cosmologia, discute o tema científico específico da
circulação do sangue e apresenta um argumento baseado na linguagem para distinção
radical entre os seres humanos e os animais.
Na Parte V do Discurso do Método, Descartes imprime bastante ênfase à capacidade
exclusivamente humana de combinar as palavras e constituir um discurso, verbis:
[...] se pode conhecer a diferença que há entre os homens e os animais.
Pois é uma coisa fácil de se notar que não há homens tão
embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar nem mesmo os dementes,
que não sejam capazes de combinar diversas palavras e de com elas
compor um discurso no qual possam expressar seus pensamentos; e
que, pelo contrário, não há outro animal, por mais perfeito e bem
nascido que seja, que faça o mesmo (DESCARTES, 1996, p. 64).
Por outro lado, destaca que as emissões vocais dos animais não podem ser
consideradas como verdadeira linguagem. Os sons por eles emitidos (mesmo no caso de
animais que imitam a fala humana como os papagaios) não passam de resposta mecânica a
determinado estímulo.62
A conclusão que Descartes retira dessa capacidade humana é a de que a linguagem é
“sinal fidedigno” da presença de entidade totalmente imaterial em nosso interior – a alma
racional. 63
A linguagem destaca-se, pois, das concepções cartesianas de explicação mecanicista
para outras características fisiológicas que aproximam os homens dos animais, tal como a
circulação do sangue.
Descartes dedica espaço na Parte V à descrição do “movimento do coração e das
artérias”. Mostra que o funcionamento do coração e do sangue não tem nenhum conteúdo
metafísico, como tem a linguagem que diferencia o homem (alma racional) dos animais
(almas irracionais).64
Com efeito, no século subseqüente ao da morte de Descartes, os seus seguidores
tornaram-se célebres pelo tratamento cruel que davam aos animais no curso da pesquisa
experimental em fisiologia. O próprio Descartes, para chegar às conclusões sobre a
circulação do sangue, praticava a vivissecção com aparente serenidade (COTTINGHAM,
1995, p. 21).
62
63
64
“E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que expressam as paixões e podem ser
imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem pensar, como alguns autores antigos, que os animais
falam, embora não entendamos sua linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos
correspondentes aos nossos, poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes”
(DESCARTES, 1996, p. 65.)
“E isto não prova somente que os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm absolutamente
nenhuma. Pois vê-se que basta muito pouca razão para saber falar; e visto que se observa desigualdade tanto
entre os animais de uma mesma espécie quanto entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que os
outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, mesmo um dos mais perfeitos de sua espécie, se
igualasse nisso a uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, a uma criança de cérebro perturbado, se a
alma deles não fosse de uma natureza completamente diferente da natureza da nossa” (DESCARTES, 1996, p.
65).
“[...] quero adverti-los de que este movimento que acabo de explicar resulta tão necessariamente da simples
disposição dos órgãos que podem ser vistos a olho nu no coração, e do calor que pode ser sentido com os
dedos, e da natureza do sangue que pode ser conhecida por experiência, quanto o movimento do relógio
resulta da força, da situação e da configuração de seus contrapesos e rodas” (DESCARTES, 1996, p. 56–
57, grifo nosso).
123
124
5.2 ALGUMAS OBJEÇÕES AO DUALISMO ANTERIORES E POSTERIORES À DESCARTES
A objeção tradicional ao dualismo - considerando que duas espécies de realidade de
ordens completamente distintas não devem conseguir se comunicar ou interagir, gerou
diversas reações contrárias, sejam anteriores a Descartes, sejam posteriores a ele.
Aristóteles já postulava que forma e matéria se unem na substância. Ao contrário de
Platão, que poderia ser enquadrado como dualista, como bem destaca sua “Alegoria da
Caverna”, na qual haveria dois mundos: um real e outro fictício (SOLOMON; HIGGINS,
1996, p. 53).
Aristóteles tentava classificar tudo o que há no universo em categorias, sendo a
substância a primeira categoria. Enquanto Platão via a matéria como representação
imperfeita das formas ideais, Aristóteles postulava o hilomorfismo (forma e matéria unindose na esfera terrestre para formar a substância). Por exemplo, a "forma" do corpo humano
material é a alma; corpo e alma, juntos, configuram um ser vivo. Aristóteles também
classificou os seres segundo seus atributos comuns e suas qualidades distintivas; os seres
humanos, por exemplo, são animais, que se distinguem dos outros animais pela faculdade da
razão.
Um dos problemas da teoria das formas ideais de Platão era o de que os objetos
naturais crescem e se modificam, razão por que não eram imutáveis. Aristóteles, procurando
superar a doutrina platônica e explicar a mutação sofrida pelas substâncias, trabalha com a
noção de potência. Afirma, por exemplo, que a semente do carvalho não é um carvalho
maduro, mas contém o potencial de tornar-se um carvalho completo.
A forma, portanto, seria o teor inato de alguma coisa, que evolui até atingir seu
potencial completo por meio da enteléquia, a realização do potencial inato (o carvalho
maduro), ou por meio de atos de um agente: a árvore é, em potência, uma pilha de tábuas que
poderá ser uma embarcação.
A idéia de potência está vinculada à identificação aristotélica de quatro causas:
material (matéria), formal (forma), eficiente (ação) e final (finalidade). A causa eficiente é o
motor que a leva à "causa final", aquilo a que o ser se destinava - o crescimento de uma
semente até se transformar em uma árvore adulta. Nesse complexo de relações de causas e
efeitos, Aristóteles conclui que deve haver um "Primeiro Motor", uma "causa não-causada"
que é pura forma totalmente realizada: Deus.
Para Solomon; Higgins (1996, p. 68), Platão e Aristóteles, com suas idéias e estilos
distintos, influenciaram toda a filosofia ocidental. Na filosofia cristã, por exemplo, Agostinho
seguiria Platão, já Tomás de Aquino seria discípulo de Aristóteles. Nos tempos modernos, os
“racionalistas” seriam platônicos, na busca da razão como instrumento metafísico por
excelência; os “empiristas” seguiriam Aristóteles, o cientista, o observador atento, sempre
pronto para um novo repensar da realidade.
Spinoza (apud HAMLYN, 1990), nesse diapasão também, refuta o dualismo; em sua
teoria do monismo, expande as colocações aristotélicas, não obstante, também, nela se
baseie.65
65
Spinoza (apud HAMLYN, 1990, p. 188-189) acreditava na unidade de Deus e da natureza, conseqüentemente
124
125
Em sua obra mais importante, a Ética, imaginava o mundo como expressão de uma
única substância, que identificava como Deus ou natureza. Considerava, pois, que Deus e tudo
são uma coisa só, em outras palavras “Deus é tudo e tudo é Deus”.
Embora unitária, a substância (Deus) tem infinidade de atributos dos quais só
conseguimos perceber dois, espírito e matéria (pensamento e “extensão”), duplos aspectos da
substância universal (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 186).
Para Rosen (apud SPINOZA 1987, p. 456), faz-se o estudo da estrutura da
substância, e a conseqüente relação entre a existência humana e a ordem eterna.
A consideração de Spinoza, de que o mundo expressa uma única substância tem
reflexos na ética ecocêntrica, notadamente na “hipótese de Gaia”, expressão holística da ética
ambiental.
Kant, ao tratar dos deveres dos homens para com os animais, mesmo adotando
posição stricto sensu antropocêntrica de que os animais são meros instrumentos e não fins em
si mesmo, afirma que a natureza animal pode ser análoga à natureza humana e, cumprindo
nossos deveres com os animais, indiretamente cumpriremos nossos deveres com a
humanidade.
Assim, se um homem atira em um cachorro pelo simples fato de que este animal não
é mais capaz de servi-lo, ele não fere diretamente um dever para com o animal (que não
deve ser considerado moralmente, pela sua incapacidade de universalizar situações concretas,
na terminologia kantiana não é um “ser moralmente racional”), entretanto, seu ato é desumano
e provoca dano nele mesmo, pois tal conduta é lesiva para a humanidade. Nossos deveres
para com os animais, indiretamente são deveres para com a humanidade, pois a maneira como
os tratamos pode ser descaracterizada como favorável à humanidade, não podendo ser
realizada à luz do imperativo categórico (KANT, 1997, p. 313).
Singer (1991, p. 10-11) critica, também, a visão de Descartes de que o animal é um
autômato, um robô, uma máquina. Afirma que, se o cachorro, sem anestesia, for apunhalado
no estômago, sentirá dor. Procura, em seguida, demonstrar que sentir dor “não é privilégio”
da espécie humana, demonstrando que, não obstante seja uma experiência particular (“pain is
a state of consciouness”), pode-se inferir tal experiência de outros seres por inúmeras
indicações externas, tais como as demonstradas por outros seres humanos e outros animais.
Assim, afirma que a dúvida da existência de dor dos animais reside na mesma razão
que nos permitiria ter dúvida da dor entre outros seres humanos, verbis:
De forma aproximada, todos os sinais externos que levam-nos a
deduzir que outros seres humanos sintam dor podem ser vistos em
outras espécies, principalmente as espécies mais próximas da nossa –
as espécies dos mamíferos e das aves. Os sinais de comportamento
incluem estocergar-se, contorcer seu rosto, gemer, ganir ou outras
formas de chamar atenção para evitar a fonte da dor, ter medo da
repetição da dor e assim por diante (SINGER, 1991, p. 11).
o espírito e a matéria são atributos de um única substância universal. “Spinoza é um completo monista no
sentido em que admite a existência de apenas uma substância, uma única causa de si mesma que é a causa de
tudo mais, na qual tudo mais é meramente uma modificação ou atributo dessa substância. A substância única
é também infinita, com atributos e modificações infinitos. Não é de surpreender que a ela seja dado o nome de
Deus”.
125
126
Tratando da filosofia do pragmatista Dewey e da noção de experiência e
pensamento reflexivo, GEORGE RÊGO, professor da UFPE, afirma que a filosofia
pragmatista, também, mostra-se contrária ao dualismo cartesiano:
[...] aliás, não há na filosofia de Dewey dualismos ou
descontinuidades que estratifiquem conceitos, promovam cisões entre
sujeito x objeto, separem homem x natureza. A filosofia Deweyana é
um tipo de pan-naturalismo, análogo sob muitos aspectos, ao panlogicismo hegeliano [...] E o conhecimento humano, desde suas
estruturas mais incipientes até suas formas mais críticas e sofisticadas,
é uma contínua tentativa em direção ao rompimento das hostilidades
da natureza, tornando as experiências humanas mais estáveis e mais
seguras (RÊGO, 2001, p. 120).
Hickman (1996, p. 51), analisando a diferença entre seres humanos e o resto da
Natureza para Dewey, afirma que a diferença entre o homem e os animais não se relaciona
à comunicação como uma habilidade exclusiva da espécie humana, mas sim, que os
homens são os únicos seres com capacidade de controlar o seu habitat.
Dewey (1958, p. 420), na sua filosofia pragmática, possui uma abordagem
naturalística da relação do homem com a natureza como um todo, terminando com o
isolamento do homem que passa a ser visto dentro da natureza. Nesta concepção, o homem é
parte da natureza, perdendo sentido a diferenciação cartesiana, verbis:
A fidelidade à natureza a que pertencemos como partes, embora
fracas, exige que acalentemos os nossos desejos e ideais até termos
submetido os mesmos à prova da inteligência, examinando os meios e
modos pelos quais a natureza torna possível realizá-los (grifo nosso).
5.3 LEITURA ANTROPOCÊNTRICA DA TEORIA DA EVOLUÇÃO DE DARWIN
5.3.1 O positivismo e o determinismo-evolucionista de Darwin
A obra de Darwin, a Origem das Espécies, só pode ser compreendida no contexto da
influência do positivismo66, na Idade Moderna. A visão determinista de que o meio molda o
ser constitui reflexo do positivismo.
Para chegar às raízes dessa atitude, deve-se remontar ao positivismo, doutrina
elaborada pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). Preocupado com as convulsões
da época, originadas pelo caos político e social que se seguiu à Revolução francesa, Comte
aderiu aos movimentos socialistas do seu tempo, notadamente às idéias de Saint-Simon, de
quem foi discípulo e secretário. No entanto, não demorou a romper com o mestre, elaborando
66
Postura filosófica segundo a qual o único conhecimento genuíno é o obtido pelos métodos da ciência. E,
portanto, aliado do empirismo e do materialismo, e oposto à metafísica. O termo foi cunhado no início do
século XIX pelo socialista francês Claude-Henri Saint-Simon, e o conceito foi desenvolvido e popularizado
por seu aluno Augusto Comte. Ambos achavam que a postura científica era indispensável para a criação de
uma sociedade harmoniosa, mas Comte foi mais longe. Além de defender a metodologia científica como
único método válido para o conhecimento fidedigno, afirmava que os princípios científicos, aplicados às
questões sociais e políticas, revelariam um estágio novo e mais elevado do progresso humano.
126
127
a sua própria teoria para explicar as causas da desordem social reinante e para sugerir alguns
remédios. O seu diagnóstico cristalizou-se na teoria geral das sociedades, que ficou conhecida
em filosofia como lei dos três estados.
De acordo com Comte, a humanidade teria atravessado três fases ou períodos de
desenvolvimento. O primeiro seria o estado teológico, em que o homem procurava explicar
os fenômenos da natureza – o trovão, a fúria dos oceanos, os ventos – recorrendo a seres
sobrenaturais e fazendo uso abundante da imaginação. Passando pelo fetichismo (adoração de
elementos da natureza) e pelo politeísmo, teria por fim chegado ao monoteísmo. O apogeu
desse estágio seria representado pelo catolicismo, e o principal expoente desse estágio seria
São Tomás de Aquino.
O segundo, o estado metafísico, teria aperfeiçoado o anterior, substituindo as
divindades mitológicas ou os decretos divinos por entidades metafísicas: causa e efeito,
substância e acidentes, corpo e alma, e outras do mesmo gênero. Continuava a haver, diz
Comte, predomínio da imaginação sobre a razão, mas a explicação das coisas já não vinha de
fora (não era de cunho teológico), mas de dentro das próprias coisas. Esse estágio
corresponderia ao apogeu das explicações filosóficas, tendo Descartes como representante
máximo.
A terceira etapa, o estado positivo, ainda não se havia implantado, segundo afirma
Comte, porque essa seria a causa da desorganização em que se encontrava a sociedade do seu
tempo. Sentia-se, portanto, a falta de um princípio unificador, capaz de dar solidez às
estruturas sociais (DURANT, 1961, p. 266).
Com efeito, o filósofo francês acreditava ter inaugurado nova era, em que a ciência
positiva regeneraria toda a sociedade. Deixando de lado a imaginação, a razão pura
estudaria tão-somente os fatos observados, os fatos positivos, que nos trariam a verdade
em todos os âmbitos; e assim, com demonstrações seguras e inquestionáveis, não haveria
lugar para discussões e todos os homens por-se-iam de acordo, não havendo espaço para
dissensões ou partidarismos. Acabariam todas as guerras e desordens sociais (DURANT,
1961, p. 267).
O positivismo é fundamental à sociologia, disciplina cuja criação é atribuída a comte,
que se ampara na hipótese de que o comportamento humano, assim como o comportamento
das forças físicas e das reações químicas, é objetivamente mensurável. Embora a sociologia
moderna não seja tão rigidamente empírica, os primeiros sociólogos concentravam-se nos
fenômenos sociais observáveis, evitando a análise de intenções e de outros fatores nãoquantificáveis. Em estudo clássico (Suicídio, 1897), o sociólogo francês Émile Durkheim
analisou, estatisticamente, os índices de suicídio para mostrar que o suicídio era fenômeno
social, além de pessoal.
5.3.2 Darwin: autor antropocêntrico ou ecocêntrico?
A ciência também gerou abalos na teoria antropocêntrica. Quando Galileu
descobriu a imensidão do cosmos e a teoria heliocêntrica, no século XVII, ou, quando foi
descoberto o microscópio, nesse mesmo século, permitiu-se vislumbrar a existência de um
universo não centrado na pessoa do homem.
127
128
Do mesmo modo, de forma dialética, em primeiro momento a Teoria da Evolução
Biológica, de Darwin, mitigou o antropocentrismo, pois era possível colocar homens e
animais na mesma linha evolutiva.
Nesse sentido Thomas (1988, p. 158-159):
A crença cada vez maior na evolução social da espécie humana
estimulou, pois, a idéia de que os homens apenas eram animais que
tinham conseguido se aprimorar. Desse modo assestava-se um sério
golpe na doutrina da singularidade humana. E esta veio a ser ainda
mais questionada devido à descoberta da evolução biológica do
homem. Desde os antigos gregos, havia uma tradição segundo a qual o
homem descendia dos animais. Vigorosamente contestada pelo
cristianismo, tal noção contou, no entanto, com uma vida subterrânea
nos círculos intelectuais, vindo à luz periodicamente nos escritos
daqueles que tinham contacto com as obras de Diodoro de Sicília,
Lucrécio e outros pensadores céticos da Antigüidade. Em 1653, por
exemplo, John Bulwer relatava que um filósofo seu contemporâneo
lhe dissera, em conversa, "que o homem era uma simples criatura
artificial e, de início, não passava de uma espécie de macaco ou
babuíno que, com o tempo, através de sua indústria, [gradativamente]
aprimorara a aparência e a razão até chegar à perfeição humana.
No mesmo aspecto de mitigação do homem como ser superior aos outros seres,
Solomon; Higgins (1996, p. 232) fazem a leitura do filósofo alemão Nietzche, na obra “Assim
falou Zaratustra”, na qual sugerem que a teoria evolucionista de Darwin colocaria em cheque
a superioridade do homem contemporâneo, pois os “atuais” seres humanos seriam uma
passagem(uma ponte, um instrumento) entre os “macacos”, de um lado, e os Übermensch
(super-homem), de outro.
Também, Abbagnano (2000, v. 9, p. 168), na análise do super-homem de Nietzche,
afirma que a aceitação da vida não é, para Nietzche, a aceitação do homem, verbis:
<<O homem deve ser superado – diz Zaratustra – O super-homem é o
sentido da terra ... O homem é uma corda tensa entre o animal e o
homem, uma corda sobre o abismo. O que existe de grande no homem
é que ele é uma ponte e não um termo. O que o torna digno de ser
amado é ele ser uma ponte e um pôr do sol.>> O Super-homem é a
expressão e a encarnação da vontade do poder.
No entanto, apesar dessa leitura contemporânea da teoria de Darwin, o relevo que
prevaleceu, à época, foi a de que o homem era o ápice da escala evolutiva, o que constituiu
argumento biológico e materialista para provar a superioridade do homem. O homem pela
seleção natural é o ser mais forte e adequado para a exploração da natureza. Mudava-se a
justificativa da superioridade humana, saindo-se de fundamentação teológica para a
biológica.
Essa posição foi ratificada por Darwin na obra The Descent of Man (1871), na qual
ele discutiu a capacidade de discernimento moral humano (consciência), como um atributo
biológico-evolutivo, o qual, no presente, diferenciava o homem do animal.67
Assim, por essa razão, no presente trabalho, metodologicamente, optamos por uma
leitura antropocêntrica da visão de Darwin, principalmente pela adequação do seu modelo à
67
Para Darwin (apud FARBER, 1997, p. 292), qualquer animal social, quando desenvolve suas aptidões
intelectuais, adquire, inevitavelmente, um senso moral, a exemplo do que ocorreu com o Homem.
128
129
ideologia capitalista, não obstante esse biólogo inglês seja, inquestionavelmente, menos
antropocêntrico do que Descartes, ao considerar a existência de uma natureza comum ao
homem e ao animal.
5.3.3 A origem das espécies e o capitalismo
Além do problema da pobreza, uma questão perturbadora atormentou a Inglaterra
durante a maior parte do século dezoito: a questão de saber quantos ingleses existiam no país.
No ano de 1798, a obra An Essay on the Principle of Population as It Affects the
Future Improvement of Society (“Ensaio sobre o Princípio da População e como Ele Afeta o
Futuro Desenvolvimento da Sociedade”) fez perecer, num piscar de olhos, todas as
românticas esperanças de um progresso humano irremediavelmente crescente e harmonioso.
Em poucas páginas, o jovem Malthus puxou o tapete debaixo dos pés dos complascentes
pensadores da época e ofereceu-lhes, no lugar do progresso, uma perspectiva triste e
desalentadora. O que o ensaio dizia a respeito da população era que havia uma tendência na
natureza da população de ultrapassar todos os meios possíveis de subsistência. Ao ascender
para um nível cada vez mais elevado, a sociedade era apanhada em uma armadilha sem
escapatória, motivada pela urgência reprodutiva humana que iria, inevitavelmente, empurrar a
humanidade para a perigosa beirada de um precipício. Em vez de ser dirigido para a Utopia, o
rebanho humano seria condenado para sempre a ser agitado pelas constantes batalhas travadas
entre bocas famintas que se multiplicavam e o eternamente insuficiente estoque de
mantimentos da Natureza, “por mais que o armário dela estivesse abastecido”
(HEILBRONER, 1996, p. 76).
Não é de admirar que depois de ter lido Malthus, Darwin tenha compreendido um
ponto importante: devia haver uma seleção entre a prole para resolver quais deveriam
sobreviver e quais pereceriam. Uma vez que os indivíduos de uma mesma espécie variam
entre si, os indivíduos com certas características que lhes trazem vantagens para conseguir
alimento ou para escapar dos predadores, por exemplo, terão maior probabilidade de
sobrevivência.
Como dizia o filósofo evolucionista do século XIX, Herbert Spencer, a natureza
garante a sobrevivência do mais apto (DURANT, 1961).68
Spencer (apud FARBER, 1997, p. 294), como Darwin, acreditava que os sistemas
éticos evoluíram em face das relações entre os homens. Desse modo, com visão otimista,
profetizava que, no futuro, a esfera privada humana coincidiria com a esfera pública, não
havendo mais conflitos, verbis:
O último homem será aquele no qual a vontades privada coincide com
a pública. Ele será de tal maneira, que, de forma espontânea em plena
sintonia com a sua natureza, normalmente, agirá para a unidade do
68
A teoria social que aplica os princípios da evolução biológica à sociedade humana foi formulada na década de
1850 pelo filósofo e sociólogo inglês Spencer. Spencer interpretava o progresso humano como questão de
competição bem-sucedida que resulta na sobrevivência do mais forte; os mais fortes e superiores sobrevivem,
ao passo que os mais fracos perecem ou são dominados pelos fortes, processo que leva ao aperfeiçoamento
contínuo das sociedades (DURANT, 1961, p. 267-268).
129
130
corpo social, e na verdade só se sentirá plenamente completo consigo
mesmo quando os outros agirem da mesma forma.).
As idéias de Darwin fundamentavam-se, em parte, nos dados que coletou na viagem
ao redor do mundo no HMS Beagle, de 1831 a 1836, em especial as observações que fez das
variações entre espécies semelhantes existentes nas ilhas Galápagos. Em 1837, já formulara a
conclusão, que denominou "descendência com modificação", de que as espécies mudam, ou
"evoluem", ao longo do tempo, com o surgimento de novas características que, lentamente,
vão modificando as formas ancestrais até que seus descendentes se tornem claramente
diferentes. À pergunta “Como surgem as novas características?”. Darwin ofereceu, de início,
a explicação de Lamarck de que as características individuais adquiridas podem ser
hereditárias, mas logo a desprezou e voltou-se para a teoria de que as novas características
surgem aleatoriamente dentro das populações e que essas novidades são o combustível
propulsor das forças evolucionistas.69
Para entender a contribuição da teoria da evolução de Darwin para o
antropocentrismo e a exploração indiscriminada dos recursos naturais, deve-se compreender
que o seu modelo adequava-se, como uma luva, ao Capitalismo, na medida em que foram
impostos à natureza os mesmos princípios e processos do sistema sócio-econômico que se
queria firmar.
A teoria de Darwin foi apresentada à época da transição da economia agrária para a
economia industrial no país precursor da Revolução Industrial – a Inglaterra.
O setor rural não estava preparado para alimentar a população das cidades, de forma
que Malthus descreveu essa dificuldade, ressaltando o crescimento aritmético das colheitas e
o crescimento geométrico da população.
Assim, a escassez faria parte da natureza, e a luta pela sobrevivência extinguiria os
mais fracos. Se assim não fosse, não haveria incentivo natural para que o homem saísse da
preguiça e se esforçasse para construir uma civilização. Malthus transformou as necessidades
do Capitalismo em expressão matemática, justificando o liberalismo, pois era preciso que o
Estado deixasse o processo econômico correr livre para que os fracos desaparecessem e
permanecessem somente os fortes, que possibilitariam o desenvolvimento social.
Darwin baseou-se em Malthus para criar a teoria da seleção natural: mutações ao
acaso ocorriam nos indivíduos e apenas os mais aptos seriam capazes de vencer a luta contra a
escassez, gerando, assim, mais prole e impondo seus genes à espécie. Os sobreviventes seriam
aqueles mais eficientes, o que justificava, por meio de leis naturais, o liberalismo.
Assim, a luta egoísta (a falta de “solidariedade” que caracterizará os direitos de
segunda e terceira geração, conforme já exposto no presente trabalho) de cada um ajudaria, no
69
A teoria do biólogo francês Lamarck (1744-1829) da evolução biológica, está atualmente desacreditada. Tal
teoria afirmava que a reação dos organismos às pressões ambientais resulta em alterações morfológicas, e que
essas características adquiridas podem ser herdadas. Segundo Lamarck, os seres vivos se adaptam e evoluem,
numa luta constante rumo a uma complexidade cada vez maior. Nessa luta, ocorrem modificações anatômicas
em organismos isolados em conseqüência do uso intenso (ou desuso) de determinado órgão, membro, ou
outra parte do corpo em reação às exigências do meio ambiente – desenvolvimento que Lamarck acreditava
ocorrer por vontade própria. Exemplo clássico é a explicação de que o pescoço da girafa se alongou porque
ela se esticava cada vez mais para comer as folhas das árvores. De modo oposto, quando uma parte do corpo
sofre doença prolongada, ela diminui, o que explicaria os vestígios de asas de aves que não voam como o
pingüim. Esses aprimoramentos e essa alterações passam, então, para os filhotes, capacitando-os, por sua vez,
a se adaptarem com mais eficiência às exigências do habitat. Lamarck chamou seu princípio das
características hereditárias de variação adquirida.
130
131
fim, no crescimento de todos: o progresso, fundamento da nova sociedade industrial, estava
cientificamente justificado.
Não haveria mais uma predestinação. Apesar de o indivíduo ter seu comportamento
determinado por seus genes, ele dependia, também, do meio para sobreviver e, portanto, de
seu trabalho árduo. O progresso seria o resultado da seleção natural. A burguesia, mais uma
vez, tinha sustentação teórica para a realização do desiderato de exploração da natureza.
Outro princípio básico da Revolução Industrial, justificado biologicamente por
Darwin, foi a divisão do trabalho. Smith (1999) já havia proposto a divisão do trabalho como
forma de dar eficiência à economia, influenciando Darwin a encontrar a transposição da teoria
econômica para a teoria biológica.70
Portanto, a diferenciação entre as partes - sua variabilidade - era base para o
progresso. Estava justificada, com isso, a necessidade de haver ricos e pobres, retirando a
culpa dos burgueses pelas condições humilhantes que impunham à maioria, contrariando
também qualquer tentativa de assistencialismo que perpetuasse os mais fracos, colocando toda
a espécie em risco.
O mercantilismo da época, também, encontrou a sua justificativa.
Os aparentes conflitos não deveriam ser levados a sério, pois submeteriam-se à
inexorável harmonia intrínseca proporcionada pelas leis naturais da economia e da biologia.
Qualquer tentativa de quebrar esses ritmos seria contrária à natureza, devendo, portanto, ser
reprimida. As mutações ocorriam ao acaso, sendo o progresso conseqüência mecânica da
evolução. O capitalismo estava, portanto, de acordo com a natureza biológica das coisas.
O mundo estava reduzido à máquina, feita de peças autônomas e regidas por leis
naturais. Plantas e animais estavam livres de qualquer barreira ética à sua exploração.
A ética darwiniana corrobora, portanto, a exploração indiscriminada da Natureza, ao
favorecer a Revolução Industrial, prevendo como naturais os seus efeitos colaterais,
justificando, pois, biologicamente, a ética antropocêntrica.
70
Para Smith (v. 1, 1999, p. 79), a divisão de trabalho é a grande causa do aumento da sua capacidade produtiva,
nesse sentido significativa a passagem em que o autor liberal refere-se a uma fábrica de alfinetes e a sua
divisão de tarefas: “Um homem puxa o arame, outro endireita-o, um terceiro corta-o, um quarto aguça-o, um
quinto afia-lhe o topo para receber a cabeça”.
131
132
6 FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DE UMA ÉTICA ECOCÊNTRICA E A
PERSONALIDADE JURÍDICA
6.1 A EVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA ECOCÊNTRICA EM RAZÃO DA DESTRUIÇÃO
OCASIONADA PELO HOMO FABER: UMA VISÃO SOCIOLÓGICA
6.1.1 Labor, trabalho e ação: três atividades marcantes do homem no mundo
Na análise da evolução da passividade humana do homem perante a
Natureza para a sua atividade de moldá-la, deve-se dar destaque, ao lado do
homo economicus, ao homo faber detalhadamente analisado por Arendt (2001)
na obra “A condição humana”.71
Nesse livro, Arendt (2001) interessa-se por descrever o que significa
ser humano. Não busca entretanto a natureza humana de um ponto de vista
estritamente filosófico (Qual a origem do homem? Qual o seu destino?).
A trama de sua análise fundamenta-se em analisar o que o homem faz e
como o homem vive. Nesse aspecto, destaca-se que sua análise tem cunho
sociológico por ver o homem dentro do mundo; também está centrada em
análise crítica da relação Homem com a Natureza (ARENDT, 2001, p. 13).72
Adeodato (1989, p. 133), analisando a legitimidade à luz do pensamento
de Arendt, comenta que “a condição humana também compreende a ´vita
contemplativa’”. No presente trabalho, entretanto, far-se-á, exclusivamente, a
análise da vida activa pertinente à interação do homem com a Natureza em
visão exterior e não de sua vida interior de pensar.73
71
72
73
Lafer (2001, p. 352) afirma:, no pósfacio da edição brasileira de “A condição humana”, “The Human
Condition, editado em 1958, é, na cronologia da obra de Hannah Arendt, o livro que se segue a The Origins
of Totalitarianism, que é de 1951 [...] Em The Human Condition, Hannah Arendt apresenta uma das mais
brilhantes e originais análises da natureza, do mecanismo, da complexidade, do <<pathos>> e do significado
da ação”.
“O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo”
(ARENDT, 2001, p. 13). “O problema tem a ver com o fato de que as <<verdades>> da moderna visão
científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela
tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio [...] Se realmente for comprovado
esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então
passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso
know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por
mais mortífera que seja” (ARENDT, 2001, p. 11).
“Pensamento e ‘vita contemplativa’ parecem sinônimos, por exemplo, em algumas passagens em que Arendt
132
133
Na Antigüidade, o labor exercia-se na oikia ou casa, onde se reconhecia
o governo de um só; era o reino da necessidade, ligado às exigências da
condição animal do homem, como alimentar-se, repousar, procriar. Era,
portanto, a esfera privada (de privus, estar privado de), em que o homem,
como animal laborans, buscava os meios necessários à sobrevivência. O labor
tinha a ver com o processo ininterrupto da produção de bens de consumo, isto
é, daqueles bens que eram integrados ao corpo após a sua produção e que
não tinham permanência no mundo. Na casa, o anseio de sobrevivência
dominava de tal forma que a vida era limitada ao seu próprio processo
biológico.74
Os cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição,
exercendo na polis sua atividade. Assim, só os cidadãos exerciam a ação. O
labor era visto com desprezo. Arendt (2001, p. 91) declara:
O desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada
luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência
não menos forte em relação a todo esforço que não
deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer
grande obra digna de ser lembrada generalizou-se à
medida em que as exigências da vida na polis consumiam
cada vez mais o tempo dos cidadãos [...]
O governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a
esfera pública. Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto
como um igual entre iguais e, na esfera pública, sua atividade era fruto de uma
pluralidade.75
Entre a ação e o labor se achava o trabalho, dominado pela relação meio
e fim, com objetivo previsível à criação do bem de uso – produto inconsumível.
Ao contrário do labor, esse produto adquire permanência no mundo. Como
afirma Arendt (2001, p. 150), “Em outras palavras, contra a subjetividade dos
homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem”.
Conforme sintetiza Arendt (2001, p. 15), distinguindo e caracterizando
cada uma das atividades marcantes do homem:
O labor é a atividade que corresponde ao processo
biológico do corpo humano, cujos crescimento
se refere ao ego pensante (thinking ego) não apenas a propósito da faculdade específica de pensar mas como
responsável por uma outra faculdade. É o que ocorre quando Hannah Arendt expõe e interpreta a parábola de
Franz Kafka (1883-1924) sobre a inserção do homem no tempo, que veremos logo à frente, onde o
pensamento responde pelo passado, para onde se dirige o juízo, e pelo futuro, direção temporal do querer [...]”
(ADEODATO, 1989, p. 134).
74
“Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana”
(ARENDT, 2001, p. 94).
75
“A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença.
Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de
fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras” (ARENDT, 2001, p. 188).
133
134
espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver
com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo
labor no processo da vida. A condição humana do labor é a
própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo
da
existência
humana,
existência
esta
não
necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e
cuja mortalidade não é compensada por este último. O
trabalho produz um mundo <<artificial>> de coisas,
nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro
de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse
mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as
vidas individuais. A condição humana do trabalho é a
mundanidade.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os
homens sem a mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de
que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o
mundo. Todos os aspectos da condição humana têm
alguma relação com a política; mas esta pluralidade é
especificamente a condição – não apenas a conditio sine
qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política.
Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político
que conhecemos – empregava como sinônimas as
expressões <<viver>> e <<estar entre os homens>> (inter
homines esse), ou <<morrer>> e <<deixar de estar entre os
homens>> (inter homines esse desinere).
Adeodato (1989, p. 119), tratando da diferença entre labor e trabalho,
afirma verbis:
Através da fabricação o ser humano se converte em homo faber e
adquire suas características específicas, já que enquanto meramente
trabalha ele nada mais é que o animal mais desenvolvido do planeta.
Então, o primeiro aspecto essencial do homo faber é produzir objetos
que, juntos, constituem o mundo humano.
No âmbito da nossa análise, será detalhado a vita activa vinculada ao
trabalho – atividade do homo faber –, pois esta relaciona-se diretamente à
destruição do meio ambiente e à criaçao de novo ambiente. Tal análise perpassa
toda a obra “Condição humana” de Arendt (2001, p. 149-180), embora encontre
especial ênfase no Capítulo IV – Trabalho.
134
135
6.1.2 O homo faber na visão de Hannah Arendt
Conforme destaca Arendt (2001), no trabalho há sempre um elemento de
violência à natureza. A fabricação consiste em reificação.76
O animal laborans que, com o próprio corpo e a ajuda de
animais domésticos, nutre o processo da vida, pode ser o
amo e senhor de todas as criaturas vivas, mas é ainda
servo da natureza e da terra; só o homo faber se porta
como amo e senhor da terra. Como a sua produtividade era
vista à imagem de um Deus Criador – de sorte que,
enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de
determinada substância –, a produtividade humana, por
definição, resultaria fatalmente numa revolta prometéica,
pois só pode construir um mundo humano após destruir parte
da natureza criada por Deus (ARENDT, 2001, p. 15, grifo
nosso).
A sensação da violência de transformação da Natureza coloca o
Homem na posição de ser supremo da criação e não de mera criatura servil. O
trabalho passa a gerar satisfação, ao contrário do labor que produz desprezo
(ARENDT, 2001, p. 153).
Outro aspecto destacado refere-se à durabilidade das coisas feitas
pelo homo faber. Essa durabilidade permite que as coisas do mundo tenham
uma "relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a
'objetividade' que os faz resistir, 'obstar' e suportar, pelo menos durante algum
tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários" (ARENDT,
2001, p. 150).
O homo faber é o construtor do mundo; por isso, a condição da
existência humana que corresponde ao trabalho é a mundanidade.
Conforme assinala Arendt (2001, p. 152), a palavra “faber” relaciona-se
com a palavra latina facere, no sentido de produção. O animal laborans não
afeta de forma significativa a Natureza; já o homo faber, sim, verbis:
76
“A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em reificação. A solidez, inerente a todas as coisas,
até mesmo às mais frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é
simplesmente dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores, que podemos colher ou deixar em
paz sem que com isso alteremos o reino da natureza. O material já é um produto das mãos humanas que o
retiraram de sua natural localização, seja matando um processo vital, como no caso da árvore que tem que ser
destruída para que se obtenha a madeira [...] O trabalho de fabricação propriamente dito é orientado por um
modelo segundo o qual se constrói o objeto” (ARENDT, 2001, p. 152-153).
135
136
A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em
reificação. A solidez, inerente a todas as coisas, até
mesmo as mais frágeis, resulta do material que foi
trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente
dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores,
que podemos colher ou deixar em paz sem que com isso
alteremos o reino da Natureza (grifo nosso).
A reificação, termo costumeiramente usado por Arendt (2001, p. 156),
destaca o fato de que o homem dissocia o produzir, que lhe é próprio, do produto,
de tal modo que o pode conhecer, tornando-o objeto da sua consciência, verbis:
[...] o labor também produz para o fim de consumo, mas
como esse fim, a coisa a ser consumida, não tem
permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do
processo não é determinado pelo produto final e sim pela
exaustão do <<labor power>>, enquanto que, por outro
lado, os próprios produtos imediatamente voltam a ser
meios de subsistência e reprodução do <<labor power>>.
No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável:
ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente
durabilidade para permanecer no mundo como unidade
independente, é acrescentados ao artifício humano (grifo
nosso).
Conforme assinala Arendt (2001, p. 156), no processo do homo faber há
a instrumentalização da Natureza e do Mundo, na clara distinção entre meios e
fins, verbis:
A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o
processo de produção termina com ela (<<o processo
desaparece no produto>>, como dizia Marx), e de que é
apenas um meio para produzir esse fim (grifo nosso).
6.1.3 A instrumentalização do mundo e a destruição da natureza
O trabalho, portanto, é inteiramente dominado pela categoria de meios
e fins. O trabalho se distingue das outras atividades da vita activa porque tem
um fim definido e previsível, enquanto a ação, embora tenha um começo, não
tem um fim previsível. O labor, por sua vez, "preso à engrenagem do
movimento cíclico do processo vital do corpo, não tem começo nem fim"
(ARENDT, 2001, p. 156). Daí a grande confiabilidade do trabalho; o processo de
fabricação não é irreversível.
136
137
Nesse sentido, Arendt (2001, p. 156) afirma que:
O homo faber é realmente amo e senhor, não apenas
porque é o senhor ou se arrogou no papel de senhor de
toda a natureza, mas porque é o senhor de si mesmo e de
seus atos. Isto não se aplica ao animal laborans, sujeito às
necessidades de sua existência, nem ao homem de ação,
que sempre depende de seus semelhantes. A sós, com a
imagem do futuro produto, o homo faber pode produzir
livremente; e também a sós, contemplando o trabalho de suas
mãos, pode destruí-lo livremente (grifo nosso).
O homo faber reduz “a natureza e o mundo a simples meios, privandoos de sua dignidade independente” (ARENDT, 2001, p. 169).
A verdade é que o significado do mundo, meio para construção de um
novo mundo, acaba tornando-se um objeto sem valor, pela infindável cadeia de
meios e fins que se forma no processo de fabricação, verbis:
Se o homem-usuário é o mais alto de todos os fins, <<a
medida de todas as coisas>>, então não somente a
natureza, que o homo faber vê como material quase <<sem
valor>> sobre o qual ele trabalha, mas até mesmo as
coisas <<valiosas>> tornam-se simples meios, e, com isto,
perdem o seu próprio <<valor>> intrínsico (ARENDT, 2001,
p. 169).
Na visão antropocêntrica da Natureza, a mesma é instrumentalizada,
perdendo o seu valor intrínseco, pois passa a ser sempre meio. Arendt (2001,
p. 169) afirma:
Na medida em que é homo faber, o homem
<<instrumentaliza>>; e este emprego das coisas como
instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à
categoria de meios e acarreta a perda do seu valor
intrínseco e independente; e chega um ponto em que não
somente os objetos da fabricação, mas também <<a terra
em geral e todas as forças da natureza>>– que
evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e
possuem uma existência independente do mundo humano
– perdem seu <<valor por não serem dotadas de reificação
resultante do trabalho>>.
Conforme destaca Arendt, esse problema da instrumentalização do
mundo, não se constitui em novidade contemporânea, já havendo tal
preocupação no berço da filosofia ocidental – a Grécia.
137
138
Citando o famoso argumento de Platão contra o dito de Protágoras77, de
que – o homem é a medida de todas as coisas de uso, da existência das que
existem e da inexistência das que não existem – Arendt (2001, p. 171) destaca
que Platão:
Percebeu desde logo que quando se faz do homem a
medida de todas as coisas de uso está-se correlacionando
o mundo com o homem-usuário e fazedor de instrumentos
[...] E como é da natureza do homem-usuário e fabricante
de instrumentos ver em tudo um meio para um fim – ver
em cada árvore determinado potencial de madeira –, isto,
fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de
todas as coisas cuja existência dele depende, mas de
literalmente tudo o que existe.
Na dialética da Historia, a demasiada exploração da Natureza pelo
homo faber e a instrumentalização do Mundo, destacada por Arendt, propicia o
surgimento do ecocentrismo(antítese à tese antropocêntrica), em que a
natureza deixa de ser vista como meio e passa a ser vista como fim, nos
termos do que defende a chamada “deep ecology”.
6.1.4 Conscientização ecológica e a “deep ecology” como suportes ideológicos para
os movimentos ambientais
As décadas de 60 e 70 do século XX constituem marcos cronológicos importantes
para o movimento ambientalista. Exemplo dessa movimentação nos âmbitos cultural e
científico pode ser visto na obra Silent Spring, da bióloga Rachel Carson, na qual adverte
sobre os perigos ambientais oriundos do uso indiscriminado do DDT e outros pesticidas. O
título da obra “Primavera silenciosa” sugere, de forma metafórica, que se estava vivendo
momento na cultura americana em que o canto dos pássaros não poderia mais ser ouvido, por
terem eles sido dizimados pelos pesticidas utilizados indiscriminadamente pelo homem.78
77
78
Protágoras “iniciou uma de suas obras com as seguintes palavras: ‘O homem é a medida de todas as coisas,
das coisas que são que elas são, das coisas que não são que elas não são´” (LAÊRTIOS, 1977, p. 264). Essa
visão humanista foi retomada intensamente no Iluminismo, neste sentido, vale a pena lembrar o que disse o
“primeiro dos modernos e o último dos antigos”, Bacon (apud THOMAS, 1988, p. 23) afirma que: “Se
procuramos as causas finais, o homem pode ser visto como o centro do mundo, de tal forma que se o homem
fosse retirado do mundo todo o resto pareceria extraviado”.
Carlson (1994), considerado um clássico da proteção ambiental norte-americana e mundial pela novidade de
sua abordagem protetiva da natureza, publicação original (1962), a autora retrata, de forma detalhada e
poética, a destruição da natureza pelo homem.
138
139
Em uma obra de conteúdo científico e poético, essa autora nos âmbitos cultural e
científico, colabora com a intensa movimentação política de conscientização ambiental e o
respectivo agir para a preservação do meio ambiente na sociedade americana desta época.
Por outro lado, no âmbito europeu, o Clube de Roma, na década de 70, inaugurara
nova fase do movimento ecológico, em que a questão central passa a ser a limitação da
atividade econômica, sob o risco do comprometimento da própria sobrevivência da bioesfera.
A Terra havia sido vista do espaço, induzindo, no inconsciente coletivo da
humanidade, uma nova dimensão da sua unidade, beleza e fragilidade.
A crise do petróleo, na década de 70, reforçou a preocupação com a escassez dos
recursos naturais. Nesse âmbito, deve ser vista a proposta inicial do Clube de Roma de
congelar o desenvolvimento e a exploração dos recursos naturais.
As conclusões do Relatório Meadows, oriundo do trabalho do Clube de Roma,
contribuiu, juntamente com a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, para a
conscientização da crise ecológica (MEADOWS, et al., 1972)
Concomitantemente, surgem vários movimentos ambientalistas, com graves críticas
à economia desenvolvimentista exarcebada na exploração descontrolada dos recursos
naturais, da larga escala de utilização das energias não-renováveis (fósseis como o carvão e o
petróleo), do autoritarismo, das leis de mercado que só valoram o lucro, desprezando o bemestar social.
Os movimentos ambientalistas atuavam em diferentes frentes de batalha, de acordo
com a ênfase que davam aos inúmeros elementos constitutivos do meio ambiente.
Assim, alguns destacavam a conservação dos recursos naturais, outros: o bem-estar
humano (a qualidade de vida), a preservação da natureza de forma ampla, não restrita ao seu
aspecto de fator de produção e, outros, a proteção e a emancipação dos animais.
Poderíamos dizer, portanto, em visão de classificação binária, que o fundamento
filosófico de cada um desses movimentos ambientalistas poderia ter uma perspectiva
antropocêntrica ou ecocêntrica.
Para movimentos de inspiração antropocêntrica, o destaque vinculava-se à
conservação dos recursos naturais, por meio da redução dos desperdícios, de forma que o
ambiente servisse para todos os homens e não para uns poucos.
A qualidade de vida (o bem-estar humano) passa a ser valor associado à saúde e à
própria vida do ser humano.
Para promover o equilíbrio com o desenvolvimento econômico, há a preocupação
com a profissionalização da gestão dos recursos naturais buscando-se a conservação e a
preservação da natureza, o que contribuiu, acentuadamente, para o fortalecimento do poder
regulatório do Estado.
A busca de uma melhor gestão dos recursos naturais teve, também, repercussão no
setor produtivo privado, com a incorporação de tecnologias menos poluentes e a
internalização dos custos ambientais, como forma de melhorar a imagem e ganhar mercados.
Tratavam todos esses movimentos ambientalistas de visão antropocêntrica da
natureza, englobando, principalmente, as necessidades humanas básicas, de cunho
notadamente econômico, embora pudessem destacar, igualmente, aspectos estéticos e
espirituais, dentre outros.
139
140
Por outro lado, surgem movimentos de proteção da vida selvagem e dos animais em
geral, que ressaltam visão ecocêntrica, em que o homem não é o único ser animado capaz de
titularizar a proteção ambiental.
O ecocentrismo valoriza, pois, a natureza de forma direta, sem a preocupação
imediata com as necessidades humanas. Nessa visão, os organismos não são simples objetos e
instrumentos a serviço do homem, mas sim, também, sujeitos relevantes das relações naturais.
As diferentes posições das éticas ambientais acarretaram diferentes decisões para
diferentes questões práticas. Singer (1994, p. 290) utiliza-se da construção de uma represa
para avaliar os diferentes posicionamentos ecológicos possíveis. Assim, afirma:
Se fosse para tomar a decisão exclusivamente com base nos interesses
humanos, confrontaríamos as vantagens econômicas da represa para
os cidadãos com a perda para os que gostam de andar pelas matas,
para cientistas e outros, hoje e no futuro, que valorizam a preservação
do rio em seu estado natural. Já vimos que, pelo fato de esse cálculo
incluir um número indeterminado de gerações futuras, a perda do rio
terá um custo muito maior do que imaginaríamos a princípio. Mesmo
assim, se levarmos o fundamento de nossa decisão além dos interesses
dos seres humanos, teremos muito mais elementos contrários às
vantagens econômicas da construção da represa. Nesses cálculos
devem agora entrar os interesses de todos os animais que vivem na
área a ser inundada.
Assim, observa-se, historicamente, que as posições originais dos movimentos
ambientalistas eram de cunho antropocêntrico. Entretanto, com o passar dos tempos, cada vez
mais surgiram movimentos baseados na ética ecocêntrica.
No exemplo da represa de Singer (1994, p. 291), o autor destaca, em determinado
momento, a maior complexidade e, também, a maior proteção ambiental dada pela ética
ecocêntrica no âmbito das valorações e opções de atuação do homem frente à Natureza:
Talvez isso não seja tudo.Não seria o caso de atribuir-mos
importância não apenas ao sofrimento e à morte de um
determinado número de animais, mas também ao fato de
que toda uma espécie pode desaparecer? Que dizer da
perda de árvores que ali estiveram por milhares de ano?
Que importância (se é que há alguma) devemos atribuir à
preservação dos animais, das espécies, das árvores e do
ecossistema do vale, independentemente dos interesses
dos seres humanos – sejam eles econômicos, recreativos
ou científicos – em sua preservação?
Nesse âmbito, deve-se destacar que a teoria da deep ecology pode ser vista como
modelo embrionário das diferentes filosofias ambientais ecocêntricas, atualmente, existentes.
Para Sessions (1998, p. 165):
A década de 1960 produziu uma grande revolução
ecológica [...] a preocupação com as outras espécies e a
necessidade de proteção da totalidade dos ecossistemas
naturais. Filosoficamente, a revolução ecológica ocorrida
em 1960, e o surgimento do movimento da “deep ecology”,
basicamente, destacam a passagem de uma visão
antropocêntrica para uma visão ecocêntrica.
140
141
Assim, obras como a de Lynn White Jr. sobre as “Raízes Históricas da Crise
Ecológica”, para Sessions (1998, p. 165-166), contribuíram para a mudança de atitude em
relação à natureza.79
Estas obras históricas da mudança filosófica da visão antropocêntrica, tal como Silent
Springs e Historical Roots of Our Ecologic Crisis, juntaram-se à do filósofo norueguês Arne
Naess, que escreveu artigo estabelecendo a distinção entre as tendências “superficiais” e
“profundas” que se verificam no movimento ecológico. O pensamento ecológico superficial
estaria preso à estrutura ética tradicional antropocêntrica. Nas palavras de Singer (1994, p.
296), verbis:
O pensamento ecológico superficial estaria circunscrito à
estrutura moral tradicional; seus partidários estariam
ansiosos por evitar a poluição da água para que
pudéssemos beber uma água mais pura, e, na base de seu
empenho em preservar a natureza, estaria a possibilidade
de as pessoas continuarem a desfrutar dos seus prazeres.
Nesse sentido, Sessions (1998, p. 165) afirma que:
O pensamento ecológico superficial, Naess proclama: é
antropocêntrico e está preocupado unicamente com a poluição, com o
pleno uso dos recursos naturais, bem como com a riqueza e o
comodismo da população dos países desenvolvidos.
Por outro lado, o movimento dos ecologistas profundos (“deep ecology”) teria
natureza ecocêntrica, nas palavras de Singer (1994, p. 296):
[...] desejariam preservar a integridade da biosfera pela
necessidade
dessa
preservação,
ou
seja,
independentemente dos possíveis benefícios que o fato de
preservá-la pudesse trazer para os seres humanos.
Assim, surge a “deep ecology”, uma das correntes contemporâneas ambientalistas
ecocêntricas pioneiras e mais aceitas da atualidade. Naess, filósofo norueguês, faz referência
ao termo em artigo publicado em 1973, intitulado “The shallow and the deep, long-range
ecology movement” (NAESS apud MATHEWS, 2000, p. 218).
Deep ecology enfatiza mudança na visão do mundo, buscando as raízes da crise
ambiental e não só os seus frutos. Para Mathews, Naess diferencia a ecologia superficial da
ecologia profunda, tendo em vista que a primeira se preocupa com a poluição e a conservação
dos recursos naturais, em razão do impacto dessas questões para os homens (MATHEWS,
2000, p. 218).
Naess (apud PEPPER, 1996, p. 34) afirma que os ecologistas profundos assim são
chamados porque não discutem questões técnicas sem analisar as fundamentais (“profundas”)
antes. Exemplifica que, antes de perguntarem como assegurar fornecimento de bens materiais,
os ecologistas profundos questionam se, realmente, precisamos de tantos bens.
Assim, a ecologia profunda rejeita fundamentalmente a perspectiva dualista dos seres
humanos e da natureza como entes separados e hierarquicamente com valores distintos.
Basicamente, defende-se que os seres humanos são intimamente uma parte do ambiente
natural: Homem e Natureza são, simplesmente, uma só entidade.
79
A obra de White Jr. no original é o artigo “Historical Roots of Our Ecologic Crisis”, publicado na Revista
Science, n. 155, p. 1203-1207, 1967.
141
142
Desse modo, a análise da questão ambiental não pode ser vista sob o prisma estrito
dos efeitos perversos da degradação, exclusivamente atribuída ao homem.
Essa visão da natureza, segundo Pepper (1996, p. 37), renova as idéias de filósofos
como Espinosa e Heidegger, além de estar em sintonia com a filosofia oriental (TAOÍSMO,
BUDISMO e HINDUÍSMO).
O próprio Naess (1998, p. 207) afirma que a “deep ecology” possui múltiplas raízes
filosóficas e religiosas, destacando no âmbito das correntes religiosas, o Cristianismo, o
Budismo, o Taoísmo, e, no âmbito da filosofia, o que chama de “ecofilosofia”.
Os oito princípios básicos da deep ecology que a caracterizam, podem ser buscados
no próprio fundador do movimento, Naess (1998, p. 196-197), no artigo “The deep ecological
movement: some philosophical aspects”, verbis:
1. O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não-humana na
terra têm valor em si próprios (sinônimos: valor intrínseco, valor
inerente). Este valor é independente da utilidade do mundo nãohumano aos propósitos humanos.
2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a
realização deste valor, e são em si mesmos valores.
3. Os homens não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade,
exceto para satisfazer necessidades vitais.
4. O desenvolvimento da vida e das culturas humanas é compatível
com uma redução substancial da população humana. O
desenvolvimento da vida não-humana exige essa redução.
5. A atual interferência humana com o mundo não-humano é
excessiva, e a situação está a piorar rapidamente.
6. As políticas devem ser alteradas. Estas políticas afetam as
estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas básicas. O estado
das coisas daí resultante será profundamente diferente do presente.
7. A mudança ideológica é basicamente a de apreciar a qualidade de
vida (residindo em situações de valor inerente) em vez de aderir a um
padrão de vida cada vez mais alto. Haverá uma consciência profunda
da diferença entre quantidade e qualidade.
8. Aqueles que subscrevem os pontos anteriores têm direta ou
indiretamente, a obrigação de tentar implementar as mudanças
necessárias.
Comentando o primeiro princípio, basilar para a compreensão de todos os outros,
seus desdobramentos, Naess (1998, p. 197) assinala a visão ecocêntrica ampla (biocêntrica)
prevista, que abarca, também, as coisas inanimadas:
[...] O termo vida está sendo usado aqui em um termo mais
amplo que a visão técnica dos biologistas, referindo-se a
coisas classificadas pelos biologistas como não-vivas:
rios, paisagens, ecossistemas. Para pessoas vinculadas à
“deep ecology”, lemas como “permita que o rio viva”,
exemplificam o uso amplo dado ao termo vida neste
princípio.
O conteúdo dos princípios, especialmente o sexto, o sétimo e o oitavo, destacam o
papel ativista da “deep ecology”, como suporte ideológico de movimentos sociais destinados
à implementação da proteção do meio ambiente.
142
143
Hodiernamente, os movimentos ambientalistas buscam influenciar, sobremaneira, as
políticas públicas estatais para a concretização dos preceitos elencados nos princípios da
“deep ecology” e de outros a eles correlacionados em diferentes ordenamentos de âmbito
nacional e internacional.
Ao procurar caracterizar o pensamento político ecológico (“green political thought”),
Eckersley (2000, p. 317) destaca que, apesar da natureza eclética dos movimentos políticos
verdes, alguns princípios comuns o caracterizam, verbis:
1. A preocupação com a crise ecológica;
2. Um respeito ético à integridade dos ecossistemas e dos seres;
3. Uma ontologia relacional da interdependência entre o social e o
ecológico;
4. A aceitação da idéia de que há limites ecológicos ao crescimento;
5. Um suporte de políticas públicas que ensejam uma mudança
profunda no âmbito social, tecnológico e econômico para alcançar a
meta de uma sociedade ecologicamente sustentável;
6. Uma preocupação com a eqüidade intra e intergeracional;
7. Um compromisso com a democracia participativa e a
descentralização do poder para o nível local.
Com percuciência, Eckersley (2000, p. 324) dá relevo ao fato de que não há uma
ideologia política verde própria e sim a conjugação de ideologias políticas já existentes80 que
são conjugadas para a finalidade protetiva do meio ambiente. Afirma que:
[...] não há nada politicamente distinto no pensamento político verde
em termos das idéias políticas históricas, trata-se de uma mera
reinterpretação e reestruturação de um leque selecionado de políticas
conhecidas (tais como a crítica ao capitalismo, ao autoritarismo, à
máquina burocrática, à instrumentalização da razão, a desumanização
ocasionada por certas tecnologias e o favorecimento da democracia
participativa e da descentralização).
Comparando os princípios do pensamento político ecológico, analisados pelo
cientista político australiano Eckersley, e os princípios da “deep ecology” de Naess, verificase clara identidade nos princípios dois, quatro e sete de Eckersley, respectivamente, com os
números um, cinco e oito de Naess.
Das idéias da “deep ecology”, da caracterização desta como suporte ideológico dos
“partidos verdes” e dos movimentos sociais em favor do meio ambiente, vislumbra-se, de
forma conclusiva, reação filosófica e social à conduta do homo faber, já detalhada na análise
da obra “Condição Humana”, de Arendt.
No presente trabalho, de forma pontual e sucinta, destacar-se-ão duas
fundamentações teóricas, de cunho predominantemente científico, para sustentação e
ratificação da concepção filosófica da teoria ecocêntrica: a teoria de Gaia, de Lovelock, e a
autopoiese, de Maturana.
80
Com relação ao aproveitamento das ideologias existentes, interessante a colocação de Thompson (1990, p.
199) de que ”Todo intelectual busca uma nova ideologia, esperando tornar-se um outro Marx que possa
inspirar um Lenin melhor; porém, a ideologia é para a mente o que o excremento é para o corpo: os resíduos
de idéias outrora vivas”.
143
144
6.2 A TEORIA DE GAIA E O ECOCENTRISMO COSMOGÊNICO DE JAMES
LOVELOCK
A teoria de Gaia é a hipótese de que a Terra é um superorganismo vivo e autoregulador. O nome dado vincula-se à figura mitológica da Deusa grega, Gaia.
Gaia, nas mitologias grega e romana, personifica o poder criador. Nascida
imediatamente após o Caos primordial, ela deu origem, sozinha a Urano (o Céu). Depois,
unindo-se a Urano, Gaia gerou os deuses propriamente ditos, dentre eles, ZEUS (KURY,
1999, p. 159).
Eliade (1967, p. 141), na obra sobre a universalidade do fenômeno religioso, ao tratar
da sacralidade da Natureza, destaca a figura da mãe-terra presente na noção mitológica de
Gaia:
La mujer está pues, solidarizada místicamente com la Tierra; el parto
se presenta como una variante, a escala humana, de la fertilidad
telúrica. Todas las experiencias religiosas en relación com la
fecundidad y el nacimiento tienen una estructura cósmica. La
sacralidad de la mujer depende de la santidad de la tierra. La
fecundidad femenina tiene un modelo cósmico: el de la Terra Mater,
la Genetrix universal.
A teoria de Gaia foi apresentada em 1972 pelo químico inglês Lovelock e propunha
que, assim como nosso corpo é auto-regulador para compensar as mudanças nas nossas
atividades e no ambiente, também o "corpo" da Terra regula-se por meio dos organismos
vivos que controlam a atmosfera, os oceanos e a crosta. A evolução das formas de vida e do
meio ambiente físico da Terra, portanto, não é série de processos independentes, mas parte da
evolução de Gaia como um todo.
Tal idéia foi oriunda, conforme assinala o próprio Lovelock (1990, p. 77-81), de
trabalho de pesquisa sobre a existência de vida em Marte, patrocinado pela National
Aeronautics and Space Administration (NASA).
Lovelock (1990, p. 79-80) destaca que, nesse trabalho de análise da vida no Planeta
Vermelho, vislumbrou a necessidade de projetar modelo mais abrangente para a detecção de
vida, modelo que pudesse reconhecer a vida em qualquer de suas formas prováveis, pois:
Parecia que todas as experiências tinham sido projetadas para procurar
aquele tipo de vida que cada investigador conhecia em seu próprio
laboratório. Eles estavam procurando vida do tipo terrestre, em um
planeta em nada semelhante à Terra. Dian e eu tínhamos a impressão
de ser os convidados de uma expedição para procurar camelos na
calota polar da Groenlândia, ou para apanhar os peixes que nadavam
nas dunas de areia do Saara.
Na busca de modelo mais abrangente de caracterização da vida, encontrou a
atmosfera. O meio passava a ser o elemento característico do ser vivo.
A idéia por trás disso era que, se o planeta possuísse vida, essa vida
seria obrigada a utilizar a atmosfera como fonte de depósito de
matérias-primas e também como um conveniente meio de transporte
para seus produtos.
144
145
[...] Para testar esse prognóstico, precisávamos de um planeta que de
fato tivesse vida. E, naturalmente, o único ao nosso alcance era a Terra
(LOVELOCK, 1990, p. 79).
Assim, ao analisar a atmosfera terrestre e a composição química, Lovelock criou
modelo que permitia dar indício à existência de vida em Marte, a partir do meio que une todos
os seres vivos da Terra: a biosfera.
Após chegar à conclusão de que Marte, provavelmente, não tinha vida, a notícia não
foi, segundo Lovelock, bem recebida pelo patrocinador da pesquisa, a NASA.
Entretanto, quando retornou à Inglaterra, Lovelock (1990, p. 81) indagou:
[...] como é que a Terra mantém uma composição atmosférica tão
constante se esta é composta de gases altamente reativos? [...] Foi
então que comecei a imaginar que talvez o ar não fosse apenas um
meio ambiente para a vida, mas também uma parte da própria vida.
Em outras palavras, parecia que a interação entre a vida e o ambiente,
da qual o ar é uma parte, era tão intensa que o ar poderia ser
considerado como uma pele de gato ou o revestimento de um ninho de
vespas: sem vida, mas feitos por seres vivos para suportar um dado
ambiente.
Uma entidade que abranja todo um planeta, e que tenha a poderosa
capacidade de regular o seu clima e sua composição química, precisa
de um nome que lhe faça jus. Tive a felicidade de ter como vizinho,
naquela época, o romancista William Golding. Quando discuti esse
assunto com ele, durante um passeio a pé pelo nosso bairro, ele
sugeriu o termo Gaia – que os gregos empregavam para denominar a
Terra.
O apoio ao aspecto bioquímico da teoria veio das pesquisas de bactérias e
microrganismos, feitas pela bióloga americana Lynn Margulis. Os micróbios, numericamente
e em massa agregada, a principal forma de vida, realizam incontáveis processos orgânicos, da
digestão dos animais à conversão do nitrogênio nas plantas e, por conseguinte, talvez sejam os
principais agentes reguladores da biosfera.
Conforme assinala, Lovelock (1990, p. 83):
A evidência de que Lynn Margulis e eu, além de outros –
especialmente Michael Whitfield – reunimos em todos estes anos
estabelece quase sem margem de dúvida que a Terra é uma construção
biológica. Todas as camadas da superfície da terra são mantidas em
condição estável, bem distante das expectativas da química, através do
dispêndio de energia da biosfera.
Na opinião de Lovelock (1990, p. 88), os danos ambientais, infligidos pelos seres
humanos, desequilibraram o sistema que, assim como o corpo, tem capacidade
impressionante de autocorreção. Entretanto, essa autocorreção pode ser prejudicial para a
espécie humana, verbis:
Parece bastante improvável que qualquer coisa que façamos possa
ameaçar Gaia. Mas, se conseguirmos alterar o ambiente de forma
sensível como pode acontecer no caso da concentração de dióxido de
carbono na atmosfera – então uma nova adaptação pode se processar.
E, provavelmente, não será em nosso benefício.
145
146
Os críticos da hipótese Gaia destacam que, a longo prazo, a Terra não tem sido
estável, mas sujeita a imensas alterações climáticas e geológicas.
Por outro lado, também questiona-se a possibilidade de comprovação da teoria:
indagando se realmente seria hipótese científica ou metáfora simbólica.
Não obstante possa ser vista como um símbolo, mesmo entre os pesquisadores que
duvidam do status científico de Gaia, o conceito de planeta com sistema intradependente tem
tido aspectos pragmáticos extremamente relevantes. Estimula-se a cooperação e a
intercomunicação entre disciplinas geralmente isoladas, como a teoria evolucionista, a física
atmosférica, a microbiologia e as geociências.81
Nesse sentido, em nascimento está a chamada Análise Sistêmica da Terra (“Earth
System Analysis – ESA”). Steffen Reiche, ex-Ministro da Ciência, na Alemanha, na abertura
de simpósio sobre a nova ciência de análise sistêmica da Terra, afirma:
Todos nós sabemos que o planeta Terra é um organismo complexo e
extremamente sensível, o qual desenvolveu impressionantes
mecanismos de resistência e regeneração em decorrência das
interferências danosas que sofre (SCHELLNHUBER; WENZEL,
1998, p. V).
Esclarecendo o objeto desta nova ciência, intimamente vinculada à fundamentação
filosófica da Teoria de Gaia, Schellnhuber; Wenzel (1998, p. VII) destacam que:
Earth System Analysis (ESA) é ciência “in statu nascendi”. É uma
ciência no sentido que possui:
1) um sujeito específico: a Terra vista como sistema frágil e dinâmico;
2) uma metodologia específica: uma análise sistêmica transdisciplinar
baseada no monitoramento do planeta e na simulação de modelos
globais;
3) um objetivo específico: a busca de uma satisfatória coevolução da
ecosfera e da antroposfera (Desenvolvimento Sustentável) em tempos
de mudanças globais.
A análise sistêmica da Terra (Earth System Analysis - ESA) utiliza-se, pois, do
conceito de sistema de Bertalanffy. Por volta da década dos cinqüenta, Bertalanffy (1975, p.
83-84) propôs a “Teoria Geral dos Sistemas”, desenvolvendo método que partia do sistema
como “complexo de elementos em interação”, explicando que:
O significado da expressão um tanto mística “o todo é mais que a
soma das partes” consiste simplesmente em que as características
constitutivas não são explicáveis a partir das características das partes
isoladas. As características do complexo, portanto, comparadas às dos
elementos, parecem “novas” ou “emergentes”. Se porém conhecermos
o total das partes contidas em um sistema e as relações entre elas o
comportamento do sistema pode ser derivado do comportamento das
partes.
Nesse aspecto, Schellnhuber; Wenzel (1998) assinalam a origem do termo Análise
Sistêmica da Terra (ESA) como amálgama dos termos “Sistema Terra” e “Análise de
Sistemas”, refletindo, conseqüentemente, as essências desses dois ingredientes.
81
“Os conhecimentos geológicos adquiridos nas décadas de 1960 e 1970 – superiores aos obtidos nos 200 anos
anteriores da história das ciências geológicas –, confirmam a teoria da Terra como um sistema dinâmico.
Segundo essa teoria, a crosta terrestre ou litosfera é formada por um mosaico de placas rochosas de diferentes
tamanhos, as quais estão em movimento permanente, umas em relação às outras. Tectônica de Placas é o
termo usado para designar os movimentos e deformações dessas placas” (REBOUÇAS, 1999, p. 2).
146
147
Por outro lado, esses autores tedescos, utilizando-se da filosofia do progresso da
ciência de Kuhn,82 destacam como paradigmas predominantes do surgimento da EAS, os
seguintes:
1) a corrida para a Lua, que permitiu a observação do Planeta Terra do
espaço como algo finito e aberto ao espaço;
2) o evento dos super-computadores que estabeleceu a plataforma
tecnológica para a simulação global;
3) a descoberta do buraco de ozônio sobre a Antartica que uniu a
Comunidade Internacional sobre o fato de que a humanidade pode
transformar e está transformando o meio ambiente em uma escala global
(SCHELLNHUBER; WENZEL, 1998, p. viii).
Assim, a Teoria de Gaia fornece aparato teórico, de cunho filosófico e científico,
para a solidariedade dos entes bióticos e abióticos do meio ambiente. A teoria apresenta
benefícios no contexto do mundo globalizado, por induzir preocupação internacional com o
meio ambiente. A geografia política fica em segundo plano, em face da geografia natural.
Propicia-se a criação, com essa teoria, de solidariedade internacional ambiental como novo
paradigma científico.
Portanto, para Lovelock, a Terra pode ser considerada como se fosse um único
organismo vivo. Gaia está viva porque é “autopoiética”, isto é, auto-renovável; pode reparar
o próprio “corpo” e crescer, processando os “nutrientes”.
6.3 A METODOLOGIA ECOCÊNTRICA DA AUTOPOIESE DE MATURANA: O ORGANISMO E O
AMBIENTE COMO INTERCONSTITUINTES
A noção de autopoiesis constitui-se em elemento basilar para compreensão da teoria
do biólogo chileno Maturana.
Autopoiesis (do grego poiein: gerar, produzir) conduz à caracterização dos seres
vivos em oposição aos não vivos.
A autopoiesis expressa a capacidade autônoma da vida de conduzir a própria
preservação e desenvolvimento e, inclusive, de gerar a si própria (autoproduzir-se).
Maturana chegou ao conceito por volta de 1963, ao estabelecer a hipótese de que o
DNA participa da síntese das proteínas do citoplasma da célula, ao mesmo tempo em que as
proteínas participariam da síntese do RNA. Ou seja, as produções moleculares seriam
82
O termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn associa-se a sua teoria do progresso científico no livro “A
estrutura das revoluções científicas (1962)”. Nele Kuhn (1994) refuta o conceito tradicional de conhecimento
científico, interpreta o conhecimento científico como aquele fundamentado em paradigmas predominantes –
teorias aceitas que expressam e confirmam certas opiniões estabelecidas. Kuhn nos dá um exemplo do
paradigma de Ptolomeu do Universo, com a Terra no centro, circundada pelo Sol, pelos planetas e pelas
estrelas, que prevaleceu durante séculos, até ser refutado por observações astronômicas e pela teoria
heliocêntrica Copernicana do sistema solar. O progresso científico, segundo Kuhn, não é incremental, mas
progride em saltos por meio da mudança de paradigma, quando um paradigma é superado e
substituído por outro. Assim, quando uma teoria se depara com inúmeras anomalias, as teorias concorrentes
ganham estatura e a superam, o que promove o progresso científico porque proporciona uma plataforma para
novos métodos de pesquisa.
147
148
processo circular e recorrente. Em outras palavras, o que a célula produz é, justamente, o que
produz a célula; ou, ainda, não apenas as células reproduzem-se, mas reproduzem também a
própria capacidade de reproduzir-se. Algo não vivo, fruto do engenho humano, como a
fábrica, por exemplo, é produzido por algo externo a si (materiais trazidos pelo homem) e
produz coisas que serão também utilizadas externamente (mercadorias destinadas ao consumo
de outros seres).83
Formulação mais consistente da autopoiese surgiu ao longo dos estudos sobre a
percepção visual das cores, quando Maturana procurou compreender a atividade das células
da retina em termos da percepção da cor pelo sistema nervoso, ao indagar como se poderia
correlacionar a atividade da retina com o nome da cor. Verificou que a diferentes estímulos
espectrais (“azul claro”, “azul marinho”, “azul escuro”) havia a mesma identificação de cor
(azul). Assim, verificou-se haver aparente desvinculação da atividade das células do estímulo
cromático exterior (porque então já se sabia que o sistema nervoso acaba por atribuir idêntica
percepção, ou seja, idêntico "nome" para a cor, quando estimulado por situações espectrais
bastante diversas. O que seria, então, o nome dessa cor? Seria estado do sistema nervoso do
indivíduo e não atributo externo ao ser (MATURAMA, 1997, p. 18).
Destarte, relacionar a atividade da retina com o nome da cor seria relacionar a
atividade da retina com outro estado de atividade neuronial, vinculado ao nome dado à cor;
quer dizer, é o sistema nervoso relacionando-se consigo próprio, operando em circuito
fechado. Em última análise, o que o sistema nervoso faz é estabelecer referências a padrões de
variação (externos) que expressem o seu próprio modo de organização (interno). É a estrutura
da retina, e não o estímulo externo, o que determina a atividade da retina.
Posteriormente Maturana concluiu ser o próprio ser vivo um sistema fechado,
constituído pela circularidade de seus processos e concebeu representação do ser vivo por
meio de seta circularmente voltada sobre si mesma (MATURAMA; VARELA, 1972).
Para Maturana, a cognição é fenômeno puramente biológico. Nesse contexto, a
percepção da realidade exterior, ou seja, o fenômeno do conhecer é exatamente o próprio
fenômeno do "viver", ou seja, é o operar (interior) adequado ao ambiente (exterior), ou, ainda,
nas palavras de Maturana (1997, p. 41), verbis:
Para entender o ser vivo, o que temos que encarar é o que
o faz, o que o constrói. Eu dizia: “Qual é a tarefa, ou o
propóstio da mosca?” Mosquear, ser mosca. O
interessante é que esta resposta: “O propósito da mosca é
mosquear” coloca a caracterização do ser vivo no ser vivo,
não a coloca fora do ser vivo.
O conhecer passa a ser, para esse biólogo, fenômeno do operar do ser vivo em
consonância com a circunstância. Procurando melhor compreender o conhecer, Maturana
(1997, p. 152) percebeu ser o “sistema vivo um sistema fechado cujo objetivo último é o de
preservar sua organização (interna), conservando sua adaptação à ‘circunstância”84 (externa).
83
84
“A verdade é que eu descobri a autopoiese por volta de 1963 conversando com um amigo microbiólogo,
Guilhermo Contreras, sobre uma pergunta da genética molecular importante na época. Discutíamos se a
informação fluía do citoplasma para o núcleo, ou somente do núcleo par o citoplasma [...] ‘Veja, o que ocorre
é que o DNA participa da síntese das proteínas, e as proteínas participam da síntese do DNA’”
(MATURANA, 1997, p. 31-32).
O modelo tradicionalmente aceito de conhecimento biológico percebe o sistema nervoso como um sistema
aberto, que capta informações por meio dos cinco sentidos e com elas constrói uma representação interna de
uma realidade externa (o meio ambiente sempre chamado de “circunstância” por Maturana).
148
149
Assim, “viver é conhecer, conhecer é viver”, no momento em que cessa o conhecer, ou seja,
em que o organismo deixa de estar em harmonia com sua circunstância, morre e deixa de ser
um sistema auto-referente.
O “viver” de um ser vivo é, portanto, processo permanente de interações recursivas
entre o organismo e o ambiente, que ocorre, naturalmente, sem estar submetido a qualquer
direcionamento externo; organismo e ambiente são sistemas estruturalmente determinados,
mas operacionalmente independentes um do outro.85
É esse caráter sistêmico da relação entre o ser vivo e o ambiente que faz com que o
ser vivo, enquanto estiver vivo, fique sempre e espontaneamente em "coincidência estrutural”
com o meio ambiente. Quando tal coincidência acabar, o ser morre.
Mais que interdependentes, o organismo e o meio são interconstituintes. O
indivíduo só é indivíduo porque social, e o social somente é social porque composto por
indivíduos. Nesse sentido, Maturana (1997, p. 42) afirma, verbis:
Os biólogos enfatizaram o fato de que o ser vivo não é
independente de sua circunstância. Mas, ao mesmo tempo,
não encaram o indivíduo como uma coisa legítima em si
mesma – porque o encaram como parte desse processo
evolutivo. Mas, no momento em que atribuo importância ao
indivíduo, em que pertenço a essa história que dá
importância aos indivíduos e respeita sua legitimidade,
quando vejo as bordas, os limites, não nego as
circunstâncias. Quando digo que conhecer é viver, e viver
é conhecer, o que estou dizendo é que o ser vivo, no
momento em que deixa de ser congruente com sua
circunstância, morre. Ou seja, quando acaba seu
conhecimento, morre. É um conjunto que é uma unidade
em sua circunstância. Mas ele é como é, segundo sua
história com sua circunstância. E sua circunstância é
como é, segundo a história de sua dinâmica.
Para Maturana, há, pois, responsabilidade entre o mundo animado e o mundo
inanimado, razão por que pode ser caracterizado como autor que se filia à ética ecocêntrica
para a problemática homem/natureza. Para esse biólogo chileno, todos os seres podem ser
vistos como conjunto de sistemas autopoiéticos unidos por circunstâncias comuns.
Todo sistema determinado pela estrutura (autopoiético) existe em um meio, ou seja,
surge em um meio ao ser distinguido ou trazido, à mão, pela operação de distinção do
observador. Essa condição de existência é, também, necessariamente, condição de
complementariedade estrutural entre o sistema e o meio em que as interações do sistema
são apenas perturbações.
A complementariedade estrutural, necessária entre o sistema e o meio, é o que
Maturana chama de acoplamento estrutural.
85
Os sistemas autopoiéticos não transforma nenhum input do ambiente em output para o ambiente, exceto no
sentido de estarem transformando a si próprios em si próprios (ainda que para isso sejam estruturalmente
abertos, pois importam insumos e exportam resíduos). Em outras palavras, o produto do sistema é o próprio
sistema. Tudo o que ele fizer será sempre no sentido de autoproduzir-se. Enfim, dizer que o ser vivo é
operacionalmente independente é o mesmo que afirmar que eles são auto-organizantes ou auto-referentes ou
autopoiéticos.
149
150
A interação também existe entre dois sistemas autopoiéticos como dois seres
humanos ou o ser humano e o animal. Tratando da Biologia do Fenômeno Social, Maturana
(1997, p. 208) esclarece a existência de co-responsabilidade entre os seres, afirmando que:
A natureza é, para o ser humano primitivo, o reino de Deus, o
âmbito onde encontra à mão tudo aquilo de que necessita, se
convive adequadamente nela. Para o ser humano moderno a
sociedade é a natureza, o reino de Deus, que deve
configurar o âmbito onde encontrar à mão tudo o que gera
seu bem estar como resultado de seu conviver nela. Isso,
em geral, não ocorre, impedido pela alienação que o apego
e o desejo de posse geram, alienação essa que transforma
tudo, as coisas, as idéias, os sentimentos, a verdade, em
bens adquiríveis, gerando um processo que priva o outro
do que deveria estar, para ele ou ela, à mão, como
resultado de seu mero ser e fazer social. No apego, no
desejo de posse, negamos o outro e criamos com ele ou
ela um mundo que nos nega (grifo nosso).
É preciso também abordar a questão da linguagem nesse contexto. Esta tem por
objetivo chegar a algum acordo, construir consenso a respeito da sinalização de algo entre
dois indivíduos que se encontram em acoplamento estrutural mútuo. Nesse sentido, Maturana
(1997, p. 38) ilustra com exemplo de “interação de orientações”86 entre uma menina (ser
humano) e um cachorro (animal):
Eu era estudante na Inglaterra e, um dia, estava no Hide Park, em
Londres, e vi uma menina com um cão e um bastãozinho. Ela ia
caminhando com o bastão e tomava do bastão e o enterrava no chão, e
prosseguia caminhando uns 50 metros, o cão ao seu lado. Ela então
parava, olhava para o cão e dizia “Vá buscar o bastão”. O cão saía, e
ia buscar o bastão. E a rotina se repetia enquanto ela andava. Isso me
parecia fascinante porque era uma coordenação muito especial com o
cão. Então, eu pensava que o que ela conseguia era que o cão se
orientasse não para ela, mas sim para sua orientação sobre o
bastão. Ela punha o bastão no chão, e quando dizia ao cão: “Vá
buscar o bastão”, o cão não se orientava para ela mas para a orientação
dela sobre o bastão. Embora aí não fosse visível que era uma
coordenação de coordenações de ações, porque eram dois momentos
tão separados, esse era exatamente um jogo de coordenação de
coordenações de ação (grifo nosso).
Assim, para Maturana, o bastão da menina indicado ao cachorro é um símbolo.
Coisas que orientam o outro, não para si, mas para outra coisa. Para Maturana, a menina,
ao apontar com o dedo o bastão, orienta o cão para onde a mão aponta.
Logo, a linguagem, para Maturana (1997, p. 39), é “interação de orientações”, em
que a segunda orientação não era sobre o orientador, mas sim sobre a orientação. Os signos,
86
“Minha primeira visão sobre a linguagem, expressa no ‘Neurophysiology of cognition’, é a de ‘interações de
orientação’. Apontar não ao que aponta, mas sim apontar ao apontar do que aponta. E eu pensava que, na
medida em que eu podia fazer isso, efetivamente, iam aparecer os símbolos, porque os símbolos são
justamente algo criado pelo que aponta fora de si mesmo. São coisas que orientam o outro, não para si, mas
para uma outra coisa” (MATURANA, 1997, p. 37-38).
150
151
nesse aspecto são secundários “porque as regras, os signos e símbolos são resultados desse
operar”.
Verifica-se que a associação da linguagem ao fenômeno biológico, afasta a alegação
de Descartes, já analisada, de que só o ser humano é capaz de “interagir sobre orientações”
com os outros seres. O que pode mitigar a noção cartesiana de alma racional como exclusiva
dos seres humanos, “únicos” capazes, para o cartesianismo, de acoplamento estrutural mútuo.
Interessante observar que o caminho de Maturana passa pela análise do ser animado
sensorial para depois chegar ao ser animado humano. Verifica, ao contrário de muitos,
identificação do humano com o animal para, a partir desse momento, avaliar o humano. Para
Maturana (1997, p. 46), a origem do humano, sua ontogenia passa:
[...] pela história dos primatas bípedes à qual pertencemos,
com a origem da linguagem. E a linguagem se origina em
uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses
nosso antepassados conviviam compartilhando alimentos,
na sensualidade, em grupos pequenos, na participação
dos machos na criação das crianças, no cuidado com as
crias, nas coordenações de ação que isso implica. E ali
surge a linguagem como um domínio de coordenações de
coordenações consensuais de conduta. Mas é o fundamento
básico do emocionar-se do mamífero e do primata que torna
essa convivência possível. A emoção que torna possível
essa convivência é o amor, o domínio de ações que
constituem o outro como legítimo outro na convivência
(grifo nosso).
Logo, não só as suas conclusões como a sua própria metodologia de trabalho é
ecocêntrica. A intimidade do viver cotidiano permitiu o acoplamento estrutural mútuo, que
enseja a linguagem, domínio de coordenações consensuais de conduta que, nos primatas e
mamíferos, destaca-se pela capacidade de ter emoções e de amar.
Nesse sentido Maturana (1997, p. 47) afirma:
Isso é particularmente central na epigênese, a história de
desenvolvimento da criança. Quando essas coisas se
alteram e a criança não cresce no amor, sua fisiologia se
distorce, surgem problemas de desenvolvimento,
problemas
de
relação,
problemas
fisiológicos,
psicológicos. Quando isso ocorre altera-se também seu
ser social. Se não cresce no amor, altera-se sua fisiologia
e, com isso, sua configuração de mundo. Porque o mundo
em que a criança vive é uma expansão de seu ser corporal e,
portanto, de como ela vive sua corporalidade. A corporalidade
pode ser vivida no respeito por si mesmo e no respeito
pelo outro, que se dá na confiança, uma confiança sincera,
não hipócrita. Então, a criança que não cresce no amor,
não cresce como um ser social (grifo nosso).
Maturana (1997, p. 47) destaca o homem, entretanto não pela suas diferenças com os
animais, mas pelo grau de acoplamento estrutural com os outros seres pelo amor. “Nós temos
151
152
fisiologia dependente do amor. E isso se nota em como se altera a fisiologia quando se
interfere com o amor”.
Aqui, Maturana aproxima-se da conclusão de outro biólogo e filósofo clássico, cuja
ética já estudamos neste trabalho, Aristóteles.
Para Aristóteles, como para Maturana, o homem é animal político.87 Entretanto, é
político, para Maturana, não só na sua interação com os outros homens, mas, também, na sua
interação com todos os seres.
6.4 DIFICULDADES DE TRANSPOSIÇÃO DA ÉTICA ECOCÊNTRICA PARA A CIÊNCIA JURÍDICA: A
CONCEPÇÃO DE PERSONALIDADE COMO ATRIBUTO EXCLUSIVO DO HOMEM
6.4.1 Personalidade: conceitos básicos
O direito subjetivo é poder de vontade para satisfação de interesses humanos, em
conformidade com a norma jurídica. Anatomicamente, ele compreende sujeito, objeto e a
relação que os liga (RAÓ, 1999, p. 527-528).
O sujeito do direito é o ser a quem a ordem jurídica assegura o poder de agir contido
no direito. Os sujeitos dos direitos são as pessoas naturais e jurídicas (LARENZ, 1978, p.
103).
Para Ennecerus (1953, t. 1, v. 1, p. 318), o conceito de direito subjetivo, como um
poder investido pelo ordenamento que se destina à satisfação de interesses humanos,
pressupõe um sujeito a quem se atribui esse poder, sujeito de direito, o que equivale, na
linguagem jurídica, a uma pessoa.
Objeto do direito é o bem ou vantagem sobre o qual o sujeito exerce o poder
conferido pela ordem jurídica.
Relação de direito é o laço que submete o objeto ao sujeito. Beviláqua (1980, p. 52)
afirma que a teoria da relação de direito que melhor traduz a verdade dos fatos é aquela que
distingue duas categorias de relação:
• sobre objetos naturais: direitos reais;
• sobre pessoas: direitos pessoais.
Nesse contexto jurídico, conceituar-se-á pessoa como o ser a que se atribuem direitos
e obrigações. A palavra pessoa vem do latim persona, de personare, que significa ressoar.
Persona - máscaras de que se serviam os atores - munidas com lâminas metálicas que
87
A famosa afirmação que o homem é por natureza um animal político deve ser entendida no contexto da
importância da sociedade e da cidade (“polis”) para o homem e não no enfoque de sua participação na escolha
dos seus governantes. “Man is a political animal in the first instance in the sense that human beings, like
certains kinds of animal, everywhere congregate in groups larger than the household, and ‘strive to live
together even when they have no need of assistance from one another.’” (LORD, 1987, p. 136).
152
153
aumentavam o volume da fala. Como a voz de Vulcano não poderia ressoar igual à voz de
Vênus, havia necessidade de máscara para cada papel e como cada homem representa o seu
papel no teatro do mundo, por metáfora, ao homem chamou-se de pessoa (SILVA, D., 1989,
v. 3, p. 365).
Observa-se que o termo “pessoa” está sendo usado no contexto jurídico, que é
distinto do filosófico.
Kant, ao analisar, filosoficamente, o termo “pessoa”, apresenta o ser humano como o
valor absoluto que se contrapõe à coisa, que tem valor relativo, visto ser apenas meio. Salgado
(1995, p. 244), nesse sentido, esclarece a noção de pessoa em Kant, correlacionando-a com o
imperativo categórico:
Porque, o homem é livre, vale dizer, porque o homem é um ser
racional, é o único que deve ser considerado fim em si mesmo, já que
a finalidade da razão, voltando-se a si mesma, é o ato moral que
encontra o seu fundamento na idéia de liberdade de todo ser racional.
Uma vez considerado como fim em si mesmo, o ser racional deverá
ter em conta, sempre, que o outro ser racional é também livre e deve
ser tratado como fim em si mesmo (pessoa) e nunca como meio
(coisa). Em razão disso, o imperativo categórico será formado de
modo a criar o liame necessário entre a ética como moral do indivíduo
e a política ou o direito, na medida em que prescreve que o indivíduo
aja de tal forma, que a humanidade, que se encontra na pessoa de
quem age, seja considerada, sempre e ao mesmo tempo com fim em si
mesma, de modo que se possa construir um reino dos fins a par do
reino da natureza. O reino dos fins é o reino das pessoas ou dos
seres, cuja ação tem como princípio a liberdade, e só poderá ser
instaurado na medida em que o agir de cada indivíduo se paute pelas
máximas do membro do reino dos fins, cuja legislação vale
universalmente (grifo nosso).
Já Hegel (2000, p. 40), ao tratar do conceito filosófico de pessoa, no âmbito dos
“Princípios da Filosofia do Direito”, correlaciona o âmbito jurídico com o filosófico,
afirmando que:
É a personalidade que principalmente contém a capacidade do
direito e consitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito
abstrato, por conseguinte formal. O imperativo do direito é portanto:
sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas (grifo nosso).
Em seguida, Hegel (2000, p. 43) explica a diferente acepção jurídica do termo
“pessoa” no Direito Romano: “a personalidade é situação, estado que se opõe à escravatura”.
Salta aos olhos, pois, a diferença de conceituação filosófica, da jurídica, de pessoa,
na análise de Kant e Hegel, sendo, pois, inconcebível a existência filosófica para Kant e Hegel
da “pessoa jurídica”, embora não o seja para a ciência jurídica contemporânea.
Assim, não obstante a relação mútua entre as duas concepções, a análise, neste
tópico, refere-se à “personalidade” e à “pessoa”, no sentido estritamente jurídico de
titularidade de direitos e obrigações.
Portanto, pessoa, no direito moderno, classifica-se em dois grupos:
• todo ser humano é pessoa ⇒ homem (pessoa natural);
153
154
• organizações ou coletividades que tendem à consecução de fins comuns
(pessoa jurídica).88
Deve-se observar que havia seres humanos que não eram pessoas, como os escravos.
Entretanto, segundo Lima (1953, p. 138), depois que se extinguiu a escravatura, todas as
criaturas humanas são portadoras de direitos. Por outro lado, os animais, as entidades
metafísicas (almas, santos) e as coisas ou bens não podem ser titulares de direitos e
obrigações.
6.4.2 Personalidade e a escravidão
Em 6 de março de 1857, a Suprema Corte Americana no “DRED SCOTT case”
(Dred Scott v. Sandford) decidiu, por sete votos a favor e dois contra, que um homem negro e
sua família eram ainda escravos e não cidadãos livres (não tinham, pois personalidade)
(HALL (ORG.), 1992, p. 759).
Nesse momento, a Suprema Corte Americana escreveu duas novas e provocativas
regras na Constituição Americana:
a) Nenhum negro poderia ser cidadão americano ou, mesmo, cidadão de um
Estado-membro americano;
b) O Congresso Americano não tinha poderes de excluir a escravidão
estabelecida nos Estados-membros americanos;
Na primeira regra decorrente da decisão ficou, pois, estabelecida a diferença entre ter
“personalidade jurídica” e ser homem. O escravo Dred Scott e a sua família continuavam a ser
coisas (“res”), pertecentes ao seu dono John F. A. Sandford.
Apesar de Dred Scott ter saído em 1834 do Estado-membro escravocrata de Missouri
para o Estado-membro de Illinóis, no qual não existia a escravidão, negros eram “coisas”
ligadas erga omnes e passíveis de serem reavidos a qualquer momento, não tendo titularidade
para requerer “direitos” perante as Cortes Americanas.
Na decisão tomada pelos nove Justices da Suprema CorteAmericana, sete deles
foram favoráveis a continuidade do “status” de escravo e dois foram contrários. No voto
vencedor, o Justice Taney afirmou que “Apesar dos negros poderem ser cidadãos de um
determinado Estado-membro, não o eram da Federação Americana, não tendo a
possibilidade, portanto, de pleitear direitos em Cortes Federais” (HALL (ORG.). 1992, p.
760).
Apesar da décima-terceira emenda constitucional americana ter abolido a escravidão,
Dred Scott morreu em 1858 sem ser considerado titular de direitos, mas só uma “res” (HALL
(ORG.), 1992, p. 761).
Mutatis mutandi, a situação jurídica da ética ecocêntrica, da Natureza e dos seres
não-humanos, assemelha-se à questão vivida por Dred Scott, uma vez que a titularidade de
direitos (personalidade) restringe-se ao ser humano qualificado como tal, pelo Direito.
88
“Juridicamente capaces (personas) son los hombres y además ciertas organizaciones que sirvem a
determinados fines (Estado, Iglesia, Municípios, ciertas associaciones, fundaciones, etc)” (ENNECERUS,
1953, t. I, v. 1, p. 319).
154
155
Verifica-se, pois, a dissonância histórica entre ser “humano” e personalidade, o que
destaca o caráter de relativa discricionariedade normativa do conceito de personalidade. Tal
assertiva pode ser corroborada pela criação jurídica da pessoa moral ou coletiva.
6.4.3 Personalidade e a pessoa jurídica
O tratamento legal e doutrinário dado à pessoa jurídica, na evolução da teoria
negativa (que não aceita a sua existência como titular de direito) a um conjunto de teorias
positivas (teorias da ficção (pessoas jurídicas são criação artificial da lei, carecendo de
realidade) e teorias da realidade (pessoas jurídicas são entidades de existência indiscutível,
distinta dos indivíduos que a compõem, caracterizadas por finalidades específicas)),
desenvolve-se em razão de necessidade social de criação de mecanismos de titulação de
direitos subjetivos que transcendam às contingências humanas.
Na evolução do conceito atual de pessoa jurídica, não pode ser esquecida a visão
romana “Societas est adunatio hominum ad aliquid unum communiter agendum”.89 Tal
acepção ressaltava um aspecto filosófico e social, o de que o homem é um animal social, que
necessita unir-se a outros homens para conseguir alcançar determinados fins.
Conforme destaca Lopes (2000, p. 411) o direito privado moderno desenvolve
instrumento capaz de pôr em movimento a máquina de produção capitalista – a sociedade
mercantil com personalidade jurídica, a partir da tradição medieval:
A tradição romana não precisou chegar ao requinte da pessoa jurídica,
pois a unidade de produção sendo familiar, as regras de imputação de
responsabilidade e de unificação do patrimônio no pai de família
dispensavam o invento da pessoa jurídica. A tradição medieval, por
seu turno, já avançara para instituir as corporações: por isso durante o
período de apogeu do direito canônico medieval, desenvolvem-se
regras aplicáveis a uma nova forma de associação (a Igreja hierárquica
e burocratizada) cujos laços internos não são os de família e nem
derivados dos laços de família (matrimônio, filiação, adoção): só
podem ser os de pertença a um corpo de funcionários, cujos interesses
pessoais precisam ser separados dos interesses da corporação mesma e
exigem novos meios de representação e imputação de
responsabilidade.
No mesmo aspecto, Enneccerus (1953, t. 1, v. 1, p. 421-422) insiste que muitos
interesses humanos não são só de um indivíduo, mas “sino comunes a un conjunto más o
menos amplio de hombres y sólo pueden satisfacerse por la cooperación ordenada y
duradora por la cooperación ordenada y duradora de esa pluralidad”.
Assim, o próprio interesse humano e a contingência da natureza humana ensejam a
concessão, pelo ordenamento jurídico, de capacidade de direito a determinados entes
imateriais.
89
Sociedade é a união moral de homens que se reúnem para, em comum, atingirem determinado fim.
155
156
Essas organizações não são seres vivos, nem têm vontade natural, ou personalidade
para Kant. Entretanto, a união de vontades humanas dirigidas a um determinado fim propicia
a sua personificação (ENNECCERUS, 1953, t. 1, v. 1, p. 424).
6.4.4 Personalidade e incapacidade
Capacidade é a medida da personalidade, que todos possuem (art 1º do Novo Código
Civil de 2002 (Lei 10.406/2002); é a capacidade de direito (de aquisição ou de gozo de
direitos). Mas nem todos possuem a capacidade de fato (de exercício do direito), que é a
aptidão para exercer, por si só, os atos da vida civil, também chamada de “capacidade de
ação”. Os recém-nascidos e os loucos têm somente a capacidade de direito (de aquisição de
direitos), podendo, por exemplo, herdar, mas não têm a capacidade de fato (de exercício).
Para propor qualquer ação em defesa da herança recebida, precisam ser representados pelos
pais, tutores ou curadores.
Quem possui as duas espécies de capacidade, dir-se-á, tem capacidade plena. Quem
só possui a de direito, tem capacidade limitada e necessita de outra pessoa que substitua ou
complete a sua vontade. São, por isso, chamados de “incapazes” (RAÓ, 1999, p. 656).
No direito brasileiro não existe incapacidade de direito, porque todos se tornam, ao
nascer, capazes de adquirir direitos. Existe, portanto, somente incapacidade de fato ou de
exercício.
Kaser (1999, p. 99) assinala, de forma sucinta e didática, a noção de capacidade
jurídica para, depois, distinguí-la de capacidade de exercício, verbis:
A dogmática moderna fala da CAPACIDADE JURÍDICA como
capacidade de ser titular de direitos e obrigações (SUJEITO DE
DIREITO), e chama pessoa em sentido jurídico a quem possui esta
capacidade. Juridicamente capazes são todos os homens (pessoas
NATURAIS) e ainda certas formas de organização (associações,
fundações, o Estado, etc.), reconhecidas pelo Direito como pessoas e
que, por isso, são chamadas pessoas JURÍDICAS.
A capacidade abstrata, essa que constitui o conteúdo da personalidade (capacidade
de direito), todo ser humano tem inalterada desde o momento em que nasce até o momento
em que morre. Tem um ano e já pode, por meio de terceiros, comprar e vender, já tem
herança; entretanto, a sua imaturidade obriga o legislador a lhe restringir, por exemplo, a
capacidade matrimonial.
Já ao explicar capacidade de exercício, Kaser (1999, p. 102) estabelece:
A capacidade de produzir efeitos jurídicos por ACTIVIDADE
PRÓPRIA (CAPACIDADE DE EXERCÍCIO) exige no sujeito uma
elevada maturidade e a não existência de características que se
oponham à sua idoneidade.
156
157
De sorte que a capacidade de direito não se altera; entretanto a capacidade de
exercício ou de fato, intimamente ligada à consciência e à vontade (atos jurídicos), esta pode
ser retirada ou restringida. Assim, a incapacidade refere-se ao exercício; portanto, é a restrição
legal ao exercício de atos da vida civil de forma autônoma. Pode ser de duas espécies:
absoluta e relativa.
A absoluta (art. 3º) acarreta a proibição total do exercício, por si só, do direito. O ato
somente poderá ser praticado pelo representante legal do absolutamente incapaz, sob pena de
nulidade (Novo Código Civil, art. 166 ,I).
A relativa (art. 4º) permite que o incapaz pratique atos da vida civil, desde que
assistido, sob pena de anulabilidade (Novo Código Civil, art. 171, I).
Os meios de suprimento da incapacidade – A incapacidade se supre sempre do
seguinte modo: colocando ao lado do incapaz alguém que decida por ele (representação)
ou, então, em colaboração com ele (assistência). Na representação, o incapaz não participa
do ato, que é praticado somente por seu representante. Na assistência, reconhece-se ao
incapaz certo discernimento e, portanto, ele é quem pratica o ato, mas não sozinho, e sim
acompanhado, isto é, assistido por seu representante. Se o ato consistir, por exemplo, na
assinatura de um contrato, este deverá conter a assinatura de ambos. Na representação,
somente o representante do incapaz assina o contrato (RAÓ, 1999, p. 658).
Exemplificando, uma criança de cinco anos de idade tem um prédio e o tem
validamente, porque é capaz de direito (capacidade de aquisição), mas não o pode vender
sozinho (por não ter capacidade de exercício, de negociação). Ora, acontece que ele precisa
vender; precisa vender para apurar o dinheiro necessário ao seu sustento. Que fazer, se esta
criança não tem a capacidade de negociar? Põe-se ao lado dele alguém que exerce por ele o
direito de proprietário, representando-o.
Por outro lado, deve-se atentar que o Código Civil de 2002 contém sistema de
proteção aos incapazes. Em vários dispositivos, verifica-se a intenção do legislador em
proteger os incapazes, como, por exemplo, nos capítulos referentes ao poder familiar, à tutela,
à prescrição, às nulidade e outros.
De forma análoga, a eventual concessão de personalidade aos animais, por exemplo,
não se mostra vedada pela impossibilidade de sua atuação efetiva no mundo jurídico. A
representação supre tal problemática do mesmo modo, que um alienado mental deve ser
representado para exercer seus direitos.
Nesse modo, Raó (1999, p. 646), buscando solucionar o impasse das coisas animadas
ou inanimadas “não serem, nem poderem ser titulares de direitos”, destaca que o direito
objetivo pode atender sempre a situações ou necessidades humanas, como o fez ao conferir
personalidade aos entes coletivos.
6.4.5 Os entes não-humanos podem potencialmente ser personificados ?
157
158
Inicialmente, deve-se observar que a falta de personalidade, em si, não prejudica,
substancialmente, a proteção jurídica dos seres vivos em geral na categoria jurídica de objetos
(“coisas”) de direitos transindividuais, com fundamentos valorativos antropocêntricos.
Corroborando essa assertiva, a expressiva decisão da Suprema Corte Americana no
case Sierra Club v. Morton. Nesta decisão histórica, não obstante, o voto minoritário em
separado do Justice DOUGLAS,90 a Suprema Corte protegeu o Mineral King Valley dos
esforços da Walt Disney Corporation de construir estação de esqui na região, não porque o
ecossistema “em si” tinha direitos a serem protegidos, mas sim porque os membros da
Organização não Governamental (ONG) americana Sierra Club (homens) tinham interesses a
serem preservados na utilização daquele ecossistema ao realizarem suas escaladas e
caminhadas recreativas naquele local.
Assim, a proteção ambiental nesse consagrado julgado da Suprema Corte Americana
pode ocorrer, ainda que com fundamentos antropocêntricos.
Não obstante esta consideração inicial, cada dia mais a ciência e a filosofia sinalizam
a existência de valores intrínsecos de seres vivos e a conseqüente existência de interesses
destes a um meio ambiente saudável. Entretanto, de forma estanque, a ciência jurídica vigente
posiciona-se, de forma exclusiva, pela personalidade como atributo humano ou de conjunto de
homens.
Por outro lado, essa visão antropocêntrica pode, em outras circunstâncias, prejudicar
a proteção dos ecossistemas e dos animais, como ocorreu no case Church of the Lukumi
Babalu Aye v. City of Hialeah (1993).91
Ao se instalar um culto afro-americano de “Santeria”92 na cidade americana de
Hialeah na Flórida, o poder público municipal tentou evitar a prática corriqueira de sacrifício
de animais nestes cultos.
90
Para o Justice Douglas, voto dissidente no julgamento referido, os objetos inanimados
podem, em algumas situações ser parte em um julgamento, como os são as pessoas
jurídicas, tendo inclusive sugerido a mudança da denominação do case de Sierra Club
v.Morton para Mineral King Valley v. Morton: “Inanimate objects are sometimes parties in
litigation. A ship has a legal personality, a fiction found useful for maritime purposes. The
corporation sole - a creature of ecclesiastical law - is an acceptable adversary and large
fortunes ride on its cases. The ordinary corporation is a ´person` for purposes of the
adjudicatory processes, whether it represents proprietary, spiritual, aesthetic, or charitable
causes”. (Nesse sentido vide Sierra Club v. Morton, 405 U.S. 727 (1972), dissenting vote of
Justice Douglas, SUPREME COURT. Sierra Club. v. Morton. Disponível em:
<http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/sierraclub.html >. Acessado em
25 de Jul. de 2002).
91
Para o Justice Kennedy: “This case involves pratices of the Santeria religion, which
originated in the 19th century [...] First, the city concul adopted Resolution 87-66, which
noted the ´concern´expressed by residents of the city ‘that certain religions may propose to
engage in practices which are inconsistent with public morals, peace or safety‘ [...] Among
other things, the incorporate state law subjected to criminal punishment ´whoever ...
unnecessarily or cruelly ... kills any animal [...] The Free Exercise Clause commits
government itself to religious tolerance, and upon even slight suspicion that proposals for
state intervention stem from animosity to religion or distrust of its practices, all officials
must pause to remember their own high duty“ (SUPREME COURT. Church of the Lukumi
Babalu.
v.
City
of
Hialeah
(1993).
Disponível
em:
<
http://supct.law.cornell.edu/supct/html/91-948.ZO.html>. Acessado em 25 de Jul. de 2002).
158
159
A questão decidida, por maioria na Suprema Corte Americana, condenou o fim
público municipal de proteção dos animais em relação às crueldades realizadas no culto,
considerando, no caso concreto, superior o direito humano assegurado na Constituição
Americana de liberdade religiosa em relação à crueldade e ao respeito da vida dos animais.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a questão também têm sido
objeto de discussão sob o prisma da ponderação de direitos humanos como a preservação
do meio ambiente/proteção dos animais e o exercício de atos humanos de crueldade para
com os animais respaldados por elementos culturais, ambos dispositivos
constitucionais.93
Assim, os cases apresentados no país berço da environmental ethics, destacam que a
visão ecocêntrica pode se apresentar mais “adequada” à resolução de determinados problemas
ambientais não passíveis de amparo na ótica antropocêntrica.
Portanto, nada obsta que as circunstâncias fáticas e os valores a elas subjacentes
ocasionem modificação estrutural normativa, a exemplo da que ocorreu com os escravos
(homens) que mudaram de categoria jurídica (de “res” para “persona”).
Assim, do exposto fica caracterizado que a personalidade constitui-se em política
legislativa que, como tal, pode e deve moldar-se às novas realidades.
No âmbito da “personalidade e da escravidão”, pode-se inferir, por exemplo, que a
personalidade é atributo jurídico mutável e não correspondente ao conteúdo filosófico de
“pessoa”, o que permite que os entes ambientais potencialmente possam dela usufruir.
No que se refere à “personalidade e à pessoa jurídica”, observa-se que mesmo entes
sem realidade natural (física) podem ser personificados por necessidades fáticas, o que não
impede que outros seres da Natureza, visíveis e tangíveis, possam, também, ser personificados
por necessidades fáticas.
No que se reporta à “personalidade e a incapacidade”, a ciência jurídica construiu
modelo em que é feita a diferenciação entre capacidade de gozo (potencial) e capacidade de
92
93
“Certain religions with significant numbers of adherents in the United States practice animal sacrifice [...]
Santeria is based on an ancient African religion that metamorphosed into Santeria in the New World. When
hundreds of thousands of members of the Yoruba people were brought as slaves from Eastern Africa (mostly
modern Nigeria) [...] In the process of syncretion, Yoruba people mixed their faith with the Catholicism of
their captors and owners, and began to practice ´Santeria´ [...] Some of the religious rites of Santeria involve
the sacrifice of animals. ” (RUTGERS UNIVERSITY SCHOLL OF LAW. “Santeria and animal sacrifice”. In
Animal rights law project. Disponível em: < http://www.animal-law.org/sacrifice/sacrfc.htm>. Acessado em
30 jul. 2002).
STF – Recurso Extraordinário no 153.531-8-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado no Diário de Justiça de
13/03/98. Nesse sentido, o referido acórdão retrata a necessária obediência dos entes federados às normas
ambientais previstas na Constituição Federal, verbis: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL –
ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS –
CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando
a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo
225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade.
Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”. Consoante ensinamentos
extraídos do voto do Min. REZEK no acórdão citado: “Somos, embora Estado federal, uma civilização única,
subordinada a uma ordem jurídica central. A qualquer brasileiro, em qualquer ponto do território nacional,
assiste o direito de querer ver honrada a Constituição em qualquer outro ponto do mesmo território”.
No mesmo sentido, STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.856-RJ (medida liminar), Rel. Min.
Carlos Velloso, julgada em 3/09/98. Foi deferida liminar para suspender a eficácia da Lei 2.895/98, do
Estado do Rio de Janeiro, que autoriza a realização de competições conhecidas por “brigas de galo”, por
ofensa ao inciso VII do §1º do art. 225 da CF – que atribui ao poder público o dever de proteger a fauna e
veda, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a crueldade.
159
160
exercício (efetiva), tal como ocorre no âmbito das incapacidades. Nada impede que os entes
naturais (ou pelo menos alguns deles) tenham capacidade de direito, não obstante as exerçam
por meio de representação de curadores ou tutores dos valores a eles associados.
Por fim, conforme ensina a dogmática já analisada, os direitos a um meio ambiente
saudável, por serem difusos, sem personificação determinada, não sendo de ninguém, podem
e devem ser protegidos para o bem de todos. Onde o termo “todos”, poderia englobar não só
os homens, mas também, com uma mudança de postura filosófica e jurídica, os seres vivos
em geral e os elementos abióticos da Terra. Contudo, a corrente doutrinária, legal e
jurisprudencial predominantes na ciência jurídica é antropocêntrica, podendo ser analisada na
visão de proteção do homem não como indivíduo, mas como parte de uma coletividade
presente ou futura.
160
161
PARTE II
A DIMENSÃO ECONÔMICA DO
MEIO AMBIENTE:
A RIQUEZA DOS RECURSOS NATURAIS COMO
DIREITO DO HOMEM PRESENTE E FUTURO
As dimensões (gerações) dos direitos fundamentais e o fenômeno
econômico. Correlação entre os sistemas econômicos e as dimensões de direitos
fundamentais. O meio ambiente e sua vinculação jurídica aos sistemas econômicos.
Economia do meio ambiente: incorporação das externalidades ambientais. Uso de
instrumentos econômicos nas políticas ambientais: integração do jurídico e do
econômico.
“Precisamos cuidar do mundo que não
veremos”.
Bertrand Russel
“Há boas razões para proteger a Terra.
É o modo mais seguro e correto de
prolongar a lucratividade”.
Paul Allaire
161
162
1 AS DIMENSÕES (GERAÇÕES) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E
O FENÔMENO ECONÔMICO
1.1 DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Primeiramente, cumpre esclarecer dúvidas que surgirão em decorrência das diversas
terminologias utilizadas na doutrina a respeito do que sejam “direitos humanos”. Entendem-se
por direitos humanos os direitos da pessoa humana, enquanto indivíduo e cidadão, que são
inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis, com eficácia erga omnes, e que têm origem nos
denominados direitos naturais, podendo identificarem-se como direitos transindividuais, i.e.,
coletivos e difusos. São inerentes à pessoa e devem ser respeitados e implementados pelo
Estado.
Assim, os direitos humanos identificam-se com os direitos fundamentais, com os
direitos individuais, direitos civis, liberdades fundamentais, liberdades públicas, direitos
da liberdade e direitos de solidariedade e fraternidade, dependendo do país ou do
jusfilósofo que tenha enfrentado o tema94. É certo que há diferenças que podem levar a
alguma distinção entre um termo e outro, mas, em sentido amplo, a expressão direitos
humanos pode ser tomada como gênero das diversas "espécies" mencionadas, sem
prejuízo da compreensão do tema.
Os direitos humanos e a respectiva luta vêm registrados na história, com nítida
raiz no mundo clássico. Para alguns teóricos, provêm do cristianismo, que valorizou a
dignidade da pessoa humana. Para outros, surgiram na Idade Moderna. Neste trabalho,
buscar-se-á enfatizar os direitos humanos, em diferentes épocas, correlacionando-os com
o fenômeno econômico. Adotar-se-á a Idade Moderna como marco desses direitos
fundamentais.95
Há tempo para tudo.96 Cada vez que se olhar a História97, observa-se-á que os
94
95
Cf. TORRES, R., (1995. p. 8-13).
Sem desmerecer a importância de tal marco, já que, - sem dúvida, o século XVIII e as
Revoluções americana e francesa culminaram com as declarações de direito no sentido
moderno, indicamos a necessidade de retroceder um pouco mais na história da humanidade
para indagar sobre o tratamento dado aos direitos do homem na Grécia antiga, em Roma, no
cristianismo e na Idade Média, o que é feito por Andrade (1987, p. 12-30).
96
Eclesiastes, 3: 1-7: “ 1) Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
2) Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; 3) Tempo
de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar; 4) Tempo de chorar, e tempo de rir;
tempo de prantear, e tempo de dançar; 5) Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de
abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; 6) Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e
tempo de deitar fora; 7) Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; 8)
Tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz.”
97
A lógica dialética é um processo em três etapas geralmente denominadas tese, antítese e síntese. Nessa tríade,
apresenta-se uma proposição, que é refutada por seu oposto e, por fim, transformada, mediante a interação
das duas, em um híbrido novo e superior. Para Hegel (1995, p. 100-110), esse era o processo fundamental das
mudanças históricas. Ele identificava "momentos dialéticos", ou etapas, da história, nos quais os conceitos e
as instituições existentes geram conflitos internos que acabam por ser superados na criação de um novo
"momento". Um exemplo de dialética comumente citado é a análise hegeliana da relação antagônica entre
162
163
direitos fundamentais possuem forte dimensão temporal.98
Na antigüidade clássica, não se aventou a idéia da existência de direitos do homem.
A sociedade grega, além de escravocrata, fundava-se em moral que Andrade (1987, p. 12)
identifica como coletiva e alargada.
Segundo Coulanges (1987, p. 211), a noção de cidadão restringia-se à liberdade de
participação em assuntos públicos e na vida política, vinculada esta à religião da cidade:
Se quisermos definir o cidadão dos tempos antigos pelo seu atributo
mais essencial, devemos dizer ser cidadão todo homem que segue a
religião da cidade [...]
A participação no culto trazia consigo a posse dos direitos [...]
O estrangeiro, pelo contrário, não participando na religião, não tinha
direito algum.
Ao contrário do noticiado na “Cidade Antiga”, a época contemporânea prima pelo
trato dos direitos fundamentais, sem embargo de muitas vezes serem postergados a um
segundo plano.
Entretanto, os direitos fundamentais não se apresentam nem todos de uma vez
nem de uma vez por todas (BOBBIO, 1992, p. 32; BONAVIDES, 1996, p. 517).
Conforme assinala Sarlet (2001, p. 48), desde que ocorreu a positivação dos
direitos humanos nas Constituições, estes passaram por diversas transformações, tanto no
que se refere ao conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação.
Assim, os direitos fundamentais estão marcados por autêntico devir, não obstante
se vinculem a núcleo unificador de proteção da dignidade da pessoa humana.
A
classificação
dos
direitos
fundamentais, no âmbito da doutrina nacional,
retrata a noção de existência das novas facetas
da dignidade da pessoa humana, que preocupa
renomados autores, na busca de uma
classificação dos direitos fundamentais.
Assim, Magalhães (1992, p. 20-21)
classifica os direitos fundamentais em: direitos
individuais, sociais, econômicos e políticos.
Com essa classificação, o autor enseja a reflexão sobre faces do multifário campo de
incidência dos direitos fundamentais. Encampa, nessa classificação, três gerações de direitos
fundamentais: a primeira, com os direitos individuais; a segunda, com os direitos sociais; a
terceira, com os direitos econômicos, com especial relevo para a questão ambiental.
“Classificamos entre direitos econômicos [...] direito ambiental e direitos do consumidor”
(BONAVIDES, 1996, p. 516).
No contexto doutrinário relativo à classificação dos direitos fundamentais, destaca-se
a teoria dos quatro status de Jellinek. Essa teoria, para Alexy (1993, p. 261), constitui-se em
98
"senhor e escravo". Nesse caso, a "tese", a posição de domínio do senhor, é contestada por sua antítese, a
condição subordinada do escravo. A relação é de conflito e só pode ser resolvida por uma síntese das duas
situações: o reconhecimento da dependência (o escravo depende do senhor para se alimentar e se abrigar, o
senhor precisa do escravo para trabalhar).
“Falar em dimensão temporal da cidadania significa estabelecer laços históricos para o aparecimento e a
afirmação dos direitos em que se consubstancia” (TORRES, R., 1999, p. 262-264).
163
164
“el ejemplo más grandioso de una teorización analítica en el ámbito de los derechos
fundamentales”.
Ademais, conforme anota Miranda (1991, p 85), a classificação de Jellinek
corresponde aproximadamente ao processo histórico de afirmação da pessoa humana e de
seus direitos.
Ressaltando o registro histórico na própria conceituação dos direitos humanos, Perez
Luño (1990, p. 48) ensina que os direitos humanos são:
Un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento
histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la liberdad y la
igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por
los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional.
No mesmo diapasão, Bobbio (1992, p. 5) defende que os direitos
fundamentais são direitos históricos, ao afirmar que:
Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender,
fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por
mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos
em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não
todos de uma vez e nem de uma vez por todas.
Comparato (1999, p. 35), da mesma maneira, ressalta o aspecto histórico dos direitos
humanos, ao lembrar que:
A consciência ética coletiva, como foi várias vezes assinalado aqui,
amplia-se e aprofunda-se com o evolver da História. A exigência de
condições sociais aptas a propiciar a realização de todas as
virtualidades do ser humano é, assim, intensificada no tempo e traduzse, necessariamente, pela formulação de novos direitos humanos.
Segundo Jellinek, pelo fato de ser membro do Estado, o indivíduo trava, ao longo do
tempo, com este, pluralidade de relações denominadas “status”, razão pela qual a teoria de
Jellinek é, também, chamada “Teoria dos Quatro Status”.
A primeira relação em que se encontra o indivíduo é a de subordinação ao Estado.
Esta é a esfera dos deveres individuais e corresponde ao status passivo.
A segunda relação, o status negativus, corresponde à esfera de liberdade na qual os
interesses essencialmente individuais encontram sua satisfação. É, pois, esfera de liberdade
individual, cujas ações são livres, porque não estão ordenadas ou proibidas, vale dizer: tanto
sua omissão como sua realização estão permitidas (ALEXY, 1993, p.251).
A terceira relação resulta do fato de que a atividade estatal é realizada no interesse
dos cidadãos, status positivus. E, para o cumprimento de suas tarefas, o Estado tem obrigação
de exercer determinadas tarefas. No dizer de Bonavides (1996, p. 518), “dominam o século
XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado [...]
Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo
equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”.
A quarta e última relação decorre da circunstância de que a atividade
estatal só se torna possível por meio da ação dos cidadãos.
164
165
Assim, com base na exposição de Jellinek, os direitos fundamentais classificam-se
em direitos de defesa, direitos a prestações e direitos de participação, correspondendo,
respectivamente, aos status negativo, positivo e ativo.
Sob esse enfoque, mencionam-se a classificação de Jellinek e a classificação das
dimensões ou gerações de direitos fundamentais, o que ressalta uma certa congruência no
agrupamento dos direitos fundamentais ao longo do processo histórico.99
Outro autor que tratou mais recentemente das dimensões temporais da cidadania e
dos direitos fundamentais foi o economista inglês Marshall, T., (1967, p. 75), que defende
vinculação histórica racional e linear dos direitos civis do século XVIII (direitos de primeira
geração, direitos de liberdade), em um primeiro momento; aos direitos políticos do século
XIX, em um segundo momento; aos direitos sociais (direitos de segunda geração) no século
XX, em um terceiro momento.
Os direitos fundamentais têm a característica de ir se ampliando à medida que avança
o processo histórico. Os direitos fundamentais ganham outros contornos e significados, como
assevera Coelho (1992, p. 187):
Assim é que, a cada declaração, novos direitos foram sendo
reconhecidos ou proclamados, tal como aconteceu nos demais
sistemas jurídicos, o que de resto, nada mais representa do que a
progressiva e irreversível ampliação de um núcleo fundamental
originário, inicialmente constituído apenas pelos direitos civis e
políticos - os chamados direitos de primeira geração - e logo
sucessivamente aplicado, rumo a novas e intermináveis gerações de
direitos humanos [...]
Far-se-á análise sucinta de cada uma das dimensões (gerações) dos
direitos fundamentais, com ênfase nos direitos fundamentais de terceira
geração, em especial no direito a um meio ambiente saudável, objeto de estudo
neste trabalho.
1.2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA IDADE MODERNA
1.2.1 Direitos fundamentais de primeira dimensão
99
“Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente convergência de opiniões no que
concerne à idéia que norteia a concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos
fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento
formal nas primeiras Constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em
constante processo cie transformação, culminando com a recepção, nos catálogos constitucionais e na seara
do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto
as transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica no longo dos tempos. Assim
sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do
processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além
disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial na
esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos” (SARLET, 2001, p. 49-50, grifo nosso).
165
166
Freqüentemente, nos tratados relativos a direitos fundamentais, na discussão sobre
sua evolução histórica, toma-se como marcos as célebres Virgínia Bill of Rights (1776),
Déclaration des Droit de l'Homme et du Citoyen (1789), e o início da era moderna.100
A célebre Magna Charta Libertatum, de 1215, é constantemente tomada como
antecedente histórico das modernas declarações de direitos humanos. A Magna Carta, como
de resto os documentos de franquia concedidos na Espanha, Portugal, Hungria, Polônia e
Suécia - não abarcavam o reconhecimento de direitos fundamentais do indivíduo, mas
estabeleciam direitos de caráter estamental.101Sua importância, entretanto, reside no fato de
haver ensejado posteriormente a transformação dos direitos estamentais em direitos do
homem.
No dizer de Canotilho (1993, p. 501):
O vigor irradiante no sentido da individualização dos privilégios
estamentais detecta-se na interpretação que passou a ser dada ao
célebre art. 39°, onde se preceituava que "Nenhum homem livre será
detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora
da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não
procederemos nem mandaremos proceder contra ele, senão em
julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do
país": Embora este preceito começasse por aproveitar apenas a certos
estratos sociais - os cidadãos optimo jure - acabou por ter uma
dimensão mais geral quando o conceito do homem livre se tornou
extensivo a todos os ingleses.
Mas é inconteste que a primeira realização concreta dos direitos humanos vem bem
depois da Idade Antiga. Compartilha-se do pensamento de Comparato (1999)102, quando
busca encontrá-la, ainda que de modo incipiente, no período crítico da transição para a Idade
Moderna, que foi a chamada Baixa Idade Média nas comunas e burgos livres da Europa
Ocidental. O direito comunal europeu, fundado na liberdade e na igualdade, opunha-se
radicalmente à compartimentalização social e às servidões feudais. O absolutismo real passou
a ser contestado, na reação dos barões ingleses que, no século XIII, impuseram ao Rei João
Sem Terra o reconhecimento de direitos fundamentais inscritos na Magna Carta e que se
aperfeiçoaram nas declarações de direito seguintes.
Segundo a concepção jusnaturalista em voga, todos os homens são livres por
natureza e possuem direitos inatos, anteriores e, portanto, superiores ao poder público. O
objetivo da sociedade, contratualmente constituída, era, pois, conservar todos os direitos
naturais do indivíduo.
As doutrinas contratualistas, fundadas sobre o contrato social, cujos máximos
expoentes foram Hobbes, Locke e Rousseau, acarretaram efeitos práticos diferenciados, visto
que, apesar da base comum, diferenciados, também foram seus principais postulados,
sobretudo em relação à natureza humana. Não vamos, porém, entrar em maiores detalhes
100
Cf. BONAVIDES, 1993, p. 474.; SILVA, J., 1991. p. 133; RUFFIA, 1987. p. 701.
101
“No embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da liberdade. Não, porém, a
liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de condição social, o que só viria a ser declarado ao
final do século XVIII, mas sim liberdades específicas, em favor, principalmente, dos estamentos superiores da
sociedade – o clero e a nobreza -, com algumas concessões em benefício do ‘terceiro estamento’, o povo”
(COMPARATO, 1999, p. 34).
102
“A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais exatamente na passagem do
século XII ao século XIII. Não se trata, ainda, de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição
humana, mas sim do início do movimento para a instituição de limites ao poder dos governantes, o que
representou uma grande novidade histórica” (COMPARATO, 1999, p. 33-34).
166
167
sobre o tema das teorias contratualistas, porquanto tal esforço implicaria afastamento sem
benefício dos propósitos iniciais deste trabalho.
Basta acentuar que, enquanto o contratualismo de Hobbes (1651) no Leviathan
conduziram à legitimação do poder absoluto, o contratualismo de Locke refletiu-se na defesa
da autonomia privada, ao condenar o processo de absolutização, os privilégios mantidos pela
nobreza e a falta de espaço político da burguesia emergente.
O liberalismo, marcado pela concepção de primazia do indivíduo sobre o Estado, e a
concepção jusnaturalista trazem a possibilidade de juridicização dos direitos do homem e
projetam-se nas revoluções americana e francesa, determinando o aparecimento das
declarações de direitos setecentistas.
Curioso notar que, ao mesmo tempo em que o Estado absoluto - dispensando
tratamento igualitário aos súditos - estabelece as bases dos direitos fundamentais, causa - em
perspectiva dialética condições de luta pela liberdade. Isto porque, como anota Miranda
(1988, p. 19), os exageros e arbítrios do Estado Absolutista, a insuficiência de garantias
individuais e a negação de direitos políticos aos súditos, aliadas às exigências de liberdades
econômicas da burguesia ascendente terminam por revelar um estágio de insatisfação
crescente.
Os direitos dos ingleses - Petition of Rights (1628), Habeas Corpus Act (1679) e Bill
of Rights (1688) - são transplantados para as colônias, culturalmente assimilados e
desenvolvidos como direitos dos homens, culminando com a revolução norte-americana e as
declarações de Direitos dos Estados, dentre as quais, as primeiras foram as da Virginia, da
Pensilvânia e de Maryland, em 1776. Em 1787, a Constituição Federal, com suas dez
emendas aprovadas pelo Congresso em 1789 - é a pioneira do movimento de
constitucionalização dos direitos fundamentais que se espalhou por todo o mundo.
Por outro lado, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela
Assembléia Constituinte francesa em 27.8.1789, teve grande influência no desenvolvimento
dos direitos fundamentais em todo o mundo. Ressalte-se que, ainda hoje, a Constituição
francesa vigente, de 1958, a ela se remete em seu preâmbulo.
A Declaração francesa de 1789 é de cunho jusnaturalista, tanto que, em seu
preâmbulo, limita-se a reconhecer os "direitos naturais inalienáveis e sagrados do homem".
O art. 2º prevê que "a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos
naturais e imprescritíveis do homem”, e o art. 16 proclama que qualquer sociedade em que
não esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais nem estabelecida a separação dos
poderes não tem Constituição. Ao contrário das declarações americanas, a Declaração
francesa caracteriza-se por seu perfil universalizante de aplicação não só ao cidadão francês
mas a todo mundo.103
Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras
Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico
do constitucionalismo francês) do pensamento liberal-burguês do Século XVIII, de marcado
cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado.104
Constituem direitos de cunho negativo, de abstenção, também são chamados de
liberdades por essa mesma noção de atuação independente do Estado. Nesse aspecto, os
fundadores da nação americana conheciam a teoria republicana e concordavam que a
liberdade só florescia em Estados pequenos. A monarquia e o despotismo, os patronos do
103
Kriele (apud SARLET, 2001, p. 48) afirma que, enquanto os americanos tinham apenas direitos
fundamentais, a França legou ao mundo os direitos humanos.
104
Cf. ANDRADE, 1987, p. 43; LAFER, 1991, p.15-20.
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governo enérgico, invasivo e poderoso, eram produtos de Estados de tamanho maior.
Supunha-se que os direitos inalienáveis da liberdade e a busca da felicidade, a que se referia a
Declaração de Independência, seriam mais bem protegidos por governos estaduais pequenos e
locais. Luther Martin (apud HAMILTON, MADISON e JAY, 1993, p. 9), um opositor à
Constituição americana e à centralização de poderes em Washington, lembraria à Convenção
de 1787 que:
[...] quando da separação do Império Britânico, o povo da América
preferiu instituir-se em treze soberanias separadas ao invés de se
incorporar em uma única. É com elas que contam para a segurança de
suas vidas, liberdades e propriedades. É com elas que devem contar. O
governo federal foi formado para defender o conjunto contra nações
estrangeiras em caso de guerra e para defender os menores Estados
contra as ambições dos maiores.
Também são direitos individuais: a importância da pessoa, do indivíduo;105 como
categoria filosófica, relaciona-se, diretamente, com a temática das chamadas liberdades
públicas. Foi esta preocupação com o ser humano, nas suas relações com o ente estatal, que
fez com que fossem estabelecidas esferas individuais de proteção nas quais a atuação estatal
não se poderia infiltrar.
No cerne da construção constitucional moderna, erige-se o valor liberdade como
direito fundamental, tendo a revolução americana como um dos marcos, ao lado da revolução
francesa,106 consoante ensinamento de Ataliba (1987, p. 99):
No centro da construção constitucional ocidental moderna – como
proposta pelo constitucionalismo informador das Revoluções francesa
e norte-americana – está a tábua de direitos do homem e do cidadão, o
rol das chamadas liberdades públicas. Quase todas as constituições do
constitucionalismo têm, como a nossa, uma lista de direitos
assegurados aos cidadãos (e muitas vezes, também, a não-cidadãos).
Esses chamados direitos individuais são postos como fulcros dos
sistemas constitucionais.
Com o liberalismo triunfante, por meio das revoluções que derrubaram as
monarquias absolutas, o valor liberdade erigiu-se pública e, até, oficialmente, em valor
dominante. Do ponto de vista do liberalismo clássico, a existência de instituições políticas
(que alguns radicais encaravam como um mal necessário) era função das vontades
intrinsecamente livres dos indivíduos, e toda a história seria, como forma de progresso,
inexorável aproximação ao ideal da liberdade plena. O liberalismo ensejou, inclusive, a
105
A importância da pessoa como categoria filosófica avulta-se no mundo contemporâneo tendo em vista que
muitas vezes é o próprio valor do ser humano que está posto em causa. A despeito das conquistas alcançadas
no campo dos direitos humanos, porém, as vicissitudes e as constantes crises e guerras a que são submetidos
diferentes povos e nações revelam que o processo de afirmação do homem como pessoa portadora de valores
éticos insuprimíveis, tais como a dignidade, a autonomia, a liberdade, exigem uma constante vigilância.
Talvez por isso a filosofia dos valores seja hoje disciplina que se expande e impulsiona uma axiologia
jurídica” (FARIAS, 1996, p. 45).
106
“O campo estava preparado, portanto, para o surgimento da Reforma, cujo princípio fundamental foi a
liberdade de consciência, de Rousseau, do enciclopedismo e da Revolução Francesa. Nos Estados Unidos,
decorrente da experiência inglesa, estava preparado o espírito para as declarações de direitos de Virgínia,
Nova Jersey e Carolina do Norte. A Revolução Francesa e a Independência Americana, através de
declarações formais de direitos, consagravam, então, a experiência inglesa da Magna Carta e do
Habeas Corpus Act de 1679, especialmente quanto à consciência de que direitos somente têm consistência
se acompanhados dos instrumentos processuais para a sua proteção e efetivação” (GRECO FILHO, 1989, p.
34, grifo nosso).
168
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formação de um conceito novo de saber, não tão novo, talvez, por vir da Renascença: o saber
como algo público, distinto do saber oculto e secreto de outras épocas. Este conceito do saber
como coisa pública, obra da ilustração e do acesso de todos à razão e à ciência, completava-se
com o de uma verdade objetiva, conhecida por meio do saber progressivo, do debate franco,
função de vida social liberada de parcialismo e privilégios, sobretudo privilégios feudais.
Esse conceito de saber promoveu também a tendência que ficou, marcantemente,
caracterizando a cultura ocidental moderna e contemporânea, em contraste com as culturas
antigas em geral, quase sempre dotadas de poucos livros principais: senão mesmo de um só.
Do mesmo modo, a mentalidade ocidental contemporânea assumiu crescente pluralismo em
matéria de posições filosóficas, em matéria de estilos artísticos, em matéria de leis. Em lugar
da lei, no singular, as leis, no plural, como experiência sempre mais numerosa, apesar de
falar-se na lei em sentido genérico, e de ter-se, o Estado, como fonte única do Direito, nisto
negando-se o pluralismo de fontes que houve na Idade Média.
Na primeira vaga romântica, Constant (1872, t. 1, p. 256, 354 apud SALDANHA,
1980, p. 33) arrolou como direitos individuais: a liberdade individual, o julgamento pelo
júri, a liberdade religiosa, a liberdade de indústria, a inviolabilidade da propriedade e a
liberdade de imprensa. Sua teoria constitucional, conciliatória e realista, incluía as
conquistas liberais, temperando-as com o doutrinarismo nascente.
Dentro ainda do pensamento do século XVIII, um dos momentos mais importantes
para o nosso tema foi a diferenciação, indicada (e até sentida) por Jean-Jacques Rousseau,
entre a liberdade natural ou física e a liberdade civil, isto é, social e política. Para Rousseau,
os homens depois do contrato social, encontram-se inseridos em um corpo que deve ser coeso,
e a liberdade de cada qual consiste principalmente em incluir sua vontade no conjunto
formado pelas vontades de todos (SALDANHA, 1980, p. 33). Tocqueville (1969, p. 15), em
esclarecedora passagem sobre esta temática, afirma, comentando as associações políticas nos
Estados Unidos:
O privilégio mais natural do homem, depois do direito de agir por si
próprio, é o de combinar seus esforços com os de seus semelhantes, e
de agir em comum com eles. O direito de associação, portanto, pareceme quase tão inalienável em sua natureza como o direito da liberdade
pessoal. Nenhum legislador o pode atacar sem pôr em perigo os
fundamentos mesmos da sociedade.
Assim, a mentalidade do constitucionalismo clássico entendia que a nação, ao
constituir-se (e aqui se forjou a doutrina do pouvoir constituant), impõe aos indivíduos serem
livres, ou seja, serem partes de um todo criado por consentimentos livres.107
107
Em harmonia com esse papel de destaque dado ao poder constituinte de ser jurígeno e
político deve-se analisar de forma sucinta o seu conceito na análise da obra do Abade
Sieyès. Na obra"Qu'est-ce que le tier État?" – O que é o terceiro Estado, o texto de Sieyès
tem um duplo interesse; por um lado, o aspecto histórico: é um documento vivo, imediato a
primordial do advento da classe burguesa ao poder político; por outro lado, o aspecto
teórico: contém a formulação original a autêntica dá doutrina do poder constituinte do
povo. No aspecto político, o folheto sobre o Terceiro Estado defende os direitos do povo,
identificando-o com a Nação, em oposição às classes privilegiadas, então
representativas do Estado absolutista vigente. Do ponto de vista teórico, a importância
da obra de Sieyès se reflete sobre toda a forma representativa de governo e à doutrina do
poder constituinte exercido pelo povo.
169
170
Esse espírito se mostrou especialmente presente no incipiente Estado Americano
Federado. Nesse sentido, Tocqueville (1987, p. 124), ao tratar das “Vantagens do sistema
federal em geral e sua utilidade especial na América”, ensina:
Entre as pequenas nações, o olho da sociedade penetra em toda parte;
o espírito de melhoria desce até os menores detalhes: por ser a
ambição do povo em muita grande parte compensada pela sua
fraqueza, os seus esforços e recursos voltam-se quase inteiramente
para o seu bem-estar interior e não são de modo algum sujeitos a
dissipar-se na bruma vã da glória. Ademais, como as faculdades de
cada um são geralmente limitadas, assim o são também os seus
desejos. A mediocridade da fortuna torna as condições mais ou menos
iguais; os costumes têm uma maneira de se conduzir simples e
tranqüila. Assim, a levar tudo em conta e considerando os diversos
graus de moralidade e conhecimentos, encontra-se ordinariamente nas
pequenas nações mais confortos, mais população e mais tranqüilidade
que nas grandes.
Segundo Handlin; Handlin (1961, p. 19):
O homem livre, escreveu Helvécio, “é aquele que não está em ferros,
nem encarcerado, nem aterrorizado como um escravo, pelo medo do
castigo”. Tal conceito remonta à definição de Hobbes: “A liberdade
(ou a autonomia) consiste propriamente na ausência de oposição [...]
Um HOMEM É LIVRE quando não é impedido de fazer aquilo que
deseja fazer e que, pela sua vontade e inteligência, é capaz de fazer”.
Esses princípios expressam um dos postulados fundamentais da teoria
política do Ocidente, nos últimos três séculos. A liberdade, sob esse
prisma, é a antítese do outro. A liberdade é, portanto, um estado a que
chega um indivíduo resguardando-se da coação ou ameaça de coação.
Robinson Crusoe, habitando um mundo onde superior algum impera,
nem lei alguma o constrange, é o protótipo do homem inteiramente
livre.
Os filósofos e historiadores que abraçaram essa concepção descreveram a liberdade
em termos negativos (status negativus).108 Procuraram a compreensão de seu
desenvolvimento pela análise de como os homens defenderam a si próprios e aos seus direitos
contra a restrição. Nos tempos modernos, tendo sido o Estado o organizador dos meios mais
eficientes de coerção, a história da liberdade vem sendo escrita largamente como sucessão de
fatos e tendências, por meio dos quais o povo tem aprendido a defender-se da interferência
estatal.
No presente estudo, não é necessário deter-se à apreciação da validade do conceito
negativo como proposição abstrata e filosófica. Mas é indispensável julgar a adequação deste
conceito, para poder explicar como agiu o povo em certas circunstâncias que podiam ser tidas
como livres.
Para explicar algumas fases da evolução de leis que contribuíram para a liberdade
nos Estados Unidos, muito vale a idéia da ausência de restrição. A luta contra as restrições
estatais favoreceu o estabelecimento da liberdade de palavra e de imprensa, de consciência e
108
Segundo Alexy (1993, p. 251), ao descrever a teoria dos quatro status de Georg Jellinek, o status negativo
corresponde à esfera de liberdade na qual os interesses essencialmente individuais encontram sua satisfação.
É, pois, uma esfera de liberdade individual, cujas ações são livres, porque não estão ordenadas ou proibidas,
vale dizer: tanto sua omissão como sua realização estão permitidas.
170
171
de cátedra.
Ademais, deve-se ressaltar, sob o ponto de vista econômico, que o crescimento da
economia de mercado, do capitalismo comercial e da circulação de produtos por toda a
Europa, oferecendo uma nova orientação econômica, acaba desintegrando o feudalismo
(durante o período feudal, a produção esteve essencialmente limitada à lavoura e criação de
animais para a subsistência). E, gradualmente, pondo fim ao Absolutismo e reestruturando a
política, formando um novo sistema sócio-econômico que forneceu as condições necessárias
para a emergência de uma nova camada social: a burguesia.
E, devido às pretensões da nova classe que surgiu, ao longo dos séculos XVII e
XVIII, na Europa, o tema liberdade foi associado ao problema dos direitos civis e políticos em
geral. Esta nova dimensão que os direitos assumiram a partir das mudanças políticas e
econômicas passou a merecer forte reivindicação com a ascensão da burguesia, cuja
reclamação pretendia a igualdade perante a lei. As concepções liberais e individualistas da
burguesia requeriam, em síntese, o reconhecimento dos direitos fundamentais,
especialmente os direitos de liberdade e de propriedade.
Assim, no país, berço do capitalismo industrial – a Inglaterra assume a vanguarda das
raízes das declarações de liberdade, exercendo grande influência na história universal.
Essas idéias, de modo geral, foram predominantes nas Constituições do século
XVIII, e, também, nas do século XIX, as quais, normalmente, se limitaram à organização
política do Estado, dando ênfase ao liberalismo e individualismo, princípios que repugnavam
todo o tipo de intervenção na vida econômica e social.
1.2.2 Direitos fundamentais de segunda dimensão
1.2.2.1 Passagem do estado liberal para o estado social
Enfim, a burguesia obteve o reconhecimento jurídico dos direitos individuais de
liberdade e, já nos meados do século XIX, com o crescimento do processo de industrialização
(que iniciou quando o intento dos burgueses, antes comerciantes, passou a ser a produção –
capitalismo industrial), aparece o proletariado como o novo protagonista histórico das
sociedades ocidentais a reivindicar os direitos econômicos e sociais.
A Revolução Industrial e a livre concorrência trouxeram as condições desumanas de
vida e trabalho. Com isso, ficaram caracterizadas as circunstâncias que corresponderam à
manifestação da insuficiência do reconhecimento apenas dos direitos individuais. Os homens
puderam, então, verificar que as liberdades ainda desacompanhadas da seguridade
social, dos direitos laborais e econômicos, como o direito ao trabalho e ao salário justo, e
direitos de ordem cultural, como a educação, permitiram várias iniqüidades à existência
das pessoas.
Em boa parte, a exploração do trabalho humano, de forma ampla e brutal, a partir do
advento da Revolução Industrial, desencadeou-se devido ao fato de que as novas técnicas
produtivas transformaram as realidades ao mesmo tempo em que ainda não havia surgido um
conjunto de leis apropriadas para cuidar dos novos problemas, o que acabou gerando
171
172
desastrosas conseqüências. O direito já não podia atender aos novos fenômenos econômicos e
sociais.
A Revolução Francesa aperfeiçoou a ordem jurídica, valorizou o indivíduo e afirmou
a autonomia da vontade contra a tirania e o poder absoluto; no entanto, naquela fase, ainda
não havia a diferenciação entre os direitos sociais e os direitos individuais.
Assinala-se que o processo liberal foi decisivo para a obtenção das conquistas
sociais: por meio dos embates políticos, que os excessos do liberalismo proporcionaram
durante a Revolução Industrial, e o conseqüente despertar da questão social, o Estado passou
a ser identificado como o ente capaz de oferecer os meios que se faziam necessários para
atingir a satisfação das carências sociais prementes, ou seja, passou a ser visto como um órgão
que poderia pôr fim às desigualdades e garantir a todas as pessoas o acesso ao gozo efetivo
dos direitos sociais. Entendido como um órgão de equilíbrio, esta compreensão de Estado deu
início à era social.
Acerca dos direitos sociais, dir-se-á que eles correspondem a uma categoria dos
direitos fundamentais do homem; separando-se estes em direitos fundamentais de liberdade e
direitos fundamentais sociais. Salientar-se-á que os primeiros exprimem comando ao Estado
de não-fazer, enquanto os últimos assumem caráter positivo, isto é, significam ordem para
fazer algo; consistem em programa para realizar, ora a ser cumprido apenas pelo Estado, ora a
ser construído pelo Estado em conjunto com a generalidade dos cidadãos, para o benefício de
toda a sociedade.
Na lapidar formulação de Lafer (1991, p. 217), os direitos de segunda dimensão
propiciam um “direito de participar do bem-estar social”.
A partir daquela comentada compreensão de Estado, a reação da sociedade pela
procura de melhores níveis de vida surgiu acompanhada das doutrinas políticas socialistas.
Vale destacar, também, a importância da influência da doutrina social da Igreja, de
forte sentido humanista a partir da Encíclica Rerum Novarum, de 1891, de autoria do Papa
Leão XIII, cuja ênfase ao trabalho recaiu, inclusive, sobre os deveres do Estado.
No trânsito do Estado Liberal (garantidor dos direitos de liberdade) para o Estado
Social (garantidor dos direitos de igualdade material, o pêndulo da história inclinou-se,
em ressaltar, direitos de atuação estatal, no sentido de governos centrais fortes, mais
adequados ao intervencionismo que exigia a implementação de mudanças sociais e
econômicas.
Sob a ótica de visão liberal, cabe ao Estado, tão-somente, a missão de guardião
das liberdades dos indivíduos e da sua segurança, não podendo, de forma alguma,
interferir na ordem econômica e social, pois esta seria regulada pelo próprio mercado.
A exarcebação da atividade econômica, sem nenhum controle por parte do
Estado, gerou sociedade assimétrica, desigual, cujas disparidades sociais deixaram
transparecer relação de extrema conflituosidade entre a minoria detentora do poder
econômico e o restante da população, despossuída e desassistida.
As demandas por mudança no status quo, defendidas pela representação popular
da época (sindicatos e partidos de massa), determinaram a emergência de nova forma de
pensar o Estado: pelo viés do social.109
109
Esse foi o período da história em que a conquista democrática da universalização do voto, com a conseqüente
formação dos partidos de massa e a emergência dos sindicatos, permitiu o avanço das demandas sociais por
parte da grande massa de trabalhadores, levando o Estado a preocupar-se com a questão da saúde, a da
seguridade e a da regulamentação do trabalho.
172
173
Esse período da história, que antecede a consagração dos direitos sociais, foi
marcado por conflitos extremados entre a classe detentora de capital e a classe
trabalhadora das fábricas, que não aceitava as miseráveis condições de trabalho, tendo,
ainda, como companheiros de reivindicações, os camponeses pobres, revoltados pela
expropriação da terra feita pelos grandes proprietários.
Impulsionados pelas teorias marxistas, ou pelas anarquistas, ou pelas cristãs,
almejavam outra sociedade que decretasse o fim do capital e da divisão da sociedade em
classes (Marx), ou o fim do Estado (anarquistas), ou ainda uma relação capital-trabalho
mais humanizada (cristã), que desse garantias efetivas de vida mais digna ao trabalhador,
por meio de assistência à saúde, previdência, educação, remuneração justa e horário de
trabalho regulamentado.
Na visão de Bonavides (1996, p. 70), a emergência do Estado social ocorre:
Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas
reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder
político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do
trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como
distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços,
combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao
burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção,
financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de
abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises
econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita
dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma,
estende sua influência a quase todos os domínios que dantes
pertenciam à área da iniciativa individual, nesse instante o Estado
pode com justiça receber a denominação de Estado social.
A ebulição de idéias revolucionárias, conjugada à organização dos movimentos
reivindicatórios dos trabalhadores força o Estado Liberal a sair de sua passividade e
mudar de conteúdo, passando a admitir sua interferência no campo econômico e social.
Tal transformação também ocorre no âmbito do Direito. A relação formal pela
referência a uma lei geral e abstrata, dirigida a todos os cidadãos de forma indistinta,
permanece como salvaguarda da ação abusiva do Estado, mas, lado a lado com leis de
índole programática, obrigatórias para o Poder Público, que devem atuar para atender às
necessidades materiais do cidadão.
A ordem jurídica já não se satisfaz somente com a igualdade formal; almeja,
também, a igualdade material. Modifica-se a noção de lei, assumindo esta, também, um
conteúdo material:
[...] ao lado dos direitos individuais, arrolam-se os direitos sociais e
econômicos, destinados, antes de limitar a ação estatal, a exigi-la,
como direitos a prestações concretas positivas. Os cidadãos por meio
deles, participam do produto social, em todas as ordens, a fim de lhes
ser possível o real exercício da sua liberdade, cuja afirmação é figura
de retórica, se desacompanhada dos meios mínimos para efetivá-la
(DOBROWOSKI, 1985, p. 108-109).
Dá-se um acréscimo na questão da igualdade jurídica, tendente a ser considerada
a partir da necessária correção das desigualdades econômicas e sociais.
173
174
Assim, o Estado tutor das liberdades evolui para promotor da ação social. Não se
podendo esquecer, como ressalta Sarlet (2001, p. 52), que:
Ainda na esfera dos direitos da segunda geração, há que se atentar
para a circunstância de que estes não englobam apenas direitos de
cunho positivo, mas também as assim denominadas “liberdades
sociais”, do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização,
do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos
fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao
repouso semanal remunerado, a garantia de um salário-mínimo, a
limitação da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais
representativos.
Diferente modo de examinar as mudanças do Estado de Direito refere-se à
evolução do capitalismo, marcada, principalmente, pela incorporação da intervenção
estatal na ordem econômica e social, prescrita pelas novas constituições promulgadas, em
alguns países, após a primeira década do Século XX.
Dessa forma, após a Primeira Guerra Mundial, as novas Constituições que
surgiram, “não ficaram apenas preocupadas com a estrutura política do Estado, mas
salientam o direito e o dever do Estado em reconhecer e garantir a nova estrutura exigida
pela sociedade” (BARACHO, 1986, p. 46).
A partir desse momento, as superiores exigências da coletividade vão contraporse aos direitos absolutos da Declaração de 1789. “Aos princípios que consagram a atitude
abstencionista do Estado impõe-se o do artigo 151 da Constituição de Weimar: A vida
econômica deve ser organizada conforme os princípios de Justiça, objetivando garantir a
todos uma existência digna” (BARACHO, 1986, p. 46).
O Estado, agora, irá preocupar-se com o social. O conteúdo dos Direitos
Fundamentais amplia-se ainda mais. Agora, além dos Direitos individuais, dos Direitos
Políticos, que se foram afirmando nas democracias liberais, estão também consagrados os
Direitos Sociais, nas constituições modernas.
Mirkine-Guetzevitch e Andrade confirmam o que se acaba de afirmar, quando
escrevem que as Constituições após 1918 inovam na ampliação dos direitos fundamentais
com o surgimento de obrigações positivas do Estado (MIRKINE-GUETZEVITCH, 1957, p.
169; ANDRADE, 1983, p. 49).
Krell (2002, p. 19), de forma semelhante, acrescenta a Constituição Brasileira de
1934 às Constituições Sociais:
Depois da revolução industrial do século XIX e das primeiras
conquistas dos movimentos sindicais em vários países, os Direitos da
“segunda geração” surgiram, em nível constitucional, somente no
século XX, com as Constituições do México (1917), da República
Alemã (1919) e também do Brasil (1934), passando por um ciclo de
baixa normatividade e eficácia duvidosa. Seus pressupostos físicos
devem ser criados pelo Estado como agente para que eles se
concretizem.
A Constituição de Weimar foi a primeira Constituição social européia,
considerada a matriz do novo constitucionalismo social. Entretanto, esta não foi a primeira
do mundo. A Constituição do México de 1917 precedeu a de Weimar, marcando início do
174
175
Estado Social, preocupado com os problemas sociais. Essa Constituição foi produto da
Revolução Mexicana, iniciada em 1910 (CORREA, 1983, p. 104).
Ao discorrer sobre o verbete “Estado Contemporâneo” no Dicionário de Política,
Gozzi mostra que a mudança do Estado de Direito em direção ao Estado Social dá-se a
partir da metade do século XIX, “na gradual integração do Estado político com a
sociedade civil, que acabou por alterar a forma jurídica do Estado, os processos de
legitimação e a estrutura da administração”.
Com a integração entre Estado e sociedade civil, passa esse a agir mais em função
desta. Assim, o Estado deixa de ser mero espectador da atividade econômica e social,
saindo do estágio de garantidor das relações sociais, para o promotor de novas relações,
no âmbito do social. Sai da condição de tutor das liberdades para a de promotor da ação
social.
Nesse diapasão, Gozzi (1995, p. 401) assinala:
Os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das
liberdades burguesas: liberdade pessoal, política e econômica.
Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário,
os direitos sociais representam direitos de participação no poder
político e na distribuição da riqueza social produzida. A forma do
Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação.
É a oscilação entre a garantia do status quo, dada pelos direitos fundamentais, e
aquelas demandas vindas da sociedade, que se transformam em direitos sociais. Essa
emergência de novos direitos110 reclamados pela sociedade modifica a estrutura formal do
Estado.
Já Pasold (1988, p. 104), ao examinar a função social do Estado contemporâneo,
tendo como referente o “discurso constitucional”, vê o surgimento do Estado
contemporâneo na segunda década do presente século, precisamente com a Constituição
Mexicana de l917 e com a Constituição de Weimar de l9l9. Para ele, é determinante a
característica de “função social” no Estado contemporâneo. Colocando sua estrutura
voltada para a sociedade, o Estado deve acionar seus órgãos, exercitando seu poder no
cumprimento desta função.
Assim, o Estado não pode mais ser pensado de maneira restrita, isto é, apenas em
relação à tutela das garantias fundamentais, mas, sim, pelo seu desempenho no
cumprimento de sua “função social”.
Ele vê a concepção de função social aplicada ao Estado Contemporâneo, a partir
de dois elementos semânticos distintos entre si, mas complementares: ação e dever de agir
(PASOLD, 1988, p. 69-70).
Mas, entende Pasold (1988, p. 87) que a função social, que deva ter o Estado, tem
por destinação a realização da justiça social:
Nesta perspectiva, o Estado deve ser um conjunto de atividades
legítimas efetivamente comprometidas com uma Função Social, esta
110
Entende-se como “novos direitos” aqueles que historicamente vão sendo conquistados pelo indivíduo. Essa é
a linha de Bobbio (1992, p. 6), o qual entende que os direitos do homem são históricos, “ou seja, nascidos em
certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e
nascidos de modo gradual, não de todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Para Bobbio, os direitos
podem ser vistos como de primeira geração (os direitos de liberdade, ou não-agir do Estado), de segunda
geração (os direitos sociais), de terceira geração (o direito ao ambiente sadio) e de quarta geração (referente
aos efeitos da pesquisa biológica).
175
176
entendida como implicando ações que – por dever para com a
sociedade – o Estado executa, respeitando, valorizando e envolvendo
o seu Sujeito (que é o homem individualmente considerado e inserido
na Sociedade), correspondentemente ao seu Objeto (conjunto de áreas
de atuação que dão causa às ações estatais) e cumprindo o seu
Objetivo (o Bem Comum ou interesse Coletivo, fixado dinamicamente
pelo todo social).
Nesse enfoque, Cadermatori; Morais (1992, p. 89) assinalam os seguintes
segmentos da função social do Estado contemporâneo: a) economia (política voltada para
o incentivo ao capital aplicado na produção e aumento da capacidade tecnológica); b)
trabalho (política de emprego a partir da criação de postos de trabalho para ocupação de
excedente de mão-de-obra, incentivos fiscais à iniciativa privada para manter e ampliar a
ocupação, em especial em épocas de crise, acrescida de uma política de recomposição da
força de trabalho - regulação e garantia de férias remuneradas, repouso semanal
remunerado, etc. - e uma política financeira - garantia de ganhos mínimos: salário
mínimo, hora extra, l3o salário, etc.; c) previdência, configurada em política de amparo a
partir de uma situação transitória (garantia de uma renda mínima na impossibilidade de
trabalhar: auxílio doença, natalidade, acidente de trabalho, etc.) e configurada em política
permanente (garantias de renda por aposentadoria); d) educação de mão-de-obra (política
de formação por meio de organização, financiamento e participação em cursos
profissionalizantes, curso de aperfeiçoamento); e) saúde para o trabalho, por intermédio
de política de promoção (saneamento básico, etc.), de política de proteção, criando e
incentivando programas de melhoria das condições de trabalho (insalubridade,
periculosidade), e de política de reabilitação (com incentivo a unidades de saúde e
reabilitação, convênios, etc.).
Krell (2000, p. 39-40), analisando as controvérsias no que diz respeito à eficácia e
à efetividade dos direitos sociais, ressalta que a ausência de normas explícitas de direitos
sociais na Constituição alemã vigente – a Lei Fundamental de Bonn - não significa uma
recusa do seu ideário subjacente, expresso no conceito de “Estado Social” (art. 20 da
Constitução Alemã), que vincula o Estado Alemão, muito embora não crie direitos
subjetivos.
O aspecto econômico dos direitos sociais intervencionistas, por outro lado, pode
ser demonstrado na construção de um direito fundamental limitado à “reserva do
possível”. Nesse sentido, Sarlet (2001, p. 263-264) afirma:
Esta característica dos direitos sociais a prestações assume especial
relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando que a
efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se
despenda algum recurso, dependendo, em última análise da conjuntura
econômica.
Rawls (apud TORRES, R., 1999, p. 262-264) corrobora o agir estatal positivo
econômico-financeiro para garantia do “mínimo existencial” como de extraordinária
importância para a edificação do conceito de cidadania. Destaca, nesse momento, a
atividade de assistência social como atividade essencial que fortalece os direitos sociais,
sob o ponto de vista de seu caráter fundamental de justiça distributiva.
1.2.2.2 Conceito e fundamentos dos direitos fundamentais de segunda geração
176
177
O princípio da igualdade, consubstanciado no caput do art. 5o da Constituição de 88,
enuncia que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Essa
igualdade formal é reforçada pelo inciso I, o qual assevera que “homens e mulheres são iguais
em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Valor fundamental da pessoa humana,
a preservação da igualdade visa impedir a
discriminação dos cidadãos, evitando que
alguns recebam melhor tratamento em relação
aos outros, ou melhor, que não haja relação em
que alguns sejam mais cidadãos que outros.
Portanto, a lei deve dirigir-se a todos de forma
indistinta e genérica. Essa igualdade formal
nem sempre corresponde à igualdade real,
principalmente em virtude do modo por que se
organizam as sociedades ocidentais, que têm
por base o sistema de livre concorrência.
Nestas, as desigualdades de condições
materiais
determinam
possibilidades
diferenciadas para o acesso e fruição dos bens
produzidos. Para alguns, facilidades; para
outros, dificuldades ou, até mesmo,
impossibilidade de exercício dos direitos
formalmente assegurados.
Dallari (1991, p. 258) chama-nos a atenção para a diferença entre o direito e a
possibilidade de exercê-lo:
A concepção da igualdade como igualdade de possibilidades corrige
essas distorções, pois admite a existência de relativas desigualdades,
decorrentes da diferença de mérito individual, aferindo-se este através
da contribuição de cada um à sociedade. O que não se admite é a
desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a
melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando
tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio
mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos. A igualdade de
possibilidades não se baseia, portanto, num critério artificial,
admitindo realisticamente que há desigualdades entre os homens, mas
exigindo que também as desigualdades sociais não decorram de
fatores artificiais.
Por outro lado, Schwartz (1979, p. 215) assinala que:
O direito constitucional de igualdade já tinha quase um século antes
que o nosso direito na frase de W. H. Auden, realmente “descobrisse a
noção de igualdade”. Durante a segunda metade deste século, os
tribunais começaram a aplicar vigorosamente a garantia de proteção
igual. Igualdade racial, igualdade sexual, igualdade política, igualdade
na justiça criminal – em todas essas áreas o nosso direito está
procurando dar um sentido prático à proteção igual. A igualdade tem
sido o grande tema em nosso direito público recente: igualdade entre
177
178
raças, entre sexos, entre cidadãos, entre cidadãos e estrangeiros, entre
ricos e pobres, entre acusador e acusado.
Para corrigir o individualismo
exacerbado do Liberalismo Puro, que fez com
que se gerassem alarmantes desigualdades
sociais, estando, de um lado, minoria detentora
dos meios de produção, ou seja, das
propriedades agrícolas e industriais, e de outro,
vasta maioria expoliada pela excessiva carga
horária de trabalho, péssimas condições no
exercício deste e insuficiente remuneração,
surge o Estado como agente modificador das
desigualdades
sociais,
promovendo
a
diminuição das diferenças sociais e a busca da
igualdade material.
Um dos elementos básicos da concepção de justiça de Rawls (1981, p. 96) é o que
ele chama de princípio da compensação (ou reparação). “É o princípio de que as
desigualdades imerecidas exigem compensação; e como as desigualdades de nascimento
e dotes naturais são imerecidas tais desigualdades devem de alguma forma ser
compensadas”. Pelo princípio da reparação, a sociedade deve tratar mais favoravelmente
aqueles com menos recursos pessoais naturais e os que nasceram em condições sociais mais
desfavoráveis. O exemplo dado por Rawls é a aplicação de maiores recursos na educação dos
que são menos inteligentes do que, como tem sido o caso, na dos mais inteligentes.
O Estado Social – Welfare State ou Estado Providência –, com a constitucionalização
da ordem econômica, torna o Estado também agente econômico cuja finalidade maior não se
constitui no lucro, mas, sim, na satisfação do bem comum. Sua intervenção passa do limite à
liberdade individual para instrumento de realização de Justiça Social. A este novo sistema,
conjugador de princípios liberais e socialistas, denomina-se neo-liberalismo ou neocapitalismo. Importante notar que a intensidade de participação e ingerência do Estado no
domínio econômico é variável, bem como a determinação qualitativa e quantitativa. Há,
destarte, diferentes modelos neo-liberais nos diversos países que os adotam (SOUZA, 1992, p.
24).
Para a perpetuação da ideologia
liberal, recorre-se à intervenção estatal com a
regulamentação do mercado, de forma a
mantê-lo vivo, e à conseqüente ampliação do
leque dos Direitos Fundamentais, neles se
incluindo os Direitos Sociais referentes aos
trabalhadores.
Exemplo da positivação constitucional das concepções jurídicas que haviam nascido
na Revolução Francesa de 1848 foi a inclusão da autogestão e da participação dos
trabalhadores na direção das fábricas na Constituição de Weimar.
Passa-se de Estado formal para Estado
material. As constituições não apenas
descrevem a estrutura política do Estado como
expressam os direitos e deveres necessários
para a garantia do exercício das exigências
coletivas de mudança daquela realidade.
178
179
O Estado passa de abstencionista para intervencionista, com postura positiva, ou seja,
preocupa-se, agora, com o social. Tal situação fica patentemente demonstrada na ampliação
dos Direitos Fundamentais, que abrangem não apenas os direitos individuais e políticos, estes
afirmados lentamente ao longo do século XIX, mas também alguns dos direitos sociais que
hoje se conhecem.
Entretanto, não apenas com a
implementação dos
Direitos
Humanos
estabeleceu-se a nova visão ou preocupação
social do Estado; também por meio das
políticas monetária e tributária efetuadas, que
constituem formas de redistribuição de riqueza,
além de viabilizarem a aplicação da renda
arrecadada para fins sociais. Nesse sentido,
Loewenstein (1970, p. 399) afirma:
[...] Por outro lado – y éste es el mérito duradero del marxismo–, las
masas sometidas economicamente no se contentaron com la mera
teoria de la libertad y de la igualdad ofrecida por las constituciones
liberales y por el catálogo de derechos fundamentales. Para las
masas, estas garantías no eran más que abstracciones sin valor
porque, en realidad, las clases plutocráticas dominaban el proceso
del poder. Las vacías fórmulas de libertad e igualdad tenían que ser
rellenadas com el contenido material de unos servicios públicos que
garantizasen a las clases bajas un mínimo de seguridad económica y
justicia social.
O cidadão passa a ser, então, o indivíduo portador não apenas de seus direitos
individuais e políticos, que, paulatinamente, se vão incrementando, como também detentor de
direitos sociais e econômicos.
Observa-se, por outro lado, nesta segunda dimensão de direitos, grande vinculação
ao fator econômico estatal de dispor de recursos. Assim, autores, como Canotilho (1991, p.
131), ilustram essa circunstância com a noção de uma “reserva do possível” e a efetividade
plena da realização desses direitos estaria condicionada pelo montante de recursos
orçamentários disponíveis para essa atuação do Estado.
Em outro enfoque, considera-se que há a necessidade de o Estado estar preso a uma
mínima implementação de direitos sociais, sob pena, em face da indivisibilidade dos direitos
fundamentais, de não se garantir os direitos de liberdade.111
1.2.3 Direitos fundamentais de terceira dimensão
Os direitos fundamentais da terceira dimensão centram-se no fato de os homens
estarem ligados entre si. A figura do homem-indivíduo fica em segundo-plano ressaltando-se
111
Nesse sentido, preciosas as considerações de Piovesan (1997, p. 161), verbis: “Vale dizer, sem a efetividade
dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias
formais [...]”
179
180
a humanidade (homens visto como um todo), razão por que são conhecidos como direitos de
fraternidade, solidariedade ou direitos de titulariedade difusa ou coletiva.112
A doutrina qualifica-os como direitos dos povos. Esta classe de direitos tem por
destinatário mais do que o indivíduo, um grupo ou determinado Estado, mas o gênero humano
mesmo, engendrando o direito ao ambiente, o direito ao desenvolvimento, o direito à
autodeterminação, o direito à participação no patrimônio da humanidade.113
Para Sarlet (2001, p. 53), verbis:
A nota distintiva destes direitos da terceira dimensão reside
basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e
indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no
direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese
ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de
garantia e proteção. A atribuição da titularidade de direitos
fundamentais ao próprio Estado e à Nação (direitos à
autodeterminação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias
dúvidas no que concerne à própria qualificação de grande parte destas
reivindicações como autênticos direitos fundamentais. Compreendese, portanto, por que os direitos da terceira dimensão são denominados
usualmente como direitos de solidariedade ou fraternidade, de modo
especial em face de sua implicação universal ou, no mínimo,
transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala
até mesmo mundial para sua efetivação.
Trata-se de direitos transindividuais, que não pertencem a uma pessoa determinada114
nem a um grupo claramente delimitado, como ocorre, por exemplo, com os trabalhadores que
são titulares de direitos coletivos, mas não direitos difundidos, esparramados por toda a
sociedade como o direito ao ar puro. Direitos que, não sendo, isoladamente, de um único
indivíduo, são de todos, de uma pluralidade de sujeitos.
Para Torres, R., (1999, p. 297) podem ser caracterizados, também, pelo fato de
possuírem tanto um status negativus como um status positivus.
Já Bobbio (1992, p. 6) evita definir o que seja "direito de 3ª geração", na falta de
elementos conceituais seguros que permitam formular uma teoria adequada para sua
compreensão:
Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de
segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira
geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda
112
“Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de
solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homemindivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e
caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa” (SARLET, 2001, p.
52).
113
Bonavides (1996, p. 516) “Em termos apertados, os direitos de primeira geração relacionam-se com o
liberalismo e correspondem aos direitos de liberdade, aos direitos individuais, aos direitos negativos; a
segunda geração de direitos relaciona-se com a social-democracia do fim do século XIX, correspondendo aos
direitos sociais, econômicos e culturais; direitos a prestações do Estado, direitos à igualdade social e direitos
positivos; a terceira geração de direitos surge a partir da consciência de um mundo partido entre nações
desenvolvidas e subdesenvolvidas, que exige a fraternidade, para a proteção do gênero humano,
correspondendo ao meio-ambiente, ao desenvolvimento, à paz, ao patrimônio comum da humanidade”.
114
Como afirma Miranda (1993, p. 66): “Não pode dizer-se que quem quer que seja possua um único, genérico e
indiscriminado direito à proteção do patrimônio monumental, ou ao controle da poluição ou da erosão, ou à
salubridade pública, ou a uma rede de transportes, etc”.
180
181
excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de
compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é
o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num
ambiente não poluído.
Por outro lado, Lafer (1988, p. 132) destaca a titularidade como principal elemento
diferenciador desta dimensão de direitos, verbis:
Os direitos reconhecidos como do homem na sua singularidade sejam eles os de primeira ou de segunda geração - têm titularidade
inequívoca: o indivíduo. Entretanto, na passagem de uma titularidade
individual para uma coletiva, que caracteriza os direitos de terceira e
quarta geração, podem surgir dilemas no relacionamento entre o
indivíduo e a coletividade que exacerbam a contradição, ao invés de
afirmar a complementaridade do todo e da parte. Estes dilemas
provêm, em primeiro lugar, da multiplicidade infinita dos grupos que
podem sobrepor-se uns aos outros, o que traz uma difusa e potencial
imprecisão em matéria de titularidade coletiva - basta pensar na
criança, na família, na mulher, nos trabalhadores, nas minorias étnicas,
religiosas, lingüísticas e sexuais.
Associam-se, também, a esses direitos de terceira geração, novas facetas da proteção
da vida, em um sentido amplo de qualidade de vida, que se originam dos impactos da
sociedade industrial e da tecnologia do final do século XX. Assim, Sarlet (2001, p. 53)
assinala:
Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicações
fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo
impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como
pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas
contundentes conseqüências, acarretando profundos reflexos na esfera
dos direitos fundamentais.
Leal (1998, p. 103) busca distinguir os
direitos de terceira geração por meio do termo
“qualidade de vida” (igualdade vista como
direito à integração e da inexistência de um
conteúdo patrimonial predominante em
contraste com os de primeira e segunda
geração):
Os movimentos sociais da classe trabalhadora visaram a garantir uma
maior igualdade econômica ou pelo menos mitigar a desigualdade
existente entre o proletariado e os proprietários. Ou seja, também a
questão centra-se em aspectos econômicos (melhores salários,
prestações gratuitas do Estado nos campos da saúde e educação,
direito de aposentadoria, entre outros).
O conteúdo dos direitos difusos não garantem propriedade ou
liberdade econômica, nem implicam mitigação de desigualdades nesse
campo. Os direitos difusos têm conteúdo não-patrimonial e trata de
dois aspectos fundamentais: qualidade de vida e uma concepção de
igualdade vista como direito à integração, baseada em aspectos
participativos nas várias esferas da vida social.
Não obstante, a colocação de que tais
direitos têm conteúdo não-patrimonial, o
181
182
próprio autor reconhece que há um
envolvimento desses direitos com o elemento
econômico, na tentativa de sacrificar vantagens
econômicas imediatistas, verbis:
Assim, o conteúdo dos direitos difusos são de duas ordens:
I) o direito à vida no seu aspecto qualitativo ou, sinteticamente, de um
direito à qualidade de vida, expresso no sacrifício de vantagens
econômicas imediatistas em nome da preservação de determinados
valores, tais como o ambiente natural,"' espaços culturais (históricos,
estéticos, etc), disponíveis para essas e futuras gerações, e
II) o direito à integração social mediante o devido reconhecimento
jurídico e político, referindo-se a titularidade a grupos de indivíduos
dispersos ou organizados, unidos por alguma circunstância fática ou
por afinidades étnicas, sociais, de gênero ou origem, entre outras, que
reivindicam tratamento digno por parte da lei, ainda que isto
signifique a afirmação de uma identidade especial não assimilável ao
valor de igualdade universal (LEAL, 1998, p. 104-105).
Logo, fica bem caracterizado, nesses
direitos, a presença marcante do elemento
econômico, que deverá ser valorado com outro
elemento, como ocorre, por exemplo, na
preservação ambiental.
A característica de vinculação dos
direitos de solidariedade à tecnologia e ao
processo de descolonização, surgido após a
segunda-guerra mundial, aproxima os direitos
de terceira geração do neoliberalismo. Este
sistema econômico se desenvolve graças aos
avanços tecnológicos da informática e das
telecomunicações, bem como em razão da
ampliação de mercados surgida após a
segunda-guerra mundial e consolidada com o
fim da guerra fria.
Outro aspecto, relevante desses
direitos, relaciona-se com a noção de
solidariedade intergeracional. Direitos dos
povos como o direito à paz e ao
desenvolvimento, afetam não só as gerações de
pessoas presentes, mas também as gerações
futuras. Possuem, pois, dimensão temporal que
os torna ainda mais “anônimos”, no que se
refere às suas titularidades.
Preocupam-se tais direitos com os que
ainda não nasceram e cria-se liame entre seres
humanos que transcende o tempo presente.
Nesse conceito, encontra-se, por exemplo, a
noção de desenvolvimento sustentável.
Por fim, o subsídio legal corporificado
na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, alicerça
182
183
outros caracteres de cunho material com
reflexos processuais, bem resumidos na visão
de Benjamin (1996, p. 92-96):
1. "a transindividualidade real ou essencial ampla", quando o número
de pessoas ultrapassa a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente
considerados, para levá-la a uma dimensão coletiva. Outrossim; esta
transindividualidade real significa dizer que a pluralidade de sujeitos
chega ao ponto de se confundir, muitas vezes, com a comunidade;
2. "a indeterminabilidade de seus sujeitos", isto é, as pessoas
envolvidas são substancialmente anônimas;
3. "a indivisibilidade ampla", ou seja, uma espécie de comunhão,
tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica a satisfação
de todos; assim como a lesão da inteira coletividade;
4. "a indisponibilidade no campo relacional jurídico", por não dispor
de titulares determináveis, apresenta dificuldades em transigir de seu
objeto no campo jurídico-relacional;
5. "ressarcibilidade indireta", quando não houver a reparabilidade
direta aos sujeitos individualmente considerados, (levando em conta o
caráter "anônimo" dos sujeitos) e, sim, ao fundo, para recuperação dos
bens lesados.
No mesmo diapasão, Baracho Júnior
(1999, p. 250-254) busca o reconhecimento
dos interesses difusos nos Estados Unidos em
um aspecto material-processual, a legitimidade
para agir em juízo (“standing to sue”).
Analisando o case “Sierra Club v. Morton” ,
que envolve a utilização econômica para lazer
(estação de esqui) de área situada em floresta
nacional americana, destaca que o Sierra Club
afirmou ser uma associação com especial
interesse na conservação dos parques nacionais
e evocou o Administrative Procedure Act,
segundo o qual a pessoa que sofre prejuízos em
função da atuação de uma agência
governamental tem legitimidade para pleitear a
apreciação judicial da questão.
A Suprema Corte Americana, em
1972, pronunciando-se sobre a questão afirma,
segundo o autor, que:
[...] o tipo de alteração que viria a ocorrer no Mineral King Valley
com a realização do empreendimento poderia suscitar a aplicação dos
dispositivos do Administrative Procedure Act relativos à legitimidade
para agir. A qualidade estética e ambiental são ingredientes
importantes da qualidade de vida na sociedade americana e o fato de
os interesses relativos a determinado espaço ambiental ser
compartilhado por muitos e não por poucos não faz com que os
últimos sejam menos merecedores de uma proteção legal através do
processo judicial (BARACHO JUNIOR, 1999, p. 254).
183
184
Em resumo, os direitos fundamentais de terceira geração podem ser
caraterizados por quatro palavras-chaves, a saber: homem-humanidade, titularidadeanônima, existência-transgeracional e qualidade-de-vida. O termo homem-humanidade
ressalta a solidariedade mundial dos direitos de terceira geração, destacando o “homem” como
parte de um todo (a humanidade); a titularidade-anônima sublinha que “sendo de todos não é
de ninguém”; a existência-transgeracional mostra-se revolucionaria para a ciência jurídica ao
permitir a titularidade de seres ainda nem concebidos (que não são “pessoas” juridicamente
falando, numa dimensão temporal-prospetiva); a qualidade-de-vida vislumbra aspirações
humanas que transcendem a existência mínima de subsistência e projetam o homem na
infinita espiral de melhoria de seu padrão de existência.
184
185
2
CORRELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS ECONÔMICOS
DIMENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
E
AS
2.1 O LIBERALISMO E OS DIREITOS DE PRIMEIRA GERAÇÃO
As revoluções burguesas propiciaram a emergência do Estado Liberal, cuja
preocupação maior era dar àqueles que controlavam a economia (os burgueses) ampla
liberdade de exercerem suas atividades, sem estarem ameaçados por qualquer outro
poder. Os liberais pregavam o respeito aos direitos individuais, mas quanto ao mercado,
este deveria regular-se por si só.
Macridis (1982, p. 37), cientista político, ensina-nos, verbis:115
O indivíduo – suas experiências e seus interesses – é o conceito básico
associado à origem e crescimento do liberalismo e das sociedades
liberais. O conhecimento e a verdade derivam do raciocínio do
indivíduo que, por sua vez, é formado pelas associações que os seus
sentidos fazem a respeito do mundo exterior, pela experiência [...]
O liberalismo é uma ética individualista pura e simples. Nas suas fases
iniciais, o individualismo se expressa em termos de direitos naturaisliberdade e igualdade. Ele está embebido no pensamento moral e
religioso, mas já aparecem os primeiros sinais de uma psicologia que
considera os interesses materiais e a sua satisfação como importantes
na motivação do indivíduo. Em sua segunda fase, o liberalismo se
baseia numa teoria psicológica segundo a qual a realização do
interesse é a principal força que motiva os indivíduos.
Nesse sentido, os liberais exaltavam como valores básicos a serem defendidos: o
individualismo e as liberdades individuais, como forma de desafio e limite ao poder político
do Estado.
Assim, Macridis (1982, p. 32) ensina:
Os liberais proclamavam o individualismo e as liberdades individuais
– especialmente a liberdade de movimento e de comércio; eles
tomaram emprestado do passado para desenvolver o que
gradualmente se tornou uma teoria abrangente de direitos
individuais a desafiar e a limitar o poder político absoluto (grifo
nosso).
Macridis (1982, p. 38 et seq.), buscando melhor compreensão do que foi o
liberalismo, divide a democracia liberal em três núcleos básicos: o moral, o econômico e o
político.
No núcleo moral, deve o indivíduo ser respeitado e ter a liberdade de buscar a sua
auto-realização. A liberdade divide-se em liberdade pessoal (todos os direitos que protegem
o indivíduo contra o governo), compreendendo as liberdades individuais de pensamento,
115
Macridis (1982, p. 13) assinala que “as ideologias moldam as nossas motivações, as nossas atitudes e os
regimes políticos sob os quais vivemos. Elas dão formas a nossos valores”. Assim, este autor ressalta algo
importantíssimo que se procura demonstrar neste trabalho, qual seja a íntima relação entre “as ideologias” e
os valores a serem por ela alcançados, seja na expressão da forma de Estado (unitário e federado), seja na
expressão de ideologias políticas como o liberalismo.
185
186
expressão e crença e liberdade social, a de progredir ou mover-se socialmente,
independentemente de raça e de crença, objetivando alcançar uma posição na sociedade,
compatível com suas potencialidades.
O núcleo econômico representa o propósito de liberar a atividade econômica
individual, resultando nas liberdades econômicas (direito de propriedade, de herança, de
produção, de acumular, de comprar e vender e de realizar contratos).
A base teórica desse segundo núcleo encontra-se em autores como Adam Smith,116
Jeremy Bentham117 e o utilitarismo, e, ainda, John Stuart Mill118 e o auto-interesse
esclarecido.
Por fim, o terceiro componente dessa tríade, elaborada por Macridis, é o núcleo
político, intimamente ligado ao tema das liberdades públicas, ora em estudo; defende as
liberdades individuais frente ao poder do Estado e prevê oportunidades iguais para todos.
Coloca o direito do indivíduo de seguir a própria determinação, dentro dos limites impostos
pelas normas, como fundamento das relações sociais. Este núcleo político compõe-se de
quatro princípios básicos:
a) o consentimento individual, com base nas teorias contratuais, em que
homens e mulheres consentem em ligarem-se a um sistema político e
aceitar suas decisões, visando obter proteção, estabelecendo-se, assim,
uma sociedade civil em que é estabelecida uma legislatura comum, um
juiz comum e um executivo comum;
b) a representação ou governo representativo: a legislatura eleita pelo
povo, constituída por aqueles que podem tomar as decisões em nome
dele, sem, no entanto, privarem os indivíduos de seus direitos naturais,
suprimirem suas liberdades ou tomar-lhes suas propriedades;
c) o constitucionalismo, que significa um documento escrito (a
Constituição) que dá garantias para o indivíduo, ao limitar o poder do
governo e estipular como as funções de governo devem ser executadas,
bem como disciplina o acesso ao poder por meio de eleições periódicas; e
d) a soberania popular, significando, em última instância, que o poder
reside no povo, e nele está a fonte de toda autoridade política.119
116
Adam Smith, economista escocês (1723-1790), formulador da Teoria do Liberalismo Econômico, é um dos
mais influentes teóricos da Economia moderna. Em 1763, durante uma viagem à França e à Suíça, entra em
contato com os fisiocratas. Volta à Escócia e publica sua obra principal, Investigação sobre a Natureza e as
Causas da Riqueza das Nações (1776). Nela, define os requisitos do liberalismo econômico e da riqueza das
nações: combate os monopólios, públicos ou privados; não-intervenção do Estado na economia e sua
limitação às funções públicas de manutenção da ordem, da propriedade privada e da Justiça; liberdade na
negociação do contrato de trabalho entre patrões e empregados e livre-comércio entre os povos.
117
A filosofia utilitarista de Bentham pode ser entendida pelo fato de que este autor defendia as liberdades com
base na sua utilidade, assim, Macridis (1982, p. 44) ensina: “É, por exemplo, mais agradável (ou menos
penoso) para um número maior de pessoas num sistema expressar livremente as suas idéias, adoração a Deus
à maneira que escolheram, e ler o que lhes apraz. Seria penoso se houvesse censura e falta de liberdade de
expressão e de crença”.
118
Filósofo e economista inglês. Seu apoio ao voto feminino quando membro do Parlamento (1865-1868) e na
obra A sujeição das mulheres (1869) ajudou a promover o movimento sufragista em fins do século XIX. Em
sua obra mais importante e famosa, Da Liberdade (1859), Mill afirmava que o progresso do saber humano e
da felicidade humana requer a maior liberdade pessoal possível, limitada somente pela condição de que
ninguém “deve tornar-se incômodo para o próximo”. Defendia, portanto, o pluralismo social e político,
juntamente com a livre disseminação de idéias divergentes.
119
A discussão sobre o liberalismo aconteceu de modo um tanto tardio no Brasil. Para Rocha
(1995, p. 2), o período no qual nasce a teoria liberal moderna no Brasil se dá nos últimos
186
187
Assim, observa-se que, nos moldes de
outros autores que tratam do tema liberalismo e
respeito às liberdades individuais, Macridis
aponta a íntima correlação entre o sistema
econômico e as liberdades públicas como
características da ideologia liberal-utilitarista.
2.2 O INTERVENCIONISMO E OS DIREITOS DE SEGUNDA GERAÇÃO
A vigência do sistema de cunho liberal durante cerca de 150 anos trouxe, a par de um
grande desenvolvimento em termos de disponibilidade crescente de bens e serviços, uma série
de conseqüências negativas, cuja explicação redundou em refinamento na própria análise e no
estudo das instituições econômicas.
Assim assinala Nusdeo (2000, p. 208-209), verbis:
Durante século e meio aproximadamente, predominou a doutrina
liberal-utilitarista, muito embora nos últimos 50 anos sob forte assédio
do socialismo coletivista. Entre os anos 20 e 30, ganha terreno a
chamada social-democracia ou intervencionismo, no mundo
ocidental, enquanto na Europa oriental e em algumas nações asiáticas
ensaiava-se o regime de índole coletivista-estatal. Já a última década
do século assiste a um refluir das soluções socializantes de diversas
vertentes, com o remontar da maré liberalista, voltada a conter o
Estado dentro de limites mais acanhados, ao que se tem chamado de
Estado mínimo. Privatização e desregulamentação têm-se constituído
em balizas fundamentais no plano interno, com a globalização,
querendo significar a livre circulação internacional de produtos e
fatores, a complementá-las no plano internacional (grifo nosso).
Evidencia-se, pois, que, no plano econômico, se podem visualizar, claramente, dois
sistemas econômicos que se contrapõem ao liberalismo com diferentes graus de intervenção
estatal: o intervencionismo em sentido estrito (economia de mercado com ajustes) e o
socialismo (economia em que o Estado é o proprietário exclusivo dos meios de produção).
Assim, ao Estado Social, Estado promotor do bem-estar, já analisado anteriormente,
correlacionam-se os sistemas econômicos intervencionistas, enquanto que ao Estado Liberal,
Estado não intervencionista, correlaciona-se o sistema econômico liberal.
dez anos da Monarquia, que precedem a proclamação da República em 1889 e vai até a
promulgação da Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Para ele, “[...] nessa fase, o
Estado brasileiro, independente em 1822, fundado na herança do sistema administrativo e
político português, vai tentar definir-se como instituição política moderna. Trata-se de uma
importante transição, em que os atores sociais são ultrapassados pelos acontecimentos, e os
discursos começam a ter uma difusão na sociedade jamais alcançada anteriormente,
ultrapassando mesmo a intenção de seus emissores. Pela primeira vez, notadamente na
discussão das eleições diretas e da abolição, o discurso político atingiria, muito além do
então restrito espaço público, camadas mais profundas da sociedade. É praticamente o
nascimento da política moderna e da ideologia no Brasil.
187
188
Assim, a Constituição passa a atribuir ao Estado Social diferentes funções na
organização do processo econômico, que podem ser agrupadas em dois grandes tipos: Estado
como empresário (produtor ou distribuidor de bens ou de serviços) e Estado como
regulador (condiciona, fiscaliza, planeja e promove as atividades de terceiros e, muitas vezes,
em braços do próprio Estado) (SANTOS; GONÇALVES, 1997, p. 70).
Quando o Estado produz ou distribui bens ou serviços, concorre com os agentes
econômicos privados de forma direta. Por outro lado, no momento em que regula, condiciona
positiva (incentivando) ou negativamente (proibindo ou onerando) a atividade de terceiros na
qualidade de agente externo do mercado.
Em resumo, nas duas formas, o Estado intervém na economia, seja direta ou
indiretamente.
Na época liberal, as poucas intervenções diretas dos Estados na produção de bens e
de serviços restringiam-se aos investimentos em infra-estrutura (SANTOS; GONÇALVES;
MARQUES, 1997, p. 165).
A atividade econômica do Estado entendia-se, então, como excepcional. Era distinta,
por natureza, da função própria do Estado-legislador e do Estado-juiz e do Estadoadministrador da coisa pública. À luz da doutrina liberal, os poderes públicos deveriam
abster-se de atuar como agentes econômicos sob pena de falsearem as leis do mercado.
As circunstâncias fáticas, entretanto, levaram a uma nova configuração do papel do
Estado, em face das situações não protegidas pelas leis do mercado. No campo teórico, o
grande economista inglês Keynes mostrou ser perfeitamente possível haver o equilíbrio da
oferta e da procura no nível de subemprego, o que justificava a ocorrência da grande
depressão de 1929, iniciada nos Estados Unidos e estendida para todo o mundo, inclusive para
o Brasil que, durante muitos anos, passou a queimar café como forma de aliviar os estoques,
em face da diminuição da demanda por esse produto (NUSDEO, 2000, p. 141).
Assim, as leis de mercado ocasionavam sérios efeitos negativos no campo social e
econômico. Não haveria forças automáticas de mercado, aptas para ajudar a economia a sair
do subemprego e voltar a aproximar-se do pleno emprego.
Ainda na década de 30, Keynes lança a teoria revolucionária do déficit sistemático
das contas públicas como mecanismo de estímulo a atividade econômica em períodos
recessivos.
Keynes (apud NUSDEO, 2000, p. 142) ilustrava a sua idéia com exemplo
aparentemente estapafúrdio:
[...] se o governo numa época de depressão contratar duas equipes de
operários, incumbindo a primeira de abrir buracos e a segunda de
fechá-los, isto parecerá inócuo e absurdo sob o ponto de vista físico,
mas terá um sentido altamente salutar sob o ponto de vista econômico
(macroeconômico). Por quê? Pela simples razão de tanto os
trabalhadores do primeiro grupo, quanto os do segundo passarem a
receber algum salário a ser gasto em compras. Estas, por sua vez,
estimularão o comércio, que voltará a colocar encomendas junto à
indústria, a qual contratará empregados (ou deixará de despedi-los)
para atendê-las e, ainda, comprará matérias-primas a serem
transportadas e assim, sucessivamente, as engrenagens da produção e
do emprego irão se reativando.
Keynes visualizou que o mercado, de forma pura, pode ocasionar momentos
desconfortáveis para o sistema econômico e social, na noção de “pleno emprego”,
188
189
“subemprego” e da necessidade de intervenção estatal, inclusive sem lastro econômico
(“déficit sistemático das contas públicas”).
A ação estatal de combate à recessão significou a intervenção do Estado na
economia, com ênfase, em primeiro momento, na função de Estado-produtor e, também, na de
agente regulador (por exemplo: na edição de legislação social garantidora dos direitos
trabalhistas e previdenciários). Nesse contexto, os direitos de segunda geração podem ser
vistos como reflexo da intervenção estatal na economia.
As falhas do mercado impulsionaram a intervenção estatal que, por outro lado,
buscou minimizar os efeitos econômicos e sociais deletérios da atividade econômica ancorada
no modelo liberal.
Hoje, a importância do Estado como produtor de bens ou serviços decresce,
consideravelmente, no contexto das privatizações e da busca de um Estado mínimo.
Entretanto, o Estado-regulador permanece com atuação crescente no mundo contemporâneo,
conforme veremos, a seguir, em análise a ser feita do modelo neoliberal.
2.3 O NEOLIBERALISMO, A GLOBALIZAÇÃO E OS DIREITOS DE TERCEIRA
GERAÇÃO
O período pós-guerra presenciou contínua expansão dos mercados mundiais. O
comércio internacional, após longo período de retração devido às duas guerras mundiais e à
grande crise de 1929, inicia fase de rápida expansão, impulsionada pelo crescimento da renda
mundial e pela liberalização comercial negociada a nível do GATT (Acordo Geral de Tarifas
e Comércio) 120. Ao longo desse período, o crescimento do comércio mundial suplantou o
crescimento da renda mundial, indicando que os países estão, crescentemente, especializandose internacionalmente e utilizando o mercado mundial para aumentar o nível de bem-estar e
de crescimento econômico. Isto não significa que a ameaça protecionista tenha sido reduzida.
Particularmente, a partir dos anos 70, com o aumento da participação dos países em
desenvolvimento no comércio internacional, os países ricos passaram a utilizar intensamente
as "restrições não tarifárias" para proteger suas indústrias da concorrência com os países
emergentes. Intensificou-se a utilização das quotas de importação, de normas (técnicas,
fitosanitárias, de qualidade, meio ambiente e condições de trabalho), das restrições
voluntárias à exportação e de leis comerciais para coibir a entrada de produtos importados
(SILVA, C., 2000, p. 11).
Além disso, a partir dos anos 70, houve rápida transformação do mercado financeiro
internacional, em função da desregulamentação das transações financeiras internacionais e
pelo aparecimento das tecnologias de informação. À medida que o tempo foi passando, a
legislação foi ficando cada vez mais liberal com relação à entrada e saída de recursos
120
Com o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos, consolidando sua liderança nos países capitalistas,
e os outros países vencedores do conflito realizam a Conferência Monetária e Financeira Internacional das
Nações Unidas em Bretton Woods, no Estado de New Hampshire, com a finalidade de estruturar a ordem
econômica internacional a vigorar no pós-guerra. Três entes foram criados, na ocasião, com a finalidade de
implantar a nova ordem econômica internacional e dar-lhe sustentação e viabilidade: o Fundo Monetário
Internacional (FMI), o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio (GATT). Ao GATT foi atribuída a responsabilidade de estabelecer as normas de
controle do comércio mundial de mercadorias, com a função precípua de zelar pelo livre comércio entre as
nações. Depois de vários anos de árduas negociações, chegou-se a decisão de extinguir o GATT e substituílo, a partir de 1º de Janeiro de 1995, pela Organização Mundial de Comércio (OMC).
189
190
financeiros, tanto que hoje praticamente não existem impedimentos legais à movimentação
internacional de capitais nos principais mercados financeiros do mundo. O desenvolvimento
das tecnologias de informação (telecomunicações e microeletrônica) possibilitaram rápida
redução dos custos das transações financeiras internacionais e estes elementos contribuíram
decisivamente para transformar o mercado financeiro no principal mercado internacional.
Estima-se que atualmente o volume de transações cambiais se situe na marca de US$ 1.5
trilhão por dia, com parcela predominante de aplicações financeiras (PINHO, 1998, p. 479).
A diversificação das aplicações financeiras em escala planetária mudou
drasticamente o regime cambial mundial. Até 1973, vigorava regime "Padrão Dólar" (ou
regime de Bretton Woods121) de câmbio fixo, onde as principal moedas do mundo conviviam
em um regime de taxa de câmbio nominal fixo. Com o aparecimento de uma enorme
mobilidade internacional, ficou cada vez mais difícil manter o regime de câmbio fixo e os
principais países do mundo optaram por regime de taxa de câmbio flutuante (onde a taxa de
câmbio é determinada pelo mercado, embora o bancos centrais também intervenham nesse
mercado). Dada a mobilidade de capital e a ausência de coordenação macroeconômica entre
os países desenvolvidos, tem sido grande a flutuação da taxa de câmbio entre as principais
moedas do mundo (SILVA, C., 2000, p. 35).
Outra mudança importante do mercado mundial é a representada pelo aumento da
participação das multinacionais na produção e no comércio internacional. Estima-se que pelo
menos um terço da produção mundial seja controlada pelas multinacionais, e essas entidades
têm transferido parcelas crescentes da produção para os países emergentes. O baixo custo da
mão-de-obra, as perspectivas de crescimento do mercado interno e o acesso a recursos
naturais têm transformado esses países em atores cada vez mais importantes no cenário
mundial. A internacionalização do comércio, das finanças e da produção é o fenômeno que
hoje se conhece como globalização122 da economia mundial.123
Outra tendência recente na economia mundial é a da proliferação de acordos
regionais de comércio. Existem atualmente quase uma centena de tais acordos e, dentre eles,
destacam-se: a União Européia, o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte),
o Bloco do Yen (Tigres Asiáticos) e o MERCOSUL.124
Destes, o mais sofisticado é o acordo europeu, que previu a criação de moeda única
para seus quinze membros até o ano 1999, tendo alcançado tal meta com pleno sucesso
(BAINBRIDGE, 2002, p. 173).
121
“O Brasil, ao aderir aos termos do Acordo de Bretton Woods, optou por adotar restrições à conversibilidade
de sua moeda corrente, possibilitando assim um controle efetivo sobre os fluxos de capitais estrangeiros no
País e de capitais brasileiros no exterior” (CADIER, 1999, p. 281).
122
Globalização não é um conceito unívoco. Para Faria (1999, p. 59-60) é um conceito plurívoco associado,
geralmente, a uma nova economia política das relações internacionais, caracterizada pela autonomia
adquirida pela economia em relação à política; a emergência de novas estruturas decisórias operando em
tempo real e de alcance planetário, a realocação geográfica dos investimentos especulativos, dentre outros.
123
Arnaud (1999, p. 13) afirma que com o fenômeno da globalização está ocorrendo uma expansão crescente das
multinacionais. Tais empresas são capazes de fazer explodir sua produção graças à existência do fluxo livre
de investimentos sem fronteiras e a mudança dos modelos de produção associado ao poder de transação e de
barganha das empresas multinacionais em uma economia planetária.
124
“Um dos resultados mais prementes da globalização do sistema capitalista mediante o capital financeiro foi a
estruturação de blocos econômicos unificados, ou seja, dos processos de integração econômica supranacional
em escala regional. Tal fato, longe de significar uma harmonização de interesses dentro de mercados abertos
no plano mundial, representa precisamente o contrário: a liberalização comercial entre os países integrantes
de cada bloco é acompanhada pelo estabelecimento de um protecionismo ainda maior em relação ao resto do
mundo” (SILVA, C., 2000, p. 42-43).
190
191
O NAFTA é mais modesto em suas ambições, propondo-se a implantar área de livre
comércio entre EUA, Canadá e México até o ano 2008. 125
O Bloco do Yen, envolvendo o Japão e seus vizinhos asiáticos, é bloco informal,
onde as transações comerciais têm se expandido a taxas extremamente elevadas, em função
do grande dinamismo do crescimento econômico daquela região.
O MERCOSUL é acordo que envolve Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai,
destinado a implantar, até o ano 2006, mercado comum entre esses países. Trata-se de bloco
bastante atuante na região e que está desenvolvendo negociações com as demais nações sulamericanas, visando à criação de zona de livre comércio a nível da América do Sul. Além
disso, o MERCOSUL está iniciando discussões com a América do Norte e a União Européia,
com o objetivo de negociar tratados de livre comércio entre estas regiões.126
O Brasil vem tentando, desde o final dos anos 80, implementar programa de abertura
comercial e financeira que possibilite ao país, gradualmente, recuperar o poder competitivo na
economia mundial.127
No período mais recente, a grande discussão concentra-se nos impactos da
globalização. Há crescente interligação entre os mercados financeiros e de bens e a integração
das economias num grande mercado com desregulamentação dos fluxos de comércio,
produção e financeiro. Nesse sentido, o secretário-geral da ONU, na apresentação do relatório
do milênio para a assembléia-geral em Abril de 2000, ressalta que a palavra-chave das
mudanças vividas no final do século é globalização:
If one word encapsulates the changes we are living through, it is
“globalisation”. We live in a world that is interconnected as never
before-one in which groups and individuals interact more and more
directly across state frontiers, often without involving the state at all
(ANNAN, 2000, p. 22).
A globalização é processo irreversível e sinaliza que a produção será realizada
nos países onde for possível alcançar o maior grau de competitividade.128 Os preços
internacionais passam a ser referência para o mercado interno e o referencial da capacidade de
competir não é mais o concorrente interno, mas sim o concorrente externo.
125
126
127
128
Trata-se tão somente de uma zona de livre-comércio, isto é, prevê apenas a livre circulação de mercadorias
entre os países-membros, portanto, está muito aquém dos objetivos de um mercado comum. “O NAFTA tem
como objetivo fundamental a construção de zona de livre comércio no continente americano, na qual ficam
preservadas as soberanias estatais, mediante a gradual remoção de barreiras não tarifárias e extinção das
tarifas intra-regionais de seus Estados-partes. O Acordo desconhece, no entanto, questões referentes à
integração econômica, como o livre fluxo de trabalhadores, coordenação de política monetária e taxas de
câmbio” (SOARES, 1999, p. 83).
Nesse diapasão, interessante a comparação feita por Nogueira (2000, p. 197) entre o MERCOSUL e a
UNIÃO EUROPÉIA, verbis: “A visão que temos tanto da União Européia como do MERCOSUL é a de um
logo e semelhante projeto de construção regional (bloco regional), em que pese a grande diferença de sua
genética, razão de ser e finalidades (na U.E., o leitmotiv se traduz na divisa ou opção (?) guerra x paz; no
MERCOSUL, a ‘libertação’ do subdesenvolvimento, notadamente econômico) que se desenvolve a partir do
término da Segunda Guerra Mundial
“Nesse período, o Brasil e os demais países da América Latina e do então chamado Terceiro Mundo –
sobretudo os que possuíam elevadas dívidas externas – diminuíram sensivelmente seu ritmo de
desenvolvimento econômico e social, ou sofreram anos de estagnação/recessão” (BRUM, 1999, p. 419).
“A globalização, assim entendida, não se confunde com uma etapa inexorável do processo histórico, mas
descreve uma nova fase do capitalismo mundial, marcada pela transformação dos arranjos institucionais
(econômicos e políticos), hábitos, cultiva e apreensão teórica do mundo anteriormente existentes”
(MACEDO JÚNIOR, 1999, p. 227).
191
192
Além das mudanças ocorridas na estrutura de produção, alterações na propriedade do
capital também são verificadas, não somente pela presença do investimento direto estrangeiro,
como também por um processo de fusões, incorporações, joint-ventures, com o objetivo de
buscar a competitividade global. Isso porque as decisões, a nível das firmas, envolvem não
apenas um determinado mercado, mas todos os possíveis mercados, como também todas as
possíveis localizações e fornecedores. Conceitos como valor presente ou taxa de retorno não
serão apenas de um único projeto, mas do conjunto de projetos da empresa de forma
integrada.
Nessa nova realidade, a rapidez de ação dos agentes econômicos é fundamental, uma
vez que as oportunidades aparecem e desaparecem rapidamente. O desafio é, acima de tudo, o
da competitividade, o que significa dizer que é necessário ganhar produtividade de forma
permanente.129
Por fim, cabe ressaltar que os desafios propostos à economia brasileira, ao Estado
Brasileiro, aos direitos fundamentais, em grande medida, não diferem daqueles colocados às
outras nações industrializadas em desenvolvimento. Resultam da progressiva globalização da
economia mundial, de um ambiente tecnológico crescentemente dinâmico e do surgimento de
novos concorrentes que aumentariam a competição dos mercados internacionais.130
Nesse contexto de visão econômica planetária, volta-se aos conceitos dos liberais
clássicos do século XVIII e recuperados pelos teóricos do neoliberalismo, que se vai
implantar a idéia da apologia do mercado, firmado na razão econômica da superioridade dos
mercados sobre o Estado como alocadores de recursos, de forma a impedir o que eles
denominaram de servidão moderna.131
Entretanto, não se preocupavam com os problemas crônicos trazidos por soluções
simplistas em torno da iniciativa privada (seja a informação imperfeita, os mercados
incompletos ou a tendência aos oligopólios, que constituem distorções de seu funcionamento),
busca-se a absoluta liberdade de movimentos das empresas, e que todos os campos da vida
social, inclusive o Estado, sejam submetidos à valorização do capital privado.
“[...] É o momento culminante do que Karl Marx chamava de ‘fetichismo da
mercadoria’, com a ‘mercadorização’ do humano chegando em níveis inimagináveis”
(SILVA, C., 2000, p. 68).
Ao lado da “modernização via internacionalização” dos países do hemisfério sul,
configuram-se elementos de regressão social, política, ambiental. A era da informática e da
biotecnologia, também, é a do contraste entre os países ricos e os países pobres, a do mau uso
dos recursos naturais não renováveis, do desemprego estrutural por falta de desenvolvimento
econômico de determinadas nações não competitivas no contexto global.
Nesse contexto, devem ser vistos e correlacionados o neoliberalismo e os direitos
dos povos. Esta classe de direitos tem por destinatário mais do que o indivíduo, um grupo ou
129
A rapidez das novas situações econômicas trará, conforme FARIA (1999, p. 130) ensina, em conseqüência a
inflação legislativa, de “leis de circunstância” surgidas a partir de conjunturas políticas, sociais e econômicas
muito específicas e transitórias. Tais circunstâncias, entretanto, acabam levando o Estado a perder a
dimensão exata do valor jurídico tanto das normas que edita quanto dos atos e comportamentos que
disciplina.
130
“Um dos efeitos mais espetaculares da globalização é o surgimento de um novo ídolo, o mercado mundial. O
homem que até a chegada desse fenômeno se ligava a seu mercado, agora se vê diante de uma inusitada
vitrine mundial abrangente de todos os mercados” (NOGUEIRA, 2000, p. 210).
131
“A hegemonia dos conceitos neoliberais em matéria de relações econômicas, mercado privatizado, livre
mercado internacional, desregulação, desengajamento do Estado, foram as palavras de ordem do reaganismo
e do tacherismo. Elas estão invadindo progressivamente todos os continentes” (ARNAUD, 1999, p. 14).
192
193
determinado Estado, mas o gênero humano mesmo. O indivíduo, assim como o mercado,
passam a ser vistos sob a ótica universal. É dada ênfase ao todo para, no âmbito dos direitos
fundamentais, proteger-se, em última análise, a parte.
Por outro lado, a proteção internacional dos direitos humanos ganha força com
tratados internacionais, organismo internacionais estatais e não-estatais (ONG’s). As
transformações impostas por uma economia globalizada colocaram em questionamento a
legitimação do Estado nacional como promotor do bem-estar social e fizeram refluir a atuação
direta da sociedade e da comunidade internacional na proteção da pessoa humana.132
Com relação à proteção internacional dos direitos humanos, Piovesan (1997, p. 141)
destaca que são aprimoradas, historicamente, quando as instituições nacionais se mostraram
falhas na tarefa de proteção dos direitos humanos:
A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção
dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização
desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de
proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado
no domínio internacional, quando as instituições nacionais se
mostram falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos
humanos.
O processo de internacionalização dos direitos humanos - que, - sua
vez, pressupõe a delimitação da soberania estatal - passa, assim a ser
uma importante resposta nesta busca de reconstrução de um novo
paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas
no Holocausto (grifo nosso).
Assim, buscam-se novos agentes protetores dos direitos fundamentais, quando o ator
principal se apresenta incapaz de protegê-los. O caráter difuso e amplo dos direitos
fundamentais de terceira geração, sob determinada ótica, também contribuem para a retomada
de novos atores da proteção dos direitos.
A economia neoclássica, fruto da síntese de sistemas econômicos antagônicos
(intervencionista, em menor escala, e liberal, em maior escala), tem reflexos, até hoje, na
formação do Estado chamado neoliberal, no qual há controvérsias na dosagem da intervenção
ou não-intervenção estatal em diferentes áreas.133
Santos; Gonçalves; Marques, (1997, p. 73) e outros ressaltam o aspecto interventivo
do Estado, que buscaria ser “liberal” em uma nova configuração histórica a de Estadoregulador:
Por paradoxal que possa parecer, a redução do peso do Estado –
empresário e a liberalização de determinados sectores de atividade
econômica, a que se tem assistido ao longo dos últimos anos em
diversos países, têm sido acompanhadas por um alargamento do
papel do Estado como regulador.
132
133
Arnaud (1999, p. 14) realça que o fenômeno da globalização caracteriza-se, também, pelo aparecimento de
atores supranacionais e transnacionais promovendo a democracia e a proteção dos direitos humanos, assinala
que: “Nunca as Organizações Não-governamentais foram tão fortes. Até entre os próprios juristas foi criada a
Organização Não-governamental e Transnacional dos Conselhos de Justiça (TANGO, Transnational
Advocacy Non Governmental Organization)”.
“A globalização, enfim, é processo contraditório, seletivo e que oferece perspectivas diferenciadas para cada
país. Nesse sentido, constitui-se um erro acreditar que a globalização é resultante exclusiva de forças de
mercado, negligenciando o imenso papel desempenhado pelo Estado no estímulo e regulação da atividade
produtiva e do próprio mercado de consumo” (MACEDO JÚNIOR, 1999, p. 227).
193
194
Assim, o Estado regulador configura um novo paradigma de intervenção do Estado
na economia, que terá vindo substituir, na economia neoclássica, a economia do Estadoempresário que marcou as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial.
Ao tratar dos vetores basilares da economia neoclássica:
A argumentação central do liberalismo econômico, nascida em
meados do século XVIII, sempre foi em torno da maior eficiência do
mercado em detrimento das instituições políticas, desde a tradição de
Adam Smith e sua "mão invisível", onde naturalmente o interesse
individual se acomodaria ao interesse social, produzindo riqueza e
desenvolvimento
geral.
Preocupados
estavam,
então,
primordialmente em defender o sistema da livre movimentação
dos agentes econômicos, fórmula básica de eficácia junto aos
consumidores. O prefixo "neo" (do neoliberalismo) tem um
significado muito preciso: representa o fato de que após as grandes
transformações sociais, políticas e econômicas, as quais passavam o
mundo ocidental, após o período da Grande Depressão de 1929,
passaram a admitir a necessidade de alguma intervenção do Estado na
economia, de modo a "ajustar" e sanear as falhas de mercado.
Admitem, então, medidas "anticíclicas" de recondução das economias
desenvolvidas à situação em que os mecanismos "naturais" de
mercado poderiam voltar a garantir equilíbrio e eficiência, fazendo
então concessões aos keynesianos (SILVA, C., 2000, p. 71-72, grifo
nosso).
Nesse sistema econômico ambivalente, convivem os direitos de terceira geração de
desenvolvimento com a proteção ambiental. Como bem coloca Arnaud (1999, p. 39) verbis:
O uso de aerosóis, na Europa, pode provocar câncer na pele na
América do Sul. Uma colheita ruim na Rússia pode significar ainda
mais fome na África [...] As mudanças de tarifas na Europa podem
facilitar a pressão sobre as florestas tropicais. A restruturação
industrial do Norte pode reduzir a pobreza do Sul, por sua vez, pode
fazer aumentar o mercado para o Norte, etc.
Do mesmo modo, Cairncross (1992), editora da seção relativa ao “meio ambiente”
do periódico inglês “The Economist”, ressalta a problemática do “paradoxo globalizante” dos
direitos de terceira geração em função das diferentes prioridades dos países ricos e pobres que
podem, por um lado, favorecer o desenvolvimento em detrimento da proteção ambiental e
vice-versa. 134
O “paradoxo da globalização” no âmbito dos direitos fundamentais de terceira
geração é que esta apresenta, simultaneamente, elementos positivos e negativos de proteção
dos direitos dos povos. Assim, se, por um lado, é criada uma consciência universal dos
direitos fundamentais, surge, também, uma grande pressão econômica pela diminuição dos
custos da atuação protetiva, em face da relevância dada ao aspecto econômico da
oferta/procura e do preço dos bens e serviços que competem em um mercado global.
134
“Não faz qualquer sentido para países em desenvolvimento gastar enormes somas no tratamento do lixo
tóxico segundo padrões dos Estados Unidos quando famílias ainda bebem água de rios cheios de esgoto
bruto. Mas por que os produtores dos países desenvolvidos se sentirão ameaçados pela competição de
fabricantes que operam segundo normas inferiores nos países em desenvolvimento, é provável que as normas
ambientais se tornem uma questão cada vez mais delicada no comércio internacional” (CAIRNCROS, 1992,
p. 11).
194
195
3 O MEIO AMBIENTE E SUA VINCULAÇÃO JURÍDICA AOS SISTEMAS
ECONÔMICOS
3.1 O PRINCÍPIO DA DEFESA DO MEIO AMBIENTE COMO MECANISMO
CONFORMADOR DA ORDEM ECONÔMICA
O princípio da propriedade privada assegurado como direito fundamental (art. 5o,
inciso XXIII da Constituição Federal) deve ser interpretado em harmonia com o princípio de
que a propriedade atenderá a sua função social no que tange à proteção do meio ambiente
ecologicamente em equilíbrio, pois, sendo bem de uso comum do povo (interesse público), há
cristalina restrição à iniciativa privada por atos do Poder Público.
Ao abordar a necessidade de harmonizar dois importantíssimos bens constitucionais
(o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental), inicialmente, devem-se procurar
luzes no direito comparado, colacionando pronunciamento de Necker (1992, p. 66-67), verbis:
Para tornar o problema mais visível, gostaria de comparar as empresas
com navios. E em todo navio o comandante é o maior responsável por
que este navio chegue ao porto. Todos sabem que, para isso, a carga
do navio precisa estar cuidadosamente distribuída, para evitar que, por
estar com sua carga mal distribuída, o navio afunde com a primeira
onda.
Da mesma forma é exigida a responsabilidade empresarial:
• frente aos financiadores, pelo estabelecimento de uma taxa de juros
adequada para o capital investido. Sem nenhuma perspectiva de um
retorno financeiro compatível, ninguém mandaria um navio fazer uma
viagem arriscada. Os padeiros também não fazem pão – a não ser para
as suas próprias famílias – porque a humanidade tem fome, mas para
chegar a obter um ingresso. Se cair por terra a possibilidade de obter
ingressos, os padeiros trocam de profissão;
• em relação aos trabalhadores, pela criação de locais de emprego
resistentes às crises. Uma tripulação que, depois da primeira etapa da
viagem, precisa contar com a possibilidade de poder chegar a ser
dispensada do navio, dificilmente vai se preocupar em cuidar da
navegabilidade do mesmo;
• em relação aos consumidores, pelo oferecimento dos bens desejados
a preços compatíveis. Nesse campo, quem não puder contar com
produtos aptos a competir no mercado, vai sentir as conseqüências
negativas muito rapidamente, ou seja, desaparece do mercado; e
• em relação ao meio ambiente, para restringir a vulnerabilidade dos
alicerces naturais da vida. Essa responsabilidade não resulta do fato de
que, em discussões públicas, os empresários freqüentemente são
apontados como os culpados. A responsabilidade surge do fato de que
muitas empresas são, em primeira instância, fontes de emissão, mas
também são fontes de conhecimento tecnológico, técnico, econômico
e científico. Vem daí a responsabilidade das empresas e dos
195
196
empresários em investir este saber e esse potencial inovador para a
proteção e manutenção do meio ambiente.
Nessa feliz metáfora, demonstra-se a interdependência sistêmica do meio ambiente e
da economia. Adequa-se, também, ao conceito de meio ambiente amplo dado pela ISO
14.000, ao colocar-se, por um lado os consumidores (representantes do elemento humano da
demanda) e, de outro, os trabalhadores (representantes do elemento humano da oferta como
um dos “fatores de produção”). Faz-se, pois, uma correlação entre a segunda e a terceira
dimensão de direitos fundamentais. O elemento econômico passa a ser, portanto, a ponte
de conexão entre os trabalhadores e os consumidores.
Portanto, a análise de interesses e de bens conflitantes não permanece no campo da
verificação de uma hierarquia de valores, requerendo análise em face das normas abertas, já
positivadas, veiculadas por normas-objetivo a expressar os resultados a que a lei deve visar. A
instrumentalização da lei como positivação de diretrizes e de metas transfere a discussão –
metajurídica – sobre a hierarquia dos valores, a dispensar a valoração unilateral de um bem
constitucional em desfavor de outro, para a análise de adequação de meios a fins, garantindo
a unidade do sistema constitucional ao tomar como princípio norteador a coordenação e
igualdade hierárquica dos bens jurídicos.
Canaris (1989, p. 205-206) observa pertencer à essência dos princípios gerais de
direito que estes entrem, com freqüência, em oposição entre si. Nem por isso devem ser
eliminados do sistema, mas ajustados por meio de um compromisso, em cada caso.
Assim, conforme já visto, diversamente do que ocorre com regras jurídicas, a
oposição de princípios não conduz à eliminação de um deles, de forma que, em determinadas
circunstâncias, um princípio cede perante outro, mas, em situações distintas, a questão da
prevalência pode resolver-se de forma contrária. Esse processo ocorre; pois, os princípios têm
um peso diferente nos casos concretos, prevalecendo o que apresenta maior peso em dada
circunstância (BONAVIDES, 1996, p. 251).
Nesse sentido, Mendes (1994, p. 297), ao tratar da colisão de direitos fundamentais
(Grundrechtskollision) nos limites da liberdade de imprensa e da liberdade artística, ensina:
No processo de ponderação desenvolvido para solucionar o conflito de
direitos individuais não se deve atribuir primazia absoluta a um ou
outro princípio ou direito. Ao revés, esforça-se o Tribunal para
assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso
concreto, uma delas sofra atenuação. É o que se verificou na decisão
acima referida, na qual restou íntegro o direito de noticiar sobre fatos
criminosos, ainda que submetida a eventuais restrições exigidas pela
proteção do direito de personalidade.
Larenz (1983, p. 490) aponta que a “ponderação de bens e interesses no caso
concreto” pressupõe a ausência de uma ordem hierárquica de todos os bens e valores
jurídicos. A técnica da ponderação aproxima-se, antes, de um método do que do arbítrio do
aplicador da lei, pois, do contrário, tais soluções seriam desprovidas de parâmetros de
racionalidade. Assim, a harmonização de bens jurídicos, como o desenvolvimento econômico
e a proteção ambiental, baseia-se na ausência de hierarquia entre esses bens constitucionais.
Não se trata, simplesmente, da busca de denominador comum entre os bens jurídicos
em determinado caso concreto, mas de proceder conforme os princípios da proporcionalidade,
do meio mais idôneo ou da menor restrição possível, de modo que a lesão de um bem não
deva ir além do necessário.
Desse modo, a ponderação de bens não permanece no campo do sentimento jurídico,
configurando processo racional que não há de se fazer, em absoluto, unilateralmente, mas que,
196
197
ao menos, em certo grau, segue princípios identificáveis, tornando-se, portanto, comprovável
(LARENZ, 1983, p. 490-501).
Especificamente
sobre
essa
ponderação de bens jurídicos no campo
ambiental, esclarece Rangel (1994, p. 22):
Os valores ambientais, ecológicos, de qualidade de vida, não são,
no quadro da hipótese do Estado de Direito Ambiental, valores
exclusivos nem excludentes, necessariamente prevalecentes, com
dignidade hierárquica superior a qualquer outro objetivo
fundamental constitucionalmente recebido. Serão antes tarefas
prioritárias, sim, mas plasmadas em normas constitucionais, que terão
de ser integradas num horizonte plural (diversificado e intrinsicamente
concorrente ou conflituante) de princípios rectrizes e de outras
normas-fim, segundo um princípio de concordância prática, não
compatível com quaisquer formas de reducionismo (grifo nosso).
Sob o prisma de ponderação de bens constitucionais, o Supremo Tribunal Federal já
se pronunciou no sentido de interpretar-se a norma inscrita no art. 225 da Constituição Federal
de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental,
dando relevo à interdependência das normas constitucionais protetivas com o direito de
135
propriedade (art. 5º, XXII), verbis:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ESTAÇÃO ECOLÓGICA –
RESERVA FLORESTAL NA SERRA DO MAR – PATRIMÔNIO
NACIONAL (C.F., ART. 225, § 4o) – LIMITAÇÃO
ADMINISTRATIVA QUE AFETA O CONTEÚDO ECONÔMICO
DO DIREITO DE PROPRIEDADE – DIREITO DO
PROPRIETÁRIO DE INDENIZAÇÃO – DEVER ESTATAL DE
RESSARCIR OS PREJUÍZOS DE ORDEM PATRIMÔNIAL
SOFRIDOS PELO PARTICULAR – RE NÃO CONHECIDO.
− Incumbe ao Poder Público o dever constitucional de proteger a flora
e de adotar as necessárias medidas que visem a coibir práticas lesivas
ao equilíbrio ambiental. Esse encargo, contudo, não exonera o Estado
da obrigação de indenizar os proprietários cujos imóveis venham a ser
afetados, em sua potencialidade econômica, pelas limitações impostas
pela Administração Pública.
− A proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais que revestem
as propriedades imobiliárias não impede que o dominus venha a
promover, dentro dos limites autorizados pelo Código Florestal, o
adequado e racional aproveitamento econômico das árvores nelas
existentes. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos
Tribunais em geral, tendo presente a garantia constitucional que
protege o direito de propriedade, firmou-se no sentido de proclamar a
plena indenizabilidade das matas e revestimentos florestais que
recobrem áreas dominiais privadas, objeto de apossamento estatal ou
sujeitas a restrições administrativas impostas pelo Poder Público.
Precedentes.
135
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no
Diário de Justiça de 22/09/95.
197
198
− A circunstância de o Estado dispor de competência para criar
reservas florestais não lhe confere, só por si, considerando-se os
princípios que tutelam, em nosso sistema normativo, o direito de
propriedade, a prerrogativa de subtrair-se ao pagamento de
indenização compensatória ao particular, quando a atividade pública,
decorrente do exercício de atribuições em tema de direito florestal,
impedir ou afetar a válida exploração econômica do imóvel por seu
proprietário.
− A norma inscrita no art. 225, § 4o, da Constituição deve ser
interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado
pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que,
proclamada pelo art. 5o, XXII, da Carta Política, garante e assegura o
direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela
concernente à compensação financeira devida pelo Poder Público ao
proprietário atingido por atos imputáveis à atividade estatal.
− O preceito consubstanciado no art. 225, § 4o, da Carta da República,
além de não haver convertido em bens públicos os imóveis
particulares abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas
(Mata Atlântica, Serra do Mar, Floresta Amazônica brasileira),
também não impede a utilização, pelos próprios particulares, dos
recursos naturais existentes naquelas áreas que estejam sujeitas ao
domínio privado, desde que observadas as prescrições legais e
respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental.
− A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de
propriedade (C.F./88, art. 5o, XXII). Essa proteção outorgada pela Lei
Fundamental da República estende-se, na abrangência normativa de
sua incidência tutelar, ao reconhecimento, em favor do dominus, da
garantia de compensação financeira, sempre que o Estado, mediante
atividade que lhe seja juridicamente imputável, atingir o direito de
propriedade em seu conteúdo econômico, ainda que o imóvel
particular afetado pela ação do Poder Público esteja localizado em
qualquer das áreas referidas no art. 225, § 4o, da Constituição.
− Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a
consagração constitucional de um típico direito de terceira geração
(C.F., art. 225, caput).
No referido acórdão, o Rel. Min. Celso de Mello ressalta a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal, no sentido de garantir a plena ressarcibilidade dos prejuízos
materiais decorrentes das limitações administrativas ao direito de propriedade, ao referir-se ao
direito do poder público de constituir reservas florestais em seu território, desde que não as
constitua gratuitamente.136
E continua, verbis:
[...] O Estado de São Paulo sustenta, ainda, a partir das regras inscritas
no art. 225, § 1º, inciso VII, e § 4º, da Carta Política, que o novo
ordenamento constitucional promulgado em 1988 introduziu
profundas alterações no sistema de direito positivo brasileiro,
136
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no
Diário de Justiça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral
do acórdão, p. 686 a 687.
198
199
consagrando a inexigibilidade de qualquer indenização pelos atos
administrativos de intervenção estatal na esfera dominal privada,
desde que, praticados com finalidade de proteção ambiental, venham a
incidir em imóveis situados na Serra do Mar [...].
Não assiste, também neste ponto, qualquer razão ao recorrente,
eis que o acolhimento da tese ora sustentada implicaria virtual
nulificação do direito de propriedade, com todas as graves
conseqüências jurídicas que desse fato adiviriam137 (grifo nosso).
Por outro lado, assinalando a índole comum da proteção ambiental (ser assegurada
não só pela sociedade, mas também pelo Estado), explica que seria inadequado impor
somente ao particular tal ônus, verbis:
É de ter presente, neste ponto, que, sendo de índole comum o direito
à preservação da integridade ambiental, não se pode impor apenas
aos proprietários de áreas localizadas na Serra do Mar – que venham
a sofrer as conseqüências derivadas das limitações administrativas
incidentes sobre os seus imóveis – os ônus concernentes à
concretização, pelo Estado, de seu dever jurídico-social de velar pela
conservação, em benefício de todos, de um meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
Por tal razão, as normas inscritas no art. 225 da Constituição hão de
ser interpretadas de modo harmonioso com o sistema jurídico
consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a
cláusula que, proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante
e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções,
inclusive aquela concernente à compensação financeira devida pelo
Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à atividade
estatal138 (grifo nosso).
Destacando a íntima relação entre a proteção ambiental e o direito de propriedade,
Pagano (1995, p. 8), professor da Universidade de Miami, e Bowaman, professora da
Universidade da Carolina do Sul, ao tratarem do federalismo americano e da proteção
ambiental na década de noventa, ressaltam, também, a ponderação entre as normas ambientais
restritivas e o uso da propriedade, destacando a necessidade de os órgãos estatais americanos
compensarem financeiramente os proprietários atingidos pelas normas restritivas, verbis:
[...] By July, 1995, several regulatory reform bills were making their
way through the legislative thicket. The primary proposal would
require federal agencies to undertake a rigorous series of risk
assesments and cost-benefit analyses to justify new and extant
regulations. A related measure would require the federal government
to compensate a property owner if a federal regulatory action caused
even a modest diminution in the fair market value of the property
(grifo nosso).
A análise das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e a análise da doutrina
americana apresentadas trazem, à colação, a unidade do texto constitucional. Segundo Hesse
(1983, p. 18), “[...] a Constituição somente pode ser compreendida e interpretada
137
138
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de
22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral do acórdão, p. 688 a 689.
STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de
22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral do acórdão, p. 692 a 693.
199
200
corretamente quando é entendida, nesse sentido, como unidade”. Assim, as normas
encontram-se em uma relação de interdependência no ordenamento jurídico. Subjaz a essa
interdependência a idéia de sistema formal que obriga a não compreender “em nenhum caso
somente a norma isolada senão sempre no conjunto em que deve ser situada: todas as normas
constitucionais têm de ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras
normas constitucionais” (HESSE, 1983, p. 48).
Deve, pois, haver ponderação entre o desenvolvimento econômico e a proteção
ambiental no contexto do ordenamento jurídico como um todo, não comportando antinomias
entre normas definitivas. Assim, a contradição entre conteúdos de normas abertas, a
valoração, não importa eliminação de uma delas do texto da Constituição, mas apenas
harmonização de interesses em um determinado caso concreto.
Consoante ensinamento de Canotilho (1993, p. 197): “não há normas só formais”.
Nessa mensagem perspectiva, a solução de problema constitucional, como a proteção
ambiental, deve guardar coerência com o principio da unidade, de modo a harmonizar a
possível divergência entre os preceitos.
No mesmo sentido, aplica-se o princípio da interpretação das leis em
conformidade com a Constituição. Tal princípio, segundo Canotilho (1993, p. 229):
[...] é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função
assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância
autônoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não
permite a obtenção de um sentido inequívoco entre os vários
significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de
normas polissêmicas ou plurisignificativas, deve dar-se preferência à
interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a
Constituição. Esta formulação comporta várias dimensões: (1) o
princípio da prevalência da Constituição impõe que, entre as várias
possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma
interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou
normas constitucionais (grifo nosso).
A partir da “idéia do igual valor dos
bens constitucionais” e do “princípio da
interpretação das leis em conformidade com a
Constituição” segue-se a necessidade de
harmonização dos bens constitucionais
tutelados, no caso concreto. Reduzido ao seu
núcleo essencial, o princípio da concordância
prática impõe a coordenação e a combinação
dos bens jurídicos em conflito, de forma a
evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos
outros.
Esse princípio de hermenêutica constitucional, também conhecido como princípio da
harmonização, consoante assinala Canotilho (1993, p. 234), embora divulgado por Hesse, “há
muito constitui um canon of constitucional construction da jurisprudência americana”.
Tal princípio da harmonização fornece-nos a indicação de que cada valor
constitucional deve ser ponderado na circunstância específica; portanto, com tal metodologia,
cada valor constitucional variará conforme a necessidade fática da solução do problema. A
solução do conflito de direitos ou de valores deve passar sempre por um juízo de ponderação,
200
201
procurando ajustá-los à unidade da Constituição. Pode-se caracterizar, dependendo do caso
concreto, em interpretação restritiva que deve ser verificada, para que não valha para dois
bens constitucionais a regra do tudo ou nada.
É o que ocorre na espécie, pois a coexistência do desenvolvimento econômico e da
proteção ambiental se resolvem pela noção de desenvolvimento sustentável. Portanto, é viável
compatibilizar o desenvolvimento e a preservação ambiental, desde que se considerem os
problemas ambientais dentro de processo contínuo de planejamento, atendendo-se
adequadamente às exigências de ambos os bens jurídicos e observando-se às suas interrelações particulares a cada contexto sócio-cultural, político, econômico e ecológico, dentro
de uma dimensão tempo/espaço. Em outras palavras, a política ambiental não se deve
constituir em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus instrumentos, ao
proporcionar a gestão racional dos recursos que constituem sua base material.
3.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO ÉTICA DE
DESENVOLVIMENTO COM A HARMONIZAÇÃO DO ECONÔMICO E DO
ECOLÓGICO
3.2.1 Defesa do meio ambiente como objetivo da ordem econômica
Grau (1990, p. 255) identifica a defesa do ambiente como diretriz, norma-objetivo,
dotável de caráter constitucional conformador, ao indicar:
Princípio da ordem econômica constitui também a defesa do meio
ambiente (art. 170, VI), trata-se de princípio constitucional impositivo
(Canotilho), que cumpre dupla função, qual os anteriormente
referidos. Assume também, assim, a feição de diretriz (Dworkin) –
norma-objetivo – dotada de caráter constitucional conformador,
justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas.
Identificando-se o princípio da defesa do ambiente como expoente conformador da
ordem econômica (mundo do ser), por ele são informados, conseqüentemente, os princípios
da garantia do desenvolvimento nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.139 O
desenvolvimento nacional não haverá mais de ser reduzido ao conceito de crescimento
139
“O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando
substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si,
é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos
existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento nacional
que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impede
assegurar supõem economia autossustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem
reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico. Por esta
trilha segue a chamada ética ecológica e é experimentada a perspectiva holística da análise ecológica, que,
não obstante, permanece a reclamar tratamento crítico científico da utilização econômica do fator recursos
naturais” (GRAU, 1994, p. 249).
201
202
econômico, mas deverá ser equilibrado140, não só no sentido de atendimento do plano
nacional e do plano regional (procedimento necessário em face do princípio federativo), mas
para obediência do princípio da defesa do meio ambiente, com o conteúdo delineado pelo
artigo 225.
O fato de que o desenvolvimento nacional recebeu tratamento constitucional diverso
do que lhe fora deferido na Carta anterior, deslocando-se da categoria de princípio norteador
da atividade econômica para objetivo fundamental da República (art. 3o da Constituição
Federal), confirma a argumentação de que o seu programa normativo deve abarcar não só a
vertente econômica, mas todas as dimensões que o termo desenvolvimento comporta.
A par de informador dos princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno
emprego, o princípio da defesa do meio ambiente constitui instrumento elementar e necessário
para a realização da finalidade da ordem econômica, a de assegurar a todos existência digna –
valor atado aos fundamentos da República Federativa do Brasil por meio do princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) (GRAU, 1990, p. 256).
A pertinência do princípio da defesa do meio ambiente ao princípio da dignidade da
pessoa humana manifesta-se cristalina em face da determinante da qualidade de vida,
insculpida no artigo 225, caput, da C.F. Evidencia-se, ademais, a necessidade de exercício da
atividade econômica com a preocupação do não-esgotamento dos limitados recursos naturais,
comprometendo a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações.
O princípio da defesa do meio
ambiente constitui, pois, um dos limites
constitucionais ao livre exercício da atividade
econômica (pública ou privada), dando-lhe
precisos contornos. Portanto, o exercício da
atividade econômica deve-se integrar à defesa
do meio ambiente, sob pena de violação de
vários dispositivos constitucionais, entre
outros, a saber:
• do disposto no artigo 225, caput, que impõe ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo – porque todos têm
direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado;
• do disposto no artigo 170, caput, porque impedido assegurar-se a todos
existência digna, e do disposto no artigo 3o, II, porque, sem a defesa
material do meio ambiente, amputa-se a garantia do desenvolvimento
nacional; e
• do disposto no art. 174 § 1o, que almeja um desenvolvimento nacional
equilibrado, que incorpa e compatibiliza os planos nacionais e regionais
de desenvolvimento em um Estado Federal.
A preservação e a defesa do meio ambiente, como objetivos a serem perseguidos
pelo Estado e pela coletividade, na qualidade de agentes políticos, econômicos e sociais,
constituem diretriz, obrigação de resultado constitucionalmente plasmada a ser equacionada
pela doutrina do desenvolvimento sustentável.
140
A Constituição Federal vigente em seu art. 174, §1o, assinala: “Art. 174 como agente normativo e regulador
da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1o – A lei
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual
incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (grifo nosso).
202
203
3.2.2 O
conceito
de
desenvolvimento
sustentável
e
a
ética
do
desenvolvimento
Situamos o princípio de desenvolvimento sustentável141 em diversos artigos da
Constituição, mas o núcleo se encontra no caput do artigo 225: “Todos têm direito a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O capítulo da ordem econômica também
consagra o respeito ao meio ambiente como limitador da atividade econômica (artigo 170,
inciso IV), bem como o artigo 186, que trata da função social da propriedade dentro do Título
da Ordem Econômica e Financeira.142
O conceito de desenvolvimento sustentável, elaborado pelo Relatório de
Brundtland143, é o seguinte: “O desenvolvimento sustentável seria aquele capaz de satisfazer
as necessidades sociais atuais sem comprometer as necessidades futuras”.
A
conceituação
desse
desenvolvimento engloba questões ideológicas,
visto que a própria noção de desenvolvimento
sempre acompanhou disputa por diferentes
formas de apropriação da riqueza e reprodução
social.
Nesse aspecto, o saudoso Professor Marinho (1995, p. 10) enfatizava a diferença
entre crescimento econômico e desenvolvimento:
Se não é próprio estabelecer oposição entre os termos, cabe assinalar
que, no juízo prevalecente, crescimento só se equipara a
desenvolvimento quando une a ampliação das riquezas ao
robustecimento da personalidade humana, como força social apta
a produzir num ambiente adequado (grifo nosso).
141
A “Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em 1983,
trabalhou durante quatro anos para produzir o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi consagrada a
expressão “Desenvolvimento Sustentável”, que foi ali conceituado como aquele que atende às necessidades
do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.
Ele contém dois conceitos-chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos
pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das limitações que o estágio da
tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades
presentes e futuras.
142
Ao se decompor essa disposição constitucional percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um de
feição eminentemente ecológica ou ambiental, qual seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na verdade, constitucionalizou e ampliou uma disposição
infraconstitucional já presente na alínea “c” do parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da Terra),
qual seja, a que “assegura a conservação dos recursos naturais”.
143
O Relatório Brundtland foi desdobramento da Conferência de Estocolmo (1972), a primeira reunião mundial
em que se tratou da questão ambiental, em que 114 países procuravam soluções para problemas que séculos
de desenvolvimento irracional ocasionaram para todo o planeta.
203
204
Da mesma forma, Goulet (1966, p. 1) esclarece: “O desenvolvimento não é a simples
industrialização ou modernização, nem o aumento da produtividade ou a reforma das
estruturas do mercado”.
Completando sua exposição e explicando que o desenvolvimento deve ser um meio
para conduzir os homens à sua dignificação, Goulet (1966, p. 38) defende uma ética do
desenvolvimento como “um impulso não mecânico mas humano, uma criação da inteligência
e da vontade de homens conscientes e de ação, de homens que possuam uma visão dos fins
que lhes permita escolher racionalmente os meios. Em outras palavras, homens que tenham
uma ética (ciência e arte dos fins e dos meios) do desenvolvimento”.
Rêgo (1995, p. 114) destaca que:
[...] A proposta do Professor Denis consiste em, superando o
unilateralismo intransigente e evitando um ecletismo inconsistente,
identificar em que medida os conflitos entre ciência e ética se
processam, aonde estão as suas causas e como elaborar uma nova
teoria do desenvolvimento da qual se possa derivar um plano de ação
mais profundo e consistente que abrigue, na justa medida, a
interação entre homem e natureza, ao mesmo tempo em que possa
promover as mudanças sociais requeridas, sem perder de vista os
interesses mais gerais da pessoa humana, relativos à dignidade do
seu existir, quer material, quer espiritualmente (grifo nosso).
Nessa linha, deve ser interpretado o
desenvolvimento sustentável, como uma
espécie do gênero ética do desenvolvimento.
Para essa linha de interpretação do
desenvolvimento sustentável, este não aceita a
privatização do meio ambiente como solução
para a crise ambiental, até porque o cálculo
realizado pelas empresas só leva em conta
aspectos mercantis, e o meio ambiente é uma
globalidade.
O desenvolvimento sustentável, assim como a ética do desenvolvimento aspiram,
não somente remediar as deficiências das estruturas existentes e dos dinamismos em vigor,
mas, também, e, principalmente, criar novas fórmulas. Nesse aspecto, Goulet (1966, p. 56-57)
destaca:
Que significa, exatamente, a valorização racional dos recursos,
visando um desenvolvimento autêntico e equilibrado? Significa
tornar os recursos do solo do ar e dos mares tão produtivos
quanto possível, levando-se em conta: as necessidades humanas, a
possibilidade de se explorar sem esgotar os recursos em causa, o
preço,a utilidade, os fins aos quais os bens se destinam, a
atualização das potencialidades latentes das riquezas de toda
espécie. É evidente que não se poderia ter uma visão estritamente
material desta valorização; antes de tudo é o sujeito humano que deve
ser valorizado graças à uma alimentação adequada, a cuidados
sanitários corretos, a uma educação apropriada, a instituições que
favoreçam seu plano de desenvolvimento em todas as dimensões
(grifo nosso).
204
205
Como bem expressa, no mesmo sentido, o nobel de economia Sen (1999, p. 44-46),
tratando da economia do bem-estar (ramo do qual a economia ambiental constitui-se em
parte) sob o enfoque utilitarista social em contraponto ao do auto-interesse:
O apoio que os crentes e defensores do comportamento autointeressado buscaram em Adam Smith é na verdade difícil de
encontrar quando se faz uma leitura mais ampla e menos tendenciosa
da obra smithiana. Na verdade, o professor de filosofia moral e
economista pioneiro não teve uma vida de impressionante
esquizofrenia. De fato, é precisamente o estreitamento, na economia
moderna, da ampla visão smithiana dos seres humanos que pode ser
apontado como uma das principais deficiências da teoria econômica
contemporânea. Esse empobrecimento relaciona-se de perto com o
distanciamento entre economia e ética [...]
As proposições típicas da moderna economia do bem-estar dependem
de combinar comportamento auto-interessado, de um lado, e julgar a
realização social segundo algum critério fundamentado na
utilidade, de outro [...] (grifo nosso).
Na sua defesa de uma convergência entre a ética e a economia, Sen (1999, p. 9495) alinha-se a Goulet na defesa de uma ética de desenvolvimento, que não se restrinja à
mera visão utilitária de progresso na sua dimensão estritamente econômica. Nesse âmbito,
afirma:
Procurei mostrar que o fato de a economia ter se distanciado da
ética empobreceu a economia do bem-estar e também enfraqueceu
a base de boa parte da economia descritiva e preditiva [...]
O uso disseminado da extremamente restrita suposição do
comportamento auto-interessado tem limitado de forma séria,
como procurei demonstrar, o alcance da economia preditiva e
dificultado a investigação de várias relações econômicas
importantes que funcionam graças à versatilidade dos
comportamentos [...] Por outro lado, ater-se inteiramente à restrita e
implausível suposição do comportamento puramente auto-interessado
parece levar-nos por um pretenso “atalho” que termina em um lugar
diferente daquele aonde desejávamos (grifo nosso).
Logo, a ambição de ampliar a
produtividade não se coaduna com a
diversidade da natureza e com seu processo
de regeneração, seja em uma visão
ecocêntrica,
seja
em
uma
visão
antropocêntrica. O uso de insumos químicos
nas plantações é um bom exemplo disso, pois
acabam por exaurir a capacidade de produção
da terra em um curto espaço de tempo,
esquecendo-se do futuro uso desta para as
outras gerações (visão antropocentrica) e para
os outros seres do ecossistema (visão
ecocêntrica).
A Constituição de 1988 adotou, dentro da perspectiva de uma ética do
desenvolvimento, como conceito de desenvolvimento sustentável, aquele que não permite
a privatização do meio ambiente, prioriza a democratização do controle sobre o meio
205
206
ambiente ao definir meio ambiente como “bem de uso comum do povo” e exige o
controle do capital sobre o meio, por intermédio de instrumentos como o Estudo de
Impacto Ambiental, e muitos outros, que chamam a comunidade a decidir. Para uma
aplicação eficiente do desenvolvimento sustentável, faz-se necessário um levantamento
da medida de suporte do ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de regeneração e
de absorção do ecossistema e se estabelece limite para a atividade econômica. Este limite
permite que as atividades econômicas não esgotem o meio ambiente, mas que este seja
protegido para o futuro.
Ressalta Derani (1997, p. 766) que: “Direito econômico e ambiental não só se
interceptam, como comportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam: buscar
a melhoria do bem-estar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo”.
Assim, a noção de desenvolvimento sustentável está intimamente ligada à proteção
ambiental das presentes e futuras gerações, razão pela qual definimos desenvolvimento
sustentável como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento das atuais gerações, sem
comprometer o meio ambiente para as gerações futuras, incluindo não apenas o aspecto
econômico, mas, também, os seus valores de beleza, harmonia e equilíbrio. Tal
desenvolvimento teria que definir medida da capacidade de suporte dos ecossistemas: em
relação a bens renováveis, a taxa de uso não poderia ser superior à taxa de regeneração (plano
de manejo); as taxas de resíduos não podem exceder a capacidade de absorção do meio
ambiente; e quanto aos bens naturais não renováveis, a taxa de uso não pode exceder à taxa de
recursos substitutos. Não podemos esquecer que a sustentabilidade sempre envolve, também,
desenvolvimento socialmente justo, com a distribuição das riquezas e do conhecimento.
206
207
4 ECONOMIA DO MEIO AMBIENTE: BUSCA DA INCORPORAÇÃO DAS
EXTERNALIDADES AMBIENTAIS
4.1 CRESCIMENTO ECONÔMICO E DEGRADAÇÃO AMBIENTAL: PROPOSTAS DE
CONCILIAÇÃO
Pepper (2000, p. 82) destaca a relação entre o desenvolvimento econômico e a
afronta ao meio ambiente como uma preocupação central do ambientalismo moderno, por
meio da parábola do biólogo Garret Hardin em artigo publicado na Revista Science. Pepper
afirma que a consideração de que o bem ecológico pode por todos ser explorado por ser
gratuito, sem limitações quantitativas e qualitativas, mostra-se extremamente prejudicial.
Goulet (1966, p. 95-96), por outro lado, ressalta a relação entre desenvolvimento e
solidariedade na coabitação do mesmo planeta:
[...] Nossa terra é única. Todos os homens ocupam-na e habitam-na. A
simbiose entre a natureza e o homem decorre da natureza dêsse: os
laços que os ligam sâo permanentes. O homem, apesar de ser distinto
da natureza, dela faz parte, de certa forma. A ocupação da terra é
destino de todos os homens e não privilégio de alguns. Aliás, essa
ocupação é ato não só do indivíduo, mas também, de grupos, de
organizações coletivas, de unidades societárias. Uma terra para todos
os homens e para tôdas as sociedades humanas. O planeta cria laços
que ligam os homens a si e entre si.
Com isso, a afronta aos recursos naturais passou a ser uma afronta contra
humanidade. Assim, esses segmentos da sociedade começaram a questionar o modelo de
desenvolvimento econômico, repudiando publicamente as suas conseqüências e reivindicando
junto a seus representantes mudanças nas políticas governamentais e no setor produtivo, como
forma de minimizar e evitar que novos danos ambientais ocorressem.
Para os economistas, por sua vez, grande parte desses problemas ambientais deviamse a uma ineficiência do mercado144 em refletir esses efeitos negativos nos preços dos bens e
serviços produzidos.
O certo é que a preocupação com os impactos adversos das atividades econômicas
sobre o meio ambiente já vinha sendo colocada, com grande freqüência, nos debates entre
economistas, à medida que esses profissionais (que, até então, se preocupavam apenas em
produzir uma quantidade crescente de bens e serviços) começaram a perceber que o meio
ambiente não conseguia mais se reproduzir na mesma velocidade em que estava sendo
destruído, muito menos processar todas as formas de lixo, conseqüência das atividades
produtivas. Em suma, esses profissionais começaram a perceber que os problemas ambientais
144
Segundo Montoro Filho ineficiência do mercado são todos os fenômenos (p. ex. danos
ambientais) que não são levados em consideração num mercado perfeitamente competitivo,
a ineficiência do mercado é também chamada de externalidade. “Os mercados falham
quando as transações num mercado produzem efeitos positivos ou negativos a terceiros, ou
seja, causam externalidades” (PINHO; VASCONCELLOS (ORG.), 1998, p. 237).
207
208
- poluição e destruição dos recursos naturais - estavam ameaçando a própria base de
reprodução do sistema produtivo.
A partir de então, várias correntes da economia vêm tentando inserir, no
funcionamento do mercado, o valor econômico da degradação ambiental como forma de
estabelecer medidas que resultem no uso sustentável dos recursos naturais.
Passados quase trinta anos da publicação do “Limites do Crescimento”, o
pessimismo mostra-se hoje bem menor. Todavia, ainda há questões e problemas que não se
podem ignorar. O crescimento econômico, principalmente nos países de terceiro mundo, foi
acompanhado de sérios problemas de poluição da água e do ar. Diversas espécies animais e
vegetais que podem ser úteis para a humanidade num futuro próximo estão ameaçadas de
extinção. Isso seria indício de que estamos fazendo algo errado? E, se positiva a resposta,
como se poderá modificar tal maneira de agir?
A teoria econômica (assim, como a filosofia, a ecologia e o direito) tenta obter
respostas para essas perguntas. O campo da economia (que aplica a teoria a questões ligadas
ao manejo e preservação do meio ambiente) é chamado de economia ambiental.
Assim, discutiremos alguns dos princípios dessa disciplina no tópico seguinte.
4.2 ECONOMIA AMBIENTAL
4.2.1 ECONOMIA AMBIENTAL E A ECONOMIA DO BEM-ESTAR
A economia do meio ambiente e dos recursos naturais apóia-se nos fundamentos da
teoria econômica neoclássica, que tem sua análise centrada na alocação ótima de recursos
pelo mercado. Essa corrente da economia, segundo Godard (1997, p. 201-202), é o resultado
do desdobramento dos conceitos de recursos naturais ou ativos naturais, efeitos externos ou
externalidades e bens coletivos, que servem de reserva para unir ao núcleo teórico neoclássico
os problemas levantados pela natureza, os quais resultam, em primeiro lugar, da dupla
confrontação do produzível e do não produzível, do mercantil e do não mercantil.
Os conceitos de que fala Godard (1997, p. 203-209) tratam de particularidades
individuais dos bens e serviços naturais, que ajudam a identificar as conseqüências de sua
apropriação pelo homem:
• Recursos naturais ou ativos naturais - designam o conjunto de bens que
não são produzíveis pelo homem. Esses recursos naturais são
classificados de renováveis e não-renováveis. Os renováveis são aqueles
que podem ser recuperados ao longo do tempo, seja por processo natural
ou pela ação humana, tais como, bens vivos (animais, plantas etc.) e a
água que se renova através do seu ciclo hidrológico. Os não-renováveis
ou recursos esgotáveis são aqueles impossíveis do homem fazer voltar à
situação anterior, ou seja, aqueles cujo estoque se encontra na terra e sua
formação só é possível de acontecer numa escala de tempo geológica.
208
209
São estes os recursos minerais (ferro, petróleo etc.). Constituem-se
fatores de produção.145
• Efeitos externos ou externalidades146 - são os danos ou beneficios
ecológicos resultantes da produção e consumo de bens e serviços, que
são impostos a terceiros (indivíduo, empresa, coletividade) sem nenhuma
compensação, e que não são considerados na formação dos preços desses
bens e serviços para sua transação no mercado.
• Bens coletivos ou bens públicos - designam os bens para os quais o
consumo ou utilização não é exclusivo (recursos naturais como a água e
o ar), ou seja, diversos agentes sociais podem consumir ou compartilhar
dos mesmos benefícios sem nenhum inconveniente. Para alguns desses
bens, constata-se uma impossibilidade, teórica ou contingente, de definir
os direitos de uso exclusivos (o titular dos direitos não pode garantir a
exclusividade do uso).
Por outro lado, retrata que o meio ambiente e o sistema econômico interagem, quer
por meio dos impactos que o sistema econômico provoca no ambiente, quer por meio da
influência que os recursos naturais, vistos como fatores de produção, causam à economia.147
A economia é disciplina que se encontra marcada pela coexistência de vários
“paradigmas”. A classificação mais freqüente distingue as escolas neoclássicas, keynesiana,
liberal e marxista. Entretanto, hoje há prevalência para a teoria neoclássica, sua base teórica
(princípios do individualismo metodológico, de equilíbrio, e mercado e de ótimo) constitui o
cerne do que se chama de “economia do meio ambiente”.
Para Tolmasquim (1998, p. 323), a análise neoclássica centra sua abordagem no
problema da alocação ótima de recursos. Para ela o sistema de mercado determina um
equilíbrio único e estável.
A economia do meio ambiente ou economia ambiental, por sua vez, continua
trabalhando com os conceitos de recursos naturais ou ativos naturais, efeitos externos ou
externalidades, bens coletivos ou bens públicos, incluindo, também, os fundamentos da
economia do bem-estar.148
145
“Fator de produção são bens ou serviços que, através do processo produtivo, são transformados em outros
bens e serviços” (PINHO, 1998, p. 631).
146
Os fundamentos da teoria padrão da externalidades de Marshall foram desenvolvidos por
Pigou, em 1920, ao classificar os efeitos das externalidades em positivos e negativos. O
efeito positivo Pigou chamou de economia externa e o negativo, de deseconomia externa.
Para as externalidades negativas ou deseconomia externas Pigou propôs que o Estado
deveria intervir no mercado cobrando uma taxa, cujo valor deveria ser igual ao valor
monetário do custo externo, que corresponde à diferença entre o custo privado (inclui todos
os custos de produção - capital, trabalho, terra e capacidade empresarial) e o custo social
(impactos ambientais adversos, resultantes das atividades econômicas) (DERANI, 1997, p.
108-109).
147
“Os recursos naturais formam a base onde se assentam todas as atividades humanas. O homem se utiliza desta
base seja como insumo para sua produção (minério de ferro para fazer o aço, p.ex.), seja para consumo in
natura (um balneário ou praia, frutas ou castanhas oriundas do extrativismo, p.ex.), seja como depósito dos
detritos originados pela própria produção ou pelo consumo dos bens produzidos e/ou coletados” (BELLIA,
1996, p. 117).
148
“Pigou (Arthur Cecil), professor de Cambridge no início deste século, desenvolveu o vasto edifício da
‘Economia do Bem Estar’ investigando os efeitos de todo um elenco de políticas econômicas, sociais e fiscais,
numa sociedade que ainda não alcançou o total planejamento sobre a renda social e sua distribuição a curto,
209
210
A economia do bem-estar, segundo Bellia (1996, p. 77), é a "parte do estudo da
economia que explica como identificar e alcançar alocações de recursos socialmente
eficientes [...] ela somente se preocupa com o conjunto de opções aberto à sociedade, que
contém as ‘melhores’ soluções possíveis de alocação de recursos". Destaca, portanto, o
surgimento de uma economia interventiva, que busca a alocação de recursos socialmente
eficientes, com compreensão das deficiências do mercado clássico.
A economia do bem-estar e a economia do meio ambiente têm em comum a
preocupação com a sociedade, com destaque, respectivamente, para os direitos sociais
(direitos de segunda dimensão) e para os direitos ambientais (direitos de terceira geração).
Ambas se desenvolveram, principalmente, na elaboração de técnica de valoração
econômica das externalidades, sendo que o objeto da economia do meio ambiente é a
externalidade perturbadora de um meio ambiente sadio.
Assim, a questão do meio ambiente, sob a ótica da economia do meio ambiente, é
apreendida em termos de alocação de bens entre agentes em função das preferências destes
últimos.
No contexto, ora proposto, os recursos ambientais desempenham funções
econômicas, entendidas como qualquer serviço que contribua para a melhoria do bem- estar,
do padrão de vida e para o desenvolvimento econômico e social. Fica, então, implícita nestas
considerações a necessidade de valorar corretamente os bens e serviços ambientais,
entendidos, estes, no desempenho das suas funções, seja de fator de produção do sistema
produtivo, seja de equilíbrio ecológico.
A ênfase, entretanto, dada pela economia ambiental relaciona-se ao primeiro aspecto
(meio ambiente como fator de produção), não obstante procure, em segundo plano, garantir o
equilíbrio ecológico.
4.2.2 Os componentes da valoração econômica ambiental
A valoração monetária do meio ambiente é considerada um componente essencial da
economia do meio ambiente, porque parte da suposição de que a "externalidade"149 pode
receber uma valoração convincente, com base na preferência do consumidor.
Pearce; Turner (1990, p. 3), tratando da evolução histórica da “economia ambiental”,
destacam que os problemas ambientais são fenômenos existentes em todos os sistemas
médio e longo prazos. Fez a importante descoberta de que é incorreto calcular os custos de produção apenas
em termos dos custos que oneram exclusivamente o produtor privado. Há, frequentemente, outros custos de
produção, como o desemprego, ou o dano à saúde dos trabalhadores, ou ruído e fumaça que invadem as
vizinhanças, que são suportados por outras pessoas. Igualmente é incorreto calcular os ganhos na produção
exclusivamente em termos de lucros privados: poderão haver lucros sociais que não cabem ao produtor que
dispendeu o capital original [...] Pigou, assim, provou definitivamente que o êxito de uma empresa, ou o
resultado da concorrência (mesmo “perfeita”, no sentido convencional), não é necessariamente vantajoso para
a sociedade” (BELLIA, 1996, p. 77).
149
“A denominação efeitos externos ao mercado é compreensível, porque se trata de transferências de bens ou
prestações de serviços fora dos mecanismos do mercado [...] sendo transferências << a preço zero >>, o preço
final dos produtos não as reflete, e por isso não pesam nas decisões de produção ou consumo, apesar de
representarem verdadeiros custos ou benefícios sociais decorrentes da utilização privada dos recursos
comuns” (ARAGÃO, 1997, p. 33).
210
211
econômicos, independentemente da ideologia política e do nível de desenvolvimento das
nações. Destaca, nesse sentido, que os então chamados países socialistas (“países do leste
europeu”) têm, também, profundos problemas ambientais, tais como a poluição hídrica dos
rios das áreas industriais polonesas e a poluição atmosférica de cidades industriais da
Tchecolosváquia.
Citando Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo, John Stuart Mill, autores da
economia e da filosofia liberal clássica, e Karl Marx, no âmbito de sua crítica ao capitalismo,
Pearce; Turner (1990, p. 4-12) destacam a existência de preocupações humanísticas
(“humanistic paradigms”) na economia neoliberal, corporificadas no critério de Pareto
(“Pareto criterion”), que representaria uma valoração social do mercado liberal clássico.
Assim, assinala que, sob o ponto de vista da economia neoliberal preocupada com o ser
humano, o mercado continua sendo significativo, devendo-se, entretanto, moldá-lo para
atingirem-se os objetivos sociais relevantes, dentre eles, o de proteção do meio ambiente.
Essa atribuição econômica de valores para o meio ambiente pode ser
representada pela seguinte fórmula (PEARCE; TURNER, 1990; BELLIA, 1996):
Valor econômico ambiental total = valor de uso + valor de opção + valor de existência
Onde, de forma sintética, podemos afirmar que:
• valor de uso (“use”) - refere-se aos bens e serviços ambientais que são
apropriados para consumo imediato. Podem ser de uso direto, quando são
resultados da exploração; ou de uso indireto, se esses bens e serviços
dependem de funções do ecossistema para serem gerados.
• valor de opção (“option”) - refere-se ao valor de uso direto e indireto
dos bens e serviços ambientais, cuja apropriação e consumo foram
deixadas para o futuro (“valor de uso para os indivíduos do futuro”),
como opção de conservar ou preservar esses bens e serviços ambientais.
• valor de existência (“existence”) - são valores atribuídos para
preservação do bem ambiental por questões morais, religiosas, culturais,
éticas etc. Independe de seu uso atual ou futuro, são valores não
determinados ou determináveis pela lógica do mercado.
Destarte, a avaliação monetária dos danos ou benefícios constitui um componente
essencial da Economia do Meio Ambiente. Na ausência de tais avaliações, a referência à
eficiência econômica e ao ótimo se tornam um ideal puramente teórico. Com efeito, pelo
princípio geral da racionalidade econômica, a economia, ciência da gestão dos recursos raros,
tem por objetivo gerir com o máximo de eficiência a fim de obter um máximo de bem-estar,
que corresponda a uma situação de “Ótimo de Pareto”.150
150
“A fim de remediar estas deficiências do mercado. Pigou em 1920 preconizava a intervenção do Estado sob a
forma de taxação das externalidades negativas. No ponto correspondente ao ótimo de Pareto, a taxa deve ser
de um valor igual ao valor monetário do custo externo, isto é, a diferença entre o custo privado e o custo
social [...] o mercado deve presidir à alocação dos custos, com a condição de ser corretamente ‘informado’”
(TOLMASQUIM, 1998, p. 326).
211
212
Como os recursos são escassos, a alocação ótima será aquela que maximiza o bemestar de produtores e consumidores, subordinada às limitações das quantidades disponíveis.
Um mercado de concorrência perfeita151 seria capaz de atender esse ótimo, pois a
maximização do bem-estar de cada um dos agentes econômicos estaria maximizando o bem
estar do conjunto da sociedade, ou seja, estaria alocando os recursos disponíveis em termos
socialmente e ambientalmente ótimos. A partir deste ponto, ter-se-á atingido o ótimo de
Pareto, quando as atividades dos agentes econômicos forem capazes de aumentar o bemestar de pelo menos um indivíduo, sem que alguém seja prejudicado (BELLIA, 1996, p.
77).
Como bem expressa o nobel de
economia Sen (1999, p. 44-46), tratando da
economia do bem-estar e do ótimo de Pareto:
A otimilidade de Pareto às vezes também é denominada
“eficiência econômica”. Essa expressão é apropriada de um ponto de
vista, pois a otimalidade de Pareto concerne exclusivamente à
eficiência no espaço das utilidades, deixando de lado as considerações
distributivas relativas à utilidade. Porém, em outro aspecto é
inadequada, uma vez que todo o enfoque da análise neste caso
continua sendo a utilidade [...] A otimalidade de Pareto capta os
aspectos da eficiência apenas do cálculo baseado na utilidade
(grifo nosso).
Na realidade, a determinação desse ótimo exige o conhecimento de duas funções: a
de custo total dos danos causados pela poluição e a de custo total da luta contra a poluição.
Ora, se os custos da luta contra a poluição podem ser calculados de modo mais fidedigno, os
outros dados, por serem externalidades negativas, não são conhecidos ou ao menos avaliados
espontaneamente pelo mercado. Por conseqüência, a ausência de uma avaliação monetária dos
danos causados pela poluição dificulta a determinação do Ótimo de Pareto.
Em economia, a noção de dano ou benefício repousa sobre a expressão das
preferências dos indivíduos: preferência para evitar uma perda (dano) ou para obter um
benefício. Essas preferências se manifestam sobre o mercado e se expressam sob a forma do
consentimento de pagar, transformando todos os valores em uma única forma de medi-lo: a
preferência do indivíduo em pagar determinado preço no mercado.152
A mensuração do valor de uso, primeira parcela do valor ambiental total não é,
portanto, simples. Mostra-se complexa, mas não torna inviável a sua utilização de forma
estimada, nem a possibilidade de avanços metodológicos nesse campo. As deficiências
devem-se ao desconhecimento da extensão e risco dos próprios impactos ambientais, que
impede a identificação de todos os custos resultantes, e à desinformação dos indivíduos, o que
reduz a percepção destes impactos.
151
“Na prática, o mercado perfeitamente competitivo é quase inexistente, em prol de outras formas, que são
dominantes, envolvendo os monopólios (um só produtor); os oligopólios (poucos produtores); os
monopsônios e oligopsônios (apenas um ou poucos compradores). Nestes casos, os agentes podem fixar
preços maiores ou menores (conforme o caso) dos que seriam os vigentes no mercado em caso de
concorrência perfeita” (BELLIA, 1996, p. 78 e 79). Como conseqüência, em uma situação que não seja de
concorrência perfeita não são alcançados os pontos ótimos de bem-estar.
152
“Economic assigned values are expressed in terms of individual willingness to pay (WTP) and willingness to
accept compensation (WTA)” (PEARCE, 1990, p. 22). “De fato, na abordagem utilitarista todos os diversos
bens são reduzidos a uma magnitude descritiva homogênea (como se supõe que seja a utilidade), e então a
avaliação ética simplesmente assume a forma de uma transformação monotônica dessa magnitude” (SEN,
1999, p. 44-46).
212
213
Outro aspecto da mensuração de valores para bens ambientais envolve a segunda
parcela – os "valores de opção". Esses correspondem ao valor relacionado ao uso potencial
de um recurso, o qual não se utiliza de imediato, porque se deseja guardar para uma
eventual utilização posterior. Nele, se encontra presente o elemento transgeracional do
direito fundamental do desenvolvimento e do meio ambiente (direitos fundamentais de
terceira geração).
Ou seja, os indivíduos dão um valor à preservação de uma floresta, de um mangue ou
qualquer outro patrimônio natural, a fim de manter aberta a opção de utilização deste recurso,
mesmo que esta hipótese seja pouco provável ou sua execução esteja longe no tempo. A essa
opção pode-se adicionar uma opção pelos outros, com motivações altruístas, que fazem com
que se confira um preço à conservação de um patrimônio para as gerações futuras (valores de
legado), ou para os outros indivíduos (valores altruístas).
Já os valores de existência (intrínsecos, por não estarem sujeitos ao uso) não são
ligados nem ao uso efetivo (primeira parcela), nem à opção de uso (segunda parcela);
eles dizem respeito ao valor conferido à existência mesma de um patrimônio ou recurso, não
levando em conta qualquer possibilidade de usufruto direto ou indireto, presente ou futuro.
Trata-se da idéia de que certas coisas têm um valor, em si, independente do uso efetivo
(valor de uso) ou potencial (valor de opção); mesmo que não se verifique nenhuma
utilidade para determinado recurso ambiental, um valor intrínseco lhe é conferido. Estar-se-á,
neste ponto, na fronteira entre a esfera econômica, que só conhece o “valor de troca e o
valor de uso” e a esfera ecológica da conservação.
O valor de existência representa, portanto, um valor não determinado ou
determinável pelo mercado, mas que nele deve ser inserido para internação de um custo
socialmente relevante.
4.2.3 Métodos de valoração econômica para determinação do “valor de uso” e de
“opção”
Podemos distinguir duas categorias de métodos de valoração monetária do meio
ambiente: os indiretos e os diretos.
Os métodos indiretos repousam sobre a utilização de um mercado de
substituição definido pela análise dos compartimentos reais: por exemplo, estima-se o valor
recreativo, atribuído pelas pessoas que usufruem das amenidades de uma floresta a partir das
despesas de transporte ou de equipamento que estes agentes aceitam pagar para ter acesso à
floresta. A hipótese aqui é que os agentes aceitam pagar até o ponto onde a inutilidade da
despesa equivale à utilidade da amenidade. Medem-se, assim, os preços inferiores ou
iguais ao valor pesquisado.
Os métodos diretos consistem na simulação de um mercado; fala-se de mercados
contingentes (geralmente pela realização de uma pesquisa utilizando um questionário, para
determinar aproximações monetárias do excedente do consumidor). Duas técnicas podem ser
utilizadas, pedindo-se às pessoas interrogadas que declarem:
• qual a soma que elas aceitariam pagar para dispor de um melhor meio
ambiente; se determina, assim, o “preço de compensação” (ganho
ambiental);
213
214
• quanto elas desejariam receber pela perda de uma amenidade; se trata
aqui de uma avaliação do “preço equivalente na renda”(perda
ambiental) (MARQUES; COMUNE, 1996, p. 41-42).
Na prática, os resultados diferem sensivelmente na adoção de uma ou de outra
técnica. A razão freqüentemente invocada tem relação com a assimetria psicológica entre os
ganhos (preço de compensação) e as perdas (“preço equivalente na renda”).
Pode-se considerar, igualmente, que a preferência pela perda ou pelo ganho da
preservação ambiental é ligada à renda disponível. Os agentes podem considerar a
manutenção das amenidades existentes com um valor quase infinito, porque não-substituível,
(noção de valor patrimonial), enquanto o consentimento de pagar para ter acesso a novas
amenidades é, a priori, limitado pela renda disponível.
Em resumo, os métodos diretos são utilizados com maior freqüência para estimar os
valores dos bens e serviços ambientais, através de informações relacionadas ao mercado ou à
manifestação da preferência do consumidor. O método indireto, por sua vez, procura valorar,
por meio de dados e informações científicas, o prejuízo que as alterações da qualidade
ambiental causam à saúde humana, bem como identificar e estabelecer a relação entre essas
alterações ambientais - resultantes da forma de apropriação e consumo dos bens ambientais e a saúde humana.
4.2.4 Críticas metodológicas e éticas à valoração ambiental
Inicialmente, podemos agrupar as críticas em dois grupos: o primeiro, vinculado à
metodologia da valoração ambiental (e às dificuldades dela decorrentes); o segundo, que
transcende as considerações econômicas quantitativas e qualitativas, apresenta outros
questionamentos de cunho ético e filosófico.
As maiores críticas em relação aos métodos de valoração ambiental estão
relacionadas justamente à sua capacidade de definir, com base na preferência do consumidor,
se um determinado bem deve ou não ser utilizado até seu total esgotamento, conservado para
uso futuro ou explorado de forma racional. E, ainda, um outro fator de suma importância é
que as decisões tomadas, na atualidade, vão atingir as gerações futuras, que estão fora
do mercado atual para manifestarem suas preferências.
Assim, em primeiro lugar, estamos falando do bem-estar de quem? Podemos
falar do incremento do bem-estar da presente geração, mas não podemos saber seus efeitos
sobre os custos que serão transferidos para as gerações seguintes. Se soubéssemos, quantas
gerações levaríamos em conta? Uma geração. Duas? Três?
Sinteticamente, podemos listar
implementação da valoração monetária:
os
principais
obstáculos
metodológicos
à
• a complexidade de certos métodos;
• a falta de dados de base;
• as incertezas devido às características inerentes a técnicas, tais como as
avaliações contingentes e indiretas;
214
215
• as dificuldades de adequação a contextos socioculturais (por exemplo, as
pesquisas sobre o consentimento de pagar são talvez melhor adaptadas ao
contexto dos países desenvolvidos e necessitam de adaptações para serem
aplicadas aos países em desenvolvimento);
• sua operacionalização real supõe, com efeito, que os agentes pesquisados
encontram um sentido para as questões, uma consciência ecológica,
ausente de boa parte da população;
• pressupõe-se ainda que os agentes digam o que pensam, em outras
palavras, sejam sinceros nas informações apresentadas.
Por outro lado, é notório que o fato de atribuir-se um valor monetário a bens não
comerciais, notadamente a fauna, a flora e a própria vida humana, suscita violentas
oposições de ordem ética e filosófica já analisadas na primeira parte deste trabalho.
Assim, a economia ambiental vincula-se a uma visão “antropocêntrica” do meio
ambiente.153 Permite, entretanto, a discussão sobre a existência de “direitos” de outras
criaturas não humanas em uma visão chamada “ecocêntrica” na noção de valor de existência,
na qual a Natureza é vista como algo que transcende ao uso das gerações (humanas) presentes
e futuras.
Entretanto, não se pode esquecer, como assinala Pearce (1990, p. 22), que a
estimativa monetária do bem ambiental, pode constituir-se, com as limitações já apontadas,
uma ferramenta poderosa e eficaz para a proteção ambiental.
Por fim, deve-se assinalar que a economia do meio ambiente, tal qual se desenvolve
atualmente, após um amadurecimento de duas décadas, não tem nem a vocação nem o poder
de resolver a totalidade dos problemas. Permite, no entanto, uma ponte de aproximação de
dois direitos fundamentais, intimamente vinculados no conceito de desenvolvimento
sustentável: o meio ambiente e o crescimento econômico.
153
Segundo Thomas (1988, p. 34-38), a idéia de dominação do homem sobre as demais crituras vem da
antiguidade. A diferenciação entre homem e animal ocorreu ao longo da história: “homem é animal que vê;
animal que fabrica utensílios; animal religioso; animal que cozinha (antecipando Lévi-Strauss); foi o bípede
implume; animal que forma opiniões; animal que carrega um bastão”.
215
216
5 USO DE INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NAS POLÍTICAS
AMBIENTAIS: INTEGRAÇÃO DO JURÍDICO E DO ECONÔMICO
5.1
INSTRUMENTOS
INTRODUÇÃO
ECONÔMICOS:
Pigou (1946, p. 25) foi o autor pioneiro na aplicação dos conceitos da
microeconomia neoclássica ao exame de questões ambientais em sua clássica obra “The
economics of welfare”, publicada em 1920, ao considerar o fenômeno das externalidades (já
desenvolvido de forma incipiente por seu Professor Alfred Marshall), verificou a tendência no
sentido da exploração predatória dos recursos naturais oriunda de uma “falta de desejo em
relação ao futuro.”
A internalização das externalidades consiste em fazer os seus responsáveis pagarem
pelos custos coletivos ou sociais que elas acarretam, corrigindo as diferenças entre o ótimo
privado e o ótimo social, constituindo uma importante atividade estatal à correção desta
diferença provocada pelo mercado.154
O uso de Instrumentos Econômicos (IE)155 na política ambiental vem ocorrendo de
forma crescente em muitos países como mecanismo para remediar as deficiências do
mercado, no que se refere à internalização das externalidades negativas; melhoria do
desempenho da gestão ambiental,156 complementação das estritas abordagens dos
instrumentos tradicionais (padrões ambientais, licenciamento e sanções legais) e aumento da
receita para prover fundos para atividades sustentáveis. Klemmer (1992, p. 54) afirma:
Os instrumentos resumidos sob este título se inscrevem na categoria
dos instrumentos econômicos que assumiram grande atualidade
política e que procuram ou bem uma melhor atribuição das escassas
margens de aproveitamento ambiental, ou então reduzir a
superexploração dos recursos ambientais através de impulsos
econômicos, isto é, através de elementos seletivos de benefícios e
154
A noção de um ótimo privado e de um ótimo público, bem como da distinção entre eles podem ser
extraídos de Pigou, cético em relação aos benefícios sociais do mercado ao demonstrar que os indivíduos
tendem a maximizar as suas satisfações presentes, na distinção feita entre o produto marginal privado
líquido e o produto marginal social líquido: “The Marginal Social Net Product is the total net product of
physical things or objective services due to the marginal increment of resources in any given use or place, no
matter to whom any part of this product will accrue ... It might happen ... that costs are thrown upon people
not directly concerned ... The Marginal Private Net Product is that part of the total net product of physical
things or objective services due to the marginal increment of resources in any given use or place which
accrues in the first instance – i.e. prior to sale – to the person responsible for investing resources there”
(PIGOU, 1946, p. 26-27).
155
Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente
poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade
ambiental (OECD, 1989, p. 12-14).
156
“A noção de gestão assume na França diversas significações. A mais antiga é técnica e se inscreve no
contexto dos procedimentos previstos para a exploração das florestas submetidas a um regime jurídico
particular, denominado ‘regime florestal’. Esta noção situa-se, portanto, na confluência da lógica profissional
dos encarregados da gestão florestal e de uma lógica administrativa estatal, que se exerce em nome dos
interesses superiores da nação” (GODARD, 1997, p. 204).
216
217
perdas (com orientação ecológica). Em outra ordem de coisas, quem
advoga por este tipo de instrumentos econômicos procura por << o
carro da ecologia diante dos poderosos bois da economia>>, para
poder movê-lo melhor e mais rapidamente (no sentido de eficiência
ecológica).
Como instrumento de correção das deficiências do mercado, o uso dos IE tem
permitido a internalização da externalidade.157 Vinculam-se, pois, a economia ambiental na
busca de meios econômicos de correção dos mecanismos do mercado.
Na realidade, o que se vem observando é que esses instrumentos têm ajudado os
governos a superar as limitações apresentadas quando da aplicação dos instrumentos
tradicionais de “comando e controle”.158
O êxito de uma política ambiental depende dos instrumentos de controle adotados
para minimizar ou eliminar os custos ambientais ou para fazer com que a unidade causadora
os assuma integralmente.
O controle direto exerce-se por meio da regulamentação legislativa e administrativa
envolvendo composição de produtos, quantidade máxima de emissão de efluentes, limites
impostos à utilização dos “bens livres”, dever de uso de equipamento anti-poluentes, dentre
outras, cujo descumprimento é sancionado por multas, interdições e fechamento de unidades
produtoras. Em outras palavras, o tradicional poder de polícia inerente à Administração
Pública.159
Um exemplo de instrumento de controle é a previsão da legislação brasileira da
necessidade de controle prévio do Poder Público para a instalação de atividades industriais,
comerciais e agrícolas. A exemplo das Leis Federais 6.830/80, 6.902/81 e 6.938/81, que
dispõem, respectivamente, sobre a implantação de industrias em áreas críticas de poluição,
criação e instalação de atividades em áreas de proteção ambiental e sobre a Política Nacional
de Meio Ambiente. Exigem, pois, licenciamento das atividades. Nesse sentido, a título de
exemplo, a Lei 6.938/81, no artigo 9º, inciso IV, estabelece ser o “licenciamento e a revisão
de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” exemplo típico de um dos instrumentos
dessa política do meio ambiente de “comando e controle”.
Inquestionável a utilidade desse mecanismo repressivo. Contudo, possui deficiências
marcantes como a de que:
157
“[...] a intervenção governamental, tão execrada pelos neoclássicos, parece ser necessária quando se trata de
problemas relacionados ao meio ambiente. Sugerem, então, a adoção de mecanismos de mercado
(instrumentos que operam como incentivos econômicos) que simulam um ‘preço’ da degradação ambiental
que os poluidores devem incorporar aos seus custos privados, ou seja, acabam por ‘internalizar’ as
externalidades” (ALMEIDA, L., 1998, p. 28).
158
Os instrumentos de regulação direta aplicados à área ambiental são também conhecidos como políticas de
“comando e controle” (C&C), uma vez que impõem modificações no comportamento dos agentes poluidores
por meio de normas de cunho restritivo pleno ou parcial, tal como: padrões de poluição para fontes
específicas; controle de equipamentos, processos e produtos e uso de recursos naturais e proibição total ou
restrição de atividades baseada em determinados parâmetros. “A tradição de aplicar está ‘filosofia’ou
enfoque (política de comando e controle) tem raízes históricas no sistema de redes de esgoto urbano e outros
programas de higiene pública do século XIX (exemplos: Reino Unido e Holanda)” (OCDE, 1989, p. 23).
159
Gasparini (1989, p. 98) conceitua como “a atribuição de que dispõe a administração para condicionar o uso, o
gozo e a disposição da propriedade e o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou
social” Freitas, J., (1995, p. 52), por outro lado, dá ênfase na função pública de harmonização de diferentes
interesses privados, afirmando que: “considerar-se-á poder de polícia como sendo qualquer restrição ou
limitação coercitiva e privativamente imposta pelo Estado à esfera de atuação privada, colimando viabilizar,
ordenadamente o convívio de múltiplos exercícios de iniciativas particulares, não raro antagônicas entre si”.
217
218
• o infrator pode contar com a possibilidade de escapar da punição;
• o sistema de multas busca coibir a prática de atos excepcionais, não deve
ser aplicado corriqueiramente, sob pena de desestímulo ao seu aspecto
preventivo e desgaste do seu aspecto punitivo;
• a aplicação de penalidade é tarefa de grande dificuldade pois, se branda,
estimula a reiterada prática de infrações, se rigorosa pode inviabilizar a
empresa.
Depois de um longo período no qual os controles diretos foram quase exclusivos,
surgem os instrumentos econômicos.
A utilização dos Instrumentos Econômicos (controle indireto do Estado) apresenta-se
como outra forma de trato da questão sob um enfoque econômico de incentivo ou de
oneração. O controle por meio das finanças públicas consiste na imposição tributária sobre as
unidades poluentes ou na concessão de incentivos fiscais aos que adotem medidas preventivas
ou corretivas da poluição. Aos agentes econômicos é indicado o custo social pelo desgaste
ambiental ocasionado por suas atividades.
Assim, a denominação de “instrumentos econômicos” e sua intervenção no mercado
econômico da oferta e da procura não devem induzir ao erro de que não se trata de forma
estatal interventiva no meio ambiente.160
Desse modo, os IE, instrumentos estatais de intervenção econômica, estão divididos
em dois grandes grupos:
• o primeiro, que atua em forma de incentivos (subsídios, isenções de
impostos e redução de carga tributária); e
• o segundo, que atua na forma de oneração (tributos, taxas e tarifas, e
licenças negociáveis ou direitos de propriedades).
5.2 INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NA
FORMA DE INCENTIVOS ESTATAIS
A implementação dos IE do primeiro grupo implica em perdas de receitas ou
comprometimento de recursos do governo. Sua aplicação pode ser feita de várias formas,
como, por exemplo, se as empresas poluidoras investirem em equipamentos de prevenção e
controle da poluição, poderão ser beneficiadas com deduções de impostos, ou dedução do
160
Instrumentos econômicos “[...] são prestações monetárias obrigatórias do direito público que o Estado cobra
para poder cumprir seus objetivos em matéria de proteção ambiental. Com respeito ao objetivo perseguido
por sua implementação, pode-se distinguir, basicamente, entre funções extra-fiscais e funções fiscais. No
caso das primeiras, os chamados direitos de intervenção, trata-se fundamentalmente de influir sobre condutas
relevantes para o meio ambiente: procedimentos, redução das emissões, repressão de produtos
contaminadores etc. Entretanto, os rótulos de <<econômico>> ou de <<mercado>> não devem induzir a erro,
visto que se trata de uma forma de administração estatal do meio ambiente”. (KLEMMER, 1992, p.55). “In
order to avoid the distortions in international trade which might result from failure to harmonize the
environment policies pursued in Member countries and to facilitate co-operation in this field [...] consists in
analysing the economic instruments with which the policies can be effectively applied. The problem of
allocating environmental costs has thus come to be recognized as a key problem, bringing together the
statement of objectives, the quest for efficiency, and in the international sphere, the harmonization project
[...]” (OCDE, 1975, p. 12).
218
219
valor dos gastos na compra desses equipamentos, ou com financiamentos subsidiados para sua
aquisição, ou, ainda, podem ser autorizadas a fazerem depreciação acelerada desses
equipamentos. As que investem em produção de energia podem receber recursos monetários a
fundo perdido, ou serem isentas de imposto de renda federal.
A OCDE constatou que esses tipos de IE estão sendo largamente utilizados pelos
países membros, o que levou aquela organização a alertar para o fato de que, nas cláusulas do
Princípio Poluidor Pagador (PPP), está previsto que os incentivos de prêmios poderiam ser
concedidos apenas em dois casos: no primeiro caso, durante o período de transição necessário
para que os agentes se adaptem à política nacional de meio ambiente; e no segundo caso,
quando a sua concessão objetiva redução dos níveis de poluição superior ao que é possível
mediante regulação direta.161
O cuidado na aplicação desse tipo de IE deve ser observado, para que sua concessão
não desvie seus objetivos, que são de reduzir os níveis de poluição. Caso contrário, os
governos podem terminar beneficiando os poluidores e favorecendo a manutenção do status
quo da poluição.
Interessante perceber a conexão desse pensamento com o que, na Economia, foi
desenvolvido por Pigou, para quem, na falha do mercado, o Estado deveria introduzir uma
subvenção ou incentivo em caso de economia externa (efeitos sociais positivos) e um sistema
de tributação em caso de deseconomia externa (efeitos sociais negativos).
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 174, ao enumerar as formas de atuação
do Estado, na condição de agente econômico, destacou a função de incentivo, nos termos do
art. 174, verbis:
Art. 174 - Como agente normativo e regulador da atividade
econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante
para o setor público e indicativo para o setor privado (grifo nosso).
Assim, o incentivo à atividade econômica é um dos princípios da ordem econômica
do Estado brasileiro e, ao contrário das anteriores formas intervencionistas ou estatizantes, de
conotação radical, processa-se moderamente, como bem assinala Bastos (1988, p. 108), ao
afirmar que o “incentivo é a mais moderada forma de presença do Estado na economia”.
Ao incentivar a atividade econômica ecologicamente correta, está, pois, o Estado, a
concretizar o princípio constitucional que fundamenta nossa ordem econômica, viabilizando a
efetivação dos valores sociais e ambientais a serem assegurados pelo Estado Democrático de
Direito.
Esta, aliás, a lição de Moreira Neto (1992, p. 419), quando afirma:
Dentro de suas respectivas competências tributárias, respeitadas as
condicionantes constitucionais do Sistema, a União, os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios poderão legislar amplamente suas
respectivas políticas fiscais de Fomento Público. É o campo da
função metafiscal do tributo; não com objetivo precípuo de
arrecadar recursos, mas de agir como instrumento de estímulo ou
desestímulo de atividades privadas, embora seja vedado o abuso desse
poder [...] As modalidades que podem assumir os incentivos fiscais
161
“A OCDE não vai muito longe na discriminação dos intrumentos adequados a executar o PPP limitando-se a
esclarecer que as medidas decididas pelas autoridades públicas para que o ambiente esteja num estado
aceitável, não devem ser acompanhadas de subsídios, que criariam distorções significativas ao comércio e
investimento internacionais” (ARAGÃO, 1997, p. 168).
219
220
não permitem uma classificação satisfatória, pelo menos até o
momento... Modalidade de muito emprego é a isenção parcial do
imposto sobre a renda de pessoas físicas ou jurídicas quando estas
aplicarem ou reaplicarem seus recursos, direta ou indiretamente, em
certas atividades econômicas.
Assim, o Estado reconhece o esforço do cidadão em comportar-se positivamente, em
cumprir a lei ambiental ou ir além dos parâmetros nela previstos (comportamento positivo
seria recompensado) e não apenas castiga o comportamento negativo; tributa-se menos ou não
se tributa – a título de prêmio – quem não polui ou polui relativamente pouco. É essa doutrina
recompensatória que justifica, em geral, os incentivos fiscais e os incentivos fiscais “verdes”,
tornando-os compatíveis com o princípio da igualdade.
Portanto, o objetivo do incentivo estatal econômico é muito semelhante ao da
oneração estatal, sendo a outra “face da mesma moeda” de orientar a atuação dos agentes
econômicos para a proteção ambiental.
5.3 INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NA FORMA DE ONERAÇÕES ESTATAIS
Quanto à aplicação dos IE e seu papel de complementaridade em relação aos
instrumentos tradicionais de “comando e controle”, a que se refere o segundo grupo (tributos,
taxas e tarifas, certificados, licenças negociáveis ou direitos de propriedades), deve-se
destacar a posição de Klemmer (1992, p. 54), pois, na prática, a função primordial dos:
[...] gravames com caráter extrafiscal é reguladora. Transformam-se
em instrumento do controle microeconômico, consistindo o seu
objetivo geralmente em reduzir as emissões por complexo industrial
unitário. Servem, amiúde, de instrumentos complementares de uma
acelerada implementação de medidas jurídicas, ou então servem para
compensar déficits na sua execução.
Assim, constata-se que esses mecanismos influenciadores do mercado permitem
uma integração das dimensões jurídica (dever ser) e econômica (ser) do meio ambiente.
As onerações estatais consistem em mecanismos de cobrança, aplicados diretamente
sobre o nível de poluição que excede ao padrão estabelecido, ou também sobre o uso de um
recurso natural acima do permitido. Sua aplicação é viabilizada através de um imposto, taxa,
contribuição, multa ou tarifa previsto em lei, cujo valor pode ser calculado com base nos
efeitos ecológicos de certos usos de recursos naturais ou nas emissões realizadas por
processos industriais.
No caso das emissões de poluentes hídricos, a aplicação de tributação:
[...] tem sido usada em países como Alemanha, França, Noruega,
Suécia, etc, onde cada indústria poluidora é taxada pela contaminação
provocada pelos efluentes líquidos industriais que despeja nos rios. O
controle é rígido e o valor é considerável. Na França, a tributação é
um desdobramento natural da legislação que existe desde 1964, e as
indústrias podem optar entre pagar taxas equivalentes à poluição real
que provocam, ou pagar por estimativa. Normalmente os agentes
preferem pagar exatamente o equivalente à sua poluição, o que os leva
220
221
a pagar também por seu controle. As cargas poluentes são
classificadas conforme sua toxidade numa medida equivalente
denominada equitox, que serve de base para o cálculo do valor do
imposto a ser pago pelo poluidor (BELLIA, 1996, p. 200).
Logo, as taxas e tarifas162 têm sido utilizadas principalmente como instrumentos
complementares de gestão, visando implementar o princípio do poluidor pagador.
Segundo Martín Mateo (1998, p. 55):
El principio << el que contamina paga...>> constituye uma auténtica
piedra angular del Derecho Ambiental. Su efectividade pretende
eliminar las motivaciones económicas de la contaminación, aplicando
a la par los imperativos de la ética distributiva. Se adoptó por la CEE
em 1973 y antes lo fue por la OCDE el 26 de mayo de 1972. La
aplicación de este principio pretende evitar em primer lugar que se
produzcan daños ambientales, es decir, imponiéndose que se pague
para no contamnar, lo que ordinariamente venía sucediendo com la
tasa de recogida de basuras domésticas o com el canon de
saneamiento incorporado al recibo del agua, y em el supuesto de que
éstos hayan llegado a materializarse, que se remedien, o que se
compensen, y que se sancione em su caso a los autores.
Conforme enfatiza Aragão (1997, p. 132), saber, em cada caso concreto, quem é o
poluidor, nem sempre é tarefa fácil:
Quando a poluição ocorra no decurso do processo produtivo de um
bem, e em consequência do processo produtivo dele, o poluidor será
certamente o produtor do bem, mas se é o produto em si mesmo que é
poluente (pela sua composição, pelo tipo de utilização que
normalmente lhe é dada, ou pela sua deterioração enquanto resíduo)
ou ainda no caso de tanto o processo produtivo como o produto ou
processo consumptivo serem simultaneamente poluentes.
O uso de taxas e tarifas, apesar das dificuldades de sua implementação, pode permitir
que a cobrança venha a ter maior incidência sobre as classes de renda mais alta, contribuindo,
também, para evitar acentuação das distorções sociais. Um outro ponto favorável à utilização
desses IE é que a cobrança de taxas e de tarifas permite não só internalizar os custos
ambientais nos custos privados de produção e consumo, mas também viabilizar um controle
ambiental com custos mais baixos, com maior eficiência e, ainda, induzir a mudanças
tecnológicas, tanto no processo produtivo, quanto na redução do consumo de bens e serviços
ambientais.
Como espécie sui generis de oneração estatal figuram as licenças negociáveis. São
cotas, permissões ou tetos de poluição, estabelecidos pelo órgão ambiental para uma
determinada área ou região. A definição de tipos de licenças negociáveis exige que o órgão ou
instituição, responsável pelo controle da qualidade ambiental, estabeleça um nível de padrão
de qualidade a ser alcançado, de acordo com o total de emissão de poluentes a serem
permitidos para aquela área ou região. Posteriormente, o total dessas emissões é dividido e
162
Taxas têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, serviço público específico e divisível,
prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Tarifa é utilizada quando o preço é apresentado em forma
de tábua, catálogo, pauta, lista, tabela, ou qualquer exposição em que se fixem quotas que originam “preços
públicos”. As taxas e tarifas teoricamente diferem uma da outra, no entanto, na economia ambiental são
consideradas como palavras sinônimas. Esse estudo será retomado de forma mais detalhada na última parte
deste trabalho quando se analisar a natureza jurídica da cobrança pelo uso da água.
221
222
levado ao mercado para serem negociadas, ou são concedidas gratuitamente aos poluidores
localizados na área ou região pelas autoridades competentes.
De posse dessas licenças, os poluidores passam a ter o “direito”, reconhecido pelo
Estado, de poluir por um determinado período aquela área que foi previamente definida, ou
poderão utilizar essas licenças a qualquer momento no mercado, para negociar, vender ou
comprar de outros detentores do direito de propriedade, sem interferência do governo,
seguindo apenas as regras pré-estabelecidas no período de sua aquisição.
De acordo com Bellia (1996, p. 204), essa abordagem apresenta um baixo custo
operacional para o governo, estabelecendo um mercado de licenças de poluição.
As licenças negociadas têm sido utilizadas, dentre outros países, nos Estados Unidos,
Alemanha, Canadá e Austrália. “O que fica evidente da experiência dos EUA é que as
licenças devem ser sempre introduzidas como complemento às regulações diretas e não como
alternativas a esta” (ALMEIDA, L., 1998, p. 11).
No caso brasileiro, podia-se considerar, ainda, pouco significativo o uso de
instrumentos econômicos na política ambiental. Destaca-se, porém, contemporaneamente,
a iniciativa da cobrança pelo uso de água, nos termos da política nacional de recursos
hídricos, estabelecida pela Lei 9.433/97, conforme análise a ser feita na Quarta Parte
deste trabalho.
222
223
PARTE III
O PAPEL NORMATIVO
DO ESTADO REGULADOR:
SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E
ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE
O valor do meio ambiente na ecologia e na economia. Críticas de cunho ético às
posturas utilitaristas do meio ambiente. O direito como instrumento social de
formação e controle do mercado na proteção ambiental. A necessidade de integração
normativa das esferas social, econômica e ecológica no desenvolvimento sustentável.
“Há três tipos de governo: o que faz
acontecer, o que assiste acontecer e o
que nem sabe o que acontece”.
George Santayana
“O dia, a água, o sol, a lua e a noite –
coisas que não tenho de comprar com
dinheiro”.
Plauto
223
224
1 O VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA
1.1 O VALOR E SUAS CARACTERÍSTICAS NA ONTOLOGIA AXIOLÓGICA DE
JOHANNES HESSEN
Todos os homens valoram. Conforme afirma Hessen (1967, p. 40): “Todos nós
valoramos e não podemos deixar de valorar. Não é possível a vida sem proferir
constantemente juízos de valor. É da essência do ser humano conhecer e querer, tanto como
valorar”.
O que significa, porém, dizer que alguma coisa tem valor? Hessen (1967, p. 40-42)
responde que determinados bens nos parecem valiosos por satisfazerem determinadas
necessidades elementares da vida. Assim, água, pão, vestuário, saúde, etc. são valores
positivos, que nos parecem valiosos por satisfazerem determinadas necessidades humanas.
Entretanto, a esfera de valores não se cinge a estes. Há, segundo Hessen (1967 p. 42),
outros valores chamados éticos, estéticos e religiosos, que também satisfazem necessidades
não vitais mas espirituais; não do homem externo, mas do homem interior, verbis:
[...] Poderemos dizer: valor moral é tudo aquilo que satisfaz as nossas
necessidades ou exigências morais; valor estético ou religioso tudo
aquilo que satisfaz as nossas necessidades ou exigências estéticas ou
religiosas. Mas ao mesmo tempo, dizendo isto, é aqui que se nos
revela como, no fundo das coisas, é afinal insuficiente aquela
determinação que fizemos do conceito de valor. Na verdade, nela não
se diz em que consiste o conteúdo daqueles valores; diz-se
simplesmente que eles produzem determinados efeitos. Por outras
palavras: o objecto daquela determinação deu-nos apenas a noção do
seu efeito psíquico mas não da sua essência.
[...] Se fazemos a afirmação: <<alguma coisa tem valor>>, teremos
proferido um juízo de valor. Um <<juízo de valor>> (Werturteil) é,
porém, diferente de um juízo de existência ou de essência
(Seinsurteil).
Assim, ao afirmar que os valores buscam a satisfação das necessidades do homem
externo e do homem interno, expressam-se, segundo Hessen (1967, p. 42-44), os “efeitos”
daqueles valores, mas não a sua “essência”.
Nessa abordagem, Hessen (1967, p. 47) define valor como “a qualidade de uma
coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um sujeito dotado de uma certa consciência
capaz de a registrar”.
Assim, metodologicamente, Hessen utiliza a palavra “valor”, em um sentido
subjetivo, se “x” tem valor, tem valor para alguém. Valor, nessa visão, torna-se algo existente
para um certo sujeito.
Poder-se-ia, indevidamente, imaginar que Hessen adota posição subjetiva e relativa
dos valores. No entanto, não se trata de posição relativista pura do valor, para Hessen (1967,
p. 54); o valor refere-se não ao indivíduo (visto concretamente em um determinado ser), mas
ao gênero homem (sujeito abstrato). Procura, dessa maneira, mitigar a noção de que se filia ao
224
225
subjetivismo axiológico, ao mesmo tempo em que evita o objetivismo radical de Nicolas
Hartmann.
Trata, pois, de destacar o aspecto referencial do valor e não uma visão relativista do
mesmo. No mesmo sentido, Ruyer (1969, p. 78) assinala que é impossível descrever o valor,
abstraindo-se de um sujeito, verbis:
[...] En este sentido preciso el valor es subjetivo. Un ideal, es el ideal
de um sujeto. El valor o la forma de um objeto precioso, se aprehende
por um sujeto. La gracia o la belleza de uma actitud, lo cómico de
uma situación, la rectitud de um razonamiento, la utilidad de um
material, deben ser captadas por um sujeto.
Com relação à diferença entre o valor depender de um sujeito e ser arbitrário, Ruyer
(1969, p. 81) afirma:
[...] Un cuadro o un disco no pueden existir axiológicamente sino em
la consciencia del artista o de su público, pero esto no quiere decir
que su valor pueda ser decretado arbitraria o convencionalmente. El
valor no puede sino definirse em uma subjetividad, sin ser
“subjetivo”em el sentido de “arbitrario’, “convencional”, “falso”o
“irreal”. El valor puede implicar siempre uma relación sujeto-objeto
o sujeto-ideal o sujeto-sujeto sin ser por ello mismo relativo. El amor
exige al menos dos personas; la admiración por la obra de um pintor,
dos personas y uma cosa y em este sentido es “relación”,pero no se
debe jugar com la palabra concluyendo que ela también es siempre
relativa.
Afirma Ruyer, como Hessen, portanto, que o valor é atributo relacional. A realidade
do valor não pertence nem ao sujeito, nem ao objeto, pertence ao sistema de interação: sujeito
-> objeto -> escala valorativa (idéia do valor).
Ao relacionar valor e ser e tratar da realização do valor na Cultura, esclarece Hessen
(1967, p. 57-58) que os valores nunca são “ens in se”, mas “ens in alio”, verbis:
[...] Não consiste num ser em si mesmo, mas num ser que está noutro
ser. Assim, por exemplo, um valor estético converte-se em existencial
no quadro do pintor; o valor ético, na acção do homem virtuoso. O
quadro do pintor passa então a chamar-se <<belo>>; a acção do
homem, chamar-se <<boa>>. Isto é: os valores, portanto, só podem
tornar-se existenciais sob a forma de qualidades, características,
modos de ser. Não possuem um ser independente, mas são de certo
modo <<trazidos>>, <<sustentados>> pelos objectos nos quais se
realizam; estes objectos tornam-se seu <<suporte>>. As coisas são
então <<portadoras>> dos valores (Wertträger).
Assim Hessen diferencia a ordem ontológica da ordem axiológica.
Destaca, na construção da ontologia dos valores, outros aspectos intrínsecos da
ordem axiológica, relevantes para o presente trabalho: a estrutura polar do valor (oposição
entre valores positivos e negativos) e sua estrutura hierárquica (os valores admitem graus intra
e intervalorativos):
[...] Há valores que estão mais alto que outros. Não só dentro da
mesma classe, como entre as diferentes classes de valores, há
distinções a estabelecer e preferências a atribuir. Por exemplo, o
heroísmo da renúncia e o sacrifício de si mesmo valem eticamente
225
226
mais que uma simples pequena transformação moral. Todos nós
falamos em valores menos nobres e em valores mais nobres. Todos
sabemos que os valores sensíveis são inferiores aos valores espirituais.
Todos falamos do <<primado do espiritual>>. E ainda dentro dos
últimos, dos espirituais, nem todos são iguais em dignidade. Ninguém
duvida de que, por ex., os valores éticos são superiores aos estéticos
(HESSEN, 1967, p. 61).
No presente trabalho, metodologicamente, utilizaremos da ontologia dos valores de
Hessen, para buscar compreender o meio ambiente como valor para o “homo economicus”
(valor na Economia) e para o “homo sapiens” (valor na Ecologia), não obstante com
diferentes graus hierárquicos para cada uma das ciências a eles relacionadas.
Aqui estaremos analisando, conseqüentemente, duas óticas de valoração: a
econômica e a ético-ecológica, de forma simplificada, uma vinculada ao “homem externo”
(“residem na esfera do vital”) e a outra, ao “homem interior” (“residem na esfera do
espírito”), respectivamente.163
1.2 ECONOMIA E ECOLOGIA: DUAS CIÊNCIAS AFINS COM VALORAÇÕES
DIVERSAS PARA O MEIO AMBIENTE NO TRATAMENTO DO EFEITO ESTUFA
1.2.1 Ecologia e economia: conceitos afins com pautas valorativas distintas
A “ecologia” e a “economia” dirigem-se ao mesmo objeto no plano teórico, não
obstante com diferentes finalidades.
O prefixo grego “eco”, existente em ambas, provém do radical “oikos” (casa). Dahl
(1999, p. 13) afirma:
Economia e ecologia, palavras para dois dos conceitos fundamentais
da sociedade moderna, partilham a mesma raiz grega, oikos, que
significa <<casa>> ou habitat. A economia refere como administrar a
nossa casa, a ecologia como conhecê-la ou compreendê-la. Esta
unidade de raízes da palavra também reflecte uma unidade subjacente
de objectivo e função que devia ligar a ecologia e a economia.
O objetivo delas, de forma macro, vincula-se ao bem da humanidade. Dirigem-se,
portanto, à realização de valores humanos.
No plano prático, entretanto, há sérias divergências nas concepções econômicas e
ecológicas. Este abismo entre a Economia e a Ecologia constitui-se em sintoma de disfunção
da sociedade moderna, que ameaça o próprio futuro da humanidade.
Dahl (1999, p. 13), nesse aspecto, assinala:
163
“Simplesmente, isto não é tudo. Já atrás aludimos a certos outros valores chamados éticos, estéticos e
religiosos. Ora será a definição que acabamos de dar aplicável também a eles? Será aplicável aos valores que
residem, não já na esfera do <<vital>>, da natureza, mas na do espírito, do espiritual? Sem dúvida – podemos
responder. É evidente que por meio destes valores espirituais se satisfazem também necessidades; não
necessidades vitais, mas espirituais; não do homem externo, mas do homem interior” (HESSEN, 1967, p.
42, grifo nosso).
226
227
[...] Contudo, na prática, cada disciplina vive num mundo bastante
separado, falando uma linguagem diferente, aplicando diferentes
princípios, começando por leis subjacentes muito diferentes e
reflectindo muitas vezes paradigmas em conflito.
No âmbito da Economia, de forma prática e simples, Dahl (1999, p. 13-14) ressalta
que as crises econômicas atuais demonstram a imperfeição da nossa compreensão e
administração dos sistemas econômicos. Destaca, pois, a vinculação da má gestão da
Economia com a pobreza, o desemprego e o fosso crescente entre as nações ricas e pobres.
A ecologia, para enfrentar os problemas globais, por outro lado, segundo Dahl (1999,
p. 14), especifica outro conjunto de questões por meio do movimento ambiental e do trabalho
científico, expondo problemas tais como os efeitos da poluição na saúde, dano da camada de
ozônio e o efeito estufa que ameaçam provocar um aquecimento global.
A chamada “Era de Ouro” 164 da economia do século XX do historiador Hobsbawm
(1995, p. 257), época do crescimento da economia mundial a uma taxa explosiva (décadas de
50 e 60) foi, também, a era das trevas para os ecossistemas ambientais:
Mal se notava ainda um subproduto dessa extraordinária explosão,
embora em retrospecto ele já parecesse ameaçador: a poluição e a
deterioração ecológica. Durante a Era de Ouro, isso chamou pouca
atenção, a não ser de entusiastas da vida silvestre e outros protetores
de raridades humanas e naturais, porque a ideologia de progresso
dominante tinha como certo que o crescente domínio da natureza pelo
homem era a medida mesma do avanço da humanidade. A
industrialização nos países socialistas foi por isso particularmente
cega às conseqüências ecológicas da construção maciça de um sistema
industrial algo arcaico, baseado em ferro e fumaça. Mesmo no
Ocidente, o velho lema do homem de negócios do século XIX. “Onde
tem lama, tem grana” (ou seja poluição quer dizer dinheiro), ainda era
convincente, sobretudo para construtores de estradas e
“incorporadores”imobiliários, que descobriram os incríveis lucros a
serem obtidos numa era de boom secular de especulação que não
podia dar errado.
Na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento – UNCED,
em 1992, governos representados por mais de cem chefes de Estado adotaram, mais uma vez,
o “desenvolvimento sustentável” como tema central de ação no século XXI, integrado no
plano de ação global – Agenda 21.
Desenvolvimento sustentável enseja, pois, a integração da Economia e da Ecologia.
Entretanto, há sérias dificuldades para a conjugação destas ciências por razões
metodológicas e valorativas. Dahl (1999, p. 25) afirma:
Os economistas gostam de medir tudo em termos monetários. Se se
pode comprar ou vender, tem um valor, e assim é dentro do escopo da
164
Cf. HOBSBAWM, (1995, p. 29-219, 223-390, 393-562), respectivamente tratando de “A era da catástrofe”;
“A era de ouro” e “O desmoronamento’.
Para Hobsbawm (1995), a história do século XX poderia ser dividida em três eras. A primeira, a da catástrofe,
marcada pelas duas grandes guerras, pelo crescimento do socialismo e pela crise econômica de 1929. A
segunda, referida na citação, relaciona-se à era de ouro, décadas de 50 e 60 que, viram a viabilização e a
estabilização do capitalismo, responsável pela promoção de uma extraordinária expansão econômica e de
profundas transformações sociais. A última era, denominada do “desmoronamento’, vincula-se à queda das
instituições que previnem o barbarismo contemporâneo.
227
228
economia. Isto leva a medições como produtividade, investimento de
capital, valor acrescentado, depreciação e a índices mais amplos de
sucesso na fileira moderna das nações, tal como Produto Nacional
Bruto (PNB – uma medida padrão da actividade económica), Produto
Interno Bruto (PIB) ou rendimento per capita.O problema é que
muitas coisas não podem ser medidas em termos monetários, como a
satisfação humana, a cultura, a beleza natural, a igualdade, o bairro
seguro, ou o privilégio de respirar ar puro. Uma vez que a economia
não pode facilmente ser aplicada a tais coisas, são tratadas como
externalidades, o que significa que são ignoradas pelos sistemas
econômicos tradicionais de contabilidade.
Soros (1998, p. 85), economista húngaro, dono de imensa fortuna obtida no mercado
de capitais do mercado globalizado, afirma sobre a metodologia da Economia que:
[...] Em termos gerais, consideram-se apenas as preferências
individuais, ignorando-se as necessidades coletivas. Assim, todo o
campo social e político não é levado em conta (grifo nosso).
Nesse sentido, resgatando a ontologia de Hessen e a estrutura polar do valor,
observa-se como um valor para a Economia (exploração dos recursos naturais), pode ser
um desvalor para a Ecologia. A exploração dos recursos naturais possui valor positivo para
a Economia e, simultaneamente, valor negativo para a Ecologia.
Nesse aspecto, para corroborar a assertiva anterior, far-se-á breve análise da questão
do aquecimento global, tema relacionado diretamente com o desenvolvimento (um dos
valores supremos da Economia) e com a preservação ambiental (um dos valores supremos da
Ecologia).
1.2.2 O efeito estufa (aquecimento global) para a economia e para a ecologia
1.2.2.1 O efeito estufa (aquecimento global): conceituação e problemática
A radiação solar compreende radiações luminosas (luz) e radiações caloríficas
(calor). Nestas sobressaem as radiações infravermelhas. As radiações luminosas são de
pequeno comprimento de onda e atravessam facilmente a atmosfera. Ao contrário, as
radiações infravermelhas (radiações caloríficas) são de grande comprimento de onda e têm
mais dificuldades em atravessar a atmosfera.
O efeito estufa constitui-se em termo aplicável ao papel que desempenham certos
gases como o vapor da água, o dióxido de carbono, o metano, o óxido nitroso, os
clorofluorcarbonatos e o ozônio, presentes na atmosfera, no aquecimento da superfície
terrestre. Esses gases formam camada que impede a dispersão no espaço das radiações solares
refletidas pela Terra, em efeito semelhante ao que produz o vidro das estufas destinadas ao
cultivo de plantas, razão pela qual o fenômeno, na língua inglesa, é denominado de
“greenhouse effect”.
A atmosfera, tal como o vidro da estufa, sendo pouco permeável a esssas radiações,
constitui barreira, dificultando a propagação para grandes altitudes. Parte das radiações
228
229
solares é por ela absorvida e outra é reenviada, por reflexão (contra-radiação), para as
camadas mais baixas, onde se acumula e faz elevar a temperatura.
O vapor da água, o dióxido de carbono, os óxidos de azoto, o metano e o as
partículas sólidas e líquidas constituem os elementos fundamentais dessa barreira, já que são
eles os principais responsáveis pela absorção e reflexão da radiação terrestre.
Conforme afirma Paterson (1996, p. 9), o efeito estufa é um fenômeno natural, no
qual certos gases na atmosfera mantêm a temperatura da Terra significativamente mais alta do
que seria sem eles. Os principais gases envolvidos em tal processo são o vapor da água, o
dióxido de carbono (CO2), os clorofluorcarbonatos (CFCs), o metano (CH4) e o óxido de
nitrogêncio (N2O). Esses gases permitem que a radiação solar ultrapasse a atmosfera, mas eles
absorvem os raios de baixa freqüência e longo comprimento de onda oriundos da superfície
da Terra.
A chamada “Era de Ouro” da economia do século XX do historiador Hobsbawm
(1995, p. 257) foi uma época de energia fóssil barata, causadora do efeito estufa devido à
liberação do gás carbônico:
[...] O fato de o consumo total de energia ter disparado – na verdade
triplicou nos EUA entre 1950 e 1973 [...] está longe de surpreender.
Um dos motivos pelos quais a Era de Ouro foi de ouro é que o preço
do barril de petróleo saudita custava em média menos de dois dólares
durante todo o período de 1950 a 1973, com isso tornando a energia
ridiculamente barata, e barateando-a cada vez mais [...] Contudo, as
emissões de dióxido de carbono que aqueciam a atmosfera quase
triplicaram entre 1950 e 1973, quer dizer, a concentração desse gás na
atmosfera aumentou quase 1% ao ano [...] A produção de
clorofluorcarbonos, produtos químicos que afetam a camada de
ozônio, subiu quase verticalmente. No fim da guerra, mal eram
usados, mas em 1974 mais de 300 mil toneladas de um composto e
mais de 400 mil de outro eram liberadas na atmosfera todo ano [...] Os
países ricos do Ocidente naturalmente eram responsáveis pela parte do
leão nessa poluição, embora a industrialização extraordinariamente
suja da URSS produzisse quase a mesma quantidade de dióxido de
carbono que os EUA.
O aumento do percentual desses gases acarretou mudança no clima do planeta.
Assim, tem havido aumento da temperatura média anual, o que afeta todo o planeta e todos os
seres componentes da biosfera.
Nesse aspecto, Dahl (1999, p. 62) afirma:
A civilização ocidental depende enormemente de combustíveis fósseis
como fonte energética primária para a indústria, transporte e vida
urbana [...] A libertação de dióxido de carbono proveniente do
consumo dos combustíveis fósseis está a ameaçar mudar o clima nos
decênios vindouros com conseqüências imprevisíveis e desastrosas
para muitas áreas desabitadas.
O problema do “efeito estufa” ou do “aquecimento global” tem tantas implicações
sociopolíticas que se tornou tema frequente em nível da imprensa mundial, bem como assunto
de negociação política à escala planetária.165
165
“Global warming emerged as a significant global political issue in 1988. NASA scientist James Hansen’s
statement to the US Congress that ‘it is time to stop waffling so much. We should say that the evidence is
229
230
Cientificamente, não há dúvida nenhuma de que o crescimento exponencial das
atividades do homem, com início na época imediatamente anterior à revolução industrial, é o
principal fator do acréscimo de gases com efeito de estufa como o dióxido de carbono, o
metano, o óxido de nitrogênio e os clorofluorcarbonetos.
O Barão Jean Baptiste Joseph Fourier foi reconhecido como a primeira pessoa a
argumentar sobre o efeito estufa e a sugerir que a atmosfera era de fundamental importância
na determinação da temperatura da Terra. Conforme assinala Paterson (1996, p. 17), tal
assertiva foi feita em 1827 no estudo de termodinâmica desenvolvido por ele.
A própria ciência da meteorologia, estudo científico da atmosfera da Terra, originouse da preocupação humana com o clima e com a atmosfera. Assim, os meteorologistas
começaram a cooperar internacionalmente, reconhecendo que suas medições seriam muitas
vezes mais eficientes se fossem conectadas entre si. Nesse sentido, como assinala Paterson
(1996, p. 18), em 1872 foi proposta a criação da Organização Internacional de Meteorologia
(International Metereology Organization – IMO).
Nos anos imediatamente anteriores à segunda guerra mundial, dois avanços
tecnológicos contribuiram enormemente para o aumento da cooperação metereológica a nível
internacional: a aviação civil e o desenvolvimento de satélites (PATERSON, 1996, p. 21).
Em 1975, cento e trinta dos cento e trinta e cinco países membros das Nações Unidas
participavam de um sistema mundial de medição meteorológica. Esses desenvolvimentos
culminaram com a organização da primeira conferência mundial sobre o clima em Genebra.
Essa Conferência elaborou uma Declaração da qual consta que: “Todas as nações deveriam
preocupar-se com as possíveis conseqüências da ação humana sobre o clima” (PATERSON,
1996, p. 28).
A discussão política sobre o aquecimento global e a ação antropogênica causadora
deste desenvolveram-se, gradualmente, a partir dos anos oitenta, especialmente em 1988, com
a inundação ocorrida nos EUA.
Em Novembro de 1988, no Congresso Mundial sobre o Clima e o Desenvolvimento
ocorreu em Hamburgo na Alemanha, foi determinada a necessária redução, em trinta por
cento das emissões de dióxido de carbono em 2000 e de cinqüenta por cento em 2015
(PATERSON, 1996, p. 35).
De acordo com Denis–Lempereur (1995, p. 125), a ação antropogênica causadora do
efeito estufa bem se caracteriza na atividade industrial, verbis:
A indústria é responsável, nomeadamente, pelos 3,5 mil milhões de
toneladas de gás carbônico que todos os anos são lançados na
atmosfera, contribuindo assim para acentuar o efeito de estufa. Ela
lança igualmente 89 milhões de toneladas de óxido de enxofre por
ano, 84 milhões de toneladas de metano, 30 milhões de tonelada de
óxido de azoto, 26 milhões de toneladas de hidrocarbonetos, 23
milhões de toneladas de partículas, 7 milhões de toneladas de
amoníaco, 1,2 toneladas de clorofluorcarbonetos (CFC). Embora a
pretty strong that the greenhouse effect is here” (PATERSON, 1996, p. 1). “Sobre a resposta a essa crise
ecológica que se aproxima, só três coisas podem ser ditas com razoável certeza. Primeiro, que deve ser mais
global que local, embora claramente se ganhasse mais tempo se se cobrasse à maior fonte de poluição global,
os 4% da população do mundo que habitam os EUA, um preço realista pelo petróleo que consomem”
(HOBSBAWM, 1995, p. 548).
230
231
maior parte das emissões venha do hemisfério Norte, a sua acção
estende-se a todo o Planeta.
Portanto, a indústria e o seu largo desenvolvimento, ao longo da segunda metade do
século XX, é o principal fator relacionado ao efeito estufa, o que permite a correlação entre o
crescimento econômico (economia) e o efeito deletério do efeito estufa dela decorrente para
os ecossistemas terrestres.
1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia
Do ponto de vista ecológico, o constante acréscimo de temperatura, trazido pelo
efeito estufa, constitui um desvalor para os ecossistemas existentes.
Becker (1999, p. 10), Diretor da ONG Sierra Club, assinala, de forma contundente
que:
A raça humana está engajada na mais ampla e perigosa experiência da
história – uma experiência para ver o que irá acontecer com a nossa
saúde e com a saúde do nosso Planeta quando fizermos alterações
drásticas no nosso clima. Isto não é parte de uma pesquisa científica
controlável. Isto é um experimento incontrolável cujo objeto é a Terra,
o qual põe em risco o futuro dos nossos filhos.
Enfatizando os fundamentos científicos de tal preocupação, esse autor destaca que
mais de dois mil e quinhentos cientistas, participando do Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas – “Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC”, concluíram
que há evidente influência nociva do homem no clima mundial e que o aquecimento global,
ocasionado pelo homem está ocorrendo muito mais rápido do que em qualquer outro período
da história (BECKER, 1999, p. 10).
Especificamente, diante da crise ecológica decorrente do crescimento desregulado
das sociedades capitalistas, Habermas (1980, p. 58-59) afirma o seu respeito e sua
preocupação com o aquecimento global, que deve ser visto como limitação à atividade de
produção:
Entretanto, com pressupostos otimistas, uma absoluta limitação do
crescimento pode ser declarada (se não, para o tempo próximo,
precisamente determinado) : a saber, o limite da habilidade ambiental
de absorver calor do consumo de energia. Se o crescimento
econômico é necessariamente acoplado ao crescente consumo de
energia e se toda energia natural é transformada em energia
economicamente útil por última instância liberada com calor (isto se
aplica ao conteúdo total de energia e não apenas à porção perdida na
produção e transformaçao), então o crescente consumo de energia
precisa resultar, a longo prazo, num crescimento de temperatura
global.
Analisando o aquecimento global de forma antropocêntrica (centrada na preocupação
exclusiva com o homem) e ecocêntrica (centrada na preocupação com todos os elementos do
ecossistema), o IPCC e a Organização Mundial de Saúde, na visão de Becker (1999, p. 1012), apontam as seguintes conseqüências negativas para o homem e para o ecossistema:
231
232
• Ondas de calor tão grandes ou maiores que as ocorridas em 1995 no
verão americano;
• Aumento das doenças infecto-contagiosas (dengue, malária dentre
outras). Com o aumento da temperatura mais mosquitos e roedores
poderão adentrar em novas áreas, infectando mais pessoas. BECKER cita
como exemplo surto de dengue ocorrido no estado-americano do Texas
em 1995;
• Elevação dos mares com o derretimento das calotas polares e com a
expansão da forma líquida da água existente no planeta (as formas
gasosas (vapor da água) e sólidas (gelo) da água tendem a se converterem
na forma líquida).
Para enfrentar esse problema, as soluções apresentadas para preservação do
equilíbrio atual dos ecossistemas devem enfatizar a melhoria da eficiência energética com o
menor consumo de combustíveis fósseis, o que, para Becker (1999, p. 13-14), não acarretaria,
necessariamente, redução da atividade econômica, mas, sim, a racionalização com o uso de
tecnologias menos poluentes.
1.2.2.3 O maior valor do crescimento econômico em relação à externalidade
“efeito estufa” para a economia americana
No âmbito econômico, entretanto, a diminuição da atividade industrial e suas
conseqüências são prejudiciais para a riqueza das nações. O efeito estufa, portanto, constituise em fenômeno que não deve estar no centro da pauta valorativa governamental, se for
prejudicial ao crescimento econômico.
Moore (1999, p. 26), Professor da Universidade de Stanford e ex-membro do
Conselho de Consultores Econômicos do Presidente dos Estados Unidos da América entre
1985 e 1989, expressa, com clareza, a preocupação econômica americana com a diminuição
do crescimento centrada na preocupação do efeito estufa:
[...] um coro na imprensa, liderado por organizações com prestígio
como o New York Times, The Public Broadcasting System, and
Scientific American, espalha o medo da mudança climática.
Respeitáveis cientistas, como Bert Boli (Stockholm University) [...]
clamam que o clima está mudando ou irá mudar, e que medidas
urgentes devem ser tomadas para evitar possíveis desastres. Se esse
profetas estiverem corretos, nós devemos diminuir, rapidamente, a
emissão dos gases ocasionadores do efeito estufa. Antes de aceitarmos
estas assertivas, entretanto, devemos deixar bem claro que tais
políticas, as quais podem ser desnecessárias, podem ser extremamente
caras e podem levar a uma recessão mundial, aumentando o
desemprego, os problemas sociais e aumentando as tensões entre as
nações pela desobediência e desrespeito aos tratados internacionais
[...]
232
233
Analisando a economia americana, centrada na indústria, e os efeitos puramente
econômicos da mudança climática, Moore (1999, p. 29) afirma que:
Uma análise pontual dos efeitos econômicos da mudança climática
demonstra que as modernas indústrias são relativamente imunes ao
clima. O clima afeta principalmente a agricultura, a atividade
extrativista e a pesca, as quais juntas constituem menos que dois por
cento do Produto Interno Bruto americano(PIB). As manufaturas, as
indústrias de serviços e quase todas indústrias extrativas permanecem
inalteradas pela mudança de clima [...] Os serviços bancários e de
seguros, os serviços médicos, o comércio, a educação e uma variedade
de outros serviços podem prosperar, tão bem, em climas quentes (com
ar condicionado) como em climas frios (com aquecimento térmico).
Um clima mais quente diminuirá os custos de transporte: menos neve
e gelo a atormentar motoristas; menos tempestades de inverno para
interromper o tráfico aéreo [...]
Destacando que a tecnologia da própria era industrial está imune à questão climática
e lembrando-se somente do seu país, afirma:
Os habitantes dos países industriais avançados dificilmente notarão o
aumento nas temperaturas mundiais. Como a sociedade
contemporânea desenvolveu uma larga base industrial calcada nos
serviços, cada vez mais se depende menos das atividades agropastoris, o que aumenta nossa imunidade às variações climáticas [...]
(MOORE, 1999, p. 29-30).
No mesmo aspecto, interessante comparar o pensamento coincidente de dois
Presidentes dos Estados Unidos da América sobre o tema, George Bush e George Bush Jr.
Assim, George Bush (apud PATERSON, 1996, p. 72), na Conferência Mundial do
Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em 1992 (ECO92), afirmou: “Nós não podemos permitr
que o extremismo dos movimentos ecológicos destruam os Estados Unidos. Nós não podemos
destruir a vida de muitos americanos por sermos extremamente protetivos do meio
ambiente”.166
Bush Junior (2002), em Silver Spring, Maryland, durante discurso proferido no
National Oceanic and Atmospheric Administration, ratifica a preocupação americana com o
crescimento, já externada por seu pai, há dez anos atrás, colocando-o em primeiro plano em
relação à proteção ambiental, afirmando que:
A abordagem do protocolo de Kyoto iria requerer que os Estados
Unidos fizessem um profundo e imediato corte na nossa economia
para atingir um objetivo arbitrário. Custaria a adesão a esse pacto o
valor de $400 bilhões a nossa economia e representaria a perda de 4,9
milhões de empregos.
Como Presidente dos Estados Unidos, responsável pela proteção do
povo americano e do trabalhador americano, eu não posso
comprometer nossa nação em um tratado internacional despropositado
que tirará milhões de trabalhadores dos seus empregos. Por outro lado,
nós reconhecemos as nossas responsabilidades internacionais. Assim,
166
Paterson (1996, p. 73) assinala que o maior conflito nas políticas por detrás das negociações da limitação da
emissão dos gases do efeito estufa vincula-se à posição norte-americana do que ele chama de “Intra-North
conflict”. A União Européia e o Japão concordaram com a necessidade de limitação da atividade industrial
para a redução da produção do dióxido de carbono.
233
234
além de procurar reduzir nossas emissões, os Estados Unidos
ajudaram as nações em desenvolvimento a crescerem de forma mais
eficiente em um caminho ecologicamente responsável.
No mesmo evento, afirma que apesar de não apoiar o Protocolo de Kyoto irá
estabelecer metas próprias para redução dos gases do efeito estufa em 18% nos próximos dez
anos:
Nós promoveremos uma renovação das fontes de energia e uma
tecnologia de uso de combustíveis fósseis limpa, bem como o uso de
energia nuclear, que não produz emissões de gases do efeito estufa.
Nós, também, iremos trabalhar para melhorar a economia de
combustível de nossos carros e nossos caminhões. De forma global,
meu orçamento destinará $4,5 bilhões para a proteção da mudança
climática, mais do que qualquer outra nação no mundo (BUSH
JUNIOR, 2002).
Assim, os Estados Unidos da América, maior potência mundial econômica e o maior
produtor de gases que ocasionam o efeito estufa, posiciona-se, claramente, em sua política
internacional, na consideração de que o crescimento econômico constitui um valor maior do
que a conservação de recursos naturais.
1.2.3 As diferentes hierarquias de valores presentes no debate internacional do
crescimento econômico e do efeito estufa
Conforme observa Paterson (1996, p. 77-90), a posição dos Estados Unidos da
América sobre o tema efeito estufa não é meramente arbitrária. Há razões que as
fundamentam. Assinala que as diferenças de posicionamento com relação ao efeito estufa, no
âmbito das nações, podem ser agrupadas por três grandes fatores, com diferentes pesos, a
saber:
1. de diferentes níveis e tipos de dependência energética. Assim, as
nações com alta dependência de energia importada, normalmente, são
mais favoráveis ao controle do desenvolvimento/efeito estufa. As
nações que exportam petróleo, por outro lado, são menos favoráveis a
este controle;
2. da posição das Nações na relação de comércio internacional.
Assim, o chamado conflito Norte-Sul (nações desenvolvidas,
exportadoras e nações subdesenvolvidas importadoras), a questão
ambiental desloca-se para o eixo econômico da discussão da
transferência tecnológica(dos países desenvolvidos para os em
desenvolvimento) e do pagamento das dívidas externas (dos países
em desenvolvimento para os países desenvolvidos);
3. das conseqüências materiais do aumento da temperatura a nível
global e do controle do efeito estufa. Assim, países situados em
pequenas ilhas marítimas podem desaparecer com a elevação do nível
dos oceanos decorrentes do aquecimento global, sendo, portanto,
extremamente, favoráveis ao controle do efeito estufa. Outros países
como os Estados Unidos, ao considerar que os efeitos da elevação da
234
235
temperatura vão ser insignificantes para sua geografia territorial, não
se preocupam com o controle deste fenômeno.
Assim, Patrick Num, Professor de Geografia da Universidade do Pacífico do Sul,
morador de ilha marítima que sofre, cotidianamente, os efeitos deletérios da elevação do mar
e da temperatura oriunda do efeito estufa, possui diferentes argumentos para o trato desta
questão mundial com efeitos locais.
Conforme assinala, mais de vinte e nove por cento das pessoas das Ilhas do Pacífico
do Sul vivem ao longo das costas marítimas, bem como a sua atividade econômica se
desenvolve nesta área. Exemplifica que em Fiji, a cultura da cana-de-açúcar, a terceira maior
da Ilha, só se desenvolve ao longo da costa e nos deltas dos rios que deságuam no mar. Nos
últimos cinqüenta anos, entretanto, o aumento do nível do mar e a conseqüente penetração
deste nos aqüíferos costeiros com o aumento da salinidade da água têm sido as causas da
queda de produção da cana-de-açúcar. Também, a exploração turística da região vem
sofrendo as conseqüências da erosão das praias pelo aumento do nível do mar (NUNN, 1999,
p. 23-24).
A noção dos diferentes posicionamentos das nações, no debate mundial do efeito
estufa, põe em relevo a hierarquia valorativa estabelecida por cada Nação entre qual valor lhe
é mais relevante dentre o crescimento econômico e as conseqüências do efeito estufa.
Entretanto, as decisões tomadas em nível local, oriundas das diferentes valorações,
como a exemplificada pelo Estados Unidos da América, terão efeitos diversos em diferentes
locais do Planeta (como no caso das Ilhas do Pacífico do Sul).
1.3 OS RECURSOS NATURAIS COMO VALORES POSITIVOS COM DIFERENTES
HIERARQUIAS PARA A ECONOMIA E PARA A ECOLOGIA
1.3.1 Os recursos naturais como valor
Para Hessen (1967, p. 46), constitui característica basilar do valor a sua estrutura
polar e a sua variabilidade, verbis:
[...] O moralista procura determinar o valor <<bem moral >> e extrair
daí normas para a acção prática. Tais normas serão o metro para
medir, neste ponto de vista, os actos humanos. Aquilo que lhe
interessa é precisamente poder demonstrar que tal valor é positivo, tal
outro negativo; e, se for positivo, fixar a sua altura numa escala
axiológica com relação a todos os outros, marcando-lhes a sua
hierarquia. Este é o ponto de vista decisivo destas ciências que
aspiram a elucidar sobre o valor dos seus objectos. Traduzem-se em
juízos de valor e por isso se chamam ciências de valores
(Wertwissenshafen), em oposição às ciências de seres
(Seinswissenschafen).
No mesmo escopo, Ruyer (1969, p. 97-98) relaciona a classificação dos valores com
os diferentes ramos do conhecimento. Assim, os ramos do conhecimento constituem-se,
235
236
basicamente, em métodos de busca de valor (critérios para estabelecimento de juízos de
valor):
[...] La inmensa experiencia para el conjunto de los valores, es el
conjunto mismo de las obras e instituciones humanas históricas, y su
agrupamiento natural y espontáneo. Al lado de las ciencias y de las
instituciones estéticas, de las costumbres, de la filantropía, de los
ideales de moralidad, hay aún muchos otros dominios del valor: la
religión, el derecho, la economia [...]
Assim, as ciências ecológicas e econômicas valoram os recursos naturais em uma
escala de valores distintos, não obstante os tenham como valores positivos.
Para Reale, M., (1998, p. 191), as principais características dos valores são:
bipolaridade, preferibilidade e referibilidade, dentre outras.
Assim, o mestre das Arcadas e autor da teoria tridimensional do direito afirma:
Além da bipolaridade, o valor implica sempre uma tomada de posição
do homem e, por conseguinte, a existência de um sentido, de uma
referibilidade. Tudo aquilo que vale, vale para algo ou vale no sentido
de algo e para alguém. Costumamos dizer – e encontramos essa
expressão também empregada por Wolfgang Köhler embora em
acepção um pouco diversa – que os valores são entidades vetoriais,
porque apontam sempre para um sentido, possuem direção para um
determinado ponto reconhecível como fim. Exatamente porque os
valores possuem sentido é que são determinantes da conduta. A nossa
vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores.
Viver é tomar posição perante valores e integrá-los em nosso
“mundo”, aperfeiçoando nossa personalidade na medida em que
damos valor às coisas, aos outros homens e a nós mesmos (REALE,
M.,1998, p. 190-191).
Dessa maneira, as ciências humanas, de acordo com seu escopo, que molda seu
referencial valorativo, ponderam determinados objetos com maior ou menor preferibilidade.
No entanto, há a possibilidade de um denominador comum entre elas na visão do que seja
“valor” e “desvalor”.
Ecologia e economia, tão próximas em suas origens lingüísticas, têm estado distantes
em demasia, tanto na sua dimensão acadêmica, quanto nas estruturas administrativas estatais
responsáveis pela implementação de políticas públicas, com notórias conseqüências.
1.3.2 Os recursos naturais como valor para a economia
1.3.2.1 Os recursos naturais e o sistema econômico de produção
236
237
A economia, segundo Fauchex; Nöel (1997), apresenta uma dimensão física que é
necessariamente uma transformação da natureza.
Assim, afirma que: “a actividade econômica extrai desta natureza os materiais que
utiliza, tal como torna a lançar sobre esta os desperdícios que produz” (FAUCHEX; NÖEL,
1997, p. 15).
Engels (1974, t. 3, p. 52), na Introdução à Dialética da Natureza, afirma que as
“forças da natureza” foram postas a serviço do homem e conseqüentemente houve um enorme
incremento da produção de bens por meio da industrialização.
Pillet (1993, p. 14) afirma que o homo economicus pode ser um consumidor ou um
produtor individual, entretanto ambos atuam de forma “racional” em busca do máximo de
utilidade. O agente consumidor procura o máximo de utilidade que obtém dos bens
comprados com os meios escassos do mercado. O produtor procura o máximo de lucro, que se
obtém da venda dos bens que produziu por meio de recursos escassos.
Quando compradores e vendedores concordam sobre um preço e uma quantidade,
esse preço e essa quantidade definem um equilíbrio de mercado. Nas palavras de Pillet (1993,
p. 14): “Cada um satisfaz as suas necessidades em compras e em vendas neste mercado; há
um equilíbrio da oferta e da procura, e óptimo de produção e de consumo para a sociedade”.
Do ponto de vista econômico, um recurso natural corresponde a uma matéria-prima
utilizável como fator de produção no fornecimento de bens e serviços.
Fauchex; Nöel (1997, p. 16) acrescentam que:
Enquanto as consequências da actividade humana, e em particular da
actividade económica, não eram susceptíveis de pôr em causa as
regulações que governam a reprodução da biosfera, pôde considerar-se
a economia e a natureza como dois universos distintos, possuindo
cada um a sua lógica e as suas condições de reprodução. Os
economistas podiam interessar-se pelas regras que governam a
optimização económica e pelas condições da reprodução económica,
ignorando sempre o modo como a natureza assegurava
espontaneamente a sua reprodução.
Hoje, no entanto, a escassez dos recursos naturais, conforme veremos, ocasiona a
preocupação econômica com estes, aumentando a sua pontuação na escala valorativa
econômica.
1.3.2.2 O valor e o preço dos recursos naturais
A tomada de consciência da amplitude das relações mútuas entre a economia, os
recursos naturais e o meio ambiente, quer dizer, a constituição destas relações como
problemas, foi concomitante com o aparecimento do risco de esgotamento dos recursos
naturais e com o agravamento dos danos sofridos pelos ecossistemas.167
167
Com a escassez e com a finitude do bem ambiental, o mercado (consumidores e fornecedores) passou a
valorizá-lo. <buscar autores com esta assertiva>.
237
238
Com a escassez dos recursos naturais, a economia encontra-se confrontada com os
seguintes problemas, segundo Fauchex; Nöel (1997, p. 18-19):
• a multidimensionalidade. Os problemas deixam de ser isoláveis
uns dos outros e comportam todos várias dimensões. Exemplificando,
um recurso poluído pode já não estar disponível para o uso que dele se
espera. Há interacções entre a esfera econômica, a esfera natural e a
esfera sociocultural;
• a irreversibilidade. A extinção de espécies (diminuição da
biodiversidade) e a mudança climática não passível de retorno ao seu
status quo;
• a presença de problemas de eqüidade, tanto intrageracionais como
intergeracionais. As escolhas feitas em matéria de recursos naturais e
de meio ambiente inserem-se necessariamente no tempo e no espaço.
Estas escolhas põem igualmente em jogo o bem-estar, tanto dos
indivíduos que actualmente existem, como o das gerações futuras.
Para a presente geração, a questão da repartição deste bem-estar e dos
efeitos ligados à exploração dos recursos naturais e aos problemas de
poluição do meio ambiente está posta: basta pensar na importância das
desigualdades entre países do Norte e do Sul, por exemplo. Para as
gerações futuras, um recurso esgotável explorado actualmente deixará
de estar futuramente disponível;
• a incerteza. Incerteza quanto às reservas de recursos esgotáveis,
quanto às possibilidades que os progressos técnicos futuros reservam,
quanto às conseqüências exactas das poluições globais. A combinação
da irreversibilidade e da incerteza leva, por outro lado, a definir
critérios gerais de escolha, tal como o princípio da precaução.
Por serem os recursos naturais, atualmente, um valor relevante para a economia,
indaga-se qual o conceito de valor para a Economia e a sua relação com a filosofia de Hessen.
O valor do meio ambiente para a Economia restringe-se meramente a ser input do processo
econômico?
Deve-se, inicialmente, destacar que a palavra valor para a economia possui um
campo semântico distinto da conceituação filosófica até agora analisada.
Para Smith (1999, v. 1, p. 117), o termo valor tem dois significados:
Deve observar-se que a palavra VALOR tem dois significados
diferentes; uma vez exprime a utilidade de um determinado objecto;
outras, o poder de compra de outros objectos que a posse desse
representa. O primeiro pode designar-se por <<valor de uso>>; o
segundo por <<valor de troca>>. As coisas que têm o maior valor de
uso têm, em geral, pouco ou nenhum valor de troca; e, pelo contrário,
as que têm o maior valor de troca têm, geralmente, pouco ou nenhum
valor de uso. Nada é mais útil do que a água: mas como ela
praticamente nada pode comprar-se; praticamente nada pode
obter-se em troca dela. Pelo contrário, um diamante não tem
praticamente qualquer valor de uso; no entanto, pode obter-se
grande quantidade de outros bens em troca dele (grifo nosso).
238
239
A primeira concepção de Adam Smith (valor de uso) aproxima-se da conceituação
de valor de Hessen (1967, p. 47) “a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em
função de um sujeito dotado de uma certa consciência capaz de a registrar”.
Destaca-se a utilidade de um determinado objeto como a essência da valoração, o
que se constitui em uma das formas de caracterização de valor, embora não seja a única.
A segunda concepção de Adam Smith (valor de troca) possui, no entanto, conceito
semântico bem distinto da ontologia axiológica de Hessen. O valor de troca vincula-se a
noção econômica de mercado, o que faz com que o próprio fundador da Economia Liberal
afirme que há discrepâncias marcantes entre o valor de uso e o valor de troca
(BOARDMAN JR., 1966, p. 45).
Para o valor de troca, associa-se um mecanismo utilitarista: o mercado.
Smith (1999, cap. 5, p. 119-120) dá relevo ao valor de troca e à sua caracterização.
Assim, ao tratar do preço real (preço em trabalho) e do preço nominal dos bens (preço em
dinheiro), destaca que o trabalho é a verdadeira medida do valor de troca, verbis:
O verdadeiro preço de todas as coisas, aquilo que elas, na realidade,
custam ao homem que deseja adquiri-las é o esforço e a fadiga em que
é necessário incorrer para as obter. Aquilo que uma coisa realmente
vale para o homem que a adquiriu e que deseja desfazer-se dela ou
trocá-la por outra coisa, é o esforço e a fadiga que ela lhe pode poupar,
impondo-os a outras pessoas.
Embora seja o trabalho o verdadeiro valor de troca (preço real do bem), o preço
nominal, normalmente, não é calculado em trabalho, porque o trabalho é difícil de medir e
porque é mais freqüente trocarem-se uns bens por outros bens, especialmente por dinheiro,
que é, por isso, o termo de referência mais usado para se calcular o valor (SMITH, 1999, p.
121-122).
Outro economista clássico, Ricardo (1982, p. 117), também ressalta a discrepância
entre o valor de uso e o valor de troca, afirmando que a utilidade não é medida do valor de
troca, ainda que lhe seja absolutamente essencial:
A água e o ar são extremamente úteis; são, de fato, indispensáveis à
existência, embora em circunstâncias normais, nada se possa obter em
troca deles. O ouro, ao contrário, embora de pouca utilidade em
comparação com o ar ou a água, poderá ser trocado por uma grande
quantidade de outros bens.
Já Marshall, tratando da utilidade marginal, indaga por que as pessoas procuram
mercadorias, e aproxima as noções de valor de troca com o valor de uso, ao destacar que o
consumo busca algum tipo de prazer ou satisfação (BOARDMAN JR., 1966, p. 77).
A teoria da utilidade marginal procura explicar esse paradoxo em termos do valor
subjetivo que tem para uma pessoa as sucessivas adições de mercadorias já possuídas por
alguém (BOARDMAN JR., 1966, p. 77).
Oliveira (1998, p. 81-107), de forma didática, esclarece o significado da teoria da
utilidade marginal:
Imaginemos agora que o prazer ou a satisfação percebidos por um
consumidor pelo consumo de uma mercadoria possa ser medido, e
chamemos essa medida de utilidade dessa mercadoria para esse
consumidor. Mesmo que não saibamos nada acerca da medida exata
239
240
da utilidade, podemos, empregando um pouco de bom senso, predizer
que ela deve ter um comportamento característico.
[...] suponhamos que a mercadoria em questão seja chocolate em
barra. Se passarmos a dar uma barra de chocolate por semana a uma
criança que até então não consumia nada de chocolate, essa barra de
chocolate provavelmente trará uma satisfação muito grande a essa
criança, gerando assim uma utilidade relativamente alta. Se, depois
disso, passarmos a dar uma segunda barra semanal de chocolate, essa
barra será bem recebida pela criança, mas provavelmente não com o
mesmo entusiasmo com que foi recebida a primeira barra [...] Se
formos aumentando o número de barras de chocolate, chegaremos a
um ponto em que uma barra adicional de chocolate representará para a
nossa criança um benefício tão pequeno que para ela será quase
indiferente receber ou não essa barra adicional. Isso porque o
chocolate sendo consumido praticamente até a saciedade, deixou de
ser para ela um produto escasso.
A abundância da água em relação ao diamante, por esta teoria da utilidade marginal,
justifica a discrepância entre o valor de uso e o valor de troca.
Conforme assinala Boardman Jr. (1966, p. 79), ao analisar Alfred Marshall e a teoria
marginalista, com base nesse raciocínio imaginou-se ter sido descoberta a razão do conflito
entre valor de uso e valor de troca.
Marshall, A., (1996, p. 185-195), igualmente, pondera que uma pessoa prudente se
esforça para distribuir os seus recursos para uso presente e futuro, estando disposta a
renunciar a um prazer atual por um igual prazer no futuro.
O valor seria mensurado a partir do conceito de utilidade em um determinado
momento sem perder a perspectiva de momentos posteriores, onde uma unidade monetária
para um necessitado teria mais utilidade do que uma unidade monetária para um abastado,
verbis:
[...] é preciso notar, porém, que os preços da procura de cada
mercadoria, sobre os quais avaliamos a utilidade total e o excedente
do consumidor, pressupõem que as outras condições permanecem
inalteradas, enquanto o preço sobe até o valor da escassez (Marshall,
A., 1996, p. 195).
Destacando o valor-utilidade das compras realizadas por um indivíduo no contexto
da teoria marginalista, Pillet (1993, p. 16) afirma:
Um sujeito económico dispõe de um rendimento ou orçamento.
Deseja não um bem definido e completo, mas uma dose deste bem
(não tem intenção, por exemplo, de adquirir o bem <<transporte>> de
uma vez por todas, mas somente uma <<dose>> deste bem, quer
dizer, um automóvel ou um bilhete de avião).
Assim, essa evolução das correntes econômicas, sob a perspectiva da discrepância
entre valor do ponto de vista filosófico (valor de uso) e o valor dado pelo mercado (valor de
troca, preço nominal), destaca que, no âmbito estritamente econômico, a natureza só terá valor
se o mercado lhe atribuir valor.
Nesse aspecto, Fauchex; Nöel (1997, p. 44) afirmam:
O mercado surge então, não só como mecanismo de regulação
económica, mas também como o mecanismo de regulação social e, de
240
241
seguida, como o mecanismo de regulação da natureza. Não se trata do
acesso da sociedade à dimensão económica, mas antes da redução da
totalidade da sociedade, e mesmo da natureza, ao econômico.
O econômico moderno, nos seus próprios fundamentos, afasta-se de qualquer
preocupação moral ou ética. A lição de Smith (1999, v. 2, p. xx), segundo a qual a procura do
interesse individual conduz automaticamente ao interesse geral, é corolário desta assertiva.
No dogmatismo econômico, há o reducionismo da axiologia ao mercado.
O mundo econômico é concebido de forma mecânica, no dizer de Fauchex; Nöel
(1997, p. 40):
O mundo é concebido como um conjunto atomista de compradores e
vendedores, todos do tipo homo economicus, empenhados num
comportamento egoísta com o intuito de melhorar o seu bem-estar
individual. Deste modo, cada qual é <<conduzido por uma mão
invisível a cumprir um objectivo que não entre de modo algum nas
suas intenções>>.
Entretanto, alguns economistas neoclássicos visualizaram que nem sempre o
interesse individual no mercado acarreta, automaticamente (mecanicamente) o interesse
social.
Assim, surge, no século passado, versão normativa da teoria neoclássica. Segundo
Fauchex; Nöel (1997, p. 46-47), essa teoria, cujos iniciadores foram Pareto, no começo do
século XX, e Pigou, em 1920, constitui a moldura na qual os economistas neoclássicos do
meio ambiente desenvolveram a noção de externalidade. Os dois teoremas fundamentais da
economia do bem-estar estabelecem, respectivamente, a “optimalidade” paretiana do
equilíbrio concorrencial e a possibilidade de atingir qualquer repartição ótima desejada com a
ajuda do mecanismo de mercado, completado por transferências adequadas.
A análise da noção econômica de externalidade e o papel da norma jurídica nesse
contexto será efetuado mais adiante, no tópico terceiro deste trabalho (O DIREITO COMO
INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO NA
PROTEÇÃO AMBIENTAL).
Assim, podemos afirmar que o valor econômico dos recursos naturais vinculam-se à
sua mensuração nos mecanismos tradicionais de valoração econômica (o mercado), o que
ocasiona, em diversas oportunidades, diferença entre o valor de uso e o valor de troca,
afetando, sobremaneira, a valoração dos recursos naturais.
Torna-se, pois, relevante apreciar a valoração dos recursos naturais para a ciência
ecológica e, deste modo, compará-lo à visão filosófica e econômica de valor.
1.3.3 O valor dos recursos naturais para a ecologia
1.3.3.1 Origem do termo ecologia e as bases da sua valoração em Haeckel
A ecologia é a disciplina científica que estuda as condições de existência dos seres
vivos e as distintas interações existentes entre estes seres vivos e seu meio.
241
242
Ecologia, ao contrário de economia, era expressão desconhecida na civilização
grega; foi composta por “oikos”e por “logos”, esta última palavra significando reflexão ou
estudo. Assim, pode-se interpretar a ecologia como ciência de nossa casa, seja a nível micro,
local em que vivemos, seja a nível macro, nossa casa maior, a Terra.
“Ecologia” aparece pela primeira vez numa nota de pé de página de Generelle
Morphologie der Organismen, substituindo o termo “biologia”, cujo sentido, na época, era
bem mais restrito (ACOT, 1990, p. 27).
Esse neologismo, formado com os vocábulos gregos oîkos e lógos, significa,
portanto, literalmente, “ciência do habitat”.
O conceito fundamental da ecologia é o da sua unidade funcional, o ecossistema.168
Ecossistema é: “Local de vida, grande ou pequeno em que há trocas nutritivas e respiratórias
entre espécies vivas da biocenose que o ocupam, produzem-se as trocas no interior dos seus
limites e não os ultrapassam, senão ligeiramente” (FRIEDEL, 1987, p. 50).
Por constituirem subconceitos componentes do ecossistema, necessárias fazem-se as
definições de biocenose e biótopo. A biocenose é: ”Conjunto equilibrado de animais e plantas
que ocupam de maneira cíclica ou permanente um dado biótopo, e cujas populações não
parecem modificar-se rapidamente” (FRIEDEL, 1987, p. 109).
O biótopo é o: “Local onde vive habitualmente uma dada espécie animal ou vegetal”
(FRIEDEL, 1987, p. 50).
Conforme destaca Acot (1990, p. 84), os conceitos de biocenose e biótopo,
elementos constituitvos do ecossistema, configuram, modernamente, o conceito de ecologia,
verbis:
Em 1935, o ecólogo A. G. Tansley cria o conceito de ecossistema num
artigo bastante polêmico dirigido contra as concepções organicistas de
que acabamos de falar. Certamente, afirmar que as unidades
fitossociológicas ou biocenóticas constituem sistemas estruturados já
não é um fato novo em 1935. Mas o ponto essencial é que Tansley
quer integrar nesse conceito: “[...] o complexo dos fatores físicos que
formam o que chamamos de meio ambiente do bioma, os fatores do
habitat no sentido mais amplo [...] esses ecossistemas [...] são das
mais variadas naturezas e tamanhos”.
A ciência da ecologia foi desenvolvida em termos estritos por Ernst Haeckel (18341919), que definiu ecologia como a “ciência das relações dos organismos vivos face ao
mundo externo, o seu habitat, costumes, energias, etc” (HAECKEL apud PEPPER, 2000, p.
237).
Bramwell (1989, p. 40) destaca que Haeckel batizou o termo Oekologie, referindo-se
à teia que vincula os organismos e o seu ambiente. A sua definição relaciona-se a “the science
of relations between organisms and their environment”.
A repercussão deste termo, entretanto, ultrapassa a biologia. Remonta, na Grécia, à
expressão utilizada por Aristóteles, no sentido do funcionamento adequado de um lar, que deu
origem, também, ao termo economia. Uma pólis viável vinculava-se a uma oikos organizada,
assim, há uma ecologia política e, também, uma ecologia, stricto sensu, biológica em
Aristóteles (BRAMWELL, 1989, p. 41).
168
“Aqui percebemos bem o que diferencia o ecossistema de Tansley daquele de Lindeman. O primeiro conceito
imagina um conjunto composto por uma biocenose e por um biotópo. O segundo imagina esse conjunto como
uma totalidade” (ACOT, 1990, p. 27).
242
243
A “ecologia” biológica de Aristóteles atingiria o seu ponto alto no tratado intitulado
História dos animais e, mais particularmente, nos livros VIII e IX, em que o autor expõe os
diferentes modos de vida dos animais. Assim, afirmava Aristóteles (apud ACOT, 1990, p. 3):
Os animais estão em guerra uns com os outros quando ocupam os
mesmos lugares e quando, para viver, utilizam os mesmos recursos.
Assim como [...], para os mergulhadores, alguns fabricam aparelhos
para respirar e para ficar por muito tempo debaixo d’água, aspirando
graças ao aparelho de ar da superfície, assim também foi dentro desse
princípio que a natureza regulou o tamanho do nariz dos elefantes.
Conforme assinala Stauffer, quando Haeckel utilizou pela primeira vez o termo
ecologia, sua utilização ocorreu como uma área da biologia relacionada às relações dos
organismos entre si, tendo Haeckel ilustrado estas relações entre os seres vivos com base na
teia de relações entre os seres estudadas por Darwin.169
Para Bramwell (1989, p. 4), na obra “Ecology in the 20th century a history”, duas
formas distintas de ecologismo afloraram no século XX. Uma constituída de uma forma
holística e anti-mecânica de apreciação da biologia oriunda do zoologista tedesco Haeckel. A
outra forma de ecologismo foi uma nova abordagem econômica chamada economia
energética.
Segundo Pepper (2000), como um ardente darwinista, Haeckel sustentava a
igualdade entre animais e seres humanos, que teriam partilhado uma origem comum durante o
período terciário.170
Negava, pois, uma visão antropocêntrica da natureza, de que os seres humanos eram
únicos e especiais; pelo contrário, acreditava que os vertebrados superiores também tinham
mostrado “traços primários de razão” e “traços de religiosidade e conduta ética... as virtudes
sociais... lucidez, consciência e sentido de dever”.
Segundo Pepper (2000, p. 239), a lei biogenética de recapitulação dizia que o
desenvolvimento biológico embrionário do organismo individual devia repetir o
desenvolvimento de uma forma abreviada, a evolução dos seus ancestrais. Cada indivíduo
revivia e experimentava novamente o processo evolutivo, partilhando os círculos eternos da
unicidade da natureza. Essa teoria, hoje desacreditada, foi muito influente durante meio
século.
Para Pepper (2000, p. 241), verbis:
O desejo de Haeckel em fazer o ser humano voltar à natureza foi
absorvido pelo mito volkista, que, não obstante o pensamento
moderno, prenderia as pessoas à sua terra natal, à sua região e à sua
169
170
“Quando Haeckel propôs ecologia, ele a discutiu como uma área da biologia e a classificou-a como parte da
fisiologia das relações, mas não a definiu de modo objetivo. O termo ecologia apareceu pela primeira vez em
uma nota de rodapé na página oito do primeiro volume. Aqui Haeckel o introduziu como um substituto para o
uso arbitrariamente restrito do termo “biologia” e explicou ecologia como sendo a ciência da economia, dos
hábitos, das relações externas dos organismos entre si, etc [...] Somente algumas centenas de páginas mais
adiante, na parte final do segundo volume, quando ele começa a discutir o conceito de evolução de Darwin e
da seleção natural, é que Haeckel apresenta uma concepção mais ampla do termo. Primeiro discutiu-o
brevemente como a ciência da economia da natureza, das relações mútuas dos organismos; e descreveu a
cadeia dos gatos-ao-trevo de Darwin como um exemplo” (STAUFFER apud AVILA-PIRES, 1999, p. 23).
“Existem muitos pontos de contacto enre Haeckel e o ecocentrismo moderno, especialmente com a ecologia
profunda. Por exemplo, como profeta do movimento volkish, ele propunha que o indivíduo pertence a algo
maior do que ele. Ou seja, todas as pessoas teriam uma unidade mística entre si e com a totalidade do cosmos.
E o processo evolutivo não era percepcionado à maneira mecânica de Darwin, mas como uma força cósmica,
uma manifestação da energia criativa da natureza” (PEPPER, 2000, p. 239).
243
244
nação. Isto traduziu-se numa ideologia de <<terra e sangue>>, pelo
que tais laços imaginados entre cultura tradicional e terra de origem
foram usados no século XX para fomentar o nacionalismo extremo
que caracterizou o fascismo.
Neste trabalho, utilizaremos o termo ecologia na conceituação originária de Haeckel,
não obstante não podemos deixar de caracterizá-la, também, pelo escopo valorativo de sua
acepção, na visão finalística de Aristóteles de que a casa (oikos) constitui-se em um meio de
tornar feliz a vida presente do indivíduo.
No mesmo aspecto, Bramwell (1989, p. 43) destaca que:
Apesar de Haeckel não expressar medo sobre a poluição e a erosão do
solo, ele foi um ecologista em três importantes acepções. Primeira,
que ele visualizou o universo como um conjunto único e equilibrado
de organismos, visão monista. Ele, também, acreditava que homens e
animais têm o mesmo direito moral e natural, portanto não era
antropocêntrico. Terceiro, ele defendia a doutrina que a natureza era
uma fonte da verdade e poderia guiar com sabedoria a vida humana. A
sociedade humana deveria se reorganizar sobre os princípios extraídos
da observação científica do mundo natural. Pela sua influência, ele
possibilitou que a ecologia torna-se um credo político viável (grifo
nosso).
A noção de ecologia de Haeckel abre, pois, a perspectiva de a ecologia e do
movimento ecológico atuarem como uma ideologia.171
Torna-se relevante, pois, apreciar a valoração dos recursos naturais para a ciência
ecológica, na visão trazida pelos ecologistas estudados, e, deste modo, compará-lo à visão
filosófica e econômica de valor.
Na natureza todos os organismos vivos produzem resíduos. Mas o que constitui
resíduo para uma espécie é considerado alimento para outra, conforme afirma Lovelock
(1991, p. 23).
Assim, mesmo os resíduos naturais constituem-se em valores ecológicos, pois
permitem a homeostase172. O que constitui resíduo para uma espécie é considerado alimento
para outra. Esse equilíbrio dinâmico constitui-se em essência o grande paradigma ecológico.
Nesse sentido, Morin (1997, p. 65) afirma, na busca de um pensamento sistêmico que
rompa a visão sujeito-objeto cartesiana, que:
Este é um dos aspectos de uma revolução do pensamento. Sem esta
revolução do pensamento, a importância do pensamento ecológico não
poderá ser plenamente compreendida porque o pensamento ecológico
171
Utiliza-se o termo ideologia no acordo semântico dado por Loewenstein (1982, p. 30-31), que acentua o papel
desempenhado pela ideologia na conformação do sistema político: “O conceito de ideologia se pode definir
da seguinte maneira: Um sistema fechado de pensamentos e de crenças que explicam a atitude do homem
perante a vida e sua existência na sociedade, e que propugnam uma determinada forma de conduta e de ação
que corresponde a tais pensamentos e crenças, e que contribui para realizá-los’. As ideologias são as
cristalizações dos valores mais elevados em que crê uma parte predominante da sociedade, ou – o que ocorre
de raro – a sociedade em sua totalidade. É importante sublinhar expressamente que as ideologias – e é isto que
as diferencia da teoria ou filosofía política – compelem seus partidários à ação para conseguir sua
realização. Ideologias são, portanto, o telos ou o espírito do dinamismo político numa determinada sociedade
estatal”.
172
A homeostase consistem em um conjunto de elemento auto-reguladores de um sistema aberto que permite
manter o estado de equilíbrio do meio ambiente.
244
245
é ao mesmo tempo um pensamento ecologizado. Todos os fenômenos
que parecem simplesmente independentes e sem conexões devem ser,
a partir de agora, considerados indepedentes e autônomos e
dependentes e conexos com todos os outros fenômenos que os cercam.
[...] O ecossistema é um fenômeno organizador, não somente no
sentido material, mas também em termos de processo: é um fenômeno
de computação, multiforme e global. [...] Eu diria, então, que o que
faz a especificidade da ecologia enquanto ciência é o fato de se basear
não no isolamento arbitrário de seu objeto, mas em sua complexidade
organizacional.
Em outra obra, Morin (1980, p. 23-24) desenvolve raciocínio análogo ao definir
ecossistema como:
O conjunto das interacções no seio de uma unidade geofísica
determinável contendo diversas populações vivas constitui uma
unidade complexa de carácter organizador ou sistema [...]
Como iremos ver, o ambiente concebido como a união de um biótopo
e de uma biocenose é, plenamente, um sistema, isto é, um todo
organizando-se a partir das interações entre constituintes (biológicos e
geofísicos); é, plenamente, uma unidade complexa, ou Unitas
multiplex [...] Como todo o sistema activo, o ecossistema é, ao mesmo
tempo, constituído e dilacerado pelas suas interacções internas.
Esse equilíbrio dinâmico somente é rompido pela ação humana, já que, como afirma
Capra (1998a), enquanto a natureza é cíclica, os sistemas industriais são lineares, extraindo
recursos que são transformados em produtos e em resíduos. Os produtos são consumidos e
convertidos em novos resíduos, que são descartados em proporções que normalmente
ultrapassam os limites de tolerância do meio ambiente.
[...] a flexibilidade de um ecossistema é uma conseqüência de seus
múltiplos laços de realimentação, que tendem a levar o sistema de
volta ao equilíbrio sempre que houver um desvio com relação à
norma, devido a condições ambientais mutáveis. Por exemplo, se um
verão inusitadamente quente resultar num aumento de crescimento de
algas num lago, algumas espécies de peixes que se alimentam dessas
algas podem prosperar e se proliferar mais, de modo que seu número
aumente e eles comecem a exaurir a população das algas. Quando sua
principal fonte de alimentos for reduzida, os peixes começarão a
desaparecer. Com a queda da população dos peixes, as algas se
recuperarão e voltarão a se expandir. Desse modo, a pertubarção
original gera uma flutuação em torno de um laço de realimentação, o
qual finalmente, levará o sistema peixes/alga de volta ao equilíbrio
(CAPRA, 1998a, p. 234).
Dessa forma, os ecosistemas apresentam capacidade natural de resposta às
perturbações e flutuações externas. As sociedades industriais, no entanto, têm
negligenciado essa característica, interferindo nos diversos fluxos ecológicos, a ponto de
gerarem desequilíbrios permanentes.
Para Capra (1998a), em última análise, isso decorre de uma visão antropocêntrica e
reducionista do ambiente, que desloca o homem da Natureza, colocando-o acima ou fora
desta.
Essa visão ecológica superficial (“shallow ecology”) contrapõe-se e desvirtua o
paradigma valorativo do meio ambiente para a ecologia, que percebe o mundo como uma rede
245
246
de fenômenos profundamente interconexos e interdependentes e o homem como um dos fios
na imensa e complexa teia da vida (CAPRA, 1998a, p. 26).
Constitui, portanto, valor ecológico a preservação do status quo do ecossistema. O
não fazer humano e o fazer em níveis toleráveis (aquele que não afete a homeostase)
representa, sob o ponto de vista ecológico, um fazer o bem (aspecto positivo).
1.3.3.2 Os animais e o biótopo: valores equivalentes integrantes do ecossistema
O quadro acima agrupa os conceitos já apresentados de ecossistema, biótopo e
biocenose, elementos sistêmicos estruturais da ecologia, conforme já visto.
Quadro 1 – Esquema conceitual dos elementos estruturais da ecologia
Ecossistema
Local de vida, grande ou
pequeno em que há trocas
nutritivas e respiratórias
entre espécies vivas da
biocenose que o ocupa,
produzem-se as trocas no
interior dos seus limites e
não os ultrapassam, senão
ligeiramente
(FRIEDEL,
1987, p. 50).
Biocenose
Conjunto equilibrado
de animais e plantas
que ocupam, de maneira
cíclica ou permanente,
um dado biótopo, e
cujas populações não
parecem modificar-se
rapidamente
(FRIEDEL, 1987, p.
109).
Biótopo
Local onde vive
habitualmente uma
dada espécie animal
ou
vegetal
(FRIEDEL, 1987, p.
50).
Esquematicamente, dos elementos negritados temos que:
ECOSSISTEMA = BIOCENOSE + BIÓTIOPO
Assim, a noção de ecossistema pode ser compreendida a partir da noção de
biocenose (conjunto equilibrado de animais e plantas) e de biótopo (local onde vivem os
animais e plantas).
Há, pois, um elemento biótico (biocenose) – animais e plantas e um elemento
abiótico (biótopo) – local onde vive.
Nesse aspecto, os homens, animais racionais, vinculam-se ao elemento biótico
(biocenose), não sendo distingüidos deste conjunto, que, por definição, abarca uma
coletividade de espécies, das quais o homem é uma delas.
Verifica-se, no caso, que o elemento racional não acrescenta nenhuma diferenciação;
o que vincula o homem à biocenose é ser animal.
246
247
Para os elementos estruturais da ecologia, portanto, o homem compartilha com as
outras espécies uma relação comum com o local (biótopo) em que vive.
Taylor (1998, p. 75), tratando da igualdade dos homens em relação aos animais e
vegetais, perante o susbistema ecológico, afirma: “Nós não negamos a diferença entre nós
mesmos e as outras espécies, mas mantemos aceso na consciência o fato de que em relação
aos ecossistemas naturais do nosso planeta, nós somos apenas uma das espécies dentre muitas
outras”.
Continuando o seu raciocínio, Taylor (1998, p. 75) destaca que, na ótica do
ecossistema, nós consideramos a nós mesmos como um dos membros da biocenose e não algo
separado dela.
De forma ontológica, a origem do termo ecologia assinala a valoração de que todos
os membros da biocenose são relevantes. Não podendo, nessa ciência, visualizar o homem
como fim em si mesmo, mas como parte de um todo maior – membro da biocenose em um
determinado biótopo.
Portanto, vislumbra-se, na ecologia, de forma marcante, uma visão de macroética
ecocêntrica, o que afeta, substancialmente, a valoração do positivo e do negativo desta
ciência, ao sublinhar a semelhança, e não a diferença, entre o homem e os outros seres da
biocenose.
247
248
2 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO
MEIO AMBIENTE
2.1 O UTILITARISMO E A TEORIA DO VALOR DE USO: O PARADOXO DO VALOR
DO DIAMANTE, DA ÁGUA E DO AR PARA BENTHAM E STUART MILL
Como princípio orientador para a política pública, Jeremy Bentham (1784-1832)
assumiu postulado fundamental: “a melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao
maior número de pessoas”.
Bentham (1974, v. 34, p. 9) desenvolveu filosofia moral, que sustentava que o
acerto e o erro de uma ação deviam ser julgados em termos de suas conseqüências (ou sejam,
os motivos eram obscurecidos pelas conseqüências). As boas conseqüências eram as que
davam prazer a alguém, enquanto as más conseqüências eram as que causavam dor a alguém.
O indivíduo, fundamentalmente livre, ao exercer a atividade econômica em seu
interesse exclusivo, buscando o prazer e evitando a dor, causaria, como efeito inarredável e
absoluto, o bem da sociedade.
No mesmo sentido, as palavras de Smith (1999, v. 1, 757-758):
Cada indivíduo esforça-se continuamente por encontrar o emprego
mais vantajoso para qualquer que seja o capital que detém. Na
verdade, aquilo que tem em vista é o seu próprio benefício e não o da
sociedade. Mas o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente,
ou melhor, necessariamente, a preferir o emprego mais vantajoso para
a sociedade [...]
Na verdade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público,
nem sabe até que ponto o está a fazer. Ao preferir apoiar a indústria
interna em vez da externa, só está a pensar na sua própria segurança;
e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o
máximo de valor, está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como
em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a
atingir um fím que não fazia parte das suas intenções (grifo nosso).
Defende-se, pois, no liberalismo, a teoria segundo a qual a economia está sujeita a
leis naturais que a levam fatalmente a uma situação de equilíbrio entre os integrantes do
mercado, com frutos positivos para toda a sociedade, que será rica, se os seus integrantes o
forem. O Estado não deveria, portanto, através da lei, interferir no funcionamento do
mercado.
Com Mill (1988, p. 27), o princípio da utilidade passa a ter nuanças que o
aproximam da economia, das políticas públicas e de modo profético da problemática
ambiental. Nesse sentido, relevante a passagem extraída das observações preliminares da sua
obra “Princípios de Economia Política”, a respeito da riqueza e da utilidade de ser rico, verbis:
Ser rico é ter um grande estoque de artigos úteis, ou os meios para
adquiri-los. Por conseguinte, constitui parte da riqueza tudo aquilo que
tem poder de compra, tudo aquilo em troca de que se daria alguma
coisa útil ou agradável. Coisas pelas quais nada se pode adquirir em
248
249
troca, por mais úteis ou necessárias que possam ser, não constituem
riqueza no sentido em que o termo é usado em Economia Política.
Após ter destacado que o mercado não pode tratar de todos os fenômenos humanos,
exemplifica a dificuldade de aplicação dos preceitos econômicos para o “ar”, não obstante
ressalte a possibilidade de aplicação do utilitarismo para a felicidade causada pela posse do ar,
verbis:
O ar, por exemplo, ainda que seja a mais absoluta das coisas
necessárias, não tem preço no mercado, pelo fato de poder-se obtê-lo
gratuitamente; acumular um estoque de ar não traria nenhum lucro ou
vantagem para ninguém, e as leis que regem sua produção e
distribuição constituem matéria de um estudo muito diferente do da
Economia Política. Contudo, embora o ar não seja riqueza, a
humanidade é muito mais rica obtendo-o gratuitamente, já que se pode
dedicar a outras finalidades o tempo e o trabalho que de outra forma
seriam necessários para atender à mais urgente de todas as
necessidades (MILL, 1988, p. 27).
Portanto, mostra que há deficiências no mercado para apreciar o ar como um bem,
uma utilidade, um valor positivo. Não obstante esta dificuldade do mercado, o ar possui
utilidade, valor positivo, vinculado ao seu “valor intrínseco” (independente de valoração no
mercado) de “atender à mais urgente de todas as necessidades”, a de viver.
Nesse aspecto, Reale, G., (1991, p. 324), destaca comparando Mill e Bentham:
Mas diferentemente de Bentham, afirma que se deve levar em conta
não somente a quantidade de prazer, mas também a qualidade: “É
preferível ser um Sócrates doente do que um jumento satisfeito”. Para
saber “qual de duas dores é a mais aguda ou qual de dois prazeres o
mais intenso, é preciso confiar no juízo geral de todos os que têm
prática de uns e de outros”. E, para Mill, também não se delineia o
contraste entre a maior felicidade do indivíduo e a felicidade do
conjunto: é a própria vida social que nos educa e radica em nós
sentimentos desinteressados (grifo nosso).
Na contemporaneidade, Saunders (1995, p. 7) destaca que o capitalismo moderno é
um sistema monetário no qual os valores dos bens e serviços podem ser expressos por uma
quantia em dinheiro. O dinheiro, aqui, torna-se mola do capitalismo ao instrumentalizar o
mercado. Matéria-prima e mercadorias são vendidas e compradas por meio de dinheiro pelo
mecanismo livre de mercado.
Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 52) irá afirmar que a codificação binária para o
sistema econômico, anteriormente na Antiguidade e na Idade Média, foi a propriedade de
bens e, contemporaneamente, é receber/ não receber pagamento (dinheiro), ou seja, estar
ou não estar no mercado.
A respeito da crítica aos defeitos intrínsecos dos mecanismos de mercado, Soros
(1998) assinala que, ao contrário do equilíbrio propugnado pela teoria clássica, os mercados
possuem um potencial para o desequilíbrio, caracterizando-se por períodos de prosperidade
e depressão, pois o mercado atua de forma reflexiva.173
173
“Para compreender os mercados financeiros e os acontecimentos macroeconômicos, precisamos de um novo
paradigma. Temos que suplementar o conceito de equilíbrio com o conceito de reflexividade. A reflexividade
não invalida as conclusões da teoria do equilíbrio como um sistema axiomático, mas adiciona uma dimensão
que a teoria do equilíbrio não levou em consideração. É como combinar a geometria plana com a noção de
249
250
2.2 A IDOLATRIA DO MERCADO NA GLOBALIZAÇÃO E A MITIGAÇÃO DA
PROTEÇÃO ESTATAL AO MEIO AMBIENTE: O CASO TUNA-DOLPHIN
David Ricardo formulou as bases do comércio internacional vigentes há cerca de
duzentos anos. A maior contribuição de David Ricardo era a lei da vantagem comparativa.
Todas as Nações poderiam ser favorecidas pelo comércio internacional, à medida em que
todas as Nações teriam a habilidade de ter uma vantagem comparativa em relação às outras
por produzir, com menor custo, determinados bens.174
Não se podem entender as relações internacionais da indústria sem ter como
referência a questão da competitividade, já que essa resulta dos processos de concorrência
entre empresas, hoje as grandes exportadoras, em seus mercados de atuação.
A competitividade pode ser inferida como a capacidade da empresa formular e
implementar estratégias concorrenciais, que lhe permitam ampliar ou conservar, de forma
duradoura, uma posição sustentável no mercado.175
O rápido processo de globalização e regionalização da economia mundial acarreta a
necessidade de compreensão do conceito de competitividade. Enquanto no nível de uma
empresa a competitividade é caracterizada pela participação crescente no mercado dessa
empresa às custas de outras empresas, a competitividade no nível das nações (e,
conseqüentemente, das regiões) mede-se por outros fatores.
Conforme destaca Fischer (1998, p. 22), Diretor do Instituto de Pesquisas
Econômicas de Hamburgo, o Fórum Internacional de Empresários de Davos (International
Management Forum Davos) identificou fatores nacionais que, de acordo com a teoria
econômica e com as evidências empíricas, conduzem à aferição da competitividade entre
Países. Um desses fatores é o grau de participação do país no comércio internacional e nos
fluxos de investimentos (internacionalização da economia nacional).
Nesse referencial, a competitividade depende da criação e da renovação das
vantagens comparativas176 por parte das empresas, em consonância com os padrões de
concorrência vigentes, idiossincráticos de cada setor da estrutura produtiva, valorizando
sempre a internacionalização da economia nacional.
Por outro lado, decisões sobre o uso dos recursos naturais com consideração ou
desconsideração ao impacto sobre o ambiente são determinantes básicos para a poluição e
174
175
176
que a Terra é redonda. A teoria do equilíbrio foi concebida para proporcionar generalizações de validade
intertemporal. A reflexividade acrescenta uma dimensão histórica. A flecha do tempo introduz um processo
histórico que pode ou não tender ao equilíbrio. Isso faz uma enorme diferença no mundo real” (SOROS, 1998,
p. 83).
“Ricardo é autor da conhecida “Teoria das Vantagens Comparativas” que demonstra serem vantajosas as
trocas internacionais mesmo numa situação em que determinado país tivesse maior produtividade que outro
na produção de todas as mercadorias” (FEIJÓ, 2001, p. 176).
“[...] O corpo predominante do pensamento econômico no século XX veio a definir a competição, não como
uma atividade, mas como um estado de coisas existentes em um mercado idealizado – o modelo da
concorrência perfeita” (BOETTKE, 1996, p. 106).
“A teoria das vantagens comparativas fornece uma explicação para as trocas internacionais. Segundo ela, os
diversos povos tendem a se expecializar na produção daqueles bens e serviços para os quais são melhor
dotados em relação aos demais, não devendo, pois produzir internamente produtos outros” (NUSDEO, 2000,
p. 324).
250
251
outras formas de degradação ambiental, bem como para o maior ou menor custo de produção
do país e o conseqüente interesse de investimentos internacionais neste País.
As decisões sobre o uso dos recursos naturais, que são tomadas pelo mercado, sem a
internalização do custo ambiental, mostram-se, conforme já vimos, distorcidas.
A internalização dos custos defronta-se, portanto, também, com a questão da
competitividade internacional, com as vantagens comparativas e com o dumping ecológico
(considerado vantagem comparativa reprovável).
A preocupação de segmentos da atividade econômica com relação às diferenças de
padrões das normas ambientais nos diversos países é, extremamente, relevante em um
mercado globalizado.
Agentes econômicos, que internalizam maior proporção dos custos ambientais da
produção, pela implementação de normas ambientais rigorosas ou outras medidas atinentes à
política ambiental, ficam em desvantagem em relação aos que seguem normas ambientais
menos rigorosas.
Como expressão desse jogo das forças de mercado, pode-se visualizar a forte pressão
exógena sofrida pelos Estados para uma homogenização por baixo das normas protetivas
ambientais.
Tal fato demonstra o reflexo deletério do fenômeno globalização para a proteção
ambiental. Para evitar tal comportamento, demonstrativo da ineficência protetiva do Estado
pela perda de sua autonomia, conforme destaca Habermas (1999, p. 6), mecanismos
internacionais devem ser utilizados.
Assim, sobre os limites para a utilização de instrumentos de mercado nas políticas
ambientais, o princípio n. 16 da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992 (ECO92), buscando
harmonizar a proteção ambiental e a livre concorrência no Comércio Internacional, declara:
As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a
internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos
instrumentos econômicos, levando-se em conta o conceito de que o
poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em
vista o interesse do público, sem desvirtuar o comércio e os
investimentos internacionais (HESSEN, 1967, p. 42).
Uma padronização mínima, em nível internacional, da internação dos custos
ambientais dos produtos comercializados no exterior, portanto, faz-se necessária.
Um exemplo de disputa comercial versus ambiental, no âmbito do Acordo Geral
sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – GATT), envolvendo
mecanismos internacionais de proteção do comércio internacional e do meio ambiente, podem
esclarecer essa questão.
Trata-se de casos emblemáticos do debate ecológico entre comércio exterior e meio
ambiente, relativos à existência de dumping ecológico, denominados tuna/dolphin disputes
(atum e golfinhos), ocorridos em 1991/1992 (Tuna-Dolphin I) e em 1994 (Tuna-Dolphin II) .
O caso Tuna-Dolphin I foi levantado, pelo México, contra embargos de importação
de atum, impostos pelos Estados Unidos, com a alegação de que a pesca mexicana com rede
estava ocasionando a morte de cardumes de golfinhos.
Por outro lado, o caso Tuna-Dolphin II envolveu um embargo, também americano,
só que, dessa vez, envolvendo outros países (União Européia e Nova Zelândia) que reexportavam o atum comprado do México. Tratava-se, então, de um embargo de segundo grau.
251
252
Os Estados Unidos perderam os dois casos perante o GATT, havendo farta literatura
sobre o tema.177
Na visão norte-americana, as restrições protecionistas impostas estavam corretas e
surgiram de normas protetivas ambientais internas de proteção a mamíferos marinhos
(golfinhos), o que acarretou significativa mudança tecnológica nas frotas pesqueiras norteamericanas com aumento no custo da pesca do atum.
Assim, o ingresso no país de atum pescado em desacordo com a legislação norteamericana era prejudicial ao mercado interno, que seguia as normas previstas, não podendo
ser prejudicado por ser “ecologicamente correto”.
O GATT decidiu que somente podem ser adotadas as medidas necessárias para a
proteção do ambiente, ao invocar-se o artigo XX, alínea “b”, quando atendidas determinadas
circunstâncias que, excepcionalmente, legitimam o protecionismo do mercado interno
necessário para a proteção da vida ou da saúde humana, da saúde animal ou da saúde vegetal.
Assim, a argumentação foi construída no sentido de que só pode ser invocada essa
cláusula de proteção ambiental internacional, quando:
a) o componente relevante do ambiente requerer proteção imediata;
b) de todas as medidas possíveis para a proteção do recurso ou do bem
ambiental, a adotada for a menos distorsiva do mercado;e
c) a medida adotada for proporcional à proteção ambiental exigida
(PEPPER, 2000, p. 71).
Evidencia-se, pois, a mitigação da proteção ambiental estatal, mesmo de potências
mundiais como o Estados Unidos da América, em face do comércio internacional em mundo
globalizado ansioso por competitividade e “vantagens comparativas”, expressão do
utilitarismo de Bentham e Mill no Comércio Internacional.
2.3 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO À VALORAÇÃO DO MEIO AMBIENTE PELO
MERCADO
2.3.1 O meio ambiente: valor de troca, valor-trabalho ou valor intrínseco
O GATT, ao decidir o caso apresentado anteriormente, pautou-se por critérios que
enfatizavam a ponderação de fatores exclusivamente econômicos: o comércio internacional e
as barreiras protecionistas garantidoras do mercado interno.
O meio ambiente, entretanto, não pode ser tratado de forma reducionista,
simplesmente como um recurso natural.
A teoria de valor utilizada no sistema econômico, baseia-se, fundamentalmente, no
valor de troca, o que acarreta sérios contrastes com o sistema valorativo existente no
subsistema funcional ecológico.
As teorias capitalistas neoliberais usam os consumidores para estabelecer o valor, por
meio da troca de bens e serviços num mercado. Quando a economia capitalista fala de
177
Cf. PORTER (1992, p. 91-116).
252
253
“valor”, quer significar o valor de troca presente restrito a um grupo de pessoas
(consumidor e produtor).
Esquece-se, no mercado, o contrato social178 e o contrato natural179, que
fundamenta a sociedade moderna. A solidariedade dos cidadãos de um país desaparece na
busca utilitária-individualista de um consumidor e de um produtor.
Para Serres (1994, p. 65-66), há atualmente um contrato natural entre o homem e a
Terra:
Portanto, o retorno à natureza! O que implica acrescentar ao contrato
exclusivamente social a celebração de um contrato natural de simbiose
e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o
domínio e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a
contemplação e o respeito, em que o conhecimento não suporia já a
propriedade, nem a acção o domínio, nem estes os seus resultados ou
condições estercorárias. Um contrato de armísticio na guerra
objectiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do
hospedeiro, enquanto o parasita - o nosso actual estatuto – condena à
morte aquele que pilha e o habita sem ter consciência de que, a prazo,
se condena a si mesmo ao desparecimento.
Do mesmo modo, assinala Sachs (2000, p. 49):
A ética imperativa da solidariedade sincrônica com a geração atual
somou-se a solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para
alguns, o postulado ético de responsabilidade para com o futuro de
todas as espécies vivas na Terra. Em outras palavras, o contrato social
no qual se baseia a governabilidade de nossa sociedade deve ser
complementado por um contrato natural.
Como anota Bobbio (1997, p. 114), o “liberalismo é, como teoria econômica, autor
da economia de mercado; como teoria política, é autor do estado que governe o menos
possível ou, como se diz hoje, do estado mínimo”.
Segundo Pepper (2000, p. 71), a visão utilitária caracteriza o valor de troca, “o que
satisfizer o <<desejo>> de maior número de pessoas tem maior valor. O que é mais e menos
procurado é assinalado (teoricamente) pelo preço – preço alto denotando procura alta em
relação à oferta”.
Já a teoria de Marx (1998, v. 1, p. 61) sobre o valor salienta o trabalho não se
esqueceu, Marx , entretanto, de que o mercado dá destaque ao valor de troca.
A teoria do valor-trabalho de Marx vincula-se à sua teoria da mais valia,
constituindo etapa da demonstração de que tudo é trocado por determinado valor, que
propicia o lucro (mais valia).
Assim, conforme afirma Aron (1999, p. 140), o valor de qualquer mercadoria, para
Marx, é, de modo geral, proporcional à quantidade de trabalho social médio nela contida.
178
Teoria de governo segundo a qual a sociedade é criada pela vontade comum dos indivíduos, que vêem maior
vantagem na associação do que no isolamento, e que a legítima autoridade política, portanto, está no
consentimento dos governados. O conceito remonta pelo menos a escolásticos medievais como Guilherme de
Occam, segundo o qual o poder do Estado provinha da vontade do povo, mas apóia-se principalmente nas
idéias desenvolvidas no Leviatã (1651) de Thomas HOBBES (2001), em Dois Tratados Sobre o Govemo
(1690) de John LOCKE (1998) e no Contrato Social (1762) de Jean-Jacques ROUSSEAU (2000).
179
Cf. SERRES (1994, p. 60-66) com relação ao contrato natural.
253
254
Nesse aspecto, Aron (1999, p. 140) assinala:
Por que é assim? O argumento essencial que Marx apresenta é o de
que a quantidade de trabalho é o único elemento quantificável que se
descobriu na mercadoria. Se consideramos o valor de uso estamos
diante de um elemento rigorosamente qualitativo. Não é possível
compara o uso de uma caneta com o de uma bicicleta. Trata-se de dois
usos estritamente subjetivos e, sob esse aspecto, não podem ser
comparáveis um com o outro. Como procuramos saber em que
consiste o valor de troca das mercadorias, precisamos encontrar um
elemento que seja quantificável, como o próprio valor de troca. E, diz,
Marx, o único valor quantificável é a quantidade de trabalho que está
inserido, integrado, cristalizado em cada uma delas.
O próprio Marx (1998, v. 1, p. 62) destaca, categoricamente, que “a grandeza do valor
de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que
nela se aplica”.
Assim, a teoria marxista orienta-se para o produtor. Considerando o trabalho humano
a principal fonte de valor, quanto mais trabalho investido nos produtos e serviços, mais
valorosos eles tendem a ser, especialmente se forem ao encontro das “necessidades”, mais do
que dos desejos.
Para Pepper (2000, p. 71), a economia socialista, então, não se centra no “desejo de
consumir” para estabelecer o valor, mas realçaria a utilidade social.
Não obstante as diferenciações de ênfase no consumo por desejo ou necessidade,
ambas as visões – a capitalista e a socialista – prendem-se à troca, conforme demonstramos.
Todas essas teorias fundam-se na tradição do humanismo antropocêntrico, que se
desenvolveu na Europa Ocidental a partir da Idade Média.
Existe, entretanto, a teoria “verde” do valor, que considera a natureza como fonte
primária de todo o valor.
Na visão de Pepper (2000, p. 72), essa teoria verde do valor busca mais do que
apenas atribuir “valores baixos a bens e serviços que engolem os recursos naturais. Também
implica mérito e valor na própria natureza, independentemente da sua utilidade para os seres
humanos”.
A esse valor inerente da Natureza, que passa a ser considerada como fim em si
mesmo e não como meio, denominaremos, nesta tese, de valor intrínseco.
A denominação valor intrínseco vincula-se à expressão “intrinsic value in Nature”,
oriunda de diversos autores da “environmental ethics” norte-americana, já analisados na parte
I desta tese (dimensão ética do meio ambiente).
Para a “deep ecology”, conforme já visto, os seres humanos não estão nem fora nem
acima da natureza, sendo apenas um dos seus constituintes. Portanto, os seres humanos não
podem ser árbitros do valor das outras partes constituintes da natureza.
A igualdade factual da participação do homem no meio ambiente exige que os seres
humanos valorizem e respeitem todas as outras entidades vivas e “não-vivas” (em certo
sentido, pela Teoria de Gaia, tudo está vivo ao fazer parte de um todo ecológico).
De forma simplificada, decorreria, dessa argumentação, uma das visões do valor
intrínseco do meio ambiente, que pode ser questionada consoante se utilize de uma visão
254
255
subjetiva ou objetiva do valor, conforme analisamos no primeiro capítulo desta parte da tese,
destacando que a corrente subjetiva predomina .180
Entretanto, há inúmeras outras justificativas para a valoração do bem ambiental
como valor intrínseco, mesmo sob a visão antropocêntrica.
Para fins de análise, entretanto, deve-se destacar que o valor de troca do mercado
(seja em uma visão liberal ou socialista), de cunho utilitarista – meio pelo qual o maior
número de pessoas pode satisfazer os seus desejos (visão positiva – capitalista) ou diminuir
suas necessidades (visão negativa – socialista) – entra em choque metodológico em face da
diferente hierarquia de valores utilizados.
Para fins de melhor assimilação do que foi dito, apresenta-se o quadro abaixo.
Quadro 2 - Teorias do valor e meio ambiente
Economia neoclássica
A sociedade é conjunto de consumidores racionais, agindo livremente nos
mercados para maximizar as oportunidades de satisfazer os seus desejos.
A fonte de valor dos bens e serviços é a preferência subjetiva (utilitária)
desses indivíduos. Assim, a procura crescente em relação à oferta estabelece o valor
do bem ambiental
Marxismo
A posse privada dos meios de produção e o imperativo de criar e acumular
capital geram um sistema de classes no qual não se paga o total do valor dos bens e
serviços às pessoas que o produzem. Por esta razão, o excedente (a mais-valia) é
apropriado pelos produtores.
O valor dos bens é oriundo do trabalho incorporado aos bens e aos serviços.
Intrínseco
O valor dos bens e serviços naturais não se originam da sua utilização pelo
Homem; são inererentes a ele próprio.
180
“O’Neill considera que, para haver ética ambiental, tem de se acreditar que a natureza tem valor intrínseco.
Isto é discutível, mas os ecologistas profundos concordavam certamente. No entanto, <<valor intrínseco>>
pode ter três significados de acordo como O’Neil: Primeiro, é sinônimo de valor não instrumental, de forma
que a natureza não é meio para alcançar um fim, mas um fim em si mesmo. Segundo, tem valor em termos
das suas próprias propriedades, e não apenas por virtude da sua relação com outras entidades; por exemplo,
uma floresta pode ter valor insignificante quer seja ou não a única da sua espécie. Terceiro, é um sinônimo de
valor objectivo, isto é, reside valor na natureza independentemente de quem lhe possa também dar valor. Por
outras palavras, se toda a vida humana cessasse, o resto da natureza continuava a ter valor e mérito”
(O’NEILL, 1993 apud PEPPER, 2000, p. 74).
255
256
2.3.2 Críticas aos valores de mercado, decorrentes do valor intrínseco da natureza e suas
diferentes fundamentações
Segundo Zimmerman (1998), Professor de Filosofia e de Estudos Ambientais da
Tulane University, a filosofia ambiental americana dá suporte conceitual para a
fundamentação do valor intrínseco do meio ambiente em três grandes ramos:
a) a ética ambiental (“environmental ethics”);
b) os movimentos da ecologia radical (ecologia profunda – “deep ecology”;
ecofeminismo – “ecofeminism” e ecologia social – “social ecology”,
entre outros);
c) os mecanismos protetivos antropocêntricos.
As características principais de cada um desses movimentos filosóficos ambientais,
analisados de forma exaustiva na primeira parte deste trabalho, foram detalhados de forma
sintética no quadro abaixo (ZIMMERMAN, 1998).
Quadro 3 – Ramos principais de suporte ao valor intrínseco da Natureza na “environmental
philosophy” americana
Elementos
comparativos
Conceito básico
Ramos mais
relevantes
Ética ambiental
Extensão de
preocupações morais
para outros entes nãohumanos
• Visão ecocêntrica
sentido lato –
Igualdade substancial
entre os diferentes
elementos integrantes
da teia da vida.
• Visão biocêntrica
– todos os entes vivos
e não-vivos
• Visão ecocêntrica
no sentido estrito – só
os seres vivos ou só
Ecologia Radical
Mecanismos
protetivos
antropocêntricos
Grandes mudanças de
paradigmas sociais e
culturais para a
resolução efetiva da
crise ambiental
presente
A má administração
dos recursos
ambientais,
ocasiona a atual
crise, podendo ser
resolvida sem
posturas radicais ou
filosóficas
ecocêntricas
As correntes variam
em função da
concepção da causa da
crise ambiental.
Variam em função
da ênfase nas causas
do mau
comportamento
perante os recursos
naturais, não sendo
rotulados
explicitamente.
• Ecologia Profunda –
arrogância
antropocêntrica;
• Ecofeminismo –
visão de que o
patriarcado (domínio
do sexo masculino)
explora as mulheres, os
filhos e a natureza por
• Causa ganância;
• Causa ignorância;
• Causa
comportamento
256
257
alguns deles
ser arrogante.
ilícito.
• Ecologia social –
hierarquia social
Autores mais
conhecidos
contemporâneo
s
Visão biocêntrica
Aldo Leopold; J.
Baird Callicott;
Holmes Rolston,
James Lovelock.
Visão ecocêntrica no
sentido estrito Peter
Singer; Tom Regan;
Paul Taylor; Michael
Zimmermam
Ecologia Profunda
Arnae Naess; George
Sessions.
Mark Sagoff
Ecofeminismo
Karen J. Warren;
Carolyn Mercant
Ecologia social
John Clark
Os dados do Quadro foram construídos com modificações das informações colhidas da leitura da
obra “Environmental Philosophy: from animal rights to radical ecology”, cujo escopo é dar uma
visão geral por meio de artigos da “environmental philosophy” americana (ZIMMERMAN,
1998).
De forma marcante, os dois primeiros ramos defendem a existência de valores
intrínsecos à Natureza; o terceiro ramo, de visão antropocêntrica, possui multiplicidade de
visões; entretanto, também se preocupa com a natureza como valor que possui, pelo menos
valor estético para o homem que independe de sua exploração física.181
Para a avaliação do meio ambiente, a Economia do Meio Ambiente ou dos Recursos
Naturais, ramo da economia neoclássica, preocupada com as externalidades ambientais do
mercado, de cunho antropocêntrico, surge como uma manifestação pungente do terceiro ramo,
tendo sido analisada na segunda parte desta tese sob o prisma da dimensão econômica do
meio ambiente.
A Economia dos Recursos Naturais pertence à terceira corrente, por defender como
causa da crise ambiental, a ignorância do Mercado. Reconhece, pois, que a adoção
metodológica do valor de troca ocasiona efeitos indiretos perversos na busca do valor de
equilíbrio entre a oferta e a procura, pela desconsideração de outros elementos vistos como
externalidades.
Essa variante da economia neoliberal, analisada na segunda parte da presente tese
(DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE), defende a possibilidade de um valor
181
No âmbito da economia dos recursos naturais, o valor estético, existencial ou intrínseco do meio ambiente foi
conceituado como “valor de existência”ou “valor de legado” (FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256).
257
258
que não esteja associado a qualquer utilização presente ou mesmo futura do bem
(FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256).
Nesse aspecto, Faucheux; Nöel (1997, p. 256), ao tratarem do valor de existência,
ensinam:
O valor de existência (Krutilla, 1967) reside em certos bens
ambientais pelo simples facto da sua existência e independentemente
de qualquer utilização. Ele pode ser <<apanhado>> pelos agentes
através das suas preferências (e, por conseqüência, expresso pela sua
anuência em pagar) sob a forma de um valor de não utilização. O seu
fundamento reside na sua relação com os agentes, na simpatia que
inspiram certas espécies animais ou, mais geralmente, no
reconhecimento do direito à existência dos não humanos. Este valor
de existência aparece como principalmente antropocêntrico mas pode
incluir um reconhecimento do valor da simples existência de certas
espécies ou de um ecossistema completo. O valor atribuído às baleias
não reside na utilização presente ou futura que esperamos delas e é
muito provável que os agentes susceptíveis de pagar para assegurar a
sobrevivência destes cetáceos não verão nunca nenhum deles ao vivo.
Porém, o simples facto de que estes animais existam basta para que se
lhes atribua um certo valor.
Por outro lado, considerando o valor de legado, como o aspecto transgeracional do
valor de existência, afirmam esses consagrados economistas franceses:
O valor de legado consiste em atribuir um valor a um bem ambiental
em consideração pelo uso que dele poderão fazer as gerações futuras
ou do valor de existência que estas lhe poderão reconhecer. Trata-se,
para os agentes actuais, de exprimir um consentimento em pagar para
que as gerações futuras possam dele usufruir. Não se trata portanto de
um valor de utilização (se trata de um valor de existência) para o
indivíduo que estabelece o valor, mas de um valor potencial de
utilização ou de não utilização para os seus descendentes. O problema
é que um tal comportamento por parte dos agentes actuais pressupõe
que as preferências das gerações futuras serão as mesmas que as suas.
Ora, nada é menos seguro (FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256).
Sob o ponto de vista filosófico, há, na visão antropocêntrica, a existência mínima de,
pelo menos, valor estético para a Natureza. Nesse aspecto, interessante é a obra de Sagoff
(1988, p. 172), a qual critica o valor da propriedade natural intocada em contraste com o valor
econômico dado à terra para venda e incorporações imobiliárias pelo homem.
Sagoff, (1988, cap. 8) questiona em que extensão o valor da terra reflete o preço de
mercado (valor de troca).
Destaca, em seguida, o papel do Estado de implementação de melhores normas
jurídicas para o trato da questão com base no consenso, sem que seja necessária a modificação
da lógica do mercado. Afirma, pois:
Qual a regra legislativa correta a ser formulada para resolver um
determinado problema, pode ser uma questão de opinião. Um dos
mais importantes fins do Estado, então, é permitir estruturas políticas
abertas para que as pessoas com diferentes opiniões possam evitar a
discussão acirrada e obter o consenso. A estrutura do Estado
258
259
Democrático Moderno parece ser o melhor mecanismo para obtenção
deste consenso (SAGOFF, 1988, p. 191).
Portanto, fica demonstrado que independentemente da postura filosófica que se
adote para a questão ambiental, a visão, esquecida pelo mercado no valor de troca, de que
o meio ambiente tem valor intrínseco, persiste, sendo, essa, a maior crítica à avaliação feita
pelo preço de mercado, que não leva em conta este relevante elemento valorativo.
259
260
3 O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E
CONTROLE DO MERCADO
3.1 O HORROR AMBIENTAL E A NECESSIDADE DO ESTADO INTERFERIR NO
MERCADO COM VISÃO SISTÊMICA
3.1.1 Os limites do estado e a indispensável prevalência do político sobre o econômico na
visão de Habermas
Habermas (1999, p. 4) após destacar as limitações do Estado para diminuir as
externalidades do mercado globalizado, afirma existirem quatro respostas políticas possíveis:
a) a favor da globalização;
b) contra a globalização;
c) terceira via atenuada em face da globalização;
d) terceira via mais agressiva.
A primeira resposta pauta-se pela ortodoxia neoliberal. Significa defender a
submissão incondicional do Estado aos ditames do mercado, de forma a abandonar “seus
cidadãos à afiançada liberdade negativa de uma competição mundial e limita-se, quanto ao
mais, a por regularmente à disposição infra-estruturas que tornem atraente sua própria posição
sob a perspectiva da rentabilidade e fomentem atividades empresarias” (HABERMAS, 1999,
p. 4).
Analisando tal resposta, Habermas (1999, p. 4) alerta para o perigo que esse
posicionamento pode provocar em termos de perda de democracia e de desigualdade social.
Perde-se a democracia porque o Estado nacional perde funções no contexto interno, sem que
surja, no plano supranacional, uma dinâmica correspondente.
Com relação à desigualdade social, Habermas (1999, p. 5) afirma que mesmo sob a
premissa de que em um determinado momento haverá “um equilíbrio global das posicões” das
Nações e uma “situação-limite de uma divisão simétrica de trabalho” , em um período, que
supostamente fosse de transição, a ausência do Estado traria não só “aumento drástico da
desigualdade social da fragmentação da sociedade, mas também a corrupção dos critérios
morais e da infra-estrutura cultural”.
Outra resposta possível é a diametralmente oposta. Orienta-se a rechaçar,
totalmente, as forças que tendem a aniquilar o Estado nacional e a democracia.
Para Habermas, os defensores da tese antiglobalização adotam um posicionamento
tão perigoso como o anterior, à medida em que oferecem riscos incontornáveis para a
sociedade.
Assim, Habermas (1999, p. 5) afirma:
O furor protecionista, em todo caso, leva água ao moinho da defesa
etnocêntrica da multiplicidade, da defesa xenófoba do Outro e da
defesa antimodernista das relações complexas de vida. O furor dirigese contra tudo que ultrapassa fronteiras – contra traficantes de armas e
260
261
drogas ou mafiosos que põem em risco a segurança interna, contra a
enxurrada de informações e os filmes americanos que ameaçam a
cultura pátria, ou contra o capital externo, os trabalhadores imigrantes
e os refugiados, que são um perigo ao padrão de vida próprio.
Também ressalta a dificuldade de implementação desta política, pela impossibilidade
de o Estado nacional recuperar a antiga força, em face do atual modelo de globalização.
Assim, partindo do pressuposto de que o processo de globalização é irreversível,
Habermas simpatiza-se com as opções que envolvem a terceira via (terceira e quarta opções),
em uma clara referência ao pensamento do principal teórico da terceira via, o sociólogo
britânico Anthony Giddens, que tem forte influência no Governo do Primeiro-Ministro
Britânico Tony Blair.182
Na visão do próprio Giddens (1999, p. 8), o Estado ainda é extremamente importante
no contexto da globalização. Haverá reestruturação deste e da sua soberania; entretanto,
continua o Estado a ter importantes papéis a serem desempenhados; o movimento
nacionalista, também fruto da globalização, dá destaque à importância do Estado.
Habermas (1999) observa que os defensores dessa tese – terceira via atenuada – são
conduzidos por liberalismo que prega a igualdade social, entendida apenas como igualdade de
oportunidades; que busca modo de vida orientado para o mercado, reconhecendo, em todo o
cidadão, um empresário de si mesmo.183
A variante ofensiva da terceira via (quarta opção) distingue-se da anterior, segundo
Habermas (1999), por “guiar-se pelo primado da política em relação à lógica do mercado”. 184
A terceira via atenuada estaria sujeita “à subordinação da política ao imperativo de
uma sociedade mundial integrada pelo mercado” (HABERMAS, 1999, p. 5).
Na obra “A crise de legitimação no capitalismo tardio”, “Capítulo IV – Teoremas da
crise econômica”, Habermas (1980, p. 72-73) já afirmava que, diante das crises, o Estado
passa a perseguir o fim de conduzir o sistema econômico, razão pela qual identificava quatro
categorias de atividade estatal:
a)
b)
c)
d)
as atividades de constituição e preservação do modo de produção;
as atividades de complementação do mercado;
as atividades de substituição do mercado;
as atividade de compensação de disfunções do processo de
acumulação.
182
Anthony Giddens, Diretor da “London School of Economics and Political Science”, é autor de mais de trinta
livros dos quais se destaca “The Third Way” (Polity, 1998) e “Beyond Left and Right” (Polity, 1994).
Influencia debates a respeito do futuro da social democracia em vários países no mundo. Notabilizou-se na
Inglaterra como o principal conselheiro de Tony Blair, sendo que as idéias de Giddens tiveram um forte
impacto na evolução do Novo Partido Trabalhista Britânico. (Informações disponíveis em:
http://www.lse.ac.uk/Giddens/meet.htm. Consulta em 14/01/2002).
183
“Segundo a variante defensiva, não há como anular a subordinação da política ao imperativo de uma
sociedade mundial integrada pelo mercado. O Estado nacional não deve cumprir somente um papel reativo
em vista das condições de utilização do capital de investimento, mas também um papel ativo em todas as
tentativas de qualificar os cidadãos da sociedade e capacitá-los à competição. A nova política social não é
menos universalista do que a antiga. Mas ela não deve, em primeiro lugar, servir de resguardo contra os
riscos-padrões do trabalho, e sim dotar as pessoas com qualidades empreendedoras típicas de ‘realizadores’,
que saibam cuidar de si próprios” (HABERMAS, 1999, p. 5).
184
“Quem não quiser fugir a tais preceitos tomará em consideração uma outra variante, ofensiva, da terceira via.
Essa perspectiva deixa-se guiar pelo primado da política em relação à lógica do mercado” (HABERMAS,
1999, p. 5).
261
262
Em objeção à visão marxista do Estado como uma “superestrutura” do modo de
produção185, Habermas (1980, p. 71-72) afirma que:
Hoje o Estado tem de cumprir funções que nem são explicadas com
referência aos pré-requisitos da contínua existência do modo de
produção, nem derivadas do movimento imanente do capital.
Este movimento não é mais realizado através de um mecanismo de
mercado que pode ser compreendido na teoria do valor, e sim um
resultado das forças condutoras econômicas ainda efetivas e de uma
ativa contrapartida política, na qual encontra expressão um
deslocamento das relações de produção (grifo nosso).
Assim, o Estado, para Habermas, pode e deve influenciar as forças de mercado,
pois ele não é simples reflexo do modo de produção. Com o objetivo de modificar as
relações de produção (“deslocamento das relações de produção”), distingüiu, pois, as quatro
atividades estatais de deslocamento das relações de produção.
Essa tarefa do Estado, conforme reconhece Habermas (1980, p. 72), está na sua
própria atividade de constituição do mercado e preservação do modo de produção,
restando à legislação civil destacado papel:
O Estado assegura o sistema da lei civil, como as instituições
básicas da propriedade e da liberdade de contrato; protege o
sistema de mercado dos efeitos colaterais auto-destrutivos (por
exemplo através da introdução da jornada normal de trabalho, da
legislação anti-trust e da estabilização da moeda); cumpre os prérequisitos da produção na economia, enquanto um todo (tais como:
educação, transporte e comunicação); promove a capacidade da
economia doméstica diante da competição internacional (por exemplo,
através de políticas de exportação e das áreas); e se reproduz através
da preservação militar da integridade nacional no exterior e pela
supressão paramilitar dos inimigos do sistema (grifo nosso).
Outrossim, encontra-se nas atividades de complementação, pois o processo de
acumulação de capital requer adaptação do sistema legal a novas formas de organização
comercial, competição, financiamento, tal como a criação de novos arranjos legais em direito
bancário, comercial e financeiro (HABERMAS, 1980, p. 72).
Um exemplo histórico da atividade de complementação foi dado por Polanyi (2000,
p. 18), ao destacar o papel do Estado de regular o mercado para correção das suas disfunções
185
“Base e superestrutura [...] são metáforas marxistas para descrever as relações entre a economia (relações de
produção) e o governo [...] Uma sociedade existe se houver compatibilidade entre seu governo (política, leis),
suas idéias e suas estruturas econômicas. Nem tudo é possível: se a economia muda, o governo e as idéias
terão de mudar [...] As palavras “base e superestrutura” foram introduzidas por Marx (1859). Ele afirmava
que estado, política e formas ideológicas compunham uma superestrutura construída sobre a base de relações
de produção, sendo esta última compatível com um nível definido dos meios de produção [...] A afirmação de
que pensamento e governo baseiam-se no modo de produção permeia todo o texto de A ideologia alemã
(Marx e Engels, 1845-6). Engels discutiu as relações entre base e superestrutura em inúmeras cartas escritas
entre 1890 e 1895. Ele introduziu a descrição de feedback dos relacionamentos entre base e superestrutura,
destacando que as instituições pertencentes à superestrutura têm algumas características não-determinadas
por sua base” (LOONE, 1996, p. 40-41).
262
263
e proteção da sociedade.186 Nesse ponto, salienta a importância dos instrumentos legais e
fiscais para a proteção social no contexto do protecionismo alemão no fim do século XIX:
Nossa tese é que a idéia de um mercado auto-regulável implicava uma
rematada utopia. Uma tal instituição não poderia existir em
qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da
sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e
transformado seu ambiente num deserto. Inevitavelmente, a
sociedade teria que tomar medidas para se proteger, mas qualquer que
tenham sido essas medidas elas prejudicariam a auto-regulação do
mercado, desorganizariam a vida industrial e, assim, ameaçariam a
sociedade em mais de uma maneira. Foi esse dilema que forçou o
desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida e,
finalmente, rompeu a organização social que nela se baseava (grifo
nosso). 187
Na atividade de complementação, o Estado se limita a adaptar o sistema legal ao
mercado, não influenciando a sua dinâmica. Na atividade de constituição, dá o suporte
normativo para que o mercado possa seguir a sua dinâmica própria.
Esse é o ponto nodal que distingüe os dois primeiros grupos de atividades do Estado
do terceiro (as atividades de substituição do mercado) e do quarto (as atividades de
compensação de disfunções do processo de acumulação), extremamente relevantes para a
análise do papel regulador do Estado de minimizar ou, por que não, corrigir as deficiências do
mercado em um mundo globalizado.
Nos dois primeiros grupos de atividades do Estado, característicos do Estado Liberal,
o Direito é um garantidor das políticas de laissez-faire.
Nos dois últimos, o Estado passa a ser o Estado Social, o Estado Dirigente, o Estado
Ambiental, ou, pelo menos, o Estado Regulador, aquele que intervem no fenômeno
186
A obra de Karl Polanyi, “The Great Transformation”, não obstante tenha sido escrita na
década de 1940, permanece atual para compreensão do debate da valoração feita pelo
Mercado e o seu contraste com os valores basilares da sociedade. Esta grande obra pode
ser apreciada sob a ótica da história, que já apresentou no início do seculo passado alguns
dos problemas estruturais da economia de mercado e de suas conseqüências maléficas para
a paz mundial.A grande transformação da economia primitiva para a economia capitalista
na visão do húngaro Karl Polanyi (1886-1964) proporciona uma compreensão crítica do
afastamento do homem, como sujeito por excelência do processo valorativo, em
decorrência da valoração efetivada pela estrutura do mercado-liberal e dos efeitos
perversos decorrentes desta alienação do homem do processo valorativo. Esta obra clássica
está dividida em três partes. A primeira e a terceira partes – “O sistema internacional” e a
“Transformação em progresso”- concentram-se na análise das circunstâncias que teriam
ocasionado a primeira guerra mundial, a Grande Depressão de 1929, o crescimento do
fascismo na Europa, do “New Deal” nos Estados Unidos da América e da planificação
econômica da União Soviética. Na visão de Polanyi, a civilização do século XIX fracassou
pelo efeito amargo das medidas tomadas como legítima defesa da sociedade contra
mercado auto-regulável (POLANYI, 2000).
187
“The Great Transformation” foi escrita em 1944. Com expressão assemelhada, Hobsbawm (1995, p. 29)
denomina a primeira era do século XX como a “era da catastrofe”, associando o termo as duas grandes
guerras mundiais, a queda do liberalismo, ao surgimento do socialismo e à crise econômica de 1929.
263
264
econômico, com vistas à garantia dos direitos sociais, em um primeiro momento, e dos
direitos ambientais, conforme queremos provar, em um segundo e distinto momento.188
Para Habermas (1980, p. 73), “a atividade governamental, nas duas últimas
categorias, é típica do capitalismo organizado”, não obstante de modo concreto seja difícil
diferenciar algumas atividades estatais que se encontram em uma zona cinzenta entre as
atividades classificadas.
Nas ações substitutivas do mercado, segundo Habermas (1980, p. 72), são levadas
em consideração não apenas as situações econômicas, estas continuam em primeiro plano,
muito embora o Estado passe a atuar como mais um agente econômico com vistas a uma
reação à fraqueza das forças condutoras econômicas.
O Estado passa a ser o Estado-empresário, aquele que atua diretamente como agente
econômico no mercado, utilizando da lógica do mercado (oferta e procura), muito embora
com objetivos que transcendem à axiologia dos empresários privados, conforme destaca
Habermas (1980, p. 72-73):
Tais “ações” por isto criam novas situações econômicas e negócios,
seja através da criação e da melhora de oportunidades de
investimentos (demanda governamental de progresso científicotecnológico, qualificação ocupacional de forças de trabalho etc. Em
ambos os casos, o princípio da organização permaneceu inalterado,
como pode ser visto na emergência do setor público estranho ao
sistema.
Finalmente, o Estado compensa conseqüências disfuncionais do processo
acumulativo do método valorativo do mercado.
Por um lado, encarrega-se das conseqüências externas da empresa privada,
como afirma, textualmente, Habermas (1980, p. 73), “por exemplo, dano ecológico, ou
assegura a capacidade de sobrevivência dos setores ameaçados (por exemplo, mineração e
agricultura) através de medidas de política estrutural”.
Nesse momento, no momento do capitalismo organizado, momento vivenciado por
Habermas (1980, p. 74) em 1973, data em que publicou “Legimationsprobleme im
spaetkapitalismus”, o Estado afeta o modo de produção capitalista, seja alterando a produção
da mais valia (salário-mínimo, distribuição do lucro para os trabalhadores); seja criando
estrutura salarial política (benefícios previdenciários, justiça dos “menos favorecidos” Justiça Trabalhista); seja na crescente necessidade de legitimação do sistema político, que traz
ao jogo demandas orientadas aos valores de uso e não exclusivamente aos valores de
troca.
A mudança do modo de produção capitalista, na classificação de Habermas, mais
relevante para a problemática ambiental é esta última: a correção da disfunção do mercado
de centrar-se no valor de troca, esquecendo-se do valor de uso. O que pode tornar, por
exemplo, o diamante escasso, muito mais valioso do que a água abundante, não obstante o
primeiro seja um bem supérfluo e o segundo seja um bem essencial para a vida humana.
Nas palavras de Habermas (1980, p. 73), extremamente relevantes para a dimensão
protetiva do meio ambiente no contexto de uma economia globalizada de mercado:
Finalmente, as relações de produção são alteradas por que o
deslocamento das relações de troca pelo poder administrativo é ligado
a uma condição, na qual o poder legítimo precisa estar a dispor do
188
Cf. LEITE, J., 2000, p. 13-40. Para análise da noção de um Estado de Direito Ambiental
264
265
planejamento administrativo. De funções que foram acrescidas ao
aparelho do Estado, no capitalismo avançado, extensão de assuntos
sociais procedidos administrativamente necessitam o incremento de
legitimação. Não se discute aqui alguma misteriosa dimensão; a
necessidade de legitimação emerge de condições funcionais
evidentes de um sistema administrativo que preenche os hiatos
funcionais de mercado (grifo nosso).
Nesse momento, simultaneamente, ao estabelecer o papel de propugnar pelo “dever
ser” do Estado, Habermas (1980, p. 73) rasga a cortina da visão marxista de que o Estado “é”
uma superestrutura:
[...] Na extensão que o Estado não mais representa apenas a supra
estrutura de um relacionamento político de classe, os meios
formalmente democráticos em busca da legitimação se demonstram
peculiarmente ativos. Isto; nestas circunstâncias, o sistema
administrativo é forçado a achar uso para as demandas orientadoras de
valor, com meios disponíveis de controle (grifo nosso).
Como fecho, podemos enfatizar que Habermas posiciona-se, claramente, por “uma
terceira via mais agressiva” – aquela na qual o político (oriundo do estatal de origem
democrática) prevaleça sobre o econômico, sem o esquecimento de que a Globalização é
fenômeno irreversível, porque promove a perda da soberania dos Estados.
Da mesma forma, descortina o papel do Estado de interferir no modo de produção
capitalista, não o destruindo, mas organizando-o por meio de atividades de compensação e
substituição do mercado, resgatando a disfunção deste de supervaloração da troca em
relação ao uso,189 o que possui relevantes reflexos na questão ambiental.
3.1.2 O Horror ambiental, oriundo da falta de visão metodológica no trato da questão
ambiental
Uma única vida humana sacrificada é um horror. O principal impacto causado por
Forrester (1999) consiste em lembrar-nos dessa evidência, ao tratar do desemprego e da
pobreza na sua já comentada obra “Horror econômico”, salientando a falta de perspectivas na
solução destes problemas por falhas metodológicas na sua apreciação.190
Mutatis mutandis, há um horror ambiental causado pelo mercado, o qual é visto,
indevidamente, como meramente circunstancial. Fala-se de “ecofacismo’, ou de um
189
190
Do mesmo modo Soros (1998, p. 122) destaca a necessidade de adoção de valores fundamentais que se
contrapõem à lógica utilitária do mercado: “A sociedade aberta exige alguns acordos básicos com relação ao
que é certo e ao que é errado, e os indivíduos precisam estar preparados para agir da forma correta, mesmo
que daí resultem conseqüências desagradáveis: correr em defesa da pátria ou erguer-se para a proteção da
liberdade”.
“Em que sonhos somos mantidos, entretidos com crises, ao fim das quais sairíamos do pesadelo? Quando
tomaremos consciência de que não há crise, nem crises, mas mutação? Não mutação de uma sociedade, mas
mutação brutal de uma civilização? Participamos de uma nova era, sem conseguir observá-la. Sem admitir e
nem sequer perceber que a era anterior desapareceu. Portanto, não podendo enterrá-la, passamos os dias a
mumificá-la, a considerá-la atual e em atividade, respeitando os rituais de uma dinâmica ausente. Por que essa
projeção permanente de um mundo virtual, de uma sociedade sonâmbula devastada por problemas fictícios? –
o único problema verdadeiro é que esses problemas não são mais problemas, mas, ao contrário, tornaram-se a
norma dessa época ao mesmo tempo inaugural e crepuscular que não assumimos” (FORRESTER, 1999, p. 9).
265
266
“fundamentalismo ambiental” para camuflar-se as dimensões estruturais, e não meramente
circunstânciais, da problemática ambiental moderna e da deficiência estatal de solução
efetiva.
Em geral, são precisos desastres ecológicos para que um “distúrbio funcional
ambiental” nos incomode, e, muitas vezes, cataclismas naturais para que nos comova a
verdade. A questão ambiental só nos preocupa quando ultrapassa determinado índice
estatístico; a destruição de uma árvore só é monstruosa se envolver o desmatamento de
considerável percentual da floresta amazônica.
Quando se trata de estimarem-se as conseqüências nefastas ambientais da exploração
econômica dos minérios na Amazônia, adota-se lógica numérica valorativa de percentuais que
anulam os entes não-antropocêntricos do dano ambiental, cujas vidas, únicas e distintas,
passam a ser esquecidas ou camufladas em meros dados estatísticos.
Perde-se, pois, a visão sistêmica do real “problema”, na quantificação minimizada e
separada do problema concreto ocorrido.
O horror ambiental encontra-se não só nos danos efetuados, mas,
principalmente, na falta de sensibilidade para percepção dos seus aspectos estruturais e
sistêmicos.
Nesses momentos, ideologicamente, tira-se da memória a visão transgeracional e
supra-humana ínsita à natureza e ao conceito de meio ambiente.191
No final do milênio e no início do novo, presencia-se série de transformações da
humanidade, que deveria abalar conceitos arraigados, como a visão antropocêntrica, que
restringe o valor da natureza a valor instrumental (seja de troca, seja de uso para a atividade
econômica).
A axiologia no trato da questão ambiental – centro deste trabalho multidisciplinar –
mostra-se ora reduzida ao valor-trabalho, ora ao valor de troca, ora ao valor de uso, ora ao
valor dos custos de produção (em visão estritamente econômica).
Se bem analisados todos os horrores – o econômico, o social, o ambiental e o de
legitimação social – relacionam-se, de alguma forma, com a questão ambiental e entre si,
devendo ser entendidos como problemas sistêmicos, interligados e interdependentes, que
integram mesma e grave crise – uma crise de metodologia axiológica, que se baseia em um
reducionismo econômico feito pelo mercado.
Soros (1998, p. 153), nesse aspecto, ressalta a metodologia capitalista funcional:
O sistema capitalista global é de natureza puramente funcional e a
sua função é (não surpreendentemente) econômica: a produção, o
consumo e o intercâmbio de bens e serviços. É importante observar
que o intercâmbio envolve não apenas bens e serviços, mas também
fatores de produção. Como Marx e Engels apontaram há 150 anos, o
sistema capitalista transforma a terra, o trabalho e o capital em
mercadorias. Com a expansão do sistema, a função econômica domina
a vida das pessoas e as sociedades. Penetra em searas que até então
não eram consideradas econômicas, como a cultura, a política e as
profissões (grifo nosso).
191
“O meio ambiente é assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem
o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção
unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais” (SILVA, J., 1994, p. 1).
266
267
Buscando argumentação, analogicamente, aplicável ao caso, podemos utilizar-nos da
visão holística de Capra (1998a, p. 23), ao afirmar que a crise deriva da realidade, de que
ainda hoje muitas pessoas e instituições concordam com uma visão do mundo totalmente
obsoleta e inadequada diante dos novos paradigmas da realidade global.
O grande desafio do paradigma científico do século XX, no entanto, cada vez mais
robustecido no século XXI, consiste em destacar a concepção sistêmica do mundo como um
todo integrado, e não como conjunto funcional de partes dissociada.
Nas palavras de Capra (1998a, p. 41):
[...] a emergência do pensamento sistêmico representou uma profunda
revolução na história do pensamento científico ocidental. A crença
segundo a qual em todo sistema complexo o comportamento do todo
pode ser entendido inteiramente a partir das propriedades de suas
partes é fundamental no paradigma cartesiano [...] Na abordagem
analítica, ou reducionista, as próprias partes não podem ser analisadas
ulteriormente, a não ser reduzindo-as a partes ainda menores [...]
O grande impacto que adveio com a ciência do século XX foi a
percepção de que os sistemas não podem ser entendidos pela análise.
As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só
podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo.
Nesse conceito de partes de um todo, evidencia-se que o resultado almejado pelo
sistema meio ambiente é “o desenvolvimento equilibrado de todas as formas de vida” e
não só a vida do homem, conforme enuncia Mukai192. Ademais, destaca-se que não obstante
seja composto por partes (elementos naturais, artificiais e culturais), o meio ambiente é uno e
indivisível, em face da mútua e permanente interação das partes que o compõe.193
Na verdade, a partir de uma compreensão sistêmica, os mecanismos econômicos
desenvolvem-se em estreita e inelutável interação recíproca com o meio ambiente.
Em tais condições, para Nusdeo (2000, p. 364), o sistema econômico atua como
intermediário entre, de um lado, o meio ambiente e, de outro, o próprio meio ambiente. O
fenômeno econômico de transformação de bens é simultâneamente input e output em relação
ao meio ambiente.
O pensamento sistêmico repercutiu fortemente no trato da matéria ambiental, seja no
âmbito da Ecologia (com a noção de ecossistema – já analisada), seja nas ciências biológicas
na autopoiese dos chilenos Maturana; Varela194 (1972), seja na hipótese de Gaia, concebida
pelo biólogo inglês James Lovelock e pela microbióloga Lynn Margulis.195
192
193
194
“A expressão “meio ambiente” tem sido entendida como a interação de elementos naturais,
artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida do homem,
não obstante a expressão, como observam os autores portugueses, contenha um pleonasmo,
porque “meio” e “ambiente” são sinônimos” ( MUKAI, 1992, p. 3, grifo nosso)
Cf. 1.3 Os recursos naturais como valores positivos com diferentes hierarquias para a economia e para a
ecologia.
Na obra “De maquinas y seres vivo”, Maturana (1972, p. 10) concluiu ser o próprio ser vivo um sistema
fechado, constituído pela circularidade de seus processos, e concebeu uma representação do ser vivo por meio
de uma seta circularmente voltada sobre si mesma.
195
A teoria de Gaia foi apresentada em 1972 pelo químico inglês Lovelock (1991), que
propunha que, assim como nosso corpo é auto-regulador para compensar as mudanças nas
nossas atividades e no ambiente, também o "corpo" da Terra se regula por meio dos
organismos vivos que controlam sua atmosfera, seus oceanos e sua crosta. A evolução das
267
268
Capra (1998b, p. 278), destacando mais uma vez o aspecto sistêmico da questão
ambiental, afirma, com base na hipótese de Gaia de Lovelock, que:
[...] a Terra é, pois, um sistema vivo; ela funciona não apenas, como
um organismo, mas, na realidade, parece ser um organismo Gaia, um
ser planetário vivo. Suas propriedades e atividades não podem ser
previstas com base na soma de suas partes; cada um de seus tecidos
está ligado aos demais, todos eles interdependentes; suas muitas vias
de comunicação são altamente complexas e não lineares; sua forma
evoluiu durante bilhões de anos e continua evoluindo.
A ciência dos valores utilizada, nesta parte do estudo, como instrumento teórico
integrativo das diferentes disciplinas relacionadas ao meio ambiente, permite a integração
normativa das dimensões éticas e econômicas, analisadas anteriormente, enfatizando o meio
ambiente como sistema.
A Economia e a Ecologia como ciências, conforme já visto, pactuam com essa visão
valorativa-sistêmica, não obstante divirjam no método adotado.
Assim, faz-se necessária a regulação dos conflitos entre a Economia e a Ecologia
por meio das normas jurídicas. Conforme assinala Bobbio (2000, p. 568), para conseguir a
observância dos princípios morais, a experiência histórica demonstra que é preciso ameaçar
penas terrenas e ultraterrenas para evitar desvios de conduta.
Cabe, pois, ao Estado, por meio do Direito, integrar as valorações díspares, com
base na legitimidade democrática, conforme já destacado por Habermas, Polanyi e Sagoff.196
3.2 ANÁLISE DA CRISE ECOLÓGICA POR LUHMANN
3.2.1 O enfoque sistêmico social como mecanismo de análise da crise ambiental
O enfoque sistêmico, conforme visto, proporciona análise multidimensional pela
importância dada às relações entre as partes, implicando que a sustentabilidade dos recursos
naturais só pode ser obtida em modelo capaz de analisar as complexas interações entre os
subsistemas sociais e o sistema ambiental.
O quadro abaixo diferencia o paradigma sistêmico-holístico do cartesianonewtoniano, muitas vezes, indevidamente utilizado no âmbito dos tratados das questões
ambientais.
Quadro 4 - Comparação dos paradigmas cartesiano-newtoniano e sistêmico-holístico
formas de vida e do meio ambiente físico da Terra, portanto, não é uma série de processos
independentes, mas parte da evolução de Gaia como um todo.
196
Cf. HABERMAS, 1999, p. 5; POLANYI, 2000, p. 18-19; SAGOFF, 1988, p. 191.
268
269
Paradigma cartesiano-newtoniano
Paradigma sistêmico-holístico
Dualidade sujeito-objeto
Sujeito e objeto indissociáveis
Universo composto por partículas sólidas Universo composto por energia; partículas e
distintas da luz
luz têm a mesma natureza
Natureza e homem são distintos e objeto de Natureza e homem são indissociáveis
estudo de ciências distintas
Causalidade linear
Recursividade efeito-causa
O todo contém as partes
O todo contém as partes e está contido nelas
Extraído com adaptações de Bauer (1999, p. 138).
Como observado pela Comissão Brundtland: “vista do espaço, a Terra é uma bola
frágil e pequena, dominada não pela ação e pela obra do homem, mas por um conjunto
ordenado de nuvens, oceanos, vegetação e solos” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE
MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 1).
Paralela à visão sistêmica interna dos ecossistemas, existe, no âmbito sociológico,
teoria sistêmica social com vários representantes.
Pareto (apud ABRAHAM, 1982, p. 42) foi o fundador da análise sistêmica na
sociologia com a sua formulação do conceito de sociedade como sistema em equilíbrio.
Pareto concebia o sistema social como um todo constituído de partes interdependentes. Nessa
visão, a modificação de uma das partes afetava o sistema como um todo, que buscava novo
ponto de equilíbrio com base nos seus elementos internos (“raça, valores, conhecimentos,
ideologias e sentimentos”) que se acomodavam à mudança nos elementos externos (“meio
ambiente natural”).
Após Pareto, alguns sociólogos, dentre eles Henderson e Talcott Parsons, elaboraram
modelos sistêmicos sociais e os utilizaram para análise do fenômeno social. Parson,
entretanto, consoante Abraham (1982, p. 53), é o mais importantes dos sociólogos da teoria
social sistêmica.
Com base nas informações colhidas de Abraham (1982, p. 42-52), podemos
apresentam-se as vantagens da teoria sistêmica para a análise sociológica, verbis:
1) A utilização de um vocabulário comum unificando as diferentes
correntes sociológicas;
2) Uma técnica para tratamento de organizações complexas como são
as contemporâneas;
3) Uma análise sintética que não se esquece das partes e do todo;
4) Uma visão do coração do fenômeno sociológico porque analisa os
subsistemas sociais em termos de informação e comunicação em rede;
5) A ênfase maior nas interações (relações) mais do que nas entidades;
6) Um objetivo operacional definido e não antropomórfico de estudo
dos propósitos, do processo de conhecimento simbólico e da dinâmica
dos sistemas sociais.
Assim, fica claro, pelas próprias características do fenômeno ambiental e econômico
já analisados, que a abordagem social sistêmica mostra-se adequada para o trato das
269
270
interações entre os distintos subsistemas vinculados à crise ambiental por seu caráter
sistêmico.
Como mola mestra dessa análise sistêmica social da crise ambiental, utilizar-se-á a
visão de Luhmann que, juntamente com a análise de Habermas, Polanyi e Sagoff já feitas,
sinalizam para a importância do subsistema político e jurídico na apreciação das
dimensões éticas e econômicas do meio ambiente.
3.2.2 Breve análise dos conceitos fundamentais da visão sistêmica social autopoiética de
Luhmann
Para Luhmann (1989), há metodologia própria e única para o tratamento dos sistemas
sociais.
Conforme Benarz, tradutor americano da obra de Luhmann, “Ökologische
Kommunikation: Kann die moderne Gesellschaft sich auf ökologische Gefährdungen
einstellen?”, a compreensão da teoria sistêmica de Luhmann (1989, p. viii), passa pela síntese
de pelo menos quatro correntes doutrinárias:
1. tratamento sistêmico da ação social de TALCOTT PARSONS;
2. a interpretação cibernética da relação entre sistema e entorno;
3. a abertura fenomenológica do sentido e a importância da relação
entre os componentes do sistema social;
4. uma compreensão autopoiética da organização sistêmica extraída da
visão de HUMBERTO MATURANA.
A influência da teoria dos sistemas sociais de Parsons relaciona-se à interpretação da
ação social como interação.
Para Parsons; Shils (apud ABRAHAM, 1982, p. 53), o sistema social é sistema
dinâmico, que apresenta as seguintes características:
1) Envolve um processo de interação entre dois ou mais atores, sendo
que o processo de interação deve ser o foco da atenção do
observador;
2) A motivação para a qual os atores estão orientados inclui outros
atores (alters). Esses outros atores são objeto de expectativa. As
ações dos alters são levadas em consideração pelo ego. As
possíveis expectativas dos alters podem ser um objetivo ou um
sentido para alcançar um objetivo Assim, as ações dos Alters são
levadas em conta como informação para julgamento valorativo;
3) Há no sistema social ações interdependentes e consensuais, nas
quais o consenso é fruto de objetivos e valores comuns, bem como
de expectativas normativas e cognitivas.
Parsons (apud ABRAHAM, 1982, p. 53) considera a “ação social” como o elemento
básico de construção do sistema social. A “ação social” consiste das estruturas e dos
processos por que os homens expressam as intenções e buscam implementá-las em situações
concretas.
Assim, a sociedade para Parsons é sistema em que as instituições (subsistemas)
agem para regular as relações sociais e alcançar metas sociais (ABRAHAM, 1982, p. 5255).
270
271
Figura 1 – Modelo de Interação Institucional de Talcott Parson
PROTEÇÃO/
PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA
CONFORTO
ESPIRITUAL/FIÉIS
FAMÍLIA
ENSINO/
CRIANÇAS
SOCIALIZADAS
EDUCAÇÃO
BENS E RENDA/
MÃO DE OBRA
RELIGIÃO
ECONOMIA
Desta noção de Parsons, Luhmann observa que, para funcionar com eficácia,
portanto, o sistema deve ter comunicações197 eficientes entre seus subsistemas constituintes e
mecanismos de controle eficazes para controlar suas operações.
Os sistemas sociais têm, para Luhmann, como elemento básico, a comunicação. Por
comunicação entende-se a síntese de três momentos: a emissão ou ato de comunicar, a
informação e a compreensão. Só se aperfeiçoa um ato comunicativo quando o ego
compreende que o alter emitiu uma comunicação (LUHMANN, 1989, p. 143).
Sobre a importância do conceito de comunicação para a Modernidade, Brunkhorst
(1996, p. 112-113) afirma que:
[...] Aristóteles encarava o Estado como uma comunidade envolvendo
a comunicação entre uma multiplicidade de perspectivas individuais.
Enquanto isso diz respeito à ação individual deliberada na esfera
197
A respeito da análise do que ele denomina processos comunicativos, Teubner (1989, p. IXII). Aponta para uma convergência entre o pós-estruturalismo de Foucault, a teoria do
agir comunicativo de Habermas e a teoria da autopoiesis vista a partir da teoria de
Luhmann como formas de entendimento mais profundo da epistemologia social.
271
272
política. [...] C. S. Peirce analisa a comunidade científica a partir da
perspectiva de uma comunidade de comunicação (idealizada) e G. H.
Mead leva os processos sociais de individualização por meio de
socialização para o quadro de um discurso universal. O principal
aspecto dessa universalização teórica da comunidade de comunicação
é a afirmativa de que, conforme as palavras de Jürgen Habermas
(1981, p. 105), “o processo de vida social tem uma relação com a
verdade que lhe é integrante”. Essa universalização, junto com a
socialização (incluindo a “despolitização” ou diferenciação interna)
do conceito de comunicação é um aspecto característico do
pensamento pós-metafísico da Modernidade, marcando o rompimento
radical entre o pensamento político do mundo antigo e dos clássicos
da filosofia política.
Da interação, surgem, para Luhmann, importantes conceitos como complexidade e a
distinção entre sistema social e seu entorno, diretamente relacionados à comunicação entre
os diferentes sistemas sociais e seus entornos.
A complexidade de um sistema indica a impossibilidade de conexão de todos os
elementos entre si (impossibilidade de comunicação simultânea). Desse modo, para lidar com
a complexidade, o sistema limita as possibilidades de relação entre os elementos. Portanto, a
complexidade ocasiona que as comunicações ocorram de forma seletiva. Exemplificando,
pode haver perturbações que são mais facilmente captadas pela estrutura interna do sistema
pela reverberação que produzem do que outras (LUHMANN, 1989, p. 143-144).
Para Luhmann (1989, p. 145), um sistema social forma-se quando uma conexão
autopoiética ocorre e o distingüe do seu entorno pela restrição das comunicações entre eles.
Antunes, ao prefaciar a obra de Teubner (1989, p. xii), salienta este aspecto:
Com efeito, no domínio dos fenômenos sociais, a unidade básica de
análise é ainda o “ato comunicativo”, isto é, toda a interacção
simbolicamente cristalizada que, ainda que de forma não voluntária,
sucede a gerar e desenvolver um determinado padrão intersubjetivo de
conduta. Logo que um tal padrão de conduta passe a orientar
prospectivamente as relações intersubjectivas (ou seja, o padrão das
interacções passadas passe a operar como pressuposto e limite das
interacções futuras), assistimos à emergência de um sistema
comunicativo. Ora é nisso justamente que consiste o sistema social:
um sistema autopoiético de comunicação, ou seja, um sistema
caracterizado por um perpetuum mobile auto-reprodutivo e
circular de actos de comunicação que geram novos actos de
comunicação (grifo nosso).
Assim, os sistemas sociais, por definição, operam de modo auto-referencial
(autopoiético). Destaca-se, pois, a importância da relação entre os componentes do sistema
social (visão intra-sistêmica) e não só da relação entre o sistema social, outros sistemas
sociais e seus entornos (visão intersistêmica).
Para trato desse aspecto, Luhmann utiliza-se do termo diferenciação funcional. No
texto, esse conceito refere-se à formação de sistemas dentro do sistema. A diferenciação é
funcional, na medida em que o subsistema adquire sua identidade por meio do cumprimento
de uma função do sistema macro.
272
273
A autopoiesis ocasiona e é ocasionada pelo fechamento operativo do sistema em face
das operações recursivas nele existentes, ao contrário da visão sistêmica de outros autores que
visualizam a interação do sistema, visão da cibernética,198 com o entorno por meio de inputs
e outputs.
O fechamento operativo do sistema, entretanto, não implica em seu fechamento
comunicativo com o entorno e com os outros sistemas. Há a reação do sistema às
modificações ocorridas em seu entorno por meio da ressonância.199
Luhmann (1989, p. 15), neste aspecto, afirma:
[...] Assim, vamos simplificar a problemática da relação entre sistema
e entorno pela descrição da relação entre sistema e entorno com o
conceito de ressonância. Assumiremos que a sociedade moderna é um
sistema com um grau tão grande de complexidade que é impossível
descrevê-la como uma fábrica, isto é, em termos de trasnformação de
inputs em outputs. Em vez disso, a interconexão do sistema com o
entorno é produzida por meio do fechamento operacional do sistema
pela sua estrutura recursiva. Deste modo, somente em situações
excepcionais (o que depende dos diferentes níveis de irritabilidade
do sistema pelo entorno) o sistema pode reverberar e se modificar.
Nesse caso, estará havendo ressonância (grifo nosso).
Pela ressonância, situação excepcional, o sistema com base nas suas próprias
freqüências, irá reestruturar-se, se for o caso.
Na Física, a ressonância é a “vibração enérgica que se provoca num sistema oscilante
quando atingido por uma onda mecânica de freqüência igual a uma das suas freqüências
próprias; reforço da intensidade de uma onda pela vibração de um sistema que tem
freqüência própria igual à freqüência da onda” (FERREIRA, 1986, p. 1497, grifo nosso).
Assim, o próprio Luhmann utiliza-se da Física para explicar o conceito de
ressonância, indicando que um sistema diferenciado do seu entorno só pode sofrer a
influência do entorno com base nas suas próprias freqüências.
Já influenciado pelas ciências biológicas e da autopoiese de Maturana, Luhmann
(1989, p. 144) faz menção ao acoplamento para destacar que não há nunca relações diretas
entre os sistemas sociais e os seus entornos, não obstante haja recíproca dependência
potencial entre eles, que pode se tornar efetiva ou não.
Maturana (1997, p. 86), sobre o acoplamento estrutural, afirma:
Todo sistema determinado por sua estrutura existe em um meio, ou
seja, surge em um meio ao ser distinguido ou trazido à mão pela
operação de distinção do observador. Essa condição de existência é
198
“Por fim, ainda à época que surgiam a teoria dos sistemas e o estruturalismo, N. Wiener desenvolvia esforços
semelhantes de interdisciplinaridade que resultaram na cibernética, do grego kybernytiky, que significa algo
como ‘a arte de governar navios’. Em um navio, de fato, a função do capitão é dar ordens, a do timoneiro é
comandar o timão e a do remador é remar. Cabe ao piloto, porém, como um processador de informação, a
tarefa de traduzir o objetivo final (a rota) em orientações práticas, que a todo instante mudam (por exemplo,
porque o vento mudou). Assim, governar o navio equivale a controlá-lo, por meio da comunicação com todos
os demais agentes envolvidos; a cibernética é, portanto, uma ciência da comunicação que visa ao controle. É a
comunicação o que faz de um sistema um todo integrado, e é o controle o que regula o seu comportamento. A
cibernética representa, portanto, um processo de transformação de informação que visa à consecução de
ações” (BAUER, 1999, p. 46).
199
A ressonância para Luhmann permite que o sistema possa reagir às modificações do entorno, levando em
conta a sua própria estrutura interna (LUHMANN, 1989, p. 145).
273
274
também, necessariamente, uma condição de complementaridade
estrutural entre o sistema e o meio no qual as interações do sistema
são apenas perturbações. Se a complementaridade estrutural se perde,
se ocorrer uma única interação destrutiva, o sistema se desintegra e
deixa de existir. Essa complementaridade estrutural necessária
entre o sistema determinado por sua estrutura e o meio – que eu
qualifico de acoplamento estrutural – é uma condição de existência
para todo o sistema (grifo nosso).
O sistema sempre interagirá com o ambiente como uma totalidade e, nesse processo,
sofrerá mudanças estruturais desencadeadas por essas interações, mas jamais determinadas
por elas. Assim, os sistemas autopoiéticos são estruturalmente determinados, à medida em que
as mudanças na estrutura dependerão exclusivamente do estado em que se encontrar a própria
estrutura, ainda que possam ser disparadas (triggered) pelas interações com o ambiente. Ou,
ainda, é o potencial interior (a estrutura do próprio sistema) para a mudança o que determina
se uma mudança exterior será ou não fator de fomento a uma mudança interior
correspondente. A estrutura interna do sistema filtra, pois, as potenciais mudanças provocadas
pelas interações com o ambiente.
Assim, o sistema “cria um mundo”, o seu mundo, fruto de sua própria estrutura.
Fisiologicamente falando, um animal, como o cachorro, incapaz de distinguir cores, não será
afetado pelas mudanças de cores no ambiente, assim como os seres humanos só conseguem
ouvir sons que estejam contidos numa estreita faixa de freqüências.
Ao indagar como os problemas ecológicos encontram ressonância na sociedade, se o
sistema social é especializado (diferenciado funcionalmente) e só pode reagir a eventos e
mudanças por meio das estruturas dos seus subsistemas funcionais, Luhmann (1989, p. 141)
apresenta o conceito de codificação binária.
Assim, para Luhmann, a comunicação interna entre os subsistemas funcionais ocorre
por meio da codificação binária.
Os códigos de comunicação no sistema autopoiético surgem a partir de um valor
ambivalente (positivo ou negativo), que podem ser transformados por um determinado
programa em um (positivo) ou outro (negativo).
O programa, por outro lado, seguindo um critério (aquilo que serve de base para o
julgamento e a ação – pauta valorativa), designa as condições sobre as quais associa-se um
valor negativo ou positivo a determinadas situações ou eventos. Vinculam-se os programas ao
processo de decisão do sistema de valoração positiva ou negativa de uma determinada
situação por meio do critério (LUHMANN, 1989, p. 145).
A diferenciação entre a codificação e a programação do sistema mostra-se
extremamente relevante na teoria de Luhmann, pois ela permite a operação estruturalmente
fechada do sistema e cognoscivelmente aberta.
No nível da codificação, o sistema é diferenciado pelo esquema binário (no caso do
sistema jurídico, por exemplo, legal/ilegal), nesse aspecto será estruturalmente fechado por só
admitir esse domínio de sentido (a saber, para o jurídico, legal/ilegal) (LUHMANN, 1989, p.
45).
No nível da programação, há, no entanto, a manutenção da dinâmica do sistema. Ao
nível dos programas, um sistema pode mudar as estruturas sem perder a identidade de
codificação (LUHMANN, 1989, p. 45).
No sistema jurídico, por exemplo, o adultério já foi considerado, no âmbito penal e
civil, ilícito, hoje; no entanto, considera-se lícito. O sistema jurídico permanece com a
274
275
codificação binária característica (legal/ilegal); o valor atribuído, entretanto, por modificação
no programa, que se baseia em critérios, dá uma nova resposta do sistema ao problema,
permitindo uma dinâmica temporal.
Com esses conceitos básicos, Luhmann desenvolve a análise da crise ecológica
contemporânea, conforme analisaremos em seguida, enfatizando a importância da relação
entre os componentes do sistema social e a sua efetiva comunicação que permita a
ressonância e a provocação da sua modificação estrutural.
3.2.3 Análise da crise ecológica por Luhmann com base nos subsistemas funcionais
relevantes
Luhmann (1989, p. 51-105) distingüe diferentes subsistemas sociais que compõem o
sistema social macro, na obra Ecological Communication, a saber:
1) a Economia;
2) o Direito;
3) a Ciência;
4) a Política;
5) a Religião; e
6) a Educação.
Luhmann procura desenvolver a idéia de que a sociedade moderna é fenômeno rico
em possibilidades de adaptações a novos ambientes, mas, ao mesmo tempo, difícil de lidar,
porque só opera, efetivamente, por meio dos seus diferentes subsistemas, com as
características específicas e seletivas estruturadas nos diferentes códigos e programas.
Deste modo, Luhmann (1989, p. 50) declara:
A ressonância da Sociedade, portanto, deve ser analisada em dois
níveis ao mesmo tempo (e aqui, como sempre, a idéia de diferentes
“níveis” produz um problema de sistemas teóricos). Por um lado, a
ressonância está condicionada pela diferenciação funcional da
sociedade em seus subsistemas (em vez de estar condicionada em
níveis com descompromisso no nível mais baixo e responsabilidade
no nível superior). Por outro lado, está estruturado pelos diferentes
tipos de códigos e programas dos subsistemas que os afetam
reciprocamente de acordo com o tipo de sistema ou de entorno. Como
pode ser facilmente visto, isto produz efeitos dentro do sistema, os
quais são distintos das mudanças do entorno que os ocasionaram.
Estes efeitos modificativos, por outro lado, são observados com
preocupação pelo sistema e precisam ser controlados. Mas as
mudanças só ocorrem dentro dos subsistemas funcionais de acordo
com os seus respectivos códigos e programas (grifo nosso).
275
276
Portanto, não sendo possível avaliar a sociedade moderna como um todo de forma
instantânea, as buscas de soluções e mudanças só podem ocorrer no âmbito dos subsistemas e
das formas com que estes operam por meio de seus códigos e programas.
Este é o grande desafio para a crise ambiental no mundo contemporâneo. A
complexidade do mundo natural requer uma complexidade de soluções que atuem em
todos os subsistemas que a compõem.
Assim, para demonstrar as características de cada um dos subsistemas funcionais,
correlacionamos suas características no quadro abaixo, para, em seguida, salientarmos o papel
dos subsistemas Político, Jurídico e Econômico na proteção do meio ambiente, bem como
referir-nos ao Científico, Educacional e Religioso.
Quadro 5 – Códigos, programas e critérios do sistema de Luhmann
Subsistemas Códigos
Funcionais
Programas
Critério
Economia
Mercado
Preços
Originalmente:
Ter propriedade/não ter
propriedade.
(valoração
monetária)
Atualmente:
Ter dinheiro(receber
pagamento)/não ter dinheiro(não
receber pagamento)
Direito
Legal/ilegal
Normas legais válidas
Político
Situação (estar no poder) /
oposição (não estar no poder)
Procedimentos de
legitimação do
poder
Ciência
Verdadeiro/falso
Teorias/métodos
Educação
Melhor capacitado / pior
capacitado
Construção de uma Conhecimento
carreira (seqüência
de eventos seletivos)
Religião(Mor Imanente (manifesto)/
al)
transcendente(latente)
Regras da sagrada
escritura e da
tradição
Justiça
Vontade popular
(communitas
perfecta)
Verdade
Revelação
Construída com adaptações a partir da leitura da obra de Luhmann (1989, p.
51-105) e dos paradigmas teóricos já apresentados.
Buscando concretizar o preciso modelo teórico de Luhmann, podemos exemplificar,
afirmando que para contribuir para a solução da crise ambiental e proteger o meio ambiente,
deve-se pensar em todos os subsistemas a ele vinculados nas suas características particulares.
Desse modo, para proteger o meio ambiente, deve-se pensar como a Economia pode
lucrar (obter valores monetários) sem a utilização maciça dos recursos naturais; como
276
277
convencer os políticos de que os temas ecológicos poderão garantir a sua eleição ou reeleição
(garantir que estejam na situação); como a Ciência, vista como mecanismo de solução de
problemas e busca da verdade (do conhecimento verdadeiro), pode contribuir com teorias que
otimizem a utilização dos recursos naturais; como a Educação ambiental pode ser utilizada
como disciplina de capacitação profissional (melhor capacitação pessoal), como a Natureza
possui um valor transcendente ao homem (valor intrínseco), sendo para a ortodoxia cristã
contemporânea (Religião), o homem, um administrador de recursos que não foram por ele
criados; como o Direito pode, com regras de consenso, legitimadas pela população por valores
de Justiça presentes no corpo social, proibir e incentivar condutas favoráveis à proteção
ambiental .
Luhmann (1989, p. 135) enfatiza que a unidade de cada um dos subsistemas
funcionais reside em serem guiados por códigos binários válidos somente para eles. A
unidade dos subsistemas é a sua diferença e isto rouba do macrosistema a possibilidade de
posicionar-se como um todo do lado certo (ou seja, a favor da proteção ambiental).
Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 136) critica Habermas por buscar uma
racionalidade universal reflexiva no sistema, pois este não é um, mas vários subsistemas.200
A crítica de Luhmann, baseada nas identidades próprias de cada subsistema, não
impede a busca da racionalidade dentro de cada subsistema funcional em função de seus
paradigmas (critérios) que fundamentam os seus programas (procedimentos geradores de
ações comunicativas).
Portanto, a crítica de Luhmann não descarta a busca do agir comunicativo intrasistêmico.
Pode-se concluir que Luhmann (1989, p. 137) sugere uma racionalidade para a
comunicação ecológica que não se esqueça das partes (subsistemas funcionais) que compõem
o todo (macrosistema social).
200
“Whoever still localizes rationality in the reflexivity of reason – for example, like
Habermas, in the reflexivity of a discursively ascertained rationality – will find it
impossible from now on to discover rationality either here or in what follows”
(LUHMANN, 1989, p. 136). Habermas (2000, p. 516-517), por sua vez, também critica a
teoria de Luhmann, considerando que a teoria do sistema simplifica a visão do ser e da
verdade, comprometendo-as: “A passagem filosoficamente refletida ao paradigma do
sistema tem como conseqüência, em quarto lugar, uma ampla revisão dos conceitos da
tradição ocidental fixados sobre o Ser, o pensamento e a verdade. O quadro de referência
não-ontológico torna-se nítido quando se esclarece que a pesquisa da teoria dos sistemas é
concebida como um subsistema (dos sistemas da ciência e da sociedade) com seu próprio
mundo circundante. Neste, as relações sistema-mundo circundante dadas constituem a
complexidade que a teoria de sistemas tem de apreender e reelaborar. Desse modo, são
invalidadas, com um único golpe, tanto as premissas ontológicas de um mundo autosustentável dos entes racionalmente ordenados, quanto as premissas epistemológicas de um
mundo de objetos representáveis referido aos sujeitos cognoscentes, ou as premissas
semânticas de um mundo de estados de coisas existentes referido a proposições
assertóricas. Todas as premissas que, na metafísica, na teoria do conhecimento ou na
análise da linguagem, postulam o caráter não elidível de uma ordem cósmica, da relação
sujeito-objeto ou da relação entre proposições e estados de coisas são afastadas sem
discussão. A teoria de sistemas de Luhmann efetua um movimento de pensamento que vai
da metafísica à metabiologia.”
277
278
3.3 AS EXTERNALIDADES AMBIENTAIS DO MERCADO E O PAPEL DO DIREITO
ECONÔMICO
3.3.1 As externalidades ambientais do mercado
A visão sistêmica de Luhmann, juntamente com a análise de Habermas, já feita,
sinalizam para a importância do subsistema jurídico e político na apreciação da
complexidade do mundo moderno e das relações entre as dimensões ético-ecocientíficas e
econômicas do meio ambiente.
Luhmann (1989, p. 88), ao tratar da ressonância do Político à crise ambiental, afirma,
destacando que esse é só uma parte dos subsistemas, que: “[...] há pouco sentido em atribuir
uma posição social especial ao sistema político, como se este fosse garantidor da solução
dos problemas ecológicos” (grifo nosso).
As restrições oriundas da sua codificação própria (estar no poder / não estar no
poder) evitam visualizar o político, isoladamente, como a panacéia para a solução integrativa
do problema ambiental. Entretanto, constitui-se em um mecanismo importante quando
visualizado juntamente com os outros.
Ademais, na obra “Ecological Communications”, Luhmann (1989) dá especial
destaque ao Direito e à Economia, em relação aos outros subsistemas.201
Destarte, Luhmann (1989, p. 63) particulariza que:
Na contemporânea discussão ecopolítica, o contraste entre a
linguagem dos preços e a linguagem das normas é tão relevante
quanto é demasiadamente simples. Este contraste corresponde à
distinção, existente há muito tempo, entre sociedade e Estado e sugere
uma alternativa simples na solução dos problemas ecológicos - o que
não for passível de compreensão na linguagem dos preços deve ser
expresso na linguagem das normas. Em outros termos, o que a
Economia não consegue lidar, a Política com a ajuda do seu
instrumento legal tem que lidar. Portanto, o problema ecológico
desenvolve-se rapidamente em uma responsabilidade política residual
que inesperadamente torna-se um estado permanente de vigilância
(grifo nosso).
A visão sistêmica de Luhmann destaca que há um papel latente do subsistema
jurídico de atuar nas falhas de mercado do sistema econômico, substituindo a valoração do
mercado pela valoração normativa com vistas à integração normativa dos sistemas econômico
(cujo programa é o Mercado e cujo paradigma é a valoração monetária) e político (cujo
paradigma é a busca da harmonia social – communitas perfecta).
Recorda que, nesse momento, o Direito deve, por meio de correta elaboração
legislativa fruto do subsistema Político, trabalhar com todos os outros subsistemas,
aparece, contextualmente, como o subsistema integrador dos outros (ou pelo menos da
Economia e da Política conforme enunciado explicitado por Luhmann (1989, p. 74).
201
Cf. LUHMANN, 1989, p. 51-75.
278
279
Se de forma simplificada destacamos o papel do Direito (como instrumento legal do
Político) na busca de soluções da crise de comunicação ecológica de Luhmann, destacar-se-á,
de forma análoga, que o subsistema Economia é o que causa os maiores danos ao meio
ambiente, e que para “consertá-lo” necessitar-se-á lidar com os seus códigos (receber
pagamentos/ não receber pagamentos) e programa (mercado).
Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 62) afirma:
A chave para o problema ecológico, até onde a economia está
preocupada, reside no idioma dos preços. A codificação econômica
vinculada aos preços filtra, com antecedência, tudo que acontece na
economia, quando os preços mudam ou não mudam. A economia não
pode reagir para perturbações que não são expressas neste idioma
(grifo nosso).
Sob este aspecto devem ser vistas as externalidades ambientais – danos ecológicos
resultantes da produção e consumo de bens e serviços, que são impostos a terceiros
(indivíduo, empresa, coletividade) sem nenhuma compensação e que não são considerados na
formação dos preços desses bens e serviços para transação no mercado.
Essas perturbações ambientais, decorrentes do modo de produção capitalista, não são
visualizadas pelo subsistema econômico tradicional, em face de suas limitações perceptivas.
Conforme análise feita na segunda parte desta tese – a dimensão econômica do meio
ambiente – na busca de sensibilização do sistema econômico às externalidades, surgem
reações intra-sistêmicas; a economia do bem estar e a economia do meio ambiente que
têm, em comum, a preocupação com a sociedade, buscando a proteção, respectivamente, para
os direitos sociais(direitos de segunda dimensão) e para os direitos ambientais (direitos de
terceira geração).202
Cabe, pois, ao Direito Econômico203 e ao Direito Ambiental204 transpor para o
mercado, por meio de normas jurídicas que se utilizem de instrumentos econômicos,205 a
preocupação do sistema econômico com o preço (custo) das externalidades ambientais
causadas.
3.3.2 Diferentes teorias sobre a relação mercado e direito na visão de Norbert Reich
202
203
204
205
Ambas se desenvolveram, principalmente, na elaboração de técnica de valoração
econômica das externalidades, sendo que o objeto da economia do meio ambiente é a
externalidade perturbadora de um meio ambiente sadio, consoante Capítulo V da
segunda parte desta tese.
“Falar de Direito Económico como disciplina jurídica e como ramo do direito pressupõe, pelo menos, a
enunciação de dois problemas. O primeiro, externo ao Direito, é o das relações entre economia e direito,
enquanto fenómenos da vida social e disciplinas do quadro das ciências sociais e humanas que estudam esses
fenômenos. O segundo, interno ao direito, é o de saber que razões justificam a emergência de um novo ramo
e disciplina jurídica, o Direito Económico, e que implicações o seu aparecimento traz à geografia dos ramos
de direito e das disciplinas jurídicas clássicas” (SANTOS; GONÇALVES, 1997, p. 9).
“El Derecho Ambiental no se entiende si no es a partir de la comprensión sistémica de la realidade en que
incide [...]” (MARTÍN MATEO, 1998, p. 55).
Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente
poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade
ambiental (OECD, 1989, p. 12-14).
279
280
3.3.2.1 A visão sistêmica de Norbert Reich
Sobre o mercado, instituição nuclear do sistema econômico vigente e o Direito,
significativa a obra de Norbert Reich, “Markt und Recht”, a ser analisada em sua tradução
espanhola “Mercado y derecho (teoria y praxis del derecho de la economia em la Republica
Federal de Alemania)”.
Nessa obra, Reich expõe a dualidade do Direito Econômico que deve, de um lado,
organizar os processos econômicos de forma que o mercado funcione e, de outro, em razão
das externalidades sociais (e ambientais) deve manipulá-lo.
Reich (1985, p. 19) salienta que o debate da relação intersistêmica entre o Direito e a
Economia (Mercado), estabelecido por meio do Direito Econômico, não tem sido tratado
adequadamente.
Por um lado, os economistas e sociólogos decompõem a Economia sem fazer
referência nenhuma ao Direito.
Por outro lado, o Direito, segmentado nos ramos público e privado, entende ser
completamente independente das disciplinas afins.
Perde-se, pois, a noção fundamental de Luhmann de que o Direito só atuará,
efetivamente, no campo sujeito à regulação, se levar em conta as características do objeto
regulado.
A obra de Reich (1985, p. 19) almeja – o que a torna extremamente valiosa para o
nosso trabalho – preencher essa deficiência com análise sistêmica na composição de seu
conteúdo, verbis:
[...] El libro opera com el concepto de mercado como categoría
central, el cual, no obstante, no viene determinado em forma
autónoma, sino que aparece organizado e incluso <<manipulado>>
por uma doble actuación de carácter jurídico-estatal. Las relaciones de
mercado se presentan así ampliamente, juridificadas>>. Por esta
razón, em el primer capítulo se examina la problemática teóricocientífica de la relación entre mercado y derecho, de la mano de las
corrientes doctrinales más representativas, exponiendo el autor su
propia postura personal.
Portanto, trata-se de obra sistêmica, que traz novas luzes ao debate Direito e
Economia, especialmente para o objeto desta tese, em seu primeiro capítulo - “La relacion
entre mercado y derecho como objeto de uma investigación socioeconômica y
juridicocientifica” (REICH, 1985, p. 19).
No capítulo primeiro, o autor divide a matéria em três blocos conceituais:
1. O mercado como fenômeno característico do Capitalismo;
2. Teorias sobre a relação entre o Mercado e o Direito;
3. Sua teoria sobre a relação necessária sistêmica entre o Mercado e o
Direito, denominada de “teoria da dupla instrumentalidade do Direito
Econômico” (REICH, 1985, p. 25-66).
Utilizando-se da estrutura de Reich, analisar-se-ão os posicionamentos apresentados,
de forma crítica e comparada com outros autores.
280
281
3.3.2.2 O mercado e o direito como instrumentos de orientação social:
semelhanças e diferenças
Para Weber (2000, P. 419), o mercado, do ponto de vista sociológico, “representa
uma coexistência e seqüência de relações associativas racionais”.
Ao conceituar ordem jurídica e ordem econômica, contrapõe Weber dois planos: o
que deve ocorrer e o que de fato ocorre.
Weber procura salientar que a ordem jurídica e a ordem econômica se situam em
planos distintos.
A primeira tem um sentido ideal e se indaga que sentido normativo logicamente
correto deve corresponder a um texto que se apresenta como norma jurídica, verbis:
A consideração jurídica ou, mais precisamente, a dogmático-jurídica,
propõe-se a tarefa de investigar o sentido correto de normas cujo
conteúdo apresenta-se como uma ordem que pretende ser
determinante para o comportamento de um círculo de pessoas de
alguma forma definido (WEBER, 2000, p. 209).
Ao passo que a segunda se pergunta sobre o que de fato acontece numa comunidade
em razão de existir a probabilidade de que os homens que participam da atividade comunitária
considerem subjetivamente como válida uma determinada ordem, verbis:
A economia social, ao contrário, examina aquelas ações humanas
efetivas – que estão condicionadas pela necessidade de orientar-se
pela “situação econômica”- em suas conexões efetivas. Chamamos
“ordem econômica” a distribuição do efetivo poder de disposição
sobre bens e serviços econômicos, que resulta consensualmente do
modo de equilíbrio de interesses e da maneira como ambos, de acordo
com o sentido visado, são de fato empregados, em virtude daquele
poder de disposição efetivo baseado no consenso (WEBER, 2000, p.
209).
Essa distinção de planos impede, em regra sujeita a exceções, que a ordem jurídica e
a ordem econômica se encontrem habitualmente:
É evidente que os dois modos de consideração se propõem problemas
totalmente heterogêneos, que seus “objetos” não podem entrar
imediatamente em contato, e que a “ordem jurídica” ideal da teoria do
direito não tem diretamente nada a ver com o cosmos das ações
econômicas efetivas, uma vez que ambos se encontram em planos
diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o
segundo, no dos acontecimentos reais (WEBER, 2000, p. 209).
Visualiza, entretanto, o autor a possibilidade de interferência do jurídico no
econômico e do econômico no jurídico, como exceção, sendo que, neste aspecto, entende-se o
jurídico no sentido sociológico (“vigência empírica” – “complexo de motivos efetivos que
determinam ações humanas reais”, poderíamos chamar tal conceito de efetividade social do
Direito) (WEBER, 2000, p. 226-227).
281
282
Para Reich (1985, p. 25), inicialmente, no século XIX, o mercado foi instrumento de
socialização, por permitir que “uma parte importante da satisfação das necessidades coletivas
e individuais ocorresse por meio do mecanismo do mercado”.
O mercado possui, como o Estado, um aspecto regulador, de “la utilización de
capital y de trabajo para la obtención de determinados resultados” (REICH, 1985, p. 25).
Nesse aspecto, o Mercado concorre com o Estado na regulação social. Sob esse
prisma, pode-se afirmar que o Estado e o Mercado, em certo sentido, são instrumentos de
regulação.
Do mesmo modo, Weber, no seu conceito sociológico de ação social, expressa que
a regulação existe no âmbito do Direito e no da Economia, não obstante se realizem em
planos distintos.
Assim, tanto o Direito como a Economia podem orientar as condutas humanas do
ego pelo alter. Na terminologia weberiana, ambos podem constituir relações sociais.206
Sobre o aspecto orientador do Mercado, Weber (2000, p. 13-14) é explícito, verbis:
A ação social (incluindo omissão ou tolerância) orienta-se pelo
comportamento de outros seja este passado, presente ou esperado
como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra ataques
presentes ou medidas de defesa para enfrentar ataques futuros). Os
“outros” podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade
indeterminada de pessoas completamente desconhecidas (“dinheiro”,
por exemplo, significa um bem destinado à troca, que o agente
aceita no ato de troca, porque sua ação está orientada pela
expectativa de que muitos outros, porém desconhecidos e em
número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por
sua parte, num ato de troca futuro).
Na terminologia de Luhmann (1989, p. 51-75), Estado e Mercado realizam atos de
comunicação, conforme já visto.
Entretanto, conforme destaca Weber (2000, p. 21), só o Direito possui um quadro
coativo: “Para nós, o decisivo no conceito do “direito”(que para outros fins pode ser definido
de maneira completamente diferente) é a existência de um quadro coativo”.
No mercado, ao contrário, não há um quadro particular de pessoas que aplicam a
coação de forma concentrada e institucionalizada.
Reich destaca outro aspecto diferenciador entre o Estado e o Mercado. Relembra que
a formulação clássica do pensamento de Adam Smith apresenta o mercado como
procedimento de interação entre sujeitos privados que visa um consenso.
Sendo ambos privados, há igualdade formal entre eles, não havendo hierarquia, que
legitima a coerção.
Para demonstrar as diferentes relações históricas entre Mercado e Direito, Reich
(1985, p. 30) assinala, em primeiro momento, o papel do Estado de organizar o mercado:
206
“Por ´relação` social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu
conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência. A
relação social consiste, portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja
socialmente numa forma indicável (pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se
baseia essa probabilidade” (WEBER, 2000, p. 16).
282
283
El derecho es uno de los medios decisivos para que el Estado pueda
organizar los procesos de mercado (regulación) y para que pueda
intervenir em ellos (manipulación). Durante el siglo XIX el aspecto
organizativo aparecia claramente em um primer plano. El
instrumento jurídico de la organización era el derecho civil y las
instituciones jurídicas ligadas al mismo. Em este contexto, para el
Estado no era tan importante establecer determinadas normas
jurídicas para la regulación del intercambio de mercancías, como
tutelar a través de sus órganos las instituciones básicas del tráfico
jurídico burguês, especialmente el contrato y la propiedad.
Em um segundo momento, o Estado não se preocupa em organizar o mercado, mas,
sim, em intervir nele, verbis:
El derecho del Estado social e intervencionista tiene que adoptar
naturalmente otras características, pese a que el papel de
organización del mercado permanece sustancialmente inalterado. Así
pues, entra en escena um segundo aspecto, que es característico e
identificador del derecho actual de los Estados burgueses (REICH,
1985, p. 30).
Com vistas a analisar a relação entre o Mercado e o Direito no presente, Reich
propõe abordagem interdisciplinar da Sociologia, da Economia e do Direito, em quatro
grandes grupos conceituais, a saber:
1. Da sociologia do direito burguesa, na qual enfatiza como autores Max Weber e
Luhmann;
2. Da economia burguesa neoliberal e da teoria funcional da concorrência;
3. Da teoria jurídica burguesa;
4. Da fundamentação materialista de MARX.
Com base na análise detalhada dessas diferentes respostas ao relacionamento
Mercado e Direito, construiu-se o quadro abaixo, destacando as características principais de
cada corrente e as subteorias com distintas abordagens a ela vinculadas.
Quadro 6 – Distintas concepções teóricas da relação entre mercado e direito na visão de Reich
Concepções
teóricas
Sociologia do
direito burguesa
Características
principais
- Economia, Direito e
Política são
subsistemas autônomos
e interdependentes;
- Direito pode atuar
sobre o sistema
econômico capitalista
Diferentes correntes
MAX WEBER (Domínio racional,
Direito no século XIX, formação do
direito civil);
NIKLAS LUHMANN (Caráter
contingente e precário do Direito,
limitações do Direito de atuar sobre o
Mercado por suas características intrasistêmicas).
283
284
Economia
neoliberal e
teoria funcional
da competência
- Ênfase em
instrumentos jurídicos
que garantam a
concorrência no
Mercado
ESCOLA NEOLIBERAL –EUCKEN y
HOPPMAN (O Estado só deve agir para
evitar o monopólio e garantir a livre
concorrência)
ESCOLA FUNCIONAL–
KANTZENBACH (Estado e Economia se
complementam para garantir: distribuição
de renda; composição da oferta; direção
da produção; elasticidade no processo de
adaptação e progresso técnico).
284
285
Concepções
teóricas
Teoria jurídica
burguesa
Fundamentação
materialista
Características
principais
Diferentes correntes
Direito é visto como
ciência das decisões
(previsão e
fundamentação), busca
de uma abordagem
intrajurídica.
- TEORIA DO DIREITO
NEOLIBERAL – BÖHM e
MESTMÄCKER (Direito só deve ser
utilizado para combater o abuso do poder)
- TEORIAS PLURALÍSTICAS –
RAISER e CLAUS OTT (Relações entre
Mercado e Direito explicam-se do ponto
de vista teórico-democrático).
As relações de
produção constituem a
base sobre a qual se
constrói (ou se deve
analisar) a
superestrutura política
e jurídica
- Análise de MARX (Base e
superestrutura);
- Análise de PASUKANIS (fetichismo
econômico);
- Análise de HABERMAS e de OFFE
(Estado pode atuar com atividades
substitutivas e compensatórias do
Mercado);
- Análise de LENIN (Direito atua em
defesa dos monopólios).
Fonte: Reich (1985, p. 32-60).
Reich (1985, p. 61) conclui que as respostas são variadas, segundo a concepção
teórico-científica escolhida. O autor posiciona-se, entretanto, a favor da análise materialista
moderna de Habermas e de Offe por reconhecerem a “dupla instrumentalidade” do Direito
Econômico, verbis:
Esta teoría reconoce, pues, el doble carácter del derecho que, por um
lado, organiza los procesos que discurren conforme a las reglas de
uma economia de mercado, poniendo a su disposición normas e
instituciones (em especial, el contrato,la propiedad privada, el derecho
de la propiedad industrial, etc.) y que, por outro, se convierte en um
instrumento del Estado para ejercer su influencia em dichos
procesos y, al mismo tiempo, obtener la consecución de determinados
objetivos de política social. Así pues, el derecho resulta de este modo
instrumentalizado doblemente: por parte del Estado (social) y por
parte de los agentes que actúan en el mercado; y precisamente en ello,
como se verá, hay que buscar la razón de la contradicción fundamental
que existe en el moderno derecho de la economia. La ideología de um
derecho unitario presenta ya fisuras considerables; los conflictos entre
economia y política se reproducen ahora em el plano del derecho
(grifo nosso).
3.3.3 O papel do direito econômico de proteção ambiental: integração normativa
eficiente do jurídico e político no econômico
285
286
3.3.3.1 Formas de intervenção do direito no mercado
No arcabouço teórico analisado, para fins da proteção ambiental, salientam-se, na
visão de Habermas e de Reich, respectivamente, as funções substitutivas e compensatórias
do Estado perante o mercado e a dupla instrumentalidade do Mercado.
Assim, põem-se à disposição do Estado “e das Empresas”, para Reich, determinados
instrumentos jurídicos que podem ser empregados para alcançar os objetivos de direção e
controle da Economia.
Para Reich (1985, P. 112-115), pode haver a direção do mercado pelo oligopólio,
situação em que o mercado dirige a si mesmo, o que apresenta aspectos de instabilidade
perigosa.
Seja para Habermas, conforme já vimos, seja para Reich, deve haver, sim, a direção
do mercado pelo Estado.
Reich (1985, p. 115), nesse aspecto, afirma:
Todos los sistemas económicos del capitalismo actual conocem um
sin número de posibilidades de actuación para llevar a término la
dirección de la economia por parte del Estado. Aquí se expondrá
revemente sólo el material instrumental de que dispone la República
Federal de Alemania, debiendo distinguir cuatro ámbitos diversos: la
dirección global, la microdirección indirecta, microdirección direta y
la direción mediante la propia actuación del Estado.
Assim, com base na experiência tedesca, Reich apresenta quatro níveis diversos de
atuação estatal na economia, a saber:
1. A direção global;
2. A microdireção indireta;
3. A microdireção direta;
4. A direção feita pelo próprio Estado.
A direção global vincula-se ao disposto na Constituição Federal (no caso da
Alemanha, na Lei Fundamental de Bonn de 1949), no estabelecimento das metas da
Constituição Econômica. Envolve a política fiscal, monetária, tributária, do comércio exterior
e a ação participativa dos sujeitos relevantes do Mercado na política econômica do
Estado.
Para essa última, peculiar em relação às outras presentes na Constituição Econômica
Brasileira requer-se que o Estado haja informado e solicitado a cooperação dos agentes
principais de mercado (REICH, 1985, p. 120).
A microdireção indireta encontra sua expressão no âmbito das subvenções e dos
tributos, desenvolvendo-se bastante ultimamente (REICH, 1985, p. 122). Será objeto de nossa
análise na cobrança pelo uso da água objeto principal da presente tese na Quarta Parte.
A microdireção direta manifesta-se no chamado “comando e controle” do Estado,
por meio de normas mandamentais, em franco desuso atualmente, pelo indesejado dirigismo
estatal e pela condenação da inflação legislativa (REICH, 1958, p. 123).
286
287
Também, poderíamos acrescentar, a respeito da microdireção direta, a sua ineficácia
social.
Na atuação direta do Estado, refere-se à transformação do estado em empresário
privado (REICH, 1985, p. 123).
No Brasil, concretizou-se, por meio da atuação das empresas públicas e sociedades
de economia mista, estando em desuso pela privatização ocorrida com o sopro neoliberal
iniciado a partir da eleição de Fernando Collor de Mello e amplificado nos governos seguintes
do Presidente Fernando Henrique Cardoso.
Assim, o Direito Econômico, para Reich, apresenta-se como instrumento de
intervenção (direção) nas formas apresentadas.
Entretanto, a intervenção efetiva e eficiente do Estado no mercado só poderá ocorrer,
como indica Luhmann (1989, p. 62), quando se levar em conta nas medidas interventivas, a
linguagem própria dos preços e quando, na visão de Weber (2000), houver efetividade
social nas normas jurídicas.207
A Economia não pode reagir a distúrbios que não são expressos em sua linguagem
em face da estrutura social funcional diferenciada dos subsistemas e, também, vincula-se ao
mundo do ser, só sofrendo influência do jurídico quando este tornar-se efetivo no mundo real.
Assim, no panorama contemporâneo brasileiro, a microdireção indireta e a ação
concertada têm fundamental papel nas medidas jurídicas de proteção ambiental, por lidarem
com os preços e com o consenso social do jurídico – mecanismos eficazes de intervenção
jurídica na Economia. E estas (microdireção indireta e ação concertada) deverão ser
utilizadas pelo Estado, nas suas tarefas de substituição e complementação do mercado
(atividades diretivas do Estado sobre o mercado).
3.3.3.2 O papel dos instrumentos econômicos (microdireção indireta) e a ação participativa
dos agentes relevantes do mercado (ação concertada) na proteção ambiental
Para evitar que a Natureza seja vista como uma despensa, da qual se tira, sem
constrangimento, o máximo possível de inputs, para, em segundo momento, transformá-la em
um depósito de lixo, outputs, o Jurídico e o Político devem causar ressonância no Econômico.
A irreversível diminuição da atuação estatal direta trazida pelo Estado Neoliberal
ocasiona a preferência ideológica pela utilização da microdireção indireta e da ação
participativa dos agentes econômicos na tarefa protetiva do meio ambiente, como meio de
proteção dos valores ético-ecológicos do meio ambiente.
Os instrumentos econômicos, conforme já analisados na parte II desta tese
(DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE), são considerados como uma
alternativa economicamente adequada (por permitir a participação do mecanismo de mercado)
207
“Quando, apesar disso, a ordem econômica e a jurídica estão numa relação bastante íntima, é porque esta
última é entendida não em seu sentido jurídico mas no sociológico: como vigência empírica. O sentido da
palavra ‘ordem jurídica’ muda então completamente. Não significa um cosmos de normas interpretáveis como
logicamente ‘corretas’, mas um complexo de motivos efetivos que determinam as ações humanas reais”
(WEBER, 2000, p. 209-210).
287
288
e ambientalmente eficaz para a complementação das estritas abordagens da política ambiental
de comando e controle, que muitas vezes permanece etérea somente no mundo do dever ser.
Também, são mais flexíveis que os instrumentos de comando e controle, pois
permitem que o próprio agente decida quanto, quando e como vai utilizar os recursos naturais,
em função da variação ocorrida nos seus custos.
Portanto, os instrumentos econômicos carreiam para o jurídico, as forças favoráveis
do mercado à proteção ambiental, permitindo a ressonância protetiva entre o jurídico e o
econômico, com vistas para que um mínimo ético-ecológico também possa ser
resguardado.
Já a participação dos agentes econômicos relevantes (consumidores e fornecedores)
ao meio ambiente na esfera pública contribui para que o Político e o Jurídico possam
ocasionar ressonância no Econômico.
Nesse sentido, e no que diz respeito à política, o princípio da participação é tão
antigo quanto a própria democracia, mas tornou-se, em determinado período, difícil pela
necessidade de decisões precisas e rápidas, como as que ocorreram no período entre as duas
guerras mundiais.
No período do pós-guerra, como assinala Diani (1996, p. 558), a tendência,
entretanto, foi de estender a participação a outros campos além do político – por exemplo, à
educação superior, à indústria, à atividade comercial e aos governos locais.
Na esfera ambiental, essa tendência também prevaleceu, hodiernamente, seja em
princípios ambientais internacionais, seja na Constituição vigente.208
208
A Declaração do Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o
Desenvolvimento, de 1992, como seu décimo princípio estabeleceu que: “O melhor modo de tratar as
questões do meio ambiente é assegurando a participação de todos os cidadãos interessados, no nível
pertinente”. No âmbito nacional, conforme artigo 225, caput da Constituição vigente, com relação ao meio
ambiente, impõe-se “ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo” (AGENDA 21,
1997, p. 595).
288
289
4 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS ESFERAS
SOCIAL, ECONÔMICA E ECOLÓGICA NO DESENVOLVIMENTO
SUSTENTÁVEL
4.1 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DOS DIFERENTES VALORES
SUBJACENTES AOS DIFERENTES SUBSISTEMAS FUNCIONAIS
Ao longo deste trabalho, foram apresentadas as principais alternativas para a visão
valorativa da questão ambiental, nos diferentes subsistemas funcionais existentes, surgindo,
ao fim, a necessidade de integração dessas distintas visões.209
Verificou-se que as formas de intervenção antrópica210 sobre o meio ambiente
(relação homem-ambiente) não eram muito diferentes dos conflitos oriundos das relações
entre os homens (relações sociais), no que se refere à busca incessante da apropriação de
benefícios de quaisquer natureza, respectivamente, em detrimento do outro homem (e da
coletividade) ou da Natureza.211
A norma jurídica constitui-se em instrumento com potencialidade para mediar os
interesses éticos, sociais, econômicos e políticos, atinentes à matéria ambiental, visando à
justiça.
Portanto, o direito econômico e o direito ambiental passam a ser, também,
instrumentos de intervenção da sociedade, por meio do Estado (internamente), por meio das
organizações internacionais (externamente), nas questões econômicas, sociais e ambientais,
não se podendo perder a noção integrativa-normativa, essencial para sua efetividade social.
Nesse sentido, Giddens (2000, p. 68) afirma que: “Não é realmente convincente
supor que a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico se adaptem confortavelmente
– um está fadado a entrar por vezes em conflito com o outro”, pois o choque é proveniente de
uma relação de base social, onde a relação de desenvolvimento econômico tem por princípio a
competição, a concorrência, o conflito e os direitos de terceira geração estão localizados em
uma perspectiva de colaboração, solidariedade e harmonização supra-individual .
4.2
O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO PARADIGMA
INTEGRAÇÃO DAS ESFERAS SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL
DE
209
Assim, as partes que compõem o presente trabalho procuraram analisar, em um primeiro momento, “O
VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA”, para em seguida comparar as
distintas valorações em “CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO MEIO
AMBIENTE”, destacando ao final “O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E
CONTROLE DO MERCADO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL”.
210
Antrópico – relativo à ação humana. Resolução Conama 12/94, art. 1º. "aprova o Glossário
de Termos Técnicos elaborado pela Câmara Técnica Temporária para Assuntos de Mata
Atlântica". Publicação DOU: 05 ago. 1994.
289
290
4.2.1 Por que a preocupação com a esfera social?
Poder-se-ia indagar, por que a esfera social se apresenta como relevante, neste
trabalho, cujas divisões anteriores haviam enfatizado a dimensão ética e econômica?
A tese, nesta terceira parte, após suas incursões filosóficas (Parte I) e econômicas
(Parte II), tratou da contribuição de alguns teóricos sociais contemporâneos a duas questões:
as origens e os efeitos da degradação do ambiente na sociedade contemporânea e as
condições sob as quais as forças políticas podem ser mobilizadas com êxito contra a
degradação do ambiente, o que diretamente é uma preocupação humana da sociedade.
A origem e os efeitos da degradação do ambiente na sociedade contemporânea foram
tratados, com maior relevo, na primeira e na segunda parte; cabe, pois, à terceira parte, a
busca de soluções, que passam pela conscientização e pela ação social.
A emergência de movimentos políticos que tentam impedir a destruição do ambiente
é um dos efeitos mais significativos da atual degradação do ambiente.
Assim, sociólogos contemporâneos já analisados, como Giddens, Bauman,
Forrestier, Habermas, Santos e Luhmann, refletiram sobre a questão social da crise ecológica,
seja de forma direta, seja de forma indireta, com ênfase para os direitos sociais.
Também, os sociólogos clássicos, como Marx, Weber e Durkheim deram suas
contribuições a essa questão, não obstante estivessem em um contexto histórico distinto do
atual.212
Por outro lado, sob o aspecto conceitual jurídico de meio ambiente, a questão
principal é a utilização dos recursos, bem como a posição do homem na biosfera. Essa
perspectiva humanista tem sido, por diversas vezes, adotada em pronunciamentos realizados
no fórum de organismos internacionais.213
4.2.2 A tragédia dos comuns de Hardin e o desenvolvimento sustentável
211
Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE, cap. 1 - O SER HUMANO E A
NATUREZA NA HISTÓRIA.
212
Nesse aspecto, pertinente a colocação de Goldblatt (1988, p. 21): “Apesar de tudo, a obra de Marx e
Durkheim tem para nós, no máximo, uma aplicação limitada. Em primeiro lugar, porque a sua estrutura
teórica para estudar a relação entre sociedades e ambientes é muito pouca específica para os nossos
objectivos. A interpretação do ambiente natural de Marx e Durkheim foi sempre constrangida pelos seus
conhecimentos limitados de biologia [...] Em segundo lugar, para a teoria social clássica, o problema
ecológico fundamental não eram as origens da degradação do ambiente, mas o modo como as sociedades prémodernas haviam sido controladas pelos seus ambientes naturais, e o modo como as sociedades modernas
haviam conseguido ultrapassar esses limites ou, em certa medida, se haviam desligado das suas origens
naturais”.
Nesse diapasão é significativo o primeiro princípio da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável.
Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza” (AGENDA 21, 1997, p. 595).
213
290
291
A crítica à idolatria do mercado não é só contemporânea. A tragédia dos comuns, de
Hardin, bem expressa problema trazido em 1833 pelo matemático William Forster Lloyd
sobre a superexploração de pastagens inglesas, em razão da ótica utilitarista gananciosa
(SAUNDERS, 1995, p. 67).
O argumento do panfleto escrito por Lloyd à época era de que quando a terra para
pastagem de ovelhas era disponilizada para todos, seria interesse de cada um dos pastores
maximizar a utilização deste pasto comum, o que, inevitavelmente, levaria à exaustão do solo
e a destruição da pastagem para todos.
Trata-se, pois, de questão central da crise ecológica, os limites da capacidade dos
ecossistemas da terra. Se os seres tentarem utilizar os recursos fornecidos pelo ambiente, além
de determinados limites, haverá o desequilíbrio ecológico (desvalor para a ecologia) e a
exaustão dos recursos naturais (desvalor para a economia).
Assim, na parábola de Hardin, o solo esgota a sua capacidade de sustentar as ovelhas,
o que acarreta problemas sociais para todos os pastores, em decorrência de um problema de
desequilíbrio ecológico ocasionado pela lógica do mercado.
A liberdade individual dos pastores, direcionada pelo princípio utilitarista, trouxe a
ruína para todos. Conforme assinala Hardin (1997b, p. 4), como um ser racional participante
do mercado, cada um dos pastores, de forma mais ou menos consciente irá indagar: Qual será
o meu ganho com a colocação de mais um animal no pasto comum?
A resposta a esta pergunta acarreta a colocação de mais e mais animais, segundo a
lógica de incremento do lucro, o que irá acarretar numa “tragédia”. Cada pastor estará fechado
em um sistema que o compele a aumentar o seu rebanho sem limites, em um Mundo cujas
pastagens são limitadas (HARDIN, 1997b, p. 5).
A parábola de Hobbes (2001, p. 97-98) do homem no estado da natureza é um
protótipo da tragédia dos comuns. Os homens buscam, por natureza, o seu próprio bem e
terminam lutando uns com os outros na busca dos seus próprios interesses:
Na natureza do homem encontramos três causas principais de
discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro,
a glória.
A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A
segunda, a segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a
violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e
rebanhos dos dominados [...].
Da mesma maneira que as pastagens foram destruídas, os comuns de Gaia, tal como
o Oceano, podem ser destruídos pela ganância utilitarista. Desse modo, afirma Hardin (1997b,
p. 5):
De modo análogo, os oceanos do mundo continuam a sofrer pelo
resgate da lógica dos pastos comuns. Nações marítimas ainda
respondem mecanicamente ao emblema da “liberdade dos mares”.
Acreditando na infinitude dos recursos marinhos, elas ocasionam a
extinção de peixes e baleias.
A poluição (output do fenômeno econômico), também, é vista por Hardin como uma
tragédia dos comuns às avessas. Aqui a questão não é retirar um recurso comum, mas, sim,
colocar coisas indesejáveis privadas em comum.
Conforme destaca Hardin (1997b, p. 6):
291
292
[...] Os cálculos utilitários são quase os mesmos de antes. O homem
racional descobre que compartilhar o custo do lixo, o que ele coloca
para ser compartilhado por todos é menor que o seu custo de
purificação. Uma vez que isto é verdadeiro para todo mundo, nós
ficamos presos em um mecanismo de ‘infringir as regras do nosso
próprio ninho’, no momento que nos comportamos como livres e
independentes empresários.
Ao procurar responder o que deve ser feito para solucionar esta tragédia ambiental,
no âmbito da degradação ambiental, ocorrida nos Parques Nacionais vistos, também, como
“tragédia dos comuns”. Hardin (1997b, p. 5) afirma existirem várias possibilidades, a saber:
1. Vender tudo e tornar propriedade privada;
2. Manter como propriedade pública, restringindo o seu acesso com
base em diferentes critérios (riqueza, mérito, aleatório, por ordem
de chegada).214
Destaca, por outro lado, que todas as escolhas são razoáveis, mas que uma delas deve
ser feita sob pena de, pela omissão, estarmos aceitando a destruição do Parque Nacional unidade de conservação da natureza.215
Para Saunders (1995, p. 68), a tragédia dos comuns destaca um grande problema para
a economia de mercado, porque, por meio dela, parece que a competição e o individualismo
irão levar o planeta à destruição, a menos que o Estado intervenha.
Para este autor britânico, entretanto, a solução deve ser encontrada no próprio
mercado, na clara definição dos direitos de propriedade dos recursos naturais. Quando os
recursos naturais possuem um valor de mercado e podem ser comprados e vendidos como
propriedade privada, eles tendem a ser conservados e protegidos (SAUNDERS, 1995, p. 70).
Outros irão defender as soluções públicas para a questão, como os socialistas
revolucionários, que afirmam que os males ambientais são específicos do capitalismo, por
isso, este deve ser abolido. Requer-se uma mudança revolucionária por meio de
transformações nas atividades econômicas das pessoas, erradicando a competição compulsiva
e o consumismo. (PEPPER, 2000, p. 381).
Haverá, também, a solução democrática proposta por Bobbio e a já analisada de
Habermas, que admitem a necessidade de regulação da atividade privada com respeito ao
indivíduo, à coletividade e ao mercado. Bobbio (2000, p. 101), ao destacar as duas espécies de
liberdades existentes no mundo contemporâneo, a liberal clássica (resgatada pela corrente
neoliberal), que prega o não controle do Estado, e a liberdade democrática, aquela que
aumenta o número de ações controladas pelo Estado:
Na linguagem política há dois
palavra "liberdade", sobre a
significa ora a faculdade de
impedimento dos outros que
modos predominantes de se entender a
qual me detive alhures. "Liberdade"
cumprir ou não certas ações, sem o
comigo convivem, ou da sociedade,
214
De modo semelhante a Hardin, Ostrom (1997, p. 1)postula que debates de como melhor defender os recursos
naturais e o meio ambiente devem ser vistos sob a ótica de que o Estado deve controlar estes recursos,
protegendo-os, e outros recomendam que a privatização desses recursos irá resolver o problema dos comuns
(OSTROM, 1997, p. 1).
215
“[...] unidades de conservação são espaços territoriais que, por força de ato do Poder Público, estão destinados
ao estudo e preservação de exemplares da flora e da fauna. As unidades de conservação podem ser públicas
ou privadas. O estabelecimento de unidades de conservação foi o primeiro passo concreto em direção à
preservação ambiental” (ANTUNES, 1994, p. 218).
292
293
como complexo orgânico ou, mais simplesmente, do poder estatal; ora
o poder de não obedecer a outras normas além daquelas que eu mesmo
me impus. O primeiro significado é aquele recorrente na doutrina
liberal clássica, segundo a qual "ser livre" significa gozar de uma
esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do
poder estatal; o segundo significado é aquele utilizado pela doutrina
democrática, segundo a qual "ser livre" não significa não haver leis,
mas criar leis para si mesmo. De fato, denomina-se "liberal" aquele
que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera das ações nãoimpedidas, enquanto se denomina "democrata" aquele que tende a
aumentar o número de ações reguladas mediante processos de autoregulamentação. Donde "Estado liberal" é aquele no qual a ingerência
do poder público é o mais restrita possível; "democrático", aquele no
qual são mais numerosos os órgãos de autogoverno.
Nesse aspecto, deve ser visto o desenvolvimento sustentável, não se trata de uma
solução radical, trata-se de solução democrática que busca conjugar as duas opções dadas por
Hardin, deixando um espaço para a esfera privada e outro para a esfera pública em um eterno
devir dialético de publicização e de privatização do meio ambiente, conforme será visto na
última parte da tese – A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: MECANISMOS
NORMATIVOS PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E
ECONÔMICA NO CASO CONCRETO, ao se referir à Política Nacional de Recursos
Hídricos Brasileiro.
4.2.3 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração no âmbito
normativo interno e internacional
No âmbito normativo internacional, o conceito de sustentabilidade foi assimilado
com uma notável velocidade, sendo determinante de boa parte da agenda da Conferência das
Nações Unidas, realizada no Rio de Janeiro em 1992. A Agenda 21, um programa no qual
governos de todas as partes do mundo comprometeram-se, representa um plano de ação
(agenda – plano de ação em etapas) para tornar concreto o desenvolvimento sustentável.
Agenda 21 (1997, p. 13) tem reflexos no âmbito internacional e no âmbito local, ao
prever políticas nacionais e internacionais:
Para fazer frente aos desafios do meio ambiente e do
desenvolvimento, os Estados decidiram estabelecer uma nova parceria
mundial. Essa parceria compromete todos os Estados a estabelecer um
diálogo permanente e construtivo, inspirado na necessidade de atingir
uma economia em nível mundial mais eficiente e eqüitativa, sem
perder de vista a interdependência crescente da comunidade das
nações e o fato de que o desenvolvimento sustentável deve tornar-se
um item prioritário na agenda da comunidade internacional.
O desenvolvimento sustentável, conforme assinala Holland (2001, p. 390),
constituiu-se em uma reação à resposta ambientalista inicial do conservacionismo absoluto.
Nessa visão, repelida pela comunidade internacional e nacional, deveria ser abandonada a
293
294
possibilidade de melhoria da humanidade por meio do crescimento econômico
(desenvolvimento).
A razão de não se adotar o conservacionismo na agenda internacional e nacional
pode ser facilmente explicado pela noção de que tal postura não seria aceita pelo subsistema
econômico (ansioso por obter mais recursos naturais) e pelo subsistema político (repleto de
líderes ansiosos de assegurar melhores dias para os seus simpatizantes políticos).
Por outro lado, o desenvolvimento exarcebado antípoda do conservacionismo, da
mesma forma, não se mostrava mais viável.
Nesse aspecto, Hobsbaw (1995, p. 548) mostra-se categórico no sentido de que os
defensores de políticas ecológicas têm razão ao proclamarem que o crescimento deve ser
sustentável para garantir um equilíbrio entre a humanidade e os recursos (renováveis) que ela
consome.
Holland (2001, p. 391) destaca, também, a existência de uma analogia entre o
princípio do desenvolvimento sustentável e o princípio da liberdade, defendido por Stuart Mill
na obra On Liberty. Para Stuart Mill, a liberdade, direito fundamental de primeira geração,
permite o seu pleno exercício, contanto que seja compatível com o seu exercício pelas outras
pessoas. Desta maneira, o ecodesenvolvimento autoriza perseguir-se a qualidade de vida
individual no desenvolvimento econômico, contanto que seja compatível com a qualidade de
vida para todos os presentes e, também, para as futuras gerações.
Do mesmo modo, no âmbito normativo interno, a coexistência do desenvolvimento
econômico e da proteção ambiental, ambos direitos fundamentais passíveis de proteção na
Carta de 1988, resolve-se pela noção de desenvolvimento sustentável.216
Portanto, é viável compatibilizar desenvolvimento e preservação ambiental, desde
que se considerem os problemas ambientais dentro de um processo contínuo de planejamento,
atendendo-se adequadamente às exigências de ambos os bens jurídicos e observando-se as
suas inter-relações particulares a cada contexto sócio-cultural, político, econômico e
ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço.217
Em outras palavras, a política ambiental não se deve constituir em obstáculo ao
desenvolvimento, mas sim em um de seus instrumentos, ao proporcionar a gestão racional dos
recursos que constituem sua base material, como prevê a Ordem Econômica da vigente Carta
Magna no seu art. 170 (GRAU, 1990, p. 255).
Identificando-se o princípio da defesa do ambiente como expoente conformador da
ordem econômica (mundo do ser), por ele são informados, conseqüentemente, os princípios
da garantia do desenvolvimento nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.218 O
216
“Quer seja denominado ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável, a abordagem fundamentada na
harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos não se alterou desde o encontro de Estocolmo até
as conferências do Rio de Janeiro, e acredito que ainda é válida, na recomendação da utilização dos oito
critérios distintos de sustentabilidade parcial apresentados no Anexo 1” (SACHS, 2000, p. 54) .
217
Questões como a agricultura, a matriz energética, a mineração, a indústria de transformação, os transportes, a
população, a urbanização, o saneamento, a saúde e a questao indígena devem ser vistas sob a ótica do
desenvolvimento sustentável (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 25-66).
218
“O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando
substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si,
é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos
existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento nacional
que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impede
294
295
desenvolvimento nacional não haverá mais de ser reduzido ao conceito de crescimento
econômico, mas deverá ser equilibrado,219 não só no sentido de atendimento do plano
nacional e do plano regional (procedimento necessário em face do princípio federativo), mas
para obediência do princípio da defesa do meio ambiente, com o conteúdo delineado pelo
artigo 225 da Constituição Federal.
O fato de que o desenvolvimento nacional recebeu tratamento constitucional diverso
do que lhe fora deferido na Carta anterior, deslocando-se da categoria de princípio norteador
da atividade econômica para objetivo fundamental da República, confirma a argumentação de
que o seu programa normativo deve abarcar não só a vertente econômica, mas todas as
dimensões que o termo desenvolvimento comporta.
A par de informador dos princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno
emprego, o princípio da defesa do meio ambiente constitui instrumento elementar e necessário
para a realização da finalidade da ordem econômica, a de assegurar a todos existência digna –
valor atado aos fundamentos da República Federativa do Brasil por meio do princípio da
dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) (GRAU, 1990, p. 256).
A pertinência do princípio da defesa do meio ambiente ao princípio da dignidade da
pessoa humana manifesta-se cristalina em face da determinante da qualidade de vida,
insculpida no artigo 225, caput, da C. F. Evidencia-se, ademais, a necessidade de exercício da
atividade econômica com a preocupação do não-esgotamento dos limitados recursos naturais,
comprometendo a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações.
O princípio da defesa do meio ambiente constitui, pois, um dos limites
constitucionais ao livre exercício da atividade econômica (pública ou privada), dando-lhe
precisos contornos. Portanto, o exercício da atividade econômica deve-se integrar à defesa do
meio ambiente, sob pena de violação de vários dispositivos constitucionais, entre outros, a
saber:
• do disposto no artigo 225, caput, que impõe ao Poder Público e à
coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo – porque todos têm
direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado;
• do disposto no artigo 170, caput, porque impedido assegurar-se a todos
existência digna, e do disposto no artigo 3o, II, porque, sem a defesa
material do meio ambiente, amputa-se a garantia do desenvolvimento
nacional; e
• do disposto no art. 174 § 1o, que almeja um desenvolvimento nacional
equilibrado, que incorpa e compatibiliza os planos nacionais e regionais
de desenvolvimento em um Estado Federal.
Situamos o princípio de desenvolvimento sustentável220 em diversos artigos da
Constituição, mas o núcleo se encontra no caput do artigo 225: “Todos têm direito a um meio
219
220
assegurar supõem economia autossustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem
reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico. Por esta
trilha segue a chamada ética ecológica e é experimentada a perspectiva holística da análise ecológica, que, não
obstante, permanece a reclamar tratamento crítico científico da utilização econômica do fator recursos
naturais” (GRAU, 1994, p. 249).
A Constituição Federal vigente em seu art. 174, §1o, assinala: “Art. 174 como agente normativo e regulador
da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e
planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1o – A lei
estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual
incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (grifo nosso).
A “Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em 1983,
295
296
ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O capítulo da ordem econômica também
consagra o respeito ao meio ambiente como limitador da atividade econômica (artigo 170,
inciso IV), bem como o artigo 186, que trata da função social da propriedade dentro do Título
da Ordem Econômica e Financeira.221
O conceito de desenvolvimento sustentável – aquele capaz de satisfazer as
necessidades sociais atuais sem comprometer as necessidades futuras – engloba questões
ideológicas, visto que a própria noção de desenvolvimento sempre acompanhou disputa por
diferentes formas de apropriação da riqueza e reprodução social.
Nesse contexto, Sachs (2000, p. 49) esclarece, verbis:
A Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, de
1972, ocorrida em Estocolmo, colocou a dimensão do meio ambiente
na agenda internacional. Ela foi precedida pelo encontro Founex, de
1971, implementado pelos organizadores da Conferência de
Estocolmo para discutir, pela primeira vez, as dependências entre o
desenvolvimento e o meio ambiente, e foi seguida de uma série de
encontros e relatórios internacionais que culminaram, vinte anos
depois, com o Encontro da Terra no Rio de Janeiro.
Completando sua exposição e explicando que o desenvolvimento sustentável, na sua
segunda e correta forma de interpretação, consolida a desprivatização do meio ambiente,
afirma, ainda, Sachs (2000, p. 48):
As conseqüências epistemológicas são, talvez, ainda mais
contundentes. Francisco Sagasti argumenta que o paradigma básico do
pensamento científico, herdeiro de Bacon e Descartes, chegou ao fim
no que concerne à pretensão de dominar a natureza.
Essa linha de interpretação do desenvolvimento sustentável não aceita a privatização
do meio ambiente como solução para a crise ambiental, até porque o cálculo realizado pelas
empresas só leva em conta aspectos mercantis, e o meio ambiente é uma globalidade.
Exemplificando: uma floresta desmatada nunca pode ser recuperada em sua biodiversidade
com o simples replantio de eucaliptos, que empobrecem o solo, afastam os pássaros e criam
outro ecossistema distinto do originário, resolvendo apenas a necessidade do empresário de
“preservação do meio ambiente”.
A ambição de ampliar a produtividade não se coaduna com a diversidade da natureza
e com seu processo de regeneração. O uso de insumos químicos nas plantações é bom
exemplo disso, pois acabam por exaurir a capacidade de produção da terra.
221
trabalhou durante quatro anos para produzir o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi consagrada a
expressão “Desenvolvimento Sustentável”, que foi ali conceituado como aquele que atende às necessidades
do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades.
Ele contém dois conceitos-chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos
pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das limitações que o estágio da
tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades
presentes e futuras.
Ao se decompor essa disposição constitucional percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um de feição
eminentemente ecológica ou ambiental, qual seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais
disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na verdade, constitucionalizou e ampliou uma disposição
infraconstitucional já presente na alínea “c” do parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da Terra),
qual seja, a que “assegura a conservação dos recursos naturais”.
296
297
A Constituição de 1988 adotou, como conceito de desenvolvimento sustentável,
aquele que não permite a privatização do meio ambiente, prioriza a democratização do
controle sobre o meio ambiente, ao definir meio ambiente como “bem de uso comum do
povo”, e exige o controle do capital sobre o meio por intermédio de instrumentos como o
Estudo de Impacto Ambiental, e muitos outros, que chamam a comunidade a decidir. Para
uma aplicação eficiente do desenvolvimento sustentável faz-se necessário um levantamento
da medida de suporte do ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de regeneração e de
absorção do ecossistema e estabelece-se limite para a atividade econômica. Este limite
permite que as atividades econômicas não esgotem o meio ambiente, mas que este seja
protegido para o futuro. Nas precisas palavras de Sachs (2000, p. 48):
A ecologização do pensamento (Edgar Morin) nos força a expandir
nosso horizonte de tempo. Enquanto os economistas estão habituados
a raciocinar em termos de anos, no máximo em décadas, a escala de
tempo da ecologia se amplia para séculos e milênios.
Simultaneamente, é necessário observar como nossas ações afetam
locais distantes de onde acontecem, em muitos casos implicando todo
o planeta [...].
Para Morin (1997, p. 56), o movimento ecológico nasceu da convergência entre a
ciência ecológica de um lado e o movimento neonaturista (sobretudo o americano) de outro.
Assim Morin (1997, p. 56-57), referindo-se ao movimento conservacionista da
Natureza, oriundo das previsões catastróficas do Clube de Roma, afirma:
[...] O verdadeiro problema não estava em deter o crescimento
econômico, mas em controlá-lo e regulá-lo. Podemos dizer que o
crescimento zero foi um mito que abriu uma problemática, e que as
previsões do Clube de Roma foram o equivalente ecológico das
primeiras cartas geográficas desenhadas pelos navegadores árabes da
Idade Média: estes enganavam-se completamente sobre a posição dos
continentes e dos países, mas tinham o grande mérito de esforçar-se
em refletir sobre o mundo que conheciam e em representá-lo tão
precisamente quanto podiam [...] (grifo nosso).
Assim, a noção de desenvolvimento sustentável está intimamente ligada à proteção
ambiental das presentes e das futuras gerações, razão por que se define desenvolvimento
sustentável como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento das atuais gerações, sem
comprometer o meio ambiente para as gerações futuras, incluindo não apenas o aspecto
econômico, mas também os seus valores de beleza, harmonia social e equilíbrio (valores
ético-ecológicos).222
Tal desenvolvimento terá que definir a medida da capacidade de suporte dos
ecossistemas, em relação a bens renováveis; a taxa de uso não poderá ser superior à taxa de
regeneração (plano de manejo); as taxas de resíduos não poderão exceder a capacidade de
absorção do meio ambiente; e, quanto aos bens naturais não renováveis, a taxa de uso não
poderá exceder a taxa de recursos substitutos.
222
No Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1991, p. 388), definiram-se como
princípios gerais a eqüidade entre as gerações (2. Os Estados devem conservar e utilizar o meio ambiente e os
recursos naturais em benefício das gerações presentes e futuras) e a conservação e uso sustentável (3. Os
Estados devem manter os ecossistemas e os processos ecológicos essenciais ao funcionamento da biosfera,
preservar a diversidade biológica e observar o princípio da produtividade ótima sustentável, ao utilizarem os
ecossistemas e recursos naturais vivos).
297
298
Por fim, não se pode esquecer que a sustentabilidade sempre envolve o
desenvolvimento socialmente justo, com a distribuição das riquezas e do conhecimento.
298
299
PARTE IV
A
COBRANÇA
PELO
USO
DA
ÁGUA:
MECANISMOS
NORMATIVOS
PLURAIS
PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA
ECONÔMICA NO CASO CONCRETO
E
E
A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã. A contribuição
internacional na gestão dos recursos hídricos e a construção de um direito
fundamental à água. A política nacional de recursos hídricos (Lei Federal n.
9.433/97) e seus princípios estruturantes. A cobrança pela utilização da água na
política nacional brasileira de recursos hídricos. Desafios jurídico-institucionais da
gestão integrada participativa por bacia em país federado. Mecanismos normativos
de resolução da lide pela água.
“A terra flutua na água que é de certo
modo a origem de todas as coisas...”
Tales de Mileto
“Andávamos por aí vendo a ribeira, a
qual é de muita água e muito boa. Ao
longo dela há muitas palmas [...]
Fomos até uma lagoa grande água
doce, que está junto com a praia,
porque toda aquela ribeira do mar é
apaülada por cima e sai por muitos
lugares [...] Águas são muitas; infindas.
E em tal maneira é graciosa
que,querendo-a aproveitar [a terra],
dar-se-á nela tudo, por bem das águas
que tem.”
Carta de Pero Vaz de Caminha
299
300
1 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL FUNDAMENTAL ONTEM,
HOJE E AMANHÃ
1.1 A ÁGUA NA VISÃO COSMOGÊNICA DOS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS
A denominação “filósofos pré-socráticos” é basicamente cronológica e designa os
primeiros filósofos, que viveram antes de Sócrates (470-399 a.C.), chegando alguns dos
últimos a serem seus contemporâneos.
Sócrates é tomado como um marco, não só devido a sua influência e importância,
mas também por introduzir uma nova problemática na discussão filosófica, as questões éticopolíticas, ou sejam, as problemáticas humana e social que praticamente ainda não haviam sido
discutidas, pois os filósofos que o antecederam preocuparam-se mais com a explicação do
cosmos.223
Aristóteles (1968, p. 694), na sua obra Metafísica, afirma que os primeiros filósofos
acreditavam que na Natureza nada era gerado ou destruído.
Logo, o objeto de investigação dos primeiros fílósofos é o mundo natural, sendo que
suas teorias buscam dar uma explicação causal dos processos e dos fenômenos naturais a
partir de um elemento primordial (arqué). Ao contrário da visão mítica, não buscam as
explicações em um mundo sobrenatural, divino; ao contrário, utilizam-se do mundo natural e
humano, baseando-se na causalidade dos fenômenos naturais (MARCONDES, 2001, p. 24).
A fím de evitar a regressão ao infínito da explicação causal, o que a tornaria
insatisfatória, esses filósofos vão postular a existência de um elemento primordial. O
primeiro a formular essa noção é exatamente Tales de Mileto, que afirma ser a água (hydor) o
elemento primordial.
Não sabemos por que Tales teria escolhido a água, entretanto, podemos realizar
conjecturas a respeito de:
1. ser o único elemento que se encontra na natureza nos três estados sólido,
líquido e gasoso;
2. Tales ter sido influenciado por antigos mitos do Egito224 e da
Mesopotâmia (origem oriental da concepção da água), civilizações de
regiões áridas e que se desenvolveram em deltas de rios e onde por isso
mesmo a água aparece como fonte de vida;
223
224
“O significado do termo kosmos para os gregos desse período liga-se diretamente às idéias de ordem,
harmonia e mesmo beleza (já que a beleza resulta da harmonia das formas; daí, aliás, o nosso termo
“cosmético”). O cosmo é assim o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de
acordo com certos princípios racionais. A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional,
uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se constitui de forma determinada,
tendo a causalidade como lei principal. O cosmo, entendido assim como ordem, opõe-se ao caos, que seria
precisamente a falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização. É importante notar que a ordem
do cosmo é uma ordem racional, “razão” signifícando aí exatamente a existência de princípios e leis que
regem, organizam essa realidade” (MARCONDES, 2001, p. 26).
“Ninguém lhe deu lições, com a única exceção de sua viagem ao Egito onde passou algum tempo com os
sacerdotes. Hierônimos conta-nos que Tales mediu a altura das pirâmides pela sombra das mesmas, fazendo a
medição na hora em que nossa própria sombra corresponde ao nosso tamanho” (LAÊRTIOS, 1977, p.18).
300
301
3. que a Terra bóia no Oceano, “A terra que emerge de uma vastidão
ilimitada de água primeva continuará a estar rodeada de água” (KIRK;
RAVEN, 1966, p. 6).
4. os alimentos e os germes serem todos húmidos (ARISTÓTELES, 1968,
p. 694).
5. razões metereológicas pela observação do ciclo hidrológico (chuvas, rios,
mares, infiltração da água no solo, evaporação)
6. precedentes homéricos na Ilíada e na Odisséia.
7. razões fisiológicas, conforme teoria defendida por Aristóteles ao se
referir a Tales, assinalando que todos os seres vivos dependem da água
no que respeita à sua alimentação e que o sêmen é humido, dentre outras
razões (KIRK; RAVEN, 1966, p. 85).
8. A própria origem familiar fenícia de Tales, sendo os fenícios os grandes
desbravadores do mar da época.225
No que se refere ao fundamento para escolha da água como arqué, Aristóteles (1968,
p. 693-694), na Metafísica, de forma clara, analisa o significado de arqué e uma possível
razão para a escolha da água por Tales de Mileto (a umidade existente nos alimentos e nos
germes):
Na sua maior parte, os primeiros filósofos pensaram que os princípios,
sob a forma de matéria, foram os únicos princípios de todas as coisas:
pois a fonte original de todas as coisas que existem, aquela a partir da
qual uma coisa é primeiro originada e na qual por fim é destruída, a
substância que persiste mas se modifica nas suas qualidades, essa,
afirmam eles, é o elemento e o primeiro princípio das coisas que
existem, e por essa razão consideram que não há geração ou morte
absolutas, com base no facto de uma tal natureza ser sempre
preservada [...]
Para Kirk; Raven (1966, p. 85), com base em analogia com os sucessores imediatos
de Tales era possível supor que ele tivesse aduzido razões meteorológicas, de forma mais
evidente, em apoio à importância cósmica da água.
Ainda, defendem esses autores a origem oriental desta concepção, com base na visão
do Egito e da Mesopotâmia. Assim, afirmam:
A origem próximo-oriental de parte da cosmologia de Tales é indicada
pela sua concepção de que a terra flutua ou repousa na água. No
Egipto, a terra era geralmente concebida como uma taça rasa e com
rebordo, em repouso sobre a água, que também enchia o céu; o Sol
navegava diariamente através do céu num barco, e bem assim por
baixo da terra todas as noites [...]. Na epopéia babilônica da criação,
Apsu e Tiamat representam as águas primevas, e Apsu subsiste como
água subterrânea depois que Marduk fragmentou o corpo de Tiamat
para formar o céu (com as suas águas) e a terra. Na história de Eridu
século sétimo a.C. (na versão mais recente que possuímos), a princípio
<<toda a terra era mar>>; então Marduk construíu uma jangada à
225
“Tanto Herôdotos como Dúris e Demôcritos dizem que Tales era filho de Examias e Cleobuline, e pertencia à
família dos Telidas, que eram de origem fenícia e estavam entre os descendentes mais nobres de Cadmos e de
Agênor. De acordo com o testemunho de Platão ele era um dos Sete Sábios; foi o primeiro a receber o nome
de sábio, no arcontado de Damasias em Atenas [...]” (LAÊRTIOS, 1977, p. 18).
301
302
superfície da água, e sobre a jangada, uma cabana de junco que se
transformou em terra (KIRK; RAVEN, 1966, p. 86).
Segundo Mileto (apud LAÊRTIOS, 1977, p.19), o princípio de todas as coisas é a
água. A água seria, então, um substrato permanente, origem de todas as coisas, elemento da
vida.
Nesse sentido, ilustrativa a passagem de Villiers (2002, p. 50), a respeito da origem
da vida e da água na ciência evolucionista de Darwin:
Darwin e os primeiros evolucionistas imaginavam a vida evoluindo
em uma piscina de água pastosa, rica em nutrientes e substâncias
químicas, uma idéia ainda muito aceita hoje em dia, mesmo que exista
um pequeno mas influente grupo científico que acredita que a vida
também possa ter nos chegado do espaço [...]
A ciência contemporânea retrata que Tales não estava distante da verdade. Ball
(2001, p. 16), em sua biografia da água, ressalta que a composição química desta (dois átomos
de hidrogênio e um de oxigênio) demonstra que, caso exista um único elemento primordial
no Universo, este será o hidrogênio, um dos componentes da água, que possui
etmologicamente este nome, exatamente em razão de ser gerador da água.
1.2 A ÁGUA COMO SÍMBOLO CULTURAL DA INTEGRAÇÃO DO HOMEM COM A
NATUREZA
Para Jung (1964, p. 20), o que chamamos símbolo é um termo, um nome, ou mesmo
uma imagem que pode ser familiar na vida cotidiana, mas que possui uma conotação
específica além do seu sentido óbvio.
Na arte e na literatura, freqüentemente há o uso de uma imagem ou atividade para
representar outra coisa, geralmente um emblema tangível de algo abstrato ou um objeto
mundano que evoque um domínio superior.
Os símbolos podem-se basear em correlações convencionais (como o aperto de mão,
que representa a acolhida e abertura para o diálogo), semelhanças físicas (como a rosa
vermelha que se associa a eros ao lembrar os lábios) ou de outro tipo de correlação entre o
símbolo e seu referente.
Assim, Jung (1964, p.20-21) afirma:
Então uma palavra, uma imagem é simbólica quando implica alguma
coisa mais que o seu significado óbvio ou imediato. Possui um maior
aspecto do inconsciente que o que é definido ou explicado. Ninguém
pode esperar definir ou explicar isso completamente. Quando a mente
explora um símbolo, a mente é levada para idéias que estão além do
racional. A roda pode levar nossos pensamentos a um conceito de sol
“divino”, mas esse conceito deve admitir a sua incompetência.
Quando, com nossas limitações intelectuais, nós chamamos alguma
coisa de divina, nós estamos, simplesmente, dando um nome a isto,
que pode ser baseado em uma crença, mas nunca em uma evidência
fática.
302
303
Para a lingüística, todas as palavras são consideradas símbolos, ou signos, arbitrários,
vinculados àquilo a que se referem em virtude do uso e do costume, estudados neste aspecto
pela semiótica.226
Segundo a psicanálise, os símbolos, em especial as imagens dos sonhos, são
manifestações de desejos e temores subconscientes e reprimidos de extrema relevância para o
equilíbrio psíquico (JUNG, 1964, p. 50).
A maior parte das imagens religiosas e rituais é simbólica; por exemplo, o que se
põe à mesa nos banquetes e nas cerimônias realizadas no âmbito da páscoa judaica e cristã
simbolizam fatos ocorridos, quando os israelitas se libertaram do Egito, ou quando ocorreu a
morte e ressureição de Cristo (páscoa cristã).
Do mesmo modo, ao buscar a explicação do mundo, o homem se apoiou em
símbolos e imagens mitológicos tendo eles influenciado, também, a “ciência”, conforme
pudemos constatar na busca pelos pré-socráticos de um princípio fundamental.
Da mesma forma como o sol representou a divindade, a água, também, sempre foi
uma fonte simbólica, não tendo perdido esta característica com a modernidade.
Como Jung (1964, p. 23) afirma, o homem desenvolveu a consciência lentamente e
laboriosamente, em um processo que levou muito tempo para que fosse atingido o estado de
civilização. O que nós chamamos de “psíque”, portanto, não é, de nenhum modo, idêntico ao
que a nossa consciência contém.
A água está, assim, na natureza e, a um só tempo, na cultura. Está nos mitos e na
história. Como afirma Cunha (2000, p. 15):
Prenhe de significados, a água é um elemento da vida que a
encompassa e a evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários.
Se, por um lado, é condição básica e vital para a reprodução,
dependendo dela o organismo humano, por outro, a água se inscreve
no domínio do simbólico, enfeixando várias imagens e significados.
Isso se manifesta quer nos ritos, nos cerimoniais sagrados e
mitológicos, quer nas práticas agrícolas, no cultivo das plantas e das
flores, na fecundação da terra (e da alma).
A própria idéia de Tales de Mileto, de que a água é o elemento primordial, enseja a
visão simbólica de sua relevância para o Homem e para a Natureza. Assim, tudo dela teria
surgido, tanto o Homem, como os animais, como todas as partes do ecossistema natural.227
Barlow; Clark (2003, p. 3), ativistas ecológicos canadenses, utilizando-se de
passagens bíblicas, afirmam, ao destacarem a importância da água para os povos bíblicos, que
os poços de água abertos por Abrão, Isaac e Jacó eram motivos de constantes disputas nas
tribos de Israel.
Corbin (1989, p. 12), ao afirmar que o oceano representa o inacabado, assinala:
Esse elemento indomável manifesta o inacabamento da Criação. O
oceano constitui a relíquia daquela substância primordial
indiferenciada que tinha necessidade, para tornar-se natureza criada,
de que Ihe fosse imposta uma forma. Esse reino do inacabado,
226
A respeito de uma Teoria Geral da Semiótica e sua intrínseca relação com a cultura,. Cf. ECO, 2000. Para Eco
(2000, p. 39), “um signo é sempre constituído por um (ou mais) elementos de um PLANO DA EXPRESSÃO
convencionalmente correlatos a um (ou mais) elementos de um PLANO DO CONTEÚDO”.
227
Do mesmo modo, a dependência da vida humana da água pode ser representada pela afirmativa de Villiers
(2002, p. 36): “os seres humanos podem viver um mês sem comida, mas morrerão em menos de uma semana
sem água.”
303
304
vibrante e vago prolongamento do caos, simboliza a desordem anterior
à civilização. A convicção sugere que já nos tempos pré-diluvianos o
oceano irascível era contido com dificuldade em seus limites.
Neste aspecto, Bachelard (1989, p. 23-24) destaca o papel da imagem simbólica da
água de integração do homem à Natureza:
[...] a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um
pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho de nossa
contemplação íntíma. Os espelhos são objetos demasiado civilizados,
demasiado manejáveis, demasiado geométricos; são instrumentos de
sonho evidentes demais para adaptar-se por si mesmos à vida onírica
[...]. Diante da água que lhe reflete a imagem, Narciso sente que sua
beleza continua, que ela não está concluída, que é precíso conclui-la.
Os espelhos de vidro, na viva luz do quarto, dão uma imagem por
demais estável. Tornarão a ser vivos e naturais quando pudermos
compará-los a uma água víva e natural, quando a imaginação
renaturalizada puder receber a participação dos espetáculos da fonte
e do rio.
Corbin (1989, p. 85), no mesmo âmbito, afirma que a água é mecanismo de contato
corpóreo entre o homem e a Natureza, o banho, seja com significação sagrada, seja com
significação profana, propicia uma sublime experiência entre o homem e a Natureza.
Nesse aspecto, assinala:
O banhista e os médicos concordam em exigir do mar três qualidades
fundamentais: a frieza (ou pelo menos o frescor), a salinidade e a
turbulência. O prazer nasce da água que flagela. O banhista delicia-se
ao experimentar as forças imensas do oceano. O banho nas ondas
participa da estética do sublime: implica enfrentar a água violenta,
mas sem riscos; gozar do simulacro engolido; receber a vesgatada da
onda, mas sem perder o pé.
Para as três maiores religiões monoteístas do mundo (a religião judaica, cristã e
muçulmana), a água possui um significado simbólico e sacro.
Villiers (2002, p. 100), a respeito da água e das religiões orientais, afirma que os
povos da Mesopotâmia e do Oriente Médio, que estiveram em condições críticas de água,
mesmo em tempos bíblicos, possuem contos que correm o Mundo:
Os muçulmanos acreditam que o Domo da Pedra, em Jerusalém, está
mais próximo de Deus que qualquer outro lugar da Terra e que
embaixo dele origina-se toda a água doce do planeta. As culturas
antigas tinham os mesmos conceitos. O deus egípcio Hapi, um
homem, freqüentemente era mostrado com dois seios cheios; de um
deles jorrava o Nilo do norte e, do outro, o Nilo do sul. Nun (ou Nu) é
Caos, o oceano primevo, o germe de todas as coisas e de todos os
seres. Ele foi o “pai dos deuses” e muitas vezes é representado como
um personagem mergulhado até o peito na água, os braços suspensos
para sustentar os deuses que emanaram dele [...]
No mesmo sentido, Gleick (1993a, p. 3) afirma que para o hinduísmo e para o budismo,
o Monte Meru é o centro do universo, local no qual originam-se todos os rios da Terra, inclusive o
Ganges e o Brahma.
304
305
Para o hinduísmo, a água é um poderoso meio de purificação e uma importante fonte
de energia. Algumas vezes, com o espargimento de água em cerimônias religiosas, acredita-se
que a pureza é alcançada.
Nesse aspecto, o Código de Manu já afirmava que: “Uma pessoa não deve urinar,
tossir ou defecar na água. Qualquer coisa que é misturada com sangue e veneno não deve ser
jogada na água” (DIWIVEDI, 2000, p. 47).
Assim, na Índia, muitos rios são santuários sagrados, dentre eles, o Rio Ganges é
considerado o corpo de água mais sagrado que existe, constituindo dever religioso a não
realização de certos atos no rio, tal como defecar, banhar-se (atividades poluentes), brincar e
nadar na água (atividades recreativas), ter relações sexuais (atividades que atentem ao senso
de pudor e pureza) (DIWIVEDI, 2000, p. 47).
Para o Cristianismo, o batismo, ritual de molhar o corpo com água, em imitação do
batismo de Jesus realizado por João Batista no Rio Jordão, representa o ingresso na fé e a
purificação dos pecados. É praticado por quase todas as doutrinas cristãs, geralmente ao
nascer, embora a idade em que é realizado e o grau de imersão variem.
Corbin (1989, p. 16) afirma:
Essa cosmologia sagrada, aqui evocada em linhas gerais, impõe o mar
e às criaturas que o habitam certos esquemas de apreciação e Ihes
confere um forte valor simbólico. Através da figura do Leviatã, “o
monstro que habita o mar”, a Bíblia consagrou o caráter teratológico
do peixe. Isso, aliás, é uma decorrência lógica do relato da Criação. É
do mar que surge o dragão que vem atacar o arcanjo São Miguel. Os
périplos dos monges irlandeses da Idade Média, sobretudo o de São
Brandão, vieram reforçar essa interpretação. Segundo o relato de
Benedeit, foi necessária toda a santidade do herói para apaziguar os
horríveis animais saídos das profundezas do abismo.
Eliade (1967, p. 127-128), ao tratar da sacralidade da natureza, destaca o simbolismo
aquático de imersão/emersão para a vida e a morte:
[...] Una de las imágenes ejemplares de la Creación es la de la Isla
que <<aparece>> de repente en medio de las olas. Por el contrario,
la inmersión simboliza la regresión a lo preformal, la reintegración al
modo indiferenciado de la preexistencia. La emersión repite el gesto
cosmogónico de la manifestación formal; la inmersión equivale a una
disolución de las formas. Por ello, el simbolismo de las Aguas implica
tanto la muerte como el renacer. El contacto com el agua implica
siempre una regeneración: no sólo porque la disolución va seguida de
un <<nuevo nacimiento>>, sino también porque la inmersión
fertiliza y multiplica el potencial de vida.
Nos devaneios da morte e da vida que a água parece anunciar e contemplar, Bachelar
(1989, p. 75) alude a Carl G. Jung, quando este interpreta o Todtenbaun, a árvore do morto:
[...] o morto é devolvido à mãe para ser re-parido [...]. É que as
sombrias águas da morte se transformam em águas da vida, que a
morte e seu frio abraço sejam o regaço materno, exatamente como o
mar, embora tragando o Sol, torna a pari-lo em suas profundidade [...].
Nunca a vida conseguiu acreditar na Morte.
Corbin (1989, p. 18-19), ao tratar do mar e da literatura, ressalta o papel deste para as
peças de Shakespeare:
305
306
A imensidade movente do mar carrega em si a desgraça. Nas peças de
Shakespeare, da juventude e da maturidade, animais ferozes,
tempestade, cometa, doenças e vícios tecem uma rede de associações,
evocadora de um mundo em conflito, dominado pela desordem. O
oceano hibernal cinzento, lúgubre e frio, sintetiza as formas do medo;
alimenta o temor de sermos surpreendidos pela morte imprevisível
privada dos últimos sacramentos, longe do círculo familiar; de sermos,
corpo e alma, entregues sem sepultura a essas ondas infinitas que não
conhecem nenhum repouso.
Corbin (1989, p. 25), fazendo referência ao naufrágio de Robinson Crusoé, na obra
de Daniel Defoe, destaca a apreciação negativa do litoral que permeou o início do século
XVIII, bem como a integração do homem, da natureza e do divino em uma ilha (pedaço de
terra cercado por água de todos os lados):
A aurora do século XVIII, Daniel Defoe sintetiza e reordena essas
imagens nefastas da praia. A ilha de Robinson apresenta todas as
características do Éden após a queda: a felicidade serena ali se realiza,
com a condição de que o homem não poupe seu suor, de que organize
o tempo e administre minuciosamente seu trabalho. No correr das
páginas, o romance, como se sabe, recapitula simbolicamente as
etapas da civilização, dentro de uma perspectiva prometéica: a coleta e
a pesca, a agricultura e a criação de animais.
Demonstrando a metamorfose ocorrida da visão negativa para a visão positiva do
litoral e da praia, que ensejaram o nascimento do desejo da beira-mar, que culmina com a
invenção das praias de veraneio, Corbin (1989, p. 24) afirma que:
Durante o primeiro terço do século XIX, principia e logo se
desenvolve uma prolixa literatura da praia, da falésia, da caverna. O
romance, e sobretudo a novela, comprazem-se com esses locais que
em breve a ópera e a ópera cômica contribuirão igualmente para
popularizar.
Outro dado para a demonstração da simbologia cultural (no âmbito religioso,
psíquico e das artes literárias) de integração do Homem e da Natureza na sacralidade da água
é que Herbert (1999, p. 301-310), na obra Dune de ficção científica, descreve que na morte
das pessoas em um mundo carente de água, a água do corpo do cadáver seria retirada antes do
enterro para uso pela coletividade.
Montes; Ramón Antúnez (1999, p. 93), professores espanhóis de Ecologia na
Universidade de Madrid, afirmam:
El agua es algo más que uno de los recursos naturales básicos de la
civilización; es la base de la vida y sus flujos son las venas de este
gran sistema ecológico que es nuestro planeta (ecosfera).
Prácticamente cualquier proceso que mantiene a nuestra sociedad y a
la naturaleza necesita agua.
Por fim, a água, símbolo comum da humanidade, respeitada e valorizada nas diversas
religiões e culturas, conforme demonstrado, possui forte significado metafórico de integração
do homem com a natureza, na busca de uma volta ao Éden.
306
307
1.3 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL LIMITADO
1.3.1 A Água no mundo
Qual é a quantidade de água que existe? A quantidade total de água existente no
planeta, com certeza, não mudou desde as eras geológicas primevas aos dias atuais: o que
tínhamos, continuamos a ter.
A diferença, portanto, que pode existir da água de ontem para a de hoje estará na
qualidade e não na quantidade.
Nesse sentido, a observação de Villiers (2002, p. 52), a respeito da água existir em
um sistema fechado dinâmico, mostra-se relevante :
A água existe, portanto, em um sistema fechado, chamado de
hidrosfera, e contemplar a hidrosfera e o ciclo hidrológico é quase
suficiente para fazer um cético acreditar na oniexistência de Gaia. O
sistema é tão intrincado, tão complexo, tão interdependente, tão
interpenetrado e tão incrivelmente estável que parece construído de
propósito para regular a vida.
Getches (1997, p. 1), a respeito da existência de um ramo jurídico só para as águas,
afirma que a água é por demais importante e preciosa e isto justifica a existência de um ramo
do Direito só para ela:
É fora do comum para uma área do Direito ser definida somente em
função de um recurso natural específico. Mas a água é única na
diversidade e na importância que possui. A água mata nossa sede, dá
existência para os produtos agrícolas, permite a atividade da pesca,
possibilita a recreação e a satisfação estética e purifica o ar. É a mais
completa substância, na verdade é considerada freqüentemente tão
importante porque, normalmente, não existe tanta água com a
qualidade e a quantidade desejada no momento certo.
O termo água refere-se, como afirma Rebouças (1999, p. 1), ao elemento natural,
desvinculado de qualquer uso ou utilização. Por sua vez, o termo recurso hídrico refere-se a
água como bem econômico, passível de utilização.228
Deste modo, deve-se destacar que nem toda a água da terra é necessariamente um
recurso hídrico, na medida em que seu uso ou utilização nem sempre tem viabilidade
econômica.
As águas doces utilizadas para abastecimento do consumo humano e de suas
atividades sócio-econômicas são captadas nos rios, lagos, represas e aqüíferos subterrâneos.
Pelo fato desses mananciais se encontrarem nos domínios terrestres – continentes e ilhas –
são, também, referidos como águas interiores.
228
Entretanto, na legislação brasileira contemporânea de recursos hídricos, não é feita tal diferenciação (art. 1 da
Lei 9.433/97), razão pela qual não será feita tal diferenciação no presente trabalho.
307
308
A água do mar, hoje, não é um recurso hídrico. Não implica esta afirmação presente
numa vedação a que no futuro possa vir a ser. A utilização econômica (como recurso hídrico)
do mar, pela sua alta salinidade, atualmente está descartada.229
Nesse aspecto, do fato de água do mar não ser um recurso hídrico, Gleick (1993a, p.
3) destaca o poema de Coleridge, intitulado “O poema do velho marinheiro”, no qual afirma,
descrevendo o mar: “água, água, por todo o lado e nenhum pingo para beber”.
Como destaca Rebouças (1999, p. 6), nas últimas décadas, os volumes de água que
compõem o gigantesco ciclo hidrológico foram avaliados por diferentes autores. Sendo
destacado em geral o trabalho feito pela Unesco no International Hydrological Programme –
IHP-IV, de 1998.
Considera-se, atualmente, que a quantidade total de água na Terra, de 1.386 milhões
de km3, tem permanecido de modo aproximadamente constante durante os últimos 500
milhões de anos, conforme dados coletados por cientistas soviéticos.230
Villiers (2002, p. 54) ilustra, no quadro abaixo, a quantidade de água doce de forma
didática, ao expressá-la em termos de profundidade da piscina natural formada pela água, se a
mesma fosse igualmente distribuída em todo o planeta:
Quadro 7 – Quantidade de água doce existente na Terra
TIPO DE ÁGUA
Total (100%)
QUANTIDADE
EXISTENTE (km3)
PROFUNDIDADE DA
PISCINA MUNDIAL (m)
1.400.000.000
2.700
Água doce total (2,5%)
350.000
70
Água doce
(0,65%)
90.000
1,82
superficial
A água doce é renovável, pelo menos no sentido de que o ciclo hidrológico evapora a
água dos oceanos e devolve grande parte dessa água para a terra. Esta água, de forma cíclica,
acaba por fazer o caminho de volta para os oceanos, por meio dos rios, cursos d’água, dos
lagos e aqüíferos subterrâneos.
A esta renovação da água no sistema hidrológico fechado da Terra denomina-se ciclo
hidrológico.231
Nas precisas palavras de Gleick (1993a, p. 3):
229
“A classificação mundial das águas, feita com base nas suas características naturais, designa como água doce
aquela que apresenta teor de sólidos totais dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/1. As águas om STD entre
1.000 e 10.000 mg/1 são classificadas como salobras e aquelas com mais de 10.000 mg/L sâo consideradas
salgadas” (REBOUÇAS, 1999, p. 1).
230
Cf. SHIKLOMANOV, 1993, p. 13. REBOUÇAS, 1999, p. 7. VILLIERS, 2002, p. 54.
231
Pode definir-se ciclo hidrológico como a sequência fechada de fenômenos pelos quais a água passa da
superfície do globo terrestre para a atmosfera, na fase de vapor, e regressa àquele, nas fases líquida e sólida.
A transferência de água da superfície do globo para a atmosfera, sob a forma de vapor, dá-se por evaporação
direta, por transpiração das plantas e dos animais e por sublimação (passagem directa da água da fase
sólida para a de vapor).
308
309
A água doce é um recurso natural renovável, continuamente colocado
à nossa disposição pelo constante fluxo de energia solar incidente
sobre a Terra, o qual evapora a água dos oceanos e do solo e a
redistribui pelo globo. Mais água evapora dos oceanos do que a que
cai sobre eles; portanto há uma contínua transferência de água dos
oceanos para o continente. Esta água é drenada para os rios e cursos
de água que sustentam os nossos ecossistemas naturais e sociais, além
de recarregar nossos aqüíferos.
Figura 2 – Ciclo Hidrológico
Em outro argumento, Gleick (1993b, p. 67) destaca a questão da escassez da água,
nos aspectos espacial, temporal, quantitativo e qualitativo, intimamente vinculada à questão
do ciclo hidrológico:
[...] Enquanto a água é abundante em termos globais, nós,
normalmente, não a possuímos quando queremos, onde queremos ou
na forma que queremos. O fato de que a maior parte da água doce
estar presa no gelo da Groelândia e da Antártida é só um dos
exemplos frustantes. Quando a demanda urbana e rural da água
crescem, nós, de forma crescente, nos encontramos com o problema
de atendimento ao consumo humano que exige o transporte de água de
lugares distantes (grifo nosso).
1.3.2 A água no Brasil
1.3.2.1 Situação hídrica brasileira
309
310
Como assinala Villiers (2002, p. 52), o Brasil está em uma situação especial com
relação aos recursos hídricos:
Em termos nacionais, o Brasil possui a maior quantidade de água, ou
seja, um quinto de toda a reserva global. Os vários países da antiga
União Soviética estão em segundo lugar, coletivamente, com 10,6%
de reservas. A China (5,7 %) e o Canadá (5,6%) são o terceiro e
quarto.
No mesmo aspecto, referindo-se ao Brasil e a uma “possível” partilha de seus
recursos hídricos com o resto do Mundo, com destaque ao aspecto ecocêntrico da água,
afirma:
Nem a água pode ser avaliada sem levar em consideração seus outros
propósitos, aqueles não-humanos. Ainda que isso fosse possível, não
poderíamos transferir os 20% da água do Brasil para, digamos, o
Saara. Fazer isto acabaria com o maior reservatório de biomassa do
mundo e com a maior floresta tropical do planeta, que, hoje sabemos,
é o sistema respiratório da Terra. Fazer isto seria como colocar um
enorme torniquete ao redor dos pulmões do mundo (VILLIERS, 2002,
p. 58).
Com uma área de 8.544.416 Km2 e cerca de 161,8 milhões de habitantes, o Brasil é,
atualmente, o quinto país do mundo, tanto em extensão territorial como em população. Um
país-continente, terra de contrastes, é assim que muitos estudiosos consideram o Brasil
(TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 17-19).
Como afirma Rebouças (1999, p. 29):
O Brasil possui uma ampla diversificação climática, predominando os
tipos equatorial úmido, tropical e subtropical úmidos, e semi-árido
sobre menos de 10% do território. Em termos pluviométricos, mais de
90% do território brasileiro recebe abundantes chuvas – entre 1.000 e
3.000 mm/ano.
A interação desse quadro climático com as condições geológicas
dominantes engendra importantes excedentes hídricos que alimentam
uma das mais extensas e densas redes de rios perenes do mundo. A
exceção é representada pelos rios efêmeros e temporários que nascem
nos domínios das rochas do embasamemo geológico subaflorante –
400.000 km2 – do contexto semi-árido da região Nordeste.
Como resultado, o Brasil destaca-se no cenário mundial pela grande
descarga de água doce dos seus rios, cuja produção hídrica, 177.900
m3/s e mais 73.100 m3/s da Amazônia internacional, representa 53%
da produçao de água doce do continente Sul Americano (334.000
m3/s) e 12% do total mundial (1.488.000 m3/s).
Assim, fica caraterizada a nossa aparente abundância de água doce,232 o que,
infelizmente, tem servido de suporte à cultura do desperdício da água disponível, a não
232
“Entretanto, os problemas de abastecimento no Brasil decorrem, fundamentalmente, da combinação do
crescimento exagerado das demandas localizadas e da degradação da qualidade das águas, em níveis nunca
imaginados. Esse quadro é uma conseqüência da expansão desordenada dos processos de urbanização e
310
311
realização dos investimentos necessários ao seu uso, à ineficiência à proteção dos nossos
mananciais, e à ilusória consideração de que a água é um bem livre, abundante e sem valor
econômico.
Nesse aspecto, Cordeiro Netto (2002, p. 29) afirma:
A água é um problema seríssimo no mundo todo. No Brasil, se tem a
falsa sensação de que é um país muito rico em água, mas na verdade
nós temos uma falsa riqueza, porque a abundância de água doce está
situada na Amazônia, longe do grande centro produtor, consumidor e
longe da grande concentração da população brasileira (grifo nosso).
No semi-árido nordestino, no Sudeste e Sul o problema é sério. Há
falta de água e há muita poluição de recursos hídricos. O próprio
Centro-Oeste já tem problemas dessa natureza. Às vezes a água está
tão próxima, mas ela é tão poluída que não pode ser aproveitada para
usos mais importantes como o abastecimento público das cidades. O
caso clássico é o de São Paulo e do Rio de Janeiro, cidades que
sofrem, ao mesmo tempo, de falta de água e de enchentes. Porque a
água que inunda é tão poluída que não pode ser aproveitada e a água
que se bebe é buscada em locais muito distantes.
De acordo com a divisão adotada pela Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério
do Meio Ambiente, são oito as grandes bacias hidrográficas no País: a do rio Amazonas, a do
rio Tocantins, as do Atlântico Sul, trechos Norte e Nordeste, a do rio São Francisco, as do
Atlântico Sul, trecho Leste, a do rio Paraná, a do rio Paraguai, e as do Atlântico Sul, trecho
Sudeste.
O Brasil é uma potência incontestável quando se fala em água (16% da água
utilizável no mundo). Possui a maior bacia hidrográfica do planeta, entretanto, mesmo assim,
sofre com a falta de água potável nas grandes cidades (REBOUÇAS, 1999, p. 31).
Segundo Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 34), algumas das principais
características da rede de Bacias Hidrográficas do País são as seguintes:
• As bacias do Paraná e Uruguai (parte da bacia do Prata no Brasil) e do
São Francisco apresentam o predomínio de rios do tipo de Planalto, que,
em decorrência do relevo, apresentam em seu leito rupturas de declive e
vales encaixados que Ihes conferem grande potencial hidrelétrico;
• Com precipitações geralmente acima de 1.000 mm em suas bacias de
drenagem, os rios apresentam predomínio de regime pluvial. A maior
parte do País se localiza na zona tropical, sendo que seus rios apresentam
cheias no verão e estiagens no inverno. Há exceções: o rio Amazonas,
com regime complexo (em face de sua diversidade de afluentes), o
Uruguai (cheias de primavera) e os rios do Nordeste (Piranhas, Jaguaribe,
Paraíba e Capibaribe), cujas cheias são de outono/invemo;
industrialização, verificada a partir da década de 1950. [...] Vale ressaltar, ainda, que estas formas
desordenadas de uso e ocupação do território em geral, engendram o agravamento dos efeitos das secas ou
enchentes que atingem as populações e suas atividades econômicas. No meio urbano, esse quadro é
especialmente agravado pelo crescimento de favelas nas áreas de alto risco ambiental – encostas dos morros e
várzeas dos rios -, falta de coleta ou lançamentos de esgotos não tratados nos corpos de água utilizados para o
abastecimento, não para coleta do lixo urbano produzido – doméstico e industrial – ou deposição inadequada
do resíduo coletado e grande desperdício da água disponível” (REBOUÇAS, 1999, p. 30).
311
312
• Existe predominância de rios perenes em grande parte do País com
exceção da região Semi-árida do Nordeste brasileiro onde, durante parte
importante do ano, os rios secam;
• Os lagos no Brasil podem ser agrupados em três categorias: costeiros,
formados pelo fechamento de uma restinga ou cordão arenoso (caso das
lagoas dos Patos, Mirim e Mangueira, no Rio Grande do Sul; Araruama e
Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro); fluviais ou de transbordamento,
originados pelo transbordamento de cursos fluviais.
Segundo Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 35), há uma distribuição
desigual da água no Território Brasileiro. Cerca de 68% de nossos recursos hídricos estão no
Norte, apenas 3% estão no Nordeste e 6% estão no Sudeste.
Segundo Thame (2000, p. 11), apesar de o Brasil possuir uma das maiores reservas
de água doce do mundo – mais de 12% da água potável do mundo – esta avaliação, porém,
esconde uma desproporcional distribuição espacial desses recursos.
Conforme a tabela abaixo, há uma desproporção na disponibilidade de água nos
Estados-membros brasileiros. O índice considerado suficiente para a vida em comunidade,
para o exercício normal das atividades humanas, sociais e econômicas, é de 2.500m3 de água
por habitante por ano. Abaixo de 1.500 m3, a situação é considerada crítica.
Quadro 8 – Situação hídrica pobre e crítica de Estados-membros brasileiros
DISPONIBILIDADE HÍDRICA
(Situação)
Pobre <2500; Crítica <1500
ESTADO
BRASILEIRO
DISPONIBILIDADE
HÍDRICA PER CAPITA
m3/hab/ano
Pobre
Ceará
2.436
Pobre
R. Grande do Norte
1.781
Pobre
Alagoas
1.751
Pobre
Sergipe
1.743
Pobre
Rio de Janeiro
2.315
Pobre
Distrito Federal
1.752
Crítica
Paraíba
1.437
Crítica
Pernambuco
1.320
Fonte: (THAME, 2000, p. 12).
De que adianta haver água abundante na Amazônia, quando o sertão da região
nordeste sofre com a ausência de água na época da estiagem das chuvas? A utilização da
água possui, portanto, uma dimensão espacial e temporal que ocasiona sua escassez, razão
pela qual é considerada um bem econômico finito.
A qualidade adequada233 é outro aspecto que caracteriza a utilização econômica dos
recursos hídricos. A água salgada do mar, mesmo quando está próxima, não pode ser
233
“A maioria dos rios que atravessam as cidades brasileiras estão deteriorados, sendo esse considerado o maior
problema ambiental brasileiro. Essa deterioração ocorre porque a maioria das cidades brasileiras não possui
312
313
utilizada, exceto se for dessalinizada a um preço muito alto para a maioria dos usos. Nem o
homem com sede, nem as indústrias, nem a agricultura desejam água salgada.
Assim, o Brasil, apesar de sua abundância hídrica, tem recursos hídricos limitados
para utilização efetiva no espaço e no tempo. Nesse aspecto, a Lei Federal nº 9.433/97 da
Política Nacional de Recursos Hídricos reconhece a água como bem econômico e recurso
limitado, fato que decorre das situações de escassez fixadas por questões espaciais, temporais
e de adequação ao uso.
Destacando o impacto nocivo da atividade antrópica nos recursos hídricos
brasileiros, Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 48) afirmam:
As principais cargas de poluição afluentes às águas interiores podem
ser pontuais ou difusas. As cargas pontuais se devem a: (a) efluentes
da indústria; (b) esgoto cloacal e pluvial. As cargas difusas se devem
ao escoamento rural e urbano, distribuído ao longo das bacias
hidrográficas. As cargas podem ser de origem orgânica ou inorgânica.
As cargas orgânicas têm origem nos restos e dejetos humanos e
animais e na matéria orgânica vegetal. As cargas inorgâncias têm
origem nas atividades humanas, no uso de pesticidas, nos efluentes
industriais e na lavagem pelo éscoamento de superfícies
contaminadas, como áreas urbanas.
Em conclusão, o que mais falta no Brasil não é água vista de forma quantitativa, mas
água com qualidade no local e no tempo certo. Há pois a necessidade de uma cultura de
preservação deste bem, que melhore a eficiência de desempenho político dos governos e da
sociedade organizada, promotores do desenvolvimento econômico em geral e da sua água
doce.
Nesse diapasão, uma das mudanças mais relevantes, impostas pela Carta Magna de
1988, foi exatamente a atribuição das águas doces aos domínios da União e dos Estadosmembros, tornando, estes, bens de titularidade do poder público para que este, em conjunto
com a sociedade, busquem o equilíbrio ecológico deste bem fundamental para a vida do
homem, dos animais e da Natureza, em geral.
1.3.2.2 A água, hidroeletricidade e o racionamento de energia elétrica
ocorrido em 2001
Gleick (1993b, p. 67) retrata com sensibilidade a íntima relação entre a água e a
energia:
coleta e tratamento de esgotos domésticos, jogando in natura o esgoto nos rios. Quando existe rede, não há
estação de tratamento de esgotos, o que vem agravar ainda mais as condições do rio, pois se concentra a carga
em uma seção. Em algumas situações, é construída a estação, mas a rede não coleta o volume projetado
porque existe um grande número de ligações clandestinas de esgoto no sistema pluvial, que de esgoto
separado passa a misto. Muitos dos rios urbanos escoam esgoto, já que, devido à urbanização, grande parte da
precipitação escoa diretamente pelas áreas impermeáveis para os rios. Não ocorrendo a infiltração, a vazão de
água subterrânea se reduz, agravando as estiagens (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p.
47).
313
314
Água fresca e energia, duas fontes necessárias para uma razoável
qualidade de vida, estão intrisicamente conectadas. Nós usamos
energia para limpar e transportar a água que necessitamos. Nós
usamos água para produzir a energia que usamos. E quando o século
XXI se aproxima, nós estamos correndo contra as dificuldades da
escassez desses dois recursos fundamentais.
Na hidroeletricidade, conjugam-se dois elementos relevantes para a questão do
desenvolvimento sustentável: a água e a energia.
Kelman et al. (1999, p. 371) relembram a revolução trazida pela hidroeletricidade em
termos de rendimento energético em comparação a outras fontes energéticas utilizadoras da
água como as rodas d’água:
Até quase o final da Idade Média, a populaçao européia ainda
realizava laboriosas tarefas; por exemplo, moagem de grãos ou corte
de madeira, a partir do esforço humano ou animal. No século XIII
difundiu-se o uso das rodas dágua, que atingiu seu ápice no século
XVIII, quando, só na Inglaterra, havia mais de 10.000 unidades
(Gulliver e Arndt, 1991). A potência de uma roda de água era de 0,l
MW, cerca de 1.000 vezes menor do que uma típica turbina de usina
hidrelétrica nos dias de hoje.
Gleick (1993b, p. 70) afirma que a hidroeletricidade234 constitui-se em um uso
moderno da água, vinculando-se, diretamente, a sua abundância e escassez, exemplificando
tal fato com o racionamento de energia ocorrido na Califórnia entre 1987 e 1991 e com a seca
no Egito em 1980.
Conforme destaca Kelman et al. (1999, p. 373), comparando as vantagens e
desvantagens da hidroelétrica com a termoelétrica, afirmam que a opção hidrelétrica tem
prevalecido largamente no Brasil por ser uma energia limpa, com uma relação de custobenefício extremamente vantajosa em relação às outras opções energéticas, tal qual a
termoelétrica.
O Brasil e poucos outros países, como Canadá, Suécia e Noruega têm a sorte de
possuir numerosos rios com potencial de aproveitamento hidrelétrico. Por esta razão, o parque
hidrelétrico brasileiro é um dos maiores do mundo, em termos absolutos e relativos: enquanto
em termos mundiais as usinas hidrelétricas são responsáveis pela produção de cerca de 25%
da energia elétrica, no Brasil esta cifra tem atingido nos últimos anos 97% (KELMAN et al.
1999, p. 372). 235
Felicidade; Martins; Leme (2000, p. 8), ao criticarem as novas formas de regulação
do setor elétrico brasileiro com o afastamento do Estado e o seu reflexo na crise
energética de 2001,236 afirmam, com relação à matriz energética brasileira, que:
234
235
236
“As usinas hidrelétricas aproveitam a diferença de energia potencial existente entre o nível de água de
montante e o de jusante. Quando a água cai do nível mais elevado para o menos elevado, dentro de um tubo,
esta energia potencial é transformada em energia cinética e de pressão, que por sua vez faz girar a turbina e,
junto com ela, o gerador. O giro do gerador produz energia elétrica, que é proporcional ao produto da vazão
turbinada pela altura da queda da água. Por esta razão, rios caudalosos, como o Amazonas, mas sem queda
d’água, ou rios com grande queda, mas com vazão intermitente, não são vocacionados para aproveitamento
hidrelétrico” (KELMAN et al., 1999, p. 371).
Para Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 64), o percentual de participação da hidroeletricidade
brasileira no total de energia elétrica produzida é de 91%.
“A partir da década de 1990, o Estado brasileiro começou a redefinir sua atuação, deixando de lado sua
trajetória histórica de responsabilizar-se pelos investimentos em setores estratégicos, dentre eles o de energia,
314
315
O setor elétrico brasileiro constituiu-se predominantemente pela
matriz hidrelétrica, seja aproveitando as quedas naturais de água
(cachoeiras, por exemplo) ou construindo Grandes Projetos Hídricos
(GPHs) e Pequenas Centrais hidrelétricas (PCHs). A predominância
da hidroeletricidade no Brasil encontra similar somente na Noruega
que, por sua vez, apresenta o equivalente a apenas 50% da capacidade
brasileira instalada. O desenvolvimento da hidroenergia no Brasil fezse principalmente por meio de investimentos estatais, grande parte
deles durante o regime militar.
O Brasil, de forma semelhante ao racionamento americano ocorrido na Califórnia,
pela primeira vez na sua história energética, foi obrigado a adotar o racionamento de energia
no período de fevereiro de 2001 a março de 2002. A imprensa denominou esse momento
vivido de contenção de energia, por meio de racionamento, de “apagão”, aludindo à
escuridão ocasionada pela falta de energia elétrica, marcadamente oriunda da
hidroeletricidade no Brasil.
Criticando a falta de planejamento das autoridades brasileiras no trato deste tema,
Rosa (2001, p. 01) destaca que a questão da crise energética não pode ser imputada ao acaso,
à Natureza ou a Deus. Conforme explica de forma objetiva:
O sistema hidrelétrico depende das chuvas, mas foi projetado para
suportar variações pluviométricas aleatórias. Para isso, nós
contribuintes, nós consumidores, pagamos ao longo do tempo a
construção de imensos reservatórios, que, aliás, causaram impactos
ambientais e vários transtornos às populações locais, aos atingidos por
barragens. Estas foram planejadas para garantir acumulação de
água plurianual até por cinco anos, de modo que o período seco é
compensado pela água armazenada.
Portanto, a responsabilidade pelo esvaziamento dos reservatórios
não está no céu, está na Terra entre os homens, ou seja não existe
capacidade instalada de geração elétrica suficiente para atender a
demanda que tem crescido (grifo nosso).
Assim, verifica-se que a origem da crise elétrica brasileira é uma crise de água
nos reservatórios, combustível da geração de hidroeletricidade. Segundo informações do
próprio governo, extraídas da Internet, a crise energética decorre do reduzido nível dos
reservatórios, verbis:
É evidente, portanto, que a causa primeira da presente crise energética
é a baixa ocorrência de chuvas, o que acarretou reduzido nível de
acumulação de reservas para enfrentar o período seco (ENERGIA
BRASIL, [2001], grifo nosso).
Buscando a modificação do quadro brasileiro de dependência energética brasileiro
dos recursos hídricos. Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 67) afirmam:
para assumir como prioridade o saneamento de suas contas, passando, então, a privatizar as empresas estatais
sob a alegação da necessidade de melhorar a efíciência dos serviços prestados ao consumidor do abatimento
das dívidas e da inserção com competitividade no cenário mundial. Esse foi um período de muitos rearranjos
institucionais para o Estado e para o setor de energia. Destacamos, em 1990, a criação do Programa Nacional
de Desestatização (PND) e a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), pela Lei n° 9.427/96
e pelo decreto n° 2.335/97 que aprovou a estrutura regimental da agência [...] Quando o governo engendra um
processo de reestruturação do setor elétrico, cujo principal meio é a privatização de empresas, algumas opções
políticas são feitas e muitas delas, de forma direta ou indireta, agridem direitos essenciais do cidadão”
(FELICIDADE; MARTINS; LEME, 2000, p. 8-9).
315
316
A tendência atual do setor é a de aumentar a introdução de
termelétrica a gás, diminuindo a dependência do setor ao risco da
disponibilidade hídrica o que, atualmente, é julgado excessivo. Além
disso, hidrelétricas, embora utilizem um recurso renovável, envolvem
investimentos altos, com período muito longo antes de se iniciar o
retomo do capital. Adicionalmente, as barragens sofrem uma pressão
muito grande da área ambiental devido a problemas, tais como:
inundação de áreas produtivas, deslocando um grande número de
pessoas; modificação da flora e fauna a montante e a jusante do
reservatório e deterioração da qualidade da água. Além disso, o layout dos sistemas hidrelétricos de uma bacia pode envolver um
reservatório de regularização e vários de queda. Como os reservatorios
de regularização inundam maior área, a tendência é que sejam
construídos os reservatórios com grande altura para compensar a
redução da regularização com maior impacto a jusante do que a
montante.
O art. 37 da Constituição Federal (redação dada pela EC n. 19), com destaque para o
princípio da eficiência, combinado com a atribuição do Poder Público de proteção do meio
ambiente (caput do art. 225 da Constituição Federal) possui no seu âmbito normativo: a noção
do melhor uso possível de recursos e bens públicos ambientais, enfatizando, também, o papel
finalístico do Estado.237
Nesse sentido, observa-se que, despertado pelo problema do racionamento de energia
elétrica como uma ineficiência estatal, o Tribunal de Contas da União realizou auditoria para
avaliar a atuação do Governo Federal na gestão dos Recursos Hídricos no País, tendo
concluído que:
a) a água não é tratada como um bem estratégico no país, muitos a
consideram, indevidamente, um recurso infinito;
b) falta integração entre a política nacional de recursos hídricos e as demais
políticas públicas;
c) há graves problemas na área de saneamento básico. #(TRIBUNAL DE
CONTAS DA UNIÃO, 2003, p. 70).
Havia sido formulado requerimento pelo então Presidente Ministro Humberto
Guimarães Souto, o qual foi aprovado por unanimidade pelo plenário do Tribunal.
O requerimento afirma que:
Ao contrário da maioria dos países, onde a geração é de origem
térmica, o Brasil possui um parque com predominância de usinas
hidrelétricas. A participação da geração de origem hídrica supera 90%
do total produzido.
Formado por rios de planalto que traçam trajetórias suaves em direção
ao mar, nossos rios, quando represados, tendem a formar grandes
reservatórios de acumulação cuja característica principal é sua
237
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência [...]” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988), 2002).
316
317
regularização plurianual. Isso faz com que a maioria dos reservatórios
brasileiros levem anos para esvaziar.
[...] Desde o início do ano passado, os órgãos de imprensa têm
divulgado que os reservatórios de nossas hidrelétricas vêm operando
em níveis extremamente baixos como conseqüência da falta de
investimentos em geração e do aumento do consumo de energia.
[...] Cortes de energia nesse patamar [20%], que, conforme anunciado
pela imprensa, irão ocorrer durante os próximos seis meses, só têm
paralelo em países em guerra.
Submeto, portanto, ao Tribunal proposta para que seja realizada
Auditoria Operacional no Sistema Elétrico Brasileiro que compreenda
a análise das causas que levaram à atual crise de abastecimento, e
produza um diagnóstico acerca dos cenários de fornecimento de
energia elétrica para o médio e longo prazo envolvendo os aspectos
econômicos, sociais e seus reflexos, bem como identifique possíveis
soluções para o Setor Elétrico para que racionamentos de energia
não mais ocorram nos próximos anos (BRASIL. TRIBUNAL DE
CONTAS DA UNIÃO, 2001, p. 107, grifo nosso).
Também, o Ministro Adylson Mota solicitou uma auditoria para avaliar a atuação do
Governo Federal na gestão dos Recursos Hídricos no País, com o objetivo de “evitar prejuízos
sociais e econômicos às presentes e futuras gerações” ( apud PAUL, 2001, p. 1).
Tais intervenções do TCU não se limitam a apontar problemas. Além do aspecto de
identificação de causas, buscam, também, soluções. Coloca-se, de forma pioneira, o controle
de contas como mecanismo de proteção ambiental, não obstante tal proteção ocorra de forma
reflexa (a preocupação central é com a crise energética).
A atuação concreta do Tribunal de Contas, trazida a título de exemplo, certifica, por
meio de órgão responsável pela eficiência do Estado, a ineficiência deste no trato da questão
energética brasileira e da gestão de recursos hídricos.
Para combater a ineficácia social do Estado, requerem-se novos instrumentos de ação
social efetiva.
Portanto, verifica-se no Brasil, de forma concreta, que o racionamento de
energia elétrica destaca a necessidade de melhoria da gestão dos recursos hídricos em
pelo menos uma de suas utilizações: o uso energético.
1.4 A ÁGUA COMO O DIAMANTE AZUL DO SÉCULO XXI
1.4.1 A água como recurso escasso valioso
Conforme já visto, o tema relativo aos recursos hídricos é de indiscutível interesse
nos dias de hoje: constitui elemento essencial à vida (MARTÍN MATEO, 1977, p. 223) “O
planeta azul [...] a bela imagem enviada pelos satélites do nosso planeta destaca a água e sua
317
318
coloração vista do espaço. Apesar de cobrir três quartos da superfície de nosso globo, é
escassa”.
A aparente abundância ocasionaria, indevidamente, despreocupação com a falta
dos recursos hídricos. Entretanto, a abundância é falsa, como afirma Vernier (1994, p. 11-13):
a) não basta haver água, ela tem de ser encontrada no lugar certo e na hora
certa;
b) é preciso haver água de qualidade adequada;
Atualmente, conforme já se pode depreender da análise dos recursos hídricos no
Mundo e no Brasil, há lugares que possuem água em abundância na qualidade e quantidade
desejadas, no tempo desejado; outros, não. Para aqueles lugares nos quais há falta, a água já é
um “diamante azul”, para aqueles em que não há falta, a água poderá ser, também, um
“diamante azul” como mercadoria de troca.
Portanto, a escassez é um problema presente com perspectiva de agravamento futuro.
Nesse sentido, indaga-se: Poderia a água ser comercializada entre os países como o petróleo o
é atualmente? A água poderia ter a relevância econômica que o ouro negro possui no século
que entra?
Nesse aspecto, trabalho realizado pelas Nações Unidas assinala que:
El agua tiene un valor económico, y debe considerarse un bien tanto
económico como social. Al igual que cualquier outro bien valioso, el
consumo de agua tiene un costo en términos tanto de desarrollo de los
recursos hídricos como de pérdida de oportunidades. El costo del
consumo o del desperdicio de esos recursos no desaparece, sino que
lo pagan los usuarios o la comunidad en su conjunto, o conduce al
agotamiento del capital natural existente. A medida que aumenta la
demanda de agua, es más importante aprovechar esse recurso para
actividades de elevado valor económico. Es imprescindible que se
rindan cuentas y se recuperen los costos derivados del suministro de
agua, y que los usuarios paguen el agua utilizada para fines
económicos (ORGANIZAÇÃO METEOROLÓGICA MUNDIAL,
1997, p. 25, grifo nosso)
O problema com a água – e existe um problema com a água, conforme já
demonstrado nas seções anteriores – é que não se está produzindo mais água, o sistema
hídrico, a nível planetário, é um sistema fechado. As pessoas, entretanto, estão fazendo mais –
muito mais do que é ecologicamente sustentável.
Há um crescimento contínuo da população humana e a demanda por água aumenta
duas vezes mais rápidamente (GLEICK, 1993c, p. 105).
Nesse aspecto, Villiers (2002, p. 50) afirma que a crise da água apresenta-se como
um problema real apontado não só por “ambientalistas malthusianos”, mas também por
funcionários graduados do Banco Mundial.
Shiva (2002), tratando do mesmo fato, afirma que, em 1995, Ismail Seralgeldin, vicepresidente do Banco Mundial, fez precisa declaração sobre a água e o seu futuro sombrio: “Se
as guerras deste século originaram-se da busca de petróleo, as guerras do próximo século
vincular-se-ão à água”. Desse modo, foi feita explícita analogia entre o “ouro negro” e o
“diamante azul”.
318
319
Destaca esta conhecida ativista ambiental indiana que uma silenciosa guerra pela
água está ocorrendo em todas as sociedades modernas, que lutam contra a escassez deste
recurso. De um lado desta luta ecológica global, encontram-se milhões de espécies e milhões
de pessoas buscando água para viver. De outro lado, estão corporações internacionais como a
Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment e Bechtel, assistidas por organizações
internacionais como o Banco Mundial, a Organização Internacional de Comércio e o Fundo
Monetário Mundial (SHIVA, 2002, p. ix-x).
Outros ativistas canadenses como Barlow; Clarke (2002) destacam, de forma
explosiva, a compra de direitos de uso de água, em países como a Inglaterra e a França, por
corporações transnacionais como Perrier, Evian, Naya e Coca-Cola, com claros fins de
monopólio do mercado mundial de engarrafamento de água.
1.4.2 Guerras pela água e o papel do direito internacional
A história está repleta de disputas bélicas relacionadas às fontes de água doce. A
escassez presente, bem como a previsão do seu aumento no futuro são indicativos de que tais
conflitos podem aumentar.
Muitos rios e fontes de água são compartilhados por mais de uma Nação. Esse fato
geográfico tem levado a várias disputas relativas a rios internacionais como o Nilo na África,
o Jordão e o Eufrátes no Oriente Médio e o Indu, Ganges e Bramasutra no sudoeste da Ásia, e
o Colorado, Rio Grande e Paraná nas Américas (MCCAFFREY, 1993, p. 92).
Consoante ensina Gleick (1993c, p. 108), à medida em que o crescente nível
populacional requer mais água para a agricultura e para o desenvolvimento econômico, a
tensão no uso dos recursos hídricos irá crescer e disputas internacionais aumentarão.
Nesse sentido, autores como McCaffrey (1993, p. 99) defendem a utilização de
normas de direito internacional e regional para reduzir as tensões.
McCaffrey (1993, p. 92), especificamente tratando do problema da água no Rio
Jordão do Oriente Médio, afirma que:
O Rio Jordão drena parte do território de quatro dos Estados mais
beligerantes da região durante as últimas quatro décadas: Israel, a
Jordânia, o Libano e a Síria. O Jordão não é um rio longo, estende-se
somente por 93 Km da sua origem no Libano até a sua descarga final
no Mar Morto. Todos os três afluentes do Rio Jordão se situam em
diferentes países [...] Entretanto, desde 1967, Israel tem controlado as
áreas nas quais esses afluentes estão localizados, dando a este país um
completo controle do Rio Jordão.
Sobre a controvérsia da construção de Itaipu no Rio Paraná, entre Brasil e Paraguai,
McCaffrey (1993, p. 97) destaca:
Uma disputa emergiu no início da década de 1970 entre Brasil e
Argentina em relação ao plano brasileiro e paraguaio de construir uma
das maiores represas do mundo no Rio Paraná em Itaipu, onde o
Paraná divide a fronteira do Brasil e do Paraguai. Argentina estava
319
320
preocupada que o projeto de Itaipu afetasse a construção de uma
represa dela com o Paraguai logo a juzante onde a Argentina e o
Paraguai fazem divisa. A Argentina defendeu a posição de que o
Brasil tinha perante o direito internacional a obrigação de informar os
detalhes técnicos do projeto de Itaipu e levar em conta as
preocupações argentinas a juzante.
O Brasil, de forma enérgica, negou, inicialmente, que tivesse tal
obrigação de notificação prévia e de consulta aos interesses
argentinos. Agindo desta forma, o Brasil adotou uma corrente
semelhante a de Harmon, na qual se nega qualquer direito ao país a
juzante. [...] Finalmente, a Argentina e o Brasil resolveram a
controvérsia de uma forma amigável com base na notificação prévia e
na consulta ao país à juzante.
Assim, McCaffrey (1993, p. 98) atesta que o direito internacional, por meio,
principalmente, dos tratados internacionais, tem um importante papel na resolução atual dos
conflitos de água, baseando-se esses tratados no princípio geral do uso eqüitativo deste
recurso.
Shamir (2000, p. 19-20), Diretor do Instituto de Pesquisas Hídricas de Israel,
demonstra preocupação com o uso eqüitativo deste recurso, analisando os tratados de Israel e
da Palestina sobre a água, ao afirmar que:
A água tem um importante papel na paz do Oriente Médio. Foi umas
das muitas áreas das discussões de paz [Tratado de Paz do Jordão,
assinado em Outubro de 1994 e o II Acordo de Oslo, assinado em
Setembro de 1995]. Todas as partes envolvidas nesse acordo
consideram a água um tema estratégico. A escassez de água vivida
nesta região assinala que está é e pode ser causa de guerras futuras,
razão pela qual acordos internacionais neste âmbito são
imprescindíveis para a paz na região.
Este uso eqüitativo da água consagra, pois, o seu caráter de valor econômico e
ético, uma vez que a sua utilização passa a basear-se em aspectos de valoração de bem
escasso e de justiça na distribuição eqüitativa deste bem.
Destaca, também, o aspecto de valoração positiva do recurso hídrico no âmbito
internacional, fato este que pode ser corroborado pela quantidade de tratados relativos ao uso
de águas internacionais.238
1.4.3 A água e o desenvolvimento sustentável
238
“Numerosos acordos têm sido propostos na tentativa de definir em que consiste uma participação justa nas
águas de um rio. A Organizaçâo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) já identifícou
mais de 3.600 tratados relativos ao uso das águas para outros fins que não a navegação, assinados entre os
anos 805 e 1984. A partir de 1945 foram negociados cerca de 300 tratados relativos à administração ou à
distribuição da água em bacias internacionais. Nenhum dos vários e ricos arquivos de dados sobre as causas
das guerras registra a água como o fator primordial de uma delas. Até mesmo no tenso Oriente Médio, o
primeiro papel assinado pelas três partes principais no curso das negociações multilaterais de paz dizia
respeito à água. Na verdade, acordos sobre o uso da água têm prevenido conflitos importantes no
subcontinente entre o Paquistão e a India” (SELBORNE, 2002, p. 64).
320
321
As secas periódicas no Nordeste Brasileiro (nível interno do País) e as migrações que
elas provocaram dão uma noção do que pode acontecer no futuro, em nível mundial. No caso
brasileiro referido, a migração foi interna, mas, quando se tratar da migração da população de
um país para outro vizinho ou para regiões desenvolvidas, os problemas vão se multiplicar.
Nesse aspecto, interessante a recordação da seca sofrida pela Etiópia em 1980:
No início dos anos 80, uma prolongada seca na Etiópia, associada à
degradação ambiental (desmatamento das nascentes, erosão e
empobrecimento dos solos) provocou fome generalizada à populaçao.
As dramáticas cenas mostradas pela televisão, na época, provocaram
na comunidade internacional, inclusive artistas e músicos famosos,
uma onda de solidarielade e cooperaçao para a remessa de alimentos.
Mas grande parte da população afetada migrou para o vizinho Sudão,
em busca desesperada por comida e água, o que provocou o
aparecimento de graves tensões com as populações locais, em virtude
do aumento da competição pelos recursos já escassos. Estas tensões
quase provocaram um conflito entre os dois países, que fez com que o
PNUMA criasse uma classificação para refugiados (além dos de
guerra e políticos): os refugiados ambientais (SALATI; LEMOS;
SALATI, 1999, p. 48-49).
No futuro, os usuários da água para fins doméstico (de consumo humano) e industrial
vão competir cada vez mais com a agricultura irrigada, particularmente em algumas regiões
da Ásia e da África. Para se produzir uma tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de
água, e para uma tonelada de arroz, duas mil toneladas de água. Além disso, sistemas de
irrigação mal planejados e/ou mal operados podem provocar a salinização e degradação dos
solos. A melhoria da eficiência dos sistemas de irrigação é, portanto, um dos requisitos
prioritários para se atingir o desenvolvimento sustentável.239
O Banco Mundial publicou, logo após a Conferência do Rio de Janeiro de 1992, o
relatório “Gerenciamento de Recursos Hídricos”, que define a política do Banco para apoio à
proteção dos recursos hídricos.
Neste relatório, afirma que: “a água é um recurso cada vez mais escasso e que
necessita de um cuidadoso gerenciamento econômico e ambiental”, e recomenda que os
países em desenvolvimento adotem, com urgência, uma política integrada de gerenciamento
dos recursos hídricos, que considere os aspectos intersectoriais dos usos da água. Esta política
deve criar condições favoráveis para que as agências internacionais de desenvolvimento, os
órgãos governamentais, o setor privado, as organizações não governamentais, as comunidades
e os consumidores possam contribuir para a melhoria do gerenciamento dos recursos hídricos
(WORLD BANK, 1993, p. 5).
A Lei 9.433/97, ao estabelecer o valor econômico da água como um dos
fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, destacou o fato de que a água é um
239
“A agricultura produz a maior parte dos alimentos consumidos pela humanidade. Simplesmente não há outra
solução para o nosso futuro senão continuar a cultivar o planeta, e a usar plantas e animais como alimento. No
entanto, a agricultura é também o maior consumidor de água doce, sendo responsável por cerca de três
quartos do consumo mundial. Se a população aumentar em 65% nos próximos cinqüenta anos, como é
virtualmente certo, cerca de 70% dos habitantes deste planeta enfrentarão defíciências no suprimento de água,
e 16% deles não terão água bastante para produzir sua alimentaçâo básica. O necessário aumento da produção
de alimentos não poderá ser alcançado sem uma maior produtividade na terra existente e com a água
disponível (SELBORNE, 2002, p. 32).
321
322
bem finito e escasso. Assim, a cobrança pelo uso da água surge como mecanismo de uso
racional e conservação de um bem natural para as presentes e futuras gerações.
Emerge da argumentação apresentada, pois, a íntima correlação entre o
desenvolvimento sustentável e a água no Brasil.
322
323
2 A CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL NA GESTÃO DOS RECURSOS
HÍDRICOS E A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À
ÁGUA
2.1 DIFERENTES MODELOS INTERNACIONAIS DE GESTÃO
2.1.1 Visão geral dos modelos analisados no direito comparado
Conforme visto, no âmbito dos conflitos internacionais pelo diamante azul
(“guerras”de água), a água possui um valor econômico, ecológico e social atual, com vistas
a uma valoração positiva crescente ao longo do tempo.
Nesse aspecto, relevante o estudo do direito comparado para análise dos modelos
nacionais de água existentes em outros países, bem como do consenso internacional sobre a
água presente nos tratados e convenções internacionais.
Pelo escopo do trabalho, aspectos éticos e econômicos da cobrança pelo uso da
água no Brasil, selecionaram-se diversas experiências internacionais analisadas para
comparar as diferentes metodologias de gestão da água, com ênfase nos institutos jurídicos
utilizados.
Assim, procurou-se analisar os modelos americano, francês e alemão, em escolha
planejada das influências efetivas e potenciais destes modelos na gestão brasileira de
recursos hídricos.
A experiência americana é marcada pela utilização de licenças negociáveis, com
ênfase à esfera privada para a solução do problema da água ao incentivar um mercado de
compra e venda de direitos de uso240 (GETCHES, 1997, p. 156; COLBY, 1999, p. 69).
A experiência francesa, que serviu de base para a legislação brasileira, utiliza as
"redevances" como forma de internalizar os custos sociais, mostrando-se centrada na bacia
hidrográfica.241
A experiência alemã centra-se no desenvolvimento de técnicas que visem melhorar
a qualidade dos efluentes com base, também, na bacia hidrográfica, não obstante tenha um
240
Tratando da criação de mercados de direitos da água no Brasil, Motta (1998b, p. 37) afirma: “A discussão que
se segue terá o objetivo de analisar a utilização de mercados de direitos de uso de água (MDU) no qual a
titularidade continua pública, mas permite-se que o direito de uso por quantidade, dado pela outorga, seja
transacionado entre usuários. Outra opção seria o mercado de certificados de poluição (MCP) que estabelece
um limite de descarga de poluentes por usuários e autoriza que os usuários transacionem entre si partes dessa
permissão de carga poluente. Desta feita, pretende-se resolver mediante criação de mercado alguns dos
problemas com precificação apontados anteriormente e qualificar essas opções como instrumentos disponíveis
para a NGRH”.
241
“Os comités de bacia são compostos de maneira a representar, de forma tripartida, as coletividades locais, os
<<utilizadores>> e os diferentes níveis de administração [...] Eles deliberam igualmente sobre o ordenamento
global dos recursos ao seu nível. O plano qüinquenal, o orçamento anual e o emprego dos fundos são, em
seguida, decididos pelo conselho de administração de cada agência, emanação restrita do comité de bacia (26
membros para Sena-Normandia, dos quais 8 para cada tipo de parceiro, mais um representante do pessoal da
agência e o presidente, designado pelo Estado)” (BARRAQUÉ, 1996, p. 162).
323
324
Estado Federado características distintas e peculiares em relação ao Estado Francês
Unitário.242
Como se observa a seguir, estas experiências, consideradas isoladamente, não
constituem um modelo ideal para a situação brasileira, mas certamente são peças
importantes de um quebra-cabeça que podem ser utilizadas na construção de um modelo
brasileiro que absorva as experiências estrangeiras adequadas a nossa realidade geográfica,
hidrológica, política, social, econômica e cultural.
2.1.2 Estados Unidos da América
2.1.2.1 Situação hídrica americana: um retrato histórico e geográfico
Os Estados Unidos, berço do federalismo moderno, possuem uma alta descarga
média dos rios (119.365 m5/s), colocando-se em terceiro lugar em nível mundial nesse
parâmetro hídrico (REBOUÇAS, 1999, p. 14).
Os Estados Unidos apresentam uma condição particular em relação aos recursos
hídricos, que é o fato de ter o seu território dividido em duas porções distintas: uma
úmida(leste americano) e outra seca (oeste americano), o que caracterizou dois sistemas
jurídicos distintos de apropriação dos recursos hídricos.
Ao lado, entretanto, dessas duas regiões (leste e oeste), há uma grande preocupação
com a água que, no âmbito do Estado Federal, possui interesse tanto nacional quanto
regionalmente.
MacDonnell; Rice (1989, p. 69), nesse sentido, afirmam:
Os interesses nacionais com a água são amplos e incluem a proteção
dos cursos d’água em alguns casos. Expressão deste interesse nacional
pode ser encontrada na Constituição Americana, em leis aprovadas
pelo Congresso, nas ações das agências implementadoras desta
legislação, e na interpretação das leis feitas pelas Cortes Americanas.
Em 1982, a Suprema Corte Americana estabeleceu que os corpos d’água
americanos estão sujeitos à cláusula de comércio da Constituição Americana, não podendo
os Estados impedirem o livre trânsito dos rios que percorrem mais de um Estado americano.
Assim, a água americana foi considerada uma mercadoria (“commodity”), cujo movimento
pelos estados-membros americanos está protegido pela cláusula de comércio da
242
“Os Länder puseram de pé estruturas de cooperação entre si, nomeadamente para coordenar a gestão das
grandes bacias-vertentes. Mas não existe organismo de bacia-vertente enquanto tal, como pode existir nos
países de tradição centralizadora. Mesmo na região do Rur, o Lippeverband não é competente para a gestão
do rio a montante da fronteira da Renânia da Vestefália do Norte. A mais importante instituição de
cooperação inter-regional é o Grupo de Trabalho dos Länder sobre a Água, LAWA
(Länderarbeistsgemeinschaft Wasser), que reúne os ministros do Ambiente para a sua própria cooperação e
para a sua participação nas questões da União Européia. Os Länder participam igualmente, com o nível
federal, nas instituições de cooperação internacionais para as bacias transfronteiriças e mares poluídos”
(BARRAQUÉ, 1996, p. 39-40).
324
325
Constituição Americana, não podendo os estados-membros adotarem leis que limitem o
fluir dos corpos de água superficiais MacDonnell; Rice (1989, p. 70).
Esta competência nacional com os cursos de água vem modificando os dois
regimes historicamente existentes da água, sem, entretanto, descaracterizá-los.
Apesar da existência de diversos sistemas híbridos, pode-se caracterizar em dois
grandes grupos a Water Law americana: o riparian rights (os direitos ribeirinhos) e o prior
appropriation (o direito de apropriação dos primeiros) (GETCHES, 1997, p. 3-4).
2.1.2.2 Riparian rights
Na parte leste, com fartura de água, o processo histórico demonstra que
predominou o direito ribeirinho (riparian right) como doutrina orientadora (GETCHES,
1997, p. 4).
Conforme destaca Getches (1997, p. 5), a doutrina ribeirinha aplica-se em vinte
nove Estados-membros americanos, em sua maior parte situados no leste americano.
Baseia-se na noção de que os proprietários das margens de um curso de água têm
determinados direitos de utilização do curso de água que outras pessoas não possuem.
Assim, Getches (1997, p. 15) define a forma de apropriação privada baseada nos
direitos ribeirinhos:
O princípio fundamental da doutrina ribeirinha é que o proprietário da
margem adquire certos direitos sobre o uso da água. Qualquer
proprietário marginal pode usar, de forma proporcional, a água, caso
seu uso não afete o uso dos outros proprietários ribeirinhos.
Atualmente, os sistemas de leis escritas modificaram
consideravelmente este direito de apropriação, fazendo com que os
Tribunais e as Agências apliquem elementos desta doutrina nos
termos do disposto na legislação.
Historicamente, os proprietários ribeirinhos utilizavam a água para mover moinhos
e tinham acesso à superfície da água para a canoagem, a caça, a pesca e para consumirem
consideráveis quantidades de água.
Esse direito dos ribeirinhos, que originariamente baseava-se no precedente judicial
(fonte primária do Common Law), hoje se apresenta bastante influenciado pela lei escrita
(statutes).
Atualmente, por influência de leis, os ribeirinhos devem obter permissão da
agência estatal para a utilização da água, podendo, também, tal permissão ser dada para
usuários não ribeirinhos (GETCHES, 1997, p. 5).
Entretanto, a utilização da superfície da água (para esportes aquáticos, por
exemplo) continua sendo um direito quase exclusivo dos ribeirinhos.
2.1.2.3 Prior Appropriation
325
326
O oeste americano, como assinala Getches (1997, p. 77-82), foi colonizado
mediante incentivo do Governo Federal, proprietário da maioria das terras lá existentes.
MacDonnell; Rice (1989, p. 70-71), nesse sentido, afirmam:
Aproximadamente um terço das terras americanas no oeste eram terras
públicas administradas por agências federais [...] Essas terras públicas
reservadas para determinados propósitos associavam um direito
específico de utilização dos recursos hídricos necessários para o fim
que se destinavam [...] Direitos reservados de água existem nos casos
de parques nacionais, monumentos nacionais, rios selvagens e
reservas de vida selvagem.
Historicamente, isto fez com que nesta região não se aplicassem os “riparian
rights”, mas sim outro modelo, uma vez que os mineiros que foram para a Califórnia, por
exemplo, utilizavam a água dos rios, mesmo sem serem proprietários, pois as terras eram de
propriedade, em sua maioria, da União (GETCHES, 1997, p. 78-79).
Assim, os mineiros, como destaca Getches (1997, p. 6), simplesmente utilizaram da
mesma regra que usavam para resolver as disputas de propriedade das lavras: “o primeiro a
chegar é o primeiro a ter direitos”.
As cortes americanas ratificaram e corroboraram este preceito baseado nos
costumes dos mineiros. O sistema também funcionou razoavelmente para os fazendeiros e
foi incorporado pelas normas escritas de então (GETCHES, 1997, p. 80-81).
Os direitos sobre a água pertenciam, portanto, àqueles que utilizavam a água
primeiro em seu benefício, e esse direito, em regra, excluía o dos demais.
Assim, como afirma Getches (1997, p. 7), a doutrina da apropriação pelo primeiro
uso comanda o direito das águas em nove Estados-membros americanos, a saber: Alasca,
Arizona, Colorado, Idaho, Montana, Nevada, New Mexico, Utah e Wyoming.
Entretanto, modernamente, assim como os riparian rights, todos os usos exclusivos
da água (prior appropiation) exigem licença das agências administrativas americanas, e
estas levam em consideração, também, os interesses públicos.
Assim, Getches (1997, p. 85) destaca que:
Boa parte dos Estados-americanos que adotam o sistema de uso
exclusivo da água afirmam que nenhuma pessoa natural ou jurídica
possui a propriedade plena da água, ao contrário, destacam que a água
é um recurso comum a ser administrado para o bem da sociedade. O
controle estatal dos recursos hídricos pode estar previsto em um
dispositivo constitucional ou legal afirmando que “a água pertence à
sociedade” (Arizona, Nevada, New Mexico, Oregon), ou que a água é
“propriedade do Estado” (Idaho, Montana, North Dakota, Texas,
Wyoming), ou que a água “é propriedade do povo do Estado”
(California, Colorado, South Dakota), ou que a água “é propriedade
pública”(Nebraska e Utah), ou em outra linguagem semelhante.
326
327
2.1.2.4 A água americana: bem público com permissão de uso privado com monitoramento
federal e estadual
Após tratar dos sistemas privados predominantes de apropriação das águas, Getches
(1997, p. 11) afirma que a água é legal e historicamente um recurso público, mesmo sendo
possível seu uso privado. Assinala que a primeira necessidade de uso público da água
ocorreu na navegação.
Sob a cláusula de comércio, da Constituição Americana, o Governo Federal pode
regular a navegação interestadual. Assim, mesmo na ausência de legislação, nenhum
proprietário privado poderia impedir a navegação. Em Gibbons v. Ogden, em 1824, a
Suprema Corte Americana constatou que a autorização dada a Robert Fulton pelo Estadomembro de Nova Iorque de um direito exclusivo de operar cursos de água neste Estadomembro, mostrava-se contrário à clausula de comércio da Constituição Americana. O Chief
Justice Marshall, na construção da competência da União, declarou que: ”Todos os
americanos compreendem que a palavra comércio abrange a palavra navegação”
(GETCHES, 1997, p. 348).
Destacando o case Diana Shooting Club v. Husting, decidido na Suprema Corte de
Wisconsin em 1914, Getches explica que uma das partes navegava sobre um rio com um
pequeno barco para caçar patos, e o proprietário ribeirinho não aceitou tal conduta
considerando que o caçador estava invadindo a sua propriedade.
A Suprema Corte Estadual entendeu que os direitos de pesca e caça são inerentes
ao direito de navegação, não podendo ser impedidos pelo proprietário ribeirinho, que possui
um direito limitado ao uso do rio, subordina-se à autoridade do Estado-membro de assegurar
a todos o uso da navegação e outros direitos dela decorrentes (caça e pesca) (GETCHES,
1997, p. 224).
Assim, desde o século XX, os direitos dos ribeirinhos e da apropriação pelo
primeiro uso foram limitados à função social da água, resguardada pela autoridade do
Estado, seja sob a garantia da sua navegabilidade, seja sob outros usos.
Nesse aspecto, contemporaneamente, Getches (1997, p. 227) ressalta o case Stream
Access v. Curran, decidido pela Suprema Corte do Estado-membro de Montana em 1984,
no qual a Corte afirmou que a propriedade por apropriação de um curso d’água não impedia
o seu uso para propósitos recreativos. Independentemente de ser ou não navegável, o
curso d’água poderia ser utilizado para recreação pela população em geral.
O uso público das águas de superfícies freqüentemente não pode ser exercido sem
que se atravesse a propriedade privada ou que se utilize das margens das fazendas
ribeirinhas. Assim, foi construída uma teoria jurisprudencial que permitisse o acesso público
da terra privada para o usufruto do corpo de água, baseado no costume das populações de se
banharem naquele curso de água (GETCHES, 1997, p. 231).
A criação de associações para promover a defesa do interesse comum foi uma
decorrência do crescimento da demanda por água no oeste americano e do conseqüente
agravamento dos conflitos por seu uso. As regulamentações estaduais, embora tendo
evoluído sobremaneira, tornaram-se insuficientes para resolver os problemas decorrentes do
aumento da demanda. Surgiram vários tipos de agências independentes, algumas de atuação
federal, outras interestaduais e algumas outras de atuação regional ou local.
327
328
Em 1965, com relação à preservação da qualidade dos cursos d’água, foi aprovada
lei federal voltada para o planejamento dos recursos hídricos. A partir desse momento, os
Estados-membros passaram a regulamentar o controle da poluição das águas em seus
respectivos territórios, com implementação a cargo das agências estaduais.
Nesse sentido, há interessantes decisões de Cortes Americanas a respeito da
preservação da água para a proteção de ecossistemas a ela vinculados.
O case Sierra Club v. Block (1985), decidido por uma federal district court no
Estado-membro do Colorado, estabeleceu que as áreas de preservação da vida selvagem
deverão ter, conseqüentemente, os direitos de água protegidos para atingir os propósitos
para os quais foram criadas (MACDONELL; RICE, 1989).
Em Cappaert v. United States (1976), a Suprema Corte Americana já havia
decidido, de modo semelhante, definindo que a proteção da caverna Devil’s Hole, situada
em Nevada, que contém uma piscina natural povoada por uma espécie rara de peixe, incluía
a preservação dos níveis de águas subterrâneas na região para a proteção deste peixe
(MACDONELL; RICE, 1989).
Entretanto, a relevância da água para a proteção dos ecossistemas dela
dependentes não evita a coexistência de estudos expressivos com relação à cobrança
pelo uso da água, nem o vasto mercado de águas existente no oeste americano.
A existência de um mercado de águas no oeste americano, por outro lado, não
impede que exista uma política definida para o estabelecimento do preço da água para a
agricultura. Este preço é comandado pelo governo federal por meio do Bureau of
Reclamation (BOR), que desenvolve os projetos de provisão de água.
Conforme destaca Motta (1998b, p. 37):
O Bureau of Reclamation tem subsidiado fortemente os agricultores
com contratos de longo prazo de provisão de água a custos
suficientes apenas para cobertura dos custos operacionais dos
projetos. Estima-se que o subsídio varie entre 57% e 97% do custo
total dependendo da região.
A água para irrigação é preferencialmente outorgada, mesmo naqueles projetos
implantados com vistas a privilegiar o múltiplo uso dos recursos hídricos. A
comercialização das outorgas concedidas pelo Bureau of Reclamation, apesar de factíveis,
estão sujeitas a uma série de restrições impostas pelas normas vigentes.
Além disso, fazendeiros temem vender seus direitos e, assim, terem suas outorgas
reduzidas no ano seguinte, o que faz com que até as revendas para o Bureau of Reclamation
sejam evitadas (COLBY, 1989, p. 69).
Em resumo, a experiência americana, centrada, também, na água vista como um
bem público, com a criação de mercados de água, tem oferecido a possibilidade do uso de
uma ética utilitarista centrada no mercado, com a transformação do direito de seu uso em
uma “commodity”, não obstante haja decisões judiciais que enfatizam a ética ecocêntrica de
uso da água, descaracterizando-a como simples mercadoria em determinados casos
concretos.
2.1.3 França
328
329
2.1.3.1 Situação hídrica
A França tem uma superfïcie de 550.000km2 e uma população de mais de 57
milhões de habitantes, o que ocasiona uma densidade média bastante fraca em relação aos
outros países da Europa. Seus rios principais são: Sena, Loire, Garona, Ródona, Reno e
Mama, que lhes garantem um recurso potencial de água de 3.600m3/hab/ano, sendo
considerado um país “razoavelmente rico” em recursos hídricos (BARRAQUÉ, 1996, p.
135-136).
Essa abundância de água foi que levou a perdurar por muito tempo os direitos dos
ribeirinhos se apropriarem das águas de lagos artificiais, subterrâneas, das nascentes
localizadas em solos privados e das margens das águas correntes. Situação essa que só foi
alterada pela Lei de 1898, que estabeleceu normas para utilização das águas pelos
ribeirinhos.
2.1.3.2 Ordenamento institucional e legal
Como assinala Barraqué (2000, p. 87), quanto mais se estuda a diversidade das
políticas de água na Europa, mais se verifica um denominador comum na abordagem de
uma política de desenvolvimento sustentável da água.
Conforme destaca Barraqué (1996, p. 155):
Em França, o direito da água deriva da reinterpretação do direito
romano no Renascimento e na época clássica, que divide as águas
em três categorias: as águas «fechadas» (lagos artificiais), as águas
subterrâneas, as nascentes captadas nos solos privados, tudo isso é
considerado como res nullius e deixado à apropriação dos
proprietários. As águas correntes <<navegáveis e flutuáveis>>,
segundo uma expressão caída em desuso, são públicas, assim como o
seu leito; as margens são deixadas à apropriação dos habitantes
ribeirinhos, mas estão submetidas a obrigações, nomeadamente de
reboque; essas águas chamam-se agora «dominiais». O essencial das
águas correntes, não dominiais, escapa no entanto desde sempre ao
princípio de apropriação, pois é res communis omnium. Após as
hesitações do século XIX, a lei de 1898 sobre o regime e a divisão as
águas faz delas, claramente, bens inapropriáveis no sentido jurídico e
de que apenas o uso é objecto de uma divisão. A lei previa a criação
de sindicatos de rios para regular esta divisão de forma equitativa,
mas de uma forma geral eles não surgiram, de tal forma a dicotomia
domínio público-propriedade privada era importante na época (grifo
nosso).
O primeiro instrumento legal sobre água data de abril de 1829. Neste documento
legal foram previstas multa e prisão para a pessoa que lançasse qualquer produto na água
329
330
que envenenasse e matasse os peixes. Quase setenta anos depois (1898), foi aprovada a
legislação de água na França, organizando os princípios de uma política administrativa,
estabelecendo:
• autorização para utilização das águas pelos ribeirinhos, que deveria ser
obtida junto ao Serviço de Ponte e Estrada;
• sistema de divisão das águas em três categorias, que vigora até os dias
atuais (as águas subterrâneas, as nascentes captadas nos solos privados
[res nullius] as águas correntes "navegáveis e flutuáveis" dominiais e as
não dominiais - que não pode ser apropriada, pois é [res communis
omnium]);
• divisão dos usos das águas, pelos Comitês de Bacia, entre os utilizadores
desse recurso (BARRAQUÉ, 1996, p. 155-157).
Outros instrumentos legais foram elaborados e aprovados, objetivando um melhor
controle da poluição das águas superficiais, como: o que estabeleceu compromisso
obrigatório de não tornar as águas impróprias para homem e animal: o que submeteu as
indústrias e comércios ao controle administrativo; e o que estabeleceu normas de proteção
dos mananciais, lençóis subterrâneos e superficiais (Leis de 1905, 1906, 1917, Decreto de
1935 e Ordenança de 1958).
Cabe observar que profundas modificações, tanto na estrutura institucional dos
órgãos gestores das águas quanto na forma de gestão desse recurso, foram promovidas pela
Lei das Águas de 1964. Essa lei permitiu à França planejar a gestão dos recursos hídricos a
partir dos “objetivos de qualidade”, possibilitando investimentos em estações de tratamento
no final de cada rede de esgoto.243
A Lei Francesa de 1964 possibilitou a gestão das dimensões técnica, política,
econômica e financeira, simultaneamente, como esclarece Duc (1992, p. 42):
A dimensão técnica consiste em gerir a água não setorialmente, mas
sim considerando seus problemas a nível de toda a bacia
hidrográfica. A dimensão política consiste em decidir-se os
trabalhos de despoluição necessários pelos usuários da água por eles
próprios, grupados nos organismos chamados Comitês de Bacia. A
dimensão econômica e financeira visa completar a via regulamentar
por uma incitação à despoluição por intermédio do princípio
poluidor-pagador: os poluidores recalcitrantes são penalizados pelas
cotizações obrigatórias a um fundo especial de investimento, onde
os impostos são fixados em função dos trabalhos a realizar e dos
inconvenientes que sua poluição ocasiona; por outro lado, os que
executam os trabalhos de despoluição são ajudados financeiramente
por este fundo especial, em função das despesas que empenham. As
cotizações ou imposto, não são recolhidos ao orçamento do Estado,
243
“Até o início dos anos 60, a gestão das águas baseou-se, na França, num conjunto de textos e regulamentos
que se constituíram, ao longo dos anos por níveis sucessivos, num verdadeiro labirinto jurídico. Os diferentes
dispositivos que a regeram foram denominados com diversos códigos: Civil, Rural, do Urbanismo, de
Mineração, das Comunas, da Saúde ública, do Domínio Fluvial Público, etc. A polícia das águas foi
organizada seguindo um esquema escolhido em função da atuação que cada Ministério especializado
desenvolvia em função de sua competência (alimentação e saneamento das comunas: Ministerio do
Equipamento quanto às obras e Ministério do Interior quanto aos financiamentos; alimentação e saneamento
das comunas rurais pelo Ministério do Interior, navegação pelo Ministério dos Transportes, hidro-eletricidade
pelo Mistério da Indústria, etc.)” (DUC, 1992, p. 41).
330
331
mas a um operador único, independente da administração, que é a
Agência de Bacia (chamada atualmente de Agência da Água).
Um Comitê de bacia e uma Agência da água foram criadas em cada
uma das seis bacias hidrográficas francesas, para empreender as
novas disposições assim previstas pela lei.
[...] Neste esquema institucional, uma Agência da água é um
estabelecimento público de caráter administrativo submetido a um
único contrato do equilíbrio orçamentário via o recebimento e o
emprego do orçamento. Constitui-se no executivo previsto na lei de
1964. É, também, pela presença do Comitê de Bacia, um organismo
para o acordo entre os que decidem a política da água a vigorar na
bacia correspondente. Verdadeiro “Parlamento da água”, o Comitê é
constituído (ver Anexo 2) da seguinte maneira:
• 20% dos membros: de representantes do Estado, ou seja, do poder
regulamentar;
• 80% dos membros: de representantes eleitos locais e de usuários
da água, seja como consumidores, seja como poluidores
(industriais, agricultores, pescadores) (grifo nosso).
Segundo Duc (1992, p. 43), a Lei de 64 criou organismos de coordenação em nível
de grandes bacias hidrográficas e um sistema de gestão racional da água. A lei reforça o
exercício do poder de polícia da qualidade das águas, periodicamente atualizado com
definição dos níveis de poluição, permitindo satisfazer ou conciliar os diversos usos, sendo
que a responsabilidade dos que poluem constitui um ponto capital no sucesso do sistema
francês.
Contemporaneamente, está em vigor na França a Lei 92-3, de 03/01/1992, que é
um aperfeiçoamento da lei de 1964, relativa à propriedade e à repartição das águas e à luta
contra a poluição.244
Ainda nos anos sessenta, foram criadas as Agências de Bacia, abrangendo cada
uma das seis regiões hidrográficas do País e atuando como entidades financeiras e técnicas
do sistema, apoiando os comitês de bacias de sua área de abrangência.
Atualmente, a filosofia da cobrança pelo uso da água na França (redevance) é a de
recuperar todos os custos do sistema, em particular aqueles incorridos pelas administrações
públicas das coletividades locais.
Conforme destaca Motta (1998b, p. 26):
O sistema de cobrança teve implantação gradual e enfrentou diversos
problemas políticos. A cobrança por quantidade, por exemplo, até
hoje não foi implantada em algumas sub-bacias e a maioria dos
irrigantes não participa do sistema.
A cobrança por poluição iniciou-se com matéria orgânica e sólidos
em suspensão, enquanto salinidade e toxicidade foram introduzidas,
respectivamente, em 1973 e 1974; nitrogênio e fósforo em 1982;
hidrocarbonetos e outros inorgânicos em 1992.
244
“Votada após vários anos de preparação, a lei de 1992 não contém tudo o que os partidários de uma política
integrada da água podiam esperar. Além da modificação do direito da água já evocado [maior participação
dos usuários], ela contém, no entanto, várias disposições importantes. É preciso citar ainda a unificação da
polícia da água e dos meios aquáticos e a extensão, e generalização, do regime das autorizações de captação e
descarga nas águas superficiais e subterrâneas” (BARRAQUÉ, 1996, p. 169).
331
332
2.1.3.3 Preço da água
Na conta de água do consumidor, constam valores referentes a: preço base, taxas de
captação e contribuição para o Fundo Nacional para o Desenvolvimento das Aduções de
Água - FNDAE (cuja soma corresponde a 60% do total da conta de água); e taxas de
recolhimento das águas residuais e depuração, e de poluição (que correspondem a 40% do
valor total da conta de água).
Quanto à utilização de instrumentos econômicos na gestão da água, a França é um
dos exemplos mais consolidados, porque estabeleceu taxas com base no princípio poluidorpagador, que inclusive é especificada na conta de água do consumidor final, conforme
acima mencionado. Com o estabelecimento dessas taxas, os órgãos gestores da água
conseguiram dispor de recursos financeiros para aplicar em pesquisa, novas tecnologias de
tratamento, recuperação de mananciais, etc.
As receitas geradas com a cobrança são aplicadas nas bacias na forma de gastos
com gestão, estudos e pesquisa, investimentos de interesse comum e empréstimos aos
usuários. Com as receitas, os comitês conseguem aportar 40% dos investimentos das bacias.
Os outros 60% são cobertos por dotações orçamentárias do governo central. Os
investimentos são definidos qüinqüenalmente e o papel das Agências de Bacia, que são
estatais, é promover "ajudas" aos executores das obras e intervenções aprovadas pelo
correspondente comitê de cada bacia.
O critério norteador do nível de cobrança no sistema francês é o do custo de
provisão para o consumo de quantidade e o de custo de tratamento no caso da
poluição. Tais critérios guardam coerência com os critérios de preços públicos e custoeficiência. A receita com a cobrança por poluição tem representado mais ou menos o triplo
da arrecadada com a cobrança de quantidade, no entanto as obras de tratamento receberam
seis vezes mais recursos no período 1992 a 1996 (MOTTA, 1998b, p. 28).
Os resultados do sistema francês são considerados muito bons na literatura. Estimase que essa cobrança (quantidade - consumo e qualidade - tratamento) signifique um
sobrepreço de 15% no preço total da água. Em termos de investimentos, o sistema permitiu
que a taxa de tratamento de efluentes domésticos crescesse de menos de 50%, em 1982,
para mais de 72 % em 1992. No mesmo período, a indústria reduziu as emissões residuais
de carga orgânica em mais de 27 % e de sólidos em suspensão e material tóxico em mais de
38%. No entanto, pouco se sabe dos ganhos de eficiência em termos de maximização dos
beneficios do uso da água, da redução do dano ambiental e da minimização dos custos de
controle.
2.1.4 Alemanha
2.1.4.1 Situação hídrica
332
333
A Alemanha é um Estado Federal, localizado no centro-norte da Europa, em uma
área de 357.000 km2, que abriga 80,3 milhões de habitantes, distribuídos por dezesseis
Länders (Estados). Em termos de recursos hídricos, a Alemanha conta com uma
disponibilidade de mais de 2.000 m3/hab/ano, num total de 164 km3/água/ano, para uma
demanda bruta de apenas 51,75 km3, que é atendida em 83,5% com águas superficiais e o
restante com águas subterrâneas. Seus rios principais são: Reno, Elba, Oder e Weser, que é
a única bacia nacional, sendo todas as outras internacionais (BARRAQUÉ, 1996, p. 19-20).
Pela disponibilidade hídrica apresentada, bem superior à demanda, pode-se pensar
que a Alemanha não enfrenta problemas de escassez de água. De certa maneira, isso é
verdade, porque a única região alemã que tem déficit hídrico fica a sudeste do país, tendo
sua demanda atendida com as transferências inter-regionais, feitas através de cooperação
voluntária entre os municípios ou por associações instituídas pelos Länder (BARRAQUÉ,
1996, p. 20).
Nesse aspecto, afirma Barraqué (1996, p. 157) sobre os recursos disponíveis:
As precipitações são bastante importantes em média nos Länder do
Oeste (873 mm), mas menos nos de Leste, mais continentais (612
mm). A evaporação é bastante importante, de forma que dos 343
Km3 trazidos anualmente pela chuva e pelos rios que vêm de países a
montante, restam apenas 164 km3, isto é pouco mais de 2000 m3/hab.
No entanto, estes recursos são globalmente suficientes, graças aos
lençóis freáticos; as regiões em dificuldade são aquelas em que a
água subterrânea é explorada ao máximo: em Berlim, por exemplo, a
recarga do lençol representa apenas metade das captações.
Na realidade, os problemas dos recursos hídricos na Alemanha não estão
relacionados à quantidade desse recurso, mas sim à poluição das águas pela mineração
de carvão e de aço, pela indústria, pela agricultura, pelos esgotos domésticos, etc. A
gravidade da situação levou os usuários da água, o governo e a comunidade local da região
carborífera de Ruhr a discutirem, já em 1880, a possibilidade de gestão integrada desse
recurso.
2.1.4.2 Ordenamento institucional e legal: as associações de recursos hídricos e a gestão
integrada
Assim, foi na Renânia do Norte–Vestfália245 que, em 1904, os conflitos entre os
usuários dos recursos hídricos levaram à formação da primeira associação do rio Emscher
"sindicato cooperativo", o Emschergenossenschaft. Esse "sindicado cooperativo" ficou com
a responsabilidade de garantir o abastecimento urbano e viabilizar a canalização e
depuração das águas poluídas na bacia Emscher (BARRAQUÉ, 1996, p. 33).
245
“O estado da Renânia do Norte – Vestfália é o mais industrializado entre os 16 estados da República Federal
da Alemanha. Sua população de 16.7 milhões de habitantes corresponde a 20% da população total do país. Na
Renânia do Norte – Vestfália existem 10.000 indústrias/fábricas de diferentes portes e campos de atuação e o
consumo de água para fins industriais perfaz aproximadamente 5,0 bithões de m3 anuais” (ALBRECHT,
1992, p. 49).
333
334
Os bons resultados apresentados pela associação de Emscher tiveram, como
conseqüência, a criação, em 1913, de duas outras associações para a Região de Ruhr: a
Ruhrverband, que ficou responsável pelo controle da qualidade das águas residuais (luta
contra a poluição), e a Ruhrtalsperrenverein, responsável pela quantidade de água para
consumo (armazenagem da água para abastecimento urbano e regulação do fluxo do rio).
Conforme destaca Albrecht (1992, p. 51), a preocupação com o Ruhr ensejou uma
série de ações:
Sérios problemas no abastecimento municipal de água do Ruhr
ocorreram em meados deste século, quando a capacidade das
instalações não era suficiente para suprir a demanda de água e tratar
os esgotos das comunidades, então, em crescimento acelerado.
Conseqüentemente, doenças como a febre tifóide, cólera e outras
epidemias propagaram-se na região. Estas circunstâncias prementes
levaram à solução do problema, a partir de discussões coletivas.
Após longos debates, nos quais predominaram a atribuiçâo de
responsabilidades e distribuição de custos, os três grupos, a saber, as
comunidades as agências de água bem como as indústrias,
concordaram com a criação de duas associações de gerenciamento
hídrico para a bacia do rio Ruhr. Em 1913, o estado prussiano
promulgou uma lei, visando a instauração do Ruhrverband
(responsável pela qualidade da água) e o Ruhrtalsperrenverein
(responsável pelo volume de água) como duas organizações
independentes, responsáveis por toda a bacia hidrográfica natural do
rio. Estas leis foram firmadas ainda pelo próprio Imperador alemão.
A partir de então, várias outras associações foram criadas, como a de
Lippeverband, que foi constituída em 1926 pelos habitantes das margens do Lippe,
chegando, em 1958, a existirem onze associações só na região de Ruhr.
A criação da associação Lippeverband viabilizou a formação de um acordo de
gestão por especialização dos rios Ruhr, Emscher e Lippe. Tal acordo foi definido segundo
as condições dos cursos d'água de cada um. O rio Emscher (“foi transformado em um esgoto
a céu aberto”) foi canalizado para receber as águas residuais dos esgotos urbanos e
industriais das duas outras bacias-vertentes; o Ruhr tornou-se uma fonte de água potável
bem protegida para a região e as águas do Lippe foram destinadas para abastecimento
agrícola e industrial (BARRAQUÉ, 1996, p. 33).
Albrecht (1992, p. 51) assinala que a Ruhrverband e a Ruhrtalsperrenverein foram
unificadas após julho de 1990 pelo novo estatuto.
Barraqué indaga por que as associações cooperativas (Genossenschaffen) se
multiplicaram na zona do Ruhr e não em outros locais. E responde que, certamente, a
escassez dos recursos de água foi um dos motivos. Entretanto, outro aspecto mostra-se
relevante: a intensa participação popular nesta região de carvão e de aço.
Esse modelo de gestão dos recursos hídricos, por associações com personalidade
jurídica de “sindicatos cooperativos”, que tanto podem atuar em nível local como de bacia
hidrográfica, surge para, de forma criativa, enfrentar os problemas federativos, a disfunção
entre o território natural e o político das bacias.
Os sindicatos cooperativos mostram-se eficientes, segundo Barraqué (1996, p. 2425):
Em função das necessidades, estas associações podem estar limitadas
a uma vizinhança em meio rural, ou cobrir um território regional e
334
335
ter orçamentos de vários milhões de DM. Elas baseiam-se no
princípio da participação dos utilizadores e da autonomia local. Os
Länder estabeleceram um quadro jurídico que permite que estas
associações funcionem sem respeitar os limites territoriais
tradicionais, para que não sejam perturbadas na sua abordagem
segundo os critérios hidrológicos.
O traço essencial que caracteriza a gestão da água na Alemanha é o federalismo
e o princípio da subsidiariedade a ele vinculado. Assim, como assinala Barraqué (1996,
p. 25), os grandes serviços de água são da competência dos municípios ou dos sindicatos
que eles podem formar. O princípio constitucional que lhes dá esta prerrogativa é o da
autonomia municipal:
Na Alemanha, o princípio de subsidiariedade faz com que seja difícil
imaginar que uma cidade importante não tenha o poder de policiar o
ambiente no seu território, contrariamente ao que acontece na
França. As cidades controlam, por conseguinte, os estabelecimentos
industriais no seu território, nomeadamente no que respeita às
descargas poluentes na água [...]
Do mesmo modo, enfatiza Albrecht (1992, p. 52):
Além do Ruhrverband, foram criadas outras nove associações
similares no estado. Estas associações são responsáveis peto controle
de poluição das águas de todas as bacias hidrográficas.
Desconhecendo fronteiras políticas, estas associações planejam,
constroem e operam as estações necessárias. Assim, foi criada uma
forma de gerenciamento, abrangendo todo o sistema, a fim de
equalizar e minimizar custos.
A forte participação das coletividades locais nas decisões sobre os serviços básicos,
principalmente na gestão dos recursos hídricos, sofreu algumas modificações com a divisão
do país em República Federal da Alemanha-RFA e República Democrática da AlemanhaRDA, em 1949, como relata Barraqué (1996, p. 26), tendo havido, com a unificação, uma
remunicipalização e uma descentralização.
Na República Democrática da Alemanha, a administração, a partir da década de 50,
foi aos poucos retirada da esfera municipal, concentrando-se em quinze regiões
administrativas, que não correspondiam exatamente às bacias-vertentes. O planejamento
passou a ser feito pelo governo central, sem a participação da comunidade e dos usuários da
água, e bastante distante das necessidades locais. Com o aumento das dificuldades
financeiras no Leste Europeu, os investimentos em infra-estrutura (construção de novas
redes, substituição e manutenção de redes antigas, construção de novas estações de
depuração etc) deixaram de ser feitos, resultando no aumento da poluição dos rios,
principalmente à jusante dos afluentes do Elba, ficando evidenciado, neste aspecto, o
malefício da centralização na gestão dos recursos hídricos ocorrida na Alemanha
comunista .
Na República Federal da Alemanha, a gestão da água era descentralizada e
participativa; a bacia era utilizada como unidade ideal de gerenciamento, ao contrário do
que ocorria na outra parte da Alemanha.
Com a reunificação da Alemanha em outubro de 1990, a gestão dos recursos
hídricos na ex-RDA passou a ser exercida por instituições municipais semi-autônomas
(Stadtwerke) e sindicatos intermunicipais (BARRAQUÉ, 1996, p. 27).
335
336
Assim, a estrutura basilar da Alemanha unificada, à semelhança da francesa,
continuam sendo as associações(sindicatos) de bacia.
Exemplificando o funcionamento destas associações, podemos utilizar-nos da
análise do Ruhrverband contemporâneo, pelas precisas explanações de Albrecht (1992, p.
51-52):
Associados do Ruhrverband são todos aqueles que poluem o rio
Ruhr e seus tributários, como, por exempto, as comunidades,
indústrias e empresas comerciais. Associadas são igualmente as
agências de água como empresas públicas de abastecimento de água,
que se beneficiam com o trabalho do Ruhrverband, podendo
transferir água potável para bacias hidrográficas subjacentes.
A associação é composta por uma Assembléia Cooperativa, um
Conselho Diretivo e uma Diretoria Executiva. A Assembléia
Cooperativa é composta por 152 representantes eleitos pelos
associados, de acordo com a contribuição financeira dos mesmos. O
Conselho Diretivo é formado por 15 membros, dos quais cinco são
eleitos pelos funcionários do Ruhrverband e dez pela Assembléia
Cooperativa.
Três diretores executivos forma a Diretoria Executiva, que
desempenha função administrativa. Cabe a cada um dos diretores,
respectivamente a responsabilidade pelos setores de engenharia,
financeiro e social/recursos humanos.
As vantagens deste modelo de gerenciamento alemão, adotado em um país
federativo, à semelhança do Francês, centrado na Bacia, podem ser elencadas abaixo,
segundo a concepção de Albrecht (1992, p. 55), membro do Ruhrverband:
• Visto os rios desconherem fronteiras políticas é mais eficaz,
econômico e portanto razoável, realizar o gerenciamento dos recursos
hídricos em suas respectivas áreas naturais de captação;
• Todas as medidas relacionadas à água podem ser implementadas por
meio de planos diretores supramunicipais, em lugar de decisões a
nível local, que em sua maioria são decorrentes de interesses locais,
negligenciando as necessidades dos usuários a jusante;
• O planejamento de novas instalações pode ser feito por uma central,
para minimizar os custos. Medidas centralizadas são mais facilmente
implementáveis a nível municipal;
• A operação das estações pode ser regionalizada de acordo com a
topografia da bacia e as condições de transporte. Isto também diminui
custos, se comparado com a operação independente por parte de cada
comunidade. “A dúzia é sempre mais barata”;
• A auto-gestão de uma associação assegura a participação de todos os
membros captadores no processo decisório e o desempenho do
gerenciamento dos recursos hídricos;
• Em comparação às comunidades, as associações de bacias, como
grandes órgãos públicos, têm acesso facilitado a empréstimos;
• Integrar indústrias, municípios e agências de água e estabelecer a
participação obrigatória.
336
337
O núcleo essencial do funcionamento do modelo alemão de gestão hídrica baseia-se
na gestão por bacia, com ênfase na participação social e dos entes federados na
composição do Comitê de Bacia (Associação da Bacia), levando para dentro deste órgão a
integração dos elementos federativos (políticos) e sociais do uso da água daquela bacia.
Assim, o modelo alemão assemelha-se ao francês na forma de gerenciamento,
tendo por unidade de gestão a bacia hidrográfica, não obstante sofra influência das
autonomias das entidades federadas (BARRAQUÉ, 1996, p. 39-40).
2.1.4.3 Preço da água
Os serviços de captação-distribuição de água e o saneamento são tratados de
forma diferente pelo governo. O primeiro é atividade comercial e industrial, portanto paga
imposto. O segundo é serviço de utilidade pública é isento de impostos.
O tratamento diferenciado dos serviços de captação e distribuição de água e
saneamento está expresso na formação do preço da água, estabelecido com base em cinco
princípios de direito administrativo voltados para os serviços de captação e
distribuição, que são:
• cobrir a totalidade dos custos de abastecimento (Kostendeckungprinzip)
- tanto da manutenção quanto de novos investimentos;
• diferenciar os diferentes tipos de utilizadores, refletindo os custos
específicos relativos às diferentes classes de utilizadores de água. Esse
princípio beneficia com redução progressiva de tarifas os grandes
utilizadores de água e cria redes e contratos separados para os grandes
utilizadores;
• traduzir a estrutura dos custos por tarifas binômicas (taxa de ligação e
taxa de utilização do serviço), destas tarifas a taxa de ligação é a mais
em conta (10% do total arrecadado pelos distribuidores) do que a taxa
de utilização, preço proporcional ao volume consumido do serviço,
(90% do total arrecadado pelos distribuidores). Em alguns municípios a
tarifa é monômica, só contém o preço relativo ao volume;
• oferecer um retorno do capital investido; e
• permitir um superavit para reinvestir em melhoras técnicas.
Esses princípios mantêm a estabilidade das empresas municipais alemãs ao propor,
como regra, a geração de lucros para renovação de equipamentos e um rendimento do
capital equivalente ao dos bancos. Isso impede a descapitalização dos serviços de água e
evita dependência das subvenções do estado. Conforme destaca Barraqué (1996, p. 36): “Os
benefícios anuais deveriam permitir simultaneamente constituir provisões para a renovação
dos equipamentos e oferecer um rendimento do capital equivalente ao dos mercados
bancários”.
Por outro lado, para os serviços de saneamento, foram estabelecidos quatros
princípios, que orientam a formação das taxas de saneamento, que são:
337
338
• proporcionalidade
em
relação
ao
serviço
prestado
(Leitungsproportionalität), que proíbe a majoração das taxas
unitárias em função do utilizado, mas não proíbe a majoração das
taxas fixas anuais de ligação;
• as taxas devem refletir o beneficio retirado pelos utilizadores,
assim como os custos específicos do financiamento do serviço;
• os utilizadores devem se tratados igualitariamente, sem concessão
de redução a certas categorias de usuários como ocorre com a
captação e distribuição da água; e
• equilíbrio entre receitas e despesas, sem possibilidades de gerar
beneficios (BARRAQUÉ 1996, p. 37).
Observa-se que os princípios orientadores da formação de preços dos serviços de
distribuição de água potável e saneamento refletem bem o tratamento dado pelo governo às
empresas prestadoras desses serviços, com isenção ou não de impostos. Enquanto as
empresas distribuidoras de água podem reduzir algumas taxas, de acordo com os usuários, e
são obrigadas a gerar lucros equivalentes aos de Banco, para as empresas de saneamento,
isso não é permitido.
A respeito da administração orçamentária e financeira do Ruhrverband, Albrecht
(1992, p. 55) afirma:
Os associados são obrigados a pagar contribuições ao Ruhrverband,
para que este possa desempenhar suas funções legais, principalmente
quando outras verbas, por exemplo, subsídios estaduais para a
construção de novas estações, não cobrirem os custos totais da obra.
Os princípios para o cálculo de tarifas estão pormenorizados no
Estatuto do Ruhrverband. O cálculo da tarifa anual a ser aplicada ao
poluidor, baseia-se no volume e na composição dos resíduos
despejados. As agências de água são tributadas de acordo com o
volume de água derivada do rio.
A Alemanha, portanto, utiliza instrumentos econômicos na gestão de seus recursos
hídricos em nível federal, estadual, municipal e dos sindicatos cooperativos da água,
formados por entes de direito público, principalmente após a aprovação da Lei Federal de
1976, que concretiza o princípio do poluidor-pagador.
2.2
CONTRIBUIÇÕES DOS TRATADOS E DAS CONFERÊNCIAS
INTERNACIONAIS À GÊNESE DE UM DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO
À ÁGUA
2.2.1 Argumentos contemporâneos favoráveis à construção do direito fundamental de
uso da água
338
339
O acesso à água, conforme já visto, é uma das condições fundamentais para o
desenvolvimento humano. Entretanto, na entrada do século XXI, bilhões de pessoas o têm
(GLEICK, 2002, p. 1).246
Como destaca Priscolli (2000, p. 2), a noção de que a água é um bem da humanidade
e de que deve ser disponibilizada para todos vincula-se, diretamente, ao princípio da
dignidade humana.
A falha da Comunidade Internacional, dos Estados e das organizações nãogovernamentais(representantes ativos da sociedade), em buscar satisfazer essa necessidade
humana fundamental, tem ensejado amplos debates sobre a busca de mecanismos
internacionais, nacionais e locais de trato desta questão.
Nesta secção, analisaremos a proteção internacional do acesso à água como um
direito fundamental em construção pelos tratados e conferências internacionais sobre a
água.
A primeira questão metodológica, a ser indagada refere-se à existência de um
direito fundamental universal à água.
O termo “direito fundamental”, neste momento, relaciona-se à proteção de direitos
comuns a todos os povos que transcendem a sua cultura e o local em que se
encontram.247
Como afirma Gleick, até recentemente, a questão dos indivíduos ou grupos
possuirem um direito legal a um mínimo de recursos hídricos e de haver uma obrigação dos
Estados e da Comunidade Internacional em prover estes recursos não tem sido corretamente
respondida.
Esse direito à água, sem sombra de dúvida, está presente na proteção ao meio
ambiente, no direito do desenvolvimento sustentável, na saúde, na vida, dentre outros
direitos fundamentais. Gleick, com razão, entretanto, entende que tal posicionamento
protetivo deve ser mais direto e específico, com uma especificação e explicitação de um
direito fundamental de acesso à água.
Assim, Gleick (2002, p. 3) questiona:
Qual o propósito ou o valor de explicitar-se um direito humano à
água, quando a Comunidade Internacional tem explicitamente
reconhecido um direito humano à comida e à vida? [...] Uma razão é
para encorajar a Comunidade Internacional e os Estados a renovar
seus esforços no atendimento das necessidades de água das suas
populações. Esses esforços estão à caminho por meio da Visão 21,
um processo de criação de um Conselho Internacional de
Fornecimento e Tratamento da Água [Water Supply and Sanitation
Collaborative Council - WSSCC]. A discussão internacional deste
tema é importante, por que levanta um tema que é global e que,
muitas vezes, passa despercebido no âmbito nacional e local. A
246
No Brasil, segundos dados do IBGE, 58,40% dos distritos brasileiros pesquisados em 2000 não possuem rede
coletora de esgotos, sendo que 1,5% lançam o esgoto diretamente sem tratamento em cursos d´água. (Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, 2002).
247
Conforme afirma Piovesan (1997, p. 76): “Os tratados são, por excelência, expressão de consenso. Apenas
pela via do consenso podem os tratados criar obrigações legais, uma vez que os Estados soberanos, ao aceitálos, comprometem-se a respeitá-los. A exigência de consenso é prevista pelo art. 52 da Convenção de Viena,
quando dispõe que o tratado será nulo se a sua aprovação for obtida mediante ameaça ou o uso da força em
violação aos princípios de Direito Internacional consagrados pela Carta da ONU”.
339
340
segunda razão da divulgação da existência de tal direito, relaciona-se
à pressão de que o mesmo seja incorporado nas normas obrigacionais
internacionais, nacionais e locais [...] A terceira razão é dar destaque
à situação deplorável da gestão hídrica em muitas partes do
mundo.[...] Uma quarta razão refere-se à ajudar à resolução dos
conflitos internacionais por recursos hídricos compartilhados por
mais de um país, identificando a necessidade de atendimento mínimo
do recurso a todos eles [...] Finalmente, explicitando o conhecimento
deste direito humano pode-se contribuir para a criação de políticas
públicas hídricas que assegurem a utilização humana da água para
consumo como preferencial em relação aos outros usos que possui.
Há inúmeras convenções e acordos internacionais, formalmente, identificadores e
declaradores do leque de direitos humanos vigentes no âmbito internacional. Dentre esses,
destacamos, na tabela abaixo, os principais com o seu endereço eletrônico na Internet.
Quadro 9 – Principais documentos internacionais relativos aos direitos fundamentais
reconhecidos internacionalmente e seus endereços eletrônicos
DENOMINAÇÃO DO
DOCUMENTO EM
PORTUGUÊS
DENOMINAÇÃO
INTERNACIONAL
ENDEREÇO NA WORLD
WIDE WEB
Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948)
Universal Declaration of
Human Rights (UDHR),
194 8
http://www.unhchr.ch/udhr/inde
x.htm
Convenção Européia dos
Direitos Fundamentais
(1950)
European Convention on
Human Rights
(“Convention for the
protection of human rights
and fundamental
freedoms”)
http://www.coe.fr/eng/legaltxt/5e
.htm
Convenção internacional
sobre direitos
econômicos, sociais e
culturais (1966)
International Covenant on
Economic, Social and
Cultural Rights (ICESCR),
1966
http://www.unhchr.ch/html/men
u3/b/a_cescr.htm
Convenção internacional
sobre direitos civis e
políticos (1966)
International Covenant on
Civil and Political Rights
(ICCPR), 1966
http://www.unhchr.ch/html/men
u3/b/a_ccpr.htm
Convenção Americana
dos Direitos Humanos
(Tratado de São José da
Costa Rica, 1969)
American Convention on
Human Rights, 1966
http://www.oas.org/EN/PROG/ic
hr/enbas3.htm
Declaração sobre o
direito ao
desenvolvimento (1986)
Declaration on the Right
to Development (DRD),
1989
http://www.unhchr.ch/html/men
u3/b/74.htm
Convenção internacional
Convention of the Rights
http://www.unhchr.ch/html/men
340
341
sobre os direitos das
crianças (1989)
of the Child (CRC)
u3/b/k2crc.htm
.
Conforme destaca Gleick (2002, p. 4), entre os direitos explicitamente protegidos
nas declarações referenciadas no Quadro anterior, estão o direito à vida, à qualidade de
vida, à proteção contra a doença e por uma alimentação adequada.
Apesar do direito à água limpa (consumo da água) estar implicitamente
mencionado como pré-requisito a esses direitos, a água só é explicitamente mencionada na
Convenção internacional sobre os direitos das crianças.
Assim sendo, por que a água não foi expressa nas outras declarações, tal qual o
foram o direito à alimentação e ao vestuário,248 por exemplo?
Nesse aspecto, não se pode esquecer de situarem os direitos fundamentais como
direitos históricos249, não sendo a água, na declaração universal de 1948, um problema
visível ou efetivo como se apresenta hoje.
No entanto, conforme iremos demonstrar com a análise das Conferências
Internacionais relativas à água, hoje já se pode visualizar um direito fundamental à água,
e Gleik estabelece até parâmetros quantitativos para este direito, conforme o quadro abaixo.
Quadro 10 – Quantidade de água básica para as necessidades humanas domésticas
TIPO DE UTILIZAÇÃO
Água Para Beber
LITROS POR PESSOA POR DIA
5
Água para saneamento pessoal
20
Água para banho
15
Água para preparação de comida
10
TOTAL
50
Assim, Gleick (2002, p. 11) propõe que a recomendação de 50 litros (por volta de
13 galões) diários por pessoa, seja uma meta mínima universal de garantia de acesso à água.
A aritmética de Gleick já representa um enorme desafio, tendo também um aspecto
político relevante de solidariedade entre os povos a respeito da água. Assim, violará a
ética da deontologia inerente aos direitos fundamentais o desperdício de água em países
como o Brasil.
Neste aspecto, o senador Cabral (2001, p. 15), com propriedade, afirma:
248
249
O art. 25 da UDHR afirma que: “everyone has the right to a standard of living adequate for the health and
well-being of himself and of his family, including food, clothing, housing [...]”
Essa evolução, como ressalta Bobbio (1992, p. 5), mostra-se impulsionada pela luta em defesa de novos
direitos fundamentais em razão de novas circunstências fáticas vivenciadas pelo homem.
341
342
Como pode ter problemas um país que tem água? Como nós,
brasileiros, a estamos tratando? [...] É muito aflitivo comprovar que
a estamos tratando muito mal. A administração dos recursos hídricos
é um setor para o qual não podemos adiar ações concretas. [...] A
escassez, em algumas áreas do Brasil e do mundo, não nos permite
postergar medidas para estabelecer o uso racional dos recursos
disponíveis.
No mesmo sentido, Selborne (2002, p. 23) afirma que embora todos precisemos de
água, isso não nos dá o direito de acesso a toda a água que quisermos utilizar. É preciso que
a sociedade comece garantindo, em primeiro lugar, uma hierarquização que permita atender
“às necessidades essenciais da humanidade, assim como dos nossos ecossistemas”.
Barlow; Clark (2002, p. 4) revelam e criticam um complô das grandes corporações
que comercializam água, baseando-se na necessidade vital da água para todas as pessoas
(aquelas que podem pagar e as que não podem pagar pela água).
Nesse contexto, deve ser vista a existência de um direito fundamental à água,
direito correlato a um meio ambiente sadio, que reforça a racional gestão hídrica, que deve
transcender aos interesses de determinado indivíduo e determinada coletividade no tempo
(futuras gerações) e no espaço (os outros povos com carência de água têm direito ao recurso
existente de forma abundante em outro país).
2.2.2 Conferências internacionais anteriores à ECO92
A Conferência de Estocolmo foi a primeira a colocar o tema ambiental na agenda
política internacional, estabelecendo, em seus princípios, a necessidade de preservar e
controlar os recursos naturais – a água, a terra, o ar, a fauna e a flora – por meio da gestão e
do planejamento adequados.
A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Água e Meio Ambiente, ocorrida
em 1977, em Mar del Plata, além de abordar a necessidade do uso eficiente da água,
ressaltou o seu múltiplo aproveitamento, englobando os seus principais usos, como o
abastecimento público e a disposição dos efluentes líquidos, os usos para fins agrícolas e o
uso racional da irrigação, o uso industrial, a geração de energia e a navegação.
A Declaração de Dublin, ocorrida em janeiro de 1992, sobre recursos hídricos e
desenvolvimento sustentável, foi aprovada em evento preparatório à ECO-92.
A Declaração de Dublin reuniu mais de quinhentos participantes, incluindo
especialistas de mais de cem países e representantes de cerca de oitenta entidades
internacionais e organizações não governamentais.
A principal constatação dos especialistas presentes nesta declaração foi que:
Escassez e mau uso da água doce representam séria e crescente
ameaça ao desenvolvimento sustentável e à proteção do meio
ambiente. A saúde e bem-estar do homem, a garantia de alimentos,
o desenvolvimento industrial e o equilíbrio dos ecossistemas estarão
sob risco se a gestão da água e do solo não se tornar realidade, na
presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no
passado (GLOBAL DEVELOPMENT RESEARCH CENTER, 2002,
p. 02).
342
343
Neste encontro, foram estabelecidos os seguintes princípios mais importantes:
• A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a
conservação da vida e manutenção do desenvolvimento e do meio
ambiente.
• O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados em
participação dos usuários, dos planejadores e dos decisores políticos,
em todos os níveis.
• As mulheres devem assumir papel essencial na conservação e gestão da
água.
• A água tem valor econômico em todos seus usos competitivos e deve
ser promovida a sua conservação e proteção.
Assim, evidencia-se que o tema no âmbito internacional é extremamente rico, o que
demonstra a sua relevância.
Nesse aspecto, a ONU, em Assembléia Geral de 22 de fevereiro de 1993, adotou a
resolução A/RES/47/193, que declara o dia 22 de março como o Dia Mundial da Água, de
acordo com as recomendações do capítulo 18 da Agenda 21, firmada na Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro em 1992.
Como destaca Pio (2000, p. 228):
Todos os países, anualmente, são convidados a comemorar o Dia
Mundial da Água com o objetivo de concretizar atividades que
promovam a conscientização da população e discutam os problemas
relacionados com a conservação, o desenvolvimento e a proteção de
seus recursos hídricos, por meio de publicações, de difusão de
documentos, de conferências, seminários e exposições, induzindo a
ampliação da participação de instâncias governamentais, agências
internacionais, organizações não governamentais e o setor privado
(grifo nosso).
2.2.3 Agenda 21
A Agenda 21, documento que reflete um consenso mundial, foi formulada a partir
das premissas da resolução 44/228 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 22 de
dezembro de 1989, adotada quando as nações do mundo convocaram a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e quando se verificou a
necessidade de adotar uma abordagem equilibrada e integrada das questões relativas ao
meio ambiente e ao desenvolvimento.
A Declaração do Rio de Janeiro, fruto também da ECO92, aprovada na Conferência
das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, apresenta os
direitos e responsabilidades dos países, em matéria de meio ambiente e em matéria do trato
de seus recursos hídricos, traçando os princípios norteadores.
343
344
Destacando os preceitos gerais correlacionados à gestão dos recursos hídricos,
podemos enumerá-los abaixo:
• Princípio 3. O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a
permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de
desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras;
• Princípio 4. Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção
ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e
não pode ser considerada isoladamente deste.
• Princípio 10. A melhor maneira de tratar as questões ambientais é
assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos
interessados (AGENDA 21, 1997, 593-595).
Como princípios específicos de proteção da água doce, podemos, de forma
sucinta, selecionar os seguintes previstos na Agenda 21 (1997, cap. 18, p. 593-595):
• Os recursos de água doce são componentes essenciais da
hidrosfera terrestre e parte fundamental dos ecossistemas terrestres.
• O ambiente das águas doces é caracterizado pelo ciclo hidrológico,
seus eventos extremos como as cheias e as secas que, em algumas
regiões, estão se tornando mais acentuadas e dramáticas em suas
consequências.
• As mudanças climáticas globais e a poluição atmosférica podem
produzir impactos nos recursos de água doce e na sua
disponibilidade e, através da elevação do nível dos mares, ameaçar
as baixadas costeiras e os pequenos sistemas insulares.
• A água é necessária para quase todas as necessidades da vida.
• O objetivo geral é assegurar o suprimento adequado, de água de
boa qualidade, à toda a população deste planeta e, ao mesmo
tempo, preservar as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos
ecossistemas, compatibilizar as atividades humanas com a
capacidade limite da natureza e combater os vetores de
enfermidades de veiculação hídrica.
• Inovações tecnológicas, inclusive o melhoramento de tecnologias
autóctones, são necessárias para utilização integral dos limitados
recursos hídricos e para preservá-los da poluição.
• A disseminação da escassez hídrica, a gradual deterioração e o
agravamento da poluição dos recursos de água doce, em muitas
regiões, juntamente com a progressiva proliferação de atividades
incompatíveis com a disponibilidade de recursos hídricos, exigem
planejamento e gerenciamento integrado desses recursos. Essa
integração precisa considerar tanto as águas superficiais e
subterrâneas como aspectos de quantidade e qualidade.
• A natureza multi-setorial do desenvolvimento dos recursos
hídricos, no contexto do desenvolvimento sócioeconômico, precisa
ser considerada, assim como a utilização múltipla dos recursos
hídricos, para abastecimento de água e saneamento, agricultura,
indústria, desenvolvimento urbano, geração de energia hidrelétrica,
pesca interior, transporte fluvial, recreação, gestão de planícies e
outras atividades.
344
345
• A utilização racional da água, com esquemas de aproveitamento de
águas superficiais e subterrâneas e de outros recursos potenciais,
deve ser assegurada por medidas coerentes de conservação da água
e de diminuição de perdas.
• Deve haver acordo sobre prioridades para a prevenção de
inundações e para o controle de sedimentos, onde for necessário.
• A adequada utilização dos cursos de água internacionais reveste-se
de grande importância para os Estados ribeirinhos. A esse respeito,
pode ser desejável a cooperação entre esses Estados em
conformidade com acordos existentes ou outros mecanismos
pertinentes, tendo presente os interesses de todos os Estados
interessados.
2.2.4 Conferências internacionais posteriores à ECO92
A Declaração de San José da Costa Rica de 1996, relativa aos recursos hídricos,
surge a partir da Conferência sobre avaliação e gerenciamento estratégico dos recursos
hídricos na América Latina e Caribe, preparada pela Organização Meteorológica Mundial –
OMM e o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento – BID (1996), teve por objetivo o
desenvolvimento de um Plano de Ação, sob o contexto do desenvolvimento sustentável,
assegurando que o acesso irrestrito e integrado à água e o gerenciamento integrado dos
recursos hídricos refletem as necessidades socioeconômicas de um país e de seus
cidadãos, bem como a preservação do meio ambiente.
Nesse Plano, as agências nacionais de recursos hídricos terão papel fundamental e
deverão buscar a auto-suficiência. O Plano de Ação foi elaborado segundo as diretrizes do
Relatório sobre Acesso aos Recursos Hídricos da UNESCO, 1991, os princípios do
Capítulo 18 da Agenda 21 e de uma série de estudos sobre o gerenciamento dos recursos
hídricos elaborados por Organizações Regionais, a ONU, Agências e o BID, em
colaboração com os países envolvidos.
A Conferência reconheceu que o acesso aos Recursos Hídricos na América Latina e
Caribe deveria ser baseado numa forte determinação de se desenvolver auto-suficiência,
eficiência e eficácia, por meio das seguintes diretrizes:
• refletir as necessidades socioeconômicas e ambientais dos
países;
• servir aos interesses e necessidades dos usuários no âmbito
local e regional, com real respeito à conservação e
sustentabilidade dos usos dos recursos naturais e da
biodiversidade;
• adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento;
• maximizar o uso dos recursos financeiros e humanos;
• aprimorar a coleta de dados e dar suporte aos programas de
monitoramento para o desenvolvimento sustentável;
345
346
• aumentar esforços para fortalecer a participação da comunidade;
• dar especial atenção ao aumento da demanda dos recursos hidricos
e ao aumento da poluição das águas;
• dar suporte ao desafio de atender as necessidades de abastecimento
de água para uma população urbana crescente, com a necessidade
de
preservação
do
meio
ambiente
(BANCO
INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO, 1996, p. 01).
Já a Declaração de Paris, de 19 de março de 1998, oriunda da Conferência
Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, destacou que a água é tão
essencial para o desenvolvimento sustentável quanto para a vida.
Outra premissa básica, considerada no direcionamento dos trabalhos, foi a
corroboração de que a água é um bem com valores econômico, social e ambiental, que
estão inter-relacionados e se compensam mutuamente. A noção de desenvolvimento
sustentável existente na água, com suas diferentes dimensões, tomou forma consagrada.
Por outro lado, deu-se destaque à escassez da água, ao verificar-se que um quarto
da população mundial não tem acesso à água potável; mais da metade da humanidade
não conta com saneamento básico adequado. Além disso, a baixa qualidade de água e a falta
de condições de higiene estão entre as causas de mortes e doenças; bem como a escassez de
água, as enchentes e secas, a pobreza, a poluição, o tratamento inadequado de resíduos e a
falta de infra-estrutura impõem sérias ameaças ao desenvolvimento econômico e social, à
saúde pública, à segurança global de alimentos e ao meio ambiente.
De acordo com este cenário, foram estabelecidas as seguintes recomendações:
•
•
•
•
•
•
•
os recursos hídricos são essenciais não só para a satisfação
das necessidades básicas da população, para a saúde, a
energia, a produção de alimentos, a preservação dos
ecossistemas, como também para o desenvolvimento
econômico e social;
a proteção dos ecossistemas é essencial para a manutenção e
a recuperação do ciclo hidrológico, visando ao gerenciamento
dos recursos hídricos de uma forma sustentável;
a água é um recurso natural essencial para a estabilidade e
a prosperidade futuras, e deveria ser reconhecida como o
catalisador para a cooperação regional;
o desenvolvimento, o gerenciamento e a proteção dos recursos
hídricos e sua utilização mais eficiente, eqüitativa e de forma
auto-sustentável, dependem do aumento de conhecimento e
compreensão da realidade hidrológica;
a principal prioridade deve ser o fortalecimento das
instituições, em especial as locais, bem como a melhoria do
treinamento e a conscientização dos profissionais e usuários;
o desenvolvimento, o gerenciamento, o uso e a proteção da
água dependem de:
promoção de parcerias entre os setores público e privado,
associadas à grande mobilização e financiamentos de longo
prazo;
346
347
•
•
processo de decisão participativo, aberto a todos os usuários,
em especial às mulheres, à população de baixa renda e aos
grupos de minorias;
participação essencial das entidades não governamentais e
outros parceiros socioeconômicos; - a cooperação
internacional deve ter um papel importante para se atingir tais
metas, nos âmbitos nacional, regional e global
(INTERNATIONAL INSTITUTE FOR SUSTAINABLE
DEVELOPMENT, 1998, p. 1-2)
A última declaração hídrica foi a Declaração de Haia, em 22 de Março de 2000,
oriunda do II Fórum Mundial da Água, que enfocou a importância estratégica da água para
o século XXI.
Nesta declaração, estabeleceu-se, entre outras conclusões, que:
• A água é vital para a vida e para a saúde das pessoas e dos
ecossistemas (VISÃO ECOCÊNTRICA), além de ser uma exigência
básica para o desenvolvimento de países. Contudo, ao redor do mundo,
mulheres, homens e crianças não têm acesso a esse bem para satisfazer
suas necessidades mais básicas. Os recursos hídricos e os ecossistemas
relacionados que os provêem e os sustentam, estão sob ameaça de
poluição, de uso não sustentável, de manejo não adequado do solo, de
alterações climáticas e de muitas outras influências, devendo-se destacar
o vínculo entre estas ameaças e a pobreza.
• A enorme diversidade de necessidades e de situações ao redor do mundo
impõem uma exigência comum: a meta de se garantir água para o
Século XXI. Isto significa assegurar a proteção dos ecossistemas
litorâneos e de água doce, bem como os relacionados, em uma melhor
situação do que a atual; promover o desenvolvimento sustentável e a
estabilidade política; garantir o acesso à água, em quantidade suficiente
e custos adequados a todas as pessoas (DEMOCRATIZAÇÃO DO
USO DA ÁGUA – SOLIDARIEDADE DO USO) e para conduzir a
uma vida saudável e produtiva.
Para alcançar a meta de proteção estratégica da água, propõem-se:
• Consolidar as necessidades básicas reconhecendo que o acesso aos
mananciais de água, ao abastecimento suficiente e ao serviço de saúde
pública, são necessidades humanas básicas e essenciais à saúde e ao
bem-estar e garantindo aos cidadãos, especialmente às mulheres, participação no processo de gestão da água;
• Garantir provisão de alimentos aumentando a disponibilidade de
alimento, principalmente aos pobres e mais vulneráveis e a distribuição
mais eqüitativa de água para a produção de alimentos (CONSUMO
HUMANO);
• Proteger os ecossistemas assegurando sua integridade pela gestão
sustentável da água (entre outros, DESSEDENTAÇÃO DE
ANIMAIS);
• Compartilhar os recursos hídricos promovendo, sempre que possível,
uma cooperação ativa e desenvolvendo sinergias entre os diferentes
347
348
usos de água em todos os casos e nas limitações de recursos hídricos
transfronteiriços entre estados concernidos, bem como a gestão
sustentável de bacias de rios ou de outros métodos apropriados;
• Administrar riscos provendo segurança nos casos de inundações, secas,
poluição e outros perigos relacionados com os recursos hídricos;
• Valorizar a água, administrando os recursos hídricos de modo a
refletir seus valores econômicos, sociais, ambientais e culturais em
todos seus usos e adequando valores que reflitam o custo de seu
abastecimento
(COBRANÇA
PELO
USO
DA
ÁGUA
CORRELACIONADA AO CUSTO DE SUA UTILIZAÇÃO);
• Administrar a água com sabedoria, garantindo o envolvimento e o
interesse da população e de todos os "stakeholders" incluídos na
administração de recursos de água para assegurar um bom governo
(PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO DA ÁGUA DOS USUÁRIOS E
DAS AGÊNCIAS DE ÁGUA) (SECOND WORLD WATER FÓRUM.
2002).
O fator comum a todas estas declarações é a atribuição de valores econômicos,
éticos, sociais, ecológicos e culturais à água, que deve ser vista não só de forma direta, em
benefício do homem, mas, também, vinculada à proteção dos ecossistemas por meio de uma
gestão participativa, que não se esqueça da ponderação dos diversos valores que a água
representa.
Por outro lado, destaca-se a construção nos documentos internacionais de um
direito humano internacional ao uso da água (Declaração de Paris (1998) e Haia (2000) a ser
protegido pelo direito internacional, com reflexos nos direitos nacionais dos países.
348
349
3 A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS (LEI FEDERAL N.
9.433/97) E SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES
3.1 IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NA COMPREENSÃO DA COBRANÇA PELO
USO DA ÁGUA
Por ser um bem escasso, a cobrança pelo uso da água constitui, em termos
econômico-liberais, uma forma adequada de tratamento de sua oferta e procura. O conceito de
Economia surge exatamente quando se conjugam duas situações: as necessidades e a escassez
(recursos limitados, finitos) (NUSDEO, 2000, p. 28).
As profundas alterações ocorridas na sociedade, na economia e no meio ambiente, na
segunda metade do século XX, ensejaram modificações no Direito de Águas, em vários
países, com a conseqüente adoção de novos princípios diretores.
No Brasil, esse tema logrou densificação jurídica, inicialmente, com a edição do
Código de Águas (Decreto-lei 24.643, de 10/07/1934), com alto teor de princípios passíveis
de extração das suas regras.250
Pompeu (1999, p. 604), a esse respeito, assinala:
Graças à cultura, à inteligência e aos esforços de Alfredo Valladão,
autor do anteprojeto, o Código brasileiro é considerado mundialmente
como das mais completas entre as leis de águas já produzidas. Os
princípios nele constantes são invocados em diversos países como
modelos a serem seguidos, mesmo por legislações modernas. Veja-se,
por exemplo, que o “princípio-poluidor-pagador”, introduzido na
Europa como novidade na década de 70, está presente em seus arts.
111 e 112 (grifo nosso).
O Código de Águas, diploma legal formulado na terceira década do século XX,251
foi considerado um instrumento avançado para a época. Todavia, a evolução das atividades
humanas acarretou sua desconformidade à realidade, à medida que novas atividades
econômicas surgiram, ensejando a necessidade de criação de outros instrumentos de controle,
em função do aumento da demanda da água, de forma qualitativa e quantitativa.
A legislação sobre águas, no plano federal, até a edição da Lei Federal nº 9.433, de
8/01/1997, não fornecia os instrumentos necessários à administração dos recursos hídricos, no
que se refere à proteção e melhoria dos aspectos de qualidade e quantidade, em conformidade
com os princípios das declarações internacionais de água posteriores à Agenda 21.252
250
Assim, por exemplo, os seus oito primeiros artigos classificam as águas em públicas, comuns e particulares
estabelecendo mecanismos de proteção jurídica destas a partir de suas diferentes naturezas jurídicas.
251
“O Anteprojeto de Código de Águas, elaborado por Alfredo Valladão, revisto por Comissão Especial em 1917
e aprovado pela Câmara, sem emendas, em 1920, mas sem prosseguimento, seguindo a teoria francesa, previa
concessão administrativa, para a derivação de águas públicas e autorização administrativa para o
aproveitamento das águas particulares” (POMPEU, 1999, p. 604).
252
Do total de 205 artigos do Código de Águas cerca de trinta por cento (30%) referem-se ao aproveitamento do
potencial hidráulico. Tais artigos foram regulamentados e aplicados na íntegra, em função do total interesse
do governo em viabilizar a produção de energia a baixo custo para atender às demandas das novas industrias
349
350
Novas circunstâncias sociais e econômicas propiciaram a construção de uma nova
ordem jurídica para a água.253
A Lei Federal nº 9.433/97 incorpora à ordem jurídica novos conceitos, como: o de
bacia hidrográfica, considerada como unidade de planejamento e gestão; o da água como
bem econômico passível de ter a sua utilização cobrada; a gestão das águas delegada a
comitês e conselhos de recursos hídricos, com a participação, da União, dos Estados, dos
Municípios, de usuários de recursos hídricos e da sociedade civil.
Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 90) afirmam:
O Sistema criado se sobrepõe, mas não se opõe, à estrutura
administrativa existente. A Lei mantém as competências dos
organismos existentes e potencializa sua atuação. Cria somente os
organismos necessários à execução das novas atividades, as quais, por
terem base territorial diversa da divisão político-administrativa do
País, não poderiam ser exercidas pelos organismos existentes, que têm
base municipal, estadual ou federal. As Agências de Água têm como
área de atuação uma ou mais bacias hidrográficas e suas competências
primordiais são o planejamento dos recursos hídricos da bacia e a
cobrança pelo uso da água.
A Lei busca assegurar viabilidade ao Sistema: viabilidade financeira,
ao destinar os recursos arrecadados com a cobrança pelo uso da água
ao custeio dos organismos que integram o Sistema e à constituição dos
financiamentos das intervenções identificadas pelo processo de
planejamento; viabilidade administrativa, ao criar organismos de
apoio técnico, financeiro e administrativo aos colegiados do Sistema –
as Agências de Água e a Secretaria Executiva.
A parceria que se estabelece entre o Poder Público e a sociedade civil é original, em
se tratando da gestão de um bem de domínio público. A nova lei inscreve-se, desse modo, em
tendência mundial de reformulação do papel do Estado na gestão de bens e serviços
públicos.254
A Lei nº 9.433/97 propõe, como um dos fundamentos da política nacional de
recursos hídricos, que a água é um recurso natural limitado e dotado de valor econômico. Sua
origem encontra-se na Carta Européia da Água, de 1968, que mencionou o valor econômico
da água, embora não tenha abordado a cobrança. Além disso, o Conselho da OECD, de 1972,
definiu a necessidade de cobrar pelo uso da água, o que se repetiu na Declaração de Dublin,
de 1992, e na Declaração do Rio de Janeiro, também de 1992. Segundo Martín Mateo (1977,
p. 224), os aspectos prioritários da água na União Européia são:
253
254
que estavam sendo instaladas no País (foi criado o Conselho Nacional de Àguas e Energia Elétrica – CNAEE,
por meio do Decreto nº 1.284, de 1939). Com essa política, o governo privilegiou o setor energético, com
prioridade no uso dos recursos hídricos em relação aos demais usuários. Já a “Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de
1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de
Recursos Hídricos, resultou de um longo processo de avaliação das experiências de gestão de recursos
hídricos e de formulação de propostas para a melhoria dessa gestão em nosso País. É um marco histórico, de
grande significado e importância para os que aqui trabalham com recursos hídricos” (TUCCI; HESPANHOL;
CORDEIRO NETTO, 2001, p. 89).
“[...] em países como a China, com população de 1 bilhão e 200 milhões de habitantes, os lençóis freáticos
mostram sinais de exaustão [...] se discute, no Legislativo, a transposição das águas do Rio São Francisco, tal
é o seu valor para a Região Nordeste” (LEITE, P., 2000, p .6).
Nesse sentido vide a Resolução da ONU (A/RES/50/225 de 1 de Maio de 1996) que trata da Administração
Pública e do Desenvolvimento.
350
351
a) La definición de objetivos em cuanto a calidad del agua;
b) El vertido de sustancias peligrosas em el medio acuático;
c) La vigilancia y control de la calidad de las aguas;
d) Medidas específicas para las industrias;
e) Investigación y desarollo.
Jordaan et al. (1993, p. 31) destacam que uma das maiores dificuldades do uso dos
recursos hídricos com atendimento ao desenvolvimento sustentável refere-se a questões
financeiras. Um processo de utilização racional da água não pode prosperar sem recursos
adequados para a construção, planejamento e operação de sistemas hídricos de informação e
de utilização adequada dos recursos.
Saliente-se que a cobrança não é propriamente uma novidade no campo normativo
brasileiro. O Código de Águas já previu a possibilidade de remuneração pelo uso das águas
públicas.255
O Código Civil de 1916 também faculta a cobrança pela utilização do bem
público.256 O novo Código Civil de 2002 mantém a possibilidade da cobrança, inovando ao
referir-se ao termo mais amplo “entidade” e não às pessoas jurídicas de direito público
interno.257
Existem outros exemplos de bens públicos utilizados e pagos, como, por exemplo, o
pedágio, onde se paga para passar pela estrada, que é bem de uso comum. Todavia, para a
água até então nunca se havia implementado esse princípio.
A cobrança é o instrumento econômico adequado à promoção do equilíbrio entre as
forças que comandam a oferta e a demanda de água, o que, na verdade, não é novidade na
história das relações entre o meio ambiente e a economia, conforme já vimos na ampla
difusão dos instrumentos econômicos na proteção ambiental existente no mundo
contemporâneo.258
A cobrança, por outro lado, não pode ser vista isoladamente do corpo da norma e
dos princípios retores da água, previstos no ordenamento jurídico. Desse modo, por
razões metodológicas, como pressuposto para a análise da água, torna-se necessário o
detalhamento dos princípios escritos e corporificados no art. 1º da Lei 9.433/97, muitos
deles relacionados a aspectos já identificados no capítulo pertinente à importância da água
(A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã), no relativo ao direito
comparado (experiências jurídicas americana, francesa e alemã) e nas declarações
internacionais sobre a água (Declaração de Mar del Plata, Declaração de Dubin, Agenda 21,
Declaração de San José, Declaração de Paris, Declaração de Haia) .
255
“Art. 36 É permitido a todos usar de quaisquer águas públicas, conformando-se com os regulamentos
administrativos. [...] § 2º O uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído, conforme as leis e
regulamentos da circunscrição administrativa”. (Decreto n. 26.643, de 10 de Julho de 1934 – Código de
Águas).
256
“Art. 68. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito, ou retribuído, conforme as leis da União, dos
Estados, ou dos Municípios,a cuja administração pertencerem” (Lei 3.071, de 1 de janeiro de 1916 – Código
Civil Brasileiro).
257
“Art. 103. O uso dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela
entidade a cuja administração pertencerem”. (Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002).
258
Cf. Parte II deste trabalho – DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE.
351
352
3.2 A ÁGUA DOCE COMO BEM DE DOMÍNIO PÚBLICO FEDERATIVO: A ESFERA
PÚBLICA DA ÁGUA
A água no direito brasileiro, sempre se revestiu de uma preocupação híbrida de
esfera privada259 do direito de propriedade e de esfera pública,260 exemplificativamente, na
responsabilização penal dos reservatórios.261
Monteiro (1987, v. 3, p. 5) recorda que “a importância do seu estudo manifesta-se
tanto no campo do direito privado como no do direito público, razão por que se deparam com
normas que lhes são concernentes não só no direito civil, como no direito constitucional, no
direito administrativo e no direito penal”.
Expressão do caráter híbrido da legislação sobre águas no Brasil (privado e público),
antes do advento da Constituição Federal de 1988 e da Lei 9.433/97, pode ser encontrada na
classificação das águas prevista no Código de Águas (Decreto n. 24.643, de 10 de outubro de
1934).
Os Capítulos I – Águas Públicas (arts. 1º a 6º), Capítulos II – Águas Comuns (art. 7º)
e Capítulo III – Águas Particulares (art. 8º) do Código de Águas, bem demonstram a
dicotomia de tratamento das águas em públicas, (que podem ser de uso comum ou dominical),
e privadas (águas comuns, fígura do condomínio privado no âmbito da água).262
Freitas, V., (2000, p. 19), em abalizado pronunciamento, analisando apelação cível
constante da Revista dos Tribunais, v. 260, p. 539, ocorrida no Estado de São Paulo, destaca:
É possível dizer que durante décadas e mesmo sob a vigência do
Código de Águas de 1934, o enfoque dado ao tema era sempre mais
sob a ótica do direito privado do que do direito público [...] O
município de Tietê pediu autorização ao proprietário de um terreno
para passar canos de duas polegadas em seu terreno, a fim de
abastecer de água um bairro novo. Iniciados os trabalhos, o dono do
imóvel acionou o município com negatória de servidão, alegando não
ter concordado com a colocação dos canos. O juiz de Direito julgou a
259
260
261
262
Habermas (1984, p. 95) registra que as grandes codificações desenvolveram um sistema de normas para
assegurar uma esfera privada – livre intercâmbio das pessoas privadas entre si-, bem como para garantir a
instituição da propriedade privada e sua livre circulação, representada pela liberdade de contratação, de
empreendimento e de herança. Para Lafer (1991, p. 258-259), na pólis, o que era economia era da casa e dizia
respeito à vida privada do indivíduo. Não era público. Já no mundo moderno a distinção entre o social
(privado coletivo), ligado às necessidades da vida, e o político (público) foi-se tornando difusa com o
crescimento da oikia, ou seja, à medida que as atividade econômicas ultrapassaram a esfera privada da família
para se tornarem uma preocupação coletiva.
A noção de esfera pública em contraste com esfera privada, aqui assemelha-se à clássica dicotomia públicoprivado, na visão de Kelsen (1992, p. 203-204), que ao diferenciar o direito público do privado, menciona a
superioridade/inferioridade dos sujeitos na relação, verbis: “Qualquer pessoa privada é igual a qualquer outra
e é inferior apenas ao Estado [...]”
Arts. 270 (envenenamento de água potável) e 271 (corrupção ou poluição de água potável) do Código Penal
Brasileiro (Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940).
Nesse sentido, bem clara a definição de águas particulares no Código de Águas (Decreto n. 24.643 de 10 de
julho de 1934), obtida por exclusão das outras categorias: “Art. 8 São particulares as nascentes e todas as
águas situadas em terrenos que também o seja, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas
comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns”. Por outro lado, são comuns (condomínio privado),
“Art. 7 São comuns as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se façam”. Já com relação
às águas públicas havia a categoria de dominicais e de uso comum, sendo dominicais, aquelas que não fossem
de uso comum (“Art. 6 São públicas dominicais todas as águas situadas em terrenos que também o seja,
quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não forem comuns”).
352
353
ação procedente, ordenando que os canos fossem retirados. Todavia,
julgando recurso de apelação, o Tribunal reformou a sentença,
concedendo ao autor apenas o direito de ser ressarcido pelos prejuízos
causados pela obra e pela desvalorização do terreno. A leitura da
decisão colegiada mostra que na análise do caso havia verdadeiro
conflito entre princípios de Direito Público e Direito Privado (grifo
nosso).
Atualmente, na busca da resolução da “tragédia dos comuns”, envolvendo a água, a
solução adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro modifica esta configuração híbrida,
buscando uma apreciação uniforme, calcando-se na proteção da água (de toda ela)263 como
bem público, o que salienta o interesse comum na sua preservação, por se tratar de um recurso
natural limitado, representativo da integração do homem à Natureza.
Não existem, pois, mais águas particulares no País. Mesmo as nascentes que se
encontram nos limites de uma propriedade privada, definidas, então pelo Código de Äguas
como privadas, como os rios que servem de limites entre duas propriedades privadas,
definidas, então, pelo Código de Águas como comuns (condomínio privado), todas,
atualmente, são águas públicas.
Pelo disposto na Constituição Federal sobre o tema, as águas passaram a ser
consideradas bens dos Estados e da União, pela sua titularidade pública, são tratadas como
bens públicos, nos expressos termos do previsto no art. 26, inciso I (águas estaduais) e do art.
20, inciso III (águas federais) da Constituição Federal.264
Para Freitas, V., (2000, p. 22), as águas são estaduais ou federais, não havendo de
falar em águas municipais.
A concretização destes dispositivos constitucionais ocorreu por meio da Lei 9.433,
de 08/01/1997, que no seu art. 1º, expressamente, declara que a água é bem de domínio
263
264
“Utilizando a locução ‘a água é um bem de domínio público’, a Lei 9.433/97 abrange todo o tipo de água,
diante da generalidade empregada. Não especificando qual a água a ser considerada, a água de superfície e a
água subterrânea, a água fluente e a água emergente passaram a ser de domínio público” (MACHADO, P.,
2001, p. 107).
“Art. 20. São bens da União: [...] III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu
domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território
estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; [...] VIII – os potenciais
de energia hidráulica; [...] Art. 21 Compete à União: [...] XII – explorar, diretamente ou mediante
autorização, concessão ou permissão: [...] b) os serviços e instalações de energia elétrica e o
aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais
hidroenergéticos; [...] d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras
nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; [...] XIX – instituir sistema nacional de
gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso; [...] Art. 26.
Incluem-se entre os bens do Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em
depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União. [...] Art. 176. As jazidas,
em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade
distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao
concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o
aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante
autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis
brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições
específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas [...]§ 4º. Não
dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de
capacidade reduzida”.
353
354
público265, submetendo-se o seu uso a uma licença concedida pelo órgão administrativo
competente.
Nesse sentido, Silva, D., (1998, p. 83) afirma, expressamente, destacando a
inexistência de direitos adquiridos por tratar-se de norma constitucional:
[...] não mais subsiste o direito de propriedade relativamente aos
recursos hídricos. Os antigos proprietários de poços, lagos ou
qualquer corpo de água devem se adequar ao novo regramento
constitucional e legislativo passando à condição de meros detentores
dos direitos de uso dos recursos hídricos, assim mesmo, desde que
obtenham a necessária outorga prevista na lei citada (grifo nosso).
Pompeu (1994, p. 60), por outro lado, ao salientar a diferença entre o regime de
águas atual e anterior à Constituição Federal de 1988, afirma:
Ao ordenamento jurídico de cada país cabe definir a natureza jurídica
das águas nele existentes. No Brasil, a Constituição Federal, de 1988,
praticamente, publicizou todas as águas, ao reparti-las entre a União e
os Estados, sem deixar espaços para a inclusão das águas municipais,
das particulares e das comuns, como anteriormente existia.
No contexto da esfera pública do direito das águas, após a Constituição Federal de
1988, deve ser vista a criação, no âmbito federal, da Agência Nacional de Águas (ANA),
autarquia sob regime especial, pela Lei 9.984, de 17 de Julho de 2000, que tem, entre suas
incumbências, a concessão de outorgas na esfera federal e a organização do Sistema Nacional
de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Dispõe-se de leis estaduais sobre gerenciamento de recursos hídricos, com
fundamentos semelhantes à legislação nacional, em 17 Estados (Alagoas, Bahia, Ceará,
Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco,
Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e
Sergipe) e no Distrito Federal (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETO, 2001, p. 91).
No âmbito estadual, pode ser citada, desde 1992, a Companhia de Gestão de
Recursos Hídricos (COGERH) do Ceará, responsável pela administração e oferta de água no
Estado. A política estadual de recursos hídricos, prevista no artigo 326 da Constituição
Estadual, foi disciplinada pela Lei nº 11.996, de 24 de julho de 1992 (MACEDO, 2000, p.
31).
Da mesma forma, o Rio Grande do Sul, desde 1994, tem sua Lei das Águas (Lei
10.350, de 30/12/94). O sistema está integrado pelos: Conselho Estadual de Recursos
Hídricos; Departamento de Recursos Hídricos, subordinado à Secretaria de Planejamento
Territorial e Obras; Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas; e Agências de Bacias
Hidrográficas (BARTH, 1999, p. 578).
A dominialidade pública da água, afirmada na Lei 9.433/97, não permite ao poder
público federal e estadual alienar a água como se fosse seu dominus.
265
“Segundo a definição que nos dá a lei civil brasileira, bens públicos são todos os que fazem parte do domínio
da União, dos Estados Federados e dos Municípios, não importando o uso ou fins a que se destinem. Desse
modo, a qualidade de públicos atribuída aos bens, decorre precipuamente da condição de pertencerem às
pessoas de Direito Público, tal como é condição dos bens particulares pertencerem às pessoas de direito
privado” (SILVA, D., 1989, p. 316). O Novo Código Civil define os bens públicos como: “Art. 98 São
públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os
outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem” (Novo Código Civil, Lei 10.406, publicada
no Diário Oficial da União em 11 jan. 2002).
354
355
A titularidade do poder público na noção da água como bem público, como em
qualquer recurso natural, prende-se à função estatal de administrar (cuidar de algo que não
é seu, mas sim da coletividade).
Nesse aspecto, o art. 18 da Lei 9.433/97 para corroborar que a água não é bem
dominical público, afirma que: “A outorga não implica a alienação parcial das águas que
são inalienáveis, mas o simples direito de uso”.
Pompeu (1999, p. 608), do mesmo modo, assinala:
É de reconhecimento universal que as águas públicas de uso comum
são inalienáveis. Outorga-se apenas o direito ao uso, conforme
estabelece o Código [Código de Águas, art. 46: “A concessão não
importa nunca, a alienação parcial das águas públicas, que são
inalienáveis, mas no simples direito ao uso destas águas]. Essa
disposição foi mantida pela Lei 9.433/97 [art.18].
Assim, nos termos da Constituição Federal, cabe ao poder público somente outorgar
os direitos de uso da água, pois o poder público na água não é dominus no sentido estrito, mas
sim administrador de um bem comum a todos.
3.3 A ÁGUA DOCE COMO RECURSO NATURAL LIMITADO COM VALOR
ECONÔMICO INTRÍNSECO: A ESFERA PRIVADA DA ÁGUA
A noção de que a água constitui um recurso natural limitado possibilitou, conforme
já visto, a sua valoração econômica, em razão da sua escassez qualitativa, quantitativa,
espacial ou temporal.
Nesse aspecto, destacando a existência de uma hidroeconomia, Lanna (1999, p. 593)
enfatiza que os problemas de escassez devem ser geridos por meio do regime de propriedade e
da transação, instituto do direito privado:
[...] Um usuário de um recurso, na medida em que ele se torne
escasso, procurará geri-lo para seu próprio proveito. Caso seja
possível a negociação entre quem tem o recurso e quem não o tem,
mas demanda o seu uso, este último buscará adquirí-lo daquele. O
detentor da propriedade, mesmo não tendo necessidade de usar o
recurso, deverá geri-lo de forma a obter a maior renda com sua venda.
Isso ocorre com o solo, urbano ou rural, um carro, ou um animal com
utilidade para o homem, entre inúmeros outros exemplos. E, para que
isto ocorra, o atributo da propriedade privada deve ser aceitável pelas
instituições e fisicamente viável de ser implementado.
A nova legislação hídrica brasileira busca, por um lado, dar uma solução “privada”
para a escassez pelo estabelecimento de uma hidroeconomia, só que não de acordo com a
utilização absoluta das regras de mercado.
Esta solução de esfera privada concentra-se na faculdade de uso da água, pois o
domínio pleno, como já foi visto, é público.
Cumpre esclarecer que, hodiernamente, o que se vem pagando pela água corresponde
à prestação dos serviços de captação e tratamento. A captação e o tratamento tinham valor
econômico e eram agregados à água que não possuía valor nenhum (res nullius). Com a
355
356
implementação das leis federais e estaduais de valoração econômica da água, per si, haverá a
majoração dos valores das atuais contas de água com parcelas de natureza jurídica
remuneratória distintas.
Assim, a água, em si, terá um valor a ser agregado aos demais serviços acessórios de
captação e tratamento. A água tornar-se-á, pois, o bem principal e os serviços serão
acessórios.
O Estado do Ceará já cobra pelo bem natural em si, desde 1996 com a aprovação do
decreto que regulamenta o artigo 7º da Lei n. 11.996, de 24 de julho de 1992. A tarifa para o
uso industrial, dependendo da vazão consumida (metros cúbicos por mês), atinge o valor
máximo de R$ 0,60/m3 (MACEDO, 2000, p. 31).
No ano de 2002, o processo de cobrança pelo uso da água na Bacia do Paraíba do
Sul, bacia hidrográfica federal que percorre os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de
Janeiro, foi iniciado com a constituição do Comitê para a integração da Bacia Hidrográfica do
Rio Paraíba dos Sul – CEIVAP.266
A cobrança decorrente do valor econômico declarado à àgua vincula-se a uma
variação histórica do trato da matéria pelo poder público. Assim, o poder público brasileiro, a
exemplo dos modelos do direito comparado americano, alemão e francês, adotou diferentes
concepções e estratégias no tratamento da questão hídrica (de total descaso com a
superexploração dos recursos naturais e de desenvolvimento sustentável).
A explicação para estas variações no entendimento e no tratamento da questão
ambiental pelo Estado deve ser compreendida muito além de seu significado estritamente
ambiental: tem origem e reflete diretamente nos caminhos que o Estado assumiu perante
os processos produtivos e as transformações da organização social,267 de forma mais
ampla, portanto, do que se identifica em uma análise estritamente ecológica, conforme já
analisado na parte terceira desta tese.
Assim, conforme analisado anteriormente neste trabalho, ao fenômeno econômico o
Estado responde historicamente de diferentes modos.
Do mesmo modo, a legislação brasileira refletirá estas mudanças, por meio de
distintas normas e arranjos institucionais correspondentes, na busca de integração normativa
do econômico e do ético-ecológico nos recursos hídricos brasileiros.
Destacando esta variação legislativa do trato da questão ambiental, Goldenstein
(2000, p. 166) afirma que a legislação ambiental, que remonta à legislação colonial no Brasil,
apesar de seu cunho formalmente protetivo, foi de pouca eficácia social. O próprio Estado
Português, que reservava apenas aos magistrados o direito de autorizar o corte da madeira,
desrespeitava a sua própria norma com a exploração indiscriminada de madeira destinada à
reconstrução de Lisboa e a alimentação dos estaleiros portugueses.
266
A nova política de recursos hídricos, na bacia do rio Paraíba do Sul, é definida pela seguinte legislação:
Lei Federal nº 9.433/97, política nacional de recursos hídricos, Lei Estadual nº 7.663/91, política estadual de
recursos hídricos de São Paulo, Lei nº 3.239/99, política estadual de recursos hídricos do Rio de Janeiro, Lei
nº 13.199/99, política Estadual de recursos hídricos de Minas Gerais. O seu principal objetivo é assegura o
fornecimento de água de boa qualidade e em quantidade suficiente par os diversos usos, da atual e das futuras
gerações dos usuários de água dos Estados-membros São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. BRASIL.
Conselho nacional de recursos hídricos. Resolução n. 19, de 14 de março de 2002, que aprova o valor de
cobrança pelo uso dos recursos hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul. Disponível em:
<<http://www.cnrh-srh.gov.br/resoluções/index.htm>>. Consulta em: 11 jun. 2002.
267
Cf. parte II e III do presente trabalho.
356
357
Assim, conforme já analisado no estudo relativo aos instrumentos econômicos, o uso
de instrumentos de comando e direção (normas meramente regulativas sancionadoras –
puramente heterônomas) pelo Estado brasileiro, apesar de ter tido e continuar tendo ampla
utilização,268 não se tem mostrado eficaz na proteção ambiental. Assim, Goldenstein (2000, p.
168) afirma que:
A área ambiental deixa, paulatinamente, desde o final da década de
80, de centrar-se exclusivamente nos procedimentos meramente
reguladores ou normativos, em que o poder público dita à sociedade
regras de conduta. Segmentos da área ambiental apercebem-se de que
estas normas e critérios vêm sendo adotadas, ou não, em função de
processos econômicos e sociais que, na verdade, sempre escaparam à
compreensão e à ação tecnocrática dos agentes públicos envolvidos.
Há um esgotamento das políticas públicas setoriais e parciais que não buscam a
comunicação com as esferas social e econômica para resolução da complexa problemática
ambiental, conforme se evidencia pela análise já feita das obras de Luhmann e Habermas,
pertinentes à crise ambiental e à legitimação do capitalismo tardio, que não admite as soluções
simplistas dos modelos tradicionais de normas jurídicas puramente heterônomas que se
vinculam à tradicional soberania estatal (extremamente enfraquecida pelo fenômeno da
globalização, consoante análise realizada na terceira parte deste trabalho).
Aqui se verifica a busca de novos mecanismos que retratem a necessária integração
sistêmica entre os subsistemas sociais, relevantes para a crise ecológica, já analisados quando
se tratou da visão de Luhmann (1989) sobre a crise ecológica.
O desenvolvimento de conceitos e de procedimentos negociais passa a ser, pois,
instrumento privilegiado do planejamento ambiental. Há uma valorização da legitimação
pelo procedimento.269
A utilização dos instrumentos econômicos, que enseja a transferência de
responsabilidades para o cidadão, passa a ser a nova tônica da proteção ambiental e, neste
contexto, deve ser visualizada a valorização econômica da água por meio do critério
econômico da escassez, intimamente vinculado ao mecanismo de mercado da oferta e da
procura.
O valor econômico declarado à água pela legislação de recursos hídricos, apesar de
torná-la uma mercadoria, constitui-se, pois, em mecanismo de busca da eficiência protetiva do
meio ambiente, por meio do uso de instrumentos econômicos que favorecem a participação e
a negociação dos atores sociais e econômicos da água, sem que sejam desprezados os
aspectos éticos que ensejam uma atuação estatal regulativa.
268
269
A vigente Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, representa, mais uma tentativa de
utilização eficaz do modelo tradicional de comando e controle, ao dispor sobre as sanções penais e
administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, dentre outras providências).
“Para poder apresentar uma história própria do processo jurídico, o comportamento dos participantes dentro
dele tem de ser elegível e assim também atribuível. Os processos estão estruturalmente organizados de tal
forma que realmente não determinam a ação, mas trazem-na, contudo, para uma perspectiva funcional
determinada” (LUHMANN, 1980, p. 41). No Comitê de Bacia estrutura-se um processo que não determina a
priori qual será o uso da água e o valor de sua cobrança, mas no qual são estabelecidos caminhos para esta
comunicação entre diversos sistemas funcionais.
357
358
3.4 A GESTÃO CENTRADA NA MULTIPLICIDADE DE USOS DA ÁGUA E NA
PROTEÇÃO DE PRECEITOS ÉTICOS VINCULADOS À VIDA DOS ELEMENTOS
SENSITIVOS DA BIOCENOSE
Apesar do Estado atribuir relevante valor à participação social na escolha da
utilização da água pelo mercado, na conformidade das atividades negociais da oferta e da
procura, a legislação deve refletir os valores éticos de proteção ao homem e aos animais,
visando à integração da visão antropocêntrica e ecocêntrica, analisadas na primeira parte
desta tese.
Conforme preceitua o Capítulo 18 da Agenda 21, deve-se reconhecer o caráter
multis-setorial do desenvolvimento dos recursos hídricos, no contexto do desenvolvimento
socioeconômíco, bem como os interesses múltiplos na utilização desses recursos para o
abastecimento de água potável e saneamento, agricultura, indústria, desenvolvimento urbano,
geração de energia hidroelétrica, pesqueiros de águas interiores, transporte, recreação, manejo
de terras baixas e planícies e outras atividades. Os planos racionais de utilização da água para
o desenvolvimento de fontes de suprimento de água doce, subterrâneas ou de superfície e de
outras fontes potenciais, têm que contar com o apoio de medidas concomitantes de
conservação e minimização do desperdício (AGENDA 21, 1997, p. 331-332).
Assim, a Agenda 21 (1997, p. 333-347), a exemplo dos outros documentos
internacionais posteriores a ela, conforme já analisado no Capítulo II desta parte do trabalho,
ao tratar dos Recursos Hídricos e Desenvolvimento Sustentável, contém princípios
importantes, perfeitamente coerentes com o sistema jurídico constitucional e legal brasileiro, e
que constam como princípios básicos da Lei 9.433/97. Entre esses princípios, merecem
destaque pelos seus aspectos éticos e econômicos:
• o manejo integrado dos recursos hídricos, considerando a água
parte integrante do ecossistema, bem natural, econômico e
social cuja quantidade e qualidade determinam a natureza de seu
uso (18.8 ).
• a consideração no manejo dos recursos hídricos de aspectos
relacionados à terra e à água, a ser feita ao nível de bacia ou subbacia (18.9).
• a integração das medidas de proteção e conservaçâo de fontes
de água, com o planejamento do uso da terra, recursos florestais,
proteção de margens e encostas (18.12.b).
• a consideraçâo da água doce como um recurso indivisível,
exigindo que o manejo hídrico seja holístico e fundado em um
exame equilibrado das necessidades da população e do meio
ambiente (18.35 e 18.36)
• a disciplina da ocupação de áreas de captação e de recarga de
aqüíferos (18.40. a. v.).
• a aplicação do princípio usuário-pagador (18.40.b.i).
Devem-se conjugar, ao mesmo tempo, os valores antropocêntricos e ecocêntricos na
busca do múltiplo uso da água, que respeitem os homens e os animais.
358
359
Em uma situação catastrófica, a simples administração do recurso água, para que as
pessoas tenham o que beber, parece uma tarefa imensa – mesmo desconsiderando outros
aspectos relevantes, como o uso na agricultura e na indústria.
Sob este prisma, o fornecimento de água para outros fins, tais como a preservação do
ecossistema por meio da dessedentação de animais, pareceria ser algo de inferior prioridade.
Com efeito, a questão é mostrada, muitas vezes, como um conflito entre demandas
competitivas, como se estivéssemos diante de uma opção entre a água para a população e para
a vida selvagem, aqui amparada nos animais.
Entretanto, como bem indica Selborne (2002, p. 46), em uma ética antropocêntrica
mitigada, “isso não leva em conta os benefícios indiretos que os ecossistemas sadios
proporcionam à humanidade”.
Os documentos internacionais protetivos do meio ambiente e do desenvolvimento, tal
como o Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum) e a Agenda 21 da Conferência das
Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e o Meio Ambiente marcaram uma mudança
importante na forma como visualizamos a água, o homem e o meio ambiente.
Como bem coloca Selborne (2002, p. 46), “Um princípio fundamental que
emergiu dessa mudança foi o de que a vida das pessoas e o meio ambiente estão
profundamente interligados, e que os processos ecológicos mantêm o planeta capacitado a
sustentar a vida”.
Assim, nesse momento, no trato ético do uso da água, verifica-se a união das esferas
privadas e públicas pela expressa valorização do seu elemento vital para os elementos
sensitivos da biocenose (homens e animais), com a conseqüente limitação ponderada e
proporcional do privado em nome do público.
3.5 A GESTÃO DE ÁGUA DESCENTRALIZADA E PARTICIPATIVA NOS COMITÊS
DA BACIA HIDROGRÁFICA
Conforme assinalam Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 79-80), houve
enorme modificação na tradição legislativa brasileira com a administração da água centrada
na Bacia:
A administração dos problemas de recursos hídricos, levando-se em
conta os limites de uma bacia hidrográfica, não é uma tradição no
Brasil. Até os anos 70, as questões de recursos hídricos eram
sistematicamente consideradas a partir dos objetivos do sub-setor
usuário da água ou a partir de políticas específicas de combate aos
efeitos das secas e das inundações. A exceção foi a criação, no fim dos
anos 40, da Comissão do Vale do São Francisco, com uma proposta de
desenvolvimento integrado da bacia, que drena territorio de 6 Estados
e do atual Distrito Federal.
[...]A partir dos anos 70, no entanto, a ocorrência de sérios conflitos
de uso da água começou a suscitar discussões nos meios acadêmico e
técnico-profissional sobre como minimizar os problemas decorrentes.
Os conflitos envolviam não só setores usuários diferentes, como
359
360
também os interesses de unidades político-administrativas
distintas (Estados e Municípios). Nesse período, o poder se achava
muito concentrado na área federal, tendo partido, justamente, de
técnicos do Governo Federal a iniciativa de se criarem estruturas para
gestão dos recursos hídricos por bacia hidrográfica (grifo nosso).
Dispõe a Constituição Federal no “caput” do art. 225, integrante do Título da Ordem
Social:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia
qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o
dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras
gerações (grifo nosso).
Dentre os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988, no referido artigo
225 da C.F./88, destaca-se o princípio da participação (caput):
a) princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal (caput e parágrafo
primeiro);
b) princípio da prevenção e precaução (caput, § 1º, inciso IV, com a
exigência do EIA/RIMA);
c) princípio da informação e da notificação ambiental (caput e § 1º, VI);
d) princípio da educação ambiental (caput e § 1º, VI);
e) princípio da participação (caput);
f) princípio do poluidor pagador (§ 3º);
g) princípios da responsabilidade da pessoa física e jurídica (§ 3º);
h) princípio da soberania dos Estados para estabelecer sua política
ambiental e de desenvolvimento com cooperação internacional (§ 1º do
artigo 225 combinado com as normas constitucionais sobre distribuição
de competência legislativa); e
i) princípio do desenvolvimento sustentado: direito intergerações (caput)
(SILVA, J., 1994, p. 36; MACHADO, P., 1995, p. 34; ANTUNES, 1990,
p. 75; BENJAMIN, 1993b, p. 226; MARTÍN MATEO, 1991, p. 32).
Portanto, a imposição à coletividade do dever de defesa e preservação do meio
ambiente para as presentes e futuras gerações, em atuação comum com o Poder Público,
institucionaliza a participação popular como elemento integrante das políticas públicas
ambientais, em sua definição, gestão e fiscalização.
Assim, o disposto no art. 1º, inciso VI da Lei 9.433/97, constitui-se em uma regra
concretizadora do princípio da participação, aplicável na gestão descentralizada dos
recursos hídricos por meio do Comitê de Bacia.
A participação popular da sociedade civil é condição essencial para a plena
eficácia das normas de proteção ao meio ambiente e da gestão eficaz dos recursos hídricos
proposta na Lei 9.433/94.
Roberto Castro (1992, p. 67) traduz com precisão essa imprescindível relação do
direito com a sociedade: “Somente quando interligarem a lei e a sociedade num amálgama de
vontade política decididamente reorientadora do processo de desenvolvimento, poder-se-ão
360
361
atingir as metas ecológicas em benefício da humanidade e da geografia econômica do
Planeta”.
A Constituição não está indiferente a essa necessidade da sociedade alicerçada na
democracia. Assim, encontramos lúcida disposição da Constituição brasileira em inserir a
participação coletiva na gestão ambiental. Ressaltamos que não nos referimos a qualquer tipo
de participação, mas à participação nos processos legislativos e administrativos, bem como
na proteção judicial ambiental.
O artigo primeiro da Carta de 1988 consagra a cidadania como fundamento do
Estado Democrático de Direito, instituído pela Assembléia Nacional Constituinte, conforme
o preâmbulo ressalta, destinado a assegurar o bem-estar, o desenvolvimento e o exercício dos
direitos individuais e coletivos, entre outros.
No artigo 5o da Constituição Federal, podemos enumerar diversos meios
assecuratórios da participação nas decisões administrativas, tais como: o direito à
informação, como forma de assegurar a conseqüente manifestação do pensamento; o direito
de petição, que garante que o cidadão receba dos órgãos públicos informações necessárias
para defesa de seus direitos ou contra ilegalidade e abuso de poder; direito de certidão (visa
à obtenção de certidões para defesa de direitos ou esclarecimento de situações). Há, por fim, o
direito de receber, dos órgãos públicos, informações de interesse particular, coletivo ou
geral no prazo legal, salvo quando ocorrer necessidade de sigilo imprescindível à segurança
do Estado e da sociedade.
O constituinte não facultaria ao cidadão tamanho leque de acesso às
informações, se não fosse para que este pudesse participar e se expressar. O direito à
informação constitui base para o direito à participação, visto que, sem esta, jamais poderá o
indivíduo formar opinião e se manifestar, ou, até mesmo, propor a intervenção do Poder
Judiciário.
No âmbito dos recursos hídricos, o direito à informação, correlato ao da participação
na sua instrumentalização, corporifica-se no disposto no art. 5o da Lei 9.433/97, que prevê nos
seus incisos os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, devendo ser
destacado o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.270
Nesse aspecto, Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 49) afirmam:
As informações hidrometeorológicas e de qualidade da água são
indispensáveis para se promover um adequado aproveitamento dos
recursos hídricos em bases sustentáveis. A falta de informações
aumenta a incerteza nas decisões, acarretando resultados negativos
no uso e aproveitamento dos recursos hídricos. De um modo geral, o
custo associado à falta das informações é geralmente superior ao custo
da obtenção do dado e de sua análise final em um projeto (grifo
nosso).
O planejamento e gestão de recursos hídricos dependem fundamentalmente de
informações confiáveis, tanto no que diz respeito à demanda como à oferta de água. Esta
última só poderá ser adequadamente estimada se existirem redes de monitoramento que
gerem dados sobre variáveis de interesse no setor de quantidade e de qualidade das águas.
270
Nos termos do art. 25 da mesma Lei: “O Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos é um sistema de
coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores
intervenientes em sua gestão”.
361
362
Aqui interessa conhecer a variabilidade espacial e temporal das águas atmosféricas,
superficiais e subterrâneas.
Em âmbito mais abrangente, o dever de preservação e defesa dos recursos hídricos,
imposto à coletividade, revertido em direito de participação, traz como correlato o direito à
informação – qualitativamente satisfatória – sobre dados ambientais, mantidos não apenas
pelos órgãos ambientais estatais, como também pelos agentes econômicos envolvidos na
utilização de recursos naturais, uma vez que o ambiente constitui bem de uso comum do povo
e os recursos hídricos são de domínio público.
Conforme destacam Braga; Porto; Tucci (1999, p. 637), as informações básicas
necessárias a um adequado gerencimento dos recursos hídricos envolvem:
Características físicas dos sistemas hídricos: relevo, hidrografia,
geologia, solo, cobertura vegetal, ações antrópicas, obras hidráulicas,
entre outros;
Comportamento hidroclimatológico: séries históricas e em tempo real
de variáveis climáticas, fluviometria, sedimentometria e qualidade da
água.
Dados socioeconômicos como: dados censitários sobre população,
indústrias, produção e ocupação rural e, principalmente, dados
referentes ao uso e impacto dos recursos hídricos (grifo do autor).
Trata-se de dados técnicos que deverão ser interpretados e traduzidos para o Comitê
de Bacia por meio da Agência de Água.271
A participação popular engendra numerosas indagações, especialmente como
alternativa – não excludente – para a democracia representativa. Coloca em causa, também, a
distinção entre Estado e sociedade civil,272 distinção esta que, progressivamente, tem seu
sentido alterado – não apenas em virtude da relevância que toma a democracia participativa,
mas, principalmente, pelas crescentes atuações de substituição e compensação das disfunções
dos mecanismos de mercado.
A institucionalização da participação popular representa, ademais, medida
compensatória da crise de legitimação que sofre o Estado, além de, economicamente, reduzir
os custos da administração.
Como afirma Priscolli (2000, p. 4), o controle da água é o controle da vida e da
qualidade de vida, por ser um aspecto tão relevante da vida da comunidade deve esta
participar das decisões, pois “o processo de participação constrói-se na noção clássica da
teoria democrática: aqueles que são afetados por uma decisão devem sobre elas se manifestar
para que possam ser considerados cidadãos”.
Para a gestão de águas, exigem-se modelos distintos do tradicional modelo de
administração pública, fundado na decisão exclusiva do órgão governamental, não obstante
esta seja fundamentada e com ampla publicidade. Para a administração pública tradicional a
decisão pode ser tomada sem a participação popular.
271
272
Art. 41 da Lei 9.433/97: “As agências de água exercerão a função de secretaria executiva do respectivo ou
respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica”. A respeito da regulamentação e natureza jurídica das Agências
de Água, Barth (1999, p. 580) sugere que as Agências de Água ainda deverão ser objeto de lei específica e os
estudos preliminares indicam a natureza jurídica de fundação de direito privado, com gestão mista, entre
governo e representantes dos usuários das águas e de organizações civis de recursos hídricos.
Cf. BOBBIO, 1987, p. 33-52. Para detida análise das acepções do termo “sociedade civil”,.
362
363
O que se deseja na gestão das águas pela sua relevância é a participação dos
cidadãos no processo decisório, na busca de um consenso-participativo coletivo, oriundo
de informações fornecidas à população pelo Estado antes da decisão final. A decisão final
deverá ser tomada pela coletividade (PRISCOLLI, 2000, p. 3).
A defesa e a preservação dos recursos hídricos pela via participativa, compreende –
além das formas acima citadas, inseridas no campo da formulação e da execução de políticas
públicas – a atuação no processo legislativo, por meio da iniciativa popular na apresentação
de projetos de leis complementares ou ordinárias, em todos os níveis, por certo número de
cidadãos e, finalmente, pela participação do Poder Judiciário, obedecendo as vias processuais
previstas.273
Em suma, a inclusão da sociedade na gestão hídrica, por meio do Comitê de Bacia,
transcendendo os estritos limites da administração formal, possibilita a plena eficácia das
normas de proteção do meio ambiente. A cidadania participativa constitui-se em instrumento
de defesa dos recursos hídricos, que visa ultrapassar as fronteiras geográficas e políticas
institucionais.
273
Cf. MILARÉ, 1990. p. 30-33. Para aprofundamento das formas de participação popular por meio do Poder
Judiciário.
363
364
4 A COBRANÇA PELA UTILIZAÇÃO DA ÁGUA NA POLÍTICA
NACIONAL BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS
4.1 A COBRANÇA COMO MEDIDA DE VALORIZAÇÃO DO RECURSO HÍDRICO NA
ESFERA PÚBLICA E PRIVADA
A medida de valor de algum bem – seja na visão econômico-liberal, seja na visão de
bem jurídico como objeto de relações jurídicas – está localizada no interesse despertado por
este bem, para satisfação de necessidade específica ou na proteção de determinado valor,
conforme análise já realizada da obra de Hessen (1967, p. 42).274
Assim, existem vários titulares de interesses à gestão da utilização dos recursos
hídricos. O primeiro deles é o Estado Federal Brasileiro, na figura de seus componentes (a
União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios) que, na qualidade de
detentores do domínio público, são interessados na sua fiscalização, proteção e manutenção
em nome do bem da coletividade.
Há também o interesse difuso das gerações presentes e futuras na proteção dos
recursos naturais hídricos e o interesse dos outros seres da biocenose275. Neste âmbito,
destaca-se a esfera pública da água na busca da sua proteção ética.
O outro grupo de interesse consiste dos usuários da água como bem econômico: o
setor elétrico, a indústria, a irrigação e a navegação. Neste âmbito, ressalta-se a esfera
privada da água e a sua valoração econômica como fator de produção de bens e serviços.
Para a esfera privada, não constitui surpresa que a valoração econômica apareça
como mecanismo, por excelência, de resolução dos conflitos.
Conforme visto na segunda parte desta tese, muitos problemas ecológicos,
aparentemente, assemelham-se a problemas econômicos. A distribuição de recursos escassos,
a análise de custos e benefícios, de interesses múltiplos competitivos são problemas vividos
pelo recurso hídrico e pelos bens, em geral, econômicos e ecológicos.
O fato de o mercado medir a intensidade das preferências (“traduzidas” na vontade
de pagar-preço) permite uma comparação dos desejos individuais.
Entretanto, conforme analisado na parte III deste trabalho, o mercado (a valoração
econômica) não pode medir ou quantificar determinados valores e crenças.
Nesse momento, surgem as normas jurídicas e o papel do Estado de proteção de
valores e crenças não quantificáveis pelo mercado.
A Lei n. 9.433, de 08/01/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos
Hídricos, configura, pois, um marco que reflete uma profunda modificação valorativa no que
se refere aos usos múltiplos da água, às prioridades desses usos, ao seu valor ético e
econômico, à sua finitude e à participação popular na sua gestão.
274 Cf. Parte III deste trabalho O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO
(
:
MEIO AMBIENTE .
)
275 A biocenose é o conjunto equilibrado de animais e plantas que ocupam de maneira cíclica ou permanente um dado biótopo, e cujas populações não parecem modificar-se
rapidamente ( FRIEDEL, 1987, p. 109).
364
365
A Política Nacional de Recursos Hídricos rege-se pelos seguintes fundamentos: a
água é um bem de domínio público276 (inciso I); a água é um recurso natural limitado,
dotado de valor econômico (inciso II); em situações de escassez, o uso prioritário dos
recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais (inciso III); a gestão dos
recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas (inciso IV); a bacia
hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos
Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (inciso V); e
a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder
Público, dos usuários e das comunidades277 (inciso VI).
Tais preceitos basilares já foram analisados no Capítulo anterior, restando, agora, a
apreciação jurídica da cobrança pelo uso da água.
Assegurar à atual e às futuras gerações além dos seres vivos em geral a necessária
disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, a
utilização racional e integrada dos recursos hídricos, a prevenção e a defesa contra eventos
hidrológicos críticos são os objetivos a serem alcançados, portanto, por meio da Política
Nacional de Recursos Hídricos e da cobrança pelo uso da água doce.
Os instrumentos necessários à concretização desses objetivos e à gestão integrada
dos recursos hídricos são, de acordo com o art. 5° dessa Lei, os Planos de Recursos Hídricos
(inciso I); o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes
da água (inciso II); a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos (inciso III); a
cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso IV); a compensação a municípios (inciso V);
e o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (inciso VI).
A Lei n. 9.433/97 também criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, com o objetivo de coordenar a gestão integrada das águas (inciso I); arbitrar
administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos (inciso II);
implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos (inciso III); planejar, regular e
controlar o uso, a preservação e a recuperação dos recursos hídricos (inciso IV); e promover
a cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso V).278
Integram esse sistema o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Conselhos de
recursos hídricos dos Estados e do Distrito Federal, os comitês de bacia hidrográfica, os
órgãos dos poderes públicos federal, estaduais e municipais, cujas competências se
relacionem com a gestão de recursos hídricos e as agências de água.
Os conselhos nacional e estaduais e os comitês de bacia hidrográfica são
colegiados democráticos, constituídos por representantes dos governos e da sociedade
civil, representativos, como já visto, da participação da sociedade na proteção ambiental e dos
recursos hídricos, compreendendo segmentos dos usuários e entidades não-governamentais,
para a gestão dos recursos hídricos. Ou seja, todos os setores interessados decidem como
276
277
278
A respeito da noção de bem de domínio público, vide neste trabalho a PARTE II, referente à DIMENSÃO
ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE e a sua proteção jurídica como direito fundamental na análise do
“Macrobem Ambiental como bem de uso comum do povo”.
Interessante observar a ênfase dada aos consumidores dos recursos hídricos, que são tratados de uma forma
individualizada (“usuários”) e coletiva (“comunidades”).
Assinalando as dificuldades federativas e econômicas desta cobrança, Freitas (2000, p. 22) assinala: “É
evidente que o tema é polêmico e que acarreta sérias conseqüências econômicas. Imagine-se, a título de
exemplo, uma indústria que venha utilizando há anos as águas de um rio e que se veja obrigada, agora, a
pagar pelo uso. É óbvio que isso representará um custo maior e exigirá da empresa um realinhamento de suas
contas. Tal fato levou o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo a reivindicar, em
congresso realizado em 27 e 28/09/99, na capital paulista, a cobrança em todas unidades da Federação, sob
pena de elevarem-se os custos dos produtos dos Estados que fizerem a exigência”.
365
366
planejar e gerenciar de forma participativa o uso da água, compatibilizando os seus diversos
usos: abastecimento, produção de energia, uso industrial, irrigação, transporte, dentre outros.
As agências de água brasileira, a exemplo das francesas, vão funcionar como
secretarias executivas dos comitês de bacias hidrográficas e terão por atribuição, nos
termos do art. 44 da Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos:
Manter balanço atualizado da disponibilidade de recursos hídricos em
sua área de atuação (inciso I); manter o cadastro de usuários de
recursos hídricos (inciso II); efetuar, mediante delegação do
outorgante, a cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso III);
analisar e emitir pareceres sobre projetos e obras a serem financiados
com recursos gerados pela cobrança pelo uso de recursos hídricos e
encaminhá-los à instituição financeira responsável pela administração
desses recursos (inciso IV); acompanhar a administração financeira
dos recursos arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos
hídricos em sua área de atuação (inciso V); gerir o Sistema de
Informações sobre Recursos Hídricos em sua área de atuação (inciso
VI); celebrar convênios e contratar financiamentos e serviços para a
execução de suas competências (inciso VII); elaborar a sua proposta
orçamentária e submetê-la à apreciação do respectivo ou respectivos
comitês de bacia hidrográfica (inciso VIII); promover os estudos
necessários para a gestão dos recursos hídricos em sua área de atuação
(inciso IX); elaborar o Plano de Recursos Hídricos para apreciação do
respectivo comitê de bacia hidrográfica (inciso X); dentre outras
tarefas.
As agências de água são, pois, os braços estatais destinados a efetivar as decisões
oriundas do Comitê de Bacia, que declaram preceitos éticos e econômicos relacionados à
água.
Trata-se, na verdade, da gestão cotidiana dos recursos hídricos. Busca-se, pois,
assegurar a disponibilidade da água, tanto em termos de qualidade como de quantidade,
considerando-se as necessidades e os usos correntes desse recurso. O nível da demanda pelo
uso, a localização dos recursos e das necessidades, as práticas correntes de captação e de
dejeção, as obras e redes existentes, as instituições e os mecanismos de financiamento estão
incluídos no rol das variáveis mais importantes a serem consideradas.
A gestão dos recursos hídricos tem por objetivo satisfazer os diversos tipos de
demanda com o menor custo, limitar certos efeitos negativos ou excessivos e levar em conta
os interesses dos diversos atores sociais ou institucionais (União, Estados-membros,
Municípios, Distrito Federal, Sociedade) na medida de seu peso social ou de suas
possibilidades de ação.
Assim, a legislação analisada almeja vários níveis: a escolha dos usos e a melhor
forma de gerir cada um deles.
O regime de outorga de direitos de uso dos recursos hídricos, previsto nessa Lei
(seção III do capítulo IV), visa assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da
água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água.
A gestão deverá situar-se no, tempo, presente e futuro para a plena realização do
desenvolvimento sustentável em solidariedade que transcende o espaço e o tempo.
366
367
A gestão prospectiva dos recursos hídricos tem como variáveis de ação elementos do
domínio biofísico e de estilo de desenvolvimento territorial desejado (estruturas de consumo,
opções tecnológicas, localização e organização do espaço).
Nela, os intrumentos de mercado (instrumentos econômicos) devem, não só
considerar a demanda, mas, também, modificá-la. Aqui se busca, também, um aspecto éticointerventivo, não puramente liberal, de preceitos deontológicos vinculados a direitos
fundamentais.
Nessa gestão, verifica-se a integração dos elementos éticos, econômicos e sociais
estudados nas partes anteriores desse trabalho.
Há, ainda, a consideração de forma ampla da proteção ambiental e do
desenvolvimento nas políticas públicas. Evita-se, pois, o trato isolado da questão dos recursos
hídricos, em enfoque único e exclusivo, quer de substrato para o desenvolvimento, quer de
bem ambiental intocável.
A importância dos elementos do domínio biofísico e do estilo de desenvolvimento
territorial desejado pode ser analisada na gestão descentralizada, que leva em consideração o
modelo federativo brasileiro.
Exigem-se, por outro lado, nas mútuas relações dos entes federados, harmonia e
eficiência no trato das questões hídricas agrupadas nos comitês de bacia hidrográficas.
A gestão da bacia hidrográfica, embora centrada em aspectos hidrológicos, nunca se
tornará efetiva sem a preocupação de transposição para o Comitê de Bacia da questão
federativa, razão pela qual se exige uma abordagem holística de apreciação do natural e do
político-social.
4.2 NATUREZA JURÍDICA PRIVADA DA ÁGUA E SUA CLASSIFICAÇÃO COMO
BEM
4.2.1 Como podem ser caracterizados os recursos hídricos na classificação dos bens
prevista no novo código civil brasileiro?
No âmbito da classificação dos objetos da relação jurídica, utilizando como
paradigma a esfera privada do Código Civil, como podemos caracterizar a água?
Fixar a noção exata dos recursos hídricos, como objeto de relações jurídicas, assume
especial importância, porque rigor é fundamental em qualquer ciência.
Entretanto, não há, na doutrina nacional, trabalhos sistematizados sobre o tema que,
conforme já visto, admite uma esfera privada concorrente à pública na idéia de usufruto da
água.
Assim, os recursos hídricos precisam ser caracterizados como coisas ou bens para o
Direito, para que o operador saiba, efetivamente, aplicar corretamente as normas pertintes a
este diamante do século XXI.
367
368
A relação jurídica é uma vinculação entre duas ou mais pessoas, cujo objeto pode ser
uma coisa sobre a qual o titular pode praticar certos atos, devendo os terceiros absterem-se de
qualquer ingerência (direitos reais), ou ainda uma ação ou prestação do sujeito passivo da
relação jurídica (direitos obrigacionais) e, finalmente, os que recaem sobre a própria pessoa
do titular e que chamamos direitos de personalidade.
Ao estudar a relação jurídica, devemos examinar, em primeiro lugar, os seus sujeitos
- pessoas físicas ou jurídicas,279 para, em seguida, classificar os objetos sobre os quais recaem
os direitos e, desse modo, poder-se-ão analisar os atos e fatos que criam, modificam ou
extinguem direitos - os fatos e atos jurídicos previstos na Lei 9.433/97 pertinentes à cobrança
pelo uso da água.
A análise dos sujeitos principais (os proprietários da água) já foi parcialmente feita
na análise da titularidade pública da água, restando a análise dos papéis jurídicos do Comitê
de Bacia e de outros valores relevantes a ser feita quando do exame dos mecanismos
normativos de resolução dos conflitos da água.
O objeto da relação jurídica é um bem, em sentido amplo. É tudo o que satisfaz uma
necessidade humana. O bem jurídico seria, assim, todo interesse protegido pela lei, seja
material, como a água, ou imaterial, como a outorga de uso da água.
Bem280, portanto, é o objeto da relação jurídica, sendo bens em si a água e o seu
direito de outorga.
Em sentido amplo, o conjunto de bens, de qualquer ordem, pertencentes a um titular,
constitui o seu patrimônio. Para Beviláqua (1980, p. 167): “o conjunto das relações jurídicas
suscetíveis de avaliação pecuniária”.
O Novo Código Civil brasileiro (Lei 10. 406/2002), paradigma da análise dos objetos
em uma Teoria Geral do Direito, apresenta diferentes classificações dos bens, utilizando-se de
diferentes fatores de discriminação, o Código de águas (Decreto-lei 24.643, de 10/07/1934) e
a Lei 9.433/97, também.
Assim, faremos um paralelo entre as classificações legais dadas pelo Código com a
legislação hídrica, visando:
• facilitar a compreensão dos diferentes aspectos da água como objeto das
relações jurídicas;
• agrupar as várias espécies do gênero para aproximar as que apresentam
um elemento comum e afastar as que não apresentam elemento comum;
• permitir uma análise sistemática da água no ordenamento brasileiro,
comparando a sua esfera privada com a pública, para decompô-la na sua
essência valorativa;
• verificar a correlação entre a outorga (esfera pública) e a cobrança pela
água (esfera privada ou pública-híbrida);
279
280
Neste aspecto, na PRIMEIRA PARTE do trabalho, analisamos as dificuldades transponíveis de
personalização dos animais, das plantas e dos elementos abióticos em geral da Natureza, concluindo que o
tratamento jurídico dos mesmos ocorre como res no nosso ordenamento, nada impedindo uma evolução no
sentido de serem “personas” representadas.
Os termos “coisa” e “bem” eram usados no Código de 1916, de forma aparentemente indiferente, para
designar o objeto do direito. O que ensejou discussões doutrinárias sobre a diferença desses dois termos. O
Novo Código Civil, entretanto, buscando evitar esta discussão, utilizou-se sempre do termo “bem” na Parte
Geral como todo e qualquer valor corpóreo ou incorpóreo, que pode ser objeto de uma relação de direito.
368
369
• analisar pontos de conflito entre a esfera privada (Código Civil, Código
de Águas) e a esfera pública (Constituição Federal e Lei 9.433/97).
4.2.2 A água e a outorga de direitos de uso são um bem móvel ou imóvel?
Fundada na efetiva natureza dos bens, a classificação da mobilidade de um bem é
das mais importantes. Os seus principais efeitos práticos são: os bens móveis são adquiridos
por simples tradição, enquanto os imóveis dependem da escritura pública e registro no
Cartório de Registro de Imóveis; estes exigem, também, para serem alienados, a outorga
uxória, o que não acontece com os móveis; usucapião de bens imóveis exige prazos maiores
do que os de bens móveis; hipoteca, em regra, é direito real de garantia reservado aos imóveis,
enquanto o penhor é reservado aos móveis; só os imóveis são sujeitos à enfiteuse, enquanto os
móveis prestam-se ao contrato de mútuo; enquanto os imóveis estão sujeitos, em caso de
alienação, ao imposto de transmissão (ITIV e ITCD), a venda de móveis é geradora do
imposto de circulação de mercadorias e serviços (ICMS). Além disso, observa-se que só os
bens móveis podem ser objeto de furto e de roubo (“coisa alheia móvel”).
Beviláqua (1980, p. 174), partindo de uma abordagem fundada na própria natureza,
considera bens imóveis as coisas que não podem ser removidas de um lugar para o outro sem
destruição. Esse conceito não abrange, porém, os imóveis por determinação legal.
Essa concepção não abarca, em toda abrangência, outros bens voltados à
imobilidade, sob o aspecto jurídico. O Novo Código Civil pátrio (arts. 79 e 81) descreve os
bens imóveis, que podem ser, doutrinariamente, classificados como: imóveis por natureza, por
acessão física, industrial ou artificial; por acessão intelectual (ou por destinação do
proprietário) e por determinação legal:
a) Imóveis por natureza: O inciso I do art. 43 do antigo Código Civil
descrevia os bens imóveis por natureza: “O solo, com a sua superfície, os
seus acessórios e adjacências naturais, compreendo as árvores e frutos
pendentes, o espaço aéreo e o subsolo”. O atual cinge-se no art. 79, a
destacar o solo. A primeira observação que devemos fazer é que a
Constituição Federal (art. 176) considera propriedade distinta do solo,
para efeito de exploração ou aproveitamento, as jazidas, em lavra ou não,
e demais recursos minerais, e os potenciais de energia hidráulica. Do
mesmo modo, os recursos hídricos são considerados no art. 21, inciso
XIX, como passíveis de utilização privada no uso e na fruição e não nos
outros elementos caracterizadores da propriedade plena (“usar, fruir,
dispor e reaver”).
b) Imóveis por acessão física, industrial ou artificial281: São as coisas
incorporadas, em caráter permanente ao solo, tais como as construções e
plantações. Segundo o art. 43, II do antigo Código Civil. É “tudo quanto
o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada
à terra, os edifícios e construções, de modo que se não possa retirar sem
destruição, modificação, fratura ou dano”. Ficam afastadas as
281
Acessão significa justaposição ou aderência de uma coisa a outra. Acessão industrial ou artificial é a
produzida pelo trabalho do homem
369
370
construções provisórias, que se destinam à remoção ou retirada, como os
circos ou parques de diversões, as barracas de feiras, pavilhões, etc. Os
materiais de construção, “provisoriamente separados de um prédio, para
nele mesmo se reempregarem”, não perdem o caráter de imóveis (antigo
CC, art. 46). Pois o que se considera é a finalidade de separação, a
destinação dos materiais. Coerentemente, aduz o art. 49: “Os materiais
destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados,
conservam a sua qualidade de móveis. Readquirem essa qualidade os
provenientes da demolição de algum prédio”. Já o Novo Código Civil
afirma ser possível a incorporação natural (imóveis por natureza
incorporados sem a ação humana pelo contato com o solo) ou
artificialmente (imóveis por acessão física em que o homem atua). As
águas superfíciais naturais (os rios, os lagos etc) podem ser vistos
como bens imóveis por natureza por serem incorporadas ao solo bem imóvel primordial. Já as águas represadas pelo homem (barragens
que constroem grandes reservatórios) podem ser vistas como imóveis
por acessão física industrial ou artificial.
c) Imóveis por acessão intelectual (ou por destinação do proprietário): São
móveis por natureza, tornados imóveis pela vontade do proprietário,
mantendo-os intencionalmente empregados em sua exploração industrial,
aformoseamento, ou comodidade, como as máquinas (inclusive tratores)
e ferramentas, os objetos de decoração, os aparelhos de ar condicionado,
etc. (antigo CC, art. 43, III). Não aderem materialmente ao imóvel. Mas
são considerados imóveis, porque se leva em consideração a vontade do
dono, de mantê-los incorporados a um imóvel. O vínculo, entretanto, é
meramente subjetivo, podendo, em conseqüência, retornarem à categoria
de móveis, pela mesma vontade. Dispõe, com efeito, o art. 45 do velho
Código Civil que “Os bens, de que trata o art. 43, n. III, podem ser, em
qualquer tempo, mobilizados”. As águas colocadas em um carro pipa
para uso em uma determinada área municipal, as caixas d’água das
residências podem ser, então, consideradas imóveis por acessão
intelectual, sujeitando-se a modificação da imobilidade, quando houver
mudança da vontade ou das circunstâncias físicas, tal qual ocorre com a
modificação da destinação da água.
d) Imóveis por determinação legal. São (Novo CC, art. 80): os direitos
reais sobre imóveis (tal como a propriedade, o usufruto e a enfiteuse) e as
ações que os asseguram, dentre outros. Trata-se de bens incorpóreos,
imateriais (direitos), que não são, em si, móveis ou imóveis. O legislador,
no entanto, para maior segurança das relações jurídicas, os considera
imóveis. Nesse aspecto a outorga de direito de uso pelas características
do corpo de água, caso se trate de um corpo de água imóvel, também
adquire esta característica, devendo ser registrada e a sua transferência
de titularidade deve atender determinados requisitos especiais
estabelecidos por lei e por atos administrativos.
O novo e o antigo Código Civil consideram móveis (respectivamente no art. 82 e art.
47): “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia”.
Estão agrupados em duas classes:
370
371
a) bens móveis por natureza: Incluem-se, nessa categoria, todos os bens
corpóreos que admitem remoção sem dano, por força própria (como os
semoventes: animais) ou alheia (como os objetos inanimados, não
imobilizados por sua destinação, que podem ser deslocados como a água
contida em um caminhão pipa). O gás e a corrente elétrica são bens
móveis, assim como os navios. Estes últimos, no entanto, são
imobilizados somente para fins de hipoteca (antigo CC, art. 825; no novo
Código Civil não há artigo tratanto do tema).
b) bens móveis por determinação legal (novo CC, art. 83):
I - as
energias que tenham valor econômico; os direitos reais sobre objetos
móveis e as ações correspondentes; II - os direitos pessoais de caráter
patrimonial e as ações respectivas. São bens imateriais, que adquirem
essa qualidade jurídica por disposição legal. Interessante destacar que a
água contida em uma barragem hidroelétrica pode ser analisada como
bem imóvel por acessão física artificial, no entanto o potencial de
energia hidroelétrica282 nele contido será móvel por determinação legal.
Se por um lado a corrente de água apresenta-se com bem jurídico imóvel natural (na
definição constante do Código Civil de 1916 de rios como bens imóveis por natureza) ou por
acessão física (nas transposições feitas pelo homem). O ciclo hidrológico acrescenta, por
outro lado, que ao percorrer as suas fases, a água escoa pela superfície e pelos aqüíferos,
sendo nesse ângulo um recurso móvel, o que a distingue, por exemplo, dos recursos minerais.
4.2.3 A água e outorga de direitos de uso são bens fungíveis ou infungíveis?
Há certos bens que intervêm nas relações jurídicas não in espécie, isto é, como
individualmente determinados, mas in genere, apreciáveis por gênero, qualidade e quantidade.
A fungibilidade é típica dos móveis, e é nesse sentido que se tem a definição do Código Civil
pátrio (antigo no art. 50 e novo no art. 85).
Deste modo, a outorga de um determinado córrego, por ser este imóvel, não pode ser
substituída por outra de um outro córrego semelhante. A outorga vincula-se ao objeto
outorgado, não podendo fugir de sua natureza. Por ser o corpo d’água imóvel, do direito de
outorga, bem acessório, também, o será imóvel e infungível.
Assim, faz-se necessária a classificação dos bens em:
a) fungíveis: Bens fungíveis são aqueles que podem ser substituídos por
outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade, como o dinheiro.
b) infungíveis: Bens infungíveis, os que não têm essa qualidade, porque são
encarados de acordo com as suas qualidades individuais, em espécie (não
282
“O potencial hidrelétrico é produto das vazões e das quedas de água, e, como decorrência tem o mesmo
caráter aleatório das vazões, sendo essa a principal característíca de tal fonte de energia. A disponibilidade de
energia hidrelétrica é, portanto, associada a riscos. O aproveitamento da energia hidrelétrica é a principal
forma de uso não consuntivo de água. Merecem menção os seguintes aspectos: a construção de barragens de
regularização causa alterações no regime dos cursos água, perdas por evaporação da água dos reservatórios,
principalmente em regiões semi-áridas, e diversas alterações no meio físico” (Freitas (Coord.), 2001, p. 57).
371
372
em gênero), como o quadro de um pintor célebre, uma escultura famosa,
a água e os direitos dela decorrentes de uma água superficial ou
subterrânea por suas características particulares de vazão, qualidade
e quantidade etc.
Portanto, a outorga de direito de uso dada a um determinado córrego (bem imóvel)
não pode ser substituída por outra sem a participação da autoridade administrativa, por se
tratar de um bem infungível com informações individualizadoras previstas na sua
regulamentação.283
4.2.4 A água e a outorga de direitos de uso são bens consumíveis ou inconsumíveis?
Bens consumíveis (novo CC, art. 87; antigo CC, art. 52) são os móveis que se
extinguem pelo uso normal, seja porque esse uso importe a destruição imediata de sua
substância (naturalmente consumíveis), seja porque são destinados à alienação
(juridicamente consumíveis). Em síntese, a consumibilidade das coisas é uma qualidade que
lhes é própria (consumo natural) ou decorre de seu destino jurídico (alienação).
Nesse enunciado, presente no Código Civil, tem-se que consumíveis são aqueles
bens que são destruídos na sua substância pelo uso normal, enquanto os não-consumíveis são
aqueles cuja utilização não atinge sua integridade. Com efeito, prescreve o art. 51 do Código
Civil que são consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria
substância (de fato, como os gêneros alimentícios e a água bebida pelo homem e pelos
animais), sendo também considerados tais os destinados à alienação (a vazão de água
outorgada para consumo de determinado usuário).
Inconsumíveis, ao contrário, são os que admitem uso reiterado, não havendo
destruição de sua substância e não sendo destinado à alienação.
Pode a coisa consumível tornar-se inconsumível pela vontade das partes, como um
comestível ou uma garrafa de bebida rara, emprestados para uma exposição. Assim também,
uma coisa consumível, como os livros colocados à venda nas prateleiras de uma livraria, que
possuirão uma consuntibilidade jurídica.
Não devemos confundir com bem consumível, o bem suscetível de consumir-se ou
deteriorar-se depois de um lapso de tempo mais ou menos longo. Não se confundem a
consuntibilidade jurídica com a classificação econômica de bens duráveis e não-duráveis.
Fundamental esta classificação para o mecanismo de gestão das águas, pois há usos
consuntivos e não-consuntivos da água. Nesse sentido, a publicação oficial da ANA e da
ANEEL afirma:
Os setores usuários das águas são os mais diversos com aplicação para
inúmeros fins. A utilização pode ter caráter consuntivo ocorrendo
quando a água é captada pelo seu curso natural e somente parte dela
283
Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 20: “Do ato
administrativo da outorga, deverão constar, no mínimo, as seguintes informações: I – identificação do
outorgado; II – localização geográfica e hidrográfica, quantidade, e finalidade a que se destinem as águas; III
– prazo de vigência; IV – obrigação, nos termos da legislação, de recolher os valores da cobrança pelo uso
dos recursos hídricos, quando exigível, que será definida mediante regulamento específico; V – condição em
que a outorga poderá cessar seus efeitos legais, observada a legislação pertinente, e VI – situações ou
circunstâncias em que poderá ocorrer a suspensão em observância ao art. 15 da Lei n. 9.433, de 1997 e do
art. 24 desta Resolução”.
372
373
retorna ao curso normal do rio, ou não consuntivo, onde toda a água
captada retorna ao curso de água de origem.
Cada uso da água deve ter normas próprias, mas são necessárias
normas gerais que regulamentem as suas inter-relações e estabeleçam
prioridades e regras para a solução dos conflitos entre os usuários
(AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2001, p. 43).
Os principais usos consuntivos dos recursos hídricos são: abastecimento humano,
animal (dessedentação), industrial e irrigação, observando que a irrigação, tanto no Brasil
quanto no aspecto mundial, constitui a utilização consuntiva de maior volume de
água.284
Figura 3 – Distribuição de água por tipo de consumo consuntivo no Brasil
Na figura acima é apresentada a distribuição por tipo de uso consuntivo no Brasil,
devendo-se notar que o principal uso não consuntivo ocorre na utilização da água para
produção de hidroeletricidade (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO; 2001, p. 64).
4.2.5 A água e a outorga de direitos de uso são bens divisíveis ou indivisíveis?
O Novo Código Civil torna indivisível não só o bem que mantém a natureza do todo,
como fazia o antigo Código Civil, mas, também, aquele que se tornaria menos valioso,
desproporcionalmente, ou que causasse prejuízo ao uso a que se destina.285
Exemplificando, vamos supor que seja objeto de outorga uma pequena vazão de um
pequeno rio. Tal outorga não poderia ser desmembrada em outras com distintos usos
múltiplos de água, sob pena de que nenhum deles fosse suficiente para atender à real
necessidade dos usuários após a divisão da vazão total do rio.
284
“Today, agriculture accounts for about two-thirds of global water use. By enabling farmers to apply water
when and where needed, irrigation has turned many of the earth´s sunniest, warmest, and most fertile lands
into important crop-producing regions. Egypt could grow virtually no food without water drawn from the
Nile or from underground aquifers. California´s Central Valley and the Aral Sea basin – the fruit and
vegetable baskets of the United States and the former Soviet Union – could barely be cultivated without
supplemental water supplies” (POSTEL, 1993, p. 56, grifo nosso).
285
“Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância,
diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”.
373
374
Tratando-se da divisibilidade no novo Código Civil, deve-se observar que não se
confunde o critério jurídico de divisibilidade com o critério físico. Fisicamente, as coisas são
suscetíveis de divisão. Todo e qualquer corpo admite divisão. Mas, se dividirmos um relógio
em várias partes, ele deixa de ser um relógio.
Por isso que, ao direito, não interessa apenas a divisibilidade material, devendo ser
introduzido um dado específico: a manutenção, em cada uma das porções reais e distintas, das
qualidades essenciais do todo.
Nesse caso, compreende-se que a outorga de direito de uso poderá ser suspensa
parcial ou totalmente, dentre outras razões, pela necessidade de se atender a usos
prioritários, de interesse coletivo que não poderiam ser divididos com outros usos.286
4.2.6 A água e a outorga de direito de uso são bens singulares ou coletivos?
O diploma civil (novo CC, art. 89) declara que os bens singulares podem considerarse de per si (destaca-se a parte em relação ao todo), independentemente dos demais; já os
coletivos são analisados como universalidade (destaca-se o todo em relação a parte).
Esta classificação mostra-se, também, importante para o trato da água de rio ou de
córrego que pertencem a uma Bacia Hidrográfica.
O conceito de Bacia Hidrográfica, para fins jurídicos, pode ser construído em
analogia com o previsto no art. 90 do Novo Código Civil como uma universalidade de fato,
constituída por uma pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa gestora –
Comitê de Bacia – tenham destinação unitária.
Interessante observar que, em algumas oportunidades, a legislação de recursos
hídricos nacional (Lei 9.433/97) trata da água como um bem singular (sub-bacia) e, em
outras, encara o conjunto, a universalidade, na figura da bacia hidrográfica ou grupo de
bacias hidrográficas. 287
No trato da qualidade e quantidade do recurso hídrico como macrobem, ganha
especial relevância a visão da água e da outorga de direito de uso como bens coletivos.
A própria noção de ciclo hidrológico destaca o aspecto do todo em relação à parte.
Conceitualmente, o ciclo deve ser considerado unido com as normas jurídicas. Entretanto, tal
não é feito.
Há, por exemplo, uma clara distinção de diplomas legislativos para águas superficiais
e águas subterrâneas, os quais devem ser unificados com o conceito de bacia hidrográfica.
Tal distinção dificulta a gestão integrada das águas superficiais e subterrâneas, o que é
286
O art. 15 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos
poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas
seguintes circunstâncias: I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga;II ausência de uso por três anos consecutivos; III - necessidade premente de água para
atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas
adversas; IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental; V necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se
disponha de fontes alternativas; VI - necessidade de serem mantidas as características de
navegabilidade do corpo de água”.
287
O art. 37 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 37 Os Comitês de Bacia Hidrográfica terão como área de atuação: I –
a totalidade de uma bacia hidrográfica; II – sub-bacia hidrográfica de tributário do curso de água principal
da bacia, ou de tributário desse tributário; ou III – grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas”.
374
375
importante em regiões como o Distrito Federal na qual os aqüíferos subterrâneos muitas vezes
são exageradamente utilizados, sem que haja o rigor administrativo e legislativo existente para
com as águas superficiais.
No mesmo sentido, o homem ainda não dispõe de tecnologia para intervir
significativamente no regime das águas meteóricas, todavia, como destaca Barth (1996, p.
121), as chuvas artificiais do futuro poderão depender da disciplina integrada dada às águas na
superfície, no subsolo e nas nuvens.
4.2.7 A água e a outorga de direito de uso são bens principais ou acessórios?
Uma outra classificação dos bens a que se deve dar grande importância é a que se faz
em acessórios e principais, pois esta é uma classificação que se funda, não nas qualidades
físicas ou jurídicas da coisa, mas na relação recíproca em que elas se encontram. Uma coisa,
se considerada isoladamente, não é nem principal, nem acessória. Para que possa tomar uma
dessas designações, é preciso que ela se ache em relação com outra e que se possa, então,
perceber, nessa relação, um vínculo de dependência. A dependência de uma coisa a outra é,
portanto, a essência mesmo desta relação. Diz-se, então, que é principal a coisa que existe por
si própria, ou, para usar-se a expressão do Código Civil: a coisa que existe sobre si, e diz-se
que é acessória a coisa que, para existir, depende da principal.
As principais conseqüências da referida regra são:
a) a natureza do acessório é a mesma do principal (se o solo é imóvel, a
água a ele anexada também o é);
b) quem adquire o direito à outorga de água irá adquirí-lo com o expresso
direito de retirar uma parcela do rio para uso, extinto o curso d’água,
extinta estará a outorga;288
c) o proprietário do principal é proprietário do acessório. Entre as inúmeras
aplicações do aludido princípio podem ser mencionadas as constantes dos
arts. 1.209, 233, 287 do Novo Código Civil.
É muito grande a importância desta classificação, porque nela se funda a conhecida
regra de direito que assim se enuncia: “o acessório segue, em regra, o principal” (antigo CC,
art. 59). Para que tal não ocorra, é necessário que tenha sido convencionado o contrário
(venda de veículo, convencionando-se a retirada de alguns acessórios).
Assim, comparando um rio e o solo seu substrato, o solo é bem principal, porque
existe por si, concretamente, sem qualquer dependência. O rio é acessório, naturalmente,
porque sua existência supõe a do solo, onde se movimenta.
288
Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 24: “Art. 24. A
outorga de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa pela autoridade outorgante, parcial ou totalmente,
em definitivo ou por prazo determinado, sem qualquer direito de indenização ao usuário, nas seguintes
circunstâncias: [...] III – necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as
decorrentes de condições climáticas adversas; IV – necessidade de se previnir ou reverter grave degradação
ambiental; V – necessidade de se atender a usos prioritários de interesse coletivo para os quais não se
disponha de fontes alternativas [...]”
375
376
Juridicamente, entretanto, dependendo das circunstâncias, o rio e o solo podem ser
ambos principais, tal qual ocorre com a distinção de titularidade de propriedade entre um
e outro.
Esta regra é o enunciado do chamado princípio da gravitação jurídica, que faz com
que um bem atraia, para sua órbita, um outro que é o seu acessório, comunicando-lhe o seu
próprio regime jurídico.
No elenco dos bens acessórios, têm-se, entre outras classificações:
a) os frutos. Frutos são as utilidades que uma coisa periodicamente produz.
Nascem e renascem da coisa, sem acarretar-lhe a destruição no todo ou
em parte, como o café, os cereais, os frutos das árvores, o leite, as crias
dos animais, etc.A água conforme já visto não é um fruto por existir
em uma quantia fixa na atmosfera, variando segundo o ciclo
hidrológica o seu estado em líquido, gasoso ou sólido;
b) os produtos. Produtos que são as utilidades que se retiram da coisa,
diminuindo-lhes a quantidade – porque não se reproduzem
periodicamente, como as pedras e os metais, que se extraem das pedreiras
e das minas; e a água retirada por meio de outorga de uso do corpo de
água. Distinguem-se dos frutos porque a colheita destes não diminui o
valor nem a substância da fonte, e a daqueles, sim;
c) as pertenças. No elenco dos bens acessórios estão as pertenças, que se
destinam a conservar ou facilitar o uso das coisas principais, sem que se
tornem partes destas. A aplicação do princípio acessorium sequitur
principale não se faz com a intensidade das coisas acessórias, pois a
vontade das partes pode estipular destino diverso para a pertença em
relação à coisa principal. O Novo Código Civil prevê expressamente (art.
93) “São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se
destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao adorno de outro”.
Assim, Ruggiero (1936, v. 2, p. 287) exemplifica que pode ser pertença:
a moldura em relação ao quadro, a estátua colocada para ornamento da
entrada da residência. No âmbito dos recursos hídricos, as matas ciliares,
em relação aos cursos d’água, podem ser vistas como pertenças, no
aspecto da proteção do assoreamento do curso d’água.
Interessante, nesse sentido, fazendo um paralelo entre o Sistema Nacional do Meio
Ambiente – SISNAMA e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos –
SINGREH, no ordenamento jurídico brasileiro, destacar que o SISNAMA poderia ser visto
como principal em relação ao SINGEREH, mas a importância desta acessório (SINGEREH)
faz com que este possa ter um tratamento jurídico próprio e setorial, com regras específicas
para a sua proteção.
O SINGEREH pode ser visto, mutatis mutandi, como uma pertença na qual, em
determinados aspectos, a regulação jurídica que diz respeito ao bem principal (SISNAMA)
não se torna automaticamente aplicável a pertença (SINGEREH). As características
específicas e o valor próprio significativo do SINGEREH tornam adequado um tratamento
específico, embora correlacionado ao SISNAMA.289
289
Nesse sentido, para o paralelo realizado poder-se-ia colacionar o “Art. 94. Os negócios jurídicos que dizem
respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de
vontade, ou das circunstâncias do caso” (Novo Código Civil, Lei 10.406, publicada no Diário Oficial da
União em 11 de janeiro de 2002).
376
377
4.2.8 A água e a outorga de direito de uso são bens públicos federais, estaduais, distritais
ou municipais?
O Código Civil classifica os bens em públicos ou privados, em função da titularidade
do domínio pertencer ou não pertencer ao Poder Público.
Para o nosso estudo, não basta, entretanto, a noção de que a água é bem público por
força da Constituição, torna-se necessária a análise da Bacia ser federal, estadual, distrital ou
municipal.
São três os tipos de domínios das águas no Brasil: águas federais, estaduais e
distritais. Não se considera que o Município seja dominus da água, não obstante possa ter
interesses sobre o curso de água que percorre o seu território.
São bens da União (águas federais) os lagos, rios e quaisquer correntes em terrenos
de seu domínio ou que banhem mais de um Estado da federação, sirvam de limite com outros
Países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham.
Incluem-se, também, como corpos hídricos de domínio da União, as águas em
reservatórios construídos pela União, como, por exemplo: reservatórios da Companhia de
Desenvolvimento do Vale do São Francisco - CODEVASF, do Departamento Nacional de
Obras Contra as Secas - DNOCS, do extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento
– DNOS, Companhia Hidrelétrica do São Francisco - CHESF, etc.
São bens do Estado as águas não-federais superficiais ou subterrâneas, fluentes,
emergentes ou em depósito encontradas em seu território.
A responsabilidade pela concessão e gestão da outorga, desse modo, depende do tipo
de domínio da água.
4.3 NATUREZA JURÍDICA DA OUTORGA
4.3.1 A natureza jurídica da outorga pelo uso da água e o fato de a água ser “bem de uso
comum”
Conforme já visto, as águas doces são de domínio público de uso comum e,
conseqüentemente, o que se outorga não é a sua propriedade, mas o seu direito de uso.
Di Pietro (1983, p. 10-11) elenca as características básicas do uso comum,
sintetizadas de acordo com a sua relação à outorga da água:
• aberto a todos ou a uma coletividade de pessoas;290
290
A respeito da amplitude de todos, interessante observar, no caso da água doce, a expressa menção à
377
378
• é, em geral, gratuito, mas pode ser remunerado, sem que isso
desnature o uso comum;291
• está sujeito ao poder de polícia292 do Estado;
• o uso comum permite a utilização do bem como uma faculdade da
liberdade humana293 e não um direito subjetivo adquirido do
Estado (grifo nosso).
De regra, a utilização de bens de uso comum pode ser gratuita ou pode ser
remunerada, como no caso do pedágio em estradas e na cobrança pelo uso da água, ora em
análise.
Conforme Pietro (1983, p. 10), o “uso privativo é o que se exerce, com
exclusividade, por pessoas determinadas, mediante título jurídico conferido individualmente
pela Administração”.
Com o uso privativo de bem público, dado pela outorga, transpõem-se o que era
aberto a todos para um indivíduo específico. A própria noção de exclusividade, apresentada
no conceito de Pietro, destaca a modificação da ênfase da esfera pública (do bem de uso
comum) para a esfera privada (do bem outorgado) mediante a outorga.
Assim, a exclusividade é característica da propriedade privada294 e da outorga295.
A propriedade perfaz uma categoria de direitos subjetivos, orientados pelo domínio,
porém se tornam direitos obrigacionais em sua eficácia real, para terem oponibilidade frente
aos demais indivíduos (obrigação passiva universal).
A outorga individualiza e restringe o acesso de outros ao bem público,
constituindo-se em espécie do gênero o uso privativo de bem público. Pode ser definida,
então, como ato administrativo mediante o qual o Poder Público outorgante (União, Estados
ou Distrito Federal) faculta ao outorgado o uso de recurso hídrico, por prazo determinado, nos
termos e nas condições expressas no respectivo ato. O referido ato é publicado no Diário
Oficial da União (caso da ANA), ou nos Diários Oficiais dos Estados e Distrito Federal, onde
dessedentação dos animais.
Na Lei 9.433/97, independem de outorga e conseqüentemente de cobrança o uso de recursos hídricos para a
satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural e as derivações,
captações e lançamentos, assim como acumulações de volumes de água considerados insignificantes (art. 12,
par. 3). O Código de Águas, do mesmo modo, assegura no art. 34, o uso gratuito de qualquer corrente ou
nascente de água, para as primeiras necessidades da vida, se houvesse caminho público que a tornasse
acessível, garantido o direito de passagem, desde que não causasse dano aos proprietários.
292
“Na doutrina, o conjunto de tais prerrogativas e ônus vem recebendo a denominação de polícia dos bens
públicos ou polícia do domínio público. O termo polícia aqui deve ser entendido com o seu sentido de
fiscalização, vigilância, adoção de medidas fortes para preservar tais bens [...] À Administração competem as
medidas de preservação do bem em si, de sua integridade física, impedindo que se deteriore; é a chamada
‘polícia’de manutenção, que se traduz em providências relativas à limpeza, restauração etc” (MEDAUAR,
2002, p. 300-301).
293
Aqui destaca-se a noção de res communi omnium, pois o bem de uso comum não tem como titular o próprio
Estado, mas sim a população em geral.
294
“A propriedade em direito CLÁSSICO e JUSTINIANEU, no qual se baseia a nossa concepção moderna, é o
direito PRIVADO mais AMPLO que alguém pode ter sobre uma coisa; o pleno domínio jurídico privado
que, podendo ser limitado de várias formas, não está previamente limitado. Contrapõem-se-lhe, por um lado,
a posse como mero domínio de facto e, por outro, os direitos reais limitados (servidões, usufruto, penhor,
etc.)” (KASER, 1999, p. 137).
295
Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 20: “Do ato
administrativo da outorga, deverão constar, no mínimo, as seguintes informações: I – identificação do
outorgado; II – localização geográfica e hidrográfica, quantidade, e finalidade a que se destinem as
águas; III – prazo de vigência [...]”
291
378
379
o outorgado é identificado e estão estabelecidas as características técnicas e as condicionantes
legais do uso das águas que o mesmo está autorizado a fazer.
Kelman (2000, p. 95), nesse sentido, afirma:
A outorga garante ao usuário o direito de uso da água. Cabe ao poder
outorgante (Governo federal, estados ou Distrito Federal) examinar
cada pedido de outorga para verificar se existe água suficiente,
considerando-se os aspectos quantitativos e qualitativos, para que o
pedido possa ser atendido. Uma vez concedida, a outorga de direito de
uso da água protege o usuário contra o uso predador de outros
usuários que não possuam outorga. Em situações de escassez, seja
para captação seja para diluição de efluentes, os não-outorgados
deverão ser reprimidos para garantir a utilização da água e
conseqüentemente os investimentos daqueles que seguiram o
procedimento legal.
Meadauar (2002, p. 302-303) indica os contornos do uso privativo de bem público:
• compatibilidade com o interesse público – o uso privativo pelo
particular não pode contrariar o interesse público, pois se assim
fosse não poderia ocorrer [...];
• consentimento da Administração – o uso privativo do bem por
particular depende de consentimento da Administração, que é o
título legal para esse uso. Há figuras jurídicas que veiculam esse
consentimento e a legislação a respeito há que ser cumprida pela
Administração e particulares [...];
• observância das condições fixadas pela Administração;
• pagamento de preço – o uso privativo de bem público admite a
cobrança de preço por parte da Administração a que se vincula o
bem havendo também uso gratuito;
• precariedade – é a regra para o uso privativo; por motivo de
atendimento ao interesse público, a Administração pode cessar
unilateralmente o uso privativo, mesmo dotado de prazo
determinado, mesmo formalizado mediante contrato [...] (grifo
nosso).
A compatibilidade com o interesse público para os recursos hídricos pode ser
expressa pela necessidade da outorga adequar-se ao Plano de Bacia que restringe os tipos de
uso a serem dados à água em função da qualidade almejada desta. As outorgas estão
condicionadas às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos, ao
respeito à classe em que o corpo de água estiver enquadrado e à manutenção de condições
adequadas ao transporte aqüaviário, quando for o caso, devendo, também, preservar o uso
múltiplo dos recursos hídricos.296
O consentimento da Administração estará explicitado no documento de outorga
dado pelo Poder Executivo competente (Federal ou Estadual). No caso da outorga para
296
O art. 13 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 13. Toda outorga estará condicionada às
prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e deverá respeitar a
classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de condições adequadas
ao transporte aquaviário, quando for o caso.Parágrafo único. A outorga de uso dos recursos
hídricos deverá preservar o uso múltiplo destes”.
379
380
aproveitamento hidrelétrico da água, esta é de atribuição da ANEEL – Agência Nacional de
Energia Elétrica.297
Estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos que o Poder Executivo Federal
pode delegar aos Estados e ao Distrito Federal competência para conceder outorga de direito
de uso de recurso hídrico de domínio da União.298
A observância das condições fixadas pela Administração, juntamente com a
precariedade, consubstancia a possibilidade de suspensão total ou parcial da outorga.299
O pagamento de preço estará fundado no uso privado de um bem público comum,
tornado exclusivo pelo ato de outorga, que enseja uma contra-prestação pecuniária ao Poder
Público, para compensação da sua utilização excludente dos outros membros da coletividade.
4.3.2 Deficiências normativas na especificação dos instrumentos de outorga e na outorga
de lançamento de resíduos
297
“Essa Agência, que incorporou atribuições do extinto DNAEE – Departamento Nacional
de Águas e Energia Elétrica, foi instituída pela Lei n. 9.427 de 26 de dezembro de 1996.
Cabe à ANEEL disciplinar, de forma geral, o regime das concessões de serviços públicos
de energia elétrica. No que se refere à questão do aproveitamento da água para geração de
energia, a ANEEL tem responsabilidades na definição do aproveitamento ótimo energético
dos cursos d’água, levando em conta os outros usos, na outorga de concessão para o
aproveitamento de potenciais hidráulicos, nos estudos de viabilidade, anteprojetos e
projetos de aproveitamento dos potenciais hidráulicos e em atividade de hidrologia”
(TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 82-83). Neste caso, há uma
perigosa quebra da unidade de planejamento dos recursos hídricos de uma Bacia com
a setorização do poder público pelo tipo de uso da água e não pela Bacia em que se situa, o
que acarreta uma não unificação do trato das águas em uma Bacia, centralizando em uma
autarquia federal, algo que deveria ser competência do Comitê de Bacia. Foi mantido neste
caso a idéia do preceito contido no Código de Águas, que prevê no art. 62 que: “As
concessões ou autorizações para derivação que não se destine a produção de energia hidroelétrica serão outorgadas pela União pelos Estados ou pelos municípios, conforme o seu
domínio sobre as águas a que se referir ou conforme os serviços públicos a que se destine a
mesma derivação, de acordo com os dispositivos deste Código e as leis especiais sobre os
mesmo serviços”.
298
O art. 14 da Lei 9.433/97 estabelece: “Art. 14. A outorga efetivar-se-á por ato da
autoridade competente do Poder Executivo Federal, dos Estados ou do Distrito Federal. §
1º O Poder Executivo Federal poderá delegar aos Estados e ao Distrito Federal
competência para conceder outorga de direito de uso de recurso hídrico de domínio da
União”.
299
O art. 15 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos
poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas
seguintes circunstâncias: I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga; II ausência de uso por três anos consecutivos; III - necessidade premente de água para
atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas
adversas; IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental; V necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se
disponha de fontes alternativas; VI - necessidade de serem mantidas as características de
navegabilidade do corpo de água”.
380
381
Conforme lembra Granziera (2001, p. 180), o termo “outorga” é utilizado na
legislação específica sobre telecomunicações, Lei n. 9.472, de 16/07/1997, em que se
menciona a necessidade de outorga prévia, pela Agência Nacional de Telecomunicações
(ANATEL), para a exploração de serviços, por meio de concessão, permissão ou autorização,
obedecendo-se a um plano geral de outorgas.
A legislação de telecomunicações, de forma clara e direta, determinou qual o
instrumento a ser utilizado para a outorga do direito de uso das radiofreqüências necessárias,
como concessão de uso: “Art. 83. A exploração do serviço no regime público dependerá de
prévia outorga, pela Agência, mediante concessão, implicando esta o direito de uso das
radiofreqüências necessárias, conforme regulamentação”.
Comparando-se a legislação de telecomunicações e a legislação de águas, verifica-se
que esta foi omissa no estabelecimento do instrumento a ser adotado para a outorga do uso de
água.
A autorização, a permissão e a concessão de uso representam os meios clássicos
pelos quais é consentido que os particulares utilizem privativamente bens públicos.
Assim, indaga-se se a outorga é o instrumento pelo qual o poder público atribui ao interessado
o direito de utilizar privativamente o recurso, em qual das espécies clássicas se enquadra a
outorga de uso da água? Será uma nova espécie de instrumento de utilização privativa de bem
público?
O Código de Águas, também, estabeleceu o tipo de instrumento de outorga para a
hipótese de derivação ao dispor que:
Art. 43. As águas públicas não podem ser derivadas para as aplicações
da agricultura, da indústria e da higiene, sem a existência de
concessão administrativa, no caso de utilidade pública e, não se
verificando esta, de autorização administrativa, que será dispensada,
todavia, na hipótese de derivações insignificantes.
Buscando resolver esta omissão legislativa perniciosa, Granziera (2001, p. 194)
posiciona-se no sentido de que continuaria em vigor o Código de Águas: “A Lei 9.433/97 não
alterou o regime de outorgas, fixado nos arts. 43 ss, do Código de Águas, mas apenas o
menciona. Os instrumentos de outorga, estabelecidos no Código de Águas, são a concessão e
a autorização (grifo nosso).”
Data venia, discorda-se desse posicionamento, uma vez que:
• o Código de Águas foi revogado tacitamente pela Política Nacional
de Recursos Hídricos ao regular toda a matéria dos recursos hídricos
nacionais;
• a própria Constituição federal já o havia derrogado parcialmente ao
instituir o regime público de águas, retirando a validade dos
dispositivos pertinentes a águas privadas e comuns;
• o art. 43 do Código de Águas referido pela ilustre autora só menciona a
hipótese de derivação esquecendo-se das outras previsões normativas já
constantes da Lei 9.433/97, a saber: captação, extração de água em
aqüífero, lançamento de efluente em corpo d’água aproveitamento
hidroelétrico.
381
382
Há, pois, uma omissão legislativa flagrante no que se refere ao instrumento da
outorga de recursos hídricos em geral, só havendo previsão legislativa expressa para a
outorga relativa à utilização de potenciais hidroelétricos.300
Assim, a falta de norma específica para a análise do instrumento de outorga do
uso da água nos recursos hídricos gera grande insegurança jurídica na efetividade da referida
outorga e da cobrança pelo uso da água. É imprescindível a determinação legislativa
específica do instrumento de outorga, para que a relação entre o outorgante e o outorgado
possa ser definida de forma precisa, com a atribuição consensual e indiscutível dos direitos e
deveres de cada um deles, como foi feito para a outorga hídrica de uso hidroelétrico.
Enquanto tal preceito normativo não for concretizado de forma específica, fazse necessário observar a legislação federal genérica sobre o tema, a saber a Lei 8.987/95,301
bem como a atividade normativa da Agência Nacional de Águas sobre o tema.302
A discussão do instrumento a ser utilizado para a outorga do uso de água não se
refere a um aspecto meramente conceitual ou acadêmico. O instrumento de outorga pelo
uso da água possui importantes implicações práticas, como destaca Medauar (2002, p. 303304), ao dispor sobre os instrumentos mais freqüentes de utilização privativa de bens
públicos no Brasil e suas diferenças são:
• autorização de uso – é o ato administrativo discricionário e
precário, pelo qual a Administração consente que um particular
utilize privativamente um bem público. Pode incidir sobre qualquer
tipo de bem. De regra, o prazo de uso é curto; poucas e simples são
suas normas disciplinadoras; independe de autorização legislativa e
licitação; pode ser revogada a qualquer tempo. Ex: uso de área
municipal para instalação de circo, para formar canteiro de obra
pública.
300
A Lei 9.074 de 7 de Julho de 1995 e o Decreto n. 2003, de 10 de setembro de 1996
fundamentam, dentre outros objetivos, a outorga de recursos hídricos no âmbito da
hidroeletricidade, que são analisados e fiscalizados pela Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL (criada pela Lei 9.427/96) e estabelece que o instrumento de outorga
para a hidroeletricidade será a concessão de uso ou a autorização de uso em função da
quantidade de Kwh (>1000Kwh – concessão de uso) e ao uso exclusivo ou não da energia
elétrica (art. 5º(concessão) e art. 7º (autorização) da Lei 9.074, que estabelece normas
para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras
providências).
301
A Lei 8.987/95 e a Lei 9.075/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, apresenta
instrumentos genéricos para duas formas de outorga clássicas a permissão e a concessão da
prestação de serviços públicos, sendo norma geral passível de aplicação na falta de norma
especial sobre a prestação do serviço público: uso pela água doce.
302
O art. 4 da Lei 9.984/2000, que institui a Agência Nacional de Águas prevê
expressamente o poder normativo desta agência: “Art. 4o A atuação da ANA obedecerá
aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos
Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas
integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe:
[...] II – disciplinar, em caráter normativo, a implementação, a operacionalização, o
controle e a avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos;”
382
383
• permissão de uso – é o ato administrativo discricionário e precário
pelo qual se atribui ao particular o uso privativo de bem público.
Em geral, a permissão se aplica a usos privativos não conformes à
real destinação do bem, mas compatíveis, por exemplo: bancas de
jornais em ruas, mesas e cadeiras em frente a restaurantes e bares.
Qualquer tipo de bem público poderá ser objeto de permissão de
uso; independe de autorização legislativa; quanto à licitação,
embora de regra não se exija, melhor parece efetuar o certame se o
caso comportar disputa entre interessados, propiciando-se, desse
modo, igualdade de oportunidade e evitando-se favoritismos[...];
• concessão de uso – é o contrato administrativo pelo qual a
Administração consente que particular utilize privativamente bem
público. Qualquer tipo de bem público pode ser objeto de
concessão de uso. Em geral, a concessão se efetua para uso
conforme a própria destinação do bem, ou seja, é inerente a esse
tipo de bem o uso privativo, no todo ou em parte, de particular,
como é o caso de boxes em mercados municipais, dependências de
aeroportos, de portos, de estações rodoviárias, cantinas de escolas.
Depende de autorização legislativa [...] Sendo contrato, deve ser
precedido de licitação, na modalidade de concorrência [...] (grifo
nosso).
Pelo vulto dos recursos exigidos para determinadas formas de captação, pela
estabilidade do uso de água em determinada atividade e por ser res communis omnium,
conclui-se que, a exemplo do que ocorre com o uso hidroelétrico, a concessão de uso, em
muitas hipóteses, deve ser o instrumento por excelência da utilização pelo uso da água.
Outro aspecto que necessita de maior detalhamento normativo refere-se à outorga de
lançamento de esgotos e resíduos nos corpos d’água, estabelecida pela Lei 9.433/97. Faz-se
mister normas com maiores detalhes a respeito da forma de sua gestão, não obstante o
modelo adotado de forma principiológica indique que deve ser gerido conjuntamente
com as outras outorgas.303
Com relação à gestão desta outorga peculiar, Barth (1999, p. 585) afirma que há
duas posições a respeito: a primeira, que a delega para as entidades de recursos hídricos
assim como as outras outorgas em geral, uma vez que ela se insere em uma metodologia que
deve ser unificada, envolvendo planos de recursos hídricos (onde estaria contido o
enquadramento), aprovados pelos Comitês de Bacias, e programas de investimentos
associados às metas de enquadramento e à cobrança pelo uso dos recursos hídricos.
A segunda posição, destoante da sistemática unificada, imprescindível para o
modelo adotado pelo Comitê de Bacias (nos termos do art. 1 da Lei 9.433/97 – “a bacia
hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de
Recursos Hídricos”), colocaria esta outorga de lançamento de efluentes como mais uma
303
O art. 12 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os
direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: [...] III - lançamento em corpo de água de
esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição,
transporte ou disposição final;”. Assim, na legislação de recursos hídricos esta espécie de
outorga aparece sempre junto com as outras, não tendo sentido seu tratamento
diversificado, sob pena de comprometimento do princípio basilar da gestão ser
descentralizada na Bacia.
383
384
exceção (ao lado do uso da água para a hidroeletricidade) à regra do controle pelo
Comitê de Bacias, associando a outorga de lançamentos de resíduos a entidades de
licenciamento ambiental.
4.4 NATUREZA JURÍDICA DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA
4.4.1 A cobrança pelo uso da água como um instrumento econômico
A cobrança insere-se na Política Nacional de Recursos Hídricos e em outros
diplomas legislativos estaduais, configurando um instrumento econômico, destinado à
realização dessa política.
Assim, o aspecto que se destaca na sua natureza jurídica é o de um instrumento
econômico (de uma forma de internação de um custo que até então não era incorporado ao
procedimento de utilização da água).
A cobrança pelo uso da água fundamenta-se nos princípios do "poluidorpagador" (lançamento de efluentes) e "usuário-pagador" (captação e derivação de
água), já analisados anteriormente.304
O princípio "poluidor-pagador" constitui princípio econômico introduzido nos
ordenamentos jurídicos de vários países. Economicamente, entretanto, exprime a vontade de
neutralizar o custo social provocado pela externalidade – poluição. 305
Com a análise da legislação306 e com os argumentos já apresentados, de forma
didática, atribuem-se três finalidades básicas à cobrança da água:
• a primeira de cunho ético-econômico, é a de reconhecer o seu valor,
rompendo a visão de que esta espécie de bem ambiental é res nullius, ou
na visão liberal-econômica não possui valor apreciável por ser abundante
e não ter trabalho humano;
304
De acordo com o princípio "poluidor-pagador", se todos têm direito a um ambiente sadio,
deve o poluidor pagar pelo dano que provocou. Havendo um custo social proveniente de
uma determinada atividade, esse deve ser internalizado ou assumido pelo empreendedor.
Ou seja, se uma indústria exerce determinada atividade e com isso causa poluição ou
degradação de um rio, o custo da despoluição deveria ser assumido por essa indústria.
Segundo o princípio "usuário-pagador", paga-se pela utilização da água, em detrimento
dos demais. Na verdade, o poluidor não deixa de ser um usuário, que se utiliza desse
recurso para diluir e transportar efluentes. Interessante observar que a Lei sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) prevê os dois princípios no art. 4o , inciso VII.
305
Dada uma situação de poluição, a solução para o restabelecimento do equilíbrio de mercado seria a
internalização, por parte do agente poluidor, das externalidades por ele provocadas.
“Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I – reconhecer a água como bem econômico e
dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água; III – obter
recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de
recursos hídricos” (Art. 19 da Lei 9.433/97).
306
384
385
• a segunda com ênfase de gestão jurídico-protetiva é incentivar a
racionalização, a busca de realização do desenvolvimento sustentável;
• a terceira de expressão econômico-financeira, é a de arrecadar recursos
financeiros para o financiamento de todos os programas (de comando
e controle e de instrumentos econômicos) que estiverem contidos no
plano, quer dizer, um instrumento de financiamento da recuperação
ambiental dos recursos hídricos.
Adaptam-se, portanto, às características de instrumento econômico na conceituação
da Organização Comercial do Desenvolvimento Econômico – OCDE.307
Demonstram, ainda, a confluência do ambiental e do econômico na busca de uma
utilização adequada e racional, para a concretização do crescimento econômico e da proteção
ambiental.
Atendem, por fim, aos quatro objetivos de proteção ambiental estabelecidos pelo
secretário-geral da ONU em seu relatório do milênio (incremento da informação pública,
colocação de temas ambientais de forma integrada nas políticas públicas, criação pelo
Estado de mecanismos reguladores de mercado incentivadores da proteção ambiental e
criação de um sistema de avaliação ambiental), constituindo-se em marco na utilização de
instrumentos econômicos na política ambiental brasileira (ANNAN, 2000, p. 29-30) .
4.4.2 A natureza jurídica da cobrança pelo uso da água: preço público
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um dos instrumentos de gestão que, ao
lado da outorga e de outros, atua como um dos mais eficazes indutores do uso racional desse
recurso.
Conforme destaca Garrido (2000, p. 1):
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um dos instrumentos de
gestão mais eficientes para induzir o usuário da água a uma utilização
racional desse recurso. A sua importância reside no fato de atuar sobre
as decisões de consumo do agente econômico que tem, na água bruta,
um dos insumos, às vezes matéria-prima, para sua produção.
Assim, caracterizada a cobrança da água como instrumento econômico, devemos
analisá-la perante as espécies de receitas estatais, previstas no ordenamento jurídico brasileiro,
para verificar seus contornos jurídicos correspondentes.
O produto da cobrança pelo uso da água constitui-se, sob o aspecto jurídicofinanceiro, em receita pública vinculada.
Ao tratar da vinculação dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água, Kelman
(2000, p. 103) destaca a finalidade de sustentabilidade na utilização dos recursos hídricos
obtida com os recursos financeiros da cobrança.
A legislação hídrica nacional vinculou tais recursos à sua aplicação prioritária na
bacia hidrográfica em que foram gerados, com o escopo de permitir a obtenção de recursos
307
Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente
poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade
ambiental (OECD,1989, p. 12-14).
385
386
financeiros para o financiamento das inúmeras atividades protetivas a serem exercidas pelo
Comitê de Bacia.308
A cobrança da água não se subsume, na previsão do Código Tributário Nacional,
como prestação pecuniária compulsória. Logo, não possui natureza tributária.309
Conforme já visto, a água e a sua cobrança possuem uma marcante esfera privada no
nosso ordenamento e no ordenamento estrangeiro americano, alemão e francês, vinculando-se
a sua utilização por ato voluntário do usuário por determinado curso de água.
Logo, a cobrança pelo uso da água não possui caráter tributário, o que descarta a
sua natureza de taxa310, como espécie tributária que tem como fato gerador o exercício
regular do Poder de Polícia, ou a utilização efetiva ou potencial, de serviço público
específico e divisível, prestado ao contribuinte ou colocado a sua disposição.
Por se tratar de um bem público e não de um serviço prestado pelo poder público,
titular do domínio deste bem, a cobrança pelo uso da água só é cobrada pela sua utilização
efetiva, não sendo cobrada pela utilização potencial como ocorre com a taxa.
Na espécie, trata-se de uma oneração estatal por meio de tarifa pública ou preço de
serviço público, por não ter a lei estabelecido um caráter compulsório, o que a
caracterizaria como tributo da espécie taxa.
Importante assinalar que a natureza jurídica da cobrança não é de um tributo da
espécie taxa, mas de preço público, nos exatos termos da distinção feita pela Súmula 545
do Supremo Tribunal Federal, verbis: “Preços de serviços públicos e taxas não se
confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança
condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”.
Conforme ensina Machado, H., (1985, p. 221):
A distinção entre taxa e preço público reside na natureza do serviço
que lhe serve de suporte para a instituição e cobrança. E a natureza
do serviço, do ponto de vista jurídico, depende do regime jurídico de
sua prestação, vale dizer, define-se como serviço público aquele que
é imposto ao cidadão.
Observa-se que a cobrança pelo uso da água vincula-se e tem como pré-requisito a
outorga de direitos de uso de recursos hídricos, nos exatos termos da legislação hídrica.311
Assim, a cobrança pelo uso da água será descartada pela falta de seu pré-requisito, a
outorga, quando o uso de recursos hídricos for para a satisfação das necessidades de pequenos
núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; as derivações, captações e lançamentos
forem considerados insignificantes assim como as acumulações de volumes de água.312
308
Nesse sentido, o caput do art. 22 da Lei 9. 433/97 dispõe que: “Os valores arrecadados com a cobrança pelo
uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão
utilizados.
309
“O que caracteriza a remuneração de um serviço público como taxa ou como preço público é a
compulsoriedade, para a taxa, e a facultatividade, para o preço, conforme já decidiu o STF (Súmula 545)”
(MACHADO, H., 1992, p. 337). A par desses critérios, adverte Pires (1989, p. 93) que “a doutrina jurídica
ainda está a buscar a verdadeira distinção entre taxa e preço público [...] Resta-nos tão somente dizer, até a
instituição de uma ou de outra, prevalece uma decisão de natureza política que nos leve à opção entre duas
alternativas. Uma vez criada a obrigação, fácil é distinguir uma da outra pelas suas características.
310
Art. 145, inciso II da CF e art. 79 do CTN.
311
O art. 20 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos
termos do art. 12 desta Lei”.
312
Art. 12, § 1º da Lei 9.433/97 dispõe: “Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em
regulamento: I – o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos
populacionais, distribuídos no meio rural; II – as derivações, captações e lançamentos considerados
386
387
Sustenta-se que o que se cobra em razão do uso da água é preço; também porque se
cuida de disponibilidade patrimonial do Poder Público em relação aos particulares e, sendo o
fato gerador o uso do bem público, cabe cobrar o preço àqueles que se utilizam efetivamente
da água - bem de domínio público.
Entende-se que a natureza do produto da cobrança é de preço público, pois se trata de
exploração de bem de domínio público. Sua natureza não é compulsória em decorrência da
lei, mas negocial, cabendo ao detentor da gestão (Comitê de Bacia) estabelecer o
respectivo valor.
Kelman (2000, p. 103-104), sobre a cobrança e a aplicação do princípio da
subsidiariedade pela Política Nacional de Recursos Hídricos, sugere que a cobrança pelo uso
da água seja feita pela própria Agência de Bacia para bem caracterizar que o seu pagamento
se destina a aplicação na própria Bacia.
Em verdade, o montante pago destina-se à manutenção e melhoria da Bacia
Hidrográfica. O que embasa a cobrança é o uso de bem público, segundo parâmetros legais
definidos em cláusulas gerais legais, corporificados por meio de atos administrativos dos
Poderes Estaduais, Distritais, Municipais e Federais, que homologam decisões tomadas
pelos membros do Comitê de Bacia.
insignificantes; III – as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes”.
387
388
5 DESAFIOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DA GESTÃO INTEGRADA
PARTICIPATIVA POR BACIA EM UM PAÍS FEDERADO
5.1 O SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS
(SINGERH) E O SISNAMA: UM PARALELO NECESSÁRIO DAS COMPETÊNCIAS
HÍDRICAS E AMBIENTAIS DOS ENTES FEDERADOS BRASILEIROS
Quando a comitiva do presidente Luís Inácio Lula da Silva chegou ao município
piauiense de Guaribas, em fevereiro do ano de 2003, para lançar o programa Fome Zero,
proclamou que a fome é grave naquela região; entretanto a sede é maior (GARCIA, 2003, p.
43).
De um modo geral, o que se verifica é que a sede caminha pari passu com a pobreza
e com a destruição ambiental e social. Constitui papel relevante do desenvolvimento
sustentável reverter esta penosa equação vivenciada no nosso país. Nesse sentido, destaca-se
que os problemas brasileiros da fome, da degradação ambiental e da escassez de água
correlacionam-se. Castro compreendeu a angústia da fome, não na Sorbonne parisiense, mas
nos mangues e nos bairros inóspitos do Recife. Pobres coitados, alimentados com caranguejo
e farinha de mandioca. Mais nada! Nessa obra, mostra-se de forma poética, mas trágica, a
correlação entre o meio ambiente, a fome e os recursos hídricos simbolizados na figura de
homens e caranguejos, nascidos à beira do rio que, a medida que crescem se atolam cada vez
mais na própria lama (mistura da terra e da água) por eles criadas (CASTRO, J., 2001, p. 1-3).
Mutatis mutandi, no âmbito do ordenamento jurídico apresenta-se, como desafio, a
necessidade de conjugação das atividades do sistema de proteção ambiental com o sistema de
proteção hídrica.
Nesse aspecto, desafia o modelo jurídico de gestão da água a necessidade de
integração dos procedimentos de Outorga e Licenciamento Ambiental313 no âmbito da
proteção ambiental brasileira. A integração mostra-se imprescindível, pois, conforme já visto,
a proteção hídrica constitui acessório fundamental pertença) do bem principal, o meio
ambiente.
Seja no âmbito normativo legal, seja no âmbito operacional (institucional e
técnico), os órgãos hídricos (SINGERH) e ambientais (SISNAMA) necessitam trabalhar
juntos em determinados momentos de conjugação dos dois sistemas. A outorga e o
licenciamento materializam momentos marcantes de superposição dos dois sistemas que
devem apresentar soluções compatíveis, sob pena de esvaziamento da proteção ambiental no
âmbito dos próprios órgãos protetivos.
Nesse contexto, a nível normativo, a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, que
313
Licenciamento ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental
competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos
e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente
poluidoras, ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental,
considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao
caso.
388
389
dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, adequa-se perfeitamente ao objetivo de
integração normativa que deflui da própria Constituição de 1988 (que prevê sistema nacional
de águas (art. 21, XIX) e de proteção ambiental (arts. 23 e 24)), ao indicar verbis:
Art. 1o – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e
atividade utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente
poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental,
dependerão de prévio licenciamento do órgão estadual competente, integrante do Sistema
Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras
licenças exigíveis.
A cooperação e a coordenação entre o SISNAMA e o SINGERH encontra-se,
normativamente, prevista na idéia de que o licenciamento ambiental não esgota a
atividade protetiva do meio ambiente. Nesse aspecto, a outorga para o uso de recursos
hídricos representa outra licença exigível para o funcionamento de atividades utilizadoras de
recursos ambientais.
Por outro lado, a nível do SINGERH, na Lei de criação da ANA (Lei no 9.984, de 17
de julho de 2000, que dispõe sobre a entidade federal de implementação da Política Nacional
de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos – SINGERH) criou-se de forma complementar, a figura jurídica da outorga
preventiva (art. 6o ), que não confere direito de uso de recursos hídricos, só se destinando
reservar a vazão passível de outorga, possibilitando, outrossim aos investidores, o
planejamento de empreendimentos que necessitam desses recursos e que, também, deverão
obter licença ambiental.
A necessária integração administrativa e normativa entre os sistemas hídricos e
ambientais pode ser facilmente demonstrada na noção da intrínseca relação entre a água e as
resoluções do CONAMA.
Historicamente, várias resoluções do CONAMA trataram de questões relacionadas à
água. Algumas focalizaram temas como a classificação de cursos d' água (Resolução
CONAMA n. 20); outras procuraram proteger as florestas que produzem água, outras ainda
trataram de resíduos sólidos, cujas repercussões sobre a qualidade da água são expressivas.
Assim, por exemplo, os resíduos de embalagens (incluindo o PET) dispostos de forma
inadequada poluem rios e provocam entupimentos nas redes de drenagem, agravando as
conseqüências das enchentes urbanas. Resíduos da construção civil causam assoreamento e
obstruções nas redes de drenagem e resíduos de lâmpadas mercuriais e de pilhas e baterias,
dispostos em aterros ou lixões, contaminam a água superficial ou subterrânea.
O licenciamento ambiental de cemitérios, assim como a degradação de compostos
orgânicos ou o uso de bio-remediadores são temas de grupos de trabalho do CONAMA e da
ANA (relevantes para a qualidade das águas subterrâneas). Acidentes com a movimentação
interestadual de resíduos perigosos podem causar danos a mananciais de abastecimento de
água de superfície (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2003, p. 69).
Em março de 2002, o CONAMA aprovou resolução estabelecendo critérios para a
definição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) nos diversos ecossistemas e no entorno
de reservatórios de água. As Áreas de Preservação Permanente (APP) são as áreas marginais
aos rios; os mangues, dunas e restingas; as escarpas, os cumes e bases de morros e chapadas
ou tabuleiros. Por serem consideradas essenciais à conservação de mananciais, nascentes e
cursos de água, nessas áreas não pode haver exploração econômica direta. As resoluções
389
390
levaram em consideração as peculiaridades do país, diferenças políticas, sociais e culturais,
além das diversidades biológicas e fitogeográficas. Tratar do meio ambiente é tratar da água e
tratar da água é tratar do meio ambiente.
Sob o ponto de vista operacional, o papel da Administração mostra-se
extremamente relevante quando tantas e várias necessidades conflitantes aparecem na relação
meio ambiente e água. A ausência de gestão integrada do SISNAMA e do SINGERH, nesse
tipo de conflito, pode ocasionará a perda da qualidade da água e da proteção do meio
ambiente.
A base operacional da gestão de recursos hídricos envolve base institucional
constituída pelas entidades componentes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos - SINGERH e base técnica compreendendo: (i) informações quanto às
disponibilidades hídricas do corpo hídrico, em termos de quantidade e qualidade; (ii) cadastro
de usuários; (iii) informações hidrometeorológicas para avaliar as necessidades de demandas
dos usuários de irrigação,principalmente; (iv) critérios técnicos para análise das demandas dos
pedidos; (v) modelos de análise dos impactos do uso no corpo hídrico (os chamados modelos
de suporte de decisão).
Por tratar, a presente tese, de aspectos jurídicos, dar-se-á ênfase à base
institucional e não à base técnica; não obstante, não se pode perder de vista que as
informações técnicas constituem mecanismos imprescindíveis para as decisões hídricas
consensuais a serem tomadas pelo Comitê de Bacia. 314
O SINGERH, base institucional criada pela Lei no 9.433, tem por objetivos:
coordenar a gestão integrada das águas; arbitrar administrativamente os conflitos relacionados
com os recursos hídricos; implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, planejar,
regular e controlar o uso de recursos hídricos (art. 32). Esses objetivos ganham diferentes
ênfases no âmbito da base territorial considerada; suas realizações dependem da estreita
articulação com os demais sistemas de gerenciamento que atuam no uso e ocupação do solo
(definidos pelos Municípios).
Integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos: o Conselho
Nacional de Recursos Hídricos; a Agência Nacional de Águas; os Conselhos de Recursos
Hídricos dos Estados e do Distrito Federal; os Comitês de Bacia Hidrográfica; os órgãos dos
poderes públicos federal, estaduais e municipais, cujas competências se relacionem com a
gestão de recursos hídricos, e as Agências de Água. Portanto, do ponto de vista da
abrangência territorial da atuação dos diversos integrantes do Sistema, distinguem-se os
314
Os sistemas de suporte à decisão (SSD), informações técnicas suscetíveis de auxiliar
indivíduos ou grupos organizados no processo de busca, análise e seleção de alternativas
para solução de seus problemas, devem possuir algumas características importantes para
análise, controle e administração da outorga de direitos de uso da água. Azevedo et al.
(2003, p. 5), nesse sentido, assinala: “A outorga não é um instrumento de fácil implantação
e administração. Sua complexidade advém, de um lado, da própria natureza dos recursos
hídricos, com seus usos e atributos múltiplos em um quadro de ocorrência estocástica e
demandas crescentes, e, do outro, do contexto em que se insere seu gerenciamento,
envolvendo interesses conflitantes e os mais distintos atores, desde os órgãos públicos
gestores e entidades da sociedade civil até os usuários finais da água [...] soma-se a falta de
informações confiáveis tanto para avaliação e acompanhamento da disponibilidade hídrica,
em seus aspectos qualitativo e quantitativo, quanto para conhecimento, controle e
gerenciamento da demanda".
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391
órgãos e entidades nacionais (Conselho Nacional, Agência Nacional de Águas), os estaduais
(Conselhos Estaduais e, em alguns Estados, Comitês Estaduais, como ocorre nos Estados de
Pernambuco e do Ceará), e os órgãos de bacia hidrográfica (Comitês de Bacia e Agências de
Bacia). Os órgãos dos poderes públicos federais e estaduais atuam conforme competências
institucionais, conforme descreve a Figura abaixo, já os municípios participam dos colegiados
de decisão, principalmente, nos Comitês de Bacia:
Figura 4 – Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos
Fonte: Agência Nacional de Águas (2003, p. 13).
Assim, a complexidade da gestão integrada hídrico-ambiental apresenta-se maior
com a questão federativa. Barroso (1992, p. 127), ao tratar da competência comum ambiental,
ressalta a necessidade de evitar-se a superposição de atribuições, sem que se esqueça,
entretanto, da possível atuação das três esferas federativas brasileiras.
Importante lembrar que o modelo de bacia hidrográfica como unidade de gestão,
baseado na experiência francesa de um Estado Unitário, ganha novos contornos no Brasil,
Estado Federativo em que, numa mesma Bacia, misturam-se rios federais, estaduais e
distritais (tripla dominialidade dos rios). Assim, a já complexa questão federativa deverá
resolver mais um problema: a compatibilização da gestão por Bacia, com a divisão política
federativa do País que estabelece tripla dominialidade dos rios, conjugada com a atuação dos
Municípios sobre o meio ambiente e reflexos para os recursos hídricos.
Ao estabelecer os dois diferentes domínios dos recursos hídricos no Brasil, a
Constituição Federal de 1988 criou modelo que acrescenta dificuldade adicional para a gestão
do uso das águas de mananciais do País centrado na Bacia Hidrográfica. Hidrológica e
ecologicamente, as águas dos dois domínios são um corpo só, seja porque um rio de domínio
estadual é afluente de outro de domínio da União Federal, seja porque esse fenômeno se dá ao
contrário, seja ainda porque as águas superficiais se relacionam com as subterrâneas e viceversa.
391
392
Ora, o fato de a água ser um bem físico em movimento, podendo assumir, em
momentos distintos, domínios diferentes, dentro, muitas vezes, de uma mesma bacia
hidrográfica, explica a dificuldade com que se defrontam o gestor para conciliar os interesses
conflitantes de diferentes esferas de poder. Em termos concretos, o vazamento de produtos
tóxicos que atingiram os rios Pomba e Paraíba do Sul, no início de 2003, fez com que a
União, o Estado de Minas Gerais e do Rio de Janeiro criassem uma comissão permanente para
acompanhar a recuperação da bacia hidrográfica da região atingida.315
A solução para a problemática dos recursos hídricos passa, portanto, pela cooperação e
transversalidade que devem caracterizar a federação instituída pela Constituição Federal
de 1988. Nesse aspecto, na competência comum, a própria Constituição determina que
lei complementar federal fixe normas para a cooperação entre as diversas esferas de
poder, “tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito
nacional” (art.23, parágrafo único), o que evidencia que essa área de administração
comum não deve estar sujeita a desperdícios de esforços e à superposição de atividades,
muito menos ao entrechoque de ações administrativas de órgãos entre si autônomos,
mas que todos, sob a égide da lei, devem agir de maneira harmoniosa.
Interessante destacar que a concepção normativa de sistemas nacionais para a área
hídrica (previsto na Lei 9.433/97) e ambiental (previsto na Lei 6.938/81) permite a
conjugação da harmonia hídrico-ambiental com a federativa de atuação administrativa de três
esferas do Poder Público no âmbito dos órgãos estatais e sociais ambientais e hídricos de
âmbito municipal, estadual e federal.
Assim, uma das grandes atribuições do Conselho Nacional de Recursos Hídricos
(CNRH)316 e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) é o de desempenhar a
função de agente integrador e articulador das políticas públicas correlacionadas com a gestão
de recursos hídricos e ambientais, particularmente quanto à harmonização do gerenciamento
de águas de diferentes domínios. Nesse aspecto, a Resolução n. 16, de 08/05/2001, do
Conselho Nacional de Recursos Hídricos, estabelece que a suspensão da outorga também
poderá ocorrer no caso de indeferimento ou cassação da licença ambiental.
5.2 O INTERESSE LOCAL, A OCUPAÇÃO DO SOLO E A ATUAÇÃO REFLEXA DOS
MUNICÍPIOS NA GESTÃO DAS ÁGUAS
315
Em 29 de março de 2003, um acidente causado pelo derramamento de 1,4 milhões de m³ de efluente
industrial, composto basicamente por licor de madeira e soda cáustica, proveniente do rompimento da
barragem de rejeitos da Fábrica Cataguazes de Papel, localizada no Município de Cataguazes, Estado de
Minas Gerais, afetou a qualidade das águas dos rios Pomba e Paraíba do Sul, provocando, conseqüentemente,
a interrupção de água potável para parte da população dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. O
acidente provocou, ainda, a morte da ictiofauna dos rios Pomba e Paraíba (DARIANO, 2003, p. 1).
316
O CNRH, criado em junho de 1998, Decreto 2612 de 03/07/98, de caráter normativo e deliberativo, tem entre
as suas atribuições promover a articulação do planejamento de recursos hídricos com os planejamento
nacional, regional, estadual e dos setores usuários, é composto por Presidente e Secretário e membros que
representam a União, os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, os representantes dos usuários de
recursos hídricos e representantes de organizações civis de recursos hídricos (BRASIL. Agência Nacional de
Águas, 2002, p. 9).
392
393
Conforme já visto na caracterização do bem água, o Município não tem domínio
sobre recursos hídricos. As águas, no Brasil, são federais ou estaduais.
Em análise simplista poder-se-ia afirmar, indevidamente, que a atuação dos
municípios no âmbito administrativo e legislativo fosse irrelevante para os recursos hídricos.
Tal postura, entretanto, não poderá ser adotada, pois nela se esquece a correlação já
corroborada neste Capítulo entre o meio ambiente e os recursos hídricos, bem como as
competências municipais ambientais previstas na Constituição Federal de 1988 (art. 23 e 30) e
na Lei de Política Nacional do meio ambiente com expressa previsão normativa de que os
Municípios integram o SISNAMA como órgãos locais (art. 6 da Lei 6.938/81).
Com o advento da nova Constituição, os Municípios passam a ter autonomia e
competência legislativa mínima317, rigidamente estabelecida. Entretanto, parte desta
competência não está explicitada, estando implícita na necessária identificação do fluido
conceito de interesse local.318
Nesse aspecto, interessante destacar que a indiscutível atuação municipal ambiental
terá reflexo na gestão dos recursos hídricos, em especial aquela vinculada à ocupação do solo
(art. 30, inciso VIII da CF).
Além de questões estritamente técnicas, o planejamento hídrico abrange aspectos de
natureza político-institucional, uma vez que a administração da água apóia-se em aparato
legal federativo especializado, constituído por disposições constitucionais no âmbito da União
e dos Estados, e amplo espectro de leis, decretos, portarias, resoluções, instruções normativas,
e regulamentos referentes à política e ao gerenciamento de recursos hídricos, ao sistema
ambiental (do qual os recursos hídricos se constituem em subsistema), e a outros sistemas
usuários dos recursos hídricos como os da política municipal de uso do solo.
O ordenamento do território, por sua vez, é processo que visa adequar a organização
e utilização do território, tendo como finalidade o desenvolvimento integrado, harmonioso e
sustentável das diferentes regiões que o compõem e abrange todos os recursos naturais
disponíveis: além dos recursos hídricos, aqueles da biodiversidade, os florestais e os minerais,
e também os aspectos socioeconômicos decorrentes da apropriação do território, as bases
317
Ferreira Filho (1989, p. 59-60), nesse sentido, afirma: “A competência que lhe é concedida pela Constituição,
o é, aliás, nos mesmos termos que a da União. Esta e o Município têm os poderes enumerados; os Estadosmembros, os poderes remanescentes. Sua competência, pois, impõe-se, ainda que implícita, aos poderes
estaduais remanescentes e até aos poderes da própria União. Tal deflui do art. 102, III, c, pois aí se vê que a
regra local pode impor-se à regra federal, dentro de sua esfera. Essa competência envolve legislação (pode o
Município cobrar tributos e de acordo com o art. 150, I, III, a, b, só a lei pode criá-los [...]) e administração
(art. 30, III a IX)”. Por outro lado: “[...] Afastando-se, em parte, da técnica tradicional, a Constituição de
1988 não se limitou a demarcar a área das competências municipais circunscrevendo-as à categoria genérica
dos assuntos concernentes ao peculiar interesse do Município. Foi mantida, sim, uma área de competências
privativas não enumeradas, à medida que os Municípios legislarão sobre os assuntos de interesse local (art.
30, I). Mas, o constituinte optou – e aqui está a diferença em relação à técnica anterior – por discriminar
também certas competências municipais exclusivas em alguns dos incisos do artigo 30 e em outros
dispositivos constitucionais. Destarte, pode-se dizer das competências reservadas dos Municípios, que parte
delas foi enumerada e outra parte corresponde a competências implícitas, para cuja identificação o vetor será
sempre o interesse local” (ALMEIDA, F., 1991, p. 122).
318
Nesse sentido, Moreira Neto (1998, p. 140), comentando o projeto de Constituição aprovado em primeiro
turno, afirma: “Finalmente, a competência municipal, tradicionalmente não enumerada nas cartas
anteriores, passa a ser parcialmente enumerada: os incisos III, IV, V, VI, VII, VIII e IX discriminam
competências específicas municipais, enquanto o inciso I, sob o conceito-chave de reserva de interesse
local, autoriza a edição de quaisquer leis em que predomine este interesse. A predominância e não a
exclusividade continua sendo, portanto, a justa interpretação desse novo conceito que substitui o tradicional
peculiar interesse, que remontava ao artigo 68 da primeira Constituição republicana” (grifo nosso).
393
394
legais, institucionais e financeiras envolvidas. Em face da complexidade desse processo,
prevalece a visão reducionista em seu tratamento, o que, por outro lado, coloca o desafio da
integração e da compatibilização dos vários segmentos contemplados.
Em seus fundamentos, a Lei Nacional das Águas estatui que a bacia hidrográfica é
a unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e
atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, disposição que,
por um lado, traduz a realidade física de ser a bacia hidrográfica a área que drena para o corpo
de água e, por isso, todo o processo de utilização do território por ela delimitado repercute nos
corpos de água, via interação com o ciclo hidrológico e, por outro lado, permite ao gestor uma
avaliação das alternativas de usos do solo e seus efeitos sobre os recursos hídricos.
Com a mesma ênfase, destacam-se, dentre as diretrizes gerais de ação para a
implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433, art. 3o): a adequação
da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas,
sociais e culturais das diversas regiões do País; a integração da gestão de recursos hídricos
com a gestão ambiental e a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do
solo.
A Política Nacional de Recursos Hídricos, ao instituir o enquadramento como seu
instrumento, explicitou uma das vias de integração das gestões de recursos hídricos com a do
meio ambiente, ao definir que “As classes de corpos de água serão estabelecidas pela
legislação ambiental” (Lei nº 9.433, art. 10º), ou seja, conforme a Resolução CONAMA
20/86, que estabelece nove classes de usos, sendo cinco referentes a águas doces (Classe
Especial e Classes 1 a 4), duas a águas salinas (Classes 5 e 6) e duas para as salobras (Classes
7 e 8).
O zoneamento das águas e o zoneamento do território guardam relação direta, pois
seria impossível manter as águas que se prestam a usos mais nobres com a liberalização do
uso do território, havendo, ao contrário, necessidade do controle permanente da ocupação
permitida. A Resolução 20/86, ao estabelecer que “nas águas de Classe Especial não serão
tolerados lançamentos de águas residuárias, domésticas e industriais, lixo e outros resíduos
sólidos, substâncias potencialmente tóxicas, defensivos agrícolas, fertilizantes químicos e
outros poluentes” (art. 18), está fazendo zoneamento do território, na medida que restringe
drasticamente o uso e a ocupação da bacia hidrográfica, induzindo sua ocupação como
Unidades de Conservação da Natureza, na forma prevista na Lei nº 9.985/2000.
O enquadramento de corpos de água foi objeto de diretrizes complementares do
CNRH, em sua Resolução no 12, de 19/07/2000, a qual destaca a vinculação do
enquadramento com os planos de recursos hídricos e com as normas estabelecidas na
legislação ambiental, especialmente a Resolução CONAMA 20/86. Define os procedimentos
para o enquadramento em quatro etapas, a saber: “I – diagnóstico do uso e da ocupação do
solo e dos recursos hídricos na bacia hidrográfica; II – prognóstico do uso e da ocupação do
solo e dos recursos hídricos na bacia hidrográfica; III – elaboração da proposta de
enquadramento, e IV - aprovação da proposta de enquadramento e respectivos atos jurídicos”.
Para cada etapa, a Resolução no 12 identifica a abordagem a ser observada, que implica em
estudos e levantamentos nos corpos de água e no território. O enquadramento de corpos de
água e os planos de bacia hidrográfica são instrumentos técnico-jurídico-institucionais
interligados, e ambos dependem de estudos e avaliações do uso e ocupação do território
(BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, 2002, p. 82-84).
Assim, evidencia-se a razão por que deve ser considerada a atuação legislativa e
administrativa dos Municípios na gestão ambiental e, em especial, no uso do solo, como
variável relevante para a gestão hídrica de uma determinada Bacia Hidrográfica.
394
395
5.3 A GESTÃO INTEGRADA FEDERATIVA DO SANEAMENTO DA REGIÃO
METROPOLITANA:
ENGENHOSA
SOLUÇÃO
LEGISLATIVA
PARA
TORMENTOSO PROBLEMA JURÍDICO
O crescimento urbano, ocorrido de forma rápida e concentrada no Brasil, gerou a
emergência do fenômeno metropolitano no Brasil. Afirmam Pereira; Baltar (2000, p. 379) que
“todas as regiões metropolitanas, sem exceção, têm deficiência nos serviços de coleta dos
esgotos domésticos e, principalmente, no tratamento e disposição final”.
O alto grau de poluição e degradação da água, resultante principalmente do não
tratamento dos esgotos municipais torna a questão hídrica extremamente relevante para as
regiões metropolitanas.
As três mais importantes regiões metropolitanas do país – São Paulo, Rio de Janeiro
e Belo Horizonte – encontram-se no Sudeste. Assinala, a esse respeito, Zulauf (1994, p. 3435), referindo-se à região sudeste, verbis:
Em termos ambientais, foi a região que sofreu a mais severa ação
predatória, apresentando portanto os maiores problemas nesse campo.
Das matas tropicais primitivas restam apenas áreas muito limitadas,
que cobrem as encostas mais íngremes e úmidas. Os solos das áreas
rurais estão degradados, observando-se por toda a região sérios
problemas de erosão. Nas cidades são graves os problemas de
poluição do ar, dos recursos hídricos e do solo, além de outras
mazelas típicas dos desequilíbrios criados pelo modelo de
desenvolvimento adotado, como a carência de habitações, a falta de
segurança, o excesso de ruído, as dificuldades de locomoção, o trafego
difícil e moroso e a falta de transporte público adequado (grifo nosso).
Mukai (1989, p. 38-39) enfrenta o problema das regiões metropolitanas que se
vincula à delimitação de competências entre os Estados e Municípios assinalando, verbis:
[...] a Lei Orgânica Municipal será a Constituição Municipal, que, votada em dois
turnos e aprovada por um quórum qualificado, será promulgada pela própria Câmara
Municipal. Deverá observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na
Constituição do respectivo Estado. Esta, a Constituição do Estado, somente
poderá dispor normas sobre os Municípios, que regulem assuntos
supramunicipais, tais como aqueles relativos às regiões metropolitanas e às
aglomerações urbanas. No mais, qualquer disposição sobre o município,
específica, será inconstitucional, por invasão da autonomia municipal. O Estadomembro perdeu toda e qualquer competência para dispor sobre a organização
municipal, salvo aqueles assuntos que extrapolam o interesse puramente local (grifo
nosso).
Moreira Neto (1998, p.10), ao tratar do poder concedente, competente para o
abastecimento de água e da autonomia municipal, em face de controvérsia sugerida na ADIN
1.775319 apresentada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra a Lei Complementar
319
STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.775-RJ (medida liminar), Rel. Min. Maurício Corrêa,
publicação do acórdão em 18/05/2001. O Tribunal, por votação majoritária, não conheceu da ação direta. A
inicial elaborada pelo Partido Democrata Trabalhista – PDT pleiteava, dentre outros pedidos, a declaração da
inconstitucionalidade da Lei Complementar Estadual n. 87, de 16 de dezembro de 1997, do Estado do Rio de
395
396
no 87/97 que trata do poder concedente de água e de esgoto estadual na Região Metropolitana
do Rio de Janeiro, ensina:
A expressão interesse local vem utilizada na Constituição vigente para balizar a
atividade legislativa (art. 30, I) e a atividade administrativa (art. 30, V). Trata-se de
uma cláusula geral com forte conteúdo, que veio substituir no texto constitucional o
tradicional peculiar interesse, que vinha consignado no art. 15, II da Constituição
de 1967, com a redação que lhe deu a Emenda no 1 de 17 de outubro de 1969, tal
como utilizado nas anteriores.
A inicial da referida ADIN afirmava, com base no art. 30, inciso I e V da
Constituição Federal, que competia aos Municípios legislar em assuntos de interesse local,
bem como organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão os serviços públicos
de interesse local e que a Lei Complementar fluminense estaria usurpando a autonomia dos
municípios.
Outras ADINs perante o Supremo Tribunal Federal demonstram a complexidade
jurídica da questão, em face da multiplicidade de dispositivos constitucionais que permitem a
configuração do poder concedente do saneamento básico ora para os Municípios, ora para os
Estados-membros. Nesse aspecto, deve ser trazida à colação o julgamento da liminar no
âmbito da ADIN 2.340-SC (ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do
Estado de Santa Catarina contra a Lei 11.560/2000, do mesmo Estado, que torna obrigatório o
fornecimento de água potável pela Companhia Catarinense de Águas e Saneamento –
CASAN). Nesse julgamento, por distintos e, muitas vezes, contraditórios argumentos, alguns
Ministros foram favoráveis e outros contrários à competência municipal, tendo sido concedida
a liminar por diferença de um voto:
O Min. Marco Aurélio, relator, proferiu voto no sentido de indeferir o pedido de
medida cautelar, por entender inexistir, à primeira vista, a alegada ofensa à
competência dos municípios para legislar sobre interesse local (CF, art. 30, I) [...] De
outra parte, a Ministra Ellen Gracie votou pelo deferimento do pedido de medida
cautelar, por entender competir ao Município o serviço de fornecimento de água,
ainda que atribuído por concessão a uma empresa estadual [...], e o Min. Carlos
Velloso, por entender que o Estado não teria competência para editar a norma
impugnada. À vista do empate na votação, o julgamento foi suspenso para aguardar
o voto do Min. Maurício Corrêa.320 (grifo nosso)
De acordo com a Constituição Federal: (i) é competência exclusiva da União a
definição das diretrizes gerais para a prestação e regulação dos serviços de saneamento e (ii) a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios têm competência comum para
implementar programas para a melhoria das condições de saneamento básico. Entretanto, a
Constituição Federal, ao contrário do que ocorre em outros serviços de utilidade pública,
como energia elétrica, telecomunicações e gás, não define expressamente qual ente federado
tem a responsabilidade pela prestação dos serviços de saneamento básico (titularidade),
inclusive a competência para delegar estes serviços (poder concedente). Esses serviços não
estão incluídos no chamado “rol geral” dos serviços púbicos. Sua competência, não sendo
explicitamente atribuída à União, é descentralizada para os níveis sub-nacionais.
Quando os serviços públicos, em geral, são considerados de interesse local, sua
titularidade está claramente expressa na Constituição (serão atribuição dos municípios). A
definição de interesse local pode basear-se em critérios técnicos e jurídicos. Tecnicamente,
poder-se-ia especificar que serviços locais são aqueles prestados ao cidadão em determinado
município e que, para tal prestação, não há dependência de infra-estrutura de outro município.
No caso dos serviços de água e esgotos, por exemplo, poder-se-ia definir como locais aqueles
320
Janeiro por ofensa a autonomia muncipal hídrica de poder concedente legítimo para o abastecimento da água.
STF – ADInMC 2.340-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado no Diário de Justiça de 21/03/ 2001.
396
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serviços que, obtendo outorga da autoridade competente pela gestão de recursos hídricos, se
iniciam com a captação de água, se desenvolvem no tratamento e na distribuição de água, e na
coleta e no tratamento de esgotos, e se encerram na disposição final destes, no território ou
para exclusivo uso dos munícipes. Nesse caso, enquadra-se a grande maioria dos municípios
brasileiros.
Entretanto, a crescente urbanização brasileira gerou série de aglomerações urbanas
em que é necessário compartilhar infra-estrutura e serviços de saneamento básico, como nas
regiões metropolitanas. Nesses casos, os serviços são de interesse não de um município
(local), mas, antes, de todos os municípios envolvidos. Ou seja, existe um interesse regional
comum a todos, convivendo com o interesse local de cada um dos Municípios.
Ainda sob o ponto de vista jurídico, a questão é, sem dúvida, complexa e
controvertida. Como visto, a Constituição não atribui estes serviços à União. Se eles não
podem, porventura, na sua integralidade, ser considerados de interesse local, a sua
competência poderia ser atribuída aos Estados-membros. Estes possuem competência
remanescente sobre tudo aquilo que não lhes for vedado; portanto, a titularidade de serviços
comuns ou regionais, poderia recair sobre eles, exatamente como ocorre, historicamente, com
o transporte intermunicipal de passageiros.Ademais, os estados têm competência para criar
regiões metropolitanas e nelas organizar o planejamento e a execução das funções públicas
comuns (CF, art. 25, parágrafos 1o e 3 o).
Nesse quadro apresentado, da possibilidade de diferentes configurações de interesse
local e regional, deve ser apreciada favoravelmente a solução legislativa integrada, decorrente
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