Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Faculdade de Direito do Recife Programa de Pós-Graduação em Direito PAULO JOSÉ LEITE FARIAS A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA NO BRASIL: INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS DIMENSÕES PROTETIVAS ÉTICA E ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE Brasília 2003 1 PAULO JOSÉ LEITE FARIAS A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA NO BRASIL: INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS DIMENSÕES PROTETIVAS ÉTICA E ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE Tese aprovada, em 8 de agosto de 2003, como requisito parcial para a conclusão do Doutorado em Direito, sob orientação do Professor Doutor Inocêncio Mártires Coelho, pela comissão formada pelos professores: Prof. Dr. George Browne Rego (Presidente) Prof. Dr. Cláudio Brandão Prof. Dr. Geraldo Neves Profa. Dra. Daisy Asper y Valdez Prof. Dr. Lincoln Magalhães da Rocha Brasília 2003 2 Reprodução parcial permitida desde que citada a fonte. F224 Farias, Paulo José Leite, 1963- . A cobrança pelo uso da água no Brasil : integração normativa das dimensões protetivas ética e econômica do meio ambiente / Paulo José Leite Farias. – Brasília : O Autor, 2003. 361 f. Tese apresentada ao Curso de Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco como requisito parcial para a conclusão do Doutorado em Direito, sob orientação do Professor Doutor Inocêncio Mártires Coelho. 1. Recursos hídricos. 2. Uso da água – cobrança. 3. Direito das águas. 4. Direito comparado. I. Título CDU 340:556.18 Ficha Catalográfica elaborada por Tatiana Barroso de Albuquerque Lins / CRB 1 - 1588 3 44 Ao eterno mestre Josaphat Marinho in memoriam, professor, jurista baiano, constituinte de 1988, que sempre exerceu as suas atividades com zelo, eficiência e, acima de tudo, com ética pelo marcante convívio e pela concretização da realização de um curso de Doutorado em Direito em Brasília-DF. À Márcia, minha esposa, aos meus filhos Antônio José, Maria Clara e Pedro Luís com o afeto e a dedicação de sempre. A meus pais, Elmano e Vera, e a meus irmãos André e Lia, pelo ninho de apoio e carinho que construíram para o meu desenvolvimento mental, emocional e intelectual. Ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, instituição que engrandece a luta pela proteção ambiental no Distrito Federal. 44 45 AGRADECIMENTO Ao Prof. Dr. João Maurício Adeodato, coordenador do curso, pelo interesse na qualidade e pela amizade construída na dificuldade. Ao Prof. Dr. Inocêncio Mártires Coelho, orientador da presente tese, pelo tempo dedicado à difícil atividade de orientação acadêmica. Aos professores do doutorado, pelas preciosas lições transmitidas. Aos colegas de doutorado e mestrado pela UFPE, companheiros de árdua e profícua caminhada. Ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, instituição que investe no aperfeiçoamento de seus membros. Aos meus alunos da pós-graduação da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal (AEUDF/ICAT), da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (FESMPDFT), do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB), pela oportunidade de convívio e troca de experiências. 45 46 RESUMO Esta tese tem por objeto provar que a cobrança pelo uso de água prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n. 9.433/97), integra normativamente as diferentes dimensões éticas e econômicas da Natureza. Na estreita relação do homem e da natureza com a água, a cobrança pelo uso da água apresenta-se como um símbolo contemporâneo da síntese de diferentes visões éticas e econômicas, garantidoras da proteção do homem e do ecossistema na Política Nacional de Recursos Hídricos Brasileira. Historicamente, o bem ecológico e o bem econômico sempre interagiram e estiveram próximos. Do mesmo modo, sempre houve uma permanente tensão dialética entre o ser humano e outros seres animados e inanimados que juntos formam um todo indissociável e interdependente. A visão de que há outros interesses, além dos humanos, na proteção do meio ambiente (visão ecocêntrica), constitui novo paradigma da proteção ambiental, que influenciou a Política Nacional de Recursos Hídricos, estabelecendo como uso prioritário dos recursos hídricos a dessedentação de animais ao lado do consumo humano (art. 1 da Lei 9.433/97). Por outro lado, a nova ótica dada ao bem ambiental público de uso comum – água – considerado pela referida legislação um recurso natural finito, de valor econômico a ser gerido de forma descentralizada por um Comitê de Bacia, constitui sensível mudança de paradigma protetivo ambiental brasileiro. Ênfase é dada aos instrumentos econômicos, à participação da sociedade na proteção ambiental e à visão eco-hidrológica, em relação aos instrumentos normativos tradicionais de comando e controle, ao papel preponderante das instituições estatais protetivas tradicionais e à questão política-administrativa federativa brasileira. Hoje, portanto, a proteção ambiental hídrica cria novos paradigmas de atuação da sociedade e do Poder Público, superando a visão antropocêntrica de que a água é um mero instrumento de satisfação das necessidades humanas. Fala-se em mecanismos normativos plurais e participativos de integração ética e econômica no caso concreto (bacia hidrográfica), que exigem maior cooperação entre as diferentes esferas do Poder Público e da sociedade civil, evitando-se o conflito das atribuições administrativas e legislativas, e maximizando a eficiência e a eficácia do Estado e da sociedade na defesa dos recursos hídricos (Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos). Assim, a simbiose entre os aspectos ecológicos e econômicos na cobrança pelo uso da água permite um conjunto de soluções jurídico-normativas delimitadas pela ponderação das éticas antropocêntricas da solidariedade e do utilitarismo-econômico em conjunto com a ética ecocêntrica, enfatizando a prática de procedimentos comunicativos de união da esfera estatal com a esfera civil para a escolha das melhores formas de gestão dos recursos hídricos. Palavras-chave: Recursos hídricos Uso da água - cobrança Direito das águas 46 47 ABSTRACT The present thesis intends to demonstrate that the cost of the use of water, as foreseen in the Brazilian National Water Policies (Law n° 9.433/97), connects Nature’s diverse ethical and economical dimensions as stated in environmental policies and regulations. The charge of the use of water is symbolic. It represents a synthesis of diverse ethical and economic points of view, all of them concerned with the protection of the human being and the ecosystem. There is a permanent interaction between Nature’s ecological and economical dimensions. Accordingly, there is a permanent dialect tension between human beings and other animated and inanimated things, which, together, form a complete and interdependent natural system. This ecological approach considers that, besides the use of water by human beings, there are other relevant aspects related to environmental protection which influence the creation of a new paradigm for the Brazilian Water Law. Policy priorities were established to avoid an environmental degradation by means of a non-economic perspective, thus preventing the shortage of water for human and animal consumption (Law 9.433/97, Art. 1). On the other hand, in a legal perspective, water is a finite natural resource, which must be managed mainly by society in the River Basin Committee, because of its economic value and the extension of Brazilian watercourses. This legal perspective permeates the entire Brazilian environmental protective paradigm. Therefore, emphasis is given on economic instruments, the participation of society in environmental safety and the geography of watercourses as opposed to the traditional normative instruments of “command and control” as normally applied to Brazilian public resources. A new conceptual framework, instructive of regulating water’s resources, analyzes the relationship between society and the Government. The ethical anthropocentric view of water as an instrument of satisfaction of human needs is now overwhelmed by this new conception. It considers diverse normative mechanisms to deal with ethical and economic problems, and it stresses cooperation among the different Government levels and civil society to maximize effectiveness and efficiency in the protection of the Brazilian water resources. The new regulation entitles a symbiosis among ecologic and economic aspects related to the cost of the consumption of water, which brings a plurality of normative solutions. These are inspired by the considerations of human rights ethics, utilitarian ethics and ecocentric ethics, and give emphasis to an increased communication between different levels of Federative power and the civil society, which are enlightened by the optimization of water resources of each specific hydrographic basin. Keywords: Water resources Water charges Water Law 47 48 RÉSUMÉ Cette thèse prétend prouver que le coût d'utilisation de l'eau, prévu dans la politique nationale de ressources hydriques (loi n. 9.433/97) intègre, selon les normes, les différentes dimensions étiques et économiques de la Nature. Considérant l'étroite relation de l'homme et de la nature avec l'eau, le payement pour l'utilisation de l'eau se révèle un symbole moderne de la synthèse de différentes visions éthiques et économiques garantissant la protection de l'homme et de l'eco-système, dans la politique nationale de ressources hydriques brésiliennes. D'un point de vue historique, le bien être écologique et le bien être économique ont toujours interagis et ont toujours été très proches. De la même façon, il a toujours existé une tension permanente entre l'être humain et les autres êtres vivants qui composent, ensemble, un tout indissociable et dépendant les uns des autres. La pensée qu'il existe d'autres intérêts, en plus de ceux des humains, dans la protection de l'environnement, s'est constituée en un paradigme de la protection de celui-ci, qui a influencé la politique nationale de ressources hydriques, en établissant comme utilisation prioritaire de celles-ci pour la consommation animale, au même niveau que la consommation humaine (article 1 de la loi 9.433/97. D'un autre côté, la nouvelle considération apportée à l'eau, produit environnemental public d'utilisation commune, est considère par la présente législation, une ressource humaine finie, et de valeur économique, à éte gérée de forme décentralisée par un “Comité du Bassin”, ce qui constitue un sensible changement de paradigme de protection de l'environnement brésilien. Une importance est donnée aux instruments économiques, à la participation de la société dans la protection de l'environnement et à la vision éco-hydrologique en relation avec les instruments normatifs traditionnels de commande et contrôle, au rôle prépondérant des institutions de protection traditionnelles et à la question politico-administrative brésilienne. Aujourd'hui, pourtant, la protection environnementale hydrique crée de nouveaux paradigmes d'action de la société, du pouvoir public, en passant outre la pensée considérant l'eau en tant que simple instrument de satisfaction aux nécessités humaines. On parle de mécanismes normatifs pluriels et participants de l'intégration éthique et économique, dans ce cas concret (bassin hydrographique). Ceux mécanismes exigent une plus grande coopération entre les différentes sphères de pouvoir public et de la société civile, en évitant ainsi le conflit des attributions administratives et législatives, et maximisant ainsi l'efficacité de l'Etat et de la société, dans la défense des ressources hydriques (Système national de gestion des ressources hydriques). Ainsi, la symbiose entre les différents aspects écologiques et économiques dans le coût pour l´ utilisation de l'eau permet une association de solutions juridiques, délimitées par la pondération des éthiques anthropocentriques de solidarité, de l'utilitarisme économique liés à l´ éthique écocentrique, avec emphase dans les procédures communicatives, en union de la sphère de l'Etat et de la sphère civile dans le choix des meilleures formes de gestion des ressources hydriques. Mots clé: Ressources hydriques L'utilisation de l'eau - payement Droit de l'eau 48 49 LISTA DE ILUSTRAÇÕES FIGURAS Figura 1 Modelo de Interação Institucional de Talcott Parson, 191 Figura 2 Ciclo Hidrológico, 225 Figura 3 Distribuição de água por tipo de consumo consuntivo no Brasil, 284 Figura 4 Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, 300 Figura 5 Comparação de indicadores de desenvolvimento de Minas Gerais e Alagoas: entes federados da Bacia do São Francisco, 307 Figura 6 Participação territorial percentual dos entes federados na Bacia do São Francisco, 308 Figura 7 Composição por ente federativo do Comitê de Bacia do Rio São Francisco, 309 QUADROS Quadro 1 Esquema conceitual dos elementos estruturais da ecologia, 169 Quadro 2 Teorias do valor e meio ambiente, 178 Quadro 3 Ramos principais de suporte ao valor intrínseco da Natureza na “environmental philosophy” americana, 178 Quadro 4 Comparação dos paradigmas cartesiano-newtoniano e sistêmico-holístico, 189 Quadro 5 Códigos, programas e critérios do sistema de Luhmann, 195 Quadro 6 Distintas concepções teóricas da relação entre mercado e direito na visão de Reich, 202 Quadro 7 Quantidade de água doce existente na Terra, 224 Quadro 8 Situação hídrica pobre e crítica de Estados-membros brasileiros, 228 Quadro 9 Principais documentos internacionais relativos aos direitos fundamentais reconhecidos internacionalmente e seus endereços eletrônicos, 253 Quadro 10 Quantidade de água básica para as necessidades humanas domésticas, 254 Quadro 11 Legislações hídricas a serem utilizadas no gerenciamento de recursos hídricos da Bacia do São Francisco, 310 49 50 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ADC Ação Declaratória de Constitucionalidade ADIN Ação Direta de Inconstitucionalidade ANA Agência Nacional de Águas C.F. Constituição Federal DJU Diário da Justiça da União DOU Diário da Oficial da União RDA Revista de Direito Administrativo RDP Revista de Direito Público RE Recurso Extraordinário RF Revista Forense Rp. Representação RT Revista dos Tribunais RTJ Revista Trimestral de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal SINGERH Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos SISNAMA Sistema Nacional do Meio Ambiente STF Supremo Tribunal Federal 50 51 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 1 AS DIMENSÕES DO FENÔMENO AMBIENTAL E SUA SÍNTESE-VALORATIVA PELA NORMA AMBIENTAL BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS, 1 2 A ÁGUA COMO METÁFORA DE INTEGRAÇÃO DA DIMENSÃO ÉTICA E ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO, 4 3 ANÁLISE DAS PARTES COMPONENTES DA PRESENTE TESE 3.1 Visão geral das partes e dos seus objetivos, 6 3.2 Contornos conceituais e metodológicos do trabalho, 7 3.3 Parte I – A dimensão ética da proteção ambiental: pluralidade de fundamentos para a necessária evolução da visão antropocêntrica para a ecocêntrica, 9 3.4 Parte II – A dimensão econômica do meio ambiente: a riqueza dos recursos naturais como direito do homem presente e futuro, 11 3.5 Parte III – O papel normativo do Estado Regulador de superação e síntese dos aspectos éticos e econômicos do meio ambiente, 13 3.6 Parte IV – A cobrança pelo uso da água: mecanismos normativos plurais e participativos de integração ética e econômica no caso concreto, 15 PARTE I A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: PLURALIDADE DE FUNDAMENTOS PARA A NECESSÁRIA EVOLUÇÃO DA VISÃO ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA 1 O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA 1.1 A relação do homem com a natureza: evolução de sujeito passivo para ativo, 19 1.1.1 A modificação do meio ambiente: evolução, 19 1.1.2 A mutação do conceito de natureza, 22 1.2 A conscientização da degradação do meio ambiente no mundo contemporâneo, 18 2 “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO DO HOMEM? 2.1 Meio ambiente: conceito aberto para a proteção das pessoas e dos seres em geral, 27 2.1.1 Meio ambiente: conceito, 27 2.1.2 Meio ambiente: conceito no direito comparado, 27 2.1.3 Meio ambiente: conceito no direito brasileiro, 30 2.1.4 Direito ao “meio ambiente sadio” como direito fundamental da pessoa humana, 32 2.2 Sadia qualidade de vida do HOMEM, 34 2.3 Presentes e futuras gerações HUMANAS, 35 2.4 O macro e o microbem ambiental, 37 2.4.1 O macrobem ambiental como bem de uso comum do povo, 37 51 52 2.4.2 Os seres animados e inanimados (microambiente) como coisas de ninguém (res nullius) e coisas abandonadas (res derelicta), 40 3 ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL 3.1 Um exemplo clássico de pensamento ético: o diálogo de Critão, 42 3.2 Fundamentos da ética clássica: a busca da felicidade do homem, 44 3.3 Macroética ambiental: uma ética coletiva que busca evitar a infelicidade da coletividade, 47 3.3.1 Macroética: uma ética de agrupamentos sociais, 47 3.3.2 Análise comparativa das éticas de Apel, Hans Jonas e Aristóteles, 51 3.3.2.1 O progresso tecnológico e o homo faber como mecanismos ensejadores de uma nova ética, 51 3.3.2.2 Semelhanças e diferenças das éticas de Apel, Jonas e Aristóteles, 52 4 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS QUANTO AOS ATORES DO CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCENTRICA 4.1 Espécies de macroéticas , 54 4.2 A ética antropocêntrica: características básicas, 55 4.3 A ética ecocêntrica: características básicas, 55 5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO EVOLUCIONISMO 5.1 O dualismo na visão de animal-máquina de Descartes, 59 5.2 Algumas objeções ao dualismo anteriores e posteriores a Descartes, 61 5.3 Leitura antropocêntrica da teoria da evolução de Darwin, 63 5.3.1 O positivismo e o determinismo-evolucionista de Darwin, 63 5.3.2 Darwin: autor antropocêntrico ou ecocêntrico?, 64 5.3.3 A origem das espécies e o capitalismo, 65 6 FUNDAMENTAÇÔES TEÓRICAS DE UMA ÉTICA ECOCÊNTRICA E A PERSONALIDADE JURÍDICA 6.1 A evolução da consciência ecocêntrica em razão da destruição ocasionada pelo homo faber: uma visão sociológica, 69 6.1.1 Labor, trabalho e ação: três atividades marcantes do homem no mundo, 69 6.1.2 O homo faber na visão de Hannah Arendt, 71 6.1.3 A instrumentalização do mundo e a destruição da natureza, 72 6.1.4 Conscientização ecológica e a “deep ecology” como suportes ideológicos para os movimentos ambientais, 73 6.2 A teoria de Gaia e o ecocentrismo cosmogênico de James Lovelock, 78 6.3 A metodologia ecocêntrica da autopoiese de Maturana: o organismo e o ambiente como interconstituintes, 81 6.4 Dificuldades de transposição da ética ecocêntrica para a ciência jurídica: a concepção de personalidade como atributo exclusivo do homem, 85 6.4.1 Personalidade: conceitos básicos, 85 6.4.2 Personalidade e a escravidão, 87 6.4.3 Personalidade e a pessoa jurídica, 87 6.4.4 Personalidade e incapacidade, 88 6.4.5 Os entes não-humanos podem potencialmente ser personificados ?, 90 52 53 PARTE II A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE: A RIQUEZA DOS RECURSOS NATURAIS COMO DIREITO DO HOMEM PRESENTE E FUTURO 1 AS DIMENSÕES (GERAÇÕES) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O FENÔMENO ECONÔMICO 1.1 Dimensões dos direitos fundamentais, 94 1.2 Evolução dos direitos fundamentais na Idade Moderna, 97 1.2.1 Direitos fundamentais de primeira dimensão, 97 1.2.2 Direitos fundamentais de segunda dimensão, 102 1.2.2.1 Passagem do Estado Liberal para o Estado Social, 102 1.2.2.2 Conceito e fundamentos dos direitos fundamentais de segunda geração, 107 1.2.3 Direitos fundamentais de terceira dimensão, 109 2 CORRELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS ECONÔMICOS E AS DIMENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS 2.1 O liberalismo e os direitos de primeira geração, 114 2.2 O intervencionismo e os direitos de segunda geração, 116 2.3 O neoliberalismo, a globalização e os direitos de terceira geração, 118 3 O MEIO AMBIENTE E SUA VINCULAÇÃO JURÍDICA AOS SISTEMAS ECONÔMICOS 3.1 O princípio da defesa do meio ambiente como mecanismo conformador da Ordem Econômica, 124 3.2 O desenvolvimento sustentável como ética de desenvolvimento com a harmonização do econômico e do ecológico, 129 3.2.1 Defesa do meio ambiente como objetivo da ordem econômica, 129 3.2.2 O conceito de desenvolvimento sustentável e a ética do desenvolvimento, 130 4 ECONOMIA DO MEIO AMBIENTE: BUSCA DA INCORPORAÇÃO DAS EXTERNALIDADES AMBIENTAIS 4.1 Crescimento econômico contemporâneo e degradação ambiental: propostas de conciliação, 134 4.2 Economia ambiental, 135 4.2.1 Economia ambiental e a economia do bem estar, 135 4.2.2 Os componentes da valoração econômica ambiental, 138 4.2.3 Métodos de valoração econômica para determinação do valor de uso e de opção, 140 4.2.4 Críticas metodológicas e éticas à valoração ambiental, 141 5 USO DE INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NAS POLÍTICAS AMBIENTAIS: INTEGRAÇÃO DO JURÍDICO E DO ECONÔMICO 5.1 Instrumentos econômicos: introdução, 143 5.2 Instrumentos econômicos na forma de incentivos estatais, 145 5.3 Instrumentos econômicos na forma de onerações estatais, 147 53 54 PARTE III O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR: SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE 1 O VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA 1.1 O valor e suas características na ontologia axiológica de Johannes Hessen, 150 1.2 Economia e ecologia: duas ciências afins com valorações diversas para o meio ambiente no tratamento do efeito estufa, 152 1.2.1 Ecologia e economia: conceitos afins com pautas valorativas distintas, 152 1.2.2 O efeito estufa (aquecimento global) para a economia e para a ecologia, 154 1.2.2.1 O efeito estufa (aquecimento global): conceituação e problemática, 154 1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia, 156 1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia, 157 1.2.3 As diferentes hierarquias de valores presentes no debate internacional do crescimento econômico e do efeito estufa, 159 1.3 Os recursos naturais como valores positivos com diferentes hierarquias para a Economia e para a Ecologia, 160 1.3.1 Os recursos naturais como valor, 160 1.3.2 O valor dos recursos naturais para a economia, 161 1.3.2.1 Os recursos naturais e o sistema econômico de produção, 161 1.3.2.2 O valor e o preço dos recursos naturais, 162 1.3.3 O valor dos recursos naturais para a ecologia, 165 1.3.3.1 Origem do termo ecologia e as bases da sua valoração em Haeckel, 165 1.3.3.2 Os animais e o biótopo: valores equivalentes integrantes do ecossistema, 169 2 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO MEIO AMBIENTE 2.1 O utilitarismo e a teoria do valor de uso: o paradoxo do valor do diamante, da água e do ar para Bentham e Stuart Mill, 171 2.2 A idolatria do mercado na Globalização e a mitigação da proteção estatal ao meio ambiente: o caso Tuna-Dolphin, 172 2.3 Críticas de cunho ético à valoração do meio ambiente pelo mercado, 175 2.3.1 O meio ambiente: valor de troca, valor-trabalho ou valor intrínseco, 175 2.3.2 Críticas aos valores de mercado, decorrentes do valor intrínseco da Natureza e suas diferentes fundamentações, 178 3 O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL 3.1 O horror ambiental e a necessidade do Estado interferir no mercado com visão sistêmica, 181 3.1.1 Os limites do Estado e a indispensável prevalência do político sobre o econômico na visão de HABERMAS, 181 3.1.2 O horror ambiental, oriundo da falta de visão metodológica no trato da questão ambiental, 186 3.2 Análise da crise ecológica por LUHMANN 3.2.1 O enfoque sistêmico social como mecanismo de análise da crise ambiental, 188 3.2.2 Breve análise dos conceitos fundamentais da visão sistêmica social autopoiética de Luhmann, 190 54 55 3.2.3 A análise da crise ecológica por LUHMANN com base nos subsistemas funcionais relevantes, 194 3.3 As externalidades ambientais do mercado e o papel do direito econômico, 197 3.3.1 As externalidades ambientais do mercado, 197 3.3.2 Diferentes teorias sobre a relação Mercado e Direito na visão de NORBERT REICH, 198 3.3.2.1 A visão sistêmica de Norbert Reich, 199 3.3.2.2 O mercado e o direito como instrumentos de orientação social: semelhanças e diferenças, 200 3.3.3 O papel do Direito Econômico de proteção ambiental: integração normativa eficiente do Jurídico e Político no Econômico, 203 3.3.3.1 Formas de intervenção do direito no mercado, 204 3.3.3.2 O papel dos instrumentos econômicos (microdireção indireta) e a ação participativa dos agentes relevantes do mercado (ação concertada) na proteção ambiental, 205 4 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS ESFERAS SOCIAL, ECONÔMICA E ECOLÓGICA NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 4.1 A necessidade de integração normativa dos diferentes valores subjacentes aos diferentes subsistemas funcionais, 207 4.2 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração das esferas social, econômica e ambiental, 207 4.2.1 Por que a preocupação com a esfera social?, 208 4.2.2 A Tragédia dos Comuns de HARDIN e o desenvolvimento sustentável, 208 4.2.3 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração no âmbito normativo interno e internacional, 211 Parte IV A COBRANÇA PELO USO DE ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E ECONÔMICA NO CASO CONCRETO 1 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL FUNDAMENTAL ONTEM, HOJE E AMANHÃ 1.1 A água na visão cosmogênica dos filósofos pré-socráticos, 217 1.2 A água como símbolo cultural da integração do homem com a Natureza, 219 1.3 A água como recurso natural limitado, 223 1.3.1 A água no mundo, 223 1.3.2 A água no Brasil, 225 1.3.2.1 Situação hídrica brasileira, 225 1.3.2.2 A água, hidroeletricidade e o racionamento de energia elétrica ocorrido em 2001, 229 1.4 A água como o diamante azul do século XXI, 232 1.4.1 A água como recurso escasso valioso, 232 1.4.2 Guerras pela água e o papel do direito internacional, 234 1.4.3 A água e o desenvolvimento sustentável, 235 2 A CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS E A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À ÁGUA 2.1 Diferentes modelos internacionais de gestão, 237 2.1.1 Visão geral dos modelos analisados no direito comparado, 237 2.1.2 Estados Unidos da América, 238 2.1.2.1 Situação hídrica americana: um retrato histórico e geográfico, 238 55 56 2.1.2.2 Riparian rights, 239 2.1.2.3 Prior appropriation, 239 2.1.2.4 A água americana: bem público com permissão de uso privado com monitoramento federal e estadual, 240 2.1.3 França 2.1.3.1 Situação hídrica, 242 2.1.3.2 Ordenamento institucional e legal, 243 2.1.3.3 Preço da água, 245 2.1.4 Alemanha 2.1.4.1 Situação hídrica, 246 2.1.4.2 Ordenamento institucional e legal: as associações de recursos hídricos e a gestão integrada, 247 2.1.4.3 Preço da água, 250 2.2 Contribuições dos tratados e das conferências internacionais à gênese de um direito fundamental de acesso à água, 251 2.2.1 Argumentos contemporâneos favoráveis à construção do direito fundamental de uso da água, 251 2.2.2 Conferências internacionais anteriores à ECO92, 255 2.2.3 Agenda 21, 256 2.2.4 Conferências internacionais posteriores à ECO92, 257 3 A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS (LEI FEDERAL N. 9.433/97) E SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES 3.1 Importância dos princípios na compreensão da cobrança pelo uso da água, 261 3.2 A água doce como bem de domínio público: a esfera pública da água, 263 3.3 A água doce como recurso natural limitado com valor econômico intrínseco: a esfera privada da água, 266 3.4 A gestão centrada na multiplicidade de usos da água e na proteção de preceitos éticos vinculados à vida dos elementos sensitivos da biocenose, 269 3.5 A gestão de água descentralizada e participativa nos Comitês da bacia hidrográfica, 270 4 A COBRANÇA PELA UTILIZAÇÃO DA ÁGUA NA POLÍTICA NACIONAL BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS 4.1 A cobrança como medida de valorização do recurso hídrico na esfera pública e privada, 275 4.2 Natureza jurídica privada da água e a sua classificação como bem, 278 4.2.1 Como podem ser caracterizados os recursos hídricos na classificação dos bens prevista no novo Código Civil Brasileiro, 278 4.2.2 A água e a outorga de direitos de uso são um bem móvel ou imóvel?, 279 4.2.3 A água e a outorga de direitos de uso são bens fungíveis ou infungíveis?, 282 4.2.4 A água e a outorga de direitos de uso são bens consumíveis ou inconsumíveis?, 283 4.2.5 A água e a outorga de direitos de uso são bens divisíveis ou indivisíveis?, 284 4.2.6 A água e a outorga de direitos de uso são bens singulares ou coletivos?, 285 4.2.7 A água e a outorga de direitos de uso são bens principais ou acessórios?, 285 4.2.8 A água e a outorga de direito de uso são bens públicos federais, estaduais, distritais ou municipais?, 287 4.3 Natureza jurídica da outorga 4.3.1 A natureza jurídica da outorga pelo uso da água e o fato de a água ser “bem de uso comum”, 288 4.3.2 Deficiências normativas na especificação dos instrumentos de outorga e na outorga de lançamento de resíduos, 291 4.4 Natureza jurídica da cobrança pelo uso da água 56 57 4.4.1 A cobrança pelo uso da água como um instrumento econômico, 293 4.4.2 A natureza jurídica da cobrança pelo uso da água: preço público, 295 5 DESAFIOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DA GESTÃO INTEGRADA PARTICIPATIVA POR BACIA EM PAÍS FEDERADO 5.1 Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGERH) e o SISNAMA: um paralelo necessário das competências hídricas e ambientais dos entes federados brasileiros, 297 5.2 O interesse local, a ocupação do solo e a atuação reflexa dos municípios na gestão das águas, 301 5.3 A gestão integrada federativa do saneamento da região metropolitana: engenhosa solução legislativa para tormentoso problema jurídico, 303 5.4 Comitê da Bacia do São Francisco: exemplo concreto da complexidade de gestão de bem público móvel com diversidade de dominialidade, 306 6 MECANISMOS NORMATIVOS DE RESOLUÇÃO DA LIDE PELA ÁGUA 6.1 Conflitos de uso e a categorização dos aspectos éticos, econômicos e normativos da cobrança, 312 6.2 A ética de solidariedade na utilização da água – bem de domínio público, 313 6.3 A ética utilitarista na utilização da água – bem econômico, 314 6.4 A ética ecocêntrica na utilização da água – bem ecológico do homem e do ecossistema, 315 6.5 A ética discursiva participativa na gestão hídrica – o consenso como forma de escolha dos múltiplos usos da água de uma bacia hidrográfica 6.5.1 A regra de ouro para resolução dos conflitos hídricos no Estado Federado brasileiro: o consenso do comitê de bacia, 318 6.5.2 O Comitê de Bacia como expressão do princípio da subsidiariedade e da prevalência da participação social na resolução dos conflitos hídricos, 319 6.5.3 A ética discursiva participativa de HABERMAS e a busca de consenso no Comitê de Bacia, 321 6.5.4 A relevância do caso concreto para integração das distintas éticas previstas na Política Nacional dos Recursos Hídricos: um paralelo com o pluralismo ético do pragmatismo americano, 327 6.5.4.1 O pluralismo ético como resposta ao ceticismo do relativismo, 327 6.5.4.2 O pluralismo ético como mecanismo de valorização do caso concreto sem desrespeito aos valores sociais normatizados, 329 CONCLUSÕES, 331 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 338 57 58 INTRODUÇÃO 1 AS DIMENSÕES DO FENÔMENO AMBIENTAL E SUA SÍNTESEVALORATIVA PELA NORMA AMBIENTAL DE RECURSOS HÍDRICOS Na presente tese, demonstra-se a superação e integração das diferentes dimensões éticas e econômicas da Natureza por meio da norma jurídica hídrica brasileira, concretizada na cobrança pelo uso de água prevista na Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/97). Para tal objetivo ser concretizado, analisa-se, separadamente, a dimensão éticoecológica e econômica do meio ambiente, na busca de um caminho de valoração normativa estatal de aspectos éticos e econômicos de utilização da água. O bem ecológico, desde os primórdios do homem, sempre sofreu influência do fenômeno econômico. Tal interação recíproca pode ser bem caracterizada pela origem comum da etimologia da ciência “econômica” e “ecológica”.1 Ademais, não há dúvida de que os direitos de terceira geração, também chamados “novos direitos”, estão vinculados ao fenômeno econômico. No âmbito dos direitos de terceira geração, em especial, na proteção ambiental e no desenvolvimento, a relação economia e meio ambiente mostra-se cada vez maior.2 O direito ao meio ambiente saudável, direito fundamental, positivado nas Constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados direitos de solidariedade. Por outro lado, na decantação de suas características básicas, observa-se, ontologicamente pela noção de ecossistema, uma maior preocupação com os outros entes componentes do sistema do que a ciência econômica procura valorar ao considerar o meio ambiente como um mero fator de produção. Assim, verificou-se, no passado e na atualidade, a permanente tensão dialética entre o ser humano e os outros seres animados e inanimados que, juntos, formam um todo indissociável interdependente. A água, por ser o sangue de nosso planeta, declara esta dialética. 1 A palavra economia tem sua origem na expressão grega Oikonomia, composta a partir de dois radicais gregos: Oikos, que significa casa; e Nomos, que significa lei ou regra. Etimologicamente, economia representa o conhecimento prático da administração doméstica. Ecologia, por sua vez, expressão desconhecida na civilização grega, foi composta por Oikos e por Logos, esse último radical significando reflexão ou estudo. Assim, pode-se entender a ecologia, também, como ciência da nossa casa. 2 A relação de proximidade entre a proteção ambiental e o desenvolvimento no âmbito da comunidade humana no Brasil, a nível normativo, pode ser corroborada com a presença desses elementos na ordem econômica instituída na Constituição Federal de 1988, verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] VI - defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e sociais”. 58 59 À chamada visão antropocêntrica (aquela na qual a Natureza existe sempre como valor instrumental cujo destinatário exclusivo é o homem) contrapõe-se uma visão ecocêntrica, que considera relevantes todas as coisas animadas e inanimadas do meio ambiente, possuindo valor que transcende a utilização instrumental pelo homem. Esta visão de que há outros interesses além dos humanos na proteção do meio ambiente, opõe-se à visão antropocêntrica trazida, dentre outros, na Idade Moderna, por Descartes (1996, p. 65) (“animal-máquina”)3 e busca dar novas luzes à dimensão conflituosa e perene da relação Homem e Natureza. Constitui-se, pois, em nova forma de visualização da questão ambiental trazida pela filosofia contemporânea (environmental ethics), que não pode ser desprezada pelo Direito. Nesse sentido, Taylor (1997, p. 32) afirma que existem quatro princípios marcantes da ética ambiental ecocêntrica: a) que os homens são membros da teia da vida, assim como os outros seres vivos; b) que a espécie humana encontra-se em uma situação de interdependência com as outras espécies e com os elementos físicos, químicos e biológicos do ambiente; c) todos os seres são importantes como indivíduos únicos dotados de dignidade; d) os seres humanos não são necessariamente superiores aos outros seres. A necessidade de integração sistêmica das dimensões éticas (antropocêntrica e ecocêntrica) e econômica junto aos recursos hídricos mostra-se, portanto, necessária para sua efetiva proteção. Os ecossistemas da Terra são sustentados e interligados pela água, que promove o equilíbrio da biocenose. Nesse aspecto, Selborn (2002, p. 46) afirma: Com efeito, a situação é apresentada muitas vezes como um conflito entre demandas competitivas, como se estivéssemos diante de uma opção entre a água para a populacão e para a vida selvagem. Ora, isso não leva em conta os benefícios indiretos que os ecossistemas sadios proporcionam à humanidade. Indaga-se, pois, se é possível conciliar as diferentes dimensões éticas da proteção ambiental entre si com a dimensão econômica caracterizada pela valoração da água como um input e output do processo econômico (água como fator de produção e como resíduo do processo produtivo). A questão ambiental ganha novos matizes na definição de “valor” em uma ética voltada para uma visão que ultrapassa a noção de que o homem é o único ser com fim em si mesmo (valor intrínseco) e a da visão econômico-utilitarista do valor de mercado. Borbulham inúmeras fundamentações filosóficas ecocêntricas, que defendem o valor intrínseco dos seres não-humanos e do próprio ambiente natural. A passagem do Estado Social para o Estado Neoliberal (ou Estado Regulador), com a conseqüente diminuição seletiva das atividades estatais, provoca uma necessária revisão dos sistemas de proteção nacional e internacional dos direitos humanos, devendo ser sintetizada pela norma jurídica, para que se possa garantir uma efetiva proteção dos direitos fundamentais. Por outro lado, na decantação das características básicas do meio ambiente, observase, cada vez mais, a sua correlação com os sistemas econômicos. As amarras que unem o econômico e o ambiental têm sua expressão maior na própria origem do fenômeno ambiental 3 Em sua filosofia, Descartes dividiu a criação em duas essências: a res cogitans (a que pensa) e a res extensa (a que ocupa espaço), denominando os entes físicos não-humanos do mundo como objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento. 59 60 que, muitas vezes, interferiu e sofreu os efeitos do fenômeno econômico, havendo, na sociedade moderna do século XXI, exacerbação desta influência recíproca. Para Sagoff (1996, p. 44), entretanto, nem todas as questões políticas devem ser vistas como econômicas ou utilitaristas – baseadas na opção que garanta a máxima satisfação dos indivíduos, vistos como consumidores ou fornecedores de bens e serviços, inexoravelmente amarrados à Lei do Mercado. Kant (apud Sagoff 1996) destaca que as políticas públicas devem ser julgadas com base maior na razão que nas preferências. Este ponto de vista ressalta a noção de bem comum como algo passível de conhecimento. Assim, determinados tópicos devem ser buscados na esfera pública, que ilumina a esfera privada, por envolverem questões éticas transcendentes às econômicas. Para Sagoff (1996, p. 45), as questões ambientais, certamente, encontram-se nas elencadas à discussão ética e não só à discussão econômica. No mesmo sentido, Gleick (1993c, p. 111), sobre a falta de água em diversas regiões do mundo, afirma que: Garantir uma adequada qualidade de vida para a população mundial presente e futura requer cuidado com os nossos recursos atuais fundamentais como a água [...] deve-se lutar, pois, para que a água fresca seja disponível para qualquer pessoa na Terra. Habermas (1980, p. 50) afirma que o Estado deve controlar a decisão dos agentes econômicos para corrigir ou compensar os efeitos disfuncionais dos mecanismos de mercado e do processo de acumulação. Reich (1985, p. 55), do mesmo modo, defende, comentando as teorias de Habermas sobre as funções do Estado, que este deve propiciar o cumprimento dos pressupostos da produção econômica de acumulação do capital, não se esquecendo, entretanto, de controlá-lo, para afastar os efeitos nocivos secundários do Mercado. Como expressão da busca de integração da dimensão econômica e ética, ao lado das tradicionais normas sancionadoras-regulativas da proteção do meio ambiente, surgem novos mecanismos estatais jurídicos, vinculados ao fenômeno econômico. Assim, o Estado brasileiro, em sua política ambiental, passa a utilizar-se de instrumentos econômicos, tal como a cobrança pelo uso da água, recentemente introduzida no Brasil pela Lei nº 9.433/97.4 A nova ótica dada ao bem ambiental de uso comum – água – considerada, pela referida legislação, recurso natural finito e de valor econômico, constitui uma sensível mudança de paradigma protetivo ambiental. O bem ambiental, originariamente, considerado res nullius e res derelicta passa a ter “valor de mercado”, “valor intrínseco” e “valor jurídico”. Destaca-se a síntese feita pela norma jurídica entre a tese do “meio ambiente como valor de mercado” e a antítese do “meio ambiente como valor intrínseco”.5 Por tudo isso, salienta-se, na presente pesquisa, a existência de uma integração normativa da dimensão ética e econômica da proteção ambiental no estudo da cobrança pelo uso da água, instituída pela atual Lei de Política Nacional dos Recursos Hídricos. 4 A Lei 9.433 de 8 de janeiro de 1997 institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta, dentre outros, o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, verbis: “XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. 5 O artigo primeiro da Lei 9.433/97 prevê que: “[...] II – a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico; III – em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais”. 60 61 2 A ÁGUA COMO METÁFORA DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS DIMENSÕES ÉTICAS E ECONÔMICA DO HOMEM COM A NATUREZA O assunto é de relevante interesse, haja visto a estreita relação do Homem e da Natureza com a água. A disponibilidade hídrica é condição de sobrevivência do homem e do ecossistema. Ademais, o desenvolvimento da pesquisa justifica-se, porque o objeto da tese, apesar de sua relevância e atualidade, até hoje foi pouco explorado pelos doutrinadores. Embora existam inúmeras obras sobre o direito ambiental, quase nada há sobre a proteção ambiental hídrica realizada pelo Estado em análise integradora da dimensão ética e econômica no contexto do fenômeno globalização. A tônica das obras brasileiras é a análise pontual do direito ambiental positivo, no qual os recursos hídricos aparecem como um Capítulo de menor importância, esquecendo-se da intensa correlação da água com os sistemas econômicos (dimensão econômica) e com os fundamentos últimos da justificação da proteção hídrica (dimensão ética do homem e do ecossistema). Há diversas obras, ensaios e publicações jornalísticas sobre a degradação hídrica, sobre reflexos econômicos, sobre questões éticas e sobre a globalização. Entretanto, tais obras raras vezes correlacionam os temas, tratando de cada um deles de forma isolada, esquecendose da necessária integração sistemática. Deve-se assinalar, também, a existência de estudos sobre os direitos sociais e a globalização; entretanto, com relação ao tema do papel normativo do Estado na proteção ambiental hídrica, no contexto da globalização econômica que superestima o mercado, não há trabalhos monográficos de que se tenha conhecimento no âmbito da pesquisa acadêmica universitária. Por outro lado, a questão da exploração dos recursos hídricos é tema contemporâneo e objeto de grandes controvérsias. A política nacional de recursos hídricos, recentemente positivada em legislação infra-constitucional, possui inúmeras novidades no campo ambiental e econômico, tal qual a cobrança pelo uso da água prevista nos arts. 19 a 22. A água, nessa inovadora legislação, passa a ser reconhecida como bem econômico e incentiva-se a racionalização do seu uso. Os recursos hídricos6 são, pois, retirados da categoria de res nullius e de res derelicta.7 Torna-se, pois, efetiva a extinção do domínio privado da água doce8 e a implantação de seu domínio público, preconizado na Carta Magna de 1988. 6 No presente trabalho, assim como na legislação brasileira federal (Lei 9.433/94, art. 1º), não se distingue “água” de “recursos hídricos”. Em sentido contrário, Rebouças (1999, p. 1) afirma: “O termo água refere-se, regra geral, ao elemento natural, desvinculado de qualquer uso ou utilização. Por sua vez, o termo recurso hídrico é a consideração da água como bem econômico, passível de utilização com tal fim”. 7 O art. 19 da Lei 9.433/97 afirma: “A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I – reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água; III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos”. 8 “A classificação mundial das águas, feitas com base nas suas características naturais, designa como água doce aquela que apresenta teor de sólidos totais dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/l. As águas com STD entre 1.000 e 10.000 mg/l são classificadas como salobras e aquelas com mais de 10.000 mg/l são consideradas salgadas” (REBOUÇAS, 1999, p. 1). 61 62 Remonta-se, com tal tratamento, a uma preocupação do início da civilização ocidental, já existente na filosofia dos pré-socráticos, mais especificamente na afirmação de Tales de Mileto apud Kirk (1996, p. 82) de que: “A terra flutua na água, que é de certo modo a origem de todas as coisas”. Cheia de significados, a água é um elemento da vida que a evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários. Nesse sentido, Eliade (1967, p. 127) destaca o aspecto simbólico da água afirmando que “Las Aguas simbolizam la suma universal de las virtualidades; [...] preceden a toda forma y soportan toda creación”. Assim, na preocupação econômica com a água, encontra-se, também, uma preocupação ética adormecida, que remonta aos primórdios da origem da civilização moderna e foi trazida à tona na Agenda 21 (1997, cap. 18, p. 331), que prevê que a “água é necessária em todos os aspectos da vida”. A cobrança pelo uso da água, portanto, pode ser vista como uma metáfora, um símbolo contemporâneo da síntese de diferentes visões éticas e econômicas, garantidoras da integração do Homem com a Natureza (JUNG, 1964, p. 20). Por outro lado, a pesquisa a ser desenvolvida pode esclarecer pontos obscuros no processo de preservação ambiental brasileira, em especial de seus recursos hídricos, e na conseqüente realização dos preceitos constitucionais de uma política nacional de recursos hídricos (garantidora das aspirações de qualidade de vida colocadas em nossa Carta Magna), sem que se perca a noção da crescente integração das economias intra-estatais (economia dos estados-membros da Federação) e internacionais. O Brasil destaca-se no cenário mundial pela grande descarga de água doce dos seus rios, cuja produção hídrica - 177.900 m3/s e mais 73.100 m3/s da Amazônia internacional representa 53% da produção de água doce do continente Sul Americano (334.000 m3/s) e 12% do total mundial (1.488.000 m3/s) (REBOUÇAS, 1999, p. 29). Esses valores, aparentemente, caracterizariam a nossa abundância de água doce, o que tem servido de suporte à cultura do desperdício da água disponível, à não realização dos investimentos necessários ao seu uso e proteção mais eficientes, e à sua pequena valorização econômica, isto é, a água tem sido considerada como um bem gratuito de uso comum. Entretanto, o estigma da escassez de água fica caracterizado, quando se verifica que a densidade de população na Região Amazônica é de menos de 2 a 5 hab/Km2, onde a produção hídrica – Amazonas e Tocantins – é de 78% do total nacional. A densidade demográfica já varia entre 5 e 25 hab/Km2 , na bacia do rio São Francisco, com apenas 1,7% do total, e é da ordem de 6% na bacia do rio Paraná, cuja densidade de população varia entre 25 e mais de 100 hab/Km2 (REBOUÇAS, 1999, p. 29). Busca, pois, de forma pragmática, não só justificar os direitos do homem, mas, principalmente, protegê-los, ressaltando o papel político do Estado de proteção dos direitos fundamentais, por meio de instrumentos econômicos e regulativos eficientes, sem a perda do necessário suporte filosófico. Finalmente, considerando-se os crescentes processos de desenvolvimento tecnológico, industrial, humano e de urbanização, além da explosão demográfica e da escassez de recursos naturais, o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado e o acesso racional dos recursos hídricos são interesses da ciência jurídica que, hoje, deve ter papel ativo para moldar as condutas, amparando os direitos fundamentais de acesso à água, qualidade de vida e desenvolvimento (plano do dever ser) – valores imprescindíveis da sociedade pós-moderna – e implantando-os na realidade social brasileira (plano do ser) . 62 63 3 ANÁLISE DAS PARTES COMPONENTES DA PRESENTE TESE 3.1 VISÃO GERAL DAS PARTES, DOS SEUS OBJETIVOS E DA METODOLOGIA USADA Tendo em vista a amplitude do tema, o próprio objeto da tese a ser investigado (integração normativa de diferentes aspectos da água – éticos e econômicos) e a correlação de diferentes objetos do conhecimento (a filosofia ambiental, a economia ambiental e o direito ambiental com ênfase nos recursos hídricos), optou-se por dividir a análise, em um primeiro momento, de cada um dos objetos de estudo. Em seguida, os objetos são correlacionados na noção de “valor” – elemento comum às ciências econômica, ética e jurídica – e integrados à análise dogmática da cobrança pelo uso da água. Na primeira parte da monografia – A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: pluralidade de fundamentos para a necessária evolução da visão antropocêntrica para a ecocêntrica – analisa-se o surgimento de uma macroética ambiental, vinculada à realidade tecnológica e globalizada contemporânea, que se dirige à conduta, não do indivíduo – como ocorre com a ética aristotélica –, mas sim do coletivo (macroética). Descreve-se a ética da coletividade e da co-responsabilidade, que surgem no contexto das éticas discursivas contemporâneas, construindo uma ponte entre a teoria e a realidade. Nas justificações e nas finalidades da criação de macroéticas ambientais, classificam-se dois grandes grupos: o antropocentrismo (o homem é o destinatário exclusivo da proteção da natureza) e o ecocentrismo (os seres animados e as coisas inanimadas, juntamente com o homem, são os destinatários da proteção ambiental). Busca-se analisar as abordagens teóricas e práticas dessas macroéticas contemporâneas e as dificuldades de implementação destas (especialmente a ecocêntrica estrita, que defende a titularidade de valores morais transcendentes à valoração humana para os entes da natureza) nas normas jurídicas. Analisam-se, da mesma forma, nesta parte, as diversas teorias sobre a relação conflituosa entre o homem e a natureza, para melhor compreensão das características protetivas do meio ambiente no mundo contemporâneo. Em um segundo momento – A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE: a riqueza dos recursos naturais como direito do homem presente e futuro– correlaciona-se, de forma específica e delimitada, ao fenômeno econômico e às diferentes gerações de direitos fundamentais, com ênfase para os direitos de terceira geração, notadamente o direito a um meio ambiente sadio e ao desenvolvimento sustentável que se preocupa com a humanidade em uma solidariedade transgeracional. Pesquisa-se, ainda, a busca de integração do fenômeno ambiental e do fenômeno econômico por meio da Economia do Meio Ambiente e dos Instrumentos Econômicos de proteção ambiental, resposta do Neoliberalismo para a proteção do meio ambiente. Princípios como o do poluidor-pagador (concretizados nos instrumentos econômicos) são analisados nesta zona de transição entre o jurídico e o econômico-ambiental. Na terceira parte – O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR: superação e síntese dos aspectos éticos e econômicos do meio ambiente – correlacionam-se os dois objetos de estudo das partes anteriores (DIMENSÃO ÉTICA e DIMENSÃO 63 64 ECONÔMICA) sob a ótica do “valor”, denominador comum do Direito (e do Estado), da Economia e da Filosofia Moral, ressaltando o papel integrador da norma jurídica, na visão de desenvolvimento sustentável, previsto como mecanismo de harmonização do desenvolvimento econômico e da dimensão ético-ecológica da proteção ambiental. Na quarta parte – A COBRANÇA PELO USO DE ÁGUA: mecanismos normativos plurais e participativos de integração ética e econômica – desenvolve-se a tese propriamente dita, por meio da análise da legislação federal de recursos hídricos (Lei 9.433/97) e das teses secundárias corroboradas nas partes anteriores, com a utilização dos marcos teóricos, desenvolvidos nas duas primeiras partes e já unificados na terceira parte (dimensão ética e econômica do meio ambiente normativamente integrada pelo Estado Regulador). Ressalta-se a presença de mecanismos normativos de integração e síntese da lide da água, fundados em éticas plurais e aparentemente contraditórias que se superam e integram, de forma discursiva-participativa, no caso concreto do uso da água em uma determinada bacia hidrográfica. 3.2 CONTORNOS CONCEITUAIS E METODOLÓGICOS DO TRABALHO A nível conceitual, o objeto desta tese – cobrança pelo uso da água como mecanismo de integração valorativa – vincula-se às águas doces superficiais do Brasil, ou seja, as águas interiores brasileiras dos corpos d´água superficiais (rios e lagos), excluídas as águas subterrâneas, do mar, as águas internacionais e as águas minerais que se regem por outras normas com princípios específicos, que não serão abordados no presente trabalho. Também vincula-se ao núcleo do presente trabalho a legislação federal de águas doces com concentração nos institutos da outorga e da cobrança pelo uso da água na Lei 9.433/97. Não almeja o presente trabalho, como tema principal, a análise da vasta legislação estadual hídrica, abordada, em certos momentos, de forma pontual meramente exemplificativa. Do ponto de vista do método, utiliza-se uma visão multidisciplinar na abordagem do objeto da pesquisa, como método mais adequado para o tratamento do seu objeto que possui, em si, também natureza multidisciplinar; não obstante seja dada ênfase a aspectos jurídicos por vincular-se o presente trabalho à tese de doutoramento nesta área do conhecimento. Apesar da visão multidisciplinar impregnar todo o conteúdo do trabalho, pode-se, entretanto, caracterizar as quatro partes do estudo em função da predominância de distintas “áreas de conhecimento” a ela relacionadas. A própria estruturação da tese baseou-se na predominãncia das áreas de conhecimento utilizadas (“dimensões éticas, econômicas, político-sociais e jurídicas do meio ambiente e dos recursos hídricos”). Assim, a primeira parte almeja em primeiro plano, uma visão filosófica, seguida de visão histórica, jurídica e científica da relação homem-natureza. Nesse aspecto, buscou-se analisar a relação do homem com a natureza do ponto de vista histórico-cronológico (“O ser humano e a natureza na história”), jurídico (“Direito ao ´meio ambiente sadio’: direito exclusivo do homem?” e segunda parte de “Fundamentações teóricas de uma ética ecocêntrica e a personalidade jurídica”), filosófico (“Ética aristotélica e a macroética ambiental”, “Espécies de macroéticas quanto aos atores do consenso: noções básicas da ética 64 65 antropocêntrica e ecocêntrica”, “Ética antropocêntrica: na visão do cartesianismo e do evolucionismo”) seja na ética clássica grega, seja na environmental ethics americana, seja na doutrina tedesca selecionada (JONAS, 1995; APEL, 1994; ARENDT, 2001). Deve-se ressaltar que na visão científica (ciências físicas e biológicas) da primeira parte, muitas vezes há confluência de elementos filosóficos intercalados com o conhecimento científico, como ocorre com as partes nas quais são utilizados autores como Darwin e Descartes, propositalmente escolhidos pelas características de suas obras, que abarcam conceitos não delimitados claramente como científicos ou filosóficos. Já a segunda parte concentra-se, em primeiro plano, na visão econômico-jurídica dos direitos fundamentais e do meio ambiente, bem como no surgimento contemporâneo da economia ambiental (braço protetivo do meio ambiente na área econômica neoclássica). Nesse sentido, buscou-se analisar, em primeiro momento, a relação do homem com a natureza do ponto de vista econômico-jurídico, na correlação dos sistemas econômicos históricos e contemporâneos (liberalismo, socialismo e neoliberalismo) com as gerações (dimensões) dos direitos fundamentais (“As dimensões (gerações) dos direitos fundamentais e o fenômeno econômico”; “Correlação entre os sistemas econômicos e as dimensões de direitos fundamentais”; “O meio ambiente e sua vinculação aos sistemas econômicos”). A seguir, com vistas ao objeto da tese primária (Cobrança brasileira pelo uso da água como mecanismo de proteção ambiental), desenvolvem-se marcos teóricos basilares sobre a economia do meio ambiente e a juridicização do econômico por meio dos instrumentos econômicos (“Economia do meio ambiente: busca da incorporação das externalidades ambientais” e “Uso de instrumentos econômicos nas políticas ambientais: integração do jurídico e do econômico”). A terceira parte, por outro lado, difere das anteriores, ao buscar, assim como a quarta parte, sintetizar conhecimentos obtidos nas partes precedentes na defesa do papel normativo do Estado de regular o mercado e proteger a sociedade das “externalidades” sociais e ecológicas. Esta parte constitui pré-requisito para a corroboração da tese primária do trabalho, razão pela qual, metodologicamente, foi vista como tese secundária fundamental. Uma vez que não se demonstrasse a necessidade de intervenção estatal na economia contemporânea, mesmo com a predominância da ideologia neoliberal, não se poderia defender, por incongruência lógica, o papel positivo e eficaz da cobrança pelo uso da água (regulada pelo Estado) como mecanismo de integração ética do econômico e do ecológico (tese primária). Almeja-se, nessa parte complexa e ampla, de forma genérica no macroobjeto “meio ambiente”, provar aquilo que a quarta parte demonstrará, de forma específica, no microobjeto recursos hídricos, a saber: que o Estado, por meio do Direito, deve ser um instrumento social de formação e controle do mercado na proteção da sociedade, dos recursos naturais e dos recursos hídricos. Em termos de áreas de conhecimento utilizadas, esta parte une algumas áreas de conhecimento da primeira parte (jurídica, filosófica e científica) com as da segunda parte (econômica, jurídica), cumuladas com uma visão sociológica-filosófica. A construção de uma teoria social do meio ambiente em paralelo a uma teoria axiológica ambiental (já desenvolvida nas partes anteriores, nesta parte completada com visão utilitária econômica de Bentham, Mill e com a ontologia axiológica antropocêntrica de 65 66 Hessen) mostrou-se necessária e imprescindível para o escopo desta parte. Assim, procedeuse à escolha de dois autores germânicos Johannes Hessen (na análise de valor como atributo positivo e negativo inerente à condição humana) e Nicolas Luhmann (na análise sistêmicafuncional da sociedade como uma integração de comunicações binárias, que devem perturbar o Econômico, o Ecológico, o Social, o Político e o Jurídico para a solução da crise ambiental). Assim, na parte filosófica-axiológica geral, desenvolve-se o primeiro capítulo – “O valor do meio ambiente na ecologia e na economia”, na parte filosófica-econômica do utilitarismo, desdobra-se o segundo capítulo – “Críticas de cunho ético às posturas utilitaristas do meio ambiente”. Na porção de visão sócio-jurídico-econômica desenvolve-se o terceiro capítulo – “O direito como instrumento social de formação e controle do mercado na proteção ambiental”. Por fim, para uma abordagem conceitual de transição entre a terceira e a quarta parte desta tese, surge o quarto capítulo – “A necessidade de integração normativa das esferas social, econômica e ambiental (ético-ecológica) no desenvolvimento sustentável”. Na última e quarta parte da tese, desenvolve-se a tese primária de que a cobrança pelo uso da água doce integra as diferentes dimensões da água (ética e econômica) por meio de mecanismos normativos que premiam uma ética discursiva-participativa, na leitura axiológica da Lei 9.433/97. Assim, analisa-se de forma específica os recursos hídricos, sua importância cultural para o homem e para os ecossistemas, sua gestão internacional e nacional, com vistas a identificar a razão e as finalidades éticas de cobrança pelo uso da água. Almeja-se, nessa parte final e nuclear da tese, de forma específica no micro-objeto “recursos hídricos brasileiros”, provar, com base nas premissas construídas nas partes anteriores, que o Comitê de Bacias está dotado de mecanismos normativos baseados em uma ética discursiva, que possibilitam, à luz do caso concreto de determinada Bacia, ponderar os diferentes valores da água (bem de domínio público, econômico e ecológico) resolvendo os seus conflitos por meio de uma ética pluralista-racional. Em termos de áreas de conhecimento utilizadas predomina o enfoque jurídicodogmático à luz da Lei 9.433/97 concretizadora das normas constitucionais pertinentes (“A política nacional de recursos hídricos (Lei Federal n. 9.433/97) e seus princípios estruturantes”, “A cobrança pela utilização da água na política nacional de recursos hídricos”, “Desafios jurídico-institucionais da gestão integrada participativa por bacia em país federado” e “Mecanismos normativos de resolução da lide”). Não obstante, a prevalência da dogmática jurídica nesta parte da tese, desenvolveu-se no estudo da água, também, perspectivas filosóficas (“1. A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã”), científicas (“1.3 A água como recurso natural limitado”), de direito comparado e internacional público (“A contribuição internacional da gestão dos recursos hídricos e a construção de um direito fundamental à água”). 3.3 PARTE I – A DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: PLURALIDADE DE FUNDAMENTOS PARA A NECESSÁRIA EVOLUÇÃO DA VISÂO ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA A natureza, muitas vezes, é excluída do universo das preocupações dos seres humanos. No âmbito jurídico contemporâneo, a natureza é protegida como um direito do homem, tendo, como base imediata, a proteção do próprio ser humano e, com base mediata, a garantia de um ecossistema sadio e equilibrado. 66 67 O homem é o ser, por excelência, provido de personalidade.9 Possui capacidade de ser titular de direitos e obrigações. Os direitos fundamentais são direitos humanos. Não se fala de titularidade de direitos para seres não-humanos, não obstante protejam-se tais seres como bens jurídicos. Os direitos fundamentais, tema característico da pós-modernidade, mostram-se em constante evolução conforme a história demonstra. As dimensões (gerações) de direitos fundamentais evidenciam e procuram sistematizar a constante ampliação das espécies de direitos fundamentais. Por trás, entretanto, das primeiras gerações fundamentais (primeira e segunda geração) pode-se verificar somente uma preocupação de relação harmoniosa do homem com outro homem e do homem com o Estado.10 Os outros entes da natureza são vistos como “coisas fora ou dentro do comércio”. São, entretanto, sempre objetos de direitos subjetivos humanos. Nesse contexto, os direitos de terceira geração buscam proteger a relação do homem com a Natureza, por meio da noção de interesses difusos. Entretanto, não transpõem a barreira protetiva da titularidade exclusiva de direitos do homem, não obstante tais direitos admitam que tal proteção possa ocorrer, também, para as gerações futuras. Indaga-se, pois, sobre a possibilidade de nova visão ética da relação Homem com a Natureza? Podem, os elementos não humanos da Natureza, deixarem de ser objetos e tornarem-se entes com capacidade de terem direitos? Dentre os direitos de terceira geração, o direito ao meio ambiente ocupa papel de destaque no novo milênio; seja pela crescente presença nos documentos internacionais e nacionais, seja pela ênfase dada pela mídia, seja, principalmente, pela importância para a qualidade de vida da humanidade. O direito ao meio ambiente, direito fundamental positivado nas Constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados direitos de solidariedade, ao lado de outras que o diferenciam. O conceito de qualidade de vida une, por exemplo, o direito ao meio ambiente e o direito ao desenvolvimento.11 9 Nesse sentido, o velho Código Civil (Lei nº 3.071, de 1ª de Janeiro de 1916) dispõe no seu art. 2º: “Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”. 10 Sobre as “gerações” dos direitos fundamentais, Cf. BONAVIDES, 1996, p. 516-524. Em termos apertados, os direitos de primeira geração relacionam-se com o liberalismo e correspondem aos direitos de liberdade, aos direitos individuais, aos direitos negativos; a segunda geração de direitos relaciona-se com a socialdemocracia do fim do século XIX, correspondendo aos direitos sociais, econômicos e culturais; direitos a prestações do Estado, direitos à igualdade social e direitos positivos; a terceira geração de direitos surge a partir da consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, que exige a fraternidade, para a proteção do gênero humano, correspondendo ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à paz, ao patrimônio comum da humanidade. 11 Para Derani (1997, p. 77), a expressão “sadia qualidade de vida” no âmbito do direito ambiental tem um aspecto quantitativo (grande número de bens a disposição do ser humano) e, principalmente, um aspecto qualitativo, verbis: “A inserção de tal expressão no direito ambiental brasileiro acaba por denunciar a busca por um aspecto qualitativo, depois das decepções resultantes da adoção de um sentido unicamente quantitativo para designar qualidade de vida, traduzida que era apenas por conquistas materiais. O alargamento do sentido da expressão qualidade de vida, além de acrescentar esta necessária perspectiva de bem-estar relativo à saúde física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito do homem fruir de um ar puro e de uma bela paisagem, vinca o fato de que o meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, porém integrada à vida do homem social nos aspectos relacionados à produção, ao trabalho como também no concernente ao seu lazer”. 67 68 Por outro lado, na decantação de suas características básicas, observa-se, cada vez mais, maior preocupação com os outros entes componentes do sistema “meio ambiente”, nem que seja de forma reflexa. Assim, verifica-se, no passado e no presente, permanente tensão dialética entre o ser humano e os outros seres que, juntos, formam um todo indissociável, interdependente, razão pela qual um não pode ser analisado independentemente do outro. A chamada visão ecocêntrica12 da macroética ambiental, aquela que considera relevante os outros seres integrantes do meio ambiente e que se opõe à visão antropocêntrica cartesiana (“animal-máquina”), busca dar novas luzes à dimensão conflituosa e perene da relação Homem e Natureza. Constitui, pois, nova forma de visualização da questão ambiental, trazida pela Filosofia, que não pode ser desprezada pelo Direito. A visão ecocêntrica mostra-se necessária à evolução da ética ambiental para as circunstâncias atuais de degradação ambiental. Não se trata de uma ética que surge do nada, mas sim de mais uma reação à ação do homo faber dirigida à proteção ambiental. Assim, nos dois primeiros Capítulos desta parte do trabalho (O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA e “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO DO HOMEM?) analisa-se a relação conflituosa de poder entre o homem e a natureza, para criticar, em seguida, a visão atual de que o direito fundamental de terceira geração – meio ambiente ecologicamente equilibrado – seja exclusivo do homem. No terceiro Capítulo (ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL) compara-se a ética individual centrada nas virtudes de Aristóteles com as propostas de criação de uma ética social (macroética) na visão de Karl-Otto Apel e Hans Jonas. No quarto Capítulo, com base na análise da “environmental ethics” americana, diferenciam-se, de forma introdutória, as macroéticas ambientais quanto aos atores do consenso em ética antropocêntrica e ecocêntrica. No quinto e no sexto Capítulo, detalham-se algumas concepções teóricas éticocientíficas que fundamentam a ética antropocêntrica (Cartesianismo e Evolucionismo) e a ecocêntrica (Teoria de Gaia e Autopoiese), pugnando-se pela ética da visão ecocêntrica, principalmente pelo seu caráter de maior preservação do meio ambiente, não obstante se visualizem dificuldades na sua implantação no mundo jurídico. Destacam-se, também, as dificuldades transponíveis da ética ecocêntrica para a ciência jurídica, com ênfase na discussão da personalidade como atributo exclusivo do homem. 3.4 PARTE II – A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE: A RIQUEZA DOS RECURSOS NATURAIS COMO DIREITO DO HOMEM PRESENTE E FUTURO Os direitos fundamentais, bens jurídicos por excelência e tema característico da pósmodernidade, mostram-se em constante evolução, conforme a história demonstra. 12 Segundo Pepper (2000, p. 416), o ecocentrismo, “essencialmente, não é centrado no ser humano (visão antropocêntrica) [...], mas sim nos ecossistemas naturais, em que o ser humano é considerado como apenas mais um componente”. 68 69 As dimensões (gerações) de direitos fundamentais evidenciam e procuram sistematizar a constante ampliação das espécies de direitos fundamentais. Ao lado das diferentes gerações fundamentais, pode-se verificar simetria com a evolução do fenômeno econômico. Aos direitos de primeira geração podemos associar o liberalismo econômico, na figura expoente de Adam Smith; aos direitos de segunda geração, o intervencionismo estatal, na figura de Keynes, restando a configuração dos direitos de terceira geração e do fenômeno econômico, já se falando de uma economia ambiental ou de uma ecologia econômica. Estariam os direitos de terceira geração, chamados novos direitos, vinculados ao fenômeno econômico? Em caso afirmativo, a necessidade de integração sistemática da dimensão jurídica e econômica do meio ambiente mostra-se, portanto, necessária para garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado . Indaga-se, pois, se é possível correlacionar os direitos fundamentais de terceira geração ao fenômeno intitulado neoliberalismo. Dentre os direitos de terceira geração, o direito ao meio-ambiente tem papel de destaque no novo milênio. Seja pela crescente presença nos documentos internacionais e nacionais; seja pela ênfase dada pela mídia; seja, principalmente, pela sua importância para a qualidade de vida da humanidade. O direito a um meio ambiente saudável, direito fundamental positivado nas Constituições e nos tratados internacionais, apresenta características próprias dos chamados direitos de solidariedade, ao lado de outras que o diferenciam. O conceito de qualidade de vida une, por exemplo, o direito ao meio ambiente e o direito ao desenvolvimento. Por outro lado, na decantação das características básicas do meio ambiente, observase, cada vez mais, a sua correlação com os sistemas econômicos. Tal vinculação, que ocorre, também, no conceito de desenvolvimento sustentável, tem sua expressão maior na própria origem do fenômeno ambiental que muitas vezes interferiu e sofreu interferência do fenômeno econômico, havendo, na sociedade moderna do século XXI, uma explicitação tremenda desta vinculação sistêmica recíproca. Expressões da busca de integração da dimensão econômica e jurídica, ao lado das tradicionais normas regulativas da proteção do meio ambiente, surgem novos mecanismos estatais vinculados ao fenômeno econômico. O Estado brasileiro, por exemplo, em sua política ambiental, passa a utilizar-se de instrumentos econômicos, tal como a cobrança pelo uso da água, recentemente introduzida no Brasil pela Lei nº 9.433/97. Assim, verifica-se uma permanente tensão entre o ambiental e o econômico, razão pela qual um não pode ser analisado independentemente do outro. Não se tratam de fenômenos paralelos independentes, conforme análise feita nos dois primeiros Capítulos desta parte do trabalho (“Dimensões dos direitos fundamentais e o fenômeno econômico” e “Correlação entre os sistemas econômicos e as dimensões de direitos fundamentais”), mas, sim, forças polares, cuja interação, por exemplo, explica as variações no trato da proteção ambiental legislada em diferentes países, na cíclica tarefa histórica de busca da harmonia entre a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico. Estes importantíssimos direitos fundamentais de terceira geração – meio ambiente sadio e desenvolvimento econômico – representativos da interação dialética homem-natureza – merecem análise comparativa no terceiro Capítulo (“O meio ambiente e sua vinculação aos sistemas econômicos”). 69 70 No quarto Capítulo (“Economia do meio ambiente: busca da incorporação das externalidades ambientais”), caracteriza-se a criação na ciência econômica de um recente ramo que introduz dimensões de valoração ambiental dentro do arcabouço teórico da economia convencional. No quinto Capítulo (“Uso de instrumentos econõmicos nas políticas ambientais: integração do econômico e do jurídico”), destaca-se a utilização de instrumentos econômicos, que afetam o cálculo de custos e benefícios do agente econômico, influenciando, portanto, suas decisões com o objetivo de produzir uma melhoria na proteção ambiental. 3.5 PARTE III – O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR DE SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE Com a globalização, as políticas públicas legislativas sofrem forte influência do fenômeno econômico. Assim, a dimensão econômica tem adentrado a seara jurídica de forma a modificá-la radicalmente. As transformações tecnológicas, que permitem uma maior agilidade no processamento e transmissão de informações, influenciam as atividades econômicas, modificando os mercados, tornando-os cada vez mais poderosos em relação às soberanias nacionais, passando a determinar as políticas estatais e, até mesmo, o modo de produção do direito. Para Dahl (1999, p. 25), um dos delineadores da Agenda 21, verbis: O problema hoje é que a maioria dos líderes põe a economia no centro das nossas sociedades, muitas vezes à custa da exclusão de outros valores, que são deixados a uma apreciação subjectiva ao nível político ou cultural, se é que o são. Assim, aos valores materiais que podem ser medidos em dinheiro é dada grande importância e são usados para demonstrar o sucesso das nações e para definir o desenvolvimento. Outros factores que poderiam ser igualmente importantes (se não o são mais) para a qualidade da vida humana, são geralmente ignorados. A Globalização gera novos focos de poder, deslocando os conflitos sociais para o âmbito econômico. Como ensina Faria (1999, p. 141), o Estado continua legislando, entretanto, constrange-se a compartilhar sua titularidade de iniciativa legislativa com diferentes forças que transcendem o nível nacional. A política neoliberal, fruto dessa estrutura mundial globalizada, tem determinado a diminuição do Estado que, monitorado pela filosofia da mínima-intervenção, passa a diminuir consideravelmente o uso de seus instrumentos jurídicos tradicionais de controle e intervenção. Dessa forma, o Estado – concebido originariamente segundo visão una e soberana – é obrigado a conviver com formas paralelas de poder que afetam os valores básicos da sociedade política. Dentre estes, situam-se os direitos fundamentais, em especial o de um meio ambiente saudável, extremamente influenciado pelos elementos econômicos (ARAGÃO, 1997, p. 18). Assim, surgem indagações a serem respondidas no presente trabalho, tais como: O Estado neoliberal deve legislar sobre meio ambiente, ou tem a obrigação de deixar que esse 70 71 valor seja determinado pela “mão invisível”13 do mercado? Os mecanismos de mercado podem ser utilizados em favor da proteção ambiental? Em caso afirmativo, sempre ou em que hipóteses? Como o Direito e o Político podem influenciar, de forma efetiva, o Econômico e valorizarem os aspectos éticos e sociais do meio ambiente? A natureza, vista isoladamente como valor intrínseco, muitas vezes é excluída do universo das preocupações dos seres humanos. No âmbito jurídico contemporâneo, a natureza é protegida, predominantemente, como recurso econômico utilizado no input do mercado e como um ralo para os outputs indesejáveis do processo de fabricação. Assim, no primeiro Capítulo desta parte do trabalho (“O valor do meio ambiente na ecologia e na economia”), analisa-se a teoria geral dos valores, na visão de Johannes Hessen, buscando sua aplicação na apreciação da relação conflituosa de duas ciências assemelhadas em sua origem, mas distantes nas soluções dadas aos problemas da relação Homem-Natureza: a Economia e a Ecologia. A análise do valor do ecossistema/recursos naturais mostrará, portanto, diferentes matizes para a Ecologia e para a Economia, como se procura destacar na análise do debate internacional do efeito estufa. No segundo Capítulo (“Críticas de cunho ético-social às posturas utilitaristas do meio ambiente”), compara-se a visão utilitarista-econômica da terra (Natureza) e do trabalho, como simples instrumentos de produção valorados pela oferta e pela procura, com a postura filosófica e social de que possuem valores em si mesmos. Busca-se a análise teórica da corrente filosófica utilitarista de Bentham e de Stuart Mill e sua adoção no mercado auto-regulável, que na visão de Polanyi, trata, indevidamente, a Natureza e o Homem como mercadorias. Aprecia-se, nesta parte nodal do trabalho, minuciosamente, as deficiências valorativas do mercado para com essas mercadorias fictícias (trabalho e terra), por meio de uma crítica histórica, sociológica e ética, transpondo os elementos desta análise para o mundo contemporâneo com o fenômeno da globalização, que cria um horror social e ecológico ao desrespeitar os contratos sociais e naturais. No terceiro Capítulo (“O direito como instrumento social de formação e controle do mercado na proteção ambiental”), com base na necessidade social e ambiental de intervenção do Estado (e do Direito) no âmbito da economia de mercado, defende-se a postura reguladora do mercado na visão de que o capitalismo (neoliberalismo) deve ser visto como objeto jurídico necessitado de controle normativo para garantia de outros valores sociais relevantes, tal qual a preservação do meio ambiente natural. A partir da análise de sociólogos consagrados por seus estudos vinculados à crise da modernidade: Habermas e Luhmann, empenha-se em definir o papel do subsistema político e jurídico em harmonizar o subsistema econômico e ecológico, com base em metodologia sistêmica e multidisciplinar. No quinto e último Capítulo (“A necessidade de integração normativa das esferas social, econômica e ambiental (ético-ecológica) no desenvolvimento sustentável”) defende-se a efetividade do conceito de desenvolvimento sustentável como fim do Estado Regulador, em uma terceira via que não se esqueça da globalização e nem do papel do poder público nacional e transnacional de proteção das dimensões ética, social, ecológica e econômica do homem, permitindo a síntese valorativa dos recursos naturais por meio de atos comunicativos 13 A metáfora da “mão invisível” foi criada por Adam Smith em 1776 na obra “Inquiry into the nature and causes of the wealth of nations” (SMITH, 1999, v. 1, p. 668). 71 72 eficazes que superem a dicotomia crescimento econômico a qualquer custo (Economia) e preservação (Ecologia). 3.6 PARTE IV - A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E ECONÔMICA NO CASO CONCRETO Com a nova legislação hídrica brasileira, estabelece-se uma revolução metodológica na proteção ambiental no Brasil, com a utilização de instrumentos econômicos e com a participação da sociedade, simultaneamente, agrupadas em uma valoração da água de cunho ético (a água como bem público, dotado de valor econômico, com a preferência pelo consumo humano e pela dessedentação de animais, bem como a participação social na definição dos múltiplos usos desta). A Lei 9.433/97, fruto de longo debate no Congresso Nacional, resgata e concretiza valores constitucionais que representam uma valorização de aspectos ecocêntricos (a água passa a ser vista como um bem com valor íntrinseco – valor ecológico e econômico, deixando de ser res nullius e res derelicta, há a prioridade do uso da água para a dessedentação de animais, simbolicamente colocado ao lado do consumo humano), buscando claramente, uma nova concretização da proteção ao meio ambiente, que busca transcender a mera ética antropocêntrica, caracterizadora da legislação pretérita, que tornava a água propriedade de um único indivíduo, permitindo uso e abuso deste recurso imprescindível para o desenvolvimento sustentado do planeta. Para Thame (2000, p. 16), secretário de Recursos Hídricos do Estado economicamente mais desenvolvido da Federação Brasileira, há a necessidade de conscientização da sociedade e do Governo da importância da água, verbis: O sucesso na instituição da cobrança dependerá da consciência ambiental do real valor da água. A conscientização, mobilização e organização das comunidades se constituem nos elementos motivadores para gerar a vontade política, isto é, para que a questão dos recursos hídricos deixe de ser um assunto apenas técnico e de ambientalistas esclarecidos, ganhe o “status” de reivindicação popular prioritária e consiga sensibilizar governantes, a ponto de incluir a matéria em suas agendas políticas. Por isso, espera-se que também no Brasil ocorra a crescente tomada de consciência que se constata em âmbito mundial, e que vem permitindo e impondo um novo enfoque econômico, jurídico, político e administrativo para a questão, numa abordagem que privilegia o planejamento em termos mais amplos: consolida-se o consenso de que é necessário um gerenciamento multinacional, nacional e regional sobre a água e sobre os ecossistemas que reciclam e garantem a qualidade e a quantidade dos estoques de água do planeta. Um desses elementos, favorável à proteção ambiental no âmbito dos recursos hídricos, é a noção de cidadão planetário, trazido pela noção do contrato natural referido por Serrés14 (1994), existente entre todos os seres humanos e o Planeta Terra, que na verdade 14 “Portanto, o retorno à natureza! O que implica acrescentar ao contrato exclusivamente social a celebração de um contrato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio 72 73 pode ser denominado Planeta Água, em face da presença do oceano em três quartos do planeta. A diminuição da intervenção estatal direta (por meio de instrumentos de comando e controle), característica neoliberal do Estado, almeja novos modelos de regulamentação, buscando a realização do bem-comum, tal qual a participação popular e a utilização de instrumentos econômicos vinculados a modelos bem-sucedidos em outros países, que no mundo globalizado, tornam-se vizinhos cada vez mais próximos nas conquistas e nas derrotas ambientais.15 Assim, surgem indagações a serem respondidas nesta parte final da tese, com o suporte das construções teóricas desenvolvidas nas partes anteriores, a saber: Como o Estado Brasileiro está buscando, em um mundo globalizado, resguardar os valores éticos e econômicos inseridos no bem público água? A nova lei de recursos hídricos pode ser vista como um paradigma de síntese normativa dos valores éticos e econômicos analisados, nas partes pretéritas deste trabalho? Como o subsistema normativo valoriza o subsistema Político, por meio da participação da sociedade (Comitês de Bacia – “Parlamentos da Bacia”), buscando influenciar, de forma efetiva, o subsistema Econômico a resguardar o subsistema Ecológico e o subsistema Social da água? A água sempre foi um símbolo de vida e de integração da relação Homem–Natureza. Possui, pois, uma essência simbólica da visão cosmogênica holística biocêntrica de Gaia,16 assim como a de um bem com múltiplas utilizações, as quais ensejam uma ética de solidariedade comunicativa17 para a resolução dos conflitos de interesses de seu uso. O solvente universal ainda possui um valor econômico, tendo sido, no período clássico da Economia, inclusive, menosprezado pela sua suposta abundância, em comparação feita por Adam Smith e David Ricardo da água com o diamante e da água com o ar, respectivamente, nas obras “Inquérito sobre a natureza e as causas da riqueza das nações” e “Princípios de Economia Política e Tributação” (Smith, 1999, p. 119-120; Ricardo, 1982, p. 117).18 Os recursos hídricos constituem-se, por outro lado, elementos primordiais para o desenvolvimento sustentável, mecanismo basilar de superação e síntese dos aspectos éticos e econômicos do meio ambiente.19 e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e o respeito, em que o conhecimento não suporia já a propriedade, nem a acção o domínio, nem estes os seus resultados ou condições estercorárias. Um contrato de armísticio na guerra objectiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita – o nosso actual estatuto – condena à morte aquele que pilha e o habita sem ter consciência de que, a prazo, se condena a si mesmo ao desaparecimento” (SERRES, 1994, p. 65-66). 15 “O efeito de aceleração advindo das técnicas avançadas de comunicação e de transporte possui uma importância totalmente diferente para a modificação a longo prazo do horizonte cotidiano de experiências. Já os viajantes que utilizaram em torno de 1830 os primeiros trens relataram as novas formas de percepçâo do espaço e do tempo. No século XX o transporte automobilístico e o aéreo civil novamente aceleraram o transporte das pessoas e dos bens e fizeram com que as distâncias continuassem a se encolher também do ponto de vista subjetivo. A consciência do espaço e do tempo é afetada de um outro modo pelas novas técnicas de transmissão, armazenamento e elaboração de informações” (HABERMAS, 2001, p. 57). 16 Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE. 17 Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE. 18 Assim, também, lembra Villiers (2002, p. 47) “Nos círculos ecológicos e hidrológicos já virou clichê que a água é a um só tempo nosso bem mais precioso e abundante. Muitos anos atrás, Adam Smith salientou que a água, que é vital para a vida, não custa nada, enquanto os diamantes, totalmente inúteis à vida, custam uma fortuna”. 19 Cf. Parte III – “O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR DE SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE”. 73 74 No âmbito econômico contemporâneo, até pouco tempo, a água era protegida, predominantemente, como fator de produção utilizado no input do processo produtivo e nos outputs indesejáveis do processo de fabricação. Entretanto, a água sempre foi, é e será um fator de produção para o desenvolvimento econômico, social e ecológico. Assim, no primeiro Capítulo desta parte do trabalho (“A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã”), analisa-se a importância da água para os pré-socráticos, a água como símbolo cultural da integração do homem com a Natureza, bem como a visão atual de que a água é um recurso limitado, para, por fim, sugerir que a água, pela sua relevância ecológica e econômica, poderá ser o “diamante” azul do século XXI. A análise da água, nesta parte, almeja destacar seu relevante valor para o Homem, a Natureza, a Economia, a Ecologia, a Sociedade e a complexa relação sistêmica que os une. No segundo Capítulo (“A contribuição internacional na gestão dos recursos hídricos e a construção de um direito fundamental à água”), comparam-se as diferentes abordagens internacionais à gestão da água, para demonstrar a existência de denominadores comuns – esferas privadas e públicas da água. Também, visa-se mostrar, por meio das declarações internacionais, a emergência de um direito fundamental de acesso à água. Nesta análise tópica do direito comparado, destacam-se três modelos, com influência no paradigma brasileiro incorporado na Lei 9.433/97, a saber: o modelo francês (o de maior influência, responsável pela adoção da bacia hidrográfica como elemento básico da gestão de águas), o modelo alemão (que se assemelha à problemática federativa brasileira) e o modelo americano (que enfatiza os mecanismos de mercado e a esfera privada da água, tornando a água uma mercadoria sujeita às leis de mercado). Aprecia-se, de forma crítica, as vantagens e desvantagens de cada um destes modelos, por meio de uma visão histórica, hidrológica e jurídica. No terceiro Capítulo (“A política nacional de recursos hídricos (lei federal n. 9.433/97 e a cobrança pela utilização da água no Brasil”), procura-se caracterizar os institutos jurídicos previstos nesta legislação inovadora e suas dificuldades de implementação fáticas, com base na análise e interpretação do domínio normativo20 dos dispositivos previstos na legislação referida sob a perspectiva de uma interpretação sistemática que não esqueça dos princípios constitucionais e dos valores a eles subjacentes. No quarto Capítulo (“A cobrança pela utilização da água na política nacional brasileira de recursos hídricos”), busca-se analisar os institutos jurídicos positivados fundamentais ao trabalho: a natureza jurídica da água, a natureza jurídica da outorga de uso e a natureza jurídica da cobrança. No quinto Capítulo (“Desafios jurídicos institucionais da gestão integrada e participativa por Bacia em um País Federado”), verificam-se os contornos jurídicos do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGERH) com destaque para as dificuldades de integração das diferentes esferas federativas na necessária gestão ambiental e hídrica por bacia, para a análise pontual de questões jurídicas controversas como a 20 “As normas consagradoras de direitos fundamentais protegem determinados <<bens>> ou <<domínios existenciais>> (exemplo: a vida, o domicílio, a religião, a criação artística)> Estes <<âmbitos>> ou <<domínios>> protegidos pelas normas garantidoras de direitos fundamentais são designados de várias formas: <<âmbito de proteção>> (<<Schutzbereich>>), <<domínio normativo>> (<<Normbereich>>) [...] preferimos falar aqui em <<domínio normativo>>, para recortar, precisamente, aquelas <<realidades da vida>> que as normas consagradoras de direitos captam como <<objecto de protecção>>”. (CANOTILHO, 1993, p. 632). 74 75 competência dos Municípios e das Regiões Metropolitanas e para a análise concreta dos desafios do Comitê da Bacia do Rio São Francisco. No sexto e último Capítulo (“Mecanismos normativos de resolução da lide pela água”), destaca-se a multivaloração ética e econômica da legislação, buscando traçar diretrizes para aplicação e resolução dos conflitos existentes entre “proteger o consumo humano e a dessedentação de animais (valores éticos)” com os “outros usos” da água, diretamente vinculados ao desenvolvimento econômico e eivados de preocupações fundamentalmente antropocêntricas, por meio da aplicação de uma ética discursiva, fundada na participação, na subsidiariedade da ação estatal e no respeito às particularidades concretas de uma determinada Bacia Hidrográfica. 75 76 PARTE I DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE: PLURALIDADE DE FUNDAMENTOS PARA A NECESSÁRIA EVOLUÇÃO DA VISÃO ANTROPOCÊNTRICA PARA A ECOCÊNTRICA O ser humano e a natureza na História. Meio ambiente sadio: interesse exclusivo do homem. Ética aristotélica e macroética ambiental. Espécies de macroéticas quanto aos atores do consenso: noções básicas da ética antropocêntrica e ecocêntrica. Ética antropocêntrica na visão do cartesianismo e do evolucionismo. Fundamentações teóricas de uma ética ecocêntrica e a personalidade jurídica. “O homem é a medida de todas as coisas.” Protágoras “A natureza trabalha no método de um por todos e todos por um.” Ralph Waldo Emerson 76 77 1 O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA 1.1 A RELAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA: EVOLUÇÃO DE SUJEITO PASSIVO PARA ATIVO 1.1.1 A modificação do meio ambiente: evolução Conforme destaca Carson (1994, p. XV), a história da vida na Terra caraterizou-se sempre pela interação entre os seres vivos e o seu ambiente. Entretanto, somente a partir do século XX, uma das espécies – o ser humano – adquiriu tamanho poder de modificar o meio ambiente.21 Do mesmo modo, Thomas (1988, p. 21-25), ao tratar da visão inglesa da Natureza nas dinastias dos Tudor (1485-1603) e Stuart (1603-1714), séculos XV e XVIII, ressaltava a absoluta superioridade do homem em relação aos outros seres animados e inanimados, o que fundamentaria a sua relação de senhor da natureza, destacando: [...] a visão tradicional era que o mundo fora criado para o bem do homem e as outras espécies deviam se subordinar a seus desejos e necessidades [...] A natureza não fez nada em vão, disse Aristóteles, e tudo teve um propósito. As plantas foram criadas para o bem dos animais e esses para o bem dos homens. Os animais domésticos existiam para labutar, os selvagens para serem caçados [...] Os vegetais e minerais eram considerados da mesma maneira, Henry More pensava que seu único propósito era estender a vida humana. Sem a madeira, as casas dos homens não passariam de “uma espécie maior de colméias ou ninhos construída de gravetos e palha desprezíveis e de imunda argamassa”; sem os metais, os homens teriam sido privados da “glória e pompa” da batalha, ferida com espadas, armas e trombetas; em vez disso, haveria somente “os uivos e brados de homens pobres e nus espancando-se uns aos outros [...] com porretes, ou brigando tolamente aos murros” Até mesmo as ervas daninhas e os venenos tinham seus usos essenciais, notava um herbanário: exercitavam “o engenho humano em eliminá-los [...] Não tivesse ele nada contra que lutar e o lume de seu espírito estaria em parte extinto. 21 Neste livro, considerado um clássico da proteção ambiental norte-americana e mundial pela novidade de sua abordagem protetiva da natureza, publicação original (1962), a autora retrata, de forma detalhada e poética, a destruição da natureza pelo homem. Na sua edição mais recente, o, então, Vice-presidente Al Gore, em emotiva e exaltadora introdução à autora, destaca que: “Writing about Silent Spring is a humbling experience for an elected official, because Rachel Carson’s landmark book offers undeniable proof that the power of an idea can be far greater than the power of politicians. In 1962, when Silent Spring was first published, ´environment´ was not even an entry in the vocabulary of public policy. In a few cities, especially Los Angeles, smog had become a cause of concern [...] Silent Spring came as a cry in the wilderness, a deeply felt, throughly researched, and brilliantly written argument that change the course of history” (CARLSON, 1994, p. XV). 77 78 Entretanto, a relação do homem com a natureza modificou-se ao longo da sua existência. Durante milhares de anos, desde a Pré-história até o Período Neolítico, a relação entre o Homem e o meio ambiente que o rodeava caracterizou-se pela resignação do Homem aos fenômenos naturais.22 Havia passividade do ser humano com relação à natureza. Os principais problemas ambientais com os quais o Homem se defrontava, eram as catástrofes naturais, como tempestades, terremotos ou inundações, a que estava sujeito e que via suceder incompreensível e incontrolavelmente. A força dos fenômenos naturais inspirou no Homem um temor reverencial profundo pelas manifestações da Natureza, por não conseguir explicá-las a contento. Conforme afirma Aragão (1997, p. 17) “Numa tentativa de compreensão, antropomorfizou os elementos naturais que o rodeavam e transformou as suas manifestações em ‘estados de espírito’ da Natureza”. Na evolução da interação entre homem e natureza, grande marco foi a capacidade humana de lidar com o fogo. Constituiu mecanismo de atuação do homem sobre a natureza para moldá-la em seu benefício. Também foi a primeira extração química de energia. 23 Outro passo evolutivo relevante foi a prática agrícola, em que ocorre, talvez, a mais expressiva modificação da situação de passividade do homem em relação à natureza. Nesse sentido, Roberts (2000, p. 17) ensina: Os primeiros assentamentos agrícolas tiveram vida curta; os primeiros lavradores talvez ainda fossem cultivadores razoavelmente instáveis e talvez praticassem a chamada agricultura do “corta e queima” [...] Escolhe-se uma área de floresta (é provável que o solo seja bom por causa do húmus acumulado pelas folhas e pelos detritos decompostos) e as árvores são abatidas a corte [...] Depois de alguns anos a vegetação rasteira torna-se novamente espessa demais [...] Durante muito tempo toda a agricultura foi feita assim. Observa-se, também, que a origem da agricultura ocorre junto com a domesticação de animais; é atribuída ao período neolítico, indicando afastamento da vida nômade do caçador-coletor. Está associada à vida sedentária, ao desenvolvimento dos assentamentos permanentes e à aparição dos primeiros recipientes de barro para cozinhar e armazenar alimentos (MORAES, 1996, v. 1, p. 45). Contudo, à medida que o Homem foi adquirindo conhecimentos científicos, que lhe permitiam explicar a complexidade dos fenômenos naturais do meio ambiente, foi perdendo o respeito religioso pela Natureza. Os meios técnicos que dominava, contudo, eram ainda escassos e demasiadadamente rudimentares para que conseguisse vencer a Natureza, controlála ou pô-la ao seu serviço. 22 “Esse seria o panorama dominante até o Neolítico, durante o qual o homem se tornou sedentário e passou a se dedicar à agricultura. Começaram, então, a ser mais diferenciadas e especializadas as funções” (MORAES, 1996, p. 45). No mesmo sentido, Huberman (1986, p. 3), ressalta que a estratificação social de funções tornase possível com a agricultura: “Também alguém tinha que fornecer alimentação e vestuário para os clérigos e padres que pregavam, enquanto os cavaleiros lutavam. Além desses pregadores e lutadores existia, na Idade Média, um outro grupo: os trabalhadores”. 23 “Imediatamente significou calor e luz, a conquista do frio e da escuridão [...]. As famílias podiam sobreviver mais do que antes em regiões mais frias e podiam habitar zonas temperadas com um pouco mais de facilidade” (ROBERTS, 2000, p. 32-33). 78 79 Conforme enfatiza Jonas (1995, p. 26), em visão integradora da civilização, da urbanização e da ação humana no meio ambiente: [...] el hombre construye uma morada para su propria humanidad, a saber: el artefacto de la ciudad. La profanación de la natureza y la civilización de sí mismo van juntas. Ambas se rebelan contra los elementos; la primera, por cuanto em el refugio de la ciudad y sus leyes erige um enclave contra ellos. El hombre es el creador de su vida como vida humana; somete las circunstancias a su voluntad y necesidades y, excepto ante la muerte, nunca se encuentra inerme. Inicia-se já entretanto, o uso econômico dos bens da natureza que, inclusive, apresentavam-se como instrumentos de troca, conforme ensina Gilissen (1986, p 44): Os bens de consumo corrente, sobretudo os alimentos, parece terem sido alienados relativamente cedo, mas sobretudo sob a forma de troca, uma vez que a moeda ainda não existia. Certas formas entre as mais curiosas são o comércio dito “mudo” e o potlach. No comércio mudo, um grupo depõe num dado lugar, em que sabe que outro grupo passará os bens que deseja trocar, e depois abandona o lugar; o outro grupo examina o que lhe é oferecido, põe outras mercadorias ao lado, e depois retira-se [...]. O potlach, conhecido sobretudo dos Índios da América, mas também dos Berberes, e sob o nome de Kula entre ao Polinésios, é a dádiva pública e ostentatória de bens, de riquezas, ou até escravos, por um grupo a outro. É uma espécie de desafio, porque o outro não pode recusar; ele deve reagir aceitando, e entregando ao primeiro grupo de bens do valor pelo menos igual. A operação está assim impregnada de um certo misticismo, ligando as coisas aos homens e, ao mesmo tempo, de uma certa ostentação de poder sem obrigar ao combate. Até a Revolução Industrial, a utilização econômica dos recursos naturais não conduziu à exaustão os recursos finitos e manteve a capacidade de auto-regeneração dos recursos renováveis; também não gerou poluição. Porém, a passagem da economia de subsistência para a economia de mercado e o avanço verificado nos conhecimentos científicos e técnicos, após a Revolução Industrial, representaram salto qualitativo nos meios ao dispor do Homem para controlar e utilizar economicamente os recursos naturais. Dá-se crescimento exponencial da intensidade e da extensão de exploração econômica dos recursos ambientais.24 Para o homem, a Natureza é “reservatório de bens disponíveis”. No primeiro tratado sobre o governo, Locke (1998, p. 299) afirma que os homens têm direito, inclusive, à destruição da propriedade: A propriedade, cuja origem se encontra no direito que tem o homem de utilizar qualquer uma das criaturas inferiores para a subsistência e conforto de sua vida, destina-se ao benefício e vantagem exclusiva do proprietário, de forma que este poderá até mesmo destruir, mediante o uso, aquilo de que é proprietário, quando o exija a necessidade [...] Para o homo economicus, surgido com o liberalismo, a Natureza é um bem comum, sujeito à apropriação pelo trabalho individual. No segundo tratado sobre o governo, Locke 24 Pesquisa divulgada pela revista Science revela que as ações humanas contra o meio ambiente tem origem na Idade da Pedra. Os povos da antigüidade, portanto, antes da Revolução Industrial, já causavam expressiva degradação ambiental (AGRESSÃO À NATUREZA É ANTIGA, 2001, p. 17). 79 80 (1998, p. 409-410) afirma que os homens têm direito à própria preservação e a tudo quanto a natureza lhes fornece para a subsistência; por meio do trabalho, torna-se propriedade privada daquele que a explora: [...] Aquele que se alimenta das bolotas que apanha debaixo de um carvalho ou das maças que colhe nas árvores do bosque com certeza delas apropriou-se para si mesmo. Ninguém pode negar que o alimento lhe pertença. Pergunto então quando passou a pertencer-lhe: Quando o digeriu? Quando o comeu? Quando o ferveu? Quando o levou para casa? Ou quando o apanhou? Fica claro que, se o fato de colher o alimento não o fez dele, nada mais o faria. Aquele trabalho imprimiu uma distinção entre esses frutos e o comum, acrescentandolhes algo mais do que a natureza, mãe comum de todos, fizera; desse modo, tornaram-se direito particular dele. Destaca-se, pois, na visão de Locke, que a propriedade do comum torna-se privada com a exploração da natureza. Portanto, incentiva-se, por meio da exploração da natureza, a aquisição da propriedade de coisas até então comuns. O trabalho do homem permite o “toque de midas” na transformação do público (de todos) em privado.25 Ressaltando o marco da revolução industrial na história da proteção ambiental, Aragão (1997, p. 19-20) assinala: Com a revolução industrial, os papéis inverteram-se e Natureza que carece de proteção contra a ação humana. Os problemas ambientais com que o Homem moderno se não são as catástrofes naturais de outrora, mas os efeitos quantas vezes irreversíveis, que derivam de rupturas equilíbrio ecológico pela acção do Homem. agora é a defronta já nefastos, e graves do Antecedendo à Revolução Industrial, na Inglaterra dos séculos XV e XVIII, havia uma série de justificativas para a superioridade humana em relação à Natureza; conforme bem descreve Thomas (1988, p. 37), a busca do atributo diferenciador do homem em relação aos outros seres foi um dos mais sérios desafios enfrentados pelos filósofos ocidentais: Assim, o homem foi descrito como animal político (Aristóteles); animal que ri (Thomas Willis); animal que fabrica seus utensílios (Benjamin Franklin); animal religioso (Edmund Burke); e um animal que cozinha (James Boswell, antecipando Lévi-Strauss). Como observa o Sr. Cranium do romancista Peacock, o homem já foi definido como bípede implume, como animal que forma opiniões e, ainda, animal que carrega um bastão. O que todas essas definições têm em comum é que assumem uma polaridade entre as categorias 25 Nesse sentido, o revogado Código Civil (Lei nº 3.071, de 1o de Janeiro de 1916) dispõe nos seus arts. 592 a 610 sobre a ocupação, modo originário de aquisição de propriedade móvel, dos quais a caça e a pesca são espécies. Sob tal direção, significativo o teor do art. 593, verbis: “São coisas sem dono e sujeitas à apropriação: I - os animais bravios, enquanto entregues à sua natural liberdade; II - os mansos e domesticados que não forem assinalados, se tiverem perdido o hábito de voltar ao lugar onde costumam recolher-se, salvo a hipótese do art. 596; III - os enxames de abelhas, anteriormente apropriados, se o dono da colmeia, a que pertenciam, os não reclamar imediatamente; IV - as pedras, conchas e outras substâncias minerais, vegetais ou animais arrojadas às praias pelo mar, se não apresentarem sinal de domínio anterior”. O Novo Código Civil (Lei nº 10.406, de 1o de Janeiro de 2002) continua dispondo sobre a ocupação no art. 1.263: “Quem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei”. 80 81 “homem” e “animal” e que invariavelmente encaram o animal como inferior. A superioridade humana, também, pode ser inferida da obra de Locke (1998, p. 408409), ao expor que a pessoa humana tem o poder, por meio de elementos intrínsecos a ela (“trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos”), de transformar em próprio o que originariamente era de todos os homens: Embora a Terra e todas as criaturas inferiores sejam comuns a todos os homens, cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. A esta ninguém tem direito algum além dele mesmo. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele. Qualquer coisa que ele então retire do estado com que a natureza a proveu e deixou, mistura-a ele com o seu trabalho e junta-lhe algo que é seu, transformando-a em sua propriedade. 1.1.2 A mutação do conceito de natureza Godard (1997, p. 248-253) ressalta a evolução dos conceitos de Natureza, em face do enfoque dos discursos econômicos e da proteção do meio-ambiente, demonstrando a íntima correlação entre a natureza e os sistemas econômicos, bem como a subordinação desta ao Homem, notadamente com o sistema capitalista na visão de Natureza mercadoria e Natureza industrial: • a Natureza mercadoria (a Natureza é protegida porque e na medida em que é fonte de mercadorias); • a Natureza industrial (a Natureza é protegida porque e na medida em que é “útil e funcional”, prestando serviços à indústria); • a Natureza cívica (a protecção da Natureza traduz-se em garantir o acesso a ela do maior número possível de cidadãos: estabelecer a igualdade fundamental dos cidadãos face à Natureza. A Natureza é valorizada por uma boa administração pública); • a Natureza do renome (a Natureza só é protegida quando e na medida em que se encontre incorporada em figuras mobilizadas pelos mass media: um <<monumento>>, a <<paisagem>>, o <<turismo cultural>>, e sobretudo se estiver sujeita a ameaças de tipo <<catastrófico>>. A importância da Natureza depende dos índices de notoriedade demonstrados em sondagens de opinião); • a Natureza inspirada (a Natureza é o meio simbólico de acesso ao que está para lá do Homem, e aquilo que põe limites à sua acção identificando-se muitas vezes com uma visão religiosa); 81 82 • a Natureza doméstica (a Natureza está organizada segundo a clivagem selvagem/doméstico segundo uma hierarquia de proximidade à “casa”, A Natureza é o suporte simbólico da identidade de um grupo social e traduz-se na categoria de <<patrimônio natural>>). A classificação de Olivier (apud ARAGÃO 1997, p. 20) destaca que: [...] a consciência social da importância dos problemas ambientais não foi imediata, também a reacção da própria comunidade científica, nomeadamente da Ciência Econômica, a este estado de coisas, foi diferida e paulatina. 1.2 A CONSCIENTIZAÇÃO DA DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE NO MUNDO CONTEMPORÂNEO A história recente da humanidade é marcada por avanços jamais vistos no domínio das técnicas e dos processos de produção de bens materiais. Hoje não só somos capazes de produzir em quantidades maiores e com melhor qualidade tudo o que nossos antepassados produziam, como temos, também, acesso a produtos que, há vinte anos atrás, não seriam sequer imagináveis. Todo esse avanço, todavia, não terá o seu preço? A preocupação com temas ambientais vem se tornando mais intensa com a entrada no século XXI. Na Carta de São Francisco, que criou a Organização das Nações Unidas, o tema não se apresentava com o destaque contemporâneo. Em 3 de Abril de 2000, o Secretário-Geral da ONU, Kofi A. Annan, apresentou à Assembléia-Geral o relatório do milênio. Nesse relatório, são identificados desafios ambientais e apresentadas soluções, no Capítulo V, intitulado “Sustaining on Future”. Assim, Annan (2000, p. 25) afirma: Os fundadores das Nações Unidas estabeleceram, nas palavras da Carta de São Francisco, o objetivo de promover o progresso social e melhores padrões de vida por meio dos direitos fundamentais – acima de tudo, liberdade de escolha e liberdade sem opressão. Em 1945, eles não puderam, entretanto, antecipar a necessidade urgente e atual de realização de um terceiro direito fundamental: o direito das gerações futuras de terem suas existências garantidas no nosso planeta. Nós estamos falhando na realização dessa garantia. Na verdade, nós estamos legando a nossos filhos uma herança de arcar com nossas práticas destruidoras do meio ambiente. Para solucionar essa problemática, Annan (2000, p. 29-30) sugere a construção de uma nova ética global, baseada em quatro objetivos: - incremento da informação pública para que os consumidores do mundo todo entendam que as suas opções de consumo têm conseqüências ambientais relevantes; 82 83 - colocação de temas ambientais nas políticas públicas, evitando o trato isolado da questão ambiental a um único Ministério; - criação pelo Estado de mecanismos reguladores de mercado incentivadores da proteção ambiental, cortando subsídios de atividades econômicas poluidoras; - criação de um sistema mundial de avaliação ambiental (“Millennium Assessment of Global Ecosystems”), com o objetivo de mapear a saúde da terra. Verifica-se, pois, que todos os quatro objetivos elencados vinculam a questão ambiental à econômica, o primeiro objetivo, ao tratar da relação entre os bens e os reflexos ambientais de seu consumo. O segundo, com a colocação do tema ambiental nas políticas públicas, inclusive com a realização de uma contabilidade pública que leve em conta os custos e benefícios ambientais. O terceiro objetivo, com a intervenção estatal sobre o mercado. O quarto, com o financiamento de um sistema de informação ambiental universal (ANNAN, 2000, p. 29-30). Desde o final da Segunda Guerra Mundial, mais acentuadamente a partir dos anos sessenta, a comunidade cientifica passou a preocupar-se com os danos ambientais - resultantes do modelo de desenvolvimento tecnológico e econômico adotado - e suas conseqüências para a sobrevivência de todas as espécies de vida neste planeta (DIAS, 1997, p. 11). Em 1968, grupo de estudiosos publicou ensaio intitulado Limites do Crescimento, onde sugerem resposta a essa pergunta: o ritmo de crescimento da economia mundial só se sustenta graças à exploração crescente e insustentável dos recursos naturais e ao comprometimento das condições do meio ambiente humano. Esse estudo teve grande repercussão e gerou uma série de previsões catastróficas quanto ao futuro da Terra. Dizia-se, por exemplo, que, até o ano 2000, ter-se-iam, praticamente, esgotado as reservas de combustíveis fósseis (petróleo e carvão), o que tornaria insustentável a continuidade das economias modernas (FAUCHEUX; NÖEL, 1995, p. 17). Esse relatório foi encomendado pelo Clube de Roma26 e elaborado por grupo de pesquisadores coordenados por Dennis Meadows (que deu o nome ao relatório). Nesse documento, foram apresentadas algumas conclusões básicas. Dentre estas, destacam-se as seguintes: • Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos e diminuição de recursos naturais continuarem imutáveis, os limites de crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos 26 “O Clube de Roma foi criado em Abril de 1968, por sugestão do industrial italiano Aurelio Peccei (19081984). Em março de 1972, com uma considerável repercussão, o Clube lançou o relatório“The Limits to Growth”, preparado a seu pedido por uma equipe [...] do Núcleo de Estudos de Dinâmica dos Sistemas), dirigido pelo Professor Jay Forrester, no Massachussetts Institute of Technology (MIT). O Relatório Meadows, que tem o nome dos principais redatores, o casal Donella e Dennis Meadows, fez sensação. O público, chocado, reagiu vivamente, mas os adeptos do crescimento econômico e do desenvolvimento industrial conseguiram minimizar a gravidade da situação descrita no relatório, acusando imediatamente os seus autores de alarmistas e de espalharem a catástrofe” (GRINEVALD, 1995, p.38). 83 84 cem anos. O resultado mais provável de se alcançar este limite será de um declínio súbito e incontrolável, tanto da população quanto da capacidade industrial. • É possível modificar estas tendências de crescimento e formar uma condição de estabilidade ecológica e econômica que se possa manter até um futuro remoto. O estado de equilíbrio global poderá ser planejado de tal modo que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terra sejam satisfeitas e que cada pessoa tenha igual oportunidade de realizar seu potencial humano individual. • Se a população do mundo decidir empenhar-se em obter este segundo resultado (estabilidade ecológica e econômica) , em vez de lutar pelo primeiro, quanto mais cedo ela começar a trabalhar para alcançá-lo, maiores serão suas possibilidades de êxito (MEADOWS et al., 1972, p. 20). A divulgação do Relatório Meadows, em maio de 1972, contendo proposta de "congelamento do crescimento da população global e do capital industrial, em função da limitação dos recursos", repercutiu negativamente no hemisfério norte e sul. Para o hemisfério norte, visualizou-se diminuição da oportunidade de crescimento e melhoria da qualidade de vida de sua população. Os países em desenvolvimento do hemisfério sul, por outro lado, viram o Relatório como forma de manutenção do patamar de subdesenvolvimento e de dependência aos países desenvolvidos, "justificando, essa prática, com retórica ecologista" (BRÜSEKE, 1995, p. 30). Alguns meses depois da bombástica divulgação do Relatório Meadows, foi realizada a Conferência Mundial sobre o "Meio Ambiente Humano", em Junho de 1972, cujo tema central se dirigia às relações entre o homem, o meio ambiente e a "poluição" urbana. No âmbito dessa Conferência, foram estabelecidos vinte e três princípios com objetivo de orientar a humanidade para a preservação e melhoria do ambiente humano. Com a criação da Comissão Brundtland pela ONU em 1983, novos princípios, em escala evolutiva crescente, são contemplados: a necessidade de preservação dos recursos naturais da Terra para as atuais e futuras gerações; a manutenção, restauração ou melhoria da capacidade da Terra de produzir recursos renováveis vitais; o reconhecimento do desenvolvimento econômico e social como indispensável para assegurar ao homem ambiente de vida e trabalho favorável; e, ainda, a necessidade de promover o desenvolvimento acelerado dos países subdesenvolvidos, com a transferência maciça de recursos financeiros e tecnológicos (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 388-391).27 Paralelamente a esses debates, a sociedade civil americana e européia, organizou-se para protestar, publicamente, contra a destruição do meio ambiente. Manifestações ambientalistas cresceram, de forma exponencial, na década de 80, à medida em que foram acontecendo vários desastres ecológicos, que afetaram a vida de milhares de pessoas, em diferentes partes do mundo.28 27 28 “O relatório Brundtland, publicado em 1987, foi redigido pela Comissão para o Ambiente e o Desenvolvimento da ONU, presidida por Gro Harlem Brundtland, então primeira-ministra da Noruega. O relatório, chamado Our Commom Future, identifica os principais problemas ambientais que ameaçam e entravam o desenvolvimento de muitos dos países do Sul: o crescimento demográfico, o esgotamento dos solos provocado pela criação de gado e pela agricultura em excesso, a desflorestação, a destruição das espécies, a alteração da composição química da atmosfera, que desestabiliza o clima mundial, etc. Segundo o relatório, a proteção do ambiente deve ser uma prioridade internacional que obrigue a uma vasta redistribuição dos recursos financeiros, científicos e tecnológicos à escala do Planeta” (DELÉAGE, 1995b, p. 43). “Se nos anos 60 a preocupação científica pela questão ecológica está já consolidada e projetando-se sobre a 84 85 Tais movimentos representaram a tomada de consciência, pelos cidadãos comuns, de que os altos níveis de poluição do ar, da água, do solo, a destruição das florestas e os demais desastres ecológicos teriam suas raízes no modelo de desenvolvimento tecnológico e industrial adotado. Nesse sentido, Deléage (1995a, p. 44) afirma: A consciência ecológica permite distinguir duas representações da natureza que apesar de serem falsas devido à sua extrema simplificação, ainda predominam. A primeira assenta na divinização duma antiga natureza e no desejo de voltar a um estado original que, evidentemente, nunca existiu, a não ser nas fantasias da sociedade contemporânea. A segunda, corresponde a uma imagem que se impôs a partir do início da revolução industrial: a natureza não seria mais do que uma simples realidade físico-química, controlável por técnicas cada vez mais poderosas, segundo uma lógica puramente economica e financeira (grifo nosso). Com isso, segmentos da sociedade começaram a questionar o modelo de desenvolvimento econômico, que visualiza a natureza como algo submetido à estrita lógica do econômico-financeiro. Essas manifestações da sociedade civil, repudiando publicamente as conseqüências nefastas da exploração da Natureza, tiveram grande repercussão junto aos políticos, que passaram a colocar, como linha de frente de seus discursos, as questões ambientais. Nesse aspecto, na evolução da consciência mundial sobre a proteção do meio ambiente, deve ser destacado o conceito de desenvolvimento sustentado, inicialmente delineado no Relatório BRUNDTLAND,29 implementado na ECO92 30 e já objeto de controle na RIO +10, realizada em Johannesburgo (África do Sul) em 2002 .31 Apesar de literatura mais recente Lomborg (2002), demonstrar que em determinadas áreas houve melhora das condições ambientais do mundo, a preocupação com o meio ambiente é assunto vinculado a própria existência do homem no século XXI. Nesse aspecto, Gorbachev (2003, p.21-26) destaca que junto com a paz e a luta contra a pobreza, a proteção do meio ambiente encontra-se entre os desafios contemporâneos. opinião pública mundial (Rachel Carlson publica seu famoso Silent Spring em 1962, e a partir de 1968 o Clube de Roma começou a trabalhar na série de seus famosos relatórios científicos), do mesmo modo, nos anos 70, o ambientalismo não-governamental se encontra firmemente institucionalizado dentro das sociedades americana e européia” (LEIS; AMATO, 1998, p. 80). 29 Cf. COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE e DESENVOLVIMENTO (1991, p. 388-391). 30 Cf. Agenda 21 (1997, p. 13). 31 “Reaffirming in this regard the commitment to achieving the internationally agreed development goals, including those contained in the United Nations Millennium Declaration, and in the outcomes of the major United Nations conferences and international agreements since 1992” (UNITED NATIONS, 2002). 85 86 2 “MEIO AMBIENTE SADIO”: INTERESSE EXCLUSIVO DO HOMEM? 2.1 MEIO AMBIENTE: CONCEITO ABERTO PARA A PROTEÇÃO DAS PESSOAS E DOS SERES EM GERAL 2.1.1 Meio ambiente: conceito Diversos autores encontram dificuldade em dar uma definição ao termo “ambiente”. A conceituação de “ambiente” é problemática por duas razões fundamentais: a primeira, a abrangência; a segunda, a grande diversidade de significados. O termo ambiente engendra variedade de significados, conforme o aspecto em que é considerado. Na linguagem comum, pode ser entendido como “a esfera, o círculo, o âmbito que nos cerca, em que vivemos” (SILVA, J., 1994, p. 1). Ainda, “o complexo de relações entre o mundo natural e o ser vivo [que entendo só possa ser o humano], as quais influem na vida e no comportamento do mesmo ser” (DOTTI, 1979, p. 501). Ou, finalmente, “o conjunto dos sistemas físicos, químicos, biológicos e suas relações, e dos fatores econômicos, sociais e culturais com efeito direto, ou indireto, mediato ou imediato, sobre os seres vivos e a qualidade de vida do homem”.32 Observa-se que a definição de meio ambiente é aberta não só a proteção do homem, mas, também, a todos os seres naturais. Em face à necessidade metodológica de definição de um conceito de meio ambiente, para o presente trabalho, os estudos, dirigidos para estabelecer a noção jurídica do meio ambiente, foram divididos em dois grupos conceituais: um no direito comparado e outro no direito nacional. 2.1.2 Meio ambiente: conceito no direito comparado Entre os especialistas italianos não se pode deixar de mencionar Giannini (1997, p. 2) que, em 1973, foi dos primeiros autores a elaborar o conceito jurídico do termo “ambiente” muito utilizado por doutrinadores brasileiros, definindo-o juridicamente sob três conceituações: − Cultural: o ambiente enquanto conservação da paisagem incluindo tanto as belezas naturais quanto os centros históricos; 32 Lei no 11/87 (Lei de Bases do Ambiente, lei ambiental portuguesa de 07/04/1987). A Constituição Portuguesa, desde a sua versão originária de 1976, inclui o ambiente no elenco dos direitos e deveres fundamentais dos cidadãos, fazendo parte do Título que dedica aos direitos e deveres econômicos, sociais e culturais. 86 87 − Sanitária: o ambiente enquanto normativa relacionada com a defesa do solo, do ar e da água; e − Urbanística: o ambiente enquanto objeto da disciplina urbanística. Tais conceitos, dados por Giannini, foram apoiados por muitos estudiosos e, também, criticadas por outros, já que sugerem visão não-global do termo ambiente.33 Martín Mateo (1977, p. 74-75) concorda com Giannini quando subdivide o conceito de ambiente em elementos constitutivos; esclarece, porém, que é necessário identificar quais destes elementos devem ser considerados juridicamente relevantes, verbis: Es evidente que en todos estos casos se trata má bien de declaraciones de principio lejanamente orientadores de la política del Derecho que de la adopción de postulados de trascedencia jurídica inmediata. La posibilidad de acuñar en sentido técnico un Derecho ambiental no puede hacerse sobre tales bases y exige una formulación de objetivos concretos a cyo servicio, con una cierta coherencia lógico-jurídica, se instrumentará un determinado sistema normativo (36 bis) [...] Pero en términos de operatividad es preciso llegar a una delimitacion más estricta del concepto jurídico del medio ambiente que permita perfilar el campo de esta disciplina superando tanto las aproximaciones genéricas y meramente programáticas, como las parcelaciones inconexas a que ha dado lugar el arrastre de una legislación precedente que aisladamente se preocupaba de la higiene, del orden público, del régimen sanitário de las aguas, etc. (39). El problema ha sido visto com nitidez por Giannini al catalogar tres posibles versiones del concepto del ambiente: el ambiente en cuanto conservación del paisaje incluyendo tanto las bellezas naturales como los centros históricos; el ambiente en cuanto normativa relacionado con la defensa del suelo, del aire y del agua; y el ambiente en cuanto objeto de la disciplina urbanistica. Interpretando a definição de Giannini como sendo a individualização de três setores nos quais o termo “ambiente” apresenta significados diferentes, podemos a eles associar os respectivos bens ambientais. Assim, no primeiro setor, a conservação da paisagem, seja natural ou artificial (monumentos, centros históricos); no segundo, a relacionada com a defesa do solo, do ar e da água; e no terceiro, como objeto da disciplina urbanística. Essa definição expressa, essencialmente, a idéia do ambiente como objeto de normas jurídicas, dividida em três tipos de elementos: paisagem (natural ou artificial), recursos naturais e urbanismo. Conti (apud SILVA, J., 1994, p. 2), faz referência à sentença no 210/87 da Corte Constitucional Italiana, destaca a necessidade de apreciação unitária da questão ambiental, não obstante possua diferentes aspectos: Questa sentenza osserva che l'ambiente, nonostante possa essere fruitibile in varie forme e differenti ruoli e possa essere oggeto di numerose norme che assicurano la tutela dei diversi profili in cui si estrinseca, deve essere considerato un bene unitario. Tale concezione, sai per la Corte Costituzionale che per noi va riferita alla 33 “Portanto, para Giannini inexiste uma noção unitária de ambiente, posto que este pode ser considerado como paisagem (noção cultural), como bem sanitário ou, ainda, como ordenamento do território (noção urbanística)” (MUKAI, 1994, p. 5). 87 88 ‘qualità della vita’, allo ‘habitat naturale’ nel quale l'uomo vive e agisce come elemento necessario alla collettività, ossia i concetti che hanno un indubbio valore unificante che prescindono da una visione separata delle singole componenti ambientali (grifo nosso). Martín Mateo (1977, p. 72-73) entende que o conteúdo semântico da palavra ambiente, em termos gerais, corresponde à expressão inglesa environment e à francesa environnement, verbis: La palabra ambiente, en términos generales, corresponde a la expresión inglesa ‘environment’ y francesa ‘environnement’ (34), que han sido traducidas con acierto entre nosostros por “entorno”, aunque con evocaciones de caráter urbanistico. Una primeira aproximación al concepto de ambiente nos remite a una noción amplia que incluye toda la problemática ecológica general y por supuesto el tema capital de la utilización de los recursos, a disposición del hombre, en la biosfera. Esta perspectiva globalista es a veces la adoptada en ciertos pronunciamientos realizados en el seno de organismos internacionales. Así, en la Conferencia de Estocolmo de 1972, se afirma que “el hombre tiene el derecho fundamental a la liberdad, la igualdad y el disfrute de condiciones de vida adecuadas en un medio de calidad tal que le permita llevar una vida digna y gozar de bienestar, y tiene la solemne obligación de proteger y mejorar el medio para las generaciones presentes y futuras. Para Martín Mateo, uma primeira visão do conceito de ambiente sugere noção genérica, que inclui toda a problemática ecológica, e a questão principal que é a utilização dos recursos, bem como a posição do homem na biosfera. Essa perspectiva globalista tem sido, por diversas vezes, adotada em pronunciamentos realizados nos fóruns de organismos internacionais.34 Martín Mateo (1977, p. 74) enfatiza que as conceituações gerais apresentam caráter meramente referencial, sendo necessário recorrer a maior aprofundamento dos conceitos, de modo a estabelecer-se conceito jurídico mais concreto do meio ambiente, verbis: Es evidente que en todos estos casos se trata más bien de declaraciones de principio lejanamente orientadores de la política del Derecho que de la adopción de postulados de trascendencia jurídica inmediata. La posibilidad de acuñar en sentido técnico un Derecho ambiental no puede hacerse sobre tales bases y exige una formulación de objetivos concretos a cuyo servicio, con una cierta coherencia lógico-jurídica, se instrumentará un determinado sistema normativo (36 bis). Dessa forma, considera o ambiente como conjunto de elementos naturais, que deixaram de ser “res nulius” para ser objeto de proteção jurídica, como bem comum: Creemos que, efectivamente, el meollo de la problemática ambiental moderna está en la defensa de unos factores que inicialmente podrían haber sido calificados como ‘res nulius’, susceptibles de utilizazión 34 Nesse diapasão é significativo o primeiro princípio da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992), verbis: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza”. 88 89 sin límite por todos los individuos, pero que posteriormente se transforman en bienes comunes sobre los cuales una mayor intensidad de utilización, fruto de la civilización industrial y urbana, va a amenazar precisamente las condiciones indispensables para el aprovechamiento colectivo. En realidad, de lo que aquí se trata es de las cosas a las que ya aludían nuestros textos históricos en cuanto que ‘comunalmente pertenecen a todas las criaturas que viven en este mundo [...] aire y las aguas de la lluvia, la mar, sus riberas’, alguna de las cuales posteriormente recibieron el tratamiento de bienes de dominio público, dominio natural, mientras que otras, como el aire, mantuvieron su condición de ‘res nulius’. Pero es lo cierto que con el transcurso de los tiempos, tales caracterizaciones resultaron inapropiadas al posibilitar aprovechamientos abusivos que a la larga perjudicaron a los demás potenciales usuarios de estos bienes y a propia esencia colectiva (MARTÍN MATEO, 1977, p. 74, grifo nosso). Do exposto, surge a necessidade de elaboração de conceito unitário de ambiente, a ser adotado neste trabalho, razão pela qual se deve estudar o conceito dado pelos autores brasileiros, comparando-os com as definições já vistas. Por outro lado, não se pode esquecer de que as normas jurídicas, que hoje constituem objeto do Direito Ambiental surgiram de forma individual e assistemática, na medida em que evoluía a própria concepção de proteção do meio ambiente. Mirra (1994, p. 4), nesse sentido, assinala, comparando a situação brasileira com a dos outros países: Além disso, no Brasil, como de resto na maioria dos países, as normas jurídicas que no seu conjunto formam o Direito do Meio Ambiente se encontram dispersas em inúmeros textos legais, os quais apresentam conteúdo variado também. Tal situação pode ser explicada pela circunstância de que esses diplomas legislativos foram surgindo paulatinamente ao longo dos anos, na medida em que evoluía a própria concepção de proteção do meio ambiente, inicialmente voltada à conservação isolada de certos elementos da natureza (florestas, flora em geral, fauna, águas e solos), depois dirigida à preservação de ecossistemas (por intermédio da criação de parques e reservas e do combate à poluição nas mais variadas formas), e finalmente preocupada com o meio ambiente globalmente considerado, entendido não só como mero agregado dos elementos da natureza acima indicados, mas principalmente como o conjunto de relações, interações e interdependências que se estabelecem entre todos os seres vivos uns com os outros (incluindo o homem) e entre eles e o meio físico no qual vivem. 2.1.3 Meio ambiente: conceito no direito brasileiro 89 90 Silva J., (1994, p. 1), baseando-se na doutrina estrangeira, entende que a palavra ambiente indica a esfera, o círculo, o âmbito que nos cerca, em que vivemos. Em certo sentido, portanto, nela já se contém o sentido da palavra meio. Entretanto, defende o uso da expressão “meio ambiente”, verbis: O ambiente integra-se, realmente, de um conjunto de elementos naturais e culturais, cuja integração condiciona o meio em que se vive. Daí por que a expressão meio ambiente se manifesta mais rica de sentido (como a conexão de valores) do que a simples palavra ambiente. Esta exprime o conjunto de elementos; aquela expressa o resultado da interação desses elementos. O conceito de meio ambiente há de ser, pois, globalizante, abrangente de toda a natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico. O meio ambiente é assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais (SILVA, J., 1994, p. 2, grifo nosso). Em verdade, pode-se reconhecer que, na expressão “meio ambiente”, denota-se certa redundância, já advertida por Martín Mateo (1977, p. 71), verbis: Se observará que aqui se utiliza decididamente la rúbrica “Derecho ambiental” en vez de “Derecho del medio ambiente”, saliendo expresamente al paso de una práctica linguistica poco ortodoxa que utiliza acumulativamente expresiones sinónimas o al menos redundantes, en lo que incide el propio legislador, Reglamento de Actividades de 1961. A precisa definição de Silva J., (1994, p. 3) afasta-se, pois, da corrente doutrinária italiana, já exposta, de Giannini, que prevê visão pluralista do conceito de ambiente. Aquela definição adota, pois, visão unitária que ressalta três aspectos do meio ambiente: I - meio ambiente artificial, constituído pelo espaço urbano construído, consubstanciado no conjunto de edificações (espaço urbano fechado) e dos equipamentos públicos (ruas, praças, áreas verdes, espaços livres em geral: espaço urbano aberto); II - meio ambiente cultural, integrado pelo patrimônio histórico, artístico, arqueológico, paisagístico, turístico, que embora artificial, em regra, como obra do homem, difere do anterior (que também é cultural) pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou; e III - meio ambiente natural, ou físico, constituído pelo solo, a água, o ar atmosférico, a flora, enfim, pela interação dos seres vivos e seu meio, onde se dá a correlação recíproca entre as espécies e as relações destas com o ambiente físico que ocupam. É esse o aspecto do meio ambiente que a Lei nos. 6.938, de 31.8.1981, define, em seu art. 3o, quando diz que, para os fins nela previstos, entende-se por meio ambiente o conjunto de condições, leis, influências e interações de 90 91 ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Portanto, a definição de José Silva segue a visão sistêmica unitarista, já que conceitua o ambiente como unidade inter-relacionada e, assim, sugere a necessidade de tratativa unitária, resultante da ampla multiplicidade e variedade de elementos que integram o ambiente. Em consonância com tal entendimento, Mukai (1992, p. 3), em lapidar conceito sistêmico, ensina, verbis: A expressão “meio ambiente” tem sido entendida como a interação de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado vida do homem, não obstante a expressão, como observam os autores portugueses, contenha um pleonasmo, porque “meio” e “ambiente” são sinônimos (grifo nosso). Machado P., (1995, p. 72), preocupando-se com o conceito de ambiente nas legislações estaduais, assinala, verbis: A legislação fluminense considerou como meio ambiente ‘todas as águas interiores ou costeiras, superficiais ou subterrâneas, o ar e o solo’ (art. 1o, parágrafo único do Decreto-lei 134/75). Em Alagoas dispôs-se que ‘compõem o meio ambiente: os recursos hídricos, a atmosfera, o solo, o subsolo, a flora e a fauna, sem exclusão do ser humano’ (art. 3o da Lei 4.090/79). Em Santa Catarina conceituou-se meio ambiente como a ‘interação de fatores físicos, químicos e biológicos que condicionam a existência de seres vivos e de recursos naturais e culturais’ (art. 2o, I, da Lei 5.793/80). Em Minas Gerais ‘meio ambiente é o espaço onde se desenvolvem as atividades humanas e a vida dos animais e vegetais’ (art. 1o, parágrafo único da Lei 7.772/80). Na Bahia ‘ambiente é tudo o que envolve e condiciona o homem, constituindo seu mundo e dá suporte material para a sua vida biopsicossocial’ (art. 2o da Lei 3.858, de 3.11.80). No Maranhão ‘meio ambiente é o espaço físico composto dos elementos naturais (solo, água, e ar), obedecidos os limites deste Estado’ (art. 2o, parágrafo único, a da Lei 4.154/80). No Rio Grande do Sul é o ‘conjunto de elementos – água interiores ou costeiras, superficiais ou subterrâneas, ar, solo, subsolo, flora e fauna –, as comunidades humanas, o resultado do relacionamento dos seres vivos entre si e com os elementos nos quais se desenvolvem e desempenham as suas atividades’ (art. 3o, II da Lei 7.488, de 14.1.81) (grifo nosso). Assim, verifica-se que a maior parte das conceituações estaduais não limita o conceito ambiental ao homem, mas a TODAS AS FORMAS DE VIDA. Nesse sentido, corresponde à definição federal dada pela Lei 6.938/81 de 31/08/81, recepcionada pela Constituição Federal, que conceitua o meio ambiente como “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Por outro lado, verifica-se certa variação terminológica legal do conceito de meio ambiente nas diferentes legislações estaduais, o que retrata, no plano legal, as sensíveis diferenças entre os Estados-membros da Federação brasileira. Nesse sentido, Santos (1996, p. 221-222) ressalta, verbis: 91 92 A posição antropocêntrica de visão do mundo, que tem em Kant a sua maior expressão, deve ser revista para a nova tomada de posição filosófico-ambiental. Para esta visão o homem está no centro do universo e a natureza está para servi-lo. Para a nova filosofia proposta, a ecocêntrica – oikos = casa em grego + cêntrico = centrado na casa, sendo esta interpretada como o habitat do homem, ou seja, centrado no todo, o homem passa a ser entendido como um ente integrante da natureza, como todos os outros seres. A Constituição da República submete a objeto de proteção o meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme se lê do artigo 225, caput, alçando-o à condição de bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, a que todos têm direito. Essa, portanto, é a característica finalística do meio ambiente, que deve ser perseguida e preservada por toda Federação. A manutenção de ecossistema de forma nãoequilibrada ecologicamente, o exercício de atividade econômica que desconsidere a determinação constitucional e o desenvolvimento de políticas públicas, que não observem essa imposição, consubstanciarão clara afronta ao texto constitucional aplicável a todos os entes federados. A definição constitucional e a definição infraconstitucional apresentadas têm por mérito, ademais, integrar o homem ao meio, rompendo com posições cartesianas que o colocam ante o meio ambiente, dele destacado, em relação de dominação. Os textos legais ensejam, por conseqüência, a preponderância da complementariedade recíproca entre o “ser humano” e “o meio ambiente” sobre a ultrapassada relação de sujeição e instrumentalidade. 2.1.4 Direito ao “meio ambiente sadio” como direito fundamental da pessoa humana O direito ao “meio ambiente sadio” é reconhecido, nas legislações, como sendo um dos direitos mais importantes, no final deste século. Esse direito já está amplamente inserido no ordenamento básico jurídico nacional de muitos países e, até mesmo, como parte das Constituições dos Estados-membros. A título de exemplo, podem-se citar: • Portugal: “Todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender.”(art. 66, item 1 da Constituição de 1976); • Colômbia: “Todas las personas tienen el derecho de gozar de um medio ambiente sano.” (art. 79 da Constituição de 1991); • Paraguai: “Toda pessoa tem direito de habitar em um meio ambiente saudável [...]” (art. 7o da Constituição de 1992); e • Cabo Verde: “Todos têm direito a um ambiente de vida sadio [...]” (Constituição de 1992, art. 70). 92 93 Portanto, no âmbito da proteção jurídica nacional de diferentes países, este direito está consagrado nos texto das respectivas Constituições. Observa-se que em todas as definições apresentadas, o direito ao meio ambiente vincula-se ao homem (à pessoa humana, titular, por excelência, de direitos e obrigações no ordenamento ocidental). O meio ambiente, igualmente, está protegido por relevantes textos internacionais, tais como: • A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos: ‘Todos os povos têm direito a um ambiente satisfatório e geral, favorável ao seu desenvolvimento”; • O Protocolo Adicional à Convenção Americana dos Direitos Humanos, tratando dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, prevê que: “Toda pessoa tem direito de viver num meio ambiente sadio e de ter acesso aos serviços públicos básicos”; e • A Declaração dos Direitos Humanos Fundamentais, adotada pela União Européia em abril de 1989, ratifica “um direito fundamental à proteção ambiental, à medida que obriga as instituições da União Européia a tomar todas as precauções necessárias para a preservação, proteção e melhoramento da qualidade ambiental” (AGELEN, 1995, p. 276). Dando relevo à proteção ambiental no direito interno, Prado (1992, p. 83-84) observa, verbis: No plano do direito interno, em decorrência do conteúdo político e da relevância do fenômeno ambiental, as constituições modernas, sobretudo a partir da década de 70, passaram a dar-lhe tratamento explícito em seus textos, evidenciando assim a necessidade de uma tutela mais adequada. As Cartas francesas de 1946 e 1958 não fazem referência expressa ao ambiente. Contudo, há em França uma ampla e prolixa legislação ordinária a respeito. De modo similar, a Lei Fundamental alemã tampouco trata diretamente do tema. O artigo 74 versa apenas sobre repartição de competência. Na Itália, a Constituição de 1947 dispõe no artigo 9.2. sobre a “tutela da paisagem, do patrimônio histórico e artístico da nação”. Esta norma é interpretada extensivamente, como principio informador da ação ambiental. Em geral, as Constituições Americanas mais recentes consignam o aspecto ambiental. Assim, a Constituição do Chile de 1972 assegura a todas as pessoas um ambiente livre de contaminação, sendo dever do Estado velar para que este direito não seja transgredido e tutelar a preservação a natureza, podendo a lei estabelecer restrições específicas ao exercício de determinados direitos ou liberdades para proteger o meio ambiente (art. 198). A Lei Magna do Panamá de 1972 estabelece ser dever fundamental do Estado propiciar um meio ambiente são e combater as contaminações (arts. 114 a 117). A Carta do Peru de 1980 dispõe que todos tem o direito de habitar em um meio ambiente saudável ecologicamente equilibrado e adequado para o desenvolvimento da vida, e a preservação da paisagem e da natureza, sendo obrigação do Estado prevenir e controlar a contaminação ambiental (art. 123). No mesmo sentido, têm-se as Constituições de Cuba de 1976 (art. 270) e de El Salvador de 1983 (art. 117); da Guatemala de 1985 (art. 97) e do México de 1987 (art. 27). 93 94 Em nível internacional, reconhece-se que a proteção ambiental se fundamenta na instrumentalização do direito à vida. Como diz claramente Aggelen (1995, p. 282): It is obvious that the relation between the right to life and environmental protection gained importance again in the wake of the deliberate burning of the Kuwait oil fields by Saddam Hussein in 1991. Art.35, para. 3 of Protocol I additional to the four 1949 Conventions on the Laws of War prohibits “to employ methods or means of warfare which are intendend, or may be expected to cause widespread, long-term and severe damage to the national environment”. A similar provision protects the natural environment in article 55. Já em 1972, a Declaração de Estocolmo, no Preâmbulo, fixou que dois aspectos do meio ambiente (o natural e o artificial) são essenciais para o bem-estar do homem e para o desfrute dos direitos humanos fundamentais, até mesmo o direito à vida. Da mesma forma, como extensão dos princípios estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948, a Declaração de Estocolmo estabeleceu claramente que o homem tem direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em meio ambiente de qualidade que lhe permita levar vida digna e gozar de bem-estar; por sua vez, o homem tem a obrigação de proteger e melhorar o ambiente para as gerações presentes e futuras. Assim, vincula-se a proteção ambiental, também, à dignidade humana de vida com qualidade. Atualmente, a relevância do direito ao meio ambiente sadio leva alguns autores, como Déjeant-Pons (apud MACHADO, P., 1995, p. 25), a afirmar que este direito constitui um dos maiores direitos humanos do século XXI, na medida em que a Humanidade se vê ameaçada no mais fundamental de seus direitos, o da própria existência. Portanto, claramente, surge a vinculação entre o direito ao meio ambiente e o direito à vida. Destacando a preocupação com a proteção ambiental, vista como direito fundamental, Kiss (1995, p. 37) salienta que: In the changing world of the second half of the 20th century two major values have emerged: fundamental human rights and freedom on one side, environment on the other. Both must be protected by law, the objective of which is to protect fundamental social values. Both must be approached at the international level. Thus, such protection is the task of international law. Conseqüentemente, tanto o ordenamento jurídico interno como o ordenamento jurídico internacional concordam com a existência de direito fundamental ao meio ambiente. Encontramo-nos, assim, diante de nova perspectiva do direito à vida humana como principal fundamento da proteção ambiental, que é a responsabilidade comum de todos os Estados, como ficou estabelecida, na Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados 94 95 (1974, art. 30) “La protección, la preservación y el mejoramiento del medio ambiente para las generaciones presentes y futuras es responsabilidad de todos los Estados.” Assim, apesar da conceituação jurídica ampla de meio ambiente envolver outros seres além do homem, verifica-se, em sua caracterização vigente, que é o ser humano, por excelência, que o eleva, no âmbito jurídico, à categoria de direito fundamental. 2.2 SADIA QUALIDADE DE VIDA DO HOMEM Para Derani (1997, p. 77), a expressão “sadia qualidade de vida”, no âmbito do direito ambiental, tem aspecto quantitativo (grande número de bens à disposição do ser humano) e, principalmente, aspecto qualitativo, verbis: A inserção de tal expressão no direito ambiental brasileiro acaba por denunciar a busca por um aspecto qualitativo, depois das decepções resultantes da adoção de um sentido unicamente quantitativo para designar qualidade de vida, traduzida que era apenas por conquistas materiais. O alargamento do sentido da expressão qualidade de vida, além de acrescentar esta necessária perspectiva de bem-estar relativo à saúde física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito do homem fruir de um ar puro e de uma bela paisagem, vinca o fato de que o meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, porém integrada à vida do homem social nos aspectos relacionados à produção, ao trabalho como também no concernente ao seu lazer. Por outro lado, mostra-se evidente que o conteúdo do termo “qualidade de vida” difere entre as sociedades, entre os grupos sociais e, principalmente, é alterado ao longo do tempo. Pode-se colocar a sadia qualidade de vida como o conjunto de condições objetivas, externas à pessoa, compreendendo qualidade de ensino, de saúde, de habitação, de trabalho, de lazer e, por óbvio, do ambiente, de molde a possibilitar o referido desenvolvimento pleno da pessoa.35 É nessa medida que Silva, J., (1994, p. 54) coloca a tutela da qualidade do meio ambiente em função da tutela da qualidade de vida, como objeto de proteção jurídica. Sua observação é consentânea e harmônica com o expresso no texto constitucional, segundo o qual o meio ambiente ecologicamente equilibrado é elemento essencial à sadia qualidade de vida e, portanto, relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito fundamental à vida. 35 Reale (1963, p. 65-71) observa que não se pode reduzir o indivíduo à sociedade ou ao Estado, ou diluí-lo no processus objetivante da história, de um lado, ou limitá-lo a sua subjetividade desconsiderada do âmbito social de vivência de outro. Reale aponta, então, que “o homem é a sua história, mas também” é a história por fazer-se, em ambivalência e polaridade de “ser passado” e “ser futuro”, de ser mais que sua própria história. Miguel Reale arremata: “e note-se que o futuro não se atualiza como pensamento, para inserir-se no homem como ato – caso em que deixaria de ser futuro –, mas se revela em nosso ser como possibilidade, tensão, abertura para o projetar-se intencional de nossa consciência, em uma gama constitutiva de valores”. Assim, pelo pensamento de Miguel Reale, o ser pessoa, integral e plena, depende do devir, em formação contínua e criadora, mutatis mutandi, a sadia qualidade de vida constitui-se conceito mutável adequável às novas conquistas humanas. 95 96 A sadia qualidade de vida lembra que a regulação de atividades poluidoras funda-se, também, na garantia do direito à saúde, previsto no art. 196 da Constituição Federal: Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado garantido através de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para sua promoção, proteção e recuperação (grifo nosso). Nesse sentido, o direito à proteção integral da saúde da população é, sem dúvida, de interesse social e, portanto, deve ensejar tutela estatal. Assinala, também, que a regulação de atividades poluidoras funda-se não só em meio ambiente ecologicamente equilibrado (art. 225 da C.F.), mas, também, na garantia do direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição Federal. Essa expressão identificadora dos direitos de terceira geração permite a necessária harmonização do desenvolvimento econômico e da proteção ambiental. Tal dimensão de desenvolvimento sustentável da expressão “qualidade de vida” é detalhada por Derani (1997, p. 78): A aceitação de que qualidade de vida corresponde tanto a um objetivo do processo econômico como a uma preocupação da política ambiental fasta a visão parcial de que as normas de proteção do meio ambiente seriam servas da obstrução de processos econômicos e tecnológicos. A partir deste enfoque, tais normas buscam uma compatibilidade desses processos com as novas e sempre crescentes exigências do meio ambiente. A Constituição Federal Brasileira contém este caráter integrador da ordem econômica com a ordem ambiental, unidas pelo elo comum da finalidade de melhoria da qualidade de vida [...] 2.3 PRESENTES E FUTURAS GERAÇÕES HUMANAS Töpfer (1992, p. 1), em discurso pronunciado durante a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, no dia 3 de junho de 1992, afirmou, em clara alusão ao aspecto da solidariedade entre gerações, verbis: “Somos um mundo só” – eis a mensagem que muitas crianças na Alemanha me encarregaram de transmitir a esta conferência sobre meio ambiente e desenvolvimento no Rio de Janeiro. Esta mensagem nos impõe uma obrigação. Para garantirmos aos nossos filhos e netos, neste mundo, um futuro que valha a pena ser vivido teremos de agir em termos de uma parceira global. Para tanto, é imprescindível uma mudança de atitude no mundo todo e, especialmente para nós, do Norte, uma mudança de rumo. Sabemos que, como países industrializados, estamos incumbidos de uma particular responsabilidade. 96 97 Assumimos esta responsabilidade, considerando os danos que nossas sociedades causaram ao meio ambiente global e ainda em função das nossas possibilidades tecnológicas e financeiras. O que não solucionamos hoje deixará uma pesada carga aos nossos filhos e às gerações futuras. Este contrato entre as gerações nos obriga. Portanto, conhecedores dos inúmeros problemas e tarefas, das diversas responsabilidades e interesses, não podemos cair na resignação. Muito pelo contrário, precisamos de otimismo realista para, juntos, enfrentarmos os problemas urgentes do subdesenvolvimento e da pobreza, da exploração predatória de recursos e da destruição da natureza. Assim, “a preservação ambiental para as presentes e futuras gerações” está intimamente ligada ao espírito de solidariedade, que caracteriza os direitos a ações positivas do Estado,36 vistos sob o prisma intertemporal. Em outro enfoque, Warat (1994, p. 101) relaciona a solidariedade ecológica com o dever de cuidado e com a cidadania, verbis: Chegamos, assim, ao amor como cuidado. O amor é sempre uma forma de cuidado. Amamos a vida quando a cuidamos; encontramos a solidariedade quando cuidamos do outro; desenvolvemos nossa subjetividade quando cuidamos para que nosso desejo não caia prisioneiro de nenhum objeto. Resumindo: podemos estabelecer algumas garantias para a continuidade da vida aprendendo a não sermos maltratados. A pedagogia que transmita cuidados ao invés de verdades. A “prática do cuidado” é uma forma de forçar o poder para que encontre limites com os quais deva negociar. A dimensão política do cuidado passa pela necessidade de dizer não ao poder que nos maltrata. Impondo-lhes limites, buscando por todos os meios evitar que fiquemos atados por uma estrutura cesarista. Por aqui passa o sentido estrito da palavra cidadania: o controle do limite, o que parece essencialmente antagônico com as práticas “delegatórias da democracia”. Por aqui começa o sentido mais amplo de cidadania como uma forma solidária de encontrar-se, autônomo, frente à lei, de exigir cuidado público da vida. A cidadania como uma questão ecológica e de subjetividade: o mundo e o outro como limite que me constitui autônomo (grifo nosso). Nessa abordagem, constata-se que o dever de cuidado pode ser ampliado para abarcar o cuidado com os outros seres. Portanto, a norma-princípio do art. 225 da Constituição Federal possui rico domínio normativo, conforme visto, exigindo do intérprete visão sistêmica do conjunto, sendo, inclusive, possível enquadramento amplo para a proteção de outros seres. Assim, não obstante a titularidade do direito ao meio ambiente seja exclusiva do ser humano, o seu objeto é amplo e abarca a proteção de outros seres. 36 Assim, conforme afirma Miranda (1988, t. 4, p. 98), se os direitos de defesa “são direitos de libertação do poder”, os direitos a ações positivas do Estado “são direitos de libertação da necessidade” – o âmbito dos primeiros é configurado pela “limitação jurídica do poder”, o conteúdo irredutível destes últimos é a “organização da solidariedade”. 97 98 2.4 O MACRO E O MICROBEM AMBIENTAL 2.4.1 O macrobem ambiental como bem de uso comum do povo A maneira como o Direito encara o fenômeno ambiental e seu reflexo no econômico modificou-se ao longo do tempo. Sob esse ponto de vista, interessante analisar as diferentes terminologias utilizadas no trato do bem ambiental, por ressaltarem as diversas e progressivas valorações dadas ao fenômeno ambiental sob o prisma de sua visão econômica. A colocação, posta no texto constitucional vigente brasileiro, que qualifica o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo37, requer breve estudo da classificação de bens corporificada no Código Civil quanto ao titular do domínio. Assim, adverte-se que o meio ambiente constitui bem e não ente que titulariza direitos e obrigações. O meio ambiente é visto como objeto de uma relação jurídica – um bem (coisa). Nesse sentido, ilustrativa a conceituação de Alves (1978, p. 182): Em acepção vulgar, a palavra coisa tem sentido muito amplo: ela abrange tudo o que existe na natureza, ou que a inteligência do homem é capaz de conceber. Em sentido jurídico, no entanto, coisa é empregada em acepção mais restrita: é aquilo que pode ser objeto de direito subjetivo patrimonial. Preliminarmente, em visão sistêmica, fundamental é distinguirem-se as partes do todo, ou seja, não confundir os elementos constitutivos do ambiente com o ambiente como universalidade. É a distinção que Benjamin (1993a, p. 69-72) faz de bem ambiental, categorizando-o em macrobem e microbem ambientais. A visão esclarecedora de Benjamin pode ser entendida, também, à luz da classificação legal, presente no atual Código Civil entre coisas singulares e coisas coletivas (arts. 54 a 57 da Lei 3.071/1916), no destaque dado por Alves (1978, p. 188): Esta classificação é originária da filosofia estóica. Coisa simples é aquela que forma um todo orgânico (um animal, por exemplo); coisa composta é aquela que forma um todo mecânico (assim, um navio); e coisa coletiva é aquela que forma um todo ideal (por exemplo: um rebanho, que é constituído de várias coisas simples – as ovelhas –, mas que são consideradas, idealmente, como um todo, e são designadas por um nome único: rebanho). O ambiente, como “equilíbrio ecológico”, e macrobem ambiental, é essencialmente imaterial e incorpóreo, não sendo passível de apropriação ou sobre o qual se possam conferir direitos individuais. Os elementos corpóreos integrantes do meio ambiente têm regime jurídico próprio e estão submetidos à legislação própria. Observe-se que, quando se fala na 37 O art. 225 da Constituiçao Federal de 1988 afirma, verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 98 99 proteção da fauna, da flora, do ar, da água e do solo, não se busca propriamente a proteção desses elementos em si, mas, sim, deles como elementos indispensáveis à proteção do meio ambiente como bem imaterial, objeto último e principal almejado pelo legislador. Sem diminuir a importância da preservação dos elementos corpóreos – microbens –, deve-se atentar para o fato de que eles são vistos e considerados não em sua individualidade específica, mas como elos fundamentais da imensa cadeia, da grande teia que rege a vida de forma geral (o meio ambiente) (BENJAMIN, 1993a, p. 70). Nesse sentido, o enfoque de Benjamin (1993a, p. 75): Como bem – enxergado como verdadeiro universitas corporalis, é imaterial – não se confundindo com esta ou aquela coisa material (floresta, rio, mar, sítio histórico, espécie protegida, etc.) que o forma, manifestando-se, ao revés, como o complexo de bens agregados que compõem a realidade ambiental [...] uma definição como esta de meio ambiente, como macrobem, não é incompatível com a constatação de que o complexo ambiental é composto de entidades singulares (as coisas, por exemplo) que, em si mesmas, também são bens jurídicos. As coisas e os bens38 podem ser classificados de conformidade com vários critérios. Atende-se à natureza física dos bens, às suas relações recíprocas, aos seus titulares, à possibilidade de comerciar ou não em relação a eles. Nesta matéria, o próprio Código Civil (1916, cap. I, L. II, art. 43) definiu e classificou meticulosamente os bens. Referiu-se inicialmente aos bens considerados em si mesmos, caracterizando os bens imóveis, os móveis, as coisas fungíveis e consumíveis, as divisíveis e indivisíveis e as coisas singulares e coletivas. O Direito Romano conhecia a distinção entre res mancipi e res nec mancipi, baseando-se na importância que certos bens tinham no regime econômico patriarcal da época, considerando, entre as primeiras, o solo itálico, certos animais de tração, os escravos, os instrumentos agrícolas e as servidões. As res mancipi necessitavam de maiores formalidades para serem transferidas e eram consideradas como sendo de valor básico na época.39 Do mesmo modo, podemos afirmar que a classificação dada ao bem ambiental, ao longo dos tempos, representava a maior ou menor importância que se dava à preservação da natureza pela sociedade. A maneira como o Direito encara o fenômeno ambiental e seu reflexo econômico modificou-se ao longo do tempo. Sob esse ponto de vista, interessante analisar as diferentes terminologias utilizadas no trato do bem ambiental, por ressaltarem as diversas e progressivas valorações dadas ao fenômeno ambiental em contraste com a sua visão econômica. Coube ao Direito medieval salientar a importância da classificação de bens móveis e imóveis, pois os últimos importavam em dar aos seus titulares o poder político, na época, vinculado à terra. Constituíam a riqueza de importância social à qual se ligava o poder político dos suseranos e a estabilidade econômica (WALD, 1989, p. 143). 38 No âmbito do nosso trabalho, a exemplo do que é feito no Código Civil (1916), não se distingue “coisas” e bens, sendo ambos representativos de objetos da relação jurídica. 39 O interesse prático dessa classificação, enquanto ela teve razão de ser, ocorria quanto ao modo de aquisição da propriedade; as res nec mancipi podiam ser adquiridas pela tradição (traditio), modo não solene de aquisição da propriedade; as res mancipi apenas podiam ser adquiridas mediante modos solenes como a mancipatio e a in iure cessio (ALVES, 1978, p. 195). 99 100 A escola dos fisiocratas40 de Quesnay, no século XVIII, continuava, aliás, a ver na terra a única fonte real e autêntica criadora da riqueza. Assim, as legislações do século XVIII, que mais influenciaram o nosso Código Civil – o Código de Napoleão e o Código Alemão (BGB) – mantiveram o tratamento especial dado aos imóveis. Atentando à qualificação que faz a Constituição de meio ambiente como bem de uso comum do povo, necessário é recorrermos, preliminarmente, às palavras de Beviláqua (1980, p. 193-194), que afirmava serem os bens, “em relação às pessoas, a quem os bens pertencem”, divididos em públicos e particulares, verbis: Os bens públicos, encarados do ponto de vista de sua utilização, podem ser: de uso especial, de uso comum e particular ou dominicais. São de uso comum os administrados pelos poderes públicos, e que podem ser utilizados por quaisquer pessoas, respeitadas as leis e regulamentos [...]. Os bens comuns, enquanto conservam esse caráter, são inalienáveis e repelem o usucapião; os de uso especial e os patrimoniais podem ser alienados, de conformidade com as leis que os regulam.41 Entre os bens de uso comum da época, elencavam-se o mar territorial, os golfos, baías, enseadas e portos; as praias; os rios navegáveis; as estradas e caminhos públicos, excluídas as vias férreas federais, além do que também se classificavam extra commercium, por serem de uso inexaurível, como o ar, as águas correntes, quando parte de rios públicos, a luz e o mar alto (Beviláqua, 1980, p. 208). A abundância desses bens fez com que permanecessem inapropriáveis e, nesta lógica, excluídos da tutela jurídica. A toda evidência, o termo “bem de uso comum” designa, no texto constitucional, conceito diverso do descrito no Código Civil. Expressa, sim, o caráter difuso da proteção ambiental, pois não sendo de ninguém, é de todos. Refere-se a expressão à titularidade do bem e não à sua natureza. O meio ambiente, como macrobem, é bem público, salienta Benjamin (1993a, p. 66), não porque pertença ao Estado (pode até pertencê-lo), mas porque se apresenta no ordenamento, constitucional e infraconstitucional, como “direito de todos”. É bem público em sentido objetivo e não, subjetivo. Por sua natureza e pelos elementos que engendra, prematuro é, entretanto, categorizar o bem ambiental no âmbito de “dominialidade coletiva”. 40 41 O conceito, conhecido como fisiocracia, foi elaborado no século XVIII pelos economistas franceses liderados por François Quesnay, os fisiocratas acreditavam que todas as atividades sociais (inclusive as econômicas) são regidas pelo Direito Natural, que nenhum governo pode comandar; deve-se, portanto, deixar que o mercado siga o seu curso natural. Defendiam o comércio livre, o laissez-faire Conforme ensina Huberman (1986, p. 138-139), verbis: “Os fisiocratas chegaram à sua fé no comércio livre por um caminho indireto. Acreditavam, acima de tudo, na inviolabilidade da propriedade privada, particularmente na propriedade privada da terra. Por isso, acreditavam na liberdade – o direito do indivíduo fazer de sua propriedade o que melhor lhe agradasse, desde que não prejudicasse a outros. Atrás de sua argumentação a favor do comércio livre está a convicção de que o agricultor devia ter permissão para produzir o que quisesse, para vender onde desejasse. Naquela época, não só era proibido mandar cereais para fora da França sem pagar imposto, como o próprio trânsito do produto de uma parte do país para outra era taxado. A isso se opunham os fisiocratas. Mercier de La Rivière, autor da melhor exposição dos princípios defendidos pelos fisiocratas, assinalou que a liberdade completa era essencial ao gozo dos direitos de propriedade” (grifo nosso). Cumpre observar que o próprio Beviláqua (1975, p. 300), apontou que a inscrição original para o Capítulo dos Bens era Dos bens em relação às pessoas, tendo sido suprimido pelo Senado em face de críticas de alguns juristas à classificação dos bens que toma por base as pessoas, a que os mesmos pertencem (Planiol, Teixeira D’Abreu). Beviláqua repele a crítica, ponderando ser a classificação feita “não do ponto de vista dos proprietários, mas do ponto de vista do modo pelo qual se exerce o domínio sobre os bens”. 100 101 A noção de domínio, mesmo na modalidade coletiva, pressupõe o conceito de direito subjetivo a amarrar o bem ambiental à perspectiva individualizante, contrariando as construções doutrinárias até agora firmadas no campo dos interesses difusos.42 A titularidade dos elementos constitutivos do ambiente – microbens ambientais –, assim como o feixe de interesses que lhe são correlatos, não interferem na fruição do bem ambiental como bem de uso comum do povo. Em seu aspecto patrimonial, pode ser objeto de direitos de propriedade ou de outros direitos reais. Como bem ambiental, é objeto de interesses difusos, ensejando o dever de intervenção pelo Poder Público e pela coletividade para sua defesa e preservação. A propósito da qualificação do bem ambiental, Silva, J., (1994, p. 56) aponta tendência da doutrina italiana na configuração da categoria dos bens de interesse público, em que se inserem tanto bens pertencentes a entidades públicas como bens de sujeitos privados, subordinados a peculiar regime jurídico relativo ao gozo e à disponibilidade, assim como a particular regime de polícia, de intervenção e de tutela pública. Como tal, são dotados de regime jurídico especial, porque essenciais à sadia qualidade de vida e vinculados, assim, a fim de interesse coletivo. O proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da qualidade do meio ambiente a seu talante, porque ela não integra sua disponibilidade. Portanto, o bem ambiental, “bem de uso comum do povo”, não se identifica com a definição de bens públicos e privados do Código Civil brasileiro.43 Sua titularidade não o vincula somente ao Estado, mas à sociedade em geral. Por outro lado, não só os bens públicos integram, os bens sujeitos à proteção ambiental também, os bens privados são protegidos no enunciado constitucional. Entretanto, a visão jurídica do meio ambiente, sob enfoque macro, restringe-se a de objeto de relação jurídica de titularidade difusa. 2.4.2 Os seres animados e inanimados (microambiente) como coisas de ninguém (res nullius) e coisas abandonadas (res derelicta) Historicamente, os bens ambientais nem sempre foram vistos como bem de interesse público, que limitam o direito de propriedade. Em primeiro momento, os bens ambientais, nem suscetíveis de serem objeto de relação jurídica eles eram, consideravam-se “bens livres”, conforme já visto, em contraste aos “bens econômicos”, estes sim, úteis, escassos e acessíveis aos homens (ARAGÃO, 1997, p. 22). Supunha-se que os bens livres eram infinitamente abundantes (“reservatório inesgotável”) para Aragão (1997, p. 22) “capazes de satisfazer sem restrições toda a procura que lhes fosse dirigida”. Como não carecem sequer de ser transacionados no mercado, os mecanismos econômicos dos preços não funcionam para os bens livres, pois tornam-os gratuitos, sendo considerados “sem valor”. A visão liberal torna-os sem valor, pois, conforme ensina Smith (1999, p. 160, 162): 42 43 Cf. MANCUSO (1988. p. 59-109). “Os bens públicos são: I – de uso comum do povo, tais como os mares, estradas, ruas e praças [...]” (Art. 66 do Código Civil). 101 102 O preço por que qualquer mercadoria á efectivamente vendida chamase preço de mercado. Tanto pode ser superior, como inferior, ou exatamente igual ao seu preço natural. [...] Quando a quantidade posta no mercado excede a procura efectiva, torna-se impossível vendê-la. Assim, o valor econômico de um bem vincula-se à sua oferta e à sua procura. Sendo a oferta ilimitada, na concepção vigente até a Revolução Industrial, o bem ambiental carecia de preço, bem como de proteção jurídica, razão pela qual era classificado como “res nullius”. Ressaltando, a contradição da valoração de bens pelo sistema econômico liberal no que se refere ao meio ambiente, Aragão (1997, p. 24) destaca que: “[...] O valor de troca do ar que respiramos é nulo mas o seu valor de uso pode mesmo dizer-se que é infinito, pois o ar é absolutamente indispensável à vida”. Por outro lado, Aragão (1997, p. 29) considera que essa falsa consideração do bem ambiental, residia “precisamente no empirismo do conhecimento da Natureza, que fez os Homens acreditarem na aparente abundância e inesgotabilidade dos bens ambientais a que chamam livres”. Tendo incorrido em falsa noção do bem ambiental, os economistas e os juristas, por muito tempo, identificaram os bens ambientais como “res nullius”, “res derelicta” e “bens fora do comércio”. Do mesmo modo Aragão (1997, p. 26-27) assinala que: Na realidade, embora em muitos casos não existam direitos reais, em sentido clássico, sobre os bens ambientais, sobre eles existe uma comunhão geral, com vista à satisfação tanto de interesses colectivos como de interesses individuais. A qualificação correcta destes bens ambientais é a de res omnium. Os falsos conceitos de bens livres, de res communes e de res nullius, conduziram a um fenômeno conhecido como a tragédia dos comuns, referência aos efeitos sociais e economicamente perniciosos da acelerada e irresponsável delapidação dos recursos ambientais comuns. Assim, a categorização de bem de uso comum do povo posta no texto constitucional vincula a fruição dos elementos integrantes do conjunto ambiental não somente à sua utilização racional, mas ao respeito à função social da propriedade. Demonstra, portanto, valorização da proteção do bem ambiental que por muito tempo foi considerado como res nullius44 ou res derelicta45. Verifica-se, pois, evolução na caracterização do microbem ambiental, que deixa de ser coisa sem valor e passa a ser bem jurídico com valor, sujeita, portanto, à proteção jurídica 44 “Na generalidade dos casos, os recursos naturais que economicamente se tomavam por bens livres, eram juridicamente qualificados como res nullius [...] São bens que não pertencem a nínguém, e como qualquer indivíduo pode ter acesso a eles livremente, ninguém é responsabilizado pela sua degradação” (ARAGÃO, 1997, p. 25). 45 A res derelicta são bens de ninguém, porque foram abandonados pelo proprietário natural. “O ciclo económico clássico abrangia só a produção, distribuição, e consumo, sem se preocupar com o destino dos resíduos em cada fase do ciclo [...] Como as res derelicta são também res nullius, gozam das características atribuídas a estes bens, nomeadamente a irresponsabilidade, aqui entendida já não como irresponsabilidade pela sua degradação, mas irresponsabilidade pela emissão ou abandono” (ARAGÃO, 1997, p. 27). 102 103 como “coisa” dotada de significado jurídico e econômico, afastando-se da categoria “coisa” de ninguém (res nullius) ou coisa abandonada (res derelicta). 103 104 3 ÉTICA ARISTOTÉLICA E A MACROÉTICA AMBIENTAL 3.1 UM EXEMPLO CLÁSSICO DE PENSAMENTO ÉTICO: O DIÁLOGO DE CRITÃO Nas primeiras linhas de Ética a Nicômaco, Aristóteles (1992, p. 17-18) introduz com destaque, na definição da ética e de seus fins, as noções de ciência política, de bem, de belo, de justo, assim como a de humano. Um exemplo prático de pensamento ético, envolvendo os elementos acima mencionados (ética, seus fins, ciência política, bem, belo, justo e humano), pode ser buscado nos Diálogos de Platão, mais especificamente no diálogo de Critão. Nesse diálogo, Platão descreve a situação de seu mestre Sócrates, filósofo grego, julgado e executado pela, então, Cidade-Estado de Atenas, sob a acusação de renegar os deuses e de corromper a juventude. A riqueza do diálogo ocorrido na prisão de Atenas entre Sócrates (abreviado no diálogo como “SÓC.”) e Critão (abreviado no diálogo como “CR.”), constituem excelente material de análise para a conceituação da ética. Assim, transcrevemos, de forma simplificada, trecho deste esclarecedor diálogo abaixo, verbis: SÓC. – [...] Mas, afinal, para que vieste tão cedo? CR. - Para trazer, uma noticia, Sócrates, dolorosa e desoladora - não assim para ti, pelo que vejo - mas dolorosa e desoladora para mim e para todos os teus amigos; acho que a poderia contar como uma das que mais o sejam. SÓC. - Que vem a ser?- Chegou de Delos o navio a cuja chegada devo morrer? CR. - Bem, chegar não chegou, mas calculo que deve aportar hoje, pelo que noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As novas dão a entender que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã, Sócrates, que terás de cessar de viver. SÓC. - Pois bem, Critão, à boa ventura! Se assim apraz aos deuses, assim seja. Todavia, acho que não vai aportar hoje. CR. - Em que te baseias? SOC. - Vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia seguinte ao da chegada do navio. CR. - Ao menos, assim dizem as autoridades competentes. SÓC. - Por isso, acho que não vai aportar no dia de hoje, mas no de amanhã. Baseio-me num sonho que acabo de ter esta noite. Talvez mesmo tenha sido oportuno não me haveres despertado. CR. - Como foi o sonho? SÓC. - Parecia-me que vinha uma mulher formosa, de lindas feições, vestida de branco, me chamava e dizia: "Sócrates, depois de amanhã poderás ter chegado às férteis campinas da Fitia". CR. - Sonho esquisito, Sócrates! SÓC. - De sentido claro, ao que penso, Critão. CR. - Por demais, penso eu. Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo; porque, para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só: à parte a perda de um amigo como não acharei nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos 104 105 conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu, podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação mais vergonhosa que a de fazer mais caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo. SÓC. - Mas para nós, meu caro Critão, é tão importante assim a opinião do povo? A gente melhor, com quem mais importa que nos preocupemos, cuidará que as coisas se terão passado tal como se tiverem passado. CR. - Mas bem vês, Sócrates, que não se pode deixar de fazer caso também da opinião do povo. Os fatos mesmos de agora dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os maiores; basta que entre ele se espalhem calúnias contra alguém. SÓC., - Oxalá, Critão, fôsse o povo capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios! Seria esplêndido. Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem como de tirá-lo, ele obra ao sabor do acaso. CR. - Vá lá que assim seja. Mas dize-me uma coisa, Sócrates: estás procurando evitar, não é? que eu e os outros amigos teus, caso saias daqui, venhamos, a ser molestados pelos sicofantas, sob a acusação de te subtrair daqui, e obrigados a abrir mão de todos os nossos haveres, ou pelo menos de grossas quantias, ou a sofrer, além disso, qualquer outra pena? Se é isso que temes, manda o mêdo às urtigas. É justo que nós, para salvar-te, corramos esse perigo e outros maiores ainda, se for preciso. Vamos, dá-me ouvidos e não procedas de outra maneira. SÓC. - Estou evitando isso tudo, Critão, e muitas outras coisas. CR. - Pois não tenhas esse receio. Não é muito o dinheiro que certas pessoas querem receber para levar-te daqui e salvar-te [...] SÓC. - Querido Critão! Quão precioso o teu ardor, se alguma retidão o acompanhasse! Não sendo assim, quanto mais insistente, tanto mais penoso. Temos, pois, de examinar se devemos proceder como queres ou não. Quanto a mim, não é de agora, sempre fui dêste feitio: não cedo a nenhuma outra de minhas razões, senão à que minhas reflexões demonstram ser a melhor [...] Portanto, reflete: não achas acertado dizer que a nem todas as opiniões dos homens se deve acatamento, mas a umas sim e a outras não [...] (PLATÃO, 1978, p. 120-123). Assim, colocando-nos na situação de Sócrates e contextualizando o diálogo transcrito, devemos supor que enquanto ele estava na prisão aguardando ser injustamente executado, seus amigos lhe propunham oportunidade de escapar, por que eles achavam que essa era a melhor opção. Deveria Sócrates aproveitar tal “oportunidade”? Essa é a situação de Sócrates. O diálogo dá-nos a resposta a essa questão de forma fundamentada, utilizando elementos da ciência política (povo capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios [...] ele obra ao sabor do acaso), do bem (nem tôdas as opiniões dos homens se deve acatamento), do belo (a morte para Sócrates é uma mulher formosa, de lindas feições, vestida de branco), do justo (se alguma retidão o acompanhasse) e humano (é tão importante assim a opinião do povo). Sócrates apresenta, nesse diálogo, alguns pontos importantes de como ser ético: 105 106 • Não devemos deixar a nossa decisão ser afetada pelas emoções, mas examinar os elementos das condutas possíveis à luz da razão; • Não podemos responder algumas questões, simplesmente, nos apoiando na opinião da maioria das pessoas. Elas podem, todas, estarem erradas. Devemos pensar por nós mesmos, com a nossa “consciência”; • Nunca devemos fazer o que é moralmente incorreto. A única questão que devemos responder é o que é CERTO e o que é ERRADO. Não devemos nos preocupar com o aspecto pragmático (o que irá acontecer) da nossa decisão, nem com o que as pessoas vão pensar do nosso ato, ou como nós nos sentimos com o que irá acontecer. Assim, a Ética pode ser vista como teoria de cunho prático. O que ela envolve foi ilustrado pelo diálogo de Sócrates e Critão. O termo provém do radical grego ethos, que significa “costume”. Em termos estritos, numa visão simplificada, a filosofia moral (ou ética) propõe os princípios para alcançar a conduta correta.46 Deve-se destacar, entretanto, como faz Novaes (1992, P. 7-8), que as definições que os antigos e modernos dão à noção de ética e felicidade são radicalmente diferentes, verbis: [...] Os filósofos gregos sempre subordinaram a ética às idéias de felicidade da vida presente e de soberano bem: ainda que os comentadores tenham mostrado uma infinidade de distinções sutis na moral antiga, é certo que o que está sempre em jogo é o desejo do homem de realizar o soberano bem, isto é, a vida feliz; ou melhor, o objetivo supremo da moral é “encontrar uma definição de soberano bem de tal maneira que o sábio se baste a si mesmo, isto é, que dependa dele mesmos para ser feliz, ou que a felicidade esteja ao alcance de todo homem racional”. Victor Brochard anota que o que todos combatem, em particular Epicuro, é a doutrina da felicidade tal como a entendiam Platão e Aristóteles, que “subordinavam o bem de certa maneira às circunstâncias exteriores ou à Fortuna”. Livrar-se do fatalismo, dominar as paixões, eis os postulados dominantes. “Dizer que o homem é livre, quando é um filósofo grego que fala, equivale a reconhecer que a felicidade está ao alcance de cada um”. Hoje, a felicidade não é pensada mais nos termos da moral antiga, mas em termos de eficácia técnica, de consumo. Mais ainda, ela depende cada vez mais da roda da Fortuna, das forças externas que tudo controlam e dominam, o que por si só demonstra que entre as duas concepções existe muito mais que simples diferença: há uma verdadeira ruptura, uma contradição. Da mesma maneira que Sócrates, a Ética de Aristóteles está fundamentada na identificação da razão como principal faculdade humana e da virtude (no sentido socrático de excelência e conhecimentos práticos) como bem supremo. Para Aristóteles, a virtude se encontra a meio caminho entre os extremos do excesso e da deficiência. A coragem, por exemplo, é a “áurea mediana” entre os extremos da 46 “Sua aplicabilidade prática, porém, permanece fiel ao sentido original de hábito, uso, costume, direito” (ADEODATO, 1995, p. 200). “O que designa a ética? Não uma moral, a saber, um conjunto de regras próprias de uma cultura, mas uma ´metamoral`, uma doutrina que se situa além da moral, uma teoria raciocinada sobre o bem e o mal, os valores e os juízos morais. Em suma, a ética deconstrói as regras de conduta, desfaz suas estruturas e desmonta sua edificação, para se esforçar em descer até os fundamentos ocultos da obrigação” (RUSS, 1999, p. 8). 106 107 imprudência e da covardia; a justiça (como virtude aristotélica) consiste no equilíbrio adequado entre abrir mão dos próprios direitos e abusar dos direitos de outrem. Para Darbo-Peschanski (1992, p. 35), a ética na visão de Aristóteles: [...] está subordinada à política, ciência prática arquitetônica que tem por fim (télos) o Bem propriamente humano (tò agathòn anthrõpinon). Se este último depende da política, é porque a humanidade do homem prende-se à sua vinculação a uma comunidade (koinõnía) e a cidade (pólis) constitui o fim de toda comunidade. Segue-se que o ser incapaz de fazer parte de uma koinõnía e, com mais forte razão, de uma cidade, ou o ser que não tem nenhuma necessidade de tal inserção porque se basta a si mesmo, classifica-se seja entre os deuses seja entre os animais. A ética, entretanto, não dá mais que um conhecimento aproximado do belo (tà kalá) e do justo (tà díkaia), o qual a política toma sob sua responsabilidade visando o bem e se afasta da ciência de que depende, em particular porque examina indivíduos imersos em comunidades que não são exclusivamente cívicas, como, por exemplo, o povo (éthnos). Observa-se, pois, subjacente à ética aristotélica uma preocupação com a vida em coletividade, com o indivíduo no âmbito de uma coletividade. 3.2 FUNDAMENTOS DA ÉTICA CLÁSSICA: A BUSCA DA FELICIDADE DO HOMEM Aristóteles analisa o comportamento moral do homem, enquanto “ser racional” e enquanto “ser social”, respectivamente nos tratados sobre ética e sobre política. Observa-se que, para Aristóteles (1992, p. 18), o nome genérico “política” designa as ciências práticas que versam sobre a atividade moral do homem. Para Aristóteles, a Política é a ciência suprema. A organização da pólis, com sua vida comunitária e com sua sábia legislação, é que possibilita ao cidadão os meios para que ele chegue à virtude ética.47 Aristóteles (1992) estuda o ato humano. Tal ato é entendido como livre, consciente e dirigido a um fim. Vislumbra, pois, que o homem, quando age, livre e conscientemente, almeja um determinado fim. Indaga, então, para que o homem age? Aristóteles responde que o homem sempre age visando ao bem (ágathon), seja o bem pessoal, seja o bem comum. O bem pessoal que lhe trará bem-estar (eudaimonía), ou seja, felicidade, ou o bem comum, que trará bem-estar à sua comunidade. Para Aristóteles (1992, p. 20-21), o homem pode confundir-se e praticar o mal, mas só o pratica porque se deixou iludir. Enxerga no mal algum bem, seja ele o prazer, seja ele as honrarias, seja ele as riquezas. O prazer, porém, é um bem aparente. Ele acaba por acorrentar-nos como escravos, tornando nossa existência digna de animais, que também vivem atrelados ao cabresto. 47 “Uma vez que a ciência política usa as ciências restantes e, mais ainda, legisla sobre o que devemos fazer e sobre aquilo de que devemos abster-nos, a finalidade desta ciência inclui necessariamente a finalidade das outras, e então esta finalidade deve ser o bem do homem” (ARISTÓTELES. 1992, p. 18). 107 108 As honrarias são uma ilusão. Não dependem de quem as recebe. Dependem de quem as confere. A riqueza é mero meio para o fim, não o fim em si, ou seja, o bem supremo. Não carregamos o ouro em nosso caixão. As riquezas ficam para os outros. Só o bem supremo nos traz a verdadeira felicidade. Ele consiste na contemplação do bem e da verdade, ou seja, da reta razão que só age visando o bem e a verdade. Sendo o homem inteligente, percebe ele, nitidamente, que os bens não são iguais. Alguns estão subordinados a outros em uma determinada escala hierárquica. Logo, por um bem maior, vale a pena sacrificar um menor. "A função própria de um homem de bem é o bom e nobiliante exercício [...] do bem, executado com a forma de excelência adequada" (ARISTÓTELES, 1992, p. 24). Ademais, na busca da virtude da reta razão, Aristóteles (1992, p. 25) assinala a necessária constância na luta pela felicidade: “Devemos acrescentar que tal exercício deve estender-se por toda a vida, pois uma andorinha só não faz verão [...] Da mesma forma, um dia só, ou um curto lapso de tempo, não faz o homem bem-aventurado e feliz”. A felicidade é, portanto, a meta a ser alcançada pela conduta humana.48 Na busca de uma ética peripatética, duas palavras-chaves importantes são: alma e virtude. A alma para Aristóteles (1992, p. 32-33) (psyché) pode ser analisada em três espécies: • a alma vegetativa, comum a todos os viventes: "não é uma coisa especificamente humana"; • a alma sensitiva (apetitiva e concupiscente), comum aos animais, dos quais o homem é o mais nobre representante; • a alma racional, peculiar ao homem. Aristóteles o definiu como "animal racional" (zôon lógikon). Para Aristóteles, a virtude é exclusiva da alma racional. Assim, alma e virtude são conceitos que se correlacionam, sendo que só o homem pode ter virtude. As virtudes, por outro lado, podem ser de dois tipos: éticas e dianoéticas, conforme afirma Novaes (1992, p. 9): A virtude tem, portanto, por origem o exercício prático, a ação; e é a ação que dá sentido político à moral. O Bem é o ato próprio de cada ser, e a felicidade está na atividade, em fazer, em se construir uam ciência dos valores da ação, como disse Valéry, e não na potencialidade. Pierre Aubenque comenta uma segunda idéia contida nesta parte do Livro II da Ética a Nicômaco: o ato próprio de cada ser é aquilo que está mais de acordo com sua essência, com a parte essencial do homem, que é a alma. Ora, como existem duas partes da alma, a racional e a irracional, existirão, segundo a ética de Aristóteles, duas espécies de virtudes: as virtudes intelectuais e as virtudes éticas. As virtudes intelectuais originam-se e se desenvolvem principalmente através do ensino e, por isso, diz 48 “A felicidade é o melhor, mais belo e mais agradável dos bens”. É mais bela do que a justiça, mais bela do que a saúde e mais agradável do que os outros bens, porque “possuímos o que amamos” (ARISTÓTELES, 1992, p. 27). 108 109 Aristóteles, “requerem experiência e tempo”; as virtudes éticas procedem dos costumes, e exprimem a excelência (areté) daquilo que “na parte irracional é acessível aos apelos da razão”. (grifo nosso) As virtudes éticas estão inscritas em cada ser humano na sua potência. Mediante o exercício, elas saem de sua potencialidade e se transformam em ato: Os homens se tornam construtores construindo. Tornam-se citaristas, tocando cítara. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos; moderados, agindo moderadamente; e corajosos, agindo corajosamente. [...] A pedra, no entanto, que, por sua natureza, se move para baixo, não pode ser habituada a mover-se para cima, ainda que alguém tente habituá-la jogando-a dez mil vezes para cima (ARISTÓTELES, 1992, p. 35). As virtudes dianoéticas se adquirem e se desenvolvem por obra do ensinamento (ex didaskaliás). Quanto às virtudes morais (assim denominados pela identificação semântica de ethos com “costume” e “padrão de comportamento”) é o exercício constante (ethiké pragmateía) que lhes dá origem e as fortalece: Há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte, a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução. Por isto ela requer 'experiência' e tempo. Quanto à excelência moral, ela é produto do hábito ('hexis)’ (ARISTÓTELES, 1992, p. 36). Para desenvolver e preservar a prática da virtude ética, objeto do estudo neste trabalho, é necessário agir "de acordo com a reta razão", sendo que a reta razão molda-se pela máxima "virtus stat in medio" (ARISTÓTELES, 1992, p. 36). Nesse sentido, Novaes (1992, p. 10) ensina: [...] Como a substância não é apenas alma, mas o composto de corpo e alma, o ser por inteiro – corpo e alma – é afetado pelas paixões (ira, medo, coragem, inveja, alegria, amor, ódio, desejo, ciúmes e, em geral, tudo o que vem acompanhado de prazer e dor). É por isso que Aristóteles afirma na Ética a Nicômaco que as paixões são a matéria da virtude, isto é, o uso mesurado das paixões torna o homem virtuoso. Para Aristóteles, de forma absoluta, em si, não há virtude. O que há é (comparativamente) excesso ou escassez. Ou demasiado, ou pouco, ou excessivamente pouco na concretude da situação fática. A virtude ética é, pois, procurar o meio-termo. Exemplificando, Aristóteles ressalta que em relação ao medo e à temeridade, o meio-termo é a coragem. Uma expressão na obra “Política” de Aristóteles da busca do meio-termo, segundo Bobbio (1998, p. 62), é o célebre elogio à classe média como ponto intermediário entre as classes ricas e pobres e como fator de estabilidade dos Governos, uma vez que impediria as revoluções pelos extremos e “excessos” decorrentes da riqueza e da pobreza. Assim, a ética teleológica aristotélica destaca que o bem supremo do homem é a felicidade (eudaimonía) (ARISTÓTELES, 1992, p. 25-27). 109 110 Quando, entretanto, Aristóteles vai detalhar o conceito de felicidade, assinala que há imprecisões do que seja a felicidade para os homens. Mostra, não obstante, que a felicidade pode ser alcançada como atividade, busca racional da virtude, sendo este o objetivo da ética artistotélica (LORD, 1987, p. 124). Trata-se, portanto, de ética primordialmente pessoal que almeja a realização plena do homem-indivíduo, de forma direta; não obstante tal realização em nível individual, também, de forma indireta, repercute para o bem-estar social. 3.3 MACROÉTICA AMBIENTAL: UMA ÉTICA SOCIAL QUE BUSCA EVITAR A INFELICIDADE DA COLETIVIDADE 3.3.1 Macroética: uma ética de agrupamentos sociais Quando falamos em "macroética", referimo-nos aos sistemas de reflexão sobre a experiência ética da coletividade, uma ética de responsabilidade. Nesse sentido, a reflexão tem tipicamente natureza filosófica como na ética de Aristóteles, de cunho individual, já analisada, só que agora adquire cunho coletivo. Apel (1994, p. 164) usa o termo “ética de responsabilidade” em contraponto à noção tradicional de ética, que busca a resolução de problemas individuais. Por outro lado, refere-se à “orientação ético-política fundamental” para designar o papel de uma ética de responsabilidade solidária da humanidade, verbis: Meu questionamento filosófico, em face da atual crise do sistema planetário da humanidade, é, por conseguinte, a questão sobre a possibilidade de uma orientação ético-política fundamental. E, quando a isso, não é nada evidente que uma tal orientação normativa de base seja realmente possível em sentido filosófico. Isso porque já se discute, hoje em dia, se é realmente possível, ante os conflitos de nossa época e as correspondentes controvérsias ideológicas, fundamentar algo como uma ética de responsabilidade solidária. Na idade da ciência, Apel questiona como não enfocar a necessidade de uma fundamentação objetiva e racional da ética. A partir do risco de destruição pela guerra e pelas técnicas modernas, verifica-se a necessidade de construção de uma ética que transponha os campos individuais e que se direcione para a humanidade como um todo. A técnica industrial, conforme já visto, conduz a uma problemática universal, posto que toda ecoesfera humana está ameaçada. É, doravante, em escala planetária que se põem, na sua urgência, os problemas éticos, ligados a uma responsabilidade coletiva. Enfatizando a importância da construção de uma ética de responsabilidade envolvendo a questão ambiental, em face das conseqüências tecnológicas atuais, destaca Apel (1994, p. 193) que: [...] tanto o perigo da guerra nuclear como também a crise ecológica atingem a humanidade como um todo. Aqui, pela primeira vez na história mundial transcorrida até agora, se torna visível uma situação, 110 111 na qual os homens, em face do perigo comum, são desafiados a assumir coletivamente a responsabilidade moral. O movimento ambientalista nesse sentido, também, pode ser considerado como macroética, “não no sentido de fundamentação teórica, mas no de motivação imediata de práticas de ação de agrupamentos sociais, tendendo a constituir verdadeiras ‘atmosferas morais coletivas’ protetivas do meio ambiente” (VIEIRA, 1998, p. 160). A grande crise ecológica da civilização técnico-científica desperta a construção de teoria ética ecológica. Tal como a ética do discurso49, que surge com nossos dias, como proposta inovadora de construção de ponte entre a teoria e as questões cruciais da humanidade, a ética ecológica almeja iluminar a relação atual homem/natureza. Conforme destaca Russ, o próprio Apel abre o debate atual sobre a ética do discurso, desenvolvida, notadamente, por Habermas. Apel, em ensaio de 1967 – “O a priori da comunidade comunicativa e os fundamentos da ética” – a partir da ética, analisa as aporias e dificuldades contemporâneas de fundar racionalmente uma macroética, válida para a sociedade humana no seu conjunto. Conclui que o cientifismo repele o problema do direito (dever ser) e pretende se ater aos fatos (ser), razão pela qual visualiza o aparente paradoxo da necessidade e da impossibilidade da macroética. Buscando resolver este paradoxo, Apel demonstra que a lógica e a ciência se referem implicitamente a uma ética, como condição a priori de sua existência. O argumento científico, na sua validade lógica, remete sempre a uma comunidade de pensadores que chegam a uma compreensão intersubjetiva. Todo cientista, mesmo considerado na sua investigação solitária, submete, potencialmente, sua argumentação ou sua demonstração a uma coletividade, à qual, ao menos em potência, ele se refere. Sua linguagem privada não o põe em condições de construir a ciência: é preciso que ele recorra a uma argumentação racional comum a todos. Apel reintroduz a linguagem comum no próprio seio da ciência, que se pretende unicamente fiel ao fato, mas se refere a valores e não se mostra, pois, axiologicamente neutra, como aparenta o cientista de visão obtusa (RUSS, 1999, p. 80-84). Buscando provar a argumentação de Apel da posição axiológica da ciência por meio da comunicação intersubjetiva da comunidade científica, pode-se citar o Relatório Meadows na sua estrutura científica e mensagem valorativa. Recentemente, conforme previsto no Relatório Meadows,50 evidenciou-se, por mecanismos argumentativos, que a ecosfera planetária apresenta conjunto de recursos limitado. Tal concepção contradizia com o que até então se imaginava do controle tecnológico humano. Assim, a própria linguagem remete ao consenso, ao acordo, à comunicação transparente, à escolha esclarecida de um conjunto de indivíduos que dialogam. Então, a idéia de consenso vai marcar a investigação ético-moral coletiva. Nesse sentido, Apel (1994, p. 167) afirma que: [...] durante muito tempo se esteve habituado à concepção de que controle científico-tecnológico do homem sobre a natureza tinha sido definitivamente atingido e de que só era necessário complementá-lo 49 Ao falar da ética do discurso (“discourse ethics”), não se pode esquecer de Habermas. Na sua famosa publicação da “Teoria da ação comunicativa”, ao estudar a linguagem, a hermenêutica e a verdade, constatou que a compreensão do processo hermenêutico leva ao raciocínio de que a verdade só pode ser alcançada quando se busca um consenso em uma com unidade limitada de intérpretes (OUTHWAITE, 1994, p. 38-39). 50 O Relatório Meadows constitui-se em um trabalho realizado em abril de 1968, pelo chamado Clube de Roma, que visava “examinar o complexo de problemas que afligem os povos de todas as nações: pobreza em meio à abundância, deterioração do meio ambiente”, dentre outros (Meadows et al., 1973, p. 10). 111 112 pelo controle do homem sobre o homem, no social engineering (na engenharia social); em nossos dias, porém, fica claro, aos pouco que a relação do homem com a natureza ainda inclui problemas bem diversos do que a mera exploração tecnológica de nosso conhecimento das leis causais (do anorgânico) para a realização de fins subjetivos de ação humana. Assim, na obra Estudos de moral moderna, coletânea de trabalhos anteriores, foram publicados dois importantes trabalhos de Apel que destacam a busca de ética de responsabilidade solidária, valorativa, em face da crise ecológica da civilização técnicocientífica: “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política fundamental” e a “Situação do ser humano como problema ético”.51 Apel oferece argumentos robustos da possibilidade e necessidade de ética para a relação do ser humano com a natureza, com tal argumentação correlaciona o mundo do ser (científico, dos fatos) com o mundo do dever ser (ético-jurídico, das condutas aprovadas). No ensaio “Os conflitos de nossa época e a exigência de orientação ético-política fundamental”, Apel (1994, p. 164) afirma: Em face das ameaças que pairam atualmente sobre a bio ou ecosfera humana, por causa dos problemas de superpopulação, de escassez das reservas energéticas, de destruição do ambiente, etc.; em síntese, em face da crise ecológica e da problemática abordada pelo `Clube de Roma', no sentido da moderna teoria sistêmica, é possível perguntar pela correlação entre os conflitos humanos e a ameaça da biosfera humana; e aqui emerge, de fato, a questão: por acaso se exige algo semelhante a uma modificação de sistema em medida planetária? E nesta correlação, é possível levantar a questão ético-política: o que devemos fazer? Conforme destaca Baracho Júnior (1999, p. 202): Apel afirma que o potencial tecnológico da ciência teve como resultado o risco das atividades humanas atingirem uma amplitude assombrosa. Valendo-se da ilustração feita por Lorenz sobre os problemas etológicos e éticos que decorrem desse fato, Apel compara o homem do paleolítïco, armado com um machado, com o piloto que transportou a bomba atômica lançada sobre Hiroshima (grifo nosso). Ressaltando a problemática contemporânea da destruição do meio ambiente e fazendo referência à lógica aristotélica e à ética discursiva, Kaufmann (1999, p. 522), no mesmo diapasão, entrevê a necessidade da busca de novos paradigmas filosóficos: Desde Aristóteles hasta hoy se esfuerza la ética por presentar reglas de conducta para el caso normal. Esto también es directamente válido para la ética discursiva. Pero nuestra actual situación no es normal. El presente está ante la siguiente alternativa: tendrá la humanidad um futuro o va hacia su destrucción? (grifo do autor). Kaufmann (1999, p. 522), também, apresenta, pois, a necessidade de ética da civilização técnica. Destaca, nesse sentido, trabalho desenvolvido por Jonas: “Nadie se há empeñado más por una ética de la civilización técnica que Hans Jonas, por una ética que no tiene reglas para todo sino una ética para el estado de necesidad.” 51 Cf. Apel, 1994, cap. 3-4, p. 163-222. 112 113 Como destaca Mancini et al. (2000, p. 28), a obra de Jonas, filósofo alemão de origem hebraica, que morreu em 1993, representa uma passagem obrigatória para a pesquisa da macroética da humanidade. A importância da sua contribuição deriva, fundamentalmente, da retomada da categoria da responsabilidade com o destino da humanidade futura no âmbito do mundo tecnológico contemporâneo. Jonas, na obra “O princípio da responsabilidade”, pode ser considerado como crítico da sociedade moderna tecnicista,52 não obstante o eixo fundamental desenvolva-se no âmbito de crítica à obra de Bloch, “O princípio da esperança” e ao utopismo marxista nela presente, que levaria a um não-agir no presente na expectativa de um futuro promissor.53 Discípulo de Heidegger, Jonas analisa o marxismo, apreciando, com ponderação, os argumentos favoráveis e contrários, destacando, entretanto, que, sob o ponto de vista ecológico, o marxismo apresenta características maléficas. Assim, sob o pano de fundo da visão marxista de exploração máxima dos recursos naturais, Jonas constrói a época de sua obra ética do “futuro” que poder-se-ia chamar de “contemporânea”. De modo assemelhado ao raciocínio desenvolvido por Apel, das amplas dimensões da relação do agir humano com os outros homens e com o mundo em geral, Jonas (1995, p. 23) destaca a necessidade de nova ética distinta das éticas até hoje formuladas em razão da “modificação do alcance da ação humana”: Todas las éticas habidas hasta ahora – ya adoptasen la forma de preceptos directos de hacer ciertas cosas y no hacer otras, o de uma determinación de los principios de tales preceptos, o de la presentación de um fundamento de la obrigatoriedad de obedecer a tales principios – compartían tácitamente las seguintes premisas conectadas enre sí: 1) La condición humana, resultante de la natureza del hombre y de las cosas, permanece em lo fundamental fija de uma vez para siempre. 2) Sobre esa base es posible determinar com claridad y sin dificultades el bien humano. 3) El alcance de la acción humana y, por ende, de la responsabilidad humana está estrictamente delimitado. Assim, como há mudança no alcance da ação humana, deve haver maior preocupação com a responsabilidade decorrente dessa ação. Essa preocupação com o alcance da lesão causada pela conduta humana, decorrente da quebra do preceito “neminem laedere”, já tinha sido objeto de preocupação no Direito Romano e continua sendo no Direito Moderno.54 52 “La tesis de partida de este libro es que la promesa de la técnica moderna se há convertido em uma amenaza, o que la amenaza há quedado indisolublemente asociada a la promesa” (JONAS, 1995, p. 15). 53 “O pensamento utópico do século XX tem se baseado na idéia de progresso que o século XIX incorporou à utopia ao lado da ciência. A mais característica forma de utopia do século XX foi a idéia de socialismo, embora o liberalismo também tenha uma dimensão utópica. Apesar de seus protestos em contrário, o pensamento de Marx e Engels é profundamente utópico” (BURDEN, 1996, p. 788). Como destaca Mancini et al. (200, p. 40) e se deflui da obra de Jonas sobre o princípio da proporcionalidade, a utopia referida vinculase a filosofia utópica de Bloch, “Nesta última concepção, o ser não está dado, mas está em devir, é um <<nãoser-ainda>> que chegará à sua identidade apenas no futuro de uma libertação total da humanidade e do mundo. Mas, para Jonas, pelo contrário, deve ser reconhecido o valor intrínseco daquilo que já é, em vez de reduzi-lo a uma simples prefiguração daquilo que ainda deve vir”. Conforme Kaser (1999, p. 281): “Delictum(privactum) [...] é um facto antijurídico que lesa o INDIVÍDUO, a sua personalidade, a sua família ou o seu património. Só este delito privado pertence ao direito privado. Os crimina, os factos PÚBLICOS puníveis que causam uma grave injustiça à comunidade (como alta traição, 54 113 114 Assim, ao tratar da vulnerabilidade da natureza perante a ação humana, Jonas (1995, p. 26) menciona, mais uma vez, a necessidade da construção de uma nova ética: [...] La naturaleza, em cuanto responsabilidad humana, es sin duda um novum sobre el cual la teoria ética tiene que reflexionar. Qué clase de obligación actúa em ella? Se trata de algo más que de um interés utilitário? Se trata simplemente de la prudencia que nos prohíbe matar la gallina de los huevos de oro o cortar la rama sobre la que uno está sentado? Pero, quén es esse <<uno>> que está em ella sentado y que quizás caiga al vacío? Y cuál es mi interés em que permanezca em su lugar o se caiga? Portanto, para Jonas e Apel, a pretensão de mudar o mundo para construir o amanhã (homo faber) deve ceder lugar ao dever de proteger a vida e de preservar o futuro (ética da responsabilidade como preocupação com a existência e qualidade de vida das gerações futuras). 3.3.2 Análise comparativa das éticas de Apel, Hans Jonas e Aristóteles 3.3.2.1 O progresso tecnológico e o homo faber como mecanismos ensejadores de uma nova ética Assim, Jonas e Apel, assustados com a realidade da exploração ambiental pela tecnologia humana, elaboraram teorias macroéticas para o bem da humanidade. Se Apel tenta construir uma razão prática independente da metafísica, com base na ética do discurso científico, Jonas, ao contrário, evidencia a fundamentação de sua ética em parâmetros metafísicos e ontológicos de um aluno de Heidegger. Ligada a uma ontologia, a ética de Jonas explora a responsabilidade para com o futuro pelo qual os viventes presentes são responsáveis. Não obstante a diversidade de fundamentos da ética de Apel e de Jonas, diversamente da ética aristotélica, individualista, analisada anteriormente, com base na obra “Ética a Nicômaco”, tais éticas emergem de uma necessidade coletiva para resolução de problemas coletivos.55 55 traição à pátria, homicídio, etc.) e, por isso, são perseguidos num processo penal e estatal muito mais rigoroso e severo (embora muitas vezes a partir de uma denúncia particular), pertencem ao direito penal [...] Comum a todos os delitos é o pressuposto da ilicitude da lesão.” No âmbito do Direito Moderno, a preocupação com a responsabilização objetiva do Estado pela energia nuclear, prevista expressamente na Constituição Federal Brasileira de 1988, na alínea “c” do inciso XXIII do art. 21 retrata a visão de que a amplitude do dano pode ensejar uma responsabilização independente de culpa. “[...] a necessidade de uma ética, intersubjetivamente vinculada, de responsabilidade solidária da humanidade, diante das conseqüências de atividades e conflitos humanos” (APEL, 1994, p. 164-165) e “Lo que hoy puede hacer el hombre – y después, em el ejercicío insoslayable de esse poder, tiene que seguir haciendo – carece de parangón en la experiencia pasada. Toda la sabiduría anterior sobre la conducta se ajustaba a esa experiencia; ello hace que ninguna de las éticas habidas hasta aahora nos instruya acerca de las reglas de <<bondad>> y <<maldad>> a las que las modalidades enteramente nuevas del poder y de sus posibles 114 115 Também, ambas têm preocupação com o progresso e com o tecnicismo moderno. Nesse sentido, ilustrativas são as passagens abaixo, respectivamente, de Jonas e Apel: Tómese por ejemplo, como primer y mayor cambio sobrevenido em el cuadro tradicional, la tremenda vulnerabilidad de la natureza sometida a la intervención técnica del hombre, uma vulnerabilidad que no se sospechaba antes de que se hiciese reconocible em los daños causados (JONAS, 1995, p. 32). Em síntese: A superação, pelo homo faber, das anteriores barreiras instintivas, organicamente condicionadas, sua intervenção no ambiente natural por meio de ferramentas e principalmente sua mortífera ação armada contra animais e contra o próximo (APEL, 1994, p. 195, grifo nosso). Esta preocupação com o processo e com o tecnicismo moderno no termo “homo faber” merece ser aprofundada no contexto da abordagem de Arendt (2001) na obra “A condição humana”, a ser desenvolvida no << item 6.1>> desta primeira parte. Na percuciente análise de Arendt, comprova-se a importância da passagem do homem de sujeito passivo da Natureza para sujeito ativo desta, na instrumentalização da natureza pelo homo faber, fato este, também, destacado por Apel e Jonas. 3.3.2.2 Semelhanças e diferenças das éticas de Apel, Jonas e Aristóteles A comparação da ética grega aristotélica com a ética moderna destaca, no dizer de Novaes (1992, p. 8), o caráter facultativo da primeira e o “obrigatório” da segunda: [...] uma perda irreparável, a idéia de felicidade, e a sua substituição pelas noções de obrigação, dever, obediência; o desaparecimento do modelo ideal de virtude, que poderia ser seguido optativamente, e o surgimento das normas éticas e dos preceitos a que se deve obedecer. Jonas (1995, p. 33), também, divulga rica passagem caracterizando a ética da responsabilidade como ética antropocêntrica, o que a aproxima da ética clássica; mas, por outro lado, a afasta, no que se refere à ética clássica trabalhar com condutas não cumulativas, verbis: En la medida em que es el destino del hombre, en su dependencia del estado de la naturaleza, el referente último que hace del interés en la conservación de ésta un interés moral, también aquí há de conservarse la orientación antropocéntrica de toda la ética clásica. No obstante, la diferencia sigue siendo grande. La limitación a la proximidad espacial y a la contemporaneidad há desaparecido arrastrada por el ensanchamiento espacial y la dilatación temporal de las series causales que la praxis técnica pone em marcha incluso para fines cercanos. Su irreversibilidad, asociada a su concentración, introduce um factor novedoso en la ecuación moral. A esto se añade creaciones han de someterse[...]” (JONAS, 1995, p. 15). 115 116 su carater acumulativo: sus efectos se suman, de tal modo que la situación para el obrar y el ser posteriores ya no es la misma que para el agente inicial, sino que es progresivamente diferente de aquellá y es cada vez más el producto de lo que ya fue hecho. Toda la ética tradicional contaba unicamente com comportamientos no acumulativos (grifo nosso). Outra diferença entre a ética de Jonas e a de Aristóteles pode ser vista na ênfase ao destinatário da ética. Na ética aristotélica, a base essencial do destino é o indivíduo. Para Jonas (1995, p. 37), a ética da responsabilidade dirige-se primordialmente ao ESTADO (na confecção de políticas públicas que lhe dêem cumprimento), verbis: Esto exige una nueva clase de imperativos. Si la esfera de la produción há invadido el espacio de la acción esencial, la moral tendrá entonces que invadir la esfera de la producción, de la que anteriormente se mantuvo alejada, y habrá de hacerlo en la forma de política pública. Nunca antes tuvo ésta parte alguna em cuestiones de tal alcance y em proyectos a tan largo plazo. De hecho la esencia modificada de la acción humana modifica la esencia básica de la política [...] La frontera entre <<Estado>> (polis) y <<Naturaleza>> há quedado abolida. La ciudad del hombre, que antaño constituía um enclave dentro del mundo no humano, se extiende ahora sobre toda la naturaleza terrenal y usurpa su lugar (grifo nosso). Há diferenças entre Apel e Jonas, apesar de ambos se preocuparem com o tecnicismo. Jonas discute a possibilidade de ética ecocêntrica ao indagar se a Natureza tem valor moral próprio (JONAS, 1995, p. 35), enquanto Apel, nos textos em análise, não trata deste tema. Ressalta Jonas, no âmbito da tradição européia, preocupação que, também, teve expressão no continente americano, conforme veremos com a análise de correntes éticas voltadas para a Natureza como valor intrínseco. Jonas (1995, p. 35) destaca que esse tema, apesar de inovador e revolucionário no âmbito ético e científico, tem expressão no âmbito religioso, na expressão de que o homem é “fiduciário do criador”, verbis: A excepción de la religión, ninguna ética anterior nos há preparado para ello la visión científica hoy dominante de la naturaleza. Esta visión nos niega decididamente cualquier derecho teórico a pensar em la naturaleza com algo que haya de ser respetado, pues la há despojado de la dignidad de los fines (grifo nosso). Apesar de não se posicionar expressa e entusiasticamente em relação a esta visão ética, Jonas dá vulto à abertura de apreciação filosófica desta questão (JONAS, 1995, p. 35). No campo dessa ética ecológica de responsabilidade coletiva, passível de análise e apreciação do Natural além do humano, podemos classificar algumas correntes – de macroéticas – contemporâneas para o trato da questão ambiental. 116 117 4 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS QUANTO AOS ATORES DO CONSENSO: NOÇÕES BÁSICAS DA ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA E ECOCÊNTRICA 4.1 ESPÉCIES DE MACROÉTICAS A macroética ambiental quanto aos atores do consenso pode ser antropocêntrica ou ecocêntrica. Ambas, entretanto, visam sempre à universalização da solidariedade (seja ela entre homens ou entre homens e outros entes), razão pela qual podemos afirmar que podem ser vistas como macroéticas discursivas que almejam um consenso nos conceitos apresentados por Apel (ética de responsabilidade coletiva moral) e de Jonas (ética voltada para a civilização técnica contemporânea, expressa no imperativo da responsabilidade). O que as diferencia, por outro lado, são exatamente os atores principais da solidariedade proposta. Nesse aspecto, podemos falar de uma ética antropocêntrica e de uma ética ecocêntrica, não obstante haja uma significativa gradação nesta última. Nesse aspecto Elliot (2000, p. 178) afirma que; Muitas respostas éticas à destruição ambiental são centradas no ser humano e não buscam uma nova análise da preocupação ética e da sua estrutura. Em princípio para esta visão, a ética ambiental é simplesmente a aplicação de princípios e valores que são centralizados no homem. Entretanto, apreciando a ética ecocêntrica, afirma que: “O primeiro passo fora do círculo dos interesses humanos está na inclusão dos interesses dos animais nas nossas deliberações éticas” (ELLIOT, 2000, p. 179). Mas a visão ecocêntrica deve limitar-se aos animais? Tal indagação faz com que Elliot (2000, p. 179), no desenvolvimento do seu raciocínio, afirme que: Assim, tem sido defendido que todas as coisas vivas devam ser consideradas. Aqui, a relevância moral de um arbusto não se exaure na relação do ato humano e do ato dos outros animais. A pretensão é a de que o arbusto per si tenha direito a ser considerado moralmente. Enfim, ampliando cada vez mais o círculo dos atores relevantes para o consenso ético, Elliot (2000, p. 180) destaca a complexidade que a macroética vai assumindo: O tema torna-se mais complicado quando nós notamos que há mais elementos a serem considerados na ética ambiental. Assim, há uma extensão além das coisas vivas que alguns sugerem, segundo estas sugestões todas as coisas naturais devem ser moralmente consideradas, independente de serem ou não vivas. Não obstante essa gradação acarrete cada vez maiores complexidades, não se pode esquecer, segundo Elliot (2000, p. 181), que o aspecto fundamental do 117 118 desenvolvimento da ética ambiental tem sido o deslocamento da visão antropocêntrica para a ecocêntrica. 4.2 A ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: CARACTERÍSTICAS BÁSICAS A ética antropocêntrica vincula-se às relações existentes entre os homens e a Natureza em geral, com a preocupação exclusiva de satisfação das necessidades humanas; avalia as políticas ambientais com observância na forma como elas afetam os seres humanos. Por exemplo, na avaliação ética antropocêntrica da conduta de exploração de recursos naturais, tal como a exploração de minerais em florestas onde vivem tribos indígenas, levar-se-á em conta todos os seres humanos envolvidos, incluindo os índios, os produtores, consumidores e usufrutuários da floresta que serão beneficiados ou prejudicados pela exploração mineral. Não são levados em consideração os animais e os vegetais lá existentes como atores, também, prejudicados por essa exploração. Deve-se destacar, por outro lado, que a ética antropocêntrica, em si, já ampara e protege o meio ambiente, requerendo, em muitos casos, mais proteção ambiental do que a existente atualmente. O grau de proteção ambiental, nessa ótica, mostra-se relevante e presente e é, pois, crítico à situação de degradação vigente. A destruição indiscriminada dos recursos naturais e a modificação de destinação de áreas naturais em áreas agrícolas ou urbanas, por exemplo para a ética antropocêntrica, são práticas reprováveis, pois, muitas vezes, ocasionam aumento dos malefícios em detrimento dos benefícios para os homens em geral, principalmente quando as gerações humanas futuras são lembradas. Ainda assim, muitos ambientalistas verificam que a ética antropocêntrica é insatisfatória, porque ela não reconhece o direito das outras espécies de compartilhar o planeta. Além disso, a ética antropocêntrica considera, de forma reducionista, somente o valor da Natureza para os seres humanos. A ética ecocêntrica procura corrigir essas deficiências, permitindo atribuirem-se valores para criaturas não-humanas. Os homens têm direito sobre o meio ambiente; entretanto, não se pode esquecer que as outras espécies também o têm. O espectro de atores sociais é alargado, com a correspondente dificuldade para a busca do consenso. No caso apresentado anteriormente referente à exploração mineral em uma floresta, deveriam ser levados em conta não só a população indígena, os produtores e consumidores, como também as espécies animais e vegetais que serão notoriamente prejudicadas pela extração do minério (BARKDULL, 2000, p. 362). Assim, mesmo que a não utilização do minério acarrete problemas no desenvolvimento de uma determinada cidade (desemprego, falta de lazer, falta de recursos financeiros), isto não cancela a prerrogativa ética dos animais de potencialmente continuarem a viver no seu habitat. 4.3 A ÉTICA ECOCÊNTRICA: CARACTERÍSTICAS BÁSICAS 118 119 A divergência doutrinária sobre o pressuposto de que só os animais (almas sensitivas e motoras) têm essa prerrogativa de respeito ao seu meio ambiente ou se os vegetais (almas vegetativas) também o têm, varia de acordo com as diversas subteorias da corrente ecocêntrica.56 Todas as subteorias ecocêntricas, entretanto, consideram que os animais (dando-se destaque às suas almas sensitivas) têm certos interesses essenciais (notadamente à vida e à integridade física) por serem criaturas capazes de sentir emoções e dor. O conceito é rejeição implícita ao antropocentrismo corporificado, por exemplo, na doutrina dualista ("animal-máquina") de Descartes,57 que afasta a possibilidade de os animais poderem ter "interesses" que os humanos devam respeitar. Do ponto de vista filosófico, a questão dos direitos dos animais encontra raízes na teoria utilitarista de Bentham (apud SINGER, 1994, p. 83), que postulava no sentido de que, embora possam divergir do interesse do ser humano, os interesses dos animais devem ser igualmente respeitados. Montaigne (2000, p. 369), ao discordar da relação de parentesco entre os animais e os homens, salienta, entretanto, ao tratar da crueldade, que: Mas, ainda que tudo isso seja discutível, cumpre-nos ter certo respeito , não somente pelos animais, mas também por tudo o que encerra vida e sentimento, inclusive árvores e plantas. Aos homens, devemos justiça; às demais criaturas capazes de lhes sentir os efeitos, solicitude e benevolência. Entre elas e nós existem relações que nos obrigam reciprocamente. Não me envergonho de confessar que sou tão inclinado à ternura e tão infantil a esse respeito que não sei recusar a meu cão as festas intempestivas que me faz, nem as que me pede. Assim, também baseia-se na convicção de que os animais são seres sensitivos capazes de sofrer e de que há obrigações recíprocas entre homens e animais. Logo, os animais são fins em si mesmos (seres principais), e não simples meios (seres acessórios) para fins determinados pelo homem.58 Esses princípios foram expressos, mais recentemente, pelo filósofo australiano Singer (1991) em Animal Liberation. 56 57 58 Para a “deep ecology” de Arne Naess e para a “Teoria de Gaia” de Lovelock, todos os entes animados e inanimados possuem tais “direitos” e para algumas correntes protetivas dos animais (almas sensitivas), tal como a defendida por Peter Singer e Tom Regan, só os animais por sentirem dor possuem. A filosofia cartesiana do dualismo distinguia estritamente entre espírito e matéria como duas espécies distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os animais pertenciam à segunda categoria, eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento. A idéia de classes de substâncias mutuamente exclusivas deu origem ao problema corpo/espírito humano: como poderiam os dois interagir? A resposta de Descartes era que os dois se uniam na glândula píneal do cérebro. Ilustrativa a retrospectiva de Montaigne (2000, p. 369-370) sobre os povos e o cuidado com os animais: “Os turcos possuem estabelecimentos em que recolhem os animais e hospitais em que os tratam. Os romanos alimentavam a expensas do tesouro os gansos que tinham salvo o Capitólio. Os atenienses haviam decidido que as mulas e os burros empregados na construção do templo de Hecatompedon seriam deixados em liberdade e pastariam onde quisessem sem que ninguém os pudesse impedir. Os agrigentinos tinham por costume corrente enterrar cerimoniosamente os animais queridos, cavalos dotados de alguma qualidade rara, cães e pássaros úteis ou simplesmente divertidos [...]” 119 120 Para Singer (1991, p. 5), o “princípio da igualdade” (na sua concepção de não discriminação) dos seres não se restringe aos humanos; trata-se de obrigação de como devem se tratar os seres em geral como merecedores de iguais preocupações. Exemplificando, Singer (1991, p. 7) afirma que constitui uma conseqüência do princípio da igualdade o fato de que devemos nos preocupar com os outros, considerando os seus interesses independentemente das habilidades ou de como eles são, devendo ter “interesses” todos aqueles que possuam a capacidade de sofrer. Da mesma maneira, que não deve haver racismo nem discriminação em função do sexo, não deve haver “speciescism”.59 Os interesses dos seres sensitivos (humanos ou não-humanos (animais)) devem ser sempre considerados. Portanto, o que está sujeito a variações são os tipos de interesses que devem ser considerados. Exemplificando, Singer (1991, p. 5-7) comenta que, para as crianças de certa idade, a educação para a leitura constitui interesse a ser alcançado; para o bem-estar dos porcos, entretanto, basta que fiquem com os outros porcos em local adequado e com comida para poderem viver livremente (“direitos” de liberdade). Em resumo, para Singer (1991, p. 9) há paralelo entre o racismo, a discriminação sexual e o antropocentrismo,por isso sua obra está centrada na “libertação dos animais da dominação humana”: Os racistas violam o princípio da igualdade ao darem maior peso aos interesses dos homens da sua própria raça quando em choque com os interesses dos de outra raça. As pessoas que discriminam os outros pelo sexo violam o princípio da igualdade por favorecerem os interesses do seu próprio sexo. De forma análoga, os antropocêntricos permitem que os interesses da sua própria espécie suprimam os interesses fundamentais dos membros das outras espécies. O paradigma de comportamento, portanto, é o mesmo. Assim, a visão ecocêntrica ampara os defensores dos “direitos” dos animais a oporem-se à exploração e ao abuso de animais em condutas tais como: a vivissecção, a criação para abate e o entretenimento em circos e rodeios. Nesse sentido, Singer (1994) afirma que o uso de animais em experiências clínicas e em testes de produtos constitui contradição lógica: julgamos aceitável sujeitar os animais a experiências dolorosas que não infligiríamos aos seres humanos porque os animais não são iguais a nós, mas, por outro lado, consideramos essas experiências cientificamente válidas porque os animais são iguais a nós. 60 A doutrina dos interesses dos animais tem, pois, relação umbilical com os movimentos ambientalistas e com a macroética da responsabilidade de Apel e Jonas, que afirmam que a superioridade intelectual humana e o domínio da tecnologia, apesar de nos 59 60 No primeiro capítulo de sua obra “All animals are equal...”, o autor desenvolve a argumentação de que o princípio moral da igualdade necessita ser estendido aos animais. Utilizando-se de argumentos de Thomas Jefferson e Bentham sobre a necessidade de respeito a liberdade das pessoas independente de seus talentos ou de suas características, esse filósofo australiano contemporâneo afirma que : “a capacidade de sofrimento é a característica fundamental que fornece a um ser o direito de ser tratado com consideração”, com respeito a determinados direitos inalienáveis. Desse modo, os animais, pelo menos, teriam direitos de primeira geração (vida, liberdade e respeito a sua integridade física) (SINGER, 1991, p. 7). “[...] pois os que fazem tais experiências quase sempre tentam justificar a sua realização com animais com a alegação de que as experiências nos levam a descobertas sobre os seres humanos; se assim for, essas pessoas devem concordar com a afirmação de que os seres humanos e os animais são semelhantes em aspectos cruciais” (SINGER, 1994, p. 75). 120 121 proporcionarem a capacidade de explorar o mundo natural, não nos dão o direito de fazê-lo de forma indiscriminada. Assim, não há dúvida de que a teoria ecocêntrica seja mais exigente quanto ao grau de proteção do meio ambiente, quando comparada com a teoria antropocêntrica. Deve-se destacar, também, que alguns autores mencionam a existência de terceira teoria – a teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363). A diferença entre a teoria ecocêntrica stricto sensu e a biocêntrica está na colocação de uma ética que vincula-se só aos seres animados (vegetais e animais) – teoria ecocêntrica strito sensu, em contraposição a uma concepção, mais ampla, que vincula todos os entes físicos e biológicos, sejam eles entes inanimados ou seres animados, sejam vistos como um todo (teoria de Gaia) ou isoladamente – teoria biocêntrica (BARKDULL, 2000, p. 362-363). No âmbito deste trabalho, adotar-se-á classificação binária, estando a teoria biocêntrica contida na teoria ecocêntrica, aqui utilizada lato sensu em oposição à visão antropocêntrica. 121 122 5 ÉTICA ANTROPOCÊNTRICA: NA VISÃO DO CARTESIANISMO E DO EVOLUCIONISMO 5.1 O DUALISMO NA VISÃO DE ANIMAL-MÁQUINA DE DESCARTES A afirmação de que o mundo se compõe geral e fundamentalmente de duas substâncias, denominadas espírito e matéria - ou de que haja mundo físico e mundo espiritual foi objeto de trabalho de Descartes na sua obra Discurso do Método e Meditações. O dualismo teve sua primeira expressão na oposição entre o bem e o mal que servia de base ao mito da criação da religião de Zoroastro, fundada por volta de 1000 a.C. A batalha entre o bem e o mal, Deus e Satanás, aparece em muitas tradições religiosas. A seita maniqueísta, por exemplo, fundada na Pérsia do século II, encarava a existência como luta entre as trevas (o corrupto mundo material) e a luz (o reino espiritual), e os profetas religiosos como mensageiros enviados para libertar a luz, que estava aprisionada na matéria corrupta (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 100). O choque entre o bem e o mal nas crenças religiosas é o paradigma da maioria dos sistemas filosóficos dualistas. O dualismo implica polaridade e conflito, e não dialética (a tese e a antítese não se amalgam na síntese). Os dois lados geralmente estão em desequilíbrio; um deles, considerado superior ou mais "real" do que o outro, assim como mais difícil de compreensão; na opinião de Descartes, por exemplo, o reino do espírito é muito mais complexo e sutil do que o reino da matéria. Em sua filosofia, Descartes dividiu a criação em duas essências: a res cogitans (“coisa pensante”), seres que têm a faculdade da razão e a res extensa (“coisa extensa”), os entes físicos do mundo denominados pela sua característica essencial de só ocuparem espaço. (COTTINGHAM, 1995, p. 139). A filosofia cartesiana do dualismo, portanto, distinguia estritamente entre espírito e matéria como duas espécies distintas de substância, a que pensa e raciocina e a que simplesmente ocupa espaço. Segundo Descartes, os animais pertenciam à segunda categoria; eram objetos puramente mecânicos, incapazes de qualquer tipo de pensamento, comprovada pela inexistência de uma linguagem dos animais.61 A primeira obra de Descartes publicada foi o “Discurso sobre o método de bem conduzir a razão e buscar a verdade nas ciências”. Na Parte IV, cerne metafísico da sua obra, usual e resumidamente denominada “Discurso do Método”, Descartes relata a busca pelas bases de sistema de conhecimento confiável; contém o famoso enunciado “penso, logo existo” (na forma latina cogito ergo sum). 61 O termo “animal” relaciona-se etimologicamente ao termo latino anima (“alma”), havendo nele, portanto vestígios da idéia escolástica de que as criaturas vivas distinguem-se das coisas não-vivas por serem “animadas” ou dotadas de alma. Provêm, também, da concepção biblíca de que as coisas vivas são animadas pelo “sopro da vida”, bem como da biologia aristotélica que distinguia os seres em uma hierarquia de faculdades chamadas de “alma” (vegetativa, motriz, sensorial e racional). Aristóteles partia da crença comum aos gregos que a alma é o princípio da vida. A forma básica de vida seria encontrada nas plantas, que simplesmente se alimentam, crescem, se reproduzem e morrem (alma vegetativa). No caso dos animais haveria um algo mais, a capacidade de percepção sensorial (alma sensorial) e, em alguns, a de se movimentar (alma motirz). Nos seres humanos, manifesta-se tudo isso, mais a razão (alma racional). Assim, as coisas vivas formam uma hierarquia encabeçada pelo homem. (HAMLYN, 1990, p. 84). 122 123 Para nosso trabalho, entretanto, o conteúdo a ser analisado é a Parte V, que esboça as concepções de Descartes sobre a física e a cosmologia, discute o tema científico específico da circulação do sangue e apresenta um argumento baseado na linguagem para distinção radical entre os seres humanos e os animais. Na Parte V do Discurso do Método, Descartes imprime bastante ênfase à capacidade exclusivamente humana de combinar as palavras e constituir um discurso, verbis: [...] se pode conhecer a diferença que há entre os homens e os animais. Pois é uma coisa fácil de se notar que não há homens tão embrutecidos e tão estúpidos, sem excetuar nem mesmo os dementes, que não sejam capazes de combinar diversas palavras e de com elas compor um discurso no qual possam expressar seus pensamentos; e que, pelo contrário, não há outro animal, por mais perfeito e bem nascido que seja, que faça o mesmo (DESCARTES, 1996, p. 64). Por outro lado, destaca que as emissões vocais dos animais não podem ser consideradas como verdadeira linguagem. Os sons por eles emitidos (mesmo no caso de animais que imitam a fala humana como os papagaios) não passam de resposta mecânica a determinado estímulo.62 A conclusão que Descartes retira dessa capacidade humana é a de que a linguagem é “sinal fidedigno” da presença de entidade totalmente imaterial em nosso interior – a alma racional. 63 A linguagem destaca-se, pois, das concepções cartesianas de explicação mecanicista para outras características fisiológicas que aproximam os homens dos animais, tal como a circulação do sangue. Descartes dedica espaço na Parte V à descrição do “movimento do coração e das artérias”. Mostra que o funcionamento do coração e do sangue não tem nenhum conteúdo metafísico, como tem a linguagem que diferencia o homem (alma racional) dos animais (almas irracionais).64 Com efeito, no século subseqüente ao da morte de Descartes, os seus seguidores tornaram-se célebres pelo tratamento cruel que davam aos animais no curso da pesquisa experimental em fisiologia. O próprio Descartes, para chegar às conclusões sobre a circulação do sangue, praticava a vivissecção com aparente serenidade (COTTINGHAM, 1995, p. 21). 62 63 64 “E não se devem confundir as palavras com os movimentos naturais, que expressam as paixões e podem ser imitados tanto pelas máquinas quanto pelos animais; nem pensar, como alguns autores antigos, que os animais falam, embora não entendamos sua linguagem. Pois, se fosse verdade, já que eles têm vários órgãos correspondentes aos nossos, poderiam fazer-se entender tanto por nós como por seus semelhantes” (DESCARTES, 1996, p. 65.) “E isto não prova somente que os animais têm menos razão que os homens, mas que não têm absolutamente nenhuma. Pois vê-se que basta muito pouca razão para saber falar; e visto que se observa desigualdade tanto entre os animais de uma mesma espécie quanto entre os homens, e que uns são mais fáceis de adestrar que os outros, não é crível que um macaco ou um papagaio, mesmo um dos mais perfeitos de sua espécie, se igualasse nisso a uma criança das mais estúpidas ou, pelo menos, a uma criança de cérebro perturbado, se a alma deles não fosse de uma natureza completamente diferente da natureza da nossa” (DESCARTES, 1996, p. 65). “[...] quero adverti-los de que este movimento que acabo de explicar resulta tão necessariamente da simples disposição dos órgãos que podem ser vistos a olho nu no coração, e do calor que pode ser sentido com os dedos, e da natureza do sangue que pode ser conhecida por experiência, quanto o movimento do relógio resulta da força, da situação e da configuração de seus contrapesos e rodas” (DESCARTES, 1996, p. 56– 57, grifo nosso). 123 124 5.2 ALGUMAS OBJEÇÕES AO DUALISMO ANTERIORES E POSTERIORES À DESCARTES A objeção tradicional ao dualismo - considerando que duas espécies de realidade de ordens completamente distintas não devem conseguir se comunicar ou interagir, gerou diversas reações contrárias, sejam anteriores a Descartes, sejam posteriores a ele. Aristóteles já postulava que forma e matéria se unem na substância. Ao contrário de Platão, que poderia ser enquadrado como dualista, como bem destaca sua “Alegoria da Caverna”, na qual haveria dois mundos: um real e outro fictício (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 53). Aristóteles tentava classificar tudo o que há no universo em categorias, sendo a substância a primeira categoria. Enquanto Platão via a matéria como representação imperfeita das formas ideais, Aristóteles postulava o hilomorfismo (forma e matéria unindose na esfera terrestre para formar a substância). Por exemplo, a "forma" do corpo humano material é a alma; corpo e alma, juntos, configuram um ser vivo. Aristóteles também classificou os seres segundo seus atributos comuns e suas qualidades distintivas; os seres humanos, por exemplo, são animais, que se distinguem dos outros animais pela faculdade da razão. Um dos problemas da teoria das formas ideais de Platão era o de que os objetos naturais crescem e se modificam, razão por que não eram imutáveis. Aristóteles, procurando superar a doutrina platônica e explicar a mutação sofrida pelas substâncias, trabalha com a noção de potência. Afirma, por exemplo, que a semente do carvalho não é um carvalho maduro, mas contém o potencial de tornar-se um carvalho completo. A forma, portanto, seria o teor inato de alguma coisa, que evolui até atingir seu potencial completo por meio da enteléquia, a realização do potencial inato (o carvalho maduro), ou por meio de atos de um agente: a árvore é, em potência, uma pilha de tábuas que poderá ser uma embarcação. A idéia de potência está vinculada à identificação aristotélica de quatro causas: material (matéria), formal (forma), eficiente (ação) e final (finalidade). A causa eficiente é o motor que a leva à "causa final", aquilo a que o ser se destinava - o crescimento de uma semente até se transformar em uma árvore adulta. Nesse complexo de relações de causas e efeitos, Aristóteles conclui que deve haver um "Primeiro Motor", uma "causa não-causada" que é pura forma totalmente realizada: Deus. Para Solomon; Higgins (1996, p. 68), Platão e Aristóteles, com suas idéias e estilos distintos, influenciaram toda a filosofia ocidental. Na filosofia cristã, por exemplo, Agostinho seguiria Platão, já Tomás de Aquino seria discípulo de Aristóteles. Nos tempos modernos, os “racionalistas” seriam platônicos, na busca da razão como instrumento metafísico por excelência; os “empiristas” seguiriam Aristóteles, o cientista, o observador atento, sempre pronto para um novo repensar da realidade. Spinoza (apud HAMLYN, 1990), nesse diapasão também, refuta o dualismo; em sua teoria do monismo, expande as colocações aristotélicas, não obstante, também, nela se baseie.65 65 Spinoza (apud HAMLYN, 1990, p. 188-189) acreditava na unidade de Deus e da natureza, conseqüentemente 124 125 Em sua obra mais importante, a Ética, imaginava o mundo como expressão de uma única substância, que identificava como Deus ou natureza. Considerava, pois, que Deus e tudo são uma coisa só, em outras palavras “Deus é tudo e tudo é Deus”. Embora unitária, a substância (Deus) tem infinidade de atributos dos quais só conseguimos perceber dois, espírito e matéria (pensamento e “extensão”), duplos aspectos da substância universal (SOLOMON; HIGGINS, 1996, p. 186). Para Rosen (apud SPINOZA 1987, p. 456), faz-se o estudo da estrutura da substância, e a conseqüente relação entre a existência humana e a ordem eterna. A consideração de Spinoza, de que o mundo expressa uma única substância tem reflexos na ética ecocêntrica, notadamente na “hipótese de Gaia”, expressão holística da ética ambiental. Kant, ao tratar dos deveres dos homens para com os animais, mesmo adotando posição stricto sensu antropocêntrica de que os animais são meros instrumentos e não fins em si mesmo, afirma que a natureza animal pode ser análoga à natureza humana e, cumprindo nossos deveres com os animais, indiretamente cumpriremos nossos deveres com a humanidade. Assim, se um homem atira em um cachorro pelo simples fato de que este animal não é mais capaz de servi-lo, ele não fere diretamente um dever para com o animal (que não deve ser considerado moralmente, pela sua incapacidade de universalizar situações concretas, na terminologia kantiana não é um “ser moralmente racional”), entretanto, seu ato é desumano e provoca dano nele mesmo, pois tal conduta é lesiva para a humanidade. Nossos deveres para com os animais, indiretamente são deveres para com a humanidade, pois a maneira como os tratamos pode ser descaracterizada como favorável à humanidade, não podendo ser realizada à luz do imperativo categórico (KANT, 1997, p. 313). Singer (1991, p. 10-11) critica, também, a visão de Descartes de que o animal é um autômato, um robô, uma máquina. Afirma que, se o cachorro, sem anestesia, for apunhalado no estômago, sentirá dor. Procura, em seguida, demonstrar que sentir dor “não é privilégio” da espécie humana, demonstrando que, não obstante seja uma experiência particular (“pain is a state of consciouness”), pode-se inferir tal experiência de outros seres por inúmeras indicações externas, tais como as demonstradas por outros seres humanos e outros animais. Assim, afirma que a dúvida da existência de dor dos animais reside na mesma razão que nos permitiria ter dúvida da dor entre outros seres humanos, verbis: De forma aproximada, todos os sinais externos que levam-nos a deduzir que outros seres humanos sintam dor podem ser vistos em outras espécies, principalmente as espécies mais próximas da nossa – as espécies dos mamíferos e das aves. Os sinais de comportamento incluem estocergar-se, contorcer seu rosto, gemer, ganir ou outras formas de chamar atenção para evitar a fonte da dor, ter medo da repetição da dor e assim por diante (SINGER, 1991, p. 11). o espírito e a matéria são atributos de um única substância universal. “Spinoza é um completo monista no sentido em que admite a existência de apenas uma substância, uma única causa de si mesma que é a causa de tudo mais, na qual tudo mais é meramente uma modificação ou atributo dessa substância. A substância única é também infinita, com atributos e modificações infinitos. Não é de surpreender que a ela seja dado o nome de Deus”. 125 126 Tratando da filosofia do pragmatista Dewey e da noção de experiência e pensamento reflexivo, GEORGE RÊGO, professor da UFPE, afirma que a filosofia pragmatista, também, mostra-se contrária ao dualismo cartesiano: [...] aliás, não há na filosofia de Dewey dualismos ou descontinuidades que estratifiquem conceitos, promovam cisões entre sujeito x objeto, separem homem x natureza. A filosofia Deweyana é um tipo de pan-naturalismo, análogo sob muitos aspectos, ao panlogicismo hegeliano [...] E o conhecimento humano, desde suas estruturas mais incipientes até suas formas mais críticas e sofisticadas, é uma contínua tentativa em direção ao rompimento das hostilidades da natureza, tornando as experiências humanas mais estáveis e mais seguras (RÊGO, 2001, p. 120). Hickman (1996, p. 51), analisando a diferença entre seres humanos e o resto da Natureza para Dewey, afirma que a diferença entre o homem e os animais não se relaciona à comunicação como uma habilidade exclusiva da espécie humana, mas sim, que os homens são os únicos seres com capacidade de controlar o seu habitat. Dewey (1958, p. 420), na sua filosofia pragmática, possui uma abordagem naturalística da relação do homem com a natureza como um todo, terminando com o isolamento do homem que passa a ser visto dentro da natureza. Nesta concepção, o homem é parte da natureza, perdendo sentido a diferenciação cartesiana, verbis: A fidelidade à natureza a que pertencemos como partes, embora fracas, exige que acalentemos os nossos desejos e ideais até termos submetido os mesmos à prova da inteligência, examinando os meios e modos pelos quais a natureza torna possível realizá-los (grifo nosso). 5.3 LEITURA ANTROPOCÊNTRICA DA TEORIA DA EVOLUÇÃO DE DARWIN 5.3.1 O positivismo e o determinismo-evolucionista de Darwin A obra de Darwin, a Origem das Espécies, só pode ser compreendida no contexto da influência do positivismo66, na Idade Moderna. A visão determinista de que o meio molda o ser constitui reflexo do positivismo. Para chegar às raízes dessa atitude, deve-se remontar ao positivismo, doutrina elaborada pelo filósofo francês Augusto Comte (1798-1857). Preocupado com as convulsões da época, originadas pelo caos político e social que se seguiu à Revolução francesa, Comte aderiu aos movimentos socialistas do seu tempo, notadamente às idéias de Saint-Simon, de quem foi discípulo e secretário. No entanto, não demorou a romper com o mestre, elaborando 66 Postura filosófica segundo a qual o único conhecimento genuíno é o obtido pelos métodos da ciência. E, portanto, aliado do empirismo e do materialismo, e oposto à metafísica. O termo foi cunhado no início do século XIX pelo socialista francês Claude-Henri Saint-Simon, e o conceito foi desenvolvido e popularizado por seu aluno Augusto Comte. Ambos achavam que a postura científica era indispensável para a criação de uma sociedade harmoniosa, mas Comte foi mais longe. Além de defender a metodologia científica como único método válido para o conhecimento fidedigno, afirmava que os princípios científicos, aplicados às questões sociais e políticas, revelariam um estágio novo e mais elevado do progresso humano. 126 127 a sua própria teoria para explicar as causas da desordem social reinante e para sugerir alguns remédios. O seu diagnóstico cristalizou-se na teoria geral das sociedades, que ficou conhecida em filosofia como lei dos três estados. De acordo com Comte, a humanidade teria atravessado três fases ou períodos de desenvolvimento. O primeiro seria o estado teológico, em que o homem procurava explicar os fenômenos da natureza – o trovão, a fúria dos oceanos, os ventos – recorrendo a seres sobrenaturais e fazendo uso abundante da imaginação. Passando pelo fetichismo (adoração de elementos da natureza) e pelo politeísmo, teria por fim chegado ao monoteísmo. O apogeu desse estágio seria representado pelo catolicismo, e o principal expoente desse estágio seria São Tomás de Aquino. O segundo, o estado metafísico, teria aperfeiçoado o anterior, substituindo as divindades mitológicas ou os decretos divinos por entidades metafísicas: causa e efeito, substância e acidentes, corpo e alma, e outras do mesmo gênero. Continuava a haver, diz Comte, predomínio da imaginação sobre a razão, mas a explicação das coisas já não vinha de fora (não era de cunho teológico), mas de dentro das próprias coisas. Esse estágio corresponderia ao apogeu das explicações filosóficas, tendo Descartes como representante máximo. A terceira etapa, o estado positivo, ainda não se havia implantado, segundo afirma Comte, porque essa seria a causa da desorganização em que se encontrava a sociedade do seu tempo. Sentia-se, portanto, a falta de um princípio unificador, capaz de dar solidez às estruturas sociais (DURANT, 1961, p. 266). Com efeito, o filósofo francês acreditava ter inaugurado nova era, em que a ciência positiva regeneraria toda a sociedade. Deixando de lado a imaginação, a razão pura estudaria tão-somente os fatos observados, os fatos positivos, que nos trariam a verdade em todos os âmbitos; e assim, com demonstrações seguras e inquestionáveis, não haveria lugar para discussões e todos os homens por-se-iam de acordo, não havendo espaço para dissensões ou partidarismos. Acabariam todas as guerras e desordens sociais (DURANT, 1961, p. 267). O positivismo é fundamental à sociologia, disciplina cuja criação é atribuída a comte, que se ampara na hipótese de que o comportamento humano, assim como o comportamento das forças físicas e das reações químicas, é objetivamente mensurável. Embora a sociologia moderna não seja tão rigidamente empírica, os primeiros sociólogos concentravam-se nos fenômenos sociais observáveis, evitando a análise de intenções e de outros fatores nãoquantificáveis. Em estudo clássico (Suicídio, 1897), o sociólogo francês Émile Durkheim analisou, estatisticamente, os índices de suicídio para mostrar que o suicídio era fenômeno social, além de pessoal. 5.3.2 Darwin: autor antropocêntrico ou ecocêntrico? A ciência também gerou abalos na teoria antropocêntrica. Quando Galileu descobriu a imensidão do cosmos e a teoria heliocêntrica, no século XVII, ou, quando foi descoberto o microscópio, nesse mesmo século, permitiu-se vislumbrar a existência de um universo não centrado na pessoa do homem. 127 128 Do mesmo modo, de forma dialética, em primeiro momento a Teoria da Evolução Biológica, de Darwin, mitigou o antropocentrismo, pois era possível colocar homens e animais na mesma linha evolutiva. Nesse sentido Thomas (1988, p. 158-159): A crença cada vez maior na evolução social da espécie humana estimulou, pois, a idéia de que os homens apenas eram animais que tinham conseguido se aprimorar. Desse modo assestava-se um sério golpe na doutrina da singularidade humana. E esta veio a ser ainda mais questionada devido à descoberta da evolução biológica do homem. Desde os antigos gregos, havia uma tradição segundo a qual o homem descendia dos animais. Vigorosamente contestada pelo cristianismo, tal noção contou, no entanto, com uma vida subterrânea nos círculos intelectuais, vindo à luz periodicamente nos escritos daqueles que tinham contacto com as obras de Diodoro de Sicília, Lucrécio e outros pensadores céticos da Antigüidade. Em 1653, por exemplo, John Bulwer relatava que um filósofo seu contemporâneo lhe dissera, em conversa, "que o homem era uma simples criatura artificial e, de início, não passava de uma espécie de macaco ou babuíno que, com o tempo, através de sua indústria, [gradativamente] aprimorara a aparência e a razão até chegar à perfeição humana. No mesmo aspecto de mitigação do homem como ser superior aos outros seres, Solomon; Higgins (1996, p. 232) fazem a leitura do filósofo alemão Nietzche, na obra “Assim falou Zaratustra”, na qual sugerem que a teoria evolucionista de Darwin colocaria em cheque a superioridade do homem contemporâneo, pois os “atuais” seres humanos seriam uma passagem(uma ponte, um instrumento) entre os “macacos”, de um lado, e os Übermensch (super-homem), de outro. Também, Abbagnano (2000, v. 9, p. 168), na análise do super-homem de Nietzche, afirma que a aceitação da vida não é, para Nietzche, a aceitação do homem, verbis: <<O homem deve ser superado – diz Zaratustra – O super-homem é o sentido da terra ... O homem é uma corda tensa entre o animal e o homem, uma corda sobre o abismo. O que existe de grande no homem é que ele é uma ponte e não um termo. O que o torna digno de ser amado é ele ser uma ponte e um pôr do sol.>> O Super-homem é a expressão e a encarnação da vontade do poder. No entanto, apesar dessa leitura contemporânea da teoria de Darwin, o relevo que prevaleceu, à época, foi a de que o homem era o ápice da escala evolutiva, o que constituiu argumento biológico e materialista para provar a superioridade do homem. O homem pela seleção natural é o ser mais forte e adequado para a exploração da natureza. Mudava-se a justificativa da superioridade humana, saindo-se de fundamentação teológica para a biológica. Essa posição foi ratificada por Darwin na obra The Descent of Man (1871), na qual ele discutiu a capacidade de discernimento moral humano (consciência), como um atributo biológico-evolutivo, o qual, no presente, diferenciava o homem do animal.67 Assim, por essa razão, no presente trabalho, metodologicamente, optamos por uma leitura antropocêntrica da visão de Darwin, principalmente pela adequação do seu modelo à 67 Para Darwin (apud FARBER, 1997, p. 292), qualquer animal social, quando desenvolve suas aptidões intelectuais, adquire, inevitavelmente, um senso moral, a exemplo do que ocorreu com o Homem. 128 129 ideologia capitalista, não obstante esse biólogo inglês seja, inquestionavelmente, menos antropocêntrico do que Descartes, ao considerar a existência de uma natureza comum ao homem e ao animal. 5.3.3 A origem das espécies e o capitalismo Além do problema da pobreza, uma questão perturbadora atormentou a Inglaterra durante a maior parte do século dezoito: a questão de saber quantos ingleses existiam no país. No ano de 1798, a obra An Essay on the Principle of Population as It Affects the Future Improvement of Society (“Ensaio sobre o Princípio da População e como Ele Afeta o Futuro Desenvolvimento da Sociedade”) fez perecer, num piscar de olhos, todas as românticas esperanças de um progresso humano irremediavelmente crescente e harmonioso. Em poucas páginas, o jovem Malthus puxou o tapete debaixo dos pés dos complascentes pensadores da época e ofereceu-lhes, no lugar do progresso, uma perspectiva triste e desalentadora. O que o ensaio dizia a respeito da população era que havia uma tendência na natureza da população de ultrapassar todos os meios possíveis de subsistência. Ao ascender para um nível cada vez mais elevado, a sociedade era apanhada em uma armadilha sem escapatória, motivada pela urgência reprodutiva humana que iria, inevitavelmente, empurrar a humanidade para a perigosa beirada de um precipício. Em vez de ser dirigido para a Utopia, o rebanho humano seria condenado para sempre a ser agitado pelas constantes batalhas travadas entre bocas famintas que se multiplicavam e o eternamente insuficiente estoque de mantimentos da Natureza, “por mais que o armário dela estivesse abastecido” (HEILBRONER, 1996, p. 76). Não é de admirar que depois de ter lido Malthus, Darwin tenha compreendido um ponto importante: devia haver uma seleção entre a prole para resolver quais deveriam sobreviver e quais pereceriam. Uma vez que os indivíduos de uma mesma espécie variam entre si, os indivíduos com certas características que lhes trazem vantagens para conseguir alimento ou para escapar dos predadores, por exemplo, terão maior probabilidade de sobrevivência. Como dizia o filósofo evolucionista do século XIX, Herbert Spencer, a natureza garante a sobrevivência do mais apto (DURANT, 1961).68 Spencer (apud FARBER, 1997, p. 294), como Darwin, acreditava que os sistemas éticos evoluíram em face das relações entre os homens. Desse modo, com visão otimista, profetizava que, no futuro, a esfera privada humana coincidiria com a esfera pública, não havendo mais conflitos, verbis: O último homem será aquele no qual a vontades privada coincide com a pública. Ele será de tal maneira, que, de forma espontânea em plena sintonia com a sua natureza, normalmente, agirá para a unidade do 68 A teoria social que aplica os princípios da evolução biológica à sociedade humana foi formulada na década de 1850 pelo filósofo e sociólogo inglês Spencer. Spencer interpretava o progresso humano como questão de competição bem-sucedida que resulta na sobrevivência do mais forte; os mais fortes e superiores sobrevivem, ao passo que os mais fracos perecem ou são dominados pelos fortes, processo que leva ao aperfeiçoamento contínuo das sociedades (DURANT, 1961, p. 267-268). 129 130 corpo social, e na verdade só se sentirá plenamente completo consigo mesmo quando os outros agirem da mesma forma.). As idéias de Darwin fundamentavam-se, em parte, nos dados que coletou na viagem ao redor do mundo no HMS Beagle, de 1831 a 1836, em especial as observações que fez das variações entre espécies semelhantes existentes nas ilhas Galápagos. Em 1837, já formulara a conclusão, que denominou "descendência com modificação", de que as espécies mudam, ou "evoluem", ao longo do tempo, com o surgimento de novas características que, lentamente, vão modificando as formas ancestrais até que seus descendentes se tornem claramente diferentes. À pergunta “Como surgem as novas características?”. Darwin ofereceu, de início, a explicação de Lamarck de que as características individuais adquiridas podem ser hereditárias, mas logo a desprezou e voltou-se para a teoria de que as novas características surgem aleatoriamente dentro das populações e que essas novidades são o combustível propulsor das forças evolucionistas.69 Para entender a contribuição da teoria da evolução de Darwin para o antropocentrismo e a exploração indiscriminada dos recursos naturais, deve-se compreender que o seu modelo adequava-se, como uma luva, ao Capitalismo, na medida em que foram impostos à natureza os mesmos princípios e processos do sistema sócio-econômico que se queria firmar. A teoria de Darwin foi apresentada à época da transição da economia agrária para a economia industrial no país precursor da Revolução Industrial – a Inglaterra. O setor rural não estava preparado para alimentar a população das cidades, de forma que Malthus descreveu essa dificuldade, ressaltando o crescimento aritmético das colheitas e o crescimento geométrico da população. Assim, a escassez faria parte da natureza, e a luta pela sobrevivência extinguiria os mais fracos. Se assim não fosse, não haveria incentivo natural para que o homem saísse da preguiça e se esforçasse para construir uma civilização. Malthus transformou as necessidades do Capitalismo em expressão matemática, justificando o liberalismo, pois era preciso que o Estado deixasse o processo econômico correr livre para que os fracos desaparecessem e permanecessem somente os fortes, que possibilitariam o desenvolvimento social. Darwin baseou-se em Malthus para criar a teoria da seleção natural: mutações ao acaso ocorriam nos indivíduos e apenas os mais aptos seriam capazes de vencer a luta contra a escassez, gerando, assim, mais prole e impondo seus genes à espécie. Os sobreviventes seriam aqueles mais eficientes, o que justificava, por meio de leis naturais, o liberalismo. Assim, a luta egoísta (a falta de “solidariedade” que caracterizará os direitos de segunda e terceira geração, conforme já exposto no presente trabalho) de cada um ajudaria, no 69 A teoria do biólogo francês Lamarck (1744-1829) da evolução biológica, está atualmente desacreditada. Tal teoria afirmava que a reação dos organismos às pressões ambientais resulta em alterações morfológicas, e que essas características adquiridas podem ser herdadas. Segundo Lamarck, os seres vivos se adaptam e evoluem, numa luta constante rumo a uma complexidade cada vez maior. Nessa luta, ocorrem modificações anatômicas em organismos isolados em conseqüência do uso intenso (ou desuso) de determinado órgão, membro, ou outra parte do corpo em reação às exigências do meio ambiente – desenvolvimento que Lamarck acreditava ocorrer por vontade própria. Exemplo clássico é a explicação de que o pescoço da girafa se alongou porque ela se esticava cada vez mais para comer as folhas das árvores. De modo oposto, quando uma parte do corpo sofre doença prolongada, ela diminui, o que explicaria os vestígios de asas de aves que não voam como o pingüim. Esses aprimoramentos e essa alterações passam, então, para os filhotes, capacitando-os, por sua vez, a se adaptarem com mais eficiência às exigências do habitat. Lamarck chamou seu princípio das características hereditárias de variação adquirida. 130 131 fim, no crescimento de todos: o progresso, fundamento da nova sociedade industrial, estava cientificamente justificado. Não haveria mais uma predestinação. Apesar de o indivíduo ter seu comportamento determinado por seus genes, ele dependia, também, do meio para sobreviver e, portanto, de seu trabalho árduo. O progresso seria o resultado da seleção natural. A burguesia, mais uma vez, tinha sustentação teórica para a realização do desiderato de exploração da natureza. Outro princípio básico da Revolução Industrial, justificado biologicamente por Darwin, foi a divisão do trabalho. Smith (1999) já havia proposto a divisão do trabalho como forma de dar eficiência à economia, influenciando Darwin a encontrar a transposição da teoria econômica para a teoria biológica.70 Portanto, a diferenciação entre as partes - sua variabilidade - era base para o progresso. Estava justificada, com isso, a necessidade de haver ricos e pobres, retirando a culpa dos burgueses pelas condições humilhantes que impunham à maioria, contrariando também qualquer tentativa de assistencialismo que perpetuasse os mais fracos, colocando toda a espécie em risco. O mercantilismo da época, também, encontrou a sua justificativa. Os aparentes conflitos não deveriam ser levados a sério, pois submeteriam-se à inexorável harmonia intrínseca proporcionada pelas leis naturais da economia e da biologia. Qualquer tentativa de quebrar esses ritmos seria contrária à natureza, devendo, portanto, ser reprimida. As mutações ocorriam ao acaso, sendo o progresso conseqüência mecânica da evolução. O capitalismo estava, portanto, de acordo com a natureza biológica das coisas. O mundo estava reduzido à máquina, feita de peças autônomas e regidas por leis naturais. Plantas e animais estavam livres de qualquer barreira ética à sua exploração. A ética darwiniana corrobora, portanto, a exploração indiscriminada da Natureza, ao favorecer a Revolução Industrial, prevendo como naturais os seus efeitos colaterais, justificando, pois, biologicamente, a ética antropocêntrica. 70 Para Smith (v. 1, 1999, p. 79), a divisão de trabalho é a grande causa do aumento da sua capacidade produtiva, nesse sentido significativa a passagem em que o autor liberal refere-se a uma fábrica de alfinetes e a sua divisão de tarefas: “Um homem puxa o arame, outro endireita-o, um terceiro corta-o, um quarto aguça-o, um quinto afia-lhe o topo para receber a cabeça”. 131 132 6 FUNDAMENTAÇÕES TEÓRICAS DE UMA ÉTICA ECOCÊNTRICA E A PERSONALIDADE JURÍDICA 6.1 A EVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA ECOCÊNTRICA EM RAZÃO DA DESTRUIÇÃO OCASIONADA PELO HOMO FABER: UMA VISÃO SOCIOLÓGICA 6.1.1 Labor, trabalho e ação: três atividades marcantes do homem no mundo Na análise da evolução da passividade humana do homem perante a Natureza para a sua atividade de moldá-la, deve-se dar destaque, ao lado do homo economicus, ao homo faber detalhadamente analisado por Arendt (2001) na obra “A condição humana”.71 Nesse livro, Arendt (2001) interessa-se por descrever o que significa ser humano. Não busca entretanto a natureza humana de um ponto de vista estritamente filosófico (Qual a origem do homem? Qual o seu destino?). A trama de sua análise fundamenta-se em analisar o que o homem faz e como o homem vive. Nesse aspecto, destaca-se que sua análise tem cunho sociológico por ver o homem dentro do mundo; também está centrada em análise crítica da relação Homem com a Natureza (ARENDT, 2001, p. 13).72 Adeodato (1989, p. 133), analisando a legitimidade à luz do pensamento de Arendt, comenta que “a condição humana também compreende a ´vita contemplativa’”. No presente trabalho, entretanto, far-se-á, exclusivamente, a análise da vida activa pertinente à interação do homem com a Natureza em visão exterior e não de sua vida interior de pensar.73 71 72 73 Lafer (2001, p. 352) afirma:, no pósfacio da edição brasileira de “A condição humana”, “The Human Condition, editado em 1958, é, na cronologia da obra de Hannah Arendt, o livro que se segue a The Origins of Totalitarianism, que é de 1951 [...] Em The Human Condition, Hannah Arendt apresenta uma das mais brilhantes e originais análises da natureza, do mecanismo, da complexidade, do <<pathos>> e do significado da ação”. “O que proponho, portanto, é muito simples: trata-se apenas de refletir sobre o que estamos fazendo” (ARENDT, 2001, p. 13). “O problema tem a ver com o fato de que as <<verdades>> da moderna visão científica do mundo, embora possam ser demonstradas em fórmulas matemáticas e comprovadas pela tecnologia, já não se prestam à expressão normal da fala e do raciocínio [...] Se realmente for comprovado esse divórcio definitivo entre o conhecimento (no sentido moderno de know-how) e o pensamento, então passaremos, sem dúvida, à condição de escravos indefesos, não tanto de nossas máquinas quanto de nosso know-how, criaturas desprovidas de raciocínio, à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, por mais mortífera que seja” (ARENDT, 2001, p. 11). “Pensamento e ‘vita contemplativa’ parecem sinônimos, por exemplo, em algumas passagens em que Arendt 132 133 Na Antigüidade, o labor exercia-se na oikia ou casa, onde se reconhecia o governo de um só; era o reino da necessidade, ligado às exigências da condição animal do homem, como alimentar-se, repousar, procriar. Era, portanto, a esfera privada (de privus, estar privado de), em que o homem, como animal laborans, buscava os meios necessários à sobrevivência. O labor tinha a ver com o processo ininterrupto da produção de bens de consumo, isto é, daqueles bens que eram integrados ao corpo após a sua produção e que não tinham permanência no mundo. Na casa, o anseio de sobrevivência dominava de tal forma que a vida era limitada ao seu próprio processo biológico.74 Os cidadãos tinham o privilégio de libertar-se dessa condição, exercendo na polis sua atividade. Assim, só os cidadãos exerciam a ação. O labor era visto com desprezo. Arendt (2001, p. 91) declara: O desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a necessidade e de uma impaciência não menos forte em relação a todo esforço que não deixasse qualquer vestígio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser lembrada generalizou-se à medida em que as exigências da vida na polis consumiam cada vez mais o tempo dos cidadãos [...] O governo de um só, típico da esfera privada, era incompatível com a esfera pública. Nela se reconhecia o governo de muitos. O cidadão era visto como um igual entre iguais e, na esfera pública, sua atividade era fruto de uma pluralidade.75 Entre a ação e o labor se achava o trabalho, dominado pela relação meio e fim, com objetivo previsível à criação do bem de uso – produto inconsumível. Ao contrário do labor, esse produto adquire permanência no mundo. Como afirma Arendt (2001, p. 150), “Em outras palavras, contra a subjetividade dos homens ergue-se a objetividade do mundo feito pelo homem”. Conforme sintetiza Arendt (2001, p. 15), distinguindo e caracterizando cada uma das atividades marcantes do homem: O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento se refere ao ego pensante (thinking ego) não apenas a propósito da faculdade específica de pensar mas como responsável por uma outra faculdade. É o que ocorre quando Hannah Arendt expõe e interpreta a parábola de Franz Kafka (1883-1924) sobre a inserção do homem no tempo, que veremos logo à frente, onde o pensamento responde pelo passado, para onde se dirige o juízo, e pelo futuro, direção temporal do querer [...]” (ADEODATO, 1989, p. 134). 74 “Laborar significava ser escravizado pela necessidade, escravidão esta inerente às condições da vida humana” (ARENDT, 2001, p. 94). 75 “A pluralidade humana, condição básica da ação e do discurso, tem o duplo aspecto de igualdade e diferença. Se não fossem iguais, os homens seriam incapazes de compreender-se entre si e aos seus ancestrais, ou de fazer planos para o futuro e prever as necessidades das gerações vindouras” (ARENDT, 2001, p. 188). 133 134 espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. A condição humana do labor é a própria vida. O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, existência esta não necessariamente contida no eterno ciclo vital da espécie, e cuja mortalidade não é compensada por este último. O trabalho produz um mundo <<artificial>> de coisas, nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condição humana do trabalho é a mundanidade. A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens, e não o Homem, vivem na Terra e habitam o mundo. Todos os aspectos da condição humana têm alguma relação com a política; mas esta pluralidade é especificamente a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per quam – de toda vida política. Assim, o idioma dos romanos – talvez o povo mais político que conhecemos – empregava como sinônimas as expressões <<viver>> e <<estar entre os homens>> (inter homines esse), ou <<morrer>> e <<deixar de estar entre os homens>> (inter homines esse desinere). Adeodato (1989, p. 119), tratando da diferença entre labor e trabalho, afirma verbis: Através da fabricação o ser humano se converte em homo faber e adquire suas características específicas, já que enquanto meramente trabalha ele nada mais é que o animal mais desenvolvido do planeta. Então, o primeiro aspecto essencial do homo faber é produzir objetos que, juntos, constituem o mundo humano. No âmbito da nossa análise, será detalhado a vita activa vinculada ao trabalho – atividade do homo faber –, pois esta relaciona-se diretamente à destruição do meio ambiente e à criaçao de novo ambiente. Tal análise perpassa toda a obra “Condição humana” de Arendt (2001, p. 149-180), embora encontre especial ênfase no Capítulo IV – Trabalho. 134 135 6.1.2 O homo faber na visão de Hannah Arendt Conforme destaca Arendt (2001), no trabalho há sempre um elemento de violência à natureza. A fabricação consiste em reificação.76 O animal laborans que, com o próprio corpo e a ajuda de animais domésticos, nutre o processo da vida, pode ser o amo e senhor de todas as criaturas vivas, mas é ainda servo da natureza e da terra; só o homo faber se porta como amo e senhor da terra. Como a sua produtividade era vista à imagem de um Deus Criador – de sorte que, enquanto Deus cria ex nihilo, o homem cria a partir de determinada substância –, a produtividade humana, por definição, resultaria fatalmente numa revolta prometéica, pois só pode construir um mundo humano após destruir parte da natureza criada por Deus (ARENDT, 2001, p. 15, grifo nosso). A sensação da violência de transformação da Natureza coloca o Homem na posição de ser supremo da criação e não de mera criatura servil. O trabalho passa a gerar satisfação, ao contrário do labor que produz desprezo (ARENDT, 2001, p. 153). Outro aspecto destacado refere-se à durabilidade das coisas feitas pelo homo faber. Essa durabilidade permite que as coisas do mundo tenham uma "relativa independência dos homens que as produziram e as utilizam, a 'objetividade' que os faz resistir, 'obstar' e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes necessidades de seus fabricantes e usuários" (ARENDT, 2001, p. 150). O homo faber é o construtor do mundo; por isso, a condição da existência humana que corresponde ao trabalho é a mundanidade. Conforme assinala Arendt (2001, p. 152), a palavra “faber” relaciona-se com a palavra latina facere, no sentido de produção. O animal laborans não afeta de forma significativa a Natureza; já o homo faber, sim, verbis: 76 “A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em reificação. A solidez, inerente a todas as coisas, até mesmo às mais frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores, que podemos colher ou deixar em paz sem que com isso alteremos o reino da natureza. O material já é um produto das mãos humanas que o retiraram de sua natural localização, seja matando um processo vital, como no caso da árvore que tem que ser destruída para que se obtenha a madeira [...] O trabalho de fabricação propriamente dito é orientado por um modelo segundo o qual se constrói o objeto” (ARENDT, 2001, p. 152-153). 135 136 A fabricação, que é o trabalho do homo faber, consiste em reificação. A solidez, inerente a todas as coisas, até mesmo as mais frágeis, resulta do material que foi trabalhado; mas esse mesmo material não é simplesmente dado e disponível, como os frutos do campo e das árvores, que podemos colher ou deixar em paz sem que com isso alteremos o reino da Natureza (grifo nosso). A reificação, termo costumeiramente usado por Arendt (2001, p. 156), destaca o fato de que o homem dissocia o produzir, que lhe é próprio, do produto, de tal modo que o pode conhecer, tornando-o objeto da sua consciência, verbis: [...] o labor também produz para o fim de consumo, mas como esse fim, a coisa a ser consumida, não tem permanência mundana dos produtos do trabalho, o fim do processo não é determinado pelo produto final e sim pela exaustão do <<labor power>>, enquanto que, por outro lado, os próprios produtos imediatamente voltam a ser meios de subsistência e reprodução do <<labor power>>. No processo de fabricação, ao contrário, o fim é indubitável: ocorre quando algo inteiramente novo, com suficiente durabilidade para permanecer no mundo como unidade independente, é acrescentados ao artifício humano (grifo nosso). Conforme assinala Arendt (2001, p. 156), no processo do homo faber há a instrumentalização da Natureza e do Mundo, na clara distinção entre meios e fins, verbis: A coisa fabricada é um produto final no duplo sentido de que o processo de produção termina com ela (<<o processo desaparece no produto>>, como dizia Marx), e de que é apenas um meio para produzir esse fim (grifo nosso). 6.1.3 A instrumentalização do mundo e a destruição da natureza O trabalho, portanto, é inteiramente dominado pela categoria de meios e fins. O trabalho se distingue das outras atividades da vita activa porque tem um fim definido e previsível, enquanto a ação, embora tenha um começo, não tem um fim previsível. O labor, por sua vez, "preso à engrenagem do movimento cíclico do processo vital do corpo, não tem começo nem fim" (ARENDT, 2001, p. 156). Daí a grande confiabilidade do trabalho; o processo de fabricação não é irreversível. 136 137 Nesse sentido, Arendt (2001, p. 156) afirma que: O homo faber é realmente amo e senhor, não apenas porque é o senhor ou se arrogou no papel de senhor de toda a natureza, mas porque é o senhor de si mesmo e de seus atos. Isto não se aplica ao animal laborans, sujeito às necessidades de sua existência, nem ao homem de ação, que sempre depende de seus semelhantes. A sós, com a imagem do futuro produto, o homo faber pode produzir livremente; e também a sós, contemplando o trabalho de suas mãos, pode destruí-lo livremente (grifo nosso). O homo faber reduz “a natureza e o mundo a simples meios, privandoos de sua dignidade independente” (ARENDT, 2001, p. 169). A verdade é que o significado do mundo, meio para construção de um novo mundo, acaba tornando-se um objeto sem valor, pela infindável cadeia de meios e fins que se forma no processo de fabricação, verbis: Se o homem-usuário é o mais alto de todos os fins, <<a medida de todas as coisas>>, então não somente a natureza, que o homo faber vê como material quase <<sem valor>> sobre o qual ele trabalha, mas até mesmo as coisas <<valiosas>> tornam-se simples meios, e, com isto, perdem o seu próprio <<valor>> intrínsico (ARENDT, 2001, p. 169). Na visão antropocêntrica da Natureza, a mesma é instrumentalizada, perdendo o seu valor intrínseco, pois passa a ser sempre meio. Arendt (2001, p. 169) afirma: Na medida em que é homo faber, o homem <<instrumentaliza>>; e este emprego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas à categoria de meios e acarreta a perda do seu valor intrínseco e independente; e chega um ponto em que não somente os objetos da fabricação, mas também <<a terra em geral e todas as forças da natureza>>– que evidentemente foram criadas sem o auxílio do homem e possuem uma existência independente do mundo humano – perdem seu <<valor por não serem dotadas de reificação resultante do trabalho>>. Conforme destaca Arendt, esse problema da instrumentalização do mundo, não se constitui em novidade contemporânea, já havendo tal preocupação no berço da filosofia ocidental – a Grécia. 137 138 Citando o famoso argumento de Platão contra o dito de Protágoras77, de que – o homem é a medida de todas as coisas de uso, da existência das que existem e da inexistência das que não existem – Arendt (2001, p. 171) destaca que Platão: Percebeu desde logo que quando se faz do homem a medida de todas as coisas de uso está-se correlacionando o mundo com o homem-usuário e fazedor de instrumentos [...] E como é da natureza do homem-usuário e fabricante de instrumentos ver em tudo um meio para um fim – ver em cada árvore determinado potencial de madeira –, isto, fatalmente significaria fazer do homem não só a medida de todas as coisas cuja existência dele depende, mas de literalmente tudo o que existe. Na dialética da Historia, a demasiada exploração da Natureza pelo homo faber e a instrumentalização do Mundo, destacada por Arendt, propicia o surgimento do ecocentrismo(antítese à tese antropocêntrica), em que a natureza deixa de ser vista como meio e passa a ser vista como fim, nos termos do que defende a chamada “deep ecology”. 6.1.4 Conscientização ecológica e a “deep ecology” como suportes ideológicos para os movimentos ambientais As décadas de 60 e 70 do século XX constituem marcos cronológicos importantes para o movimento ambientalista. Exemplo dessa movimentação nos âmbitos cultural e científico pode ser visto na obra Silent Spring, da bióloga Rachel Carson, na qual adverte sobre os perigos ambientais oriundos do uso indiscriminado do DDT e outros pesticidas. O título da obra “Primavera silenciosa” sugere, de forma metafórica, que se estava vivendo momento na cultura americana em que o canto dos pássaros não poderia mais ser ouvido, por terem eles sido dizimados pelos pesticidas utilizados indiscriminadamente pelo homem.78 77 78 Protágoras “iniciou uma de suas obras com as seguintes palavras: ‘O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são que elas são, das coisas que não são que elas não são´” (LAÊRTIOS, 1977, p. 264). Essa visão humanista foi retomada intensamente no Iluminismo, neste sentido, vale a pena lembrar o que disse o “primeiro dos modernos e o último dos antigos”, Bacon (apud THOMAS, 1988, p. 23) afirma que: “Se procuramos as causas finais, o homem pode ser visto como o centro do mundo, de tal forma que se o homem fosse retirado do mundo todo o resto pareceria extraviado”. Carlson (1994), considerado um clássico da proteção ambiental norte-americana e mundial pela novidade de sua abordagem protetiva da natureza, publicação original (1962), a autora retrata, de forma detalhada e poética, a destruição da natureza pelo homem. 138 139 Em uma obra de conteúdo científico e poético, essa autora nos âmbitos cultural e científico, colabora com a intensa movimentação política de conscientização ambiental e o respectivo agir para a preservação do meio ambiente na sociedade americana desta época. Por outro lado, no âmbito europeu, o Clube de Roma, na década de 70, inaugurara nova fase do movimento ecológico, em que a questão central passa a ser a limitação da atividade econômica, sob o risco do comprometimento da própria sobrevivência da bioesfera. A Terra havia sido vista do espaço, induzindo, no inconsciente coletivo da humanidade, uma nova dimensão da sua unidade, beleza e fragilidade. A crise do petróleo, na década de 70, reforçou a preocupação com a escassez dos recursos naturais. Nesse âmbito, deve ser vista a proposta inicial do Clube de Roma de congelar o desenvolvimento e a exploração dos recursos naturais. As conclusões do Relatório Meadows, oriundo do trabalho do Clube de Roma, contribuiu, juntamente com a Conferência das Nações Unidas de Estocolmo, para a conscientização da crise ecológica (MEADOWS, et al., 1972) Concomitantemente, surgem vários movimentos ambientalistas, com graves críticas à economia desenvolvimentista exarcebada na exploração descontrolada dos recursos naturais, da larga escala de utilização das energias não-renováveis (fósseis como o carvão e o petróleo), do autoritarismo, das leis de mercado que só valoram o lucro, desprezando o bemestar social. Os movimentos ambientalistas atuavam em diferentes frentes de batalha, de acordo com a ênfase que davam aos inúmeros elementos constitutivos do meio ambiente. Assim, alguns destacavam a conservação dos recursos naturais, outros: o bem-estar humano (a qualidade de vida), a preservação da natureza de forma ampla, não restrita ao seu aspecto de fator de produção e, outros, a proteção e a emancipação dos animais. Poderíamos dizer, portanto, em visão de classificação binária, que o fundamento filosófico de cada um desses movimentos ambientalistas poderia ter uma perspectiva antropocêntrica ou ecocêntrica. Para movimentos de inspiração antropocêntrica, o destaque vinculava-se à conservação dos recursos naturais, por meio da redução dos desperdícios, de forma que o ambiente servisse para todos os homens e não para uns poucos. A qualidade de vida (o bem-estar humano) passa a ser valor associado à saúde e à própria vida do ser humano. Para promover o equilíbrio com o desenvolvimento econômico, há a preocupação com a profissionalização da gestão dos recursos naturais buscando-se a conservação e a preservação da natureza, o que contribuiu, acentuadamente, para o fortalecimento do poder regulatório do Estado. A busca de uma melhor gestão dos recursos naturais teve, também, repercussão no setor produtivo privado, com a incorporação de tecnologias menos poluentes e a internalização dos custos ambientais, como forma de melhorar a imagem e ganhar mercados. Tratavam todos esses movimentos ambientalistas de visão antropocêntrica da natureza, englobando, principalmente, as necessidades humanas básicas, de cunho notadamente econômico, embora pudessem destacar, igualmente, aspectos estéticos e espirituais, dentre outros. 139 140 Por outro lado, surgem movimentos de proteção da vida selvagem e dos animais em geral, que ressaltam visão ecocêntrica, em que o homem não é o único ser animado capaz de titularizar a proteção ambiental. O ecocentrismo valoriza, pois, a natureza de forma direta, sem a preocupação imediata com as necessidades humanas. Nessa visão, os organismos não são simples objetos e instrumentos a serviço do homem, mas sim, também, sujeitos relevantes das relações naturais. As diferentes posições das éticas ambientais acarretaram diferentes decisões para diferentes questões práticas. Singer (1994, p. 290) utiliza-se da construção de uma represa para avaliar os diferentes posicionamentos ecológicos possíveis. Assim, afirma: Se fosse para tomar a decisão exclusivamente com base nos interesses humanos, confrontaríamos as vantagens econômicas da represa para os cidadãos com a perda para os que gostam de andar pelas matas, para cientistas e outros, hoje e no futuro, que valorizam a preservação do rio em seu estado natural. Já vimos que, pelo fato de esse cálculo incluir um número indeterminado de gerações futuras, a perda do rio terá um custo muito maior do que imaginaríamos a princípio. Mesmo assim, se levarmos o fundamento de nossa decisão além dos interesses dos seres humanos, teremos muito mais elementos contrários às vantagens econômicas da construção da represa. Nesses cálculos devem agora entrar os interesses de todos os animais que vivem na área a ser inundada. Assim, observa-se, historicamente, que as posições originais dos movimentos ambientalistas eram de cunho antropocêntrico. Entretanto, com o passar dos tempos, cada vez mais surgiram movimentos baseados na ética ecocêntrica. No exemplo da represa de Singer (1994, p. 291), o autor destaca, em determinado momento, a maior complexidade e, também, a maior proteção ambiental dada pela ética ecocêntrica no âmbito das valorações e opções de atuação do homem frente à Natureza: Talvez isso não seja tudo.Não seria o caso de atribuir-mos importância não apenas ao sofrimento e à morte de um determinado número de animais, mas também ao fato de que toda uma espécie pode desaparecer? Que dizer da perda de árvores que ali estiveram por milhares de ano? Que importância (se é que há alguma) devemos atribuir à preservação dos animais, das espécies, das árvores e do ecossistema do vale, independentemente dos interesses dos seres humanos – sejam eles econômicos, recreativos ou científicos – em sua preservação? Nesse âmbito, deve-se destacar que a teoria da deep ecology pode ser vista como modelo embrionário das diferentes filosofias ambientais ecocêntricas, atualmente, existentes. Para Sessions (1998, p. 165): A década de 1960 produziu uma grande revolução ecológica [...] a preocupação com as outras espécies e a necessidade de proteção da totalidade dos ecossistemas naturais. Filosoficamente, a revolução ecológica ocorrida em 1960, e o surgimento do movimento da “deep ecology”, basicamente, destacam a passagem de uma visão antropocêntrica para uma visão ecocêntrica. 140 141 Assim, obras como a de Lynn White Jr. sobre as “Raízes Históricas da Crise Ecológica”, para Sessions (1998, p. 165-166), contribuíram para a mudança de atitude em relação à natureza.79 Estas obras históricas da mudança filosófica da visão antropocêntrica, tal como Silent Springs e Historical Roots of Our Ecologic Crisis, juntaram-se à do filósofo norueguês Arne Naess, que escreveu artigo estabelecendo a distinção entre as tendências “superficiais” e “profundas” que se verificam no movimento ecológico. O pensamento ecológico superficial estaria preso à estrutura ética tradicional antropocêntrica. Nas palavras de Singer (1994, p. 296), verbis: O pensamento ecológico superficial estaria circunscrito à estrutura moral tradicional; seus partidários estariam ansiosos por evitar a poluição da água para que pudéssemos beber uma água mais pura, e, na base de seu empenho em preservar a natureza, estaria a possibilidade de as pessoas continuarem a desfrutar dos seus prazeres. Nesse sentido, Sessions (1998, p. 165) afirma que: O pensamento ecológico superficial, Naess proclama: é antropocêntrico e está preocupado unicamente com a poluição, com o pleno uso dos recursos naturais, bem como com a riqueza e o comodismo da população dos países desenvolvidos. Por outro lado, o movimento dos ecologistas profundos (“deep ecology”) teria natureza ecocêntrica, nas palavras de Singer (1994, p. 296): [...] desejariam preservar a integridade da biosfera pela necessidade dessa preservação, ou seja, independentemente dos possíveis benefícios que o fato de preservá-la pudesse trazer para os seres humanos. Assim, surge a “deep ecology”, uma das correntes contemporâneas ambientalistas ecocêntricas pioneiras e mais aceitas da atualidade. Naess, filósofo norueguês, faz referência ao termo em artigo publicado em 1973, intitulado “The shallow and the deep, long-range ecology movement” (NAESS apud MATHEWS, 2000, p. 218). Deep ecology enfatiza mudança na visão do mundo, buscando as raízes da crise ambiental e não só os seus frutos. Para Mathews, Naess diferencia a ecologia superficial da ecologia profunda, tendo em vista que a primeira se preocupa com a poluição e a conservação dos recursos naturais, em razão do impacto dessas questões para os homens (MATHEWS, 2000, p. 218). Naess (apud PEPPER, 1996, p. 34) afirma que os ecologistas profundos assim são chamados porque não discutem questões técnicas sem analisar as fundamentais (“profundas”) antes. Exemplifica que, antes de perguntarem como assegurar fornecimento de bens materiais, os ecologistas profundos questionam se, realmente, precisamos de tantos bens. Assim, a ecologia profunda rejeita fundamentalmente a perspectiva dualista dos seres humanos e da natureza como entes separados e hierarquicamente com valores distintos. Basicamente, defende-se que os seres humanos são intimamente uma parte do ambiente natural: Homem e Natureza são, simplesmente, uma só entidade. 79 A obra de White Jr. no original é o artigo “Historical Roots of Our Ecologic Crisis”, publicado na Revista Science, n. 155, p. 1203-1207, 1967. 141 142 Desse modo, a análise da questão ambiental não pode ser vista sob o prisma estrito dos efeitos perversos da degradação, exclusivamente atribuída ao homem. Essa visão da natureza, segundo Pepper (1996, p. 37), renova as idéias de filósofos como Espinosa e Heidegger, além de estar em sintonia com a filosofia oriental (TAOÍSMO, BUDISMO e HINDUÍSMO). O próprio Naess (1998, p. 207) afirma que a “deep ecology” possui múltiplas raízes filosóficas e religiosas, destacando no âmbito das correntes religiosas, o Cristianismo, o Budismo, o Taoísmo, e, no âmbito da filosofia, o que chama de “ecofilosofia”. Os oito princípios básicos da deep ecology que a caracterizam, podem ser buscados no próprio fundador do movimento, Naess (1998, p. 196-197), no artigo “The deep ecological movement: some philosophical aspects”, verbis: 1. O bem-estar e o desenvolvimento da vida humana e não-humana na terra têm valor em si próprios (sinônimos: valor intrínseco, valor inerente). Este valor é independente da utilidade do mundo nãohumano aos propósitos humanos. 2. A riqueza e a diversidade das formas de vida contribuem para a realização deste valor, e são em si mesmos valores. 3. Os homens não têm o direito de reduzir esta riqueza e diversidade, exceto para satisfazer necessidades vitais. 4. O desenvolvimento da vida e das culturas humanas é compatível com uma redução substancial da população humana. O desenvolvimento da vida não-humana exige essa redução. 5. A atual interferência humana com o mundo não-humano é excessiva, e a situação está a piorar rapidamente. 6. As políticas devem ser alteradas. Estas políticas afetam as estruturas econômicas, tecnológicas e ideológicas básicas. O estado das coisas daí resultante será profundamente diferente do presente. 7. A mudança ideológica é basicamente a de apreciar a qualidade de vida (residindo em situações de valor inerente) em vez de aderir a um padrão de vida cada vez mais alto. Haverá uma consciência profunda da diferença entre quantidade e qualidade. 8. Aqueles que subscrevem os pontos anteriores têm direta ou indiretamente, a obrigação de tentar implementar as mudanças necessárias. Comentando o primeiro princípio, basilar para a compreensão de todos os outros, seus desdobramentos, Naess (1998, p. 197) assinala a visão ecocêntrica ampla (biocêntrica) prevista, que abarca, também, as coisas inanimadas: [...] O termo vida está sendo usado aqui em um termo mais amplo que a visão técnica dos biologistas, referindo-se a coisas classificadas pelos biologistas como não-vivas: rios, paisagens, ecossistemas. Para pessoas vinculadas à “deep ecology”, lemas como “permita que o rio viva”, exemplificam o uso amplo dado ao termo vida neste princípio. O conteúdo dos princípios, especialmente o sexto, o sétimo e o oitavo, destacam o papel ativista da “deep ecology”, como suporte ideológico de movimentos sociais destinados à implementação da proteção do meio ambiente. 142 143 Hodiernamente, os movimentos ambientalistas buscam influenciar, sobremaneira, as políticas públicas estatais para a concretização dos preceitos elencados nos princípios da “deep ecology” e de outros a eles correlacionados em diferentes ordenamentos de âmbito nacional e internacional. Ao procurar caracterizar o pensamento político ecológico (“green political thought”), Eckersley (2000, p. 317) destaca que, apesar da natureza eclética dos movimentos políticos verdes, alguns princípios comuns o caracterizam, verbis: 1. A preocupação com a crise ecológica; 2. Um respeito ético à integridade dos ecossistemas e dos seres; 3. Uma ontologia relacional da interdependência entre o social e o ecológico; 4. A aceitação da idéia de que há limites ecológicos ao crescimento; 5. Um suporte de políticas públicas que ensejam uma mudança profunda no âmbito social, tecnológico e econômico para alcançar a meta de uma sociedade ecologicamente sustentável; 6. Uma preocupação com a eqüidade intra e intergeracional; 7. Um compromisso com a democracia participativa e a descentralização do poder para o nível local. Com percuciência, Eckersley (2000, p. 324) dá relevo ao fato de que não há uma ideologia política verde própria e sim a conjugação de ideologias políticas já existentes80 que são conjugadas para a finalidade protetiva do meio ambiente. Afirma que: [...] não há nada politicamente distinto no pensamento político verde em termos das idéias políticas históricas, trata-se de uma mera reinterpretação e reestruturação de um leque selecionado de políticas conhecidas (tais como a crítica ao capitalismo, ao autoritarismo, à máquina burocrática, à instrumentalização da razão, a desumanização ocasionada por certas tecnologias e o favorecimento da democracia participativa e da descentralização). Comparando os princípios do pensamento político ecológico, analisados pelo cientista político australiano Eckersley, e os princípios da “deep ecology” de Naess, verificase clara identidade nos princípios dois, quatro e sete de Eckersley, respectivamente, com os números um, cinco e oito de Naess. Das idéias da “deep ecology”, da caracterização desta como suporte ideológico dos “partidos verdes” e dos movimentos sociais em favor do meio ambiente, vislumbra-se, de forma conclusiva, reação filosófica e social à conduta do homo faber, já detalhada na análise da obra “Condição Humana”, de Arendt. No presente trabalho, de forma pontual e sucinta, destacar-se-ão duas fundamentações teóricas, de cunho predominantemente científico, para sustentação e ratificação da concepção filosófica da teoria ecocêntrica: a teoria de Gaia, de Lovelock, e a autopoiese, de Maturana. 80 Com relação ao aproveitamento das ideologias existentes, interessante a colocação de Thompson (1990, p. 199) de que ”Todo intelectual busca uma nova ideologia, esperando tornar-se um outro Marx que possa inspirar um Lenin melhor; porém, a ideologia é para a mente o que o excremento é para o corpo: os resíduos de idéias outrora vivas”. 143 144 6.2 A TEORIA DE GAIA E O ECOCENTRISMO COSMOGÊNICO DE JAMES LOVELOCK A teoria de Gaia é a hipótese de que a Terra é um superorganismo vivo e autoregulador. O nome dado vincula-se à figura mitológica da Deusa grega, Gaia. Gaia, nas mitologias grega e romana, personifica o poder criador. Nascida imediatamente após o Caos primordial, ela deu origem, sozinha a Urano (o Céu). Depois, unindo-se a Urano, Gaia gerou os deuses propriamente ditos, dentre eles, ZEUS (KURY, 1999, p. 159). Eliade (1967, p. 141), na obra sobre a universalidade do fenômeno religioso, ao tratar da sacralidade da Natureza, destaca a figura da mãe-terra presente na noção mitológica de Gaia: La mujer está pues, solidarizada místicamente com la Tierra; el parto se presenta como una variante, a escala humana, de la fertilidad telúrica. Todas las experiencias religiosas en relación com la fecundidad y el nacimiento tienen una estructura cósmica. La sacralidad de la mujer depende de la santidad de la tierra. La fecundidad femenina tiene un modelo cósmico: el de la Terra Mater, la Genetrix universal. A teoria de Gaia foi apresentada em 1972 pelo químico inglês Lovelock e propunha que, assim como nosso corpo é auto-regulador para compensar as mudanças nas nossas atividades e no ambiente, também o "corpo" da Terra regula-se por meio dos organismos vivos que controlam a atmosfera, os oceanos e a crosta. A evolução das formas de vida e do meio ambiente físico da Terra, portanto, não é série de processos independentes, mas parte da evolução de Gaia como um todo. Tal idéia foi oriunda, conforme assinala o próprio Lovelock (1990, p. 77-81), de trabalho de pesquisa sobre a existência de vida em Marte, patrocinado pela National Aeronautics and Space Administration (NASA). Lovelock (1990, p. 79-80) destaca que, nesse trabalho de análise da vida no Planeta Vermelho, vislumbrou a necessidade de projetar modelo mais abrangente para a detecção de vida, modelo que pudesse reconhecer a vida em qualquer de suas formas prováveis, pois: Parecia que todas as experiências tinham sido projetadas para procurar aquele tipo de vida que cada investigador conhecia em seu próprio laboratório. Eles estavam procurando vida do tipo terrestre, em um planeta em nada semelhante à Terra. Dian e eu tínhamos a impressão de ser os convidados de uma expedição para procurar camelos na calota polar da Groenlândia, ou para apanhar os peixes que nadavam nas dunas de areia do Saara. Na busca de modelo mais abrangente de caracterização da vida, encontrou a atmosfera. O meio passava a ser o elemento característico do ser vivo. A idéia por trás disso era que, se o planeta possuísse vida, essa vida seria obrigada a utilizar a atmosfera como fonte de depósito de matérias-primas e também como um conveniente meio de transporte para seus produtos. 144 145 [...] Para testar esse prognóstico, precisávamos de um planeta que de fato tivesse vida. E, naturalmente, o único ao nosso alcance era a Terra (LOVELOCK, 1990, p. 79). Assim, ao analisar a atmosfera terrestre e a composição química, Lovelock criou modelo que permitia dar indício à existência de vida em Marte, a partir do meio que une todos os seres vivos da Terra: a biosfera. Após chegar à conclusão de que Marte, provavelmente, não tinha vida, a notícia não foi, segundo Lovelock, bem recebida pelo patrocinador da pesquisa, a NASA. Entretanto, quando retornou à Inglaterra, Lovelock (1990, p. 81) indagou: [...] como é que a Terra mantém uma composição atmosférica tão constante se esta é composta de gases altamente reativos? [...] Foi então que comecei a imaginar que talvez o ar não fosse apenas um meio ambiente para a vida, mas também uma parte da própria vida. Em outras palavras, parecia que a interação entre a vida e o ambiente, da qual o ar é uma parte, era tão intensa que o ar poderia ser considerado como uma pele de gato ou o revestimento de um ninho de vespas: sem vida, mas feitos por seres vivos para suportar um dado ambiente. Uma entidade que abranja todo um planeta, e que tenha a poderosa capacidade de regular o seu clima e sua composição química, precisa de um nome que lhe faça jus. Tive a felicidade de ter como vizinho, naquela época, o romancista William Golding. Quando discuti esse assunto com ele, durante um passeio a pé pelo nosso bairro, ele sugeriu o termo Gaia – que os gregos empregavam para denominar a Terra. O apoio ao aspecto bioquímico da teoria veio das pesquisas de bactérias e microrganismos, feitas pela bióloga americana Lynn Margulis. Os micróbios, numericamente e em massa agregada, a principal forma de vida, realizam incontáveis processos orgânicos, da digestão dos animais à conversão do nitrogênio nas plantas e, por conseguinte, talvez sejam os principais agentes reguladores da biosfera. Conforme assinala, Lovelock (1990, p. 83): A evidência de que Lynn Margulis e eu, além de outros – especialmente Michael Whitfield – reunimos em todos estes anos estabelece quase sem margem de dúvida que a Terra é uma construção biológica. Todas as camadas da superfície da terra são mantidas em condição estável, bem distante das expectativas da química, através do dispêndio de energia da biosfera. Na opinião de Lovelock (1990, p. 88), os danos ambientais, infligidos pelos seres humanos, desequilibraram o sistema que, assim como o corpo, tem capacidade impressionante de autocorreção. Entretanto, essa autocorreção pode ser prejudicial para a espécie humana, verbis: Parece bastante improvável que qualquer coisa que façamos possa ameaçar Gaia. Mas, se conseguirmos alterar o ambiente de forma sensível como pode acontecer no caso da concentração de dióxido de carbono na atmosfera – então uma nova adaptação pode se processar. E, provavelmente, não será em nosso benefício. 145 146 Os críticos da hipótese Gaia destacam que, a longo prazo, a Terra não tem sido estável, mas sujeita a imensas alterações climáticas e geológicas. Por outro lado, também questiona-se a possibilidade de comprovação da teoria: indagando se realmente seria hipótese científica ou metáfora simbólica. Não obstante possa ser vista como um símbolo, mesmo entre os pesquisadores que duvidam do status científico de Gaia, o conceito de planeta com sistema intradependente tem tido aspectos pragmáticos extremamente relevantes. Estimula-se a cooperação e a intercomunicação entre disciplinas geralmente isoladas, como a teoria evolucionista, a física atmosférica, a microbiologia e as geociências.81 Nesse sentido, em nascimento está a chamada Análise Sistêmica da Terra (“Earth System Analysis – ESA”). Steffen Reiche, ex-Ministro da Ciência, na Alemanha, na abertura de simpósio sobre a nova ciência de análise sistêmica da Terra, afirma: Todos nós sabemos que o planeta Terra é um organismo complexo e extremamente sensível, o qual desenvolveu impressionantes mecanismos de resistência e regeneração em decorrência das interferências danosas que sofre (SCHELLNHUBER; WENZEL, 1998, p. V). Esclarecendo o objeto desta nova ciência, intimamente vinculada à fundamentação filosófica da Teoria de Gaia, Schellnhuber; Wenzel (1998, p. VII) destacam que: Earth System Analysis (ESA) é ciência “in statu nascendi”. É uma ciência no sentido que possui: 1) um sujeito específico: a Terra vista como sistema frágil e dinâmico; 2) uma metodologia específica: uma análise sistêmica transdisciplinar baseada no monitoramento do planeta e na simulação de modelos globais; 3) um objetivo específico: a busca de uma satisfatória coevolução da ecosfera e da antroposfera (Desenvolvimento Sustentável) em tempos de mudanças globais. A análise sistêmica da Terra (Earth System Analysis - ESA) utiliza-se, pois, do conceito de sistema de Bertalanffy. Por volta da década dos cinqüenta, Bertalanffy (1975, p. 83-84) propôs a “Teoria Geral dos Sistemas”, desenvolvendo método que partia do sistema como “complexo de elementos em interação”, explicando que: O significado da expressão um tanto mística “o todo é mais que a soma das partes” consiste simplesmente em que as características constitutivas não são explicáveis a partir das características das partes isoladas. As características do complexo, portanto, comparadas às dos elementos, parecem “novas” ou “emergentes”. Se porém conhecermos o total das partes contidas em um sistema e as relações entre elas o comportamento do sistema pode ser derivado do comportamento das partes. Nesse aspecto, Schellnhuber; Wenzel (1998) assinalam a origem do termo Análise Sistêmica da Terra (ESA) como amálgama dos termos “Sistema Terra” e “Análise de Sistemas”, refletindo, conseqüentemente, as essências desses dois ingredientes. 81 “Os conhecimentos geológicos adquiridos nas décadas de 1960 e 1970 – superiores aos obtidos nos 200 anos anteriores da história das ciências geológicas –, confirmam a teoria da Terra como um sistema dinâmico. Segundo essa teoria, a crosta terrestre ou litosfera é formada por um mosaico de placas rochosas de diferentes tamanhos, as quais estão em movimento permanente, umas em relação às outras. Tectônica de Placas é o termo usado para designar os movimentos e deformações dessas placas” (REBOUÇAS, 1999, p. 2). 146 147 Por outro lado, esses autores tedescos, utilizando-se da filosofia do progresso da ciência de Kuhn,82 destacam como paradigmas predominantes do surgimento da EAS, os seguintes: 1) a corrida para a Lua, que permitiu a observação do Planeta Terra do espaço como algo finito e aberto ao espaço; 2) o evento dos super-computadores que estabeleceu a plataforma tecnológica para a simulação global; 3) a descoberta do buraco de ozônio sobre a Antartica que uniu a Comunidade Internacional sobre o fato de que a humanidade pode transformar e está transformando o meio ambiente em uma escala global (SCHELLNHUBER; WENZEL, 1998, p. viii). Assim, a Teoria de Gaia fornece aparato teórico, de cunho filosófico e científico, para a solidariedade dos entes bióticos e abióticos do meio ambiente. A teoria apresenta benefícios no contexto do mundo globalizado, por induzir preocupação internacional com o meio ambiente. A geografia política fica em segundo plano, em face da geografia natural. Propicia-se a criação, com essa teoria, de solidariedade internacional ambiental como novo paradigma científico. Portanto, para Lovelock, a Terra pode ser considerada como se fosse um único organismo vivo. Gaia está viva porque é “autopoiética”, isto é, auto-renovável; pode reparar o próprio “corpo” e crescer, processando os “nutrientes”. 6.3 A METODOLOGIA ECOCÊNTRICA DA AUTOPOIESE DE MATURANA: O ORGANISMO E O AMBIENTE COMO INTERCONSTITUINTES A noção de autopoiesis constitui-se em elemento basilar para compreensão da teoria do biólogo chileno Maturana. Autopoiesis (do grego poiein: gerar, produzir) conduz à caracterização dos seres vivos em oposição aos não vivos. A autopoiesis expressa a capacidade autônoma da vida de conduzir a própria preservação e desenvolvimento e, inclusive, de gerar a si própria (autoproduzir-se). Maturana chegou ao conceito por volta de 1963, ao estabelecer a hipótese de que o DNA participa da síntese das proteínas do citoplasma da célula, ao mesmo tempo em que as proteínas participariam da síntese do RNA. Ou seja, as produções moleculares seriam 82 O termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn associa-se a sua teoria do progresso científico no livro “A estrutura das revoluções científicas (1962)”. Nele Kuhn (1994) refuta o conceito tradicional de conhecimento científico, interpreta o conhecimento científico como aquele fundamentado em paradigmas predominantes – teorias aceitas que expressam e confirmam certas opiniões estabelecidas. Kuhn nos dá um exemplo do paradigma de Ptolomeu do Universo, com a Terra no centro, circundada pelo Sol, pelos planetas e pelas estrelas, que prevaleceu durante séculos, até ser refutado por observações astronômicas e pela teoria heliocêntrica Copernicana do sistema solar. O progresso científico, segundo Kuhn, não é incremental, mas progride em saltos por meio da mudança de paradigma, quando um paradigma é superado e substituído por outro. Assim, quando uma teoria se depara com inúmeras anomalias, as teorias concorrentes ganham estatura e a superam, o que promove o progresso científico porque proporciona uma plataforma para novos métodos de pesquisa. 147 148 processo circular e recorrente. Em outras palavras, o que a célula produz é, justamente, o que produz a célula; ou, ainda, não apenas as células reproduzem-se, mas reproduzem também a própria capacidade de reproduzir-se. Algo não vivo, fruto do engenho humano, como a fábrica, por exemplo, é produzido por algo externo a si (materiais trazidos pelo homem) e produz coisas que serão também utilizadas externamente (mercadorias destinadas ao consumo de outros seres).83 Formulação mais consistente da autopoiese surgiu ao longo dos estudos sobre a percepção visual das cores, quando Maturana procurou compreender a atividade das células da retina em termos da percepção da cor pelo sistema nervoso, ao indagar como se poderia correlacionar a atividade da retina com o nome da cor. Verificou que a diferentes estímulos espectrais (“azul claro”, “azul marinho”, “azul escuro”) havia a mesma identificação de cor (azul). Assim, verificou-se haver aparente desvinculação da atividade das células do estímulo cromático exterior (porque então já se sabia que o sistema nervoso acaba por atribuir idêntica percepção, ou seja, idêntico "nome" para a cor, quando estimulado por situações espectrais bastante diversas. O que seria, então, o nome dessa cor? Seria estado do sistema nervoso do indivíduo e não atributo externo ao ser (MATURAMA, 1997, p. 18). Destarte, relacionar a atividade da retina com o nome da cor seria relacionar a atividade da retina com outro estado de atividade neuronial, vinculado ao nome dado à cor; quer dizer, é o sistema nervoso relacionando-se consigo próprio, operando em circuito fechado. Em última análise, o que o sistema nervoso faz é estabelecer referências a padrões de variação (externos) que expressem o seu próprio modo de organização (interno). É a estrutura da retina, e não o estímulo externo, o que determina a atividade da retina. Posteriormente Maturana concluiu ser o próprio ser vivo um sistema fechado, constituído pela circularidade de seus processos e concebeu representação do ser vivo por meio de seta circularmente voltada sobre si mesma (MATURAMA; VARELA, 1972). Para Maturana, a cognição é fenômeno puramente biológico. Nesse contexto, a percepção da realidade exterior, ou seja, o fenômeno do conhecer é exatamente o próprio fenômeno do "viver", ou seja, é o operar (interior) adequado ao ambiente (exterior), ou, ainda, nas palavras de Maturana (1997, p. 41), verbis: Para entender o ser vivo, o que temos que encarar é o que o faz, o que o constrói. Eu dizia: “Qual é a tarefa, ou o propóstio da mosca?” Mosquear, ser mosca. O interessante é que esta resposta: “O propósito da mosca é mosquear” coloca a caracterização do ser vivo no ser vivo, não a coloca fora do ser vivo. O conhecer passa a ser, para esse biólogo, fenômeno do operar do ser vivo em consonância com a circunstância. Procurando melhor compreender o conhecer, Maturana (1997, p. 152) percebeu ser o “sistema vivo um sistema fechado cujo objetivo último é o de preservar sua organização (interna), conservando sua adaptação à ‘circunstância”84 (externa). 83 84 “A verdade é que eu descobri a autopoiese por volta de 1963 conversando com um amigo microbiólogo, Guilhermo Contreras, sobre uma pergunta da genética molecular importante na época. Discutíamos se a informação fluía do citoplasma para o núcleo, ou somente do núcleo par o citoplasma [...] ‘Veja, o que ocorre é que o DNA participa da síntese das proteínas, e as proteínas participam da síntese do DNA’” (MATURANA, 1997, p. 31-32). O modelo tradicionalmente aceito de conhecimento biológico percebe o sistema nervoso como um sistema aberto, que capta informações por meio dos cinco sentidos e com elas constrói uma representação interna de uma realidade externa (o meio ambiente sempre chamado de “circunstância” por Maturana). 148 149 Assim, “viver é conhecer, conhecer é viver”, no momento em que cessa o conhecer, ou seja, em que o organismo deixa de estar em harmonia com sua circunstância, morre e deixa de ser um sistema auto-referente. O “viver” de um ser vivo é, portanto, processo permanente de interações recursivas entre o organismo e o ambiente, que ocorre, naturalmente, sem estar submetido a qualquer direcionamento externo; organismo e ambiente são sistemas estruturalmente determinados, mas operacionalmente independentes um do outro.85 É esse caráter sistêmico da relação entre o ser vivo e o ambiente que faz com que o ser vivo, enquanto estiver vivo, fique sempre e espontaneamente em "coincidência estrutural” com o meio ambiente. Quando tal coincidência acabar, o ser morre. Mais que interdependentes, o organismo e o meio são interconstituintes. O indivíduo só é indivíduo porque social, e o social somente é social porque composto por indivíduos. Nesse sentido, Maturana (1997, p. 42) afirma, verbis: Os biólogos enfatizaram o fato de que o ser vivo não é independente de sua circunstância. Mas, ao mesmo tempo, não encaram o indivíduo como uma coisa legítima em si mesma – porque o encaram como parte desse processo evolutivo. Mas, no momento em que atribuo importância ao indivíduo, em que pertenço a essa história que dá importância aos indivíduos e respeita sua legitimidade, quando vejo as bordas, os limites, não nego as circunstâncias. Quando digo que conhecer é viver, e viver é conhecer, o que estou dizendo é que o ser vivo, no momento em que deixa de ser congruente com sua circunstância, morre. Ou seja, quando acaba seu conhecimento, morre. É um conjunto que é uma unidade em sua circunstância. Mas ele é como é, segundo sua história com sua circunstância. E sua circunstância é como é, segundo a história de sua dinâmica. Para Maturana, há, pois, responsabilidade entre o mundo animado e o mundo inanimado, razão por que pode ser caracterizado como autor que se filia à ética ecocêntrica para a problemática homem/natureza. Para esse biólogo chileno, todos os seres podem ser vistos como conjunto de sistemas autopoiéticos unidos por circunstâncias comuns. Todo sistema determinado pela estrutura (autopoiético) existe em um meio, ou seja, surge em um meio ao ser distinguido ou trazido, à mão, pela operação de distinção do observador. Essa condição de existência é, também, necessariamente, condição de complementariedade estrutural entre o sistema e o meio em que as interações do sistema são apenas perturbações. A complementariedade estrutural, necessária entre o sistema e o meio, é o que Maturana chama de acoplamento estrutural. 85 Os sistemas autopoiéticos não transforma nenhum input do ambiente em output para o ambiente, exceto no sentido de estarem transformando a si próprios em si próprios (ainda que para isso sejam estruturalmente abertos, pois importam insumos e exportam resíduos). Em outras palavras, o produto do sistema é o próprio sistema. Tudo o que ele fizer será sempre no sentido de autoproduzir-se. Enfim, dizer que o ser vivo é operacionalmente independente é o mesmo que afirmar que eles são auto-organizantes ou auto-referentes ou autopoiéticos. 149 150 A interação também existe entre dois sistemas autopoiéticos como dois seres humanos ou o ser humano e o animal. Tratando da Biologia do Fenômeno Social, Maturana (1997, p. 208) esclarece a existência de co-responsabilidade entre os seres, afirmando que: A natureza é, para o ser humano primitivo, o reino de Deus, o âmbito onde encontra à mão tudo aquilo de que necessita, se convive adequadamente nela. Para o ser humano moderno a sociedade é a natureza, o reino de Deus, que deve configurar o âmbito onde encontrar à mão tudo o que gera seu bem estar como resultado de seu conviver nela. Isso, em geral, não ocorre, impedido pela alienação que o apego e o desejo de posse geram, alienação essa que transforma tudo, as coisas, as idéias, os sentimentos, a verdade, em bens adquiríveis, gerando um processo que priva o outro do que deveria estar, para ele ou ela, à mão, como resultado de seu mero ser e fazer social. No apego, no desejo de posse, negamos o outro e criamos com ele ou ela um mundo que nos nega (grifo nosso). É preciso também abordar a questão da linguagem nesse contexto. Esta tem por objetivo chegar a algum acordo, construir consenso a respeito da sinalização de algo entre dois indivíduos que se encontram em acoplamento estrutural mútuo. Nesse sentido, Maturana (1997, p. 38) ilustra com exemplo de “interação de orientações”86 entre uma menina (ser humano) e um cachorro (animal): Eu era estudante na Inglaterra e, um dia, estava no Hide Park, em Londres, e vi uma menina com um cão e um bastãozinho. Ela ia caminhando com o bastão e tomava do bastão e o enterrava no chão, e prosseguia caminhando uns 50 metros, o cão ao seu lado. Ela então parava, olhava para o cão e dizia “Vá buscar o bastão”. O cão saía, e ia buscar o bastão. E a rotina se repetia enquanto ela andava. Isso me parecia fascinante porque era uma coordenação muito especial com o cão. Então, eu pensava que o que ela conseguia era que o cão se orientasse não para ela, mas sim para sua orientação sobre o bastão. Ela punha o bastão no chão, e quando dizia ao cão: “Vá buscar o bastão”, o cão não se orientava para ela mas para a orientação dela sobre o bastão. Embora aí não fosse visível que era uma coordenação de coordenações de ações, porque eram dois momentos tão separados, esse era exatamente um jogo de coordenação de coordenações de ação (grifo nosso). Assim, para Maturana, o bastão da menina indicado ao cachorro é um símbolo. Coisas que orientam o outro, não para si, mas para outra coisa. Para Maturana, a menina, ao apontar com o dedo o bastão, orienta o cão para onde a mão aponta. Logo, a linguagem, para Maturana (1997, p. 39), é “interação de orientações”, em que a segunda orientação não era sobre o orientador, mas sim sobre a orientação. Os signos, 86 “Minha primeira visão sobre a linguagem, expressa no ‘Neurophysiology of cognition’, é a de ‘interações de orientação’. Apontar não ao que aponta, mas sim apontar ao apontar do que aponta. E eu pensava que, na medida em que eu podia fazer isso, efetivamente, iam aparecer os símbolos, porque os símbolos são justamente algo criado pelo que aponta fora de si mesmo. São coisas que orientam o outro, não para si, mas para uma outra coisa” (MATURANA, 1997, p. 37-38). 150 151 nesse aspecto são secundários “porque as regras, os signos e símbolos são resultados desse operar”. Verifica-se que a associação da linguagem ao fenômeno biológico, afasta a alegação de Descartes, já analisada, de que só o ser humano é capaz de “interagir sobre orientações” com os outros seres. O que pode mitigar a noção cartesiana de alma racional como exclusiva dos seres humanos, “únicos” capazes, para o cartesianismo, de acoplamento estrutural mútuo. Interessante observar que o caminho de Maturana passa pela análise do ser animado sensorial para depois chegar ao ser animado humano. Verifica, ao contrário de muitos, identificação do humano com o animal para, a partir desse momento, avaliar o humano. Para Maturana (1997, p. 46), a origem do humano, sua ontogenia passa: [...] pela história dos primatas bípedes à qual pertencemos, com a origem da linguagem. E a linguagem se origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual esses nosso antepassados conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade, em grupos pequenos, na participação dos machos na criação das crianças, no cuidado com as crias, nas coordenações de ação que isso implica. E ali surge a linguagem como um domínio de coordenações de coordenações consensuais de conduta. Mas é o fundamento básico do emocionar-se do mamífero e do primata que torna essa convivência possível. A emoção que torna possível essa convivência é o amor, o domínio de ações que constituem o outro como legítimo outro na convivência (grifo nosso). Logo, não só as suas conclusões como a sua própria metodologia de trabalho é ecocêntrica. A intimidade do viver cotidiano permitiu o acoplamento estrutural mútuo, que enseja a linguagem, domínio de coordenações consensuais de conduta que, nos primatas e mamíferos, destaca-se pela capacidade de ter emoções e de amar. Nesse sentido Maturana (1997, p. 47) afirma: Isso é particularmente central na epigênese, a história de desenvolvimento da criança. Quando essas coisas se alteram e a criança não cresce no amor, sua fisiologia se distorce, surgem problemas de desenvolvimento, problemas de relação, problemas fisiológicos, psicológicos. Quando isso ocorre altera-se também seu ser social. Se não cresce no amor, altera-se sua fisiologia e, com isso, sua configuração de mundo. Porque o mundo em que a criança vive é uma expansão de seu ser corporal e, portanto, de como ela vive sua corporalidade. A corporalidade pode ser vivida no respeito por si mesmo e no respeito pelo outro, que se dá na confiança, uma confiança sincera, não hipócrita. Então, a criança que não cresce no amor, não cresce como um ser social (grifo nosso). Maturana (1997, p. 47) destaca o homem, entretanto não pela suas diferenças com os animais, mas pelo grau de acoplamento estrutural com os outros seres pelo amor. “Nós temos 151 152 fisiologia dependente do amor. E isso se nota em como se altera a fisiologia quando se interfere com o amor”. Aqui, Maturana aproxima-se da conclusão de outro biólogo e filósofo clássico, cuja ética já estudamos neste trabalho, Aristóteles. Para Aristóteles, como para Maturana, o homem é animal político.87 Entretanto, é político, para Maturana, não só na sua interação com os outros homens, mas, também, na sua interação com todos os seres. 6.4 DIFICULDADES DE TRANSPOSIÇÃO DA ÉTICA ECOCÊNTRICA PARA A CIÊNCIA JURÍDICA: A CONCEPÇÃO DE PERSONALIDADE COMO ATRIBUTO EXCLUSIVO DO HOMEM 6.4.1 Personalidade: conceitos básicos O direito subjetivo é poder de vontade para satisfação de interesses humanos, em conformidade com a norma jurídica. Anatomicamente, ele compreende sujeito, objeto e a relação que os liga (RAÓ, 1999, p. 527-528). O sujeito do direito é o ser a quem a ordem jurídica assegura o poder de agir contido no direito. Os sujeitos dos direitos são as pessoas naturais e jurídicas (LARENZ, 1978, p. 103). Para Ennecerus (1953, t. 1, v. 1, p. 318), o conceito de direito subjetivo, como um poder investido pelo ordenamento que se destina à satisfação de interesses humanos, pressupõe um sujeito a quem se atribui esse poder, sujeito de direito, o que equivale, na linguagem jurídica, a uma pessoa. Objeto do direito é o bem ou vantagem sobre o qual o sujeito exerce o poder conferido pela ordem jurídica. Relação de direito é o laço que submete o objeto ao sujeito. Beviláqua (1980, p. 52) afirma que a teoria da relação de direito que melhor traduz a verdade dos fatos é aquela que distingue duas categorias de relação: • sobre objetos naturais: direitos reais; • sobre pessoas: direitos pessoais. Nesse contexto jurídico, conceituar-se-á pessoa como o ser a que se atribuem direitos e obrigações. A palavra pessoa vem do latim persona, de personare, que significa ressoar. Persona - máscaras de que se serviam os atores - munidas com lâminas metálicas que 87 A famosa afirmação que o homem é por natureza um animal político deve ser entendida no contexto da importância da sociedade e da cidade (“polis”) para o homem e não no enfoque de sua participação na escolha dos seus governantes. “Man is a political animal in the first instance in the sense that human beings, like certains kinds of animal, everywhere congregate in groups larger than the household, and ‘strive to live together even when they have no need of assistance from one another.’” (LORD, 1987, p. 136). 152 153 aumentavam o volume da fala. Como a voz de Vulcano não poderia ressoar igual à voz de Vênus, havia necessidade de máscara para cada papel e como cada homem representa o seu papel no teatro do mundo, por metáfora, ao homem chamou-se de pessoa (SILVA, D., 1989, v. 3, p. 365). Observa-se que o termo “pessoa” está sendo usado no contexto jurídico, que é distinto do filosófico. Kant, ao analisar, filosoficamente, o termo “pessoa”, apresenta o ser humano como o valor absoluto que se contrapõe à coisa, que tem valor relativo, visto ser apenas meio. Salgado (1995, p. 244), nesse sentido, esclarece a noção de pessoa em Kant, correlacionando-a com o imperativo categórico: Porque, o homem é livre, vale dizer, porque o homem é um ser racional, é o único que deve ser considerado fim em si mesmo, já que a finalidade da razão, voltando-se a si mesma, é o ato moral que encontra o seu fundamento na idéia de liberdade de todo ser racional. Uma vez considerado como fim em si mesmo, o ser racional deverá ter em conta, sempre, que o outro ser racional é também livre e deve ser tratado como fim em si mesmo (pessoa) e nunca como meio (coisa). Em razão disso, o imperativo categórico será formado de modo a criar o liame necessário entre a ética como moral do indivíduo e a política ou o direito, na medida em que prescreve que o indivíduo aja de tal forma, que a humanidade, que se encontra na pessoa de quem age, seja considerada, sempre e ao mesmo tempo com fim em si mesma, de modo que se possa construir um reino dos fins a par do reino da natureza. O reino dos fins é o reino das pessoas ou dos seres, cuja ação tem como princípio a liberdade, e só poderá ser instaurado na medida em que o agir de cada indivíduo se paute pelas máximas do membro do reino dos fins, cuja legislação vale universalmente (grifo nosso). Já Hegel (2000, p. 40), ao tratar do conceito filosófico de pessoa, no âmbito dos “Princípios da Filosofia do Direito”, correlaciona o âmbito jurídico com o filosófico, afirmando que: É a personalidade que principalmente contém a capacidade do direito e consitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito abstrato, por conseguinte formal. O imperativo do direito é portanto: sê uma pessoa e respeita os outros como pessoas (grifo nosso). Em seguida, Hegel (2000, p. 43) explica a diferente acepção jurídica do termo “pessoa” no Direito Romano: “a personalidade é situação, estado que se opõe à escravatura”. Salta aos olhos, pois, a diferença de conceituação filosófica, da jurídica, de pessoa, na análise de Kant e Hegel, sendo, pois, inconcebível a existência filosófica para Kant e Hegel da “pessoa jurídica”, embora não o seja para a ciência jurídica contemporânea. Assim, não obstante a relação mútua entre as duas concepções, a análise, neste tópico, refere-se à “personalidade” e à “pessoa”, no sentido estritamente jurídico de titularidade de direitos e obrigações. Portanto, pessoa, no direito moderno, classifica-se em dois grupos: • todo ser humano é pessoa ⇒ homem (pessoa natural); 153 154 • organizações ou coletividades que tendem à consecução de fins comuns (pessoa jurídica).88 Deve-se observar que havia seres humanos que não eram pessoas, como os escravos. Entretanto, segundo Lima (1953, p. 138), depois que se extinguiu a escravatura, todas as criaturas humanas são portadoras de direitos. Por outro lado, os animais, as entidades metafísicas (almas, santos) e as coisas ou bens não podem ser titulares de direitos e obrigações. 6.4.2 Personalidade e a escravidão Em 6 de março de 1857, a Suprema Corte Americana no “DRED SCOTT case” (Dred Scott v. Sandford) decidiu, por sete votos a favor e dois contra, que um homem negro e sua família eram ainda escravos e não cidadãos livres (não tinham, pois personalidade) (HALL (ORG.), 1992, p. 759). Nesse momento, a Suprema Corte Americana escreveu duas novas e provocativas regras na Constituição Americana: a) Nenhum negro poderia ser cidadão americano ou, mesmo, cidadão de um Estado-membro americano; b) O Congresso Americano não tinha poderes de excluir a escravidão estabelecida nos Estados-membros americanos; Na primeira regra decorrente da decisão ficou, pois, estabelecida a diferença entre ter “personalidade jurídica” e ser homem. O escravo Dred Scott e a sua família continuavam a ser coisas (“res”), pertecentes ao seu dono John F. A. Sandford. Apesar de Dred Scott ter saído em 1834 do Estado-membro escravocrata de Missouri para o Estado-membro de Illinóis, no qual não existia a escravidão, negros eram “coisas” ligadas erga omnes e passíveis de serem reavidos a qualquer momento, não tendo titularidade para requerer “direitos” perante as Cortes Americanas. Na decisão tomada pelos nove Justices da Suprema CorteAmericana, sete deles foram favoráveis a continuidade do “status” de escravo e dois foram contrários. No voto vencedor, o Justice Taney afirmou que “Apesar dos negros poderem ser cidadãos de um determinado Estado-membro, não o eram da Federação Americana, não tendo a possibilidade, portanto, de pleitear direitos em Cortes Federais” (HALL (ORG.). 1992, p. 760). Apesar da décima-terceira emenda constitucional americana ter abolido a escravidão, Dred Scott morreu em 1858 sem ser considerado titular de direitos, mas só uma “res” (HALL (ORG.), 1992, p. 761). Mutatis mutandi, a situação jurídica da ética ecocêntrica, da Natureza e dos seres não-humanos, assemelha-se à questão vivida por Dred Scott, uma vez que a titularidade de direitos (personalidade) restringe-se ao ser humano qualificado como tal, pelo Direito. 88 “Juridicamente capaces (personas) son los hombres y además ciertas organizaciones que sirvem a determinados fines (Estado, Iglesia, Municípios, ciertas associaciones, fundaciones, etc)” (ENNECERUS, 1953, t. I, v. 1, p. 319). 154 155 Verifica-se, pois, a dissonância histórica entre ser “humano” e personalidade, o que destaca o caráter de relativa discricionariedade normativa do conceito de personalidade. Tal assertiva pode ser corroborada pela criação jurídica da pessoa moral ou coletiva. 6.4.3 Personalidade e a pessoa jurídica O tratamento legal e doutrinário dado à pessoa jurídica, na evolução da teoria negativa (que não aceita a sua existência como titular de direito) a um conjunto de teorias positivas (teorias da ficção (pessoas jurídicas são criação artificial da lei, carecendo de realidade) e teorias da realidade (pessoas jurídicas são entidades de existência indiscutível, distinta dos indivíduos que a compõem, caracterizadas por finalidades específicas)), desenvolve-se em razão de necessidade social de criação de mecanismos de titulação de direitos subjetivos que transcendam às contingências humanas. Na evolução do conceito atual de pessoa jurídica, não pode ser esquecida a visão romana “Societas est adunatio hominum ad aliquid unum communiter agendum”.89 Tal acepção ressaltava um aspecto filosófico e social, o de que o homem é um animal social, que necessita unir-se a outros homens para conseguir alcançar determinados fins. Conforme destaca Lopes (2000, p. 411) o direito privado moderno desenvolve instrumento capaz de pôr em movimento a máquina de produção capitalista – a sociedade mercantil com personalidade jurídica, a partir da tradição medieval: A tradição romana não precisou chegar ao requinte da pessoa jurídica, pois a unidade de produção sendo familiar, as regras de imputação de responsabilidade e de unificação do patrimônio no pai de família dispensavam o invento da pessoa jurídica. A tradição medieval, por seu turno, já avançara para instituir as corporações: por isso durante o período de apogeu do direito canônico medieval, desenvolvem-se regras aplicáveis a uma nova forma de associação (a Igreja hierárquica e burocratizada) cujos laços internos não são os de família e nem derivados dos laços de família (matrimônio, filiação, adoção): só podem ser os de pertença a um corpo de funcionários, cujos interesses pessoais precisam ser separados dos interesses da corporação mesma e exigem novos meios de representação e imputação de responsabilidade. No mesmo aspecto, Enneccerus (1953, t. 1, v. 1, p. 421-422) insiste que muitos interesses humanos não são só de um indivíduo, mas “sino comunes a un conjunto más o menos amplio de hombres y sólo pueden satisfacerse por la cooperación ordenada y duradora por la cooperación ordenada y duradora de esa pluralidad”. Assim, o próprio interesse humano e a contingência da natureza humana ensejam a concessão, pelo ordenamento jurídico, de capacidade de direito a determinados entes imateriais. 89 Sociedade é a união moral de homens que se reúnem para, em comum, atingirem determinado fim. 155 156 Essas organizações não são seres vivos, nem têm vontade natural, ou personalidade para Kant. Entretanto, a união de vontades humanas dirigidas a um determinado fim propicia a sua personificação (ENNECCERUS, 1953, t. 1, v. 1, p. 424). 6.4.4 Personalidade e incapacidade Capacidade é a medida da personalidade, que todos possuem (art 1º do Novo Código Civil de 2002 (Lei 10.406/2002); é a capacidade de direito (de aquisição ou de gozo de direitos). Mas nem todos possuem a capacidade de fato (de exercício do direito), que é a aptidão para exercer, por si só, os atos da vida civil, também chamada de “capacidade de ação”. Os recém-nascidos e os loucos têm somente a capacidade de direito (de aquisição de direitos), podendo, por exemplo, herdar, mas não têm a capacidade de fato (de exercício). Para propor qualquer ação em defesa da herança recebida, precisam ser representados pelos pais, tutores ou curadores. Quem possui as duas espécies de capacidade, dir-se-á, tem capacidade plena. Quem só possui a de direito, tem capacidade limitada e necessita de outra pessoa que substitua ou complete a sua vontade. São, por isso, chamados de “incapazes” (RAÓ, 1999, p. 656). No direito brasileiro não existe incapacidade de direito, porque todos se tornam, ao nascer, capazes de adquirir direitos. Existe, portanto, somente incapacidade de fato ou de exercício. Kaser (1999, p. 99) assinala, de forma sucinta e didática, a noção de capacidade jurídica para, depois, distinguí-la de capacidade de exercício, verbis: A dogmática moderna fala da CAPACIDADE JURÍDICA como capacidade de ser titular de direitos e obrigações (SUJEITO DE DIREITO), e chama pessoa em sentido jurídico a quem possui esta capacidade. Juridicamente capazes são todos os homens (pessoas NATURAIS) e ainda certas formas de organização (associações, fundações, o Estado, etc.), reconhecidas pelo Direito como pessoas e que, por isso, são chamadas pessoas JURÍDICAS. A capacidade abstrata, essa que constitui o conteúdo da personalidade (capacidade de direito), todo ser humano tem inalterada desde o momento em que nasce até o momento em que morre. Tem um ano e já pode, por meio de terceiros, comprar e vender, já tem herança; entretanto, a sua imaturidade obriga o legislador a lhe restringir, por exemplo, a capacidade matrimonial. Já ao explicar capacidade de exercício, Kaser (1999, p. 102) estabelece: A capacidade de produzir efeitos jurídicos por ACTIVIDADE PRÓPRIA (CAPACIDADE DE EXERCÍCIO) exige no sujeito uma elevada maturidade e a não existência de características que se oponham à sua idoneidade. 156 157 De sorte que a capacidade de direito não se altera; entretanto a capacidade de exercício ou de fato, intimamente ligada à consciência e à vontade (atos jurídicos), esta pode ser retirada ou restringida. Assim, a incapacidade refere-se ao exercício; portanto, é a restrição legal ao exercício de atos da vida civil de forma autônoma. Pode ser de duas espécies: absoluta e relativa. A absoluta (art. 3º) acarreta a proibição total do exercício, por si só, do direito. O ato somente poderá ser praticado pelo representante legal do absolutamente incapaz, sob pena de nulidade (Novo Código Civil, art. 166 ,I). A relativa (art. 4º) permite que o incapaz pratique atos da vida civil, desde que assistido, sob pena de anulabilidade (Novo Código Civil, art. 171, I). Os meios de suprimento da incapacidade – A incapacidade se supre sempre do seguinte modo: colocando ao lado do incapaz alguém que decida por ele (representação) ou, então, em colaboração com ele (assistência). Na representação, o incapaz não participa do ato, que é praticado somente por seu representante. Na assistência, reconhece-se ao incapaz certo discernimento e, portanto, ele é quem pratica o ato, mas não sozinho, e sim acompanhado, isto é, assistido por seu representante. Se o ato consistir, por exemplo, na assinatura de um contrato, este deverá conter a assinatura de ambos. Na representação, somente o representante do incapaz assina o contrato (RAÓ, 1999, p. 658). Exemplificando, uma criança de cinco anos de idade tem um prédio e o tem validamente, porque é capaz de direito (capacidade de aquisição), mas não o pode vender sozinho (por não ter capacidade de exercício, de negociação). Ora, acontece que ele precisa vender; precisa vender para apurar o dinheiro necessário ao seu sustento. Que fazer, se esta criança não tem a capacidade de negociar? Põe-se ao lado dele alguém que exerce por ele o direito de proprietário, representando-o. Por outro lado, deve-se atentar que o Código Civil de 2002 contém sistema de proteção aos incapazes. Em vários dispositivos, verifica-se a intenção do legislador em proteger os incapazes, como, por exemplo, nos capítulos referentes ao poder familiar, à tutela, à prescrição, às nulidade e outros. De forma análoga, a eventual concessão de personalidade aos animais, por exemplo, não se mostra vedada pela impossibilidade de sua atuação efetiva no mundo jurídico. A representação supre tal problemática do mesmo modo, que um alienado mental deve ser representado para exercer seus direitos. Nesse modo, Raó (1999, p. 646), buscando solucionar o impasse das coisas animadas ou inanimadas “não serem, nem poderem ser titulares de direitos”, destaca que o direito objetivo pode atender sempre a situações ou necessidades humanas, como o fez ao conferir personalidade aos entes coletivos. 6.4.5 Os entes não-humanos podem potencialmente ser personificados ? 157 158 Inicialmente, deve-se observar que a falta de personalidade, em si, não prejudica, substancialmente, a proteção jurídica dos seres vivos em geral na categoria jurídica de objetos (“coisas”) de direitos transindividuais, com fundamentos valorativos antropocêntricos. Corroborando essa assertiva, a expressiva decisão da Suprema Corte Americana no case Sierra Club v. Morton. Nesta decisão histórica, não obstante, o voto minoritário em separado do Justice DOUGLAS,90 a Suprema Corte protegeu o Mineral King Valley dos esforços da Walt Disney Corporation de construir estação de esqui na região, não porque o ecossistema “em si” tinha direitos a serem protegidos, mas sim porque os membros da Organização não Governamental (ONG) americana Sierra Club (homens) tinham interesses a serem preservados na utilização daquele ecossistema ao realizarem suas escaladas e caminhadas recreativas naquele local. Assim, a proteção ambiental nesse consagrado julgado da Suprema Corte Americana pode ocorrer, ainda que com fundamentos antropocêntricos. Não obstante esta consideração inicial, cada dia mais a ciência e a filosofia sinalizam a existência de valores intrínsecos de seres vivos e a conseqüente existência de interesses destes a um meio ambiente saudável. Entretanto, de forma estanque, a ciência jurídica vigente posiciona-se, de forma exclusiva, pela personalidade como atributo humano ou de conjunto de homens. Por outro lado, essa visão antropocêntrica pode, em outras circunstâncias, prejudicar a proteção dos ecossistemas e dos animais, como ocorreu no case Church of the Lukumi Babalu Aye v. City of Hialeah (1993).91 Ao se instalar um culto afro-americano de “Santeria”92 na cidade americana de Hialeah na Flórida, o poder público municipal tentou evitar a prática corriqueira de sacrifício de animais nestes cultos. 90 Para o Justice Douglas, voto dissidente no julgamento referido, os objetos inanimados podem, em algumas situações ser parte em um julgamento, como os são as pessoas jurídicas, tendo inclusive sugerido a mudança da denominação do case de Sierra Club v.Morton para Mineral King Valley v. Morton: “Inanimate objects are sometimes parties in litigation. A ship has a legal personality, a fiction found useful for maritime purposes. The corporation sole - a creature of ecclesiastical law - is an acceptable adversary and large fortunes ride on its cases. The ordinary corporation is a ´person` for purposes of the adjudicatory processes, whether it represents proprietary, spiritual, aesthetic, or charitable causes”. (Nesse sentido vide Sierra Club v. Morton, 405 U.S. 727 (1972), dissenting vote of Justice Douglas, SUPREME COURT. Sierra Club. v. Morton. Disponível em: <http://www.law.umkc.edu/faculty/projects/ftrials/conlaw/sierraclub.html >. Acessado em 25 de Jul. de 2002). 91 Para o Justice Kennedy: “This case involves pratices of the Santeria religion, which originated in the 19th century [...] First, the city concul adopted Resolution 87-66, which noted the ´concern´expressed by residents of the city ‘that certain religions may propose to engage in practices which are inconsistent with public morals, peace or safety‘ [...] Among other things, the incorporate state law subjected to criminal punishment ´whoever ... unnecessarily or cruelly ... kills any animal [...] The Free Exercise Clause commits government itself to religious tolerance, and upon even slight suspicion that proposals for state intervention stem from animosity to religion or distrust of its practices, all officials must pause to remember their own high duty“ (SUPREME COURT. Church of the Lukumi Babalu. v. City of Hialeah (1993). Disponível em: < http://supct.law.cornell.edu/supct/html/91-948.ZO.html>. Acessado em 25 de Jul. de 2002). 158 159 A questão decidida, por maioria na Suprema Corte Americana, condenou o fim público municipal de proteção dos animais em relação às crueldades realizadas no culto, considerando, no caso concreto, superior o direito humano assegurado na Constituição Americana de liberdade religiosa em relação à crueldade e ao respeito da vida dos animais. No âmbito do Supremo Tribunal Federal brasileiro, a questão também têm sido objeto de discussão sob o prisma da ponderação de direitos humanos como a preservação do meio ambiente/proteção dos animais e o exercício de atos humanos de crueldade para com os animais respaldados por elementos culturais, ambos dispositivos constitucionais.93 Assim, os cases apresentados no país berço da environmental ethics, destacam que a visão ecocêntrica pode se apresentar mais “adequada” à resolução de determinados problemas ambientais não passíveis de amparo na ótica antropocêntrica. Portanto, nada obsta que as circunstâncias fáticas e os valores a elas subjacentes ocasionem modificação estrutural normativa, a exemplo da que ocorreu com os escravos (homens) que mudaram de categoria jurídica (de “res” para “persona”). Assim, do exposto fica caracterizado que a personalidade constitui-se em política legislativa que, como tal, pode e deve moldar-se às novas realidades. No âmbito da “personalidade e da escravidão”, pode-se inferir, por exemplo, que a personalidade é atributo jurídico mutável e não correspondente ao conteúdo filosófico de “pessoa”, o que permite que os entes ambientais potencialmente possam dela usufruir. No que se refere à “personalidade e à pessoa jurídica”, observa-se que mesmo entes sem realidade natural (física) podem ser personificados por necessidades fáticas, o que não impede que outros seres da Natureza, visíveis e tangíveis, possam, também, ser personificados por necessidades fáticas. No que se reporta à “personalidade e a incapacidade”, a ciência jurídica construiu modelo em que é feita a diferenciação entre capacidade de gozo (potencial) e capacidade de 92 93 “Certain religions with significant numbers of adherents in the United States practice animal sacrifice [...] Santeria is based on an ancient African religion that metamorphosed into Santeria in the New World. When hundreds of thousands of members of the Yoruba people were brought as slaves from Eastern Africa (mostly modern Nigeria) [...] In the process of syncretion, Yoruba people mixed their faith with the Catholicism of their captors and owners, and began to practice ´Santeria´ [...] Some of the religious rites of Santeria involve the sacrifice of animals. ” (RUTGERS UNIVERSITY SCHOLL OF LAW. “Santeria and animal sacrifice”. In Animal rights law project. Disponível em: < http://www.animal-law.org/sacrifice/sacrfc.htm>. Acessado em 30 jul. 2002). STF – Recurso Extraordinário no 153.531-8-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado no Diário de Justiça de 13/03/98. Nesse sentido, o referido acórdão retrata a necessária obediência dos entes federados às normas ambientais previstas na Constituição Federal, verbis: “COSTUME – MANIFESTAÇÃO CULTURAL – ESTÍMULO – RAZOABILIDADE – PRESERVAÇÃO DA FAUNA E DA FLORA – ANIMAIS – CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das manifestações, não prescinde da observância da norma do inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Procedimento discrepante da norma constitucional denominado “farra do boi”. Consoante ensinamentos extraídos do voto do Min. REZEK no acórdão citado: “Somos, embora Estado federal, uma civilização única, subordinada a uma ordem jurídica central. A qualquer brasileiro, em qualquer ponto do território nacional, assiste o direito de querer ver honrada a Constituição em qualquer outro ponto do mesmo território”. No mesmo sentido, STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.856-RJ (medida liminar), Rel. Min. Carlos Velloso, julgada em 3/09/98. Foi deferida liminar para suspender a eficácia da Lei 2.895/98, do Estado do Rio de Janeiro, que autoriza a realização de competições conhecidas por “brigas de galo”, por ofensa ao inciso VII do §1º do art. 225 da CF – que atribui ao poder público o dever de proteger a fauna e veda, na forma da lei, as práticas que submetam os animais a crueldade. 159 160 exercício (efetiva), tal como ocorre no âmbito das incapacidades. Nada impede que os entes naturais (ou pelo menos alguns deles) tenham capacidade de direito, não obstante as exerçam por meio de representação de curadores ou tutores dos valores a eles associados. Por fim, conforme ensina a dogmática já analisada, os direitos a um meio ambiente saudável, por serem difusos, sem personificação determinada, não sendo de ninguém, podem e devem ser protegidos para o bem de todos. Onde o termo “todos”, poderia englobar não só os homens, mas também, com uma mudança de postura filosófica e jurídica, os seres vivos em geral e os elementos abióticos da Terra. Contudo, a corrente doutrinária, legal e jurisprudencial predominantes na ciência jurídica é antropocêntrica, podendo ser analisada na visão de proteção do homem não como indivíduo, mas como parte de uma coletividade presente ou futura. 160 161 PARTE II A DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE: A RIQUEZA DOS RECURSOS NATURAIS COMO DIREITO DO HOMEM PRESENTE E FUTURO As dimensões (gerações) dos direitos fundamentais e o fenômeno econômico. Correlação entre os sistemas econômicos e as dimensões de direitos fundamentais. O meio ambiente e sua vinculação jurídica aos sistemas econômicos. Economia do meio ambiente: incorporação das externalidades ambientais. Uso de instrumentos econômicos nas políticas ambientais: integração do jurídico e do econômico. “Precisamos cuidar do mundo que não veremos”. Bertrand Russel “Há boas razões para proteger a Terra. É o modo mais seguro e correto de prolongar a lucratividade”. Paul Allaire 161 162 1 AS DIMENSÕES (GERAÇÕES) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O FENÔMENO ECONÔMICO 1.1 DIMENSÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Primeiramente, cumpre esclarecer dúvidas que surgirão em decorrência das diversas terminologias utilizadas na doutrina a respeito do que sejam “direitos humanos”. Entendem-se por direitos humanos os direitos da pessoa humana, enquanto indivíduo e cidadão, que são inalienáveis, imprescritíveis, irrenunciáveis, com eficácia erga omnes, e que têm origem nos denominados direitos naturais, podendo identificarem-se como direitos transindividuais, i.e., coletivos e difusos. São inerentes à pessoa e devem ser respeitados e implementados pelo Estado. Assim, os direitos humanos identificam-se com os direitos fundamentais, com os direitos individuais, direitos civis, liberdades fundamentais, liberdades públicas, direitos da liberdade e direitos de solidariedade e fraternidade, dependendo do país ou do jusfilósofo que tenha enfrentado o tema94. É certo que há diferenças que podem levar a alguma distinção entre um termo e outro, mas, em sentido amplo, a expressão direitos humanos pode ser tomada como gênero das diversas "espécies" mencionadas, sem prejuízo da compreensão do tema. Os direitos humanos e a respectiva luta vêm registrados na história, com nítida raiz no mundo clássico. Para alguns teóricos, provêm do cristianismo, que valorizou a dignidade da pessoa humana. Para outros, surgiram na Idade Moderna. Neste trabalho, buscar-se-á enfatizar os direitos humanos, em diferentes épocas, correlacionando-os com o fenômeno econômico. Adotar-se-á a Idade Moderna como marco desses direitos fundamentais.95 Há tempo para tudo.96 Cada vez que se olhar a História97, observa-se-á que os 94 95 Cf. TORRES, R., (1995. p. 8-13). Sem desmerecer a importância de tal marco, já que, - sem dúvida, o século XVIII e as Revoluções americana e francesa culminaram com as declarações de direito no sentido moderno, indicamos a necessidade de retroceder um pouco mais na história da humanidade para indagar sobre o tratamento dado aos direitos do homem na Grécia antiga, em Roma, no cristianismo e na Idade Média, o que é feito por Andrade (1987, p. 12-30). 96 Eclesiastes, 3: 1-7: “ 1) Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. 2) Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; 3) Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar; 4) Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar; 5) Tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; 6) Tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora; 7) Tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; 8) Tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz.” 97 A lógica dialética é um processo em três etapas geralmente denominadas tese, antítese e síntese. Nessa tríade, apresenta-se uma proposição, que é refutada por seu oposto e, por fim, transformada, mediante a interação das duas, em um híbrido novo e superior. Para Hegel (1995, p. 100-110), esse era o processo fundamental das mudanças históricas. Ele identificava "momentos dialéticos", ou etapas, da história, nos quais os conceitos e as instituições existentes geram conflitos internos que acabam por ser superados na criação de um novo "momento". Um exemplo de dialética comumente citado é a análise hegeliana da relação antagônica entre 162 163 direitos fundamentais possuem forte dimensão temporal.98 Na antigüidade clássica, não se aventou a idéia da existência de direitos do homem. A sociedade grega, além de escravocrata, fundava-se em moral que Andrade (1987, p. 12) identifica como coletiva e alargada. Segundo Coulanges (1987, p. 211), a noção de cidadão restringia-se à liberdade de participação em assuntos públicos e na vida política, vinculada esta à religião da cidade: Se quisermos definir o cidadão dos tempos antigos pelo seu atributo mais essencial, devemos dizer ser cidadão todo homem que segue a religião da cidade [...] A participação no culto trazia consigo a posse dos direitos [...] O estrangeiro, pelo contrário, não participando na religião, não tinha direito algum. Ao contrário do noticiado na “Cidade Antiga”, a época contemporânea prima pelo trato dos direitos fundamentais, sem embargo de muitas vezes serem postergados a um segundo plano. Entretanto, os direitos fundamentais não se apresentam nem todos de uma vez nem de uma vez por todas (BOBBIO, 1992, p. 32; BONAVIDES, 1996, p. 517). Conforme assinala Sarlet (2001, p. 48), desde que ocorreu a positivação dos direitos humanos nas Constituições, estes passaram por diversas transformações, tanto no que se refere ao conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação. Assim, os direitos fundamentais estão marcados por autêntico devir, não obstante se vinculem a núcleo unificador de proteção da dignidade da pessoa humana. A classificação dos direitos fundamentais, no âmbito da doutrina nacional, retrata a noção de existência das novas facetas da dignidade da pessoa humana, que preocupa renomados autores, na busca de uma classificação dos direitos fundamentais. Assim, Magalhães (1992, p. 20-21) classifica os direitos fundamentais em: direitos individuais, sociais, econômicos e políticos. Com essa classificação, o autor enseja a reflexão sobre faces do multifário campo de incidência dos direitos fundamentais. Encampa, nessa classificação, três gerações de direitos fundamentais: a primeira, com os direitos individuais; a segunda, com os direitos sociais; a terceira, com os direitos econômicos, com especial relevo para a questão ambiental. “Classificamos entre direitos econômicos [...] direito ambiental e direitos do consumidor” (BONAVIDES, 1996, p. 516). No contexto doutrinário relativo à classificação dos direitos fundamentais, destaca-se a teoria dos quatro status de Jellinek. Essa teoria, para Alexy (1993, p. 261), constitui-se em 98 "senhor e escravo". Nesse caso, a "tese", a posição de domínio do senhor, é contestada por sua antítese, a condição subordinada do escravo. A relação é de conflito e só pode ser resolvida por uma síntese das duas situações: o reconhecimento da dependência (o escravo depende do senhor para se alimentar e se abrigar, o senhor precisa do escravo para trabalhar). “Falar em dimensão temporal da cidadania significa estabelecer laços históricos para o aparecimento e a afirmação dos direitos em que se consubstancia” (TORRES, R., 1999, p. 262-264). 163 164 “el ejemplo más grandioso de una teorización analítica en el ámbito de los derechos fundamentales”. Ademais, conforme anota Miranda (1991, p 85), a classificação de Jellinek corresponde aproximadamente ao processo histórico de afirmação da pessoa humana e de seus direitos. Ressaltando o registro histórico na própria conceituação dos direitos humanos, Perez Luño (1990, p. 48) ensina que os direitos humanos são: Un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la dignidad, la liberdad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional. No mesmo diapasão, Bobbio (1992, p. 5) defende que os direitos fundamentais são direitos históricos, ao afirmar que: Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. Comparato (1999, p. 35), da mesma maneira, ressalta o aspecto histórico dos direitos humanos, ao lembrar que: A consciência ética coletiva, como foi várias vezes assinalado aqui, amplia-se e aprofunda-se com o evolver da História. A exigência de condições sociais aptas a propiciar a realização de todas as virtualidades do ser humano é, assim, intensificada no tempo e traduzse, necessariamente, pela formulação de novos direitos humanos. Segundo Jellinek, pelo fato de ser membro do Estado, o indivíduo trava, ao longo do tempo, com este, pluralidade de relações denominadas “status”, razão pela qual a teoria de Jellinek é, também, chamada “Teoria dos Quatro Status”. A primeira relação em que se encontra o indivíduo é a de subordinação ao Estado. Esta é a esfera dos deveres individuais e corresponde ao status passivo. A segunda relação, o status negativus, corresponde à esfera de liberdade na qual os interesses essencialmente individuais encontram sua satisfação. É, pois, esfera de liberdade individual, cujas ações são livres, porque não estão ordenadas ou proibidas, vale dizer: tanto sua omissão como sua realização estão permitidas (ALEXY, 1993, p.251). A terceira relação resulta do fato de que a atividade estatal é realizada no interesse dos cidadãos, status positivus. E, para o cumprimento de suas tarefas, o Estado tem obrigação de exercer determinadas tarefas. No dizer de Bonavides (1996, p. 518), “dominam o século XX do mesmo modo como os direitos da primeira geração dominaram o século passado [...] Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula”. A quarta e última relação decorre da circunstância de que a atividade estatal só se torna possível por meio da ação dos cidadãos. 164 165 Assim, com base na exposição de Jellinek, os direitos fundamentais classificam-se em direitos de defesa, direitos a prestações e direitos de participação, correspondendo, respectivamente, aos status negativo, positivo e ativo. Sob esse enfoque, mencionam-se a classificação de Jellinek e a classificação das dimensões ou gerações de direitos fundamentais, o que ressalta uma certa congruência no agrupamento dos direitos fundamentais ao longo do processo histórico.99 Outro autor que tratou mais recentemente das dimensões temporais da cidadania e dos direitos fundamentais foi o economista inglês Marshall, T., (1967, p. 75), que defende vinculação histórica racional e linear dos direitos civis do século XVIII (direitos de primeira geração, direitos de liberdade), em um primeiro momento; aos direitos políticos do século XIX, em um segundo momento; aos direitos sociais (direitos de segunda geração) no século XX, em um terceiro momento. Os direitos fundamentais têm a característica de ir se ampliando à medida que avança o processo histórico. Os direitos fundamentais ganham outros contornos e significados, como assevera Coelho (1992, p. 187): Assim é que, a cada declaração, novos direitos foram sendo reconhecidos ou proclamados, tal como aconteceu nos demais sistemas jurídicos, o que de resto, nada mais representa do que a progressiva e irreversível ampliação de um núcleo fundamental originário, inicialmente constituído apenas pelos direitos civis e políticos - os chamados direitos de primeira geração - e logo sucessivamente aplicado, rumo a novas e intermináveis gerações de direitos humanos [...] Far-se-á análise sucinta de cada uma das dimensões (gerações) dos direitos fundamentais, com ênfase nos direitos fundamentais de terceira geração, em especial no direito a um meio ambiente saudável, objeto de estudo neste trabalho. 1.2 EVOLUÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NA IDADE MODERNA 1.2.1 Direitos fundamentais de primeira dimensão 99 “Em que pese o dissídio na esfera terminológica, verifica-se crescente convergência de opiniões no que concerne à idéia que norteia a concepção das três (ou quatro, se assim preferirmos) dimensões dos direitos fundamentais, no sentido de que estes, tendo tido sua trajetória existencial inaugurada com o reconhecimento formal nas primeiras Constituições escritas dos clássicos direitos de matriz liberal-burguesa, se encontram em constante processo cie transformação, culminando com a recepção, nos catálogos constitucionais e na seara do Direito Internacional, de múltiplas e diferenciadas posições jurídicas, cujo conteúdo é tão variável quanto as transformações ocorridas na realidade social, política, cultural e econômica no longo dos tempos. Assim sendo, a teoria dimensional dos direitos fundamentais não aponta, tão-somente, para o caráter cumulativo do processo evolutivo e para a natureza complementar de todos os direitos fundamentais, mas afirma, para além disso, sua unidade e indivisibilidade no contexto do direito constitucional interno e, de modo especial na esfera do moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos” (SARLET, 2001, p. 49-50, grifo nosso). 165 166 Freqüentemente, nos tratados relativos a direitos fundamentais, na discussão sobre sua evolução histórica, toma-se como marcos as célebres Virgínia Bill of Rights (1776), Déclaration des Droit de l'Homme et du Citoyen (1789), e o início da era moderna.100 A célebre Magna Charta Libertatum, de 1215, é constantemente tomada como antecedente histórico das modernas declarações de direitos humanos. A Magna Carta, como de resto os documentos de franquia concedidos na Espanha, Portugal, Hungria, Polônia e Suécia - não abarcavam o reconhecimento de direitos fundamentais do indivíduo, mas estabeleciam direitos de caráter estamental.101Sua importância, entretanto, reside no fato de haver ensejado posteriormente a transformação dos direitos estamentais em direitos do homem. No dizer de Canotilho (1993, p. 501): O vigor irradiante no sentido da individualização dos privilégios estamentais detecta-se na interpretação que passou a ser dada ao célebre art. 39°, onde se preceituava que "Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado de seus bens, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem mandaremos proceder contra ele, senão em julgamento regular pelos seus pares ou de harmonia com a lei do país": Embora este preceito começasse por aproveitar apenas a certos estratos sociais - os cidadãos optimo jure - acabou por ter uma dimensão mais geral quando o conceito do homem livre se tornou extensivo a todos os ingleses. Mas é inconteste que a primeira realização concreta dos direitos humanos vem bem depois da Idade Antiga. Compartilha-se do pensamento de Comparato (1999)102, quando busca encontrá-la, ainda que de modo incipiente, no período crítico da transição para a Idade Moderna, que foi a chamada Baixa Idade Média nas comunas e burgos livres da Europa Ocidental. O direito comunal europeu, fundado na liberdade e na igualdade, opunha-se radicalmente à compartimentalização social e às servidões feudais. O absolutismo real passou a ser contestado, na reação dos barões ingleses que, no século XIII, impuseram ao Rei João Sem Terra o reconhecimento de direitos fundamentais inscritos na Magna Carta e que se aperfeiçoaram nas declarações de direito seguintes. Segundo a concepção jusnaturalista em voga, todos os homens são livres por natureza e possuem direitos inatos, anteriores e, portanto, superiores ao poder público. O objetivo da sociedade, contratualmente constituída, era, pois, conservar todos os direitos naturais do indivíduo. As doutrinas contratualistas, fundadas sobre o contrato social, cujos máximos expoentes foram Hobbes, Locke e Rousseau, acarretaram efeitos práticos diferenciados, visto que, apesar da base comum, diferenciados, também foram seus principais postulados, sobretudo em relação à natureza humana. Não vamos, porém, entrar em maiores detalhes 100 Cf. BONAVIDES, 1993, p. 474.; SILVA, J., 1991. p. 133; RUFFIA, 1987. p. 701. 101 “No embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor da liberdade. Não, porém, a liberdade geral em benefício de todos, sem distinções de condição social, o que só viria a ser declarado ao final do século XVIII, mas sim liberdades específicas, em favor, principalmente, dos estamentos superiores da sociedade – o clero e a nobreza -, com algumas concessões em benefício do ‘terceiro estamento’, o povo” (COMPARATO, 1999, p. 34). 102 “A proto-história dos direitos humanos começa na Baixa Idade Média, mais exatamente na passagem do século XII ao século XIII. Não se trata, ainda, de uma afirmação de direitos inerentes à própria condição humana, mas sim do início do movimento para a instituição de limites ao poder dos governantes, o que representou uma grande novidade histórica” (COMPARATO, 1999, p. 33-34). 166 167 sobre o tema das teorias contratualistas, porquanto tal esforço implicaria afastamento sem benefício dos propósitos iniciais deste trabalho. Basta acentuar que, enquanto o contratualismo de Hobbes (1651) no Leviathan conduziram à legitimação do poder absoluto, o contratualismo de Locke refletiu-se na defesa da autonomia privada, ao condenar o processo de absolutização, os privilégios mantidos pela nobreza e a falta de espaço político da burguesia emergente. O liberalismo, marcado pela concepção de primazia do indivíduo sobre o Estado, e a concepção jusnaturalista trazem a possibilidade de juridicização dos direitos do homem e projetam-se nas revoluções americana e francesa, determinando o aparecimento das declarações de direitos setecentistas. Curioso notar que, ao mesmo tempo em que o Estado absoluto - dispensando tratamento igualitário aos súditos - estabelece as bases dos direitos fundamentais, causa - em perspectiva dialética condições de luta pela liberdade. Isto porque, como anota Miranda (1988, p. 19), os exageros e arbítrios do Estado Absolutista, a insuficiência de garantias individuais e a negação de direitos políticos aos súditos, aliadas às exigências de liberdades econômicas da burguesia ascendente terminam por revelar um estágio de insatisfação crescente. Os direitos dos ingleses - Petition of Rights (1628), Habeas Corpus Act (1679) e Bill of Rights (1688) - são transplantados para as colônias, culturalmente assimilados e desenvolvidos como direitos dos homens, culminando com a revolução norte-americana e as declarações de Direitos dos Estados, dentre as quais, as primeiras foram as da Virginia, da Pensilvânia e de Maryland, em 1776. Em 1787, a Constituição Federal, com suas dez emendas aprovadas pelo Congresso em 1789 - é a pioneira do movimento de constitucionalização dos direitos fundamentais que se espalhou por todo o mundo. Por outro lado, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembléia Constituinte francesa em 27.8.1789, teve grande influência no desenvolvimento dos direitos fundamentais em todo o mundo. Ressalte-se que, ainda hoje, a Constituição francesa vigente, de 1958, a ela se remete em seu preâmbulo. A Declaração francesa de 1789 é de cunho jusnaturalista, tanto que, em seu preâmbulo, limita-se a reconhecer os "direitos naturais inalienáveis e sagrados do homem". O art. 2º prevê que "a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem”, e o art. 16 proclama que qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos fundamentais nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição. Ao contrário das declarações americanas, a Declaração francesa caracteriza-se por seu perfil universalizante de aplicação não só ao cidadão francês mas a todo mundo.103 Os direitos fundamentais, ao menos no âmbito de seu reconhecimento nas primeiras Constituições escritas, são o produto peculiar (ressalvado certo conteúdo social característico do constitucionalismo francês) do pensamento liberal-burguês do Século XVIII, de marcado cunho individualista, surgindo e afirmando-se como direitos do indivíduo frente ao Estado.104 Constituem direitos de cunho negativo, de abstenção, também são chamados de liberdades por essa mesma noção de atuação independente do Estado. Nesse aspecto, os fundadores da nação americana conheciam a teoria republicana e concordavam que a liberdade só florescia em Estados pequenos. A monarquia e o despotismo, os patronos do 103 Kriele (apud SARLET, 2001, p. 48) afirma que, enquanto os americanos tinham apenas direitos fundamentais, a França legou ao mundo os direitos humanos. 104 Cf. ANDRADE, 1987, p. 43; LAFER, 1991, p.15-20. 167 168 Deleted: Deleted: governo enérgico, invasivo e poderoso, eram produtos de Estados de tamanho maior. Supunha-se que os direitos inalienáveis da liberdade e a busca da felicidade, a que se referia a Declaração de Independência, seriam mais bem protegidos por governos estaduais pequenos e locais. Luther Martin (apud HAMILTON, MADISON e JAY, 1993, p. 9), um opositor à Constituição americana e à centralização de poderes em Washington, lembraria à Convenção de 1787 que: [...] quando da separação do Império Britânico, o povo da América preferiu instituir-se em treze soberanias separadas ao invés de se incorporar em uma única. É com elas que contam para a segurança de suas vidas, liberdades e propriedades. É com elas que devem contar. O governo federal foi formado para defender o conjunto contra nações estrangeiras em caso de guerra e para defender os menores Estados contra as ambições dos maiores. Também são direitos individuais: a importância da pessoa, do indivíduo;105 como categoria filosófica, relaciona-se, diretamente, com a temática das chamadas liberdades públicas. Foi esta preocupação com o ser humano, nas suas relações com o ente estatal, que fez com que fossem estabelecidas esferas individuais de proteção nas quais a atuação estatal não se poderia infiltrar. No cerne da construção constitucional moderna, erige-se o valor liberdade como direito fundamental, tendo a revolução americana como um dos marcos, ao lado da revolução francesa,106 consoante ensinamento de Ataliba (1987, p. 99): No centro da construção constitucional ocidental moderna – como proposta pelo constitucionalismo informador das Revoluções francesa e norte-americana – está a tábua de direitos do homem e do cidadão, o rol das chamadas liberdades públicas. Quase todas as constituições do constitucionalismo têm, como a nossa, uma lista de direitos assegurados aos cidadãos (e muitas vezes, também, a não-cidadãos). Esses chamados direitos individuais são postos como fulcros dos sistemas constitucionais. Com o liberalismo triunfante, por meio das revoluções que derrubaram as monarquias absolutas, o valor liberdade erigiu-se pública e, até, oficialmente, em valor dominante. Do ponto de vista do liberalismo clássico, a existência de instituições políticas (que alguns radicais encaravam como um mal necessário) era função das vontades intrinsecamente livres dos indivíduos, e toda a história seria, como forma de progresso, inexorável aproximação ao ideal da liberdade plena. O liberalismo ensejou, inclusive, a 105 A importância da pessoa como categoria filosófica avulta-se no mundo contemporâneo tendo em vista que muitas vezes é o próprio valor do ser humano que está posto em causa. A despeito das conquistas alcançadas no campo dos direitos humanos, porém, as vicissitudes e as constantes crises e guerras a que são submetidos diferentes povos e nações revelam que o processo de afirmação do homem como pessoa portadora de valores éticos insuprimíveis, tais como a dignidade, a autonomia, a liberdade, exigem uma constante vigilância. Talvez por isso a filosofia dos valores seja hoje disciplina que se expande e impulsiona uma axiologia jurídica” (FARIAS, 1996, p. 45). 106 “O campo estava preparado, portanto, para o surgimento da Reforma, cujo princípio fundamental foi a liberdade de consciência, de Rousseau, do enciclopedismo e da Revolução Francesa. Nos Estados Unidos, decorrente da experiência inglesa, estava preparado o espírito para as declarações de direitos de Virgínia, Nova Jersey e Carolina do Norte. A Revolução Francesa e a Independência Americana, através de declarações formais de direitos, consagravam, então, a experiência inglesa da Magna Carta e do Habeas Corpus Act de 1679, especialmente quanto à consciência de que direitos somente têm consistência se acompanhados dos instrumentos processuais para a sua proteção e efetivação” (GRECO FILHO, 1989, p. 34, grifo nosso). 168 169 formação de um conceito novo de saber, não tão novo, talvez, por vir da Renascença: o saber como algo público, distinto do saber oculto e secreto de outras épocas. Este conceito do saber como coisa pública, obra da ilustração e do acesso de todos à razão e à ciência, completava-se com o de uma verdade objetiva, conhecida por meio do saber progressivo, do debate franco, função de vida social liberada de parcialismo e privilégios, sobretudo privilégios feudais. Esse conceito de saber promoveu também a tendência que ficou, marcantemente, caracterizando a cultura ocidental moderna e contemporânea, em contraste com as culturas antigas em geral, quase sempre dotadas de poucos livros principais: senão mesmo de um só. Do mesmo modo, a mentalidade ocidental contemporânea assumiu crescente pluralismo em matéria de posições filosóficas, em matéria de estilos artísticos, em matéria de leis. Em lugar da lei, no singular, as leis, no plural, como experiência sempre mais numerosa, apesar de falar-se na lei em sentido genérico, e de ter-se, o Estado, como fonte única do Direito, nisto negando-se o pluralismo de fontes que houve na Idade Média. Na primeira vaga romântica, Constant (1872, t. 1, p. 256, 354 apud SALDANHA, 1980, p. 33) arrolou como direitos individuais: a liberdade individual, o julgamento pelo júri, a liberdade religiosa, a liberdade de indústria, a inviolabilidade da propriedade e a liberdade de imprensa. Sua teoria constitucional, conciliatória e realista, incluía as conquistas liberais, temperando-as com o doutrinarismo nascente. Dentro ainda do pensamento do século XVIII, um dos momentos mais importantes para o nosso tema foi a diferenciação, indicada (e até sentida) por Jean-Jacques Rousseau, entre a liberdade natural ou física e a liberdade civil, isto é, social e política. Para Rousseau, os homens depois do contrato social, encontram-se inseridos em um corpo que deve ser coeso, e a liberdade de cada qual consiste principalmente em incluir sua vontade no conjunto formado pelas vontades de todos (SALDANHA, 1980, p. 33). Tocqueville (1969, p. 15), em esclarecedora passagem sobre esta temática, afirma, comentando as associações políticas nos Estados Unidos: O privilégio mais natural do homem, depois do direito de agir por si próprio, é o de combinar seus esforços com os de seus semelhantes, e de agir em comum com eles. O direito de associação, portanto, pareceme quase tão inalienável em sua natureza como o direito da liberdade pessoal. Nenhum legislador o pode atacar sem pôr em perigo os fundamentos mesmos da sociedade. Assim, a mentalidade do constitucionalismo clássico entendia que a nação, ao constituir-se (e aqui se forjou a doutrina do pouvoir constituant), impõe aos indivíduos serem livres, ou seja, serem partes de um todo criado por consentimentos livres.107 107 Em harmonia com esse papel de destaque dado ao poder constituinte de ser jurígeno e político deve-se analisar de forma sucinta o seu conceito na análise da obra do Abade Sieyès. Na obra"Qu'est-ce que le tier État?" – O que é o terceiro Estado, o texto de Sieyès tem um duplo interesse; por um lado, o aspecto histórico: é um documento vivo, imediato a primordial do advento da classe burguesa ao poder político; por outro lado, o aspecto teórico: contém a formulação original a autêntica dá doutrina do poder constituinte do povo. No aspecto político, o folheto sobre o Terceiro Estado defende os direitos do povo, identificando-o com a Nação, em oposição às classes privilegiadas, então representativas do Estado absolutista vigente. Do ponto de vista teórico, a importância da obra de Sieyès se reflete sobre toda a forma representativa de governo e à doutrina do poder constituinte exercido pelo povo. 169 170 Esse espírito se mostrou especialmente presente no incipiente Estado Americano Federado. Nesse sentido, Tocqueville (1987, p. 124), ao tratar das “Vantagens do sistema federal em geral e sua utilidade especial na América”, ensina: Entre as pequenas nações, o olho da sociedade penetra em toda parte; o espírito de melhoria desce até os menores detalhes: por ser a ambição do povo em muita grande parte compensada pela sua fraqueza, os seus esforços e recursos voltam-se quase inteiramente para o seu bem-estar interior e não são de modo algum sujeitos a dissipar-se na bruma vã da glória. Ademais, como as faculdades de cada um são geralmente limitadas, assim o são também os seus desejos. A mediocridade da fortuna torna as condições mais ou menos iguais; os costumes têm uma maneira de se conduzir simples e tranqüila. Assim, a levar tudo em conta e considerando os diversos graus de moralidade e conhecimentos, encontra-se ordinariamente nas pequenas nações mais confortos, mais população e mais tranqüilidade que nas grandes. Segundo Handlin; Handlin (1961, p. 19): O homem livre, escreveu Helvécio, “é aquele que não está em ferros, nem encarcerado, nem aterrorizado como um escravo, pelo medo do castigo”. Tal conceito remonta à definição de Hobbes: “A liberdade (ou a autonomia) consiste propriamente na ausência de oposição [...] Um HOMEM É LIVRE quando não é impedido de fazer aquilo que deseja fazer e que, pela sua vontade e inteligência, é capaz de fazer”. Esses princípios expressam um dos postulados fundamentais da teoria política do Ocidente, nos últimos três séculos. A liberdade, sob esse prisma, é a antítese do outro. A liberdade é, portanto, um estado a que chega um indivíduo resguardando-se da coação ou ameaça de coação. Robinson Crusoe, habitando um mundo onde superior algum impera, nem lei alguma o constrange, é o protótipo do homem inteiramente livre. Os filósofos e historiadores que abraçaram essa concepção descreveram a liberdade em termos negativos (status negativus).108 Procuraram a compreensão de seu desenvolvimento pela análise de como os homens defenderam a si próprios e aos seus direitos contra a restrição. Nos tempos modernos, tendo sido o Estado o organizador dos meios mais eficientes de coerção, a história da liberdade vem sendo escrita largamente como sucessão de fatos e tendências, por meio dos quais o povo tem aprendido a defender-se da interferência estatal. No presente estudo, não é necessário deter-se à apreciação da validade do conceito negativo como proposição abstrata e filosófica. Mas é indispensável julgar a adequação deste conceito, para poder explicar como agiu o povo em certas circunstâncias que podiam ser tidas como livres. Para explicar algumas fases da evolução de leis que contribuíram para a liberdade nos Estados Unidos, muito vale a idéia da ausência de restrição. A luta contra as restrições estatais favoreceu o estabelecimento da liberdade de palavra e de imprensa, de consciência e 108 Segundo Alexy (1993, p. 251), ao descrever a teoria dos quatro status de Georg Jellinek, o status negativo corresponde à esfera de liberdade na qual os interesses essencialmente individuais encontram sua satisfação. É, pois, uma esfera de liberdade individual, cujas ações são livres, porque não estão ordenadas ou proibidas, vale dizer: tanto sua omissão como sua realização estão permitidas. 170 171 de cátedra. Ademais, deve-se ressaltar, sob o ponto de vista econômico, que o crescimento da economia de mercado, do capitalismo comercial e da circulação de produtos por toda a Europa, oferecendo uma nova orientação econômica, acaba desintegrando o feudalismo (durante o período feudal, a produção esteve essencialmente limitada à lavoura e criação de animais para a subsistência). E, gradualmente, pondo fim ao Absolutismo e reestruturando a política, formando um novo sistema sócio-econômico que forneceu as condições necessárias para a emergência de uma nova camada social: a burguesia. E, devido às pretensões da nova classe que surgiu, ao longo dos séculos XVII e XVIII, na Europa, o tema liberdade foi associado ao problema dos direitos civis e políticos em geral. Esta nova dimensão que os direitos assumiram a partir das mudanças políticas e econômicas passou a merecer forte reivindicação com a ascensão da burguesia, cuja reclamação pretendia a igualdade perante a lei. As concepções liberais e individualistas da burguesia requeriam, em síntese, o reconhecimento dos direitos fundamentais, especialmente os direitos de liberdade e de propriedade. Assim, no país, berço do capitalismo industrial – a Inglaterra assume a vanguarda das raízes das declarações de liberdade, exercendo grande influência na história universal. Essas idéias, de modo geral, foram predominantes nas Constituições do século XVIII, e, também, nas do século XIX, as quais, normalmente, se limitaram à organização política do Estado, dando ênfase ao liberalismo e individualismo, princípios que repugnavam todo o tipo de intervenção na vida econômica e social. 1.2.2 Direitos fundamentais de segunda dimensão 1.2.2.1 Passagem do estado liberal para o estado social Enfim, a burguesia obteve o reconhecimento jurídico dos direitos individuais de liberdade e, já nos meados do século XIX, com o crescimento do processo de industrialização (que iniciou quando o intento dos burgueses, antes comerciantes, passou a ser a produção – capitalismo industrial), aparece o proletariado como o novo protagonista histórico das sociedades ocidentais a reivindicar os direitos econômicos e sociais. A Revolução Industrial e a livre concorrência trouxeram as condições desumanas de vida e trabalho. Com isso, ficaram caracterizadas as circunstâncias que corresponderam à manifestação da insuficiência do reconhecimento apenas dos direitos individuais. Os homens puderam, então, verificar que as liberdades ainda desacompanhadas da seguridade social, dos direitos laborais e econômicos, como o direito ao trabalho e ao salário justo, e direitos de ordem cultural, como a educação, permitiram várias iniqüidades à existência das pessoas. Em boa parte, a exploração do trabalho humano, de forma ampla e brutal, a partir do advento da Revolução Industrial, desencadeou-se devido ao fato de que as novas técnicas produtivas transformaram as realidades ao mesmo tempo em que ainda não havia surgido um conjunto de leis apropriadas para cuidar dos novos problemas, o que acabou gerando 171 172 desastrosas conseqüências. O direito já não podia atender aos novos fenômenos econômicos e sociais. A Revolução Francesa aperfeiçoou a ordem jurídica, valorizou o indivíduo e afirmou a autonomia da vontade contra a tirania e o poder absoluto; no entanto, naquela fase, ainda não havia a diferenciação entre os direitos sociais e os direitos individuais. Assinala-se que o processo liberal foi decisivo para a obtenção das conquistas sociais: por meio dos embates políticos, que os excessos do liberalismo proporcionaram durante a Revolução Industrial, e o conseqüente despertar da questão social, o Estado passou a ser identificado como o ente capaz de oferecer os meios que se faziam necessários para atingir a satisfação das carências sociais prementes, ou seja, passou a ser visto como um órgão que poderia pôr fim às desigualdades e garantir a todas as pessoas o acesso ao gozo efetivo dos direitos sociais. Entendido como um órgão de equilíbrio, esta compreensão de Estado deu início à era social. Acerca dos direitos sociais, dir-se-á que eles correspondem a uma categoria dos direitos fundamentais do homem; separando-se estes em direitos fundamentais de liberdade e direitos fundamentais sociais. Salientar-se-á que os primeiros exprimem comando ao Estado de não-fazer, enquanto os últimos assumem caráter positivo, isto é, significam ordem para fazer algo; consistem em programa para realizar, ora a ser cumprido apenas pelo Estado, ora a ser construído pelo Estado em conjunto com a generalidade dos cidadãos, para o benefício de toda a sociedade. Na lapidar formulação de Lafer (1991, p. 217), os direitos de segunda dimensão propiciam um “direito de participar do bem-estar social”. A partir daquela comentada compreensão de Estado, a reação da sociedade pela procura de melhores níveis de vida surgiu acompanhada das doutrinas políticas socialistas. Vale destacar, também, a importância da influência da doutrina social da Igreja, de forte sentido humanista a partir da Encíclica Rerum Novarum, de 1891, de autoria do Papa Leão XIII, cuja ênfase ao trabalho recaiu, inclusive, sobre os deveres do Estado. No trânsito do Estado Liberal (garantidor dos direitos de liberdade) para o Estado Social (garantidor dos direitos de igualdade material, o pêndulo da história inclinou-se, em ressaltar, direitos de atuação estatal, no sentido de governos centrais fortes, mais adequados ao intervencionismo que exigia a implementação de mudanças sociais e econômicas. Sob a ótica de visão liberal, cabe ao Estado, tão-somente, a missão de guardião das liberdades dos indivíduos e da sua segurança, não podendo, de forma alguma, interferir na ordem econômica e social, pois esta seria regulada pelo próprio mercado. A exarcebação da atividade econômica, sem nenhum controle por parte do Estado, gerou sociedade assimétrica, desigual, cujas disparidades sociais deixaram transparecer relação de extrema conflituosidade entre a minoria detentora do poder econômico e o restante da população, despossuída e desassistida. As demandas por mudança no status quo, defendidas pela representação popular da época (sindicatos e partidos de massa), determinaram a emergência de nova forma de pensar o Estado: pelo viés do social.109 109 Esse foi o período da história em que a conquista democrática da universalização do voto, com a conseqüente formação dos partidos de massa e a emergência dos sindicatos, permitiu o avanço das demandas sociais por parte da grande massa de trabalhadores, levando o Estado a preocupar-se com a questão da saúde, a da seguridade e a da regulamentação do trabalho. 172 173 Esse período da história, que antecede a consagração dos direitos sociais, foi marcado por conflitos extremados entre a classe detentora de capital e a classe trabalhadora das fábricas, que não aceitava as miseráveis condições de trabalho, tendo, ainda, como companheiros de reivindicações, os camponeses pobres, revoltados pela expropriação da terra feita pelos grandes proprietários. Impulsionados pelas teorias marxistas, ou pelas anarquistas, ou pelas cristãs, almejavam outra sociedade que decretasse o fim do capital e da divisão da sociedade em classes (Marx), ou o fim do Estado (anarquistas), ou ainda uma relação capital-trabalho mais humanizada (cristã), que desse garantias efetivas de vida mais digna ao trabalhador, por meio de assistência à saúde, previdência, educação, remuneração justa e horário de trabalho regulamentado. Na visão de Bonavides (1996, p. 70), a emergência do Estado social ocorre: Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam à área da iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social. A ebulição de idéias revolucionárias, conjugada à organização dos movimentos reivindicatórios dos trabalhadores força o Estado Liberal a sair de sua passividade e mudar de conteúdo, passando a admitir sua interferência no campo econômico e social. Tal transformação também ocorre no âmbito do Direito. A relação formal pela referência a uma lei geral e abstrata, dirigida a todos os cidadãos de forma indistinta, permanece como salvaguarda da ação abusiva do Estado, mas, lado a lado com leis de índole programática, obrigatórias para o Poder Público, que devem atuar para atender às necessidades materiais do cidadão. A ordem jurídica já não se satisfaz somente com a igualdade formal; almeja, também, a igualdade material. Modifica-se a noção de lei, assumindo esta, também, um conteúdo material: [...] ao lado dos direitos individuais, arrolam-se os direitos sociais e econômicos, destinados, antes de limitar a ação estatal, a exigi-la, como direitos a prestações concretas positivas. Os cidadãos por meio deles, participam do produto social, em todas as ordens, a fim de lhes ser possível o real exercício da sua liberdade, cuja afirmação é figura de retórica, se desacompanhada dos meios mínimos para efetivá-la (DOBROWOSKI, 1985, p. 108-109). Dá-se um acréscimo na questão da igualdade jurídica, tendente a ser considerada a partir da necessária correção das desigualdades econômicas e sociais. 173 174 Assim, o Estado tutor das liberdades evolui para promotor da ação social. Não se podendo esquecer, como ressalta Sarlet (2001, p. 52), que: Ainda na esfera dos direitos da segunda geração, há que se atentar para a circunstância de que estes não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim denominadas “liberdades sociais”, do que dão conta os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário-mínimo, a limitação da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais representativos. Diferente modo de examinar as mudanças do Estado de Direito refere-se à evolução do capitalismo, marcada, principalmente, pela incorporação da intervenção estatal na ordem econômica e social, prescrita pelas novas constituições promulgadas, em alguns países, após a primeira década do Século XX. Dessa forma, após a Primeira Guerra Mundial, as novas Constituições que surgiram, “não ficaram apenas preocupadas com a estrutura política do Estado, mas salientam o direito e o dever do Estado em reconhecer e garantir a nova estrutura exigida pela sociedade” (BARACHO, 1986, p. 46). A partir desse momento, as superiores exigências da coletividade vão contraporse aos direitos absolutos da Declaração de 1789. “Aos princípios que consagram a atitude abstencionista do Estado impõe-se o do artigo 151 da Constituição de Weimar: A vida econômica deve ser organizada conforme os princípios de Justiça, objetivando garantir a todos uma existência digna” (BARACHO, 1986, p. 46). O Estado, agora, irá preocupar-se com o social. O conteúdo dos Direitos Fundamentais amplia-se ainda mais. Agora, além dos Direitos individuais, dos Direitos Políticos, que se foram afirmando nas democracias liberais, estão também consagrados os Direitos Sociais, nas constituições modernas. Mirkine-Guetzevitch e Andrade confirmam o que se acaba de afirmar, quando escrevem que as Constituições após 1918 inovam na ampliação dos direitos fundamentais com o surgimento de obrigações positivas do Estado (MIRKINE-GUETZEVITCH, 1957, p. 169; ANDRADE, 1983, p. 49). Krell (2002, p. 19), de forma semelhante, acrescenta a Constituição Brasileira de 1934 às Constituições Sociais: Depois da revolução industrial do século XIX e das primeiras conquistas dos movimentos sindicais em vários países, os Direitos da “segunda geração” surgiram, em nível constitucional, somente no século XX, com as Constituições do México (1917), da República Alemã (1919) e também do Brasil (1934), passando por um ciclo de baixa normatividade e eficácia duvidosa. Seus pressupostos físicos devem ser criados pelo Estado como agente para que eles se concretizem. A Constituição de Weimar foi a primeira Constituição social européia, considerada a matriz do novo constitucionalismo social. Entretanto, esta não foi a primeira do mundo. A Constituição do México de 1917 precedeu a de Weimar, marcando início do 174 175 Estado Social, preocupado com os problemas sociais. Essa Constituição foi produto da Revolução Mexicana, iniciada em 1910 (CORREA, 1983, p. 104). Ao discorrer sobre o verbete “Estado Contemporâneo” no Dicionário de Política, Gozzi mostra que a mudança do Estado de Direito em direção ao Estado Social dá-se a partir da metade do século XIX, “na gradual integração do Estado político com a sociedade civil, que acabou por alterar a forma jurídica do Estado, os processos de legitimação e a estrutura da administração”. Com a integração entre Estado e sociedade civil, passa esse a agir mais em função desta. Assim, o Estado deixa de ser mero espectador da atividade econômica e social, saindo do estágio de garantidor das relações sociais, para o promotor de novas relações, no âmbito do social. Sai da condição de tutor das liberdades para a de promotor da ação social. Nesse diapasão, Gozzi (1995, p. 401) assinala: Os direitos fundamentais representam a tradicional tutela das liberdades burguesas: liberdade pessoal, política e econômica. Constituem um dique contra a intervenção do Estado. Pelo contrário, os direitos sociais representam direitos de participação no poder político e na distribuição da riqueza social produzida. A forma do Estado oscila, assim, entre a liberdade e a participação. É a oscilação entre a garantia do status quo, dada pelos direitos fundamentais, e aquelas demandas vindas da sociedade, que se transformam em direitos sociais. Essa emergência de novos direitos110 reclamados pela sociedade modifica a estrutura formal do Estado. Já Pasold (1988, p. 104), ao examinar a função social do Estado contemporâneo, tendo como referente o “discurso constitucional”, vê o surgimento do Estado contemporâneo na segunda década do presente século, precisamente com a Constituição Mexicana de l917 e com a Constituição de Weimar de l9l9. Para ele, é determinante a característica de “função social” no Estado contemporâneo. Colocando sua estrutura voltada para a sociedade, o Estado deve acionar seus órgãos, exercitando seu poder no cumprimento desta função. Assim, o Estado não pode mais ser pensado de maneira restrita, isto é, apenas em relação à tutela das garantias fundamentais, mas, sim, pelo seu desempenho no cumprimento de sua “função social”. Ele vê a concepção de função social aplicada ao Estado Contemporâneo, a partir de dois elementos semânticos distintos entre si, mas complementares: ação e dever de agir (PASOLD, 1988, p. 69-70). Mas, entende Pasold (1988, p. 87) que a função social, que deva ter o Estado, tem por destinação a realização da justiça social: Nesta perspectiva, o Estado deve ser um conjunto de atividades legítimas efetivamente comprometidas com uma Função Social, esta 110 Entende-se como “novos direitos” aqueles que historicamente vão sendo conquistados pelo indivíduo. Essa é a linha de Bobbio (1992, p. 6), o qual entende que os direitos do homem são históricos, “ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não de todos de uma vez e nem de uma vez por todas”. Para Bobbio, os direitos podem ser vistos como de primeira geração (os direitos de liberdade, ou não-agir do Estado), de segunda geração (os direitos sociais), de terceira geração (o direito ao ambiente sadio) e de quarta geração (referente aos efeitos da pesquisa biológica). 175 176 entendida como implicando ações que – por dever para com a sociedade – o Estado executa, respeitando, valorizando e envolvendo o seu Sujeito (que é o homem individualmente considerado e inserido na Sociedade), correspondentemente ao seu Objeto (conjunto de áreas de atuação que dão causa às ações estatais) e cumprindo o seu Objetivo (o Bem Comum ou interesse Coletivo, fixado dinamicamente pelo todo social). Nesse enfoque, Cadermatori; Morais (1992, p. 89) assinalam os seguintes segmentos da função social do Estado contemporâneo: a) economia (política voltada para o incentivo ao capital aplicado na produção e aumento da capacidade tecnológica); b) trabalho (política de emprego a partir da criação de postos de trabalho para ocupação de excedente de mão-de-obra, incentivos fiscais à iniciativa privada para manter e ampliar a ocupação, em especial em épocas de crise, acrescida de uma política de recomposição da força de trabalho - regulação e garantia de férias remuneradas, repouso semanal remunerado, etc. - e uma política financeira - garantia de ganhos mínimos: salário mínimo, hora extra, l3o salário, etc.; c) previdência, configurada em política de amparo a partir de uma situação transitória (garantia de uma renda mínima na impossibilidade de trabalhar: auxílio doença, natalidade, acidente de trabalho, etc.) e configurada em política permanente (garantias de renda por aposentadoria); d) educação de mão-de-obra (política de formação por meio de organização, financiamento e participação em cursos profissionalizantes, curso de aperfeiçoamento); e) saúde para o trabalho, por intermédio de política de promoção (saneamento básico, etc.), de política de proteção, criando e incentivando programas de melhoria das condições de trabalho (insalubridade, periculosidade), e de política de reabilitação (com incentivo a unidades de saúde e reabilitação, convênios, etc.). Krell (2000, p. 39-40), analisando as controvérsias no que diz respeito à eficácia e à efetividade dos direitos sociais, ressalta que a ausência de normas explícitas de direitos sociais na Constituição alemã vigente – a Lei Fundamental de Bonn - não significa uma recusa do seu ideário subjacente, expresso no conceito de “Estado Social” (art. 20 da Constitução Alemã), que vincula o Estado Alemão, muito embora não crie direitos subjetivos. O aspecto econômico dos direitos sociais intervencionistas, por outro lado, pode ser demonstrado na construção de um direito fundamental limitado à “reserva do possível”. Nesse sentido, Sarlet (2001, p. 263-264) afirma: Esta característica dos direitos sociais a prestações assume especial relevância no âmbito de sua eficácia e efetivação, significando que a efetiva realização das prestações reclamadas não é possível sem que se despenda algum recurso, dependendo, em última análise da conjuntura econômica. Rawls (apud TORRES, R., 1999, p. 262-264) corrobora o agir estatal positivo econômico-financeiro para garantia do “mínimo existencial” como de extraordinária importância para a edificação do conceito de cidadania. Destaca, nesse momento, a atividade de assistência social como atividade essencial que fortalece os direitos sociais, sob o ponto de vista de seu caráter fundamental de justiça distributiva. 1.2.2.2 Conceito e fundamentos dos direitos fundamentais de segunda geração 176 177 O princípio da igualdade, consubstanciado no caput do art. 5o da Constituição de 88, enuncia que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Essa igualdade formal é reforçada pelo inciso I, o qual assevera que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. Valor fundamental da pessoa humana, a preservação da igualdade visa impedir a discriminação dos cidadãos, evitando que alguns recebam melhor tratamento em relação aos outros, ou melhor, que não haja relação em que alguns sejam mais cidadãos que outros. Portanto, a lei deve dirigir-se a todos de forma indistinta e genérica. Essa igualdade formal nem sempre corresponde à igualdade real, principalmente em virtude do modo por que se organizam as sociedades ocidentais, que têm por base o sistema de livre concorrência. Nestas, as desigualdades de condições materiais determinam possibilidades diferenciadas para o acesso e fruição dos bens produzidos. Para alguns, facilidades; para outros, dificuldades ou, até mesmo, impossibilidade de exercício dos direitos formalmente assegurados. Dallari (1991, p. 258) chama-nos a atenção para a diferença entre o direito e a possibilidade de exercê-lo: A concepção da igualdade como igualdade de possibilidades corrige essas distorções, pois admite a existência de relativas desigualdades, decorrentes da diferença de mérito individual, aferindo-se este através da contribuição de cada um à sociedade. O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os primeiros em situação de privilégio mesmo que sejam socialmente inúteis ou negativos. A igualdade de possibilidades não se baseia, portanto, num critério artificial, admitindo realisticamente que há desigualdades entre os homens, mas exigindo que também as desigualdades sociais não decorram de fatores artificiais. Por outro lado, Schwartz (1979, p. 215) assinala que: O direito constitucional de igualdade já tinha quase um século antes que o nosso direito na frase de W. H. Auden, realmente “descobrisse a noção de igualdade”. Durante a segunda metade deste século, os tribunais começaram a aplicar vigorosamente a garantia de proteção igual. Igualdade racial, igualdade sexual, igualdade política, igualdade na justiça criminal – em todas essas áreas o nosso direito está procurando dar um sentido prático à proteção igual. A igualdade tem sido o grande tema em nosso direito público recente: igualdade entre 177 178 raças, entre sexos, entre cidadãos, entre cidadãos e estrangeiros, entre ricos e pobres, entre acusador e acusado. Para corrigir o individualismo exacerbado do Liberalismo Puro, que fez com que se gerassem alarmantes desigualdades sociais, estando, de um lado, minoria detentora dos meios de produção, ou seja, das propriedades agrícolas e industriais, e de outro, vasta maioria expoliada pela excessiva carga horária de trabalho, péssimas condições no exercício deste e insuficiente remuneração, surge o Estado como agente modificador das desigualdades sociais, promovendo a diminuição das diferenças sociais e a busca da igualdade material. Um dos elementos básicos da concepção de justiça de Rawls (1981, p. 96) é o que ele chama de princípio da compensação (ou reparação). “É o princípio de que as desigualdades imerecidas exigem compensação; e como as desigualdades de nascimento e dotes naturais são imerecidas tais desigualdades devem de alguma forma ser compensadas”. Pelo princípio da reparação, a sociedade deve tratar mais favoravelmente aqueles com menos recursos pessoais naturais e os que nasceram em condições sociais mais desfavoráveis. O exemplo dado por Rawls é a aplicação de maiores recursos na educação dos que são menos inteligentes do que, como tem sido o caso, na dos mais inteligentes. O Estado Social – Welfare State ou Estado Providência –, com a constitucionalização da ordem econômica, torna o Estado também agente econômico cuja finalidade maior não se constitui no lucro, mas, sim, na satisfação do bem comum. Sua intervenção passa do limite à liberdade individual para instrumento de realização de Justiça Social. A este novo sistema, conjugador de princípios liberais e socialistas, denomina-se neo-liberalismo ou neocapitalismo. Importante notar que a intensidade de participação e ingerência do Estado no domínio econômico é variável, bem como a determinação qualitativa e quantitativa. Há, destarte, diferentes modelos neo-liberais nos diversos países que os adotam (SOUZA, 1992, p. 24). Para a perpetuação da ideologia liberal, recorre-se à intervenção estatal com a regulamentação do mercado, de forma a mantê-lo vivo, e à conseqüente ampliação do leque dos Direitos Fundamentais, neles se incluindo os Direitos Sociais referentes aos trabalhadores. Exemplo da positivação constitucional das concepções jurídicas que haviam nascido na Revolução Francesa de 1848 foi a inclusão da autogestão e da participação dos trabalhadores na direção das fábricas na Constituição de Weimar. Passa-se de Estado formal para Estado material. As constituições não apenas descrevem a estrutura política do Estado como expressam os direitos e deveres necessários para a garantia do exercício das exigências coletivas de mudança daquela realidade. 178 179 O Estado passa de abstencionista para intervencionista, com postura positiva, ou seja, preocupa-se, agora, com o social. Tal situação fica patentemente demonstrada na ampliação dos Direitos Fundamentais, que abrangem não apenas os direitos individuais e políticos, estes afirmados lentamente ao longo do século XIX, mas também alguns dos direitos sociais que hoje se conhecem. Entretanto, não apenas com a implementação dos Direitos Humanos estabeleceu-se a nova visão ou preocupação social do Estado; também por meio das políticas monetária e tributária efetuadas, que constituem formas de redistribuição de riqueza, além de viabilizarem a aplicação da renda arrecadada para fins sociais. Nesse sentido, Loewenstein (1970, p. 399) afirma: [...] Por outro lado – y éste es el mérito duradero del marxismo–, las masas sometidas economicamente no se contentaron com la mera teoria de la libertad y de la igualdad ofrecida por las constituciones liberales y por el catálogo de derechos fundamentales. Para las masas, estas garantías no eran más que abstracciones sin valor porque, en realidad, las clases plutocráticas dominaban el proceso del poder. Las vacías fórmulas de libertad e igualdad tenían que ser rellenadas com el contenido material de unos servicios públicos que garantizasen a las clases bajas un mínimo de seguridad económica y justicia social. O cidadão passa a ser, então, o indivíduo portador não apenas de seus direitos individuais e políticos, que, paulatinamente, se vão incrementando, como também detentor de direitos sociais e econômicos. Observa-se, por outro lado, nesta segunda dimensão de direitos, grande vinculação ao fator econômico estatal de dispor de recursos. Assim, autores, como Canotilho (1991, p. 131), ilustram essa circunstância com a noção de uma “reserva do possível” e a efetividade plena da realização desses direitos estaria condicionada pelo montante de recursos orçamentários disponíveis para essa atuação do Estado. Em outro enfoque, considera-se que há a necessidade de o Estado estar preso a uma mínima implementação de direitos sociais, sob pena, em face da indivisibilidade dos direitos fundamentais, de não se garantir os direitos de liberdade.111 1.2.3 Direitos fundamentais de terceira dimensão Os direitos fundamentais da terceira dimensão centram-se no fato de os homens estarem ligados entre si. A figura do homem-indivíduo fica em segundo-plano ressaltando-se 111 Nesse sentido, preciosas as considerações de Piovesan (1997, p. 161), verbis: “Vale dizer, sem a efetividade dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais [...]” 179 180 a humanidade (homens visto como um todo), razão por que são conhecidos como direitos de fraternidade, solidariedade ou direitos de titulariedade difusa ou coletiva.112 A doutrina qualifica-os como direitos dos povos. Esta classe de direitos tem por destinatário mais do que o indivíduo, um grupo ou determinado Estado, mas o gênero humano mesmo, engendrando o direito ao ambiente, o direito ao desenvolvimento, o direito à autodeterminação, o direito à participação no patrimônio da humanidade.113 Para Sarlet (2001, p. 53), verbis: A nota distintiva destes direitos da terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção. A atribuição da titularidade de direitos fundamentais ao próprio Estado e à Nação (direitos à autodeterminação, paz e desenvolvimento) tem suscitado sérias dúvidas no que concerne à própria qualificação de grande parte destas reivindicações como autênticos direitos fundamentais. Compreendese, portanto, por que os direitos da terceira dimensão são denominados usualmente como direitos de solidariedade ou fraternidade, de modo especial em face de sua implicação universal ou, no mínimo, transindividual, e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação. Trata-se de direitos transindividuais, que não pertencem a uma pessoa determinada114 nem a um grupo claramente delimitado, como ocorre, por exemplo, com os trabalhadores que são titulares de direitos coletivos, mas não direitos difundidos, esparramados por toda a sociedade como o direito ao ar puro. Direitos que, não sendo, isoladamente, de um único indivíduo, são de todos, de uma pluralidade de sujeitos. Para Torres, R., (1999, p. 297) podem ser caracterizados, também, pelo fato de possuírem tanto um status negativus como um status positivus. Já Bobbio (1992, p. 6) evita definir o que seja "direito de 3ª geração", na falta de elementos conceituais seguros que permitam formular uma teoria adequada para sua compreensão: Ao lado dos direitos sociais, que foram chamados de direitos de segunda geração, emergiram hoje os chamados direitos de terceira geração, que constituem uma categoria, para dizer a verdade, ainda 112 “Os direitos fundamentais da terceira dimensão, também denominados de direitos de fraternidade ou de solidariedade, trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homemindivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (família, povo, nação), e caracterizando-se, conseqüentemente, como direitos de titularidade coletiva ou difusa” (SARLET, 2001, p. 52). 113 Bonavides (1996, p. 516) “Em termos apertados, os direitos de primeira geração relacionam-se com o liberalismo e correspondem aos direitos de liberdade, aos direitos individuais, aos direitos negativos; a segunda geração de direitos relaciona-se com a social-democracia do fim do século XIX, correspondendo aos direitos sociais, econômicos e culturais; direitos a prestações do Estado, direitos à igualdade social e direitos positivos; a terceira geração de direitos surge a partir da consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas, que exige a fraternidade, para a proteção do gênero humano, correspondendo ao meio-ambiente, ao desenvolvimento, à paz, ao patrimônio comum da humanidade”. 114 Como afirma Miranda (1993, p. 66): “Não pode dizer-se que quem quer que seja possua um único, genérico e indiscriminado direito à proteção do patrimônio monumental, ou ao controle da poluição ou da erosão, ou à salubridade pública, ou a uma rede de transportes, etc”. 180 181 excessivamente heterogênea e vaga, o que nos impede de compreender do que efetivamente se trata. O mais importante deles é o reivindicado pelos movimentos ecológicos: o direito de viver num ambiente não poluído. Por outro lado, Lafer (1988, p. 132) destaca a titularidade como principal elemento diferenciador desta dimensão de direitos, verbis: Os direitos reconhecidos como do homem na sua singularidade sejam eles os de primeira ou de segunda geração - têm titularidade inequívoca: o indivíduo. Entretanto, na passagem de uma titularidade individual para uma coletiva, que caracteriza os direitos de terceira e quarta geração, podem surgir dilemas no relacionamento entre o indivíduo e a coletividade que exacerbam a contradição, ao invés de afirmar a complementaridade do todo e da parte. Estes dilemas provêm, em primeiro lugar, da multiplicidade infinita dos grupos que podem sobrepor-se uns aos outros, o que traz uma difusa e potencial imprecisão em matéria de titularidade coletiva - basta pensar na criança, na família, na mulher, nos trabalhadores, nas minorias étnicas, religiosas, lingüísticas e sexuais. Associam-se, também, a esses direitos de terceira geração, novas facetas da proteção da vida, em um sentido amplo de qualidade de vida, que se originam dos impactos da sociedade industrial e da tecnologia do final do século XX. Assim, Sarlet (2001, p. 53) assinala: Cuida-se, na verdade, do resultado de novas reivindicações fundamentais do ser humano, geradas, dentre outros fatores, pelo impacto tecnológico, pelo estado crônico de beligerância, bem como pelo processo de descolonização do segundo pós-guerra e suas contundentes conseqüências, acarretando profundos reflexos na esfera dos direitos fundamentais. Leal (1998, p. 103) busca distinguir os direitos de terceira geração por meio do termo “qualidade de vida” (igualdade vista como direito à integração e da inexistência de um conteúdo patrimonial predominante em contraste com os de primeira e segunda geração): Os movimentos sociais da classe trabalhadora visaram a garantir uma maior igualdade econômica ou pelo menos mitigar a desigualdade existente entre o proletariado e os proprietários. Ou seja, também a questão centra-se em aspectos econômicos (melhores salários, prestações gratuitas do Estado nos campos da saúde e educação, direito de aposentadoria, entre outros). O conteúdo dos direitos difusos não garantem propriedade ou liberdade econômica, nem implicam mitigação de desigualdades nesse campo. Os direitos difusos têm conteúdo não-patrimonial e trata de dois aspectos fundamentais: qualidade de vida e uma concepção de igualdade vista como direito à integração, baseada em aspectos participativos nas várias esferas da vida social. Não obstante, a colocação de que tais direitos têm conteúdo não-patrimonial, o 181 182 próprio autor reconhece que há um envolvimento desses direitos com o elemento econômico, na tentativa de sacrificar vantagens econômicas imediatistas, verbis: Assim, o conteúdo dos direitos difusos são de duas ordens: I) o direito à vida no seu aspecto qualitativo ou, sinteticamente, de um direito à qualidade de vida, expresso no sacrifício de vantagens econômicas imediatistas em nome da preservação de determinados valores, tais como o ambiente natural,"' espaços culturais (históricos, estéticos, etc), disponíveis para essas e futuras gerações, e II) o direito à integração social mediante o devido reconhecimento jurídico e político, referindo-se a titularidade a grupos de indivíduos dispersos ou organizados, unidos por alguma circunstância fática ou por afinidades étnicas, sociais, de gênero ou origem, entre outras, que reivindicam tratamento digno por parte da lei, ainda que isto signifique a afirmação de uma identidade especial não assimilável ao valor de igualdade universal (LEAL, 1998, p. 104-105). Logo, fica bem caracterizado, nesses direitos, a presença marcante do elemento econômico, que deverá ser valorado com outro elemento, como ocorre, por exemplo, na preservação ambiental. A característica de vinculação dos direitos de solidariedade à tecnologia e ao processo de descolonização, surgido após a segunda-guerra mundial, aproxima os direitos de terceira geração do neoliberalismo. Este sistema econômico se desenvolve graças aos avanços tecnológicos da informática e das telecomunicações, bem como em razão da ampliação de mercados surgida após a segunda-guerra mundial e consolidada com o fim da guerra fria. Outro aspecto, relevante desses direitos, relaciona-se com a noção de solidariedade intergeracional. Direitos dos povos como o direito à paz e ao desenvolvimento, afetam não só as gerações de pessoas presentes, mas também as gerações futuras. Possuem, pois, dimensão temporal que os torna ainda mais “anônimos”, no que se refere às suas titularidades. Preocupam-se tais direitos com os que ainda não nasceram e cria-se liame entre seres humanos que transcende o tempo presente. Nesse conceito, encontra-se, por exemplo, a noção de desenvolvimento sustentável. Por fim, o subsídio legal corporificado na Lei 7.347, de 24 de julho de 1985, alicerça 182 183 outros caracteres de cunho material com reflexos processuais, bem resumidos na visão de Benjamin (1996, p. 92-96): 1. "a transindividualidade real ou essencial ampla", quando o número de pessoas ultrapassa a esfera de atuação dos indivíduos isoladamente considerados, para levá-la a uma dimensão coletiva. Outrossim; esta transindividualidade real significa dizer que a pluralidade de sujeitos chega ao ponto de se confundir, muitas vezes, com a comunidade; 2. "a indeterminabilidade de seus sujeitos", isto é, as pessoas envolvidas são substancialmente anônimas; 3. "a indivisibilidade ampla", ou seja, uma espécie de comunhão, tipificada pelo fato de que a satisfação de um só implica a satisfação de todos; assim como a lesão da inteira coletividade; 4. "a indisponibilidade no campo relacional jurídico", por não dispor de titulares determináveis, apresenta dificuldades em transigir de seu objeto no campo jurídico-relacional; 5. "ressarcibilidade indireta", quando não houver a reparabilidade direta aos sujeitos individualmente considerados, (levando em conta o caráter "anônimo" dos sujeitos) e, sim, ao fundo, para recuperação dos bens lesados. No mesmo diapasão, Baracho Júnior (1999, p. 250-254) busca o reconhecimento dos interesses difusos nos Estados Unidos em um aspecto material-processual, a legitimidade para agir em juízo (“standing to sue”). Analisando o case “Sierra Club v. Morton” , que envolve a utilização econômica para lazer (estação de esqui) de área situada em floresta nacional americana, destaca que o Sierra Club afirmou ser uma associação com especial interesse na conservação dos parques nacionais e evocou o Administrative Procedure Act, segundo o qual a pessoa que sofre prejuízos em função da atuação de uma agência governamental tem legitimidade para pleitear a apreciação judicial da questão. A Suprema Corte Americana, em 1972, pronunciando-se sobre a questão afirma, segundo o autor, que: [...] o tipo de alteração que viria a ocorrer no Mineral King Valley com a realização do empreendimento poderia suscitar a aplicação dos dispositivos do Administrative Procedure Act relativos à legitimidade para agir. A qualidade estética e ambiental são ingredientes importantes da qualidade de vida na sociedade americana e o fato de os interesses relativos a determinado espaço ambiental ser compartilhado por muitos e não por poucos não faz com que os últimos sejam menos merecedores de uma proteção legal através do processo judicial (BARACHO JUNIOR, 1999, p. 254). 183 184 Em resumo, os direitos fundamentais de terceira geração podem ser caraterizados por quatro palavras-chaves, a saber: homem-humanidade, titularidadeanônima, existência-transgeracional e qualidade-de-vida. O termo homem-humanidade ressalta a solidariedade mundial dos direitos de terceira geração, destacando o “homem” como parte de um todo (a humanidade); a titularidade-anônima sublinha que “sendo de todos não é de ninguém”; a existência-transgeracional mostra-se revolucionaria para a ciência jurídica ao permitir a titularidade de seres ainda nem concebidos (que não são “pessoas” juridicamente falando, numa dimensão temporal-prospetiva); a qualidade-de-vida vislumbra aspirações humanas que transcendem a existência mínima de subsistência e projetam o homem na infinita espiral de melhoria de seu padrão de existência. 184 185 2 CORRELAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS ECONÔMICOS DIMENSÕES DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E AS 2.1 O LIBERALISMO E OS DIREITOS DE PRIMEIRA GERAÇÃO As revoluções burguesas propiciaram a emergência do Estado Liberal, cuja preocupação maior era dar àqueles que controlavam a economia (os burgueses) ampla liberdade de exercerem suas atividades, sem estarem ameaçados por qualquer outro poder. Os liberais pregavam o respeito aos direitos individuais, mas quanto ao mercado, este deveria regular-se por si só. Macridis (1982, p. 37), cientista político, ensina-nos, verbis:115 O indivíduo – suas experiências e seus interesses – é o conceito básico associado à origem e crescimento do liberalismo e das sociedades liberais. O conhecimento e a verdade derivam do raciocínio do indivíduo que, por sua vez, é formado pelas associações que os seus sentidos fazem a respeito do mundo exterior, pela experiência [...] O liberalismo é uma ética individualista pura e simples. Nas suas fases iniciais, o individualismo se expressa em termos de direitos naturaisliberdade e igualdade. Ele está embebido no pensamento moral e religioso, mas já aparecem os primeiros sinais de uma psicologia que considera os interesses materiais e a sua satisfação como importantes na motivação do indivíduo. Em sua segunda fase, o liberalismo se baseia numa teoria psicológica segundo a qual a realização do interesse é a principal força que motiva os indivíduos. Nesse sentido, os liberais exaltavam como valores básicos a serem defendidos: o individualismo e as liberdades individuais, como forma de desafio e limite ao poder político do Estado. Assim, Macridis (1982, p. 32) ensina: Os liberais proclamavam o individualismo e as liberdades individuais – especialmente a liberdade de movimento e de comércio; eles tomaram emprestado do passado para desenvolver o que gradualmente se tornou uma teoria abrangente de direitos individuais a desafiar e a limitar o poder político absoluto (grifo nosso). Macridis (1982, p. 38 et seq.), buscando melhor compreensão do que foi o liberalismo, divide a democracia liberal em três núcleos básicos: o moral, o econômico e o político. No núcleo moral, deve o indivíduo ser respeitado e ter a liberdade de buscar a sua auto-realização. A liberdade divide-se em liberdade pessoal (todos os direitos que protegem o indivíduo contra o governo), compreendendo as liberdades individuais de pensamento, 115 Macridis (1982, p. 13) assinala que “as ideologias moldam as nossas motivações, as nossas atitudes e os regimes políticos sob os quais vivemos. Elas dão formas a nossos valores”. Assim, este autor ressalta algo importantíssimo que se procura demonstrar neste trabalho, qual seja a íntima relação entre “as ideologias” e os valores a serem por ela alcançados, seja na expressão da forma de Estado (unitário e federado), seja na expressão de ideologias políticas como o liberalismo. 185 186 expressão e crença e liberdade social, a de progredir ou mover-se socialmente, independentemente de raça e de crença, objetivando alcançar uma posição na sociedade, compatível com suas potencialidades. O núcleo econômico representa o propósito de liberar a atividade econômica individual, resultando nas liberdades econômicas (direito de propriedade, de herança, de produção, de acumular, de comprar e vender e de realizar contratos). A base teórica desse segundo núcleo encontra-se em autores como Adam Smith,116 Jeremy Bentham117 e o utilitarismo, e, ainda, John Stuart Mill118 e o auto-interesse esclarecido. Por fim, o terceiro componente dessa tríade, elaborada por Macridis, é o núcleo político, intimamente ligado ao tema das liberdades públicas, ora em estudo; defende as liberdades individuais frente ao poder do Estado e prevê oportunidades iguais para todos. Coloca o direito do indivíduo de seguir a própria determinação, dentro dos limites impostos pelas normas, como fundamento das relações sociais. Este núcleo político compõe-se de quatro princípios básicos: a) o consentimento individual, com base nas teorias contratuais, em que homens e mulheres consentem em ligarem-se a um sistema político e aceitar suas decisões, visando obter proteção, estabelecendo-se, assim, uma sociedade civil em que é estabelecida uma legislatura comum, um juiz comum e um executivo comum; b) a representação ou governo representativo: a legislatura eleita pelo povo, constituída por aqueles que podem tomar as decisões em nome dele, sem, no entanto, privarem os indivíduos de seus direitos naturais, suprimirem suas liberdades ou tomar-lhes suas propriedades; c) o constitucionalismo, que significa um documento escrito (a Constituição) que dá garantias para o indivíduo, ao limitar o poder do governo e estipular como as funções de governo devem ser executadas, bem como disciplina o acesso ao poder por meio de eleições periódicas; e d) a soberania popular, significando, em última instância, que o poder reside no povo, e nele está a fonte de toda autoridade política.119 116 Adam Smith, economista escocês (1723-1790), formulador da Teoria do Liberalismo Econômico, é um dos mais influentes teóricos da Economia moderna. Em 1763, durante uma viagem à França e à Suíça, entra em contato com os fisiocratas. Volta à Escócia e publica sua obra principal, Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações (1776). Nela, define os requisitos do liberalismo econômico e da riqueza das nações: combate os monopólios, públicos ou privados; não-intervenção do Estado na economia e sua limitação às funções públicas de manutenção da ordem, da propriedade privada e da Justiça; liberdade na negociação do contrato de trabalho entre patrões e empregados e livre-comércio entre os povos. 117 A filosofia utilitarista de Bentham pode ser entendida pelo fato de que este autor defendia as liberdades com base na sua utilidade, assim, Macridis (1982, p. 44) ensina: “É, por exemplo, mais agradável (ou menos penoso) para um número maior de pessoas num sistema expressar livremente as suas idéias, adoração a Deus à maneira que escolheram, e ler o que lhes apraz. Seria penoso se houvesse censura e falta de liberdade de expressão e de crença”. 118 Filósofo e economista inglês. Seu apoio ao voto feminino quando membro do Parlamento (1865-1868) e na obra A sujeição das mulheres (1869) ajudou a promover o movimento sufragista em fins do século XIX. Em sua obra mais importante e famosa, Da Liberdade (1859), Mill afirmava que o progresso do saber humano e da felicidade humana requer a maior liberdade pessoal possível, limitada somente pela condição de que ninguém “deve tornar-se incômodo para o próximo”. Defendia, portanto, o pluralismo social e político, juntamente com a livre disseminação de idéias divergentes. 119 A discussão sobre o liberalismo aconteceu de modo um tanto tardio no Brasil. Para Rocha (1995, p. 2), o período no qual nasce a teoria liberal moderna no Brasil se dá nos últimos 186 187 Assim, observa-se que, nos moldes de outros autores que tratam do tema liberalismo e respeito às liberdades individuais, Macridis aponta a íntima correlação entre o sistema econômico e as liberdades públicas como características da ideologia liberal-utilitarista. 2.2 O INTERVENCIONISMO E OS DIREITOS DE SEGUNDA GERAÇÃO A vigência do sistema de cunho liberal durante cerca de 150 anos trouxe, a par de um grande desenvolvimento em termos de disponibilidade crescente de bens e serviços, uma série de conseqüências negativas, cuja explicação redundou em refinamento na própria análise e no estudo das instituições econômicas. Assim assinala Nusdeo (2000, p. 208-209), verbis: Durante século e meio aproximadamente, predominou a doutrina liberal-utilitarista, muito embora nos últimos 50 anos sob forte assédio do socialismo coletivista. Entre os anos 20 e 30, ganha terreno a chamada social-democracia ou intervencionismo, no mundo ocidental, enquanto na Europa oriental e em algumas nações asiáticas ensaiava-se o regime de índole coletivista-estatal. Já a última década do século assiste a um refluir das soluções socializantes de diversas vertentes, com o remontar da maré liberalista, voltada a conter o Estado dentro de limites mais acanhados, ao que se tem chamado de Estado mínimo. Privatização e desregulamentação têm-se constituído em balizas fundamentais no plano interno, com a globalização, querendo significar a livre circulação internacional de produtos e fatores, a complementá-las no plano internacional (grifo nosso). Evidencia-se, pois, que, no plano econômico, se podem visualizar, claramente, dois sistemas econômicos que se contrapõem ao liberalismo com diferentes graus de intervenção estatal: o intervencionismo em sentido estrito (economia de mercado com ajustes) e o socialismo (economia em que o Estado é o proprietário exclusivo dos meios de produção). Assim, ao Estado Social, Estado promotor do bem-estar, já analisado anteriormente, correlacionam-se os sistemas econômicos intervencionistas, enquanto que ao Estado Liberal, Estado não intervencionista, correlaciona-se o sistema econômico liberal. dez anos da Monarquia, que precedem a proclamação da República em 1889 e vai até a promulgação da Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Para ele, “[...] nessa fase, o Estado brasileiro, independente em 1822, fundado na herança do sistema administrativo e político português, vai tentar definir-se como instituição política moderna. Trata-se de uma importante transição, em que os atores sociais são ultrapassados pelos acontecimentos, e os discursos começam a ter uma difusão na sociedade jamais alcançada anteriormente, ultrapassando mesmo a intenção de seus emissores. Pela primeira vez, notadamente na discussão das eleições diretas e da abolição, o discurso político atingiria, muito além do então restrito espaço público, camadas mais profundas da sociedade. É praticamente o nascimento da política moderna e da ideologia no Brasil. 187 188 Assim, a Constituição passa a atribuir ao Estado Social diferentes funções na organização do processo econômico, que podem ser agrupadas em dois grandes tipos: Estado como empresário (produtor ou distribuidor de bens ou de serviços) e Estado como regulador (condiciona, fiscaliza, planeja e promove as atividades de terceiros e, muitas vezes, em braços do próprio Estado) (SANTOS; GONÇALVES, 1997, p. 70). Quando o Estado produz ou distribui bens ou serviços, concorre com os agentes econômicos privados de forma direta. Por outro lado, no momento em que regula, condiciona positiva (incentivando) ou negativamente (proibindo ou onerando) a atividade de terceiros na qualidade de agente externo do mercado. Em resumo, nas duas formas, o Estado intervém na economia, seja direta ou indiretamente. Na época liberal, as poucas intervenções diretas dos Estados na produção de bens e de serviços restringiam-se aos investimentos em infra-estrutura (SANTOS; GONÇALVES; MARQUES, 1997, p. 165). A atividade econômica do Estado entendia-se, então, como excepcional. Era distinta, por natureza, da função própria do Estado-legislador e do Estado-juiz e do Estadoadministrador da coisa pública. À luz da doutrina liberal, os poderes públicos deveriam abster-se de atuar como agentes econômicos sob pena de falsearem as leis do mercado. As circunstâncias fáticas, entretanto, levaram a uma nova configuração do papel do Estado, em face das situações não protegidas pelas leis do mercado. No campo teórico, o grande economista inglês Keynes mostrou ser perfeitamente possível haver o equilíbrio da oferta e da procura no nível de subemprego, o que justificava a ocorrência da grande depressão de 1929, iniciada nos Estados Unidos e estendida para todo o mundo, inclusive para o Brasil que, durante muitos anos, passou a queimar café como forma de aliviar os estoques, em face da diminuição da demanda por esse produto (NUSDEO, 2000, p. 141). Assim, as leis de mercado ocasionavam sérios efeitos negativos no campo social e econômico. Não haveria forças automáticas de mercado, aptas para ajudar a economia a sair do subemprego e voltar a aproximar-se do pleno emprego. Ainda na década de 30, Keynes lança a teoria revolucionária do déficit sistemático das contas públicas como mecanismo de estímulo a atividade econômica em períodos recessivos. Keynes (apud NUSDEO, 2000, p. 142) ilustrava a sua idéia com exemplo aparentemente estapafúrdio: [...] se o governo numa época de depressão contratar duas equipes de operários, incumbindo a primeira de abrir buracos e a segunda de fechá-los, isto parecerá inócuo e absurdo sob o ponto de vista físico, mas terá um sentido altamente salutar sob o ponto de vista econômico (macroeconômico). Por quê? Pela simples razão de tanto os trabalhadores do primeiro grupo, quanto os do segundo passarem a receber algum salário a ser gasto em compras. Estas, por sua vez, estimularão o comércio, que voltará a colocar encomendas junto à indústria, a qual contratará empregados (ou deixará de despedi-los) para atendê-las e, ainda, comprará matérias-primas a serem transportadas e assim, sucessivamente, as engrenagens da produção e do emprego irão se reativando. Keynes visualizou que o mercado, de forma pura, pode ocasionar momentos desconfortáveis para o sistema econômico e social, na noção de “pleno emprego”, 188 189 “subemprego” e da necessidade de intervenção estatal, inclusive sem lastro econômico (“déficit sistemático das contas públicas”). A ação estatal de combate à recessão significou a intervenção do Estado na economia, com ênfase, em primeiro momento, na função de Estado-produtor e, também, na de agente regulador (por exemplo: na edição de legislação social garantidora dos direitos trabalhistas e previdenciários). Nesse contexto, os direitos de segunda geração podem ser vistos como reflexo da intervenção estatal na economia. As falhas do mercado impulsionaram a intervenção estatal que, por outro lado, buscou minimizar os efeitos econômicos e sociais deletérios da atividade econômica ancorada no modelo liberal. Hoje, a importância do Estado como produtor de bens ou serviços decresce, consideravelmente, no contexto das privatizações e da busca de um Estado mínimo. Entretanto, o Estado-regulador permanece com atuação crescente no mundo contemporâneo, conforme veremos, a seguir, em análise a ser feita do modelo neoliberal. 2.3 O NEOLIBERALISMO, A GLOBALIZAÇÃO E OS DIREITOS DE TERCEIRA GERAÇÃO O período pós-guerra presenciou contínua expansão dos mercados mundiais. O comércio internacional, após longo período de retração devido às duas guerras mundiais e à grande crise de 1929, inicia fase de rápida expansão, impulsionada pelo crescimento da renda mundial e pela liberalização comercial negociada a nível do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio) 120. Ao longo desse período, o crescimento do comércio mundial suplantou o crescimento da renda mundial, indicando que os países estão, crescentemente, especializandose internacionalmente e utilizando o mercado mundial para aumentar o nível de bem-estar e de crescimento econômico. Isto não significa que a ameaça protecionista tenha sido reduzida. Particularmente, a partir dos anos 70, com o aumento da participação dos países em desenvolvimento no comércio internacional, os países ricos passaram a utilizar intensamente as "restrições não tarifárias" para proteger suas indústrias da concorrência com os países emergentes. Intensificou-se a utilização das quotas de importação, de normas (técnicas, fitosanitárias, de qualidade, meio ambiente e condições de trabalho), das restrições voluntárias à exportação e de leis comerciais para coibir a entrada de produtos importados (SILVA, C., 2000, p. 11). Além disso, a partir dos anos 70, houve rápida transformação do mercado financeiro internacional, em função da desregulamentação das transações financeiras internacionais e pelo aparecimento das tecnologias de informação. À medida que o tempo foi passando, a legislação foi ficando cada vez mais liberal com relação à entrada e saída de recursos 120 Com o fim da segunda guerra mundial, os Estados Unidos, consolidando sua liderança nos países capitalistas, e os outros países vencedores do conflito realizam a Conferência Monetária e Financeira Internacional das Nações Unidas em Bretton Woods, no Estado de New Hampshire, com a finalidade de estruturar a ordem econômica internacional a vigorar no pós-guerra. Três entes foram criados, na ocasião, com a finalidade de implantar a nova ordem econômica internacional e dar-lhe sustentação e viabilidade: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT). Ao GATT foi atribuída a responsabilidade de estabelecer as normas de controle do comércio mundial de mercadorias, com a função precípua de zelar pelo livre comércio entre as nações. Depois de vários anos de árduas negociações, chegou-se a decisão de extinguir o GATT e substituílo, a partir de 1º de Janeiro de 1995, pela Organização Mundial de Comércio (OMC). 189 190 financeiros, tanto que hoje praticamente não existem impedimentos legais à movimentação internacional de capitais nos principais mercados financeiros do mundo. O desenvolvimento das tecnologias de informação (telecomunicações e microeletrônica) possibilitaram rápida redução dos custos das transações financeiras internacionais e estes elementos contribuíram decisivamente para transformar o mercado financeiro no principal mercado internacional. Estima-se que atualmente o volume de transações cambiais se situe na marca de US$ 1.5 trilhão por dia, com parcela predominante de aplicações financeiras (PINHO, 1998, p. 479). A diversificação das aplicações financeiras em escala planetária mudou drasticamente o regime cambial mundial. Até 1973, vigorava regime "Padrão Dólar" (ou regime de Bretton Woods121) de câmbio fixo, onde as principal moedas do mundo conviviam em um regime de taxa de câmbio nominal fixo. Com o aparecimento de uma enorme mobilidade internacional, ficou cada vez mais difícil manter o regime de câmbio fixo e os principais países do mundo optaram por regime de taxa de câmbio flutuante (onde a taxa de câmbio é determinada pelo mercado, embora o bancos centrais também intervenham nesse mercado). Dada a mobilidade de capital e a ausência de coordenação macroeconômica entre os países desenvolvidos, tem sido grande a flutuação da taxa de câmbio entre as principais moedas do mundo (SILVA, C., 2000, p. 35). Outra mudança importante do mercado mundial é a representada pelo aumento da participação das multinacionais na produção e no comércio internacional. Estima-se que pelo menos um terço da produção mundial seja controlada pelas multinacionais, e essas entidades têm transferido parcelas crescentes da produção para os países emergentes. O baixo custo da mão-de-obra, as perspectivas de crescimento do mercado interno e o acesso a recursos naturais têm transformado esses países em atores cada vez mais importantes no cenário mundial. A internacionalização do comércio, das finanças e da produção é o fenômeno que hoje se conhece como globalização122 da economia mundial.123 Outra tendência recente na economia mundial é a da proliferação de acordos regionais de comércio. Existem atualmente quase uma centena de tais acordos e, dentre eles, destacam-se: a União Européia, o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), o Bloco do Yen (Tigres Asiáticos) e o MERCOSUL.124 Destes, o mais sofisticado é o acordo europeu, que previu a criação de moeda única para seus quinze membros até o ano 1999, tendo alcançado tal meta com pleno sucesso (BAINBRIDGE, 2002, p. 173). 121 “O Brasil, ao aderir aos termos do Acordo de Bretton Woods, optou por adotar restrições à conversibilidade de sua moeda corrente, possibilitando assim um controle efetivo sobre os fluxos de capitais estrangeiros no País e de capitais brasileiros no exterior” (CADIER, 1999, p. 281). 122 Globalização não é um conceito unívoco. Para Faria (1999, p. 59-60) é um conceito plurívoco associado, geralmente, a uma nova economia política das relações internacionais, caracterizada pela autonomia adquirida pela economia em relação à política; a emergência de novas estruturas decisórias operando em tempo real e de alcance planetário, a realocação geográfica dos investimentos especulativos, dentre outros. 123 Arnaud (1999, p. 13) afirma que com o fenômeno da globalização está ocorrendo uma expansão crescente das multinacionais. Tais empresas são capazes de fazer explodir sua produção graças à existência do fluxo livre de investimentos sem fronteiras e a mudança dos modelos de produção associado ao poder de transação e de barganha das empresas multinacionais em uma economia planetária. 124 “Um dos resultados mais prementes da globalização do sistema capitalista mediante o capital financeiro foi a estruturação de blocos econômicos unificados, ou seja, dos processos de integração econômica supranacional em escala regional. Tal fato, longe de significar uma harmonização de interesses dentro de mercados abertos no plano mundial, representa precisamente o contrário: a liberalização comercial entre os países integrantes de cada bloco é acompanhada pelo estabelecimento de um protecionismo ainda maior em relação ao resto do mundo” (SILVA, C., 2000, p. 42-43). 190 191 O NAFTA é mais modesto em suas ambições, propondo-se a implantar área de livre comércio entre EUA, Canadá e México até o ano 2008. 125 O Bloco do Yen, envolvendo o Japão e seus vizinhos asiáticos, é bloco informal, onde as transações comerciais têm se expandido a taxas extremamente elevadas, em função do grande dinamismo do crescimento econômico daquela região. O MERCOSUL é acordo que envolve Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, destinado a implantar, até o ano 2006, mercado comum entre esses países. Trata-se de bloco bastante atuante na região e que está desenvolvendo negociações com as demais nações sulamericanas, visando à criação de zona de livre comércio a nível da América do Sul. Além disso, o MERCOSUL está iniciando discussões com a América do Norte e a União Européia, com o objetivo de negociar tratados de livre comércio entre estas regiões.126 O Brasil vem tentando, desde o final dos anos 80, implementar programa de abertura comercial e financeira que possibilite ao país, gradualmente, recuperar o poder competitivo na economia mundial.127 No período mais recente, a grande discussão concentra-se nos impactos da globalização. Há crescente interligação entre os mercados financeiros e de bens e a integração das economias num grande mercado com desregulamentação dos fluxos de comércio, produção e financeiro. Nesse sentido, o secretário-geral da ONU, na apresentação do relatório do milênio para a assembléia-geral em Abril de 2000, ressalta que a palavra-chave das mudanças vividas no final do século é globalização: If one word encapsulates the changes we are living through, it is “globalisation”. We live in a world that is interconnected as never before-one in which groups and individuals interact more and more directly across state frontiers, often without involving the state at all (ANNAN, 2000, p. 22). A globalização é processo irreversível e sinaliza que a produção será realizada nos países onde for possível alcançar o maior grau de competitividade.128 Os preços internacionais passam a ser referência para o mercado interno e o referencial da capacidade de competir não é mais o concorrente interno, mas sim o concorrente externo. 125 126 127 128 Trata-se tão somente de uma zona de livre-comércio, isto é, prevê apenas a livre circulação de mercadorias entre os países-membros, portanto, está muito aquém dos objetivos de um mercado comum. “O NAFTA tem como objetivo fundamental a construção de zona de livre comércio no continente americano, na qual ficam preservadas as soberanias estatais, mediante a gradual remoção de barreiras não tarifárias e extinção das tarifas intra-regionais de seus Estados-partes. O Acordo desconhece, no entanto, questões referentes à integração econômica, como o livre fluxo de trabalhadores, coordenação de política monetária e taxas de câmbio” (SOARES, 1999, p. 83). Nesse diapasão, interessante a comparação feita por Nogueira (2000, p. 197) entre o MERCOSUL e a UNIÃO EUROPÉIA, verbis: “A visão que temos tanto da União Européia como do MERCOSUL é a de um logo e semelhante projeto de construção regional (bloco regional), em que pese a grande diferença de sua genética, razão de ser e finalidades (na U.E., o leitmotiv se traduz na divisa ou opção (?) guerra x paz; no MERCOSUL, a ‘libertação’ do subdesenvolvimento, notadamente econômico) que se desenvolve a partir do término da Segunda Guerra Mundial “Nesse período, o Brasil e os demais países da América Latina e do então chamado Terceiro Mundo – sobretudo os que possuíam elevadas dívidas externas – diminuíram sensivelmente seu ritmo de desenvolvimento econômico e social, ou sofreram anos de estagnação/recessão” (BRUM, 1999, p. 419). “A globalização, assim entendida, não se confunde com uma etapa inexorável do processo histórico, mas descreve uma nova fase do capitalismo mundial, marcada pela transformação dos arranjos institucionais (econômicos e políticos), hábitos, cultiva e apreensão teórica do mundo anteriormente existentes” (MACEDO JÚNIOR, 1999, p. 227). 191 192 Além das mudanças ocorridas na estrutura de produção, alterações na propriedade do capital também são verificadas, não somente pela presença do investimento direto estrangeiro, como também por um processo de fusões, incorporações, joint-ventures, com o objetivo de buscar a competitividade global. Isso porque as decisões, a nível das firmas, envolvem não apenas um determinado mercado, mas todos os possíveis mercados, como também todas as possíveis localizações e fornecedores. Conceitos como valor presente ou taxa de retorno não serão apenas de um único projeto, mas do conjunto de projetos da empresa de forma integrada. Nessa nova realidade, a rapidez de ação dos agentes econômicos é fundamental, uma vez que as oportunidades aparecem e desaparecem rapidamente. O desafio é, acima de tudo, o da competitividade, o que significa dizer que é necessário ganhar produtividade de forma permanente.129 Por fim, cabe ressaltar que os desafios propostos à economia brasileira, ao Estado Brasileiro, aos direitos fundamentais, em grande medida, não diferem daqueles colocados às outras nações industrializadas em desenvolvimento. Resultam da progressiva globalização da economia mundial, de um ambiente tecnológico crescentemente dinâmico e do surgimento de novos concorrentes que aumentariam a competição dos mercados internacionais.130 Nesse contexto de visão econômica planetária, volta-se aos conceitos dos liberais clássicos do século XVIII e recuperados pelos teóricos do neoliberalismo, que se vai implantar a idéia da apologia do mercado, firmado na razão econômica da superioridade dos mercados sobre o Estado como alocadores de recursos, de forma a impedir o que eles denominaram de servidão moderna.131 Entretanto, não se preocupavam com os problemas crônicos trazidos por soluções simplistas em torno da iniciativa privada (seja a informação imperfeita, os mercados incompletos ou a tendência aos oligopólios, que constituem distorções de seu funcionamento), busca-se a absoluta liberdade de movimentos das empresas, e que todos os campos da vida social, inclusive o Estado, sejam submetidos à valorização do capital privado. “[...] É o momento culminante do que Karl Marx chamava de ‘fetichismo da mercadoria’, com a ‘mercadorização’ do humano chegando em níveis inimagináveis” (SILVA, C., 2000, p. 68). Ao lado da “modernização via internacionalização” dos países do hemisfério sul, configuram-se elementos de regressão social, política, ambiental. A era da informática e da biotecnologia, também, é a do contraste entre os países ricos e os países pobres, a do mau uso dos recursos naturais não renováveis, do desemprego estrutural por falta de desenvolvimento econômico de determinadas nações não competitivas no contexto global. Nesse contexto, devem ser vistos e correlacionados o neoliberalismo e os direitos dos povos. Esta classe de direitos tem por destinatário mais do que o indivíduo, um grupo ou 129 A rapidez das novas situações econômicas trará, conforme FARIA (1999, p. 130) ensina, em conseqüência a inflação legislativa, de “leis de circunstância” surgidas a partir de conjunturas políticas, sociais e econômicas muito específicas e transitórias. Tais circunstâncias, entretanto, acabam levando o Estado a perder a dimensão exata do valor jurídico tanto das normas que edita quanto dos atos e comportamentos que disciplina. 130 “Um dos efeitos mais espetaculares da globalização é o surgimento de um novo ídolo, o mercado mundial. O homem que até a chegada desse fenômeno se ligava a seu mercado, agora se vê diante de uma inusitada vitrine mundial abrangente de todos os mercados” (NOGUEIRA, 2000, p. 210). 131 “A hegemonia dos conceitos neoliberais em matéria de relações econômicas, mercado privatizado, livre mercado internacional, desregulação, desengajamento do Estado, foram as palavras de ordem do reaganismo e do tacherismo. Elas estão invadindo progressivamente todos os continentes” (ARNAUD, 1999, p. 14). 192 193 determinado Estado, mas o gênero humano mesmo. O indivíduo, assim como o mercado, passam a ser vistos sob a ótica universal. É dada ênfase ao todo para, no âmbito dos direitos fundamentais, proteger-se, em última análise, a parte. Por outro lado, a proteção internacional dos direitos humanos ganha força com tratados internacionais, organismo internacionais estatais e não-estatais (ONG’s). As transformações impostas por uma economia globalizada colocaram em questionamento a legitimação do Estado nacional como promotor do bem-estar social e fizeram refluir a atuação direta da sociedade e da comunidade internacional na proteção da pessoa humana.132 Com relação à proteção internacional dos direitos humanos, Piovesan (1997, p. 141) destaca que são aprimoradas, historicamente, quando as instituições nacionais se mostraram falhas na tarefa de proteção dos direitos humanos: A necessidade de uma ação internacional mais eficaz para a proteção dos direitos humanos impulsionou o processo de internacionalização desses direitos, culminando na criação da sistemática normativa de proteção internacional, que faz possível a responsabilização do Estado no domínio internacional, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas na tarefa de proteção dos direitos humanos. O processo de internacionalização dos direitos humanos - que, - sua vez, pressupõe a delimitação da soberania estatal - passa, assim a ser uma importante resposta nesta busca de reconstrução de um novo paradigma, diante do repúdio internacional às atrocidades cometidas no Holocausto (grifo nosso). Assim, buscam-se novos agentes protetores dos direitos fundamentais, quando o ator principal se apresenta incapaz de protegê-los. O caráter difuso e amplo dos direitos fundamentais de terceira geração, sob determinada ótica, também contribuem para a retomada de novos atores da proteção dos direitos. A economia neoclássica, fruto da síntese de sistemas econômicos antagônicos (intervencionista, em menor escala, e liberal, em maior escala), tem reflexos, até hoje, na formação do Estado chamado neoliberal, no qual há controvérsias na dosagem da intervenção ou não-intervenção estatal em diferentes áreas.133 Santos; Gonçalves; Marques, (1997, p. 73) e outros ressaltam o aspecto interventivo do Estado, que buscaria ser “liberal” em uma nova configuração histórica a de Estadoregulador: Por paradoxal que possa parecer, a redução do peso do Estado – empresário e a liberalização de determinados sectores de atividade econômica, a que se tem assistido ao longo dos últimos anos em diversos países, têm sido acompanhadas por um alargamento do papel do Estado como regulador. 132 133 Arnaud (1999, p. 14) realça que o fenômeno da globalização caracteriza-se, também, pelo aparecimento de atores supranacionais e transnacionais promovendo a democracia e a proteção dos direitos humanos, assinala que: “Nunca as Organizações Não-governamentais foram tão fortes. Até entre os próprios juristas foi criada a Organização Não-governamental e Transnacional dos Conselhos de Justiça (TANGO, Transnational Advocacy Non Governmental Organization)”. “A globalização, enfim, é processo contraditório, seletivo e que oferece perspectivas diferenciadas para cada país. Nesse sentido, constitui-se um erro acreditar que a globalização é resultante exclusiva de forças de mercado, negligenciando o imenso papel desempenhado pelo Estado no estímulo e regulação da atividade produtiva e do próprio mercado de consumo” (MACEDO JÚNIOR, 1999, p. 227). 193 194 Assim, o Estado regulador configura um novo paradigma de intervenção do Estado na economia, que terá vindo substituir, na economia neoclássica, a economia do Estadoempresário que marcou as décadas que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Ao tratar dos vetores basilares da economia neoclássica: A argumentação central do liberalismo econômico, nascida em meados do século XVIII, sempre foi em torno da maior eficiência do mercado em detrimento das instituições políticas, desde a tradição de Adam Smith e sua "mão invisível", onde naturalmente o interesse individual se acomodaria ao interesse social, produzindo riqueza e desenvolvimento geral. Preocupados estavam, então, primordialmente em defender o sistema da livre movimentação dos agentes econômicos, fórmula básica de eficácia junto aos consumidores. O prefixo "neo" (do neoliberalismo) tem um significado muito preciso: representa o fato de que após as grandes transformações sociais, políticas e econômicas, as quais passavam o mundo ocidental, após o período da Grande Depressão de 1929, passaram a admitir a necessidade de alguma intervenção do Estado na economia, de modo a "ajustar" e sanear as falhas de mercado. Admitem, então, medidas "anticíclicas" de recondução das economias desenvolvidas à situação em que os mecanismos "naturais" de mercado poderiam voltar a garantir equilíbrio e eficiência, fazendo então concessões aos keynesianos (SILVA, C., 2000, p. 71-72, grifo nosso). Nesse sistema econômico ambivalente, convivem os direitos de terceira geração de desenvolvimento com a proteção ambiental. Como bem coloca Arnaud (1999, p. 39) verbis: O uso de aerosóis, na Europa, pode provocar câncer na pele na América do Sul. Uma colheita ruim na Rússia pode significar ainda mais fome na África [...] As mudanças de tarifas na Europa podem facilitar a pressão sobre as florestas tropicais. A restruturação industrial do Norte pode reduzir a pobreza do Sul, por sua vez, pode fazer aumentar o mercado para o Norte, etc. Do mesmo modo, Cairncross (1992), editora da seção relativa ao “meio ambiente” do periódico inglês “The Economist”, ressalta a problemática do “paradoxo globalizante” dos direitos de terceira geração em função das diferentes prioridades dos países ricos e pobres que podem, por um lado, favorecer o desenvolvimento em detrimento da proteção ambiental e vice-versa. 134 O “paradoxo da globalização” no âmbito dos direitos fundamentais de terceira geração é que esta apresenta, simultaneamente, elementos positivos e negativos de proteção dos direitos dos povos. Assim, se, por um lado, é criada uma consciência universal dos direitos fundamentais, surge, também, uma grande pressão econômica pela diminuição dos custos da atuação protetiva, em face da relevância dada ao aspecto econômico da oferta/procura e do preço dos bens e serviços que competem em um mercado global. 134 “Não faz qualquer sentido para países em desenvolvimento gastar enormes somas no tratamento do lixo tóxico segundo padrões dos Estados Unidos quando famílias ainda bebem água de rios cheios de esgoto bruto. Mas por que os produtores dos países desenvolvidos se sentirão ameaçados pela competição de fabricantes que operam segundo normas inferiores nos países em desenvolvimento, é provável que as normas ambientais se tornem uma questão cada vez mais delicada no comércio internacional” (CAIRNCROS, 1992, p. 11). 194 195 3 O MEIO AMBIENTE E SUA VINCULAÇÃO JURÍDICA AOS SISTEMAS ECONÔMICOS 3.1 O PRINCÍPIO DA DEFESA DO MEIO AMBIENTE COMO MECANISMO CONFORMADOR DA ORDEM ECONÔMICA O princípio da propriedade privada assegurado como direito fundamental (art. 5o, inciso XXIII da Constituição Federal) deve ser interpretado em harmonia com o princípio de que a propriedade atenderá a sua função social no que tange à proteção do meio ambiente ecologicamente em equilíbrio, pois, sendo bem de uso comum do povo (interesse público), há cristalina restrição à iniciativa privada por atos do Poder Público. Ao abordar a necessidade de harmonizar dois importantíssimos bens constitucionais (o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental), inicialmente, devem-se procurar luzes no direito comparado, colacionando pronunciamento de Necker (1992, p. 66-67), verbis: Para tornar o problema mais visível, gostaria de comparar as empresas com navios. E em todo navio o comandante é o maior responsável por que este navio chegue ao porto. Todos sabem que, para isso, a carga do navio precisa estar cuidadosamente distribuída, para evitar que, por estar com sua carga mal distribuída, o navio afunde com a primeira onda. Da mesma forma é exigida a responsabilidade empresarial: • frente aos financiadores, pelo estabelecimento de uma taxa de juros adequada para o capital investido. Sem nenhuma perspectiva de um retorno financeiro compatível, ninguém mandaria um navio fazer uma viagem arriscada. Os padeiros também não fazem pão – a não ser para as suas próprias famílias – porque a humanidade tem fome, mas para chegar a obter um ingresso. Se cair por terra a possibilidade de obter ingressos, os padeiros trocam de profissão; • em relação aos trabalhadores, pela criação de locais de emprego resistentes às crises. Uma tripulação que, depois da primeira etapa da viagem, precisa contar com a possibilidade de poder chegar a ser dispensada do navio, dificilmente vai se preocupar em cuidar da navegabilidade do mesmo; • em relação aos consumidores, pelo oferecimento dos bens desejados a preços compatíveis. Nesse campo, quem não puder contar com produtos aptos a competir no mercado, vai sentir as conseqüências negativas muito rapidamente, ou seja, desaparece do mercado; e • em relação ao meio ambiente, para restringir a vulnerabilidade dos alicerces naturais da vida. Essa responsabilidade não resulta do fato de que, em discussões públicas, os empresários freqüentemente são apontados como os culpados. A responsabilidade surge do fato de que muitas empresas são, em primeira instância, fontes de emissão, mas também são fontes de conhecimento tecnológico, técnico, econômico e científico. Vem daí a responsabilidade das empresas e dos 195 196 empresários em investir este saber e esse potencial inovador para a proteção e manutenção do meio ambiente. Nessa feliz metáfora, demonstra-se a interdependência sistêmica do meio ambiente e da economia. Adequa-se, também, ao conceito de meio ambiente amplo dado pela ISO 14.000, ao colocar-se, por um lado os consumidores (representantes do elemento humano da demanda) e, de outro, os trabalhadores (representantes do elemento humano da oferta como um dos “fatores de produção”). Faz-se, pois, uma correlação entre a segunda e a terceira dimensão de direitos fundamentais. O elemento econômico passa a ser, portanto, a ponte de conexão entre os trabalhadores e os consumidores. Portanto, a análise de interesses e de bens conflitantes não permanece no campo da verificação de uma hierarquia de valores, requerendo análise em face das normas abertas, já positivadas, veiculadas por normas-objetivo a expressar os resultados a que a lei deve visar. A instrumentalização da lei como positivação de diretrizes e de metas transfere a discussão – metajurídica – sobre a hierarquia dos valores, a dispensar a valoração unilateral de um bem constitucional em desfavor de outro, para a análise de adequação de meios a fins, garantindo a unidade do sistema constitucional ao tomar como princípio norteador a coordenação e igualdade hierárquica dos bens jurídicos. Canaris (1989, p. 205-206) observa pertencer à essência dos princípios gerais de direito que estes entrem, com freqüência, em oposição entre si. Nem por isso devem ser eliminados do sistema, mas ajustados por meio de um compromisso, em cada caso. Assim, conforme já visto, diversamente do que ocorre com regras jurídicas, a oposição de princípios não conduz à eliminação de um deles, de forma que, em determinadas circunstâncias, um princípio cede perante outro, mas, em situações distintas, a questão da prevalência pode resolver-se de forma contrária. Esse processo ocorre; pois, os princípios têm um peso diferente nos casos concretos, prevalecendo o que apresenta maior peso em dada circunstância (BONAVIDES, 1996, p. 251). Nesse sentido, Mendes (1994, p. 297), ao tratar da colisão de direitos fundamentais (Grundrechtskollision) nos limites da liberdade de imprensa e da liberdade artística, ensina: No processo de ponderação desenvolvido para solucionar o conflito de direitos individuais não se deve atribuir primazia absoluta a um ou outro princípio ou direito. Ao revés, esforça-se o Tribunal para assegurar a aplicação das normas conflitantes, ainda que, no caso concreto, uma delas sofra atenuação. É o que se verificou na decisão acima referida, na qual restou íntegro o direito de noticiar sobre fatos criminosos, ainda que submetida a eventuais restrições exigidas pela proteção do direito de personalidade. Larenz (1983, p. 490) aponta que a “ponderação de bens e interesses no caso concreto” pressupõe a ausência de uma ordem hierárquica de todos os bens e valores jurídicos. A técnica da ponderação aproxima-se, antes, de um método do que do arbítrio do aplicador da lei, pois, do contrário, tais soluções seriam desprovidas de parâmetros de racionalidade. Assim, a harmonização de bens jurídicos, como o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental, baseia-se na ausência de hierarquia entre esses bens constitucionais. Não se trata, simplesmente, da busca de denominador comum entre os bens jurídicos em determinado caso concreto, mas de proceder conforme os princípios da proporcionalidade, do meio mais idôneo ou da menor restrição possível, de modo que a lesão de um bem não deva ir além do necessário. Desse modo, a ponderação de bens não permanece no campo do sentimento jurídico, configurando processo racional que não há de se fazer, em absoluto, unilateralmente, mas que, 196 197 ao menos, em certo grau, segue princípios identificáveis, tornando-se, portanto, comprovável (LARENZ, 1983, p. 490-501). Especificamente sobre essa ponderação de bens jurídicos no campo ambiental, esclarece Rangel (1994, p. 22): Os valores ambientais, ecológicos, de qualidade de vida, não são, no quadro da hipótese do Estado de Direito Ambiental, valores exclusivos nem excludentes, necessariamente prevalecentes, com dignidade hierárquica superior a qualquer outro objetivo fundamental constitucionalmente recebido. Serão antes tarefas prioritárias, sim, mas plasmadas em normas constitucionais, que terão de ser integradas num horizonte plural (diversificado e intrinsicamente concorrente ou conflituante) de princípios rectrizes e de outras normas-fim, segundo um princípio de concordância prática, não compatível com quaisquer formas de reducionismo (grifo nosso). Sob o prisma de ponderação de bens constitucionais, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de interpretar-se a norma inscrita no art. 225 da Constituição Federal de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, dando relevo à interdependência das normas constitucionais protetivas com o direito de 135 propriedade (art. 5º, XXII), verbis: RECURSO EXTRAORDINÁRIO – ESTAÇÃO ECOLÓGICA – RESERVA FLORESTAL NA SERRA DO MAR – PATRIMÔNIO NACIONAL (C.F., ART. 225, § 4o) – LIMITAÇÃO ADMINISTRATIVA QUE AFETA O CONTEÚDO ECONÔMICO DO DIREITO DE PROPRIEDADE – DIREITO DO PROPRIETÁRIO DE INDENIZAÇÃO – DEVER ESTATAL DE RESSARCIR OS PREJUÍZOS DE ORDEM PATRIMÔNIAL SOFRIDOS PELO PARTICULAR – RE NÃO CONHECIDO. − Incumbe ao Poder Público o dever constitucional de proteger a flora e de adotar as necessárias medidas que visem a coibir práticas lesivas ao equilíbrio ambiental. Esse encargo, contudo, não exonera o Estado da obrigação de indenizar os proprietários cujos imóveis venham a ser afetados, em sua potencialidade econômica, pelas limitações impostas pela Administração Pública. − A proteção jurídica dispensada às coberturas vegetais que revestem as propriedades imobiliárias não impede que o dominus venha a promover, dentro dos limites autorizados pelo Código Florestal, o adequado e racional aproveitamento econômico das árvores nelas existentes. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais em geral, tendo presente a garantia constitucional que protege o direito de propriedade, firmou-se no sentido de proclamar a plena indenizabilidade das matas e revestimentos florestais que recobrem áreas dominiais privadas, objeto de apossamento estatal ou sujeitas a restrições administrativas impostas pelo Poder Público. Precedentes. 135 STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de 22/09/95. 197 198 − A circunstância de o Estado dispor de competência para criar reservas florestais não lhe confere, só por si, considerando-se os princípios que tutelam, em nosso sistema normativo, o direito de propriedade, a prerrogativa de subtrair-se ao pagamento de indenização compensatória ao particular, quando a atividade pública, decorrente do exercício de atribuições em tema de direito florestal, impedir ou afetar a válida exploração econômica do imóvel por seu proprietário. − A norma inscrita no art. 225, § 4o, da Constituição deve ser interpretada de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5o, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente à compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à atividade estatal. − O preceito consubstanciado no art. 225, § 4o, da Carta da República, além de não haver convertido em bens públicos os imóveis particulares abrangidos pelas florestas e pelas matas nele referidas (Mata Atlântica, Serra do Mar, Floresta Amazônica brasileira), também não impede a utilização, pelos próprios particulares, dos recursos naturais existentes naquelas áreas que estejam sujeitas ao domínio privado, desde que observadas as prescrições legais e respeitadas as condições necessárias à preservação ambiental. − A ordem constitucional dispensa tutela efetiva ao direito de propriedade (C.F./88, art. 5o, XXII). Essa proteção outorgada pela Lei Fundamental da República estende-se, na abrangência normativa de sua incidência tutelar, ao reconhecimento, em favor do dominus, da garantia de compensação financeira, sempre que o Estado, mediante atividade que lhe seja juridicamente imputável, atingir o direito de propriedade em seu conteúdo econômico, ainda que o imóvel particular afetado pela ação do Poder Público esteja localizado em qualquer das áreas referidas no art. 225, § 4o, da Constituição. − Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional de um típico direito de terceira geração (C.F., art. 225, caput). No referido acórdão, o Rel. Min. Celso de Mello ressalta a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de garantir a plena ressarcibilidade dos prejuízos materiais decorrentes das limitações administrativas ao direito de propriedade, ao referir-se ao direito do poder público de constituir reservas florestais em seu território, desde que não as constitua gratuitamente.136 E continua, verbis: [...] O Estado de São Paulo sustenta, ainda, a partir das regras inscritas no art. 225, § 1º, inciso VII, e § 4º, da Carta Política, que o novo ordenamento constitucional promulgado em 1988 introduziu profundas alterações no sistema de direito positivo brasileiro, 136 STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral do acórdão, p. 686 a 687. 198 199 consagrando a inexigibilidade de qualquer indenização pelos atos administrativos de intervenção estatal na esfera dominal privada, desde que, praticados com finalidade de proteção ambiental, venham a incidir em imóveis situados na Serra do Mar [...]. Não assiste, também neste ponto, qualquer razão ao recorrente, eis que o acolhimento da tese ora sustentada implicaria virtual nulificação do direito de propriedade, com todas as graves conseqüências jurídicas que desse fato adiviriam137 (grifo nosso). Por outro lado, assinalando a índole comum da proteção ambiental (ser assegurada não só pela sociedade, mas também pelo Estado), explica que seria inadequado impor somente ao particular tal ônus, verbis: É de ter presente, neste ponto, que, sendo de índole comum o direito à preservação da integridade ambiental, não se pode impor apenas aos proprietários de áreas localizadas na Serra do Mar – que venham a sofrer as conseqüências derivadas das limitações administrativas incidentes sobre os seus imóveis – os ônus concernentes à concretização, pelo Estado, de seu dever jurídico-social de velar pela conservação, em benefício de todos, de um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por tal razão, as normas inscritas no art. 225 da Constituição hão de ser interpretadas de modo harmonioso com o sistema jurídico consagrado pelo ordenamento fundamental, notadamente com a cláusula que, proclamada pelo art. 5º, XXII, da Carta Política, garante e assegura o direito de propriedade em todas as suas projeções, inclusive aquela concernente à compensação financeira devida pelo Poder Público ao proprietário atingido por atos imputáveis à atividade estatal138 (grifo nosso). Destacando a íntima relação entre a proteção ambiental e o direito de propriedade, Pagano (1995, p. 8), professor da Universidade de Miami, e Bowaman, professora da Universidade da Carolina do Sul, ao tratarem do federalismo americano e da proteção ambiental na década de noventa, ressaltam, também, a ponderação entre as normas ambientais restritivas e o uso da propriedade, destacando a necessidade de os órgãos estatais americanos compensarem financeiramente os proprietários atingidos pelas normas restritivas, verbis: [...] By July, 1995, several regulatory reform bills were making their way through the legislative thicket. The primary proposal would require federal agencies to undertake a rigorous series of risk assesments and cost-benefit analyses to justify new and extant regulations. A related measure would require the federal government to compensate a property owner if a federal regulatory action caused even a modest diminution in the fair market value of the property (grifo nosso). A análise das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal e a análise da doutrina americana apresentadas trazem, à colação, a unidade do texto constitucional. Segundo Hesse (1983, p. 18), “[...] a Constituição somente pode ser compreendida e interpretada 137 138 STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral do acórdão, p. 688 a 689. STF – Recurso Extraordinário no 134.297-8–SP, Rel. Min. Celso de Mello, publicado no Diário de Justiça de 22/09/95, trecho do voto do Relator extraído da cópia do texto integral do acórdão, p. 692 a 693. 199 200 corretamente quando é entendida, nesse sentido, como unidade”. Assim, as normas encontram-se em uma relação de interdependência no ordenamento jurídico. Subjaz a essa interdependência a idéia de sistema formal que obriga a não compreender “em nenhum caso somente a norma isolada senão sempre no conjunto em que deve ser situada: todas as normas constitucionais têm de ser interpretadas de tal maneira que se evitem contradições com outras normas constitucionais” (HESSE, 1983, p. 48). Deve, pois, haver ponderação entre o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental no contexto do ordenamento jurídico como um todo, não comportando antinomias entre normas definitivas. Assim, a contradição entre conteúdos de normas abertas, a valoração, não importa eliminação de uma delas do texto da Constituição, mas apenas harmonização de interesses em um determinado caso concreto. Consoante ensinamento de Canotilho (1993, p. 197): “não há normas só formais”. Nessa mensagem perspectiva, a solução de problema constitucional, como a proteção ambiental, deve guardar coerência com o principio da unidade, de modo a harmonizar a possível divergência entre os preceitos. No mesmo sentido, aplica-se o princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição. Tal princípio, segundo Canotilho (1993, p. 229): [...] é fundamentalmente um princípio de controle (tem como função assegurar a constitucionalidade da interpretação) e ganha relevância autônoma quando a utilização dos vários elementos interpretativos não permite a obtenção de um sentido inequívoco entre os vários significados da norma. Daí a sua formulação básica: no caso de normas polissêmicas ou plurisignificativas, deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a Constituição. Esta formulação comporta várias dimensões: (1) o princípio da prevalência da Constituição impõe que, entre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais (grifo nosso). A partir da “idéia do igual valor dos bens constitucionais” e do “princípio da interpretação das leis em conformidade com a Constituição” segue-se a necessidade de harmonização dos bens constitucionais tutelados, no caso concreto. Reduzido ao seu núcleo essencial, o princípio da concordância prática impõe a coordenação e a combinação dos bens jurídicos em conflito, de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros. Esse princípio de hermenêutica constitucional, também conhecido como princípio da harmonização, consoante assinala Canotilho (1993, p. 234), embora divulgado por Hesse, “há muito constitui um canon of constitucional construction da jurisprudência americana”. Tal princípio da harmonização fornece-nos a indicação de que cada valor constitucional deve ser ponderado na circunstância específica; portanto, com tal metodologia, cada valor constitucional variará conforme a necessidade fática da solução do problema. A solução do conflito de direitos ou de valores deve passar sempre por um juízo de ponderação, 200 201 procurando ajustá-los à unidade da Constituição. Pode-se caracterizar, dependendo do caso concreto, em interpretação restritiva que deve ser verificada, para que não valha para dois bens constitucionais a regra do tudo ou nada. É o que ocorre na espécie, pois a coexistência do desenvolvimento econômico e da proteção ambiental se resolvem pela noção de desenvolvimento sustentável. Portanto, é viável compatibilizar o desenvolvimento e a preservação ambiental, desde que se considerem os problemas ambientais dentro de processo contínuo de planejamento, atendendo-se adequadamente às exigências de ambos os bens jurídicos e observando-se às suas interrelações particulares a cada contexto sócio-cultural, político, econômico e ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço. Em outras palavras, a política ambiental não se deve constituir em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus instrumentos, ao proporcionar a gestão racional dos recursos que constituem sua base material. 3.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO ÉTICA DE DESENVOLVIMENTO COM A HARMONIZAÇÃO DO ECONÔMICO E DO ECOLÓGICO 3.2.1 Defesa do meio ambiente como objetivo da ordem econômica Grau (1990, p. 255) identifica a defesa do ambiente como diretriz, norma-objetivo, dotável de caráter constitucional conformador, ao indicar: Princípio da ordem econômica constitui também a defesa do meio ambiente (art. 170, VI), trata-se de princípio constitucional impositivo (Canotilho), que cumpre dupla função, qual os anteriormente referidos. Assume também, assim, a feição de diretriz (Dworkin) – norma-objetivo – dotada de caráter constitucional conformador, justificando a reivindicação pela realização de políticas públicas. Identificando-se o princípio da defesa do ambiente como expoente conformador da ordem econômica (mundo do ser), por ele são informados, conseqüentemente, os princípios da garantia do desenvolvimento nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.139 O desenvolvimento nacional não haverá mais de ser reduzido ao conceito de crescimento 139 “O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impede assegurar supõem economia autossustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico. Por esta trilha segue a chamada ética ecológica e é experimentada a perspectiva holística da análise ecológica, que, não obstante, permanece a reclamar tratamento crítico científico da utilização econômica do fator recursos naturais” (GRAU, 1994, p. 249). 201 202 econômico, mas deverá ser equilibrado140, não só no sentido de atendimento do plano nacional e do plano regional (procedimento necessário em face do princípio federativo), mas para obediência do princípio da defesa do meio ambiente, com o conteúdo delineado pelo artigo 225. O fato de que o desenvolvimento nacional recebeu tratamento constitucional diverso do que lhe fora deferido na Carta anterior, deslocando-se da categoria de princípio norteador da atividade econômica para objetivo fundamental da República (art. 3o da Constituição Federal), confirma a argumentação de que o seu programa normativo deve abarcar não só a vertente econômica, mas todas as dimensões que o termo desenvolvimento comporta. A par de informador dos princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego, o princípio da defesa do meio ambiente constitui instrumento elementar e necessário para a realização da finalidade da ordem econômica, a de assegurar a todos existência digna – valor atado aos fundamentos da República Federativa do Brasil por meio do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) (GRAU, 1990, p. 256). A pertinência do princípio da defesa do meio ambiente ao princípio da dignidade da pessoa humana manifesta-se cristalina em face da determinante da qualidade de vida, insculpida no artigo 225, caput, da C.F. Evidencia-se, ademais, a necessidade de exercício da atividade econômica com a preocupação do não-esgotamento dos limitados recursos naturais, comprometendo a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. O princípio da defesa do meio ambiente constitui, pois, um dos limites constitucionais ao livre exercício da atividade econômica (pública ou privada), dando-lhe precisos contornos. Portanto, o exercício da atividade econômica deve-se integrar à defesa do meio ambiente, sob pena de violação de vários dispositivos constitucionais, entre outros, a saber: • do disposto no artigo 225, caput, que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo – porque todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado; • do disposto no artigo 170, caput, porque impedido assegurar-se a todos existência digna, e do disposto no artigo 3o, II, porque, sem a defesa material do meio ambiente, amputa-se a garantia do desenvolvimento nacional; e • do disposto no art. 174 § 1o, que almeja um desenvolvimento nacional equilibrado, que incorpa e compatibiliza os planos nacionais e regionais de desenvolvimento em um Estado Federal. A preservação e a defesa do meio ambiente, como objetivos a serem perseguidos pelo Estado e pela coletividade, na qualidade de agentes políticos, econômicos e sociais, constituem diretriz, obrigação de resultado constitucionalmente plasmada a ser equacionada pela doutrina do desenvolvimento sustentável. 140 A Constituição Federal vigente em seu art. 174, §1o, assinala: “Art. 174 como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1o – A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (grifo nosso). 202 203 3.2.2 O conceito de desenvolvimento sustentável e a ética do desenvolvimento Situamos o princípio de desenvolvimento sustentável141 em diversos artigos da Constituição, mas o núcleo se encontra no caput do artigo 225: “Todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O capítulo da ordem econômica também consagra o respeito ao meio ambiente como limitador da atividade econômica (artigo 170, inciso IV), bem como o artigo 186, que trata da função social da propriedade dentro do Título da Ordem Econômica e Financeira.142 O conceito de desenvolvimento sustentável, elaborado pelo Relatório de Brundtland143, é o seguinte: “O desenvolvimento sustentável seria aquele capaz de satisfazer as necessidades sociais atuais sem comprometer as necessidades futuras”. A conceituação desse desenvolvimento engloba questões ideológicas, visto que a própria noção de desenvolvimento sempre acompanhou disputa por diferentes formas de apropriação da riqueza e reprodução social. Nesse aspecto, o saudoso Professor Marinho (1995, p. 10) enfatizava a diferença entre crescimento econômico e desenvolvimento: Se não é próprio estabelecer oposição entre os termos, cabe assinalar que, no juízo prevalecente, crescimento só se equipara a desenvolvimento quando une a ampliação das riquezas ao robustecimento da personalidade humana, como força social apta a produzir num ambiente adequado (grifo nosso). 141 A “Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em 1983, trabalhou durante quatro anos para produzir o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi consagrada a expressão “Desenvolvimento Sustentável”, que foi ali conceituado como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras. 142 Ao se decompor essa disposição constitucional percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um de feição eminentemente ecológica ou ambiental, qual seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na verdade, constitucionalizou e ampliou uma disposição infraconstitucional já presente na alínea “c” do parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da Terra), qual seja, a que “assegura a conservação dos recursos naturais”. 143 O Relatório Brundtland foi desdobramento da Conferência de Estocolmo (1972), a primeira reunião mundial em que se tratou da questão ambiental, em que 114 países procuravam soluções para problemas que séculos de desenvolvimento irracional ocasionaram para todo o planeta. 203 204 Da mesma forma, Goulet (1966, p. 1) esclarece: “O desenvolvimento não é a simples industrialização ou modernização, nem o aumento da produtividade ou a reforma das estruturas do mercado”. Completando sua exposição e explicando que o desenvolvimento deve ser um meio para conduzir os homens à sua dignificação, Goulet (1966, p. 38) defende uma ética do desenvolvimento como “um impulso não mecânico mas humano, uma criação da inteligência e da vontade de homens conscientes e de ação, de homens que possuam uma visão dos fins que lhes permita escolher racionalmente os meios. Em outras palavras, homens que tenham uma ética (ciência e arte dos fins e dos meios) do desenvolvimento”. Rêgo (1995, p. 114) destaca que: [...] A proposta do Professor Denis consiste em, superando o unilateralismo intransigente e evitando um ecletismo inconsistente, identificar em que medida os conflitos entre ciência e ética se processam, aonde estão as suas causas e como elaborar uma nova teoria do desenvolvimento da qual se possa derivar um plano de ação mais profundo e consistente que abrigue, na justa medida, a interação entre homem e natureza, ao mesmo tempo em que possa promover as mudanças sociais requeridas, sem perder de vista os interesses mais gerais da pessoa humana, relativos à dignidade do seu existir, quer material, quer espiritualmente (grifo nosso). Nessa linha, deve ser interpretado o desenvolvimento sustentável, como uma espécie do gênero ética do desenvolvimento. Para essa linha de interpretação do desenvolvimento sustentável, este não aceita a privatização do meio ambiente como solução para a crise ambiental, até porque o cálculo realizado pelas empresas só leva em conta aspectos mercantis, e o meio ambiente é uma globalidade. O desenvolvimento sustentável, assim como a ética do desenvolvimento aspiram, não somente remediar as deficiências das estruturas existentes e dos dinamismos em vigor, mas, também, e, principalmente, criar novas fórmulas. Nesse aspecto, Goulet (1966, p. 56-57) destaca: Que significa, exatamente, a valorização racional dos recursos, visando um desenvolvimento autêntico e equilibrado? Significa tornar os recursos do solo do ar e dos mares tão produtivos quanto possível, levando-se em conta: as necessidades humanas, a possibilidade de se explorar sem esgotar os recursos em causa, o preço,a utilidade, os fins aos quais os bens se destinam, a atualização das potencialidades latentes das riquezas de toda espécie. É evidente que não se poderia ter uma visão estritamente material desta valorização; antes de tudo é o sujeito humano que deve ser valorizado graças à uma alimentação adequada, a cuidados sanitários corretos, a uma educação apropriada, a instituições que favoreçam seu plano de desenvolvimento em todas as dimensões (grifo nosso). 204 205 Como bem expressa, no mesmo sentido, o nobel de economia Sen (1999, p. 44-46), tratando da economia do bem-estar (ramo do qual a economia ambiental constitui-se em parte) sob o enfoque utilitarista social em contraponto ao do auto-interesse: O apoio que os crentes e defensores do comportamento autointeressado buscaram em Adam Smith é na verdade difícil de encontrar quando se faz uma leitura mais ampla e menos tendenciosa da obra smithiana. Na verdade, o professor de filosofia moral e economista pioneiro não teve uma vida de impressionante esquizofrenia. De fato, é precisamente o estreitamento, na economia moderna, da ampla visão smithiana dos seres humanos que pode ser apontado como uma das principais deficiências da teoria econômica contemporânea. Esse empobrecimento relaciona-se de perto com o distanciamento entre economia e ética [...] As proposições típicas da moderna economia do bem-estar dependem de combinar comportamento auto-interessado, de um lado, e julgar a realização social segundo algum critério fundamentado na utilidade, de outro [...] (grifo nosso). Na sua defesa de uma convergência entre a ética e a economia, Sen (1999, p. 9495) alinha-se a Goulet na defesa de uma ética de desenvolvimento, que não se restrinja à mera visão utilitária de progresso na sua dimensão estritamente econômica. Nesse âmbito, afirma: Procurei mostrar que o fato de a economia ter se distanciado da ética empobreceu a economia do bem-estar e também enfraqueceu a base de boa parte da economia descritiva e preditiva [...] O uso disseminado da extremamente restrita suposição do comportamento auto-interessado tem limitado de forma séria, como procurei demonstrar, o alcance da economia preditiva e dificultado a investigação de várias relações econômicas importantes que funcionam graças à versatilidade dos comportamentos [...] Por outro lado, ater-se inteiramente à restrita e implausível suposição do comportamento puramente auto-interessado parece levar-nos por um pretenso “atalho” que termina em um lugar diferente daquele aonde desejávamos (grifo nosso). Logo, a ambição de ampliar a produtividade não se coaduna com a diversidade da natureza e com seu processo de regeneração, seja em uma visão ecocêntrica, seja em uma visão antropocêntrica. O uso de insumos químicos nas plantações é um bom exemplo disso, pois acabam por exaurir a capacidade de produção da terra em um curto espaço de tempo, esquecendo-se do futuro uso desta para as outras gerações (visão antropocentrica) e para os outros seres do ecossistema (visão ecocêntrica). A Constituição de 1988 adotou, dentro da perspectiva de uma ética do desenvolvimento, como conceito de desenvolvimento sustentável, aquele que não permite a privatização do meio ambiente, prioriza a democratização do controle sobre o meio 205 206 ambiente ao definir meio ambiente como “bem de uso comum do povo” e exige o controle do capital sobre o meio, por intermédio de instrumentos como o Estudo de Impacto Ambiental, e muitos outros, que chamam a comunidade a decidir. Para uma aplicação eficiente do desenvolvimento sustentável, faz-se necessário um levantamento da medida de suporte do ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de regeneração e de absorção do ecossistema e se estabelece limite para a atividade econômica. Este limite permite que as atividades econômicas não esgotem o meio ambiente, mas que este seja protegido para o futuro. Ressalta Derani (1997, p. 766) que: “Direito econômico e ambiental não só se interceptam, como comportam, essencialmente, as mesmas preocupações, quais sejam: buscar a melhoria do bem-estar das pessoas e a estabilidade do processo produtivo”. Assim, a noção de desenvolvimento sustentável está intimamente ligada à proteção ambiental das presentes e futuras gerações, razão pela qual definimos desenvolvimento sustentável como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento das atuais gerações, sem comprometer o meio ambiente para as gerações futuras, incluindo não apenas o aspecto econômico, mas, também, os seus valores de beleza, harmonia e equilíbrio. Tal desenvolvimento teria que definir medida da capacidade de suporte dos ecossistemas: em relação a bens renováveis, a taxa de uso não poderia ser superior à taxa de regeneração (plano de manejo); as taxas de resíduos não podem exceder a capacidade de absorção do meio ambiente; e quanto aos bens naturais não renováveis, a taxa de uso não pode exceder à taxa de recursos substitutos. Não podemos esquecer que a sustentabilidade sempre envolve, também, desenvolvimento socialmente justo, com a distribuição das riquezas e do conhecimento. 206 207 4 ECONOMIA DO MEIO AMBIENTE: BUSCA DA INCORPORAÇÃO DAS EXTERNALIDADES AMBIENTAIS 4.1 CRESCIMENTO ECONÔMICO E DEGRADAÇÃO AMBIENTAL: PROPOSTAS DE CONCILIAÇÃO Pepper (2000, p. 82) destaca a relação entre o desenvolvimento econômico e a afronta ao meio ambiente como uma preocupação central do ambientalismo moderno, por meio da parábola do biólogo Garret Hardin em artigo publicado na Revista Science. Pepper afirma que a consideração de que o bem ecológico pode por todos ser explorado por ser gratuito, sem limitações quantitativas e qualitativas, mostra-se extremamente prejudicial. Goulet (1966, p. 95-96), por outro lado, ressalta a relação entre desenvolvimento e solidariedade na coabitação do mesmo planeta: [...] Nossa terra é única. Todos os homens ocupam-na e habitam-na. A simbiose entre a natureza e o homem decorre da natureza dêsse: os laços que os ligam sâo permanentes. O homem, apesar de ser distinto da natureza, dela faz parte, de certa forma. A ocupação da terra é destino de todos os homens e não privilégio de alguns. Aliás, essa ocupação é ato não só do indivíduo, mas também, de grupos, de organizações coletivas, de unidades societárias. Uma terra para todos os homens e para tôdas as sociedades humanas. O planeta cria laços que ligam os homens a si e entre si. Com isso, a afronta aos recursos naturais passou a ser uma afronta contra humanidade. Assim, esses segmentos da sociedade começaram a questionar o modelo de desenvolvimento econômico, repudiando publicamente as suas conseqüências e reivindicando junto a seus representantes mudanças nas políticas governamentais e no setor produtivo, como forma de minimizar e evitar que novos danos ambientais ocorressem. Para os economistas, por sua vez, grande parte desses problemas ambientais deviamse a uma ineficiência do mercado144 em refletir esses efeitos negativos nos preços dos bens e serviços produzidos. O certo é que a preocupação com os impactos adversos das atividades econômicas sobre o meio ambiente já vinha sendo colocada, com grande freqüência, nos debates entre economistas, à medida que esses profissionais (que, até então, se preocupavam apenas em produzir uma quantidade crescente de bens e serviços) começaram a perceber que o meio ambiente não conseguia mais se reproduzir na mesma velocidade em que estava sendo destruído, muito menos processar todas as formas de lixo, conseqüência das atividades produtivas. Em suma, esses profissionais começaram a perceber que os problemas ambientais 144 Segundo Montoro Filho ineficiência do mercado são todos os fenômenos (p. ex. danos ambientais) que não são levados em consideração num mercado perfeitamente competitivo, a ineficiência do mercado é também chamada de externalidade. “Os mercados falham quando as transações num mercado produzem efeitos positivos ou negativos a terceiros, ou seja, causam externalidades” (PINHO; VASCONCELLOS (ORG.), 1998, p. 237). 207 208 - poluição e destruição dos recursos naturais - estavam ameaçando a própria base de reprodução do sistema produtivo. A partir de então, várias correntes da economia vêm tentando inserir, no funcionamento do mercado, o valor econômico da degradação ambiental como forma de estabelecer medidas que resultem no uso sustentável dos recursos naturais. Passados quase trinta anos da publicação do “Limites do Crescimento”, o pessimismo mostra-se hoje bem menor. Todavia, ainda há questões e problemas que não se podem ignorar. O crescimento econômico, principalmente nos países de terceiro mundo, foi acompanhado de sérios problemas de poluição da água e do ar. Diversas espécies animais e vegetais que podem ser úteis para a humanidade num futuro próximo estão ameaçadas de extinção. Isso seria indício de que estamos fazendo algo errado? E, se positiva a resposta, como se poderá modificar tal maneira de agir? A teoria econômica (assim, como a filosofia, a ecologia e o direito) tenta obter respostas para essas perguntas. O campo da economia (que aplica a teoria a questões ligadas ao manejo e preservação do meio ambiente) é chamado de economia ambiental. Assim, discutiremos alguns dos princípios dessa disciplina no tópico seguinte. 4.2 ECONOMIA AMBIENTAL 4.2.1 ECONOMIA AMBIENTAL E A ECONOMIA DO BEM-ESTAR A economia do meio ambiente e dos recursos naturais apóia-se nos fundamentos da teoria econômica neoclássica, que tem sua análise centrada na alocação ótima de recursos pelo mercado. Essa corrente da economia, segundo Godard (1997, p. 201-202), é o resultado do desdobramento dos conceitos de recursos naturais ou ativos naturais, efeitos externos ou externalidades e bens coletivos, que servem de reserva para unir ao núcleo teórico neoclássico os problemas levantados pela natureza, os quais resultam, em primeiro lugar, da dupla confrontação do produzível e do não produzível, do mercantil e do não mercantil. Os conceitos de que fala Godard (1997, p. 203-209) tratam de particularidades individuais dos bens e serviços naturais, que ajudam a identificar as conseqüências de sua apropriação pelo homem: • Recursos naturais ou ativos naturais - designam o conjunto de bens que não são produzíveis pelo homem. Esses recursos naturais são classificados de renováveis e não-renováveis. Os renováveis são aqueles que podem ser recuperados ao longo do tempo, seja por processo natural ou pela ação humana, tais como, bens vivos (animais, plantas etc.) e a água que se renova através do seu ciclo hidrológico. Os não-renováveis ou recursos esgotáveis são aqueles impossíveis do homem fazer voltar à situação anterior, ou seja, aqueles cujo estoque se encontra na terra e sua formação só é possível de acontecer numa escala de tempo geológica. 208 209 São estes os recursos minerais (ferro, petróleo etc.). Constituem-se fatores de produção.145 • Efeitos externos ou externalidades146 - são os danos ou beneficios ecológicos resultantes da produção e consumo de bens e serviços, que são impostos a terceiros (indivíduo, empresa, coletividade) sem nenhuma compensação, e que não são considerados na formação dos preços desses bens e serviços para sua transação no mercado. • Bens coletivos ou bens públicos - designam os bens para os quais o consumo ou utilização não é exclusivo (recursos naturais como a água e o ar), ou seja, diversos agentes sociais podem consumir ou compartilhar dos mesmos benefícios sem nenhum inconveniente. Para alguns desses bens, constata-se uma impossibilidade, teórica ou contingente, de definir os direitos de uso exclusivos (o titular dos direitos não pode garantir a exclusividade do uso). Por outro lado, retrata que o meio ambiente e o sistema econômico interagem, quer por meio dos impactos que o sistema econômico provoca no ambiente, quer por meio da influência que os recursos naturais, vistos como fatores de produção, causam à economia.147 A economia é disciplina que se encontra marcada pela coexistência de vários “paradigmas”. A classificação mais freqüente distingue as escolas neoclássicas, keynesiana, liberal e marxista. Entretanto, hoje há prevalência para a teoria neoclássica, sua base teórica (princípios do individualismo metodológico, de equilíbrio, e mercado e de ótimo) constitui o cerne do que se chama de “economia do meio ambiente”. Para Tolmasquim (1998, p. 323), a análise neoclássica centra sua abordagem no problema da alocação ótima de recursos. Para ela o sistema de mercado determina um equilíbrio único e estável. A economia do meio ambiente ou economia ambiental, por sua vez, continua trabalhando com os conceitos de recursos naturais ou ativos naturais, efeitos externos ou externalidades, bens coletivos ou bens públicos, incluindo, também, os fundamentos da economia do bem-estar.148 145 “Fator de produção são bens ou serviços que, através do processo produtivo, são transformados em outros bens e serviços” (PINHO, 1998, p. 631). 146 Os fundamentos da teoria padrão da externalidades de Marshall foram desenvolvidos por Pigou, em 1920, ao classificar os efeitos das externalidades em positivos e negativos. O efeito positivo Pigou chamou de economia externa e o negativo, de deseconomia externa. Para as externalidades negativas ou deseconomia externas Pigou propôs que o Estado deveria intervir no mercado cobrando uma taxa, cujo valor deveria ser igual ao valor monetário do custo externo, que corresponde à diferença entre o custo privado (inclui todos os custos de produção - capital, trabalho, terra e capacidade empresarial) e o custo social (impactos ambientais adversos, resultantes das atividades econômicas) (DERANI, 1997, p. 108-109). 147 “Os recursos naturais formam a base onde se assentam todas as atividades humanas. O homem se utiliza desta base seja como insumo para sua produção (minério de ferro para fazer o aço, p.ex.), seja para consumo in natura (um balneário ou praia, frutas ou castanhas oriundas do extrativismo, p.ex.), seja como depósito dos detritos originados pela própria produção ou pelo consumo dos bens produzidos e/ou coletados” (BELLIA, 1996, p. 117). 148 “Pigou (Arthur Cecil), professor de Cambridge no início deste século, desenvolveu o vasto edifício da ‘Economia do Bem Estar’ investigando os efeitos de todo um elenco de políticas econômicas, sociais e fiscais, numa sociedade que ainda não alcançou o total planejamento sobre a renda social e sua distribuição a curto, 209 210 A economia do bem-estar, segundo Bellia (1996, p. 77), é a "parte do estudo da economia que explica como identificar e alcançar alocações de recursos socialmente eficientes [...] ela somente se preocupa com o conjunto de opções aberto à sociedade, que contém as ‘melhores’ soluções possíveis de alocação de recursos". Destaca, portanto, o surgimento de uma economia interventiva, que busca a alocação de recursos socialmente eficientes, com compreensão das deficiências do mercado clássico. A economia do bem-estar e a economia do meio ambiente têm em comum a preocupação com a sociedade, com destaque, respectivamente, para os direitos sociais (direitos de segunda dimensão) e para os direitos ambientais (direitos de terceira geração). Ambas se desenvolveram, principalmente, na elaboração de técnica de valoração econômica das externalidades, sendo que o objeto da economia do meio ambiente é a externalidade perturbadora de um meio ambiente sadio. Assim, a questão do meio ambiente, sob a ótica da economia do meio ambiente, é apreendida em termos de alocação de bens entre agentes em função das preferências destes últimos. No contexto, ora proposto, os recursos ambientais desempenham funções econômicas, entendidas como qualquer serviço que contribua para a melhoria do bem- estar, do padrão de vida e para o desenvolvimento econômico e social. Fica, então, implícita nestas considerações a necessidade de valorar corretamente os bens e serviços ambientais, entendidos, estes, no desempenho das suas funções, seja de fator de produção do sistema produtivo, seja de equilíbrio ecológico. A ênfase, entretanto, dada pela economia ambiental relaciona-se ao primeiro aspecto (meio ambiente como fator de produção), não obstante procure, em segundo plano, garantir o equilíbrio ecológico. 4.2.2 Os componentes da valoração econômica ambiental A valoração monetária do meio ambiente é considerada um componente essencial da economia do meio ambiente, porque parte da suposição de que a "externalidade"149 pode receber uma valoração convincente, com base na preferência do consumidor. Pearce; Turner (1990, p. 3), tratando da evolução histórica da “economia ambiental”, destacam que os problemas ambientais são fenômenos existentes em todos os sistemas médio e longo prazos. Fez a importante descoberta de que é incorreto calcular os custos de produção apenas em termos dos custos que oneram exclusivamente o produtor privado. Há, frequentemente, outros custos de produção, como o desemprego, ou o dano à saúde dos trabalhadores, ou ruído e fumaça que invadem as vizinhanças, que são suportados por outras pessoas. Igualmente é incorreto calcular os ganhos na produção exclusivamente em termos de lucros privados: poderão haver lucros sociais que não cabem ao produtor que dispendeu o capital original [...] Pigou, assim, provou definitivamente que o êxito de uma empresa, ou o resultado da concorrência (mesmo “perfeita”, no sentido convencional), não é necessariamente vantajoso para a sociedade” (BELLIA, 1996, p. 77). 149 “A denominação efeitos externos ao mercado é compreensível, porque se trata de transferências de bens ou prestações de serviços fora dos mecanismos do mercado [...] sendo transferências << a preço zero >>, o preço final dos produtos não as reflete, e por isso não pesam nas decisões de produção ou consumo, apesar de representarem verdadeiros custos ou benefícios sociais decorrentes da utilização privada dos recursos comuns” (ARAGÃO, 1997, p. 33). 210 211 econômicos, independentemente da ideologia política e do nível de desenvolvimento das nações. Destaca, nesse sentido, que os então chamados países socialistas (“países do leste europeu”) têm, também, profundos problemas ambientais, tais como a poluição hídrica dos rios das áreas industriais polonesas e a poluição atmosférica de cidades industriais da Tchecolosváquia. Citando Adam Smith, Thomas Malthus, David Ricardo, John Stuart Mill, autores da economia e da filosofia liberal clássica, e Karl Marx, no âmbito de sua crítica ao capitalismo, Pearce; Turner (1990, p. 4-12) destacam a existência de preocupações humanísticas (“humanistic paradigms”) na economia neoliberal, corporificadas no critério de Pareto (“Pareto criterion”), que representaria uma valoração social do mercado liberal clássico. Assim, assinala que, sob o ponto de vista da economia neoliberal preocupada com o ser humano, o mercado continua sendo significativo, devendo-se, entretanto, moldá-lo para atingirem-se os objetivos sociais relevantes, dentre eles, o de proteção do meio ambiente. Essa atribuição econômica de valores para o meio ambiente pode ser representada pela seguinte fórmula (PEARCE; TURNER, 1990; BELLIA, 1996): Valor econômico ambiental total = valor de uso + valor de opção + valor de existência Onde, de forma sintética, podemos afirmar que: • valor de uso (“use”) - refere-se aos bens e serviços ambientais que são apropriados para consumo imediato. Podem ser de uso direto, quando são resultados da exploração; ou de uso indireto, se esses bens e serviços dependem de funções do ecossistema para serem gerados. • valor de opção (“option”) - refere-se ao valor de uso direto e indireto dos bens e serviços ambientais, cuja apropriação e consumo foram deixadas para o futuro (“valor de uso para os indivíduos do futuro”), como opção de conservar ou preservar esses bens e serviços ambientais. • valor de existência (“existence”) - são valores atribuídos para preservação do bem ambiental por questões morais, religiosas, culturais, éticas etc. Independe de seu uso atual ou futuro, são valores não determinados ou determináveis pela lógica do mercado. Destarte, a avaliação monetária dos danos ou benefícios constitui um componente essencial da Economia do Meio Ambiente. Na ausência de tais avaliações, a referência à eficiência econômica e ao ótimo se tornam um ideal puramente teórico. Com efeito, pelo princípio geral da racionalidade econômica, a economia, ciência da gestão dos recursos raros, tem por objetivo gerir com o máximo de eficiência a fim de obter um máximo de bem-estar, que corresponda a uma situação de “Ótimo de Pareto”.150 150 “A fim de remediar estas deficiências do mercado. Pigou em 1920 preconizava a intervenção do Estado sob a forma de taxação das externalidades negativas. No ponto correspondente ao ótimo de Pareto, a taxa deve ser de um valor igual ao valor monetário do custo externo, isto é, a diferença entre o custo privado e o custo social [...] o mercado deve presidir à alocação dos custos, com a condição de ser corretamente ‘informado’” (TOLMASQUIM, 1998, p. 326). 211 212 Como os recursos são escassos, a alocação ótima será aquela que maximiza o bemestar de produtores e consumidores, subordinada às limitações das quantidades disponíveis. Um mercado de concorrência perfeita151 seria capaz de atender esse ótimo, pois a maximização do bem-estar de cada um dos agentes econômicos estaria maximizando o bem estar do conjunto da sociedade, ou seja, estaria alocando os recursos disponíveis em termos socialmente e ambientalmente ótimos. A partir deste ponto, ter-se-á atingido o ótimo de Pareto, quando as atividades dos agentes econômicos forem capazes de aumentar o bemestar de pelo menos um indivíduo, sem que alguém seja prejudicado (BELLIA, 1996, p. 77). Como bem expressa o nobel de economia Sen (1999, p. 44-46), tratando da economia do bem-estar e do ótimo de Pareto: A otimilidade de Pareto às vezes também é denominada “eficiência econômica”. Essa expressão é apropriada de um ponto de vista, pois a otimalidade de Pareto concerne exclusivamente à eficiência no espaço das utilidades, deixando de lado as considerações distributivas relativas à utilidade. Porém, em outro aspecto é inadequada, uma vez que todo o enfoque da análise neste caso continua sendo a utilidade [...] A otimalidade de Pareto capta os aspectos da eficiência apenas do cálculo baseado na utilidade (grifo nosso). Na realidade, a determinação desse ótimo exige o conhecimento de duas funções: a de custo total dos danos causados pela poluição e a de custo total da luta contra a poluição. Ora, se os custos da luta contra a poluição podem ser calculados de modo mais fidedigno, os outros dados, por serem externalidades negativas, não são conhecidos ou ao menos avaliados espontaneamente pelo mercado. Por conseqüência, a ausência de uma avaliação monetária dos danos causados pela poluição dificulta a determinação do Ótimo de Pareto. Em economia, a noção de dano ou benefício repousa sobre a expressão das preferências dos indivíduos: preferência para evitar uma perda (dano) ou para obter um benefício. Essas preferências se manifestam sobre o mercado e se expressam sob a forma do consentimento de pagar, transformando todos os valores em uma única forma de medi-lo: a preferência do indivíduo em pagar determinado preço no mercado.152 A mensuração do valor de uso, primeira parcela do valor ambiental total não é, portanto, simples. Mostra-se complexa, mas não torna inviável a sua utilização de forma estimada, nem a possibilidade de avanços metodológicos nesse campo. As deficiências devem-se ao desconhecimento da extensão e risco dos próprios impactos ambientais, que impede a identificação de todos os custos resultantes, e à desinformação dos indivíduos, o que reduz a percepção destes impactos. 151 “Na prática, o mercado perfeitamente competitivo é quase inexistente, em prol de outras formas, que são dominantes, envolvendo os monopólios (um só produtor); os oligopólios (poucos produtores); os monopsônios e oligopsônios (apenas um ou poucos compradores). Nestes casos, os agentes podem fixar preços maiores ou menores (conforme o caso) dos que seriam os vigentes no mercado em caso de concorrência perfeita” (BELLIA, 1996, p. 78 e 79). Como conseqüência, em uma situação que não seja de concorrência perfeita não são alcançados os pontos ótimos de bem-estar. 152 “Economic assigned values are expressed in terms of individual willingness to pay (WTP) and willingness to accept compensation (WTA)” (PEARCE, 1990, p. 22). “De fato, na abordagem utilitarista todos os diversos bens são reduzidos a uma magnitude descritiva homogênea (como se supõe que seja a utilidade), e então a avaliação ética simplesmente assume a forma de uma transformação monotônica dessa magnitude” (SEN, 1999, p. 44-46). 212 213 Outro aspecto da mensuração de valores para bens ambientais envolve a segunda parcela – os "valores de opção". Esses correspondem ao valor relacionado ao uso potencial de um recurso, o qual não se utiliza de imediato, porque se deseja guardar para uma eventual utilização posterior. Nele, se encontra presente o elemento transgeracional do direito fundamental do desenvolvimento e do meio ambiente (direitos fundamentais de terceira geração). Ou seja, os indivíduos dão um valor à preservação de uma floresta, de um mangue ou qualquer outro patrimônio natural, a fim de manter aberta a opção de utilização deste recurso, mesmo que esta hipótese seja pouco provável ou sua execução esteja longe no tempo. A essa opção pode-se adicionar uma opção pelos outros, com motivações altruístas, que fazem com que se confira um preço à conservação de um patrimônio para as gerações futuras (valores de legado), ou para os outros indivíduos (valores altruístas). Já os valores de existência (intrínsecos, por não estarem sujeitos ao uso) não são ligados nem ao uso efetivo (primeira parcela), nem à opção de uso (segunda parcela); eles dizem respeito ao valor conferido à existência mesma de um patrimônio ou recurso, não levando em conta qualquer possibilidade de usufruto direto ou indireto, presente ou futuro. Trata-se da idéia de que certas coisas têm um valor, em si, independente do uso efetivo (valor de uso) ou potencial (valor de opção); mesmo que não se verifique nenhuma utilidade para determinado recurso ambiental, um valor intrínseco lhe é conferido. Estar-se-á, neste ponto, na fronteira entre a esfera econômica, que só conhece o “valor de troca e o valor de uso” e a esfera ecológica da conservação. O valor de existência representa, portanto, um valor não determinado ou determinável pelo mercado, mas que nele deve ser inserido para internação de um custo socialmente relevante. 4.2.3 Métodos de valoração econômica para determinação do “valor de uso” e de “opção” Podemos distinguir duas categorias de métodos de valoração monetária do meio ambiente: os indiretos e os diretos. Os métodos indiretos repousam sobre a utilização de um mercado de substituição definido pela análise dos compartimentos reais: por exemplo, estima-se o valor recreativo, atribuído pelas pessoas que usufruem das amenidades de uma floresta a partir das despesas de transporte ou de equipamento que estes agentes aceitam pagar para ter acesso à floresta. A hipótese aqui é que os agentes aceitam pagar até o ponto onde a inutilidade da despesa equivale à utilidade da amenidade. Medem-se, assim, os preços inferiores ou iguais ao valor pesquisado. Os métodos diretos consistem na simulação de um mercado; fala-se de mercados contingentes (geralmente pela realização de uma pesquisa utilizando um questionário, para determinar aproximações monetárias do excedente do consumidor). Duas técnicas podem ser utilizadas, pedindo-se às pessoas interrogadas que declarem: • qual a soma que elas aceitariam pagar para dispor de um melhor meio ambiente; se determina, assim, o “preço de compensação” (ganho ambiental); 213 214 • quanto elas desejariam receber pela perda de uma amenidade; se trata aqui de uma avaliação do “preço equivalente na renda”(perda ambiental) (MARQUES; COMUNE, 1996, p. 41-42). Na prática, os resultados diferem sensivelmente na adoção de uma ou de outra técnica. A razão freqüentemente invocada tem relação com a assimetria psicológica entre os ganhos (preço de compensação) e as perdas (“preço equivalente na renda”). Pode-se considerar, igualmente, que a preferência pela perda ou pelo ganho da preservação ambiental é ligada à renda disponível. Os agentes podem considerar a manutenção das amenidades existentes com um valor quase infinito, porque não-substituível, (noção de valor patrimonial), enquanto o consentimento de pagar para ter acesso a novas amenidades é, a priori, limitado pela renda disponível. Em resumo, os métodos diretos são utilizados com maior freqüência para estimar os valores dos bens e serviços ambientais, através de informações relacionadas ao mercado ou à manifestação da preferência do consumidor. O método indireto, por sua vez, procura valorar, por meio de dados e informações científicas, o prejuízo que as alterações da qualidade ambiental causam à saúde humana, bem como identificar e estabelecer a relação entre essas alterações ambientais - resultantes da forma de apropriação e consumo dos bens ambientais e a saúde humana. 4.2.4 Críticas metodológicas e éticas à valoração ambiental Inicialmente, podemos agrupar as críticas em dois grupos: o primeiro, vinculado à metodologia da valoração ambiental (e às dificuldades dela decorrentes); o segundo, que transcende as considerações econômicas quantitativas e qualitativas, apresenta outros questionamentos de cunho ético e filosófico. As maiores críticas em relação aos métodos de valoração ambiental estão relacionadas justamente à sua capacidade de definir, com base na preferência do consumidor, se um determinado bem deve ou não ser utilizado até seu total esgotamento, conservado para uso futuro ou explorado de forma racional. E, ainda, um outro fator de suma importância é que as decisões tomadas, na atualidade, vão atingir as gerações futuras, que estão fora do mercado atual para manifestarem suas preferências. Assim, em primeiro lugar, estamos falando do bem-estar de quem? Podemos falar do incremento do bem-estar da presente geração, mas não podemos saber seus efeitos sobre os custos que serão transferidos para as gerações seguintes. Se soubéssemos, quantas gerações levaríamos em conta? Uma geração. Duas? Três? Sinteticamente, podemos listar implementação da valoração monetária: os principais obstáculos metodológicos à • a complexidade de certos métodos; • a falta de dados de base; • as incertezas devido às características inerentes a técnicas, tais como as avaliações contingentes e indiretas; 214 215 • as dificuldades de adequação a contextos socioculturais (por exemplo, as pesquisas sobre o consentimento de pagar são talvez melhor adaptadas ao contexto dos países desenvolvidos e necessitam de adaptações para serem aplicadas aos países em desenvolvimento); • sua operacionalização real supõe, com efeito, que os agentes pesquisados encontram um sentido para as questões, uma consciência ecológica, ausente de boa parte da população; • pressupõe-se ainda que os agentes digam o que pensam, em outras palavras, sejam sinceros nas informações apresentadas. Por outro lado, é notório que o fato de atribuir-se um valor monetário a bens não comerciais, notadamente a fauna, a flora e a própria vida humana, suscita violentas oposições de ordem ética e filosófica já analisadas na primeira parte deste trabalho. Assim, a economia ambiental vincula-se a uma visão “antropocêntrica” do meio ambiente.153 Permite, entretanto, a discussão sobre a existência de “direitos” de outras criaturas não humanas em uma visão chamada “ecocêntrica” na noção de valor de existência, na qual a Natureza é vista como algo que transcende ao uso das gerações (humanas) presentes e futuras. Entretanto, não se pode esquecer, como assinala Pearce (1990, p. 22), que a estimativa monetária do bem ambiental, pode constituir-se, com as limitações já apontadas, uma ferramenta poderosa e eficaz para a proteção ambiental. Por fim, deve-se assinalar que a economia do meio ambiente, tal qual se desenvolve atualmente, após um amadurecimento de duas décadas, não tem nem a vocação nem o poder de resolver a totalidade dos problemas. Permite, no entanto, uma ponte de aproximação de dois direitos fundamentais, intimamente vinculados no conceito de desenvolvimento sustentável: o meio ambiente e o crescimento econômico. 153 Segundo Thomas (1988, p. 34-38), a idéia de dominação do homem sobre as demais crituras vem da antiguidade. A diferenciação entre homem e animal ocorreu ao longo da história: “homem é animal que vê; animal que fabrica utensílios; animal religioso; animal que cozinha (antecipando Lévi-Strauss); foi o bípede implume; animal que forma opiniões; animal que carrega um bastão”. 215 216 5 USO DE INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NAS POLÍTICAS AMBIENTAIS: INTEGRAÇÃO DO JURÍDICO E DO ECONÔMICO 5.1 INSTRUMENTOS INTRODUÇÃO ECONÔMICOS: Pigou (1946, p. 25) foi o autor pioneiro na aplicação dos conceitos da microeconomia neoclássica ao exame de questões ambientais em sua clássica obra “The economics of welfare”, publicada em 1920, ao considerar o fenômeno das externalidades (já desenvolvido de forma incipiente por seu Professor Alfred Marshall), verificou a tendência no sentido da exploração predatória dos recursos naturais oriunda de uma “falta de desejo em relação ao futuro.” A internalização das externalidades consiste em fazer os seus responsáveis pagarem pelos custos coletivos ou sociais que elas acarretam, corrigindo as diferenças entre o ótimo privado e o ótimo social, constituindo uma importante atividade estatal à correção desta diferença provocada pelo mercado.154 O uso de Instrumentos Econômicos (IE)155 na política ambiental vem ocorrendo de forma crescente em muitos países como mecanismo para remediar as deficiências do mercado, no que se refere à internalização das externalidades negativas; melhoria do desempenho da gestão ambiental,156 complementação das estritas abordagens dos instrumentos tradicionais (padrões ambientais, licenciamento e sanções legais) e aumento da receita para prover fundos para atividades sustentáveis. Klemmer (1992, p. 54) afirma: Os instrumentos resumidos sob este título se inscrevem na categoria dos instrumentos econômicos que assumiram grande atualidade política e que procuram ou bem uma melhor atribuição das escassas margens de aproveitamento ambiental, ou então reduzir a superexploração dos recursos ambientais através de impulsos econômicos, isto é, através de elementos seletivos de benefícios e 154 A noção de um ótimo privado e de um ótimo público, bem como da distinção entre eles podem ser extraídos de Pigou, cético em relação aos benefícios sociais do mercado ao demonstrar que os indivíduos tendem a maximizar as suas satisfações presentes, na distinção feita entre o produto marginal privado líquido e o produto marginal social líquido: “The Marginal Social Net Product is the total net product of physical things or objective services due to the marginal increment of resources in any given use or place, no matter to whom any part of this product will accrue ... It might happen ... that costs are thrown upon people not directly concerned ... The Marginal Private Net Product is that part of the total net product of physical things or objective services due to the marginal increment of resources in any given use or place which accrues in the first instance – i.e. prior to sale – to the person responsible for investing resources there” (PIGOU, 1946, p. 26-27). 155 Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade ambiental (OECD, 1989, p. 12-14). 156 “A noção de gestão assume na França diversas significações. A mais antiga é técnica e se inscreve no contexto dos procedimentos previstos para a exploração das florestas submetidas a um regime jurídico particular, denominado ‘regime florestal’. Esta noção situa-se, portanto, na confluência da lógica profissional dos encarregados da gestão florestal e de uma lógica administrativa estatal, que se exerce em nome dos interesses superiores da nação” (GODARD, 1997, p. 204). 216 217 perdas (com orientação ecológica). Em outra ordem de coisas, quem advoga por este tipo de instrumentos econômicos procura por << o carro da ecologia diante dos poderosos bois da economia>>, para poder movê-lo melhor e mais rapidamente (no sentido de eficiência ecológica). Como instrumento de correção das deficiências do mercado, o uso dos IE tem permitido a internalização da externalidade.157 Vinculam-se, pois, a economia ambiental na busca de meios econômicos de correção dos mecanismos do mercado. Na realidade, o que se vem observando é que esses instrumentos têm ajudado os governos a superar as limitações apresentadas quando da aplicação dos instrumentos tradicionais de “comando e controle”.158 O êxito de uma política ambiental depende dos instrumentos de controle adotados para minimizar ou eliminar os custos ambientais ou para fazer com que a unidade causadora os assuma integralmente. O controle direto exerce-se por meio da regulamentação legislativa e administrativa envolvendo composição de produtos, quantidade máxima de emissão de efluentes, limites impostos à utilização dos “bens livres”, dever de uso de equipamento anti-poluentes, dentre outras, cujo descumprimento é sancionado por multas, interdições e fechamento de unidades produtoras. Em outras palavras, o tradicional poder de polícia inerente à Administração Pública.159 Um exemplo de instrumento de controle é a previsão da legislação brasileira da necessidade de controle prévio do Poder Público para a instalação de atividades industriais, comerciais e agrícolas. A exemplo das Leis Federais 6.830/80, 6.902/81 e 6.938/81, que dispõem, respectivamente, sobre a implantação de industrias em áreas críticas de poluição, criação e instalação de atividades em áreas de proteção ambiental e sobre a Política Nacional de Meio Ambiente. Exigem, pois, licenciamento das atividades. Nesse sentido, a título de exemplo, a Lei 6.938/81, no artigo 9º, inciso IV, estabelece ser o “licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras” exemplo típico de um dos instrumentos dessa política do meio ambiente de “comando e controle”. Inquestionável a utilidade desse mecanismo repressivo. Contudo, possui deficiências marcantes como a de que: 157 “[...] a intervenção governamental, tão execrada pelos neoclássicos, parece ser necessária quando se trata de problemas relacionados ao meio ambiente. Sugerem, então, a adoção de mecanismos de mercado (instrumentos que operam como incentivos econômicos) que simulam um ‘preço’ da degradação ambiental que os poluidores devem incorporar aos seus custos privados, ou seja, acabam por ‘internalizar’ as externalidades” (ALMEIDA, L., 1998, p. 28). 158 Os instrumentos de regulação direta aplicados à área ambiental são também conhecidos como políticas de “comando e controle” (C&C), uma vez que impõem modificações no comportamento dos agentes poluidores por meio de normas de cunho restritivo pleno ou parcial, tal como: padrões de poluição para fontes específicas; controle de equipamentos, processos e produtos e uso de recursos naturais e proibição total ou restrição de atividades baseada em determinados parâmetros. “A tradição de aplicar está ‘filosofia’ou enfoque (política de comando e controle) tem raízes históricas no sistema de redes de esgoto urbano e outros programas de higiene pública do século XIX (exemplos: Reino Unido e Holanda)” (OCDE, 1989, p. 23). 159 Gasparini (1989, p. 98) conceitua como “a atribuição de que dispõe a administração para condicionar o uso, o gozo e a disposição da propriedade e o exercício da liberdade dos administrados no interesse público ou social” Freitas, J., (1995, p. 52), por outro lado, dá ênfase na função pública de harmonização de diferentes interesses privados, afirmando que: “considerar-se-á poder de polícia como sendo qualquer restrição ou limitação coercitiva e privativamente imposta pelo Estado à esfera de atuação privada, colimando viabilizar, ordenadamente o convívio de múltiplos exercícios de iniciativas particulares, não raro antagônicas entre si”. 217 218 • o infrator pode contar com a possibilidade de escapar da punição; • o sistema de multas busca coibir a prática de atos excepcionais, não deve ser aplicado corriqueiramente, sob pena de desestímulo ao seu aspecto preventivo e desgaste do seu aspecto punitivo; • a aplicação de penalidade é tarefa de grande dificuldade pois, se branda, estimula a reiterada prática de infrações, se rigorosa pode inviabilizar a empresa. Depois de um longo período no qual os controles diretos foram quase exclusivos, surgem os instrumentos econômicos. A utilização dos Instrumentos Econômicos (controle indireto do Estado) apresenta-se como outra forma de trato da questão sob um enfoque econômico de incentivo ou de oneração. O controle por meio das finanças públicas consiste na imposição tributária sobre as unidades poluentes ou na concessão de incentivos fiscais aos que adotem medidas preventivas ou corretivas da poluição. Aos agentes econômicos é indicado o custo social pelo desgaste ambiental ocasionado por suas atividades. Assim, a denominação de “instrumentos econômicos” e sua intervenção no mercado econômico da oferta e da procura não devem induzir ao erro de que não se trata de forma estatal interventiva no meio ambiente.160 Desse modo, os IE, instrumentos estatais de intervenção econômica, estão divididos em dois grandes grupos: • o primeiro, que atua em forma de incentivos (subsídios, isenções de impostos e redução de carga tributária); e • o segundo, que atua na forma de oneração (tributos, taxas e tarifas, e licenças negociáveis ou direitos de propriedades). 5.2 INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NA FORMA DE INCENTIVOS ESTATAIS A implementação dos IE do primeiro grupo implica em perdas de receitas ou comprometimento de recursos do governo. Sua aplicação pode ser feita de várias formas, como, por exemplo, se as empresas poluidoras investirem em equipamentos de prevenção e controle da poluição, poderão ser beneficiadas com deduções de impostos, ou dedução do 160 Instrumentos econômicos “[...] são prestações monetárias obrigatórias do direito público que o Estado cobra para poder cumprir seus objetivos em matéria de proteção ambiental. Com respeito ao objetivo perseguido por sua implementação, pode-se distinguir, basicamente, entre funções extra-fiscais e funções fiscais. No caso das primeiras, os chamados direitos de intervenção, trata-se fundamentalmente de influir sobre condutas relevantes para o meio ambiente: procedimentos, redução das emissões, repressão de produtos contaminadores etc. Entretanto, os rótulos de <<econômico>> ou de <<mercado>> não devem induzir a erro, visto que se trata de uma forma de administração estatal do meio ambiente”. (KLEMMER, 1992, p.55). “In order to avoid the distortions in international trade which might result from failure to harmonize the environment policies pursued in Member countries and to facilitate co-operation in this field [...] consists in analysing the economic instruments with which the policies can be effectively applied. The problem of allocating environmental costs has thus come to be recognized as a key problem, bringing together the statement of objectives, the quest for efficiency, and in the international sphere, the harmonization project [...]” (OCDE, 1975, p. 12). 218 219 valor dos gastos na compra desses equipamentos, ou com financiamentos subsidiados para sua aquisição, ou, ainda, podem ser autorizadas a fazerem depreciação acelerada desses equipamentos. As que investem em produção de energia podem receber recursos monetários a fundo perdido, ou serem isentas de imposto de renda federal. A OCDE constatou que esses tipos de IE estão sendo largamente utilizados pelos países membros, o que levou aquela organização a alertar para o fato de que, nas cláusulas do Princípio Poluidor Pagador (PPP), está previsto que os incentivos de prêmios poderiam ser concedidos apenas em dois casos: no primeiro caso, durante o período de transição necessário para que os agentes se adaptem à política nacional de meio ambiente; e no segundo caso, quando a sua concessão objetiva redução dos níveis de poluição superior ao que é possível mediante regulação direta.161 O cuidado na aplicação desse tipo de IE deve ser observado, para que sua concessão não desvie seus objetivos, que são de reduzir os níveis de poluição. Caso contrário, os governos podem terminar beneficiando os poluidores e favorecendo a manutenção do status quo da poluição. Interessante perceber a conexão desse pensamento com o que, na Economia, foi desenvolvido por Pigou, para quem, na falha do mercado, o Estado deveria introduzir uma subvenção ou incentivo em caso de economia externa (efeitos sociais positivos) e um sistema de tributação em caso de deseconomia externa (efeitos sociais negativos). A Constituição Federal de 1988, em seu art. 174, ao enumerar as formas de atuação do Estado, na condição de agente econômico, destacou a função de incentivo, nos termos do art. 174, verbis: Art. 174 - Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado (grifo nosso). Assim, o incentivo à atividade econômica é um dos princípios da ordem econômica do Estado brasileiro e, ao contrário das anteriores formas intervencionistas ou estatizantes, de conotação radical, processa-se moderamente, como bem assinala Bastos (1988, p. 108), ao afirmar que o “incentivo é a mais moderada forma de presença do Estado na economia”. Ao incentivar a atividade econômica ecologicamente correta, está, pois, o Estado, a concretizar o princípio constitucional que fundamenta nossa ordem econômica, viabilizando a efetivação dos valores sociais e ambientais a serem assegurados pelo Estado Democrático de Direito. Esta, aliás, a lição de Moreira Neto (1992, p. 419), quando afirma: Dentro de suas respectivas competências tributárias, respeitadas as condicionantes constitucionais do Sistema, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão legislar amplamente suas respectivas políticas fiscais de Fomento Público. É o campo da função metafiscal do tributo; não com objetivo precípuo de arrecadar recursos, mas de agir como instrumento de estímulo ou desestímulo de atividades privadas, embora seja vedado o abuso desse poder [...] As modalidades que podem assumir os incentivos fiscais 161 “A OCDE não vai muito longe na discriminação dos intrumentos adequados a executar o PPP limitando-se a esclarecer que as medidas decididas pelas autoridades públicas para que o ambiente esteja num estado aceitável, não devem ser acompanhadas de subsídios, que criariam distorções significativas ao comércio e investimento internacionais” (ARAGÃO, 1997, p. 168). 219 220 não permitem uma classificação satisfatória, pelo menos até o momento... Modalidade de muito emprego é a isenção parcial do imposto sobre a renda de pessoas físicas ou jurídicas quando estas aplicarem ou reaplicarem seus recursos, direta ou indiretamente, em certas atividades econômicas. Assim, o Estado reconhece o esforço do cidadão em comportar-se positivamente, em cumprir a lei ambiental ou ir além dos parâmetros nela previstos (comportamento positivo seria recompensado) e não apenas castiga o comportamento negativo; tributa-se menos ou não se tributa – a título de prêmio – quem não polui ou polui relativamente pouco. É essa doutrina recompensatória que justifica, em geral, os incentivos fiscais e os incentivos fiscais “verdes”, tornando-os compatíveis com o princípio da igualdade. Portanto, o objetivo do incentivo estatal econômico é muito semelhante ao da oneração estatal, sendo a outra “face da mesma moeda” de orientar a atuação dos agentes econômicos para a proteção ambiental. 5.3 INSTRUMENTOS ECONÔMICOS NA FORMA DE ONERAÇÕES ESTATAIS Quanto à aplicação dos IE e seu papel de complementaridade em relação aos instrumentos tradicionais de “comando e controle”, a que se refere o segundo grupo (tributos, taxas e tarifas, certificados, licenças negociáveis ou direitos de propriedades), deve-se destacar a posição de Klemmer (1992, p. 54), pois, na prática, a função primordial dos: [...] gravames com caráter extrafiscal é reguladora. Transformam-se em instrumento do controle microeconômico, consistindo o seu objetivo geralmente em reduzir as emissões por complexo industrial unitário. Servem, amiúde, de instrumentos complementares de uma acelerada implementação de medidas jurídicas, ou então servem para compensar déficits na sua execução. Assim, constata-se que esses mecanismos influenciadores do mercado permitem uma integração das dimensões jurídica (dever ser) e econômica (ser) do meio ambiente. As onerações estatais consistem em mecanismos de cobrança, aplicados diretamente sobre o nível de poluição que excede ao padrão estabelecido, ou também sobre o uso de um recurso natural acima do permitido. Sua aplicação é viabilizada através de um imposto, taxa, contribuição, multa ou tarifa previsto em lei, cujo valor pode ser calculado com base nos efeitos ecológicos de certos usos de recursos naturais ou nas emissões realizadas por processos industriais. No caso das emissões de poluentes hídricos, a aplicação de tributação: [...] tem sido usada em países como Alemanha, França, Noruega, Suécia, etc, onde cada indústria poluidora é taxada pela contaminação provocada pelos efluentes líquidos industriais que despeja nos rios. O controle é rígido e o valor é considerável. Na França, a tributação é um desdobramento natural da legislação que existe desde 1964, e as indústrias podem optar entre pagar taxas equivalentes à poluição real que provocam, ou pagar por estimativa. Normalmente os agentes preferem pagar exatamente o equivalente à sua poluição, o que os leva 220 221 a pagar também por seu controle. As cargas poluentes são classificadas conforme sua toxidade numa medida equivalente denominada equitox, que serve de base para o cálculo do valor do imposto a ser pago pelo poluidor (BELLIA, 1996, p. 200). Logo, as taxas e tarifas162 têm sido utilizadas principalmente como instrumentos complementares de gestão, visando implementar o princípio do poluidor pagador. Segundo Martín Mateo (1998, p. 55): El principio << el que contamina paga...>> constituye uma auténtica piedra angular del Derecho Ambiental. Su efectividade pretende eliminar las motivaciones económicas de la contaminación, aplicando a la par los imperativos de la ética distributiva. Se adoptó por la CEE em 1973 y antes lo fue por la OCDE el 26 de mayo de 1972. La aplicación de este principio pretende evitar em primer lugar que se produzcan daños ambientales, es decir, imponiéndose que se pague para no contamnar, lo que ordinariamente venía sucediendo com la tasa de recogida de basuras domésticas o com el canon de saneamiento incorporado al recibo del agua, y em el supuesto de que éstos hayan llegado a materializarse, que se remedien, o que se compensen, y que se sancione em su caso a los autores. Conforme enfatiza Aragão (1997, p. 132), saber, em cada caso concreto, quem é o poluidor, nem sempre é tarefa fácil: Quando a poluição ocorra no decurso do processo produtivo de um bem, e em consequência do processo produtivo dele, o poluidor será certamente o produtor do bem, mas se é o produto em si mesmo que é poluente (pela sua composição, pelo tipo de utilização que normalmente lhe é dada, ou pela sua deterioração enquanto resíduo) ou ainda no caso de tanto o processo produtivo como o produto ou processo consumptivo serem simultaneamente poluentes. O uso de taxas e tarifas, apesar das dificuldades de sua implementação, pode permitir que a cobrança venha a ter maior incidência sobre as classes de renda mais alta, contribuindo, também, para evitar acentuação das distorções sociais. Um outro ponto favorável à utilização desses IE é que a cobrança de taxas e de tarifas permite não só internalizar os custos ambientais nos custos privados de produção e consumo, mas também viabilizar um controle ambiental com custos mais baixos, com maior eficiência e, ainda, induzir a mudanças tecnológicas, tanto no processo produtivo, quanto na redução do consumo de bens e serviços ambientais. Como espécie sui generis de oneração estatal figuram as licenças negociáveis. São cotas, permissões ou tetos de poluição, estabelecidos pelo órgão ambiental para uma determinada área ou região. A definição de tipos de licenças negociáveis exige que o órgão ou instituição, responsável pelo controle da qualidade ambiental, estabeleça um nível de padrão de qualidade a ser alcançado, de acordo com o total de emissão de poluentes a serem permitidos para aquela área ou região. Posteriormente, o total dessas emissões é dividido e 162 Taxas têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição. Tarifa é utilizada quando o preço é apresentado em forma de tábua, catálogo, pauta, lista, tabela, ou qualquer exposição em que se fixem quotas que originam “preços públicos”. As taxas e tarifas teoricamente diferem uma da outra, no entanto, na economia ambiental são consideradas como palavras sinônimas. Esse estudo será retomado de forma mais detalhada na última parte deste trabalho quando se analisar a natureza jurídica da cobrança pelo uso da água. 221 222 levado ao mercado para serem negociadas, ou são concedidas gratuitamente aos poluidores localizados na área ou região pelas autoridades competentes. De posse dessas licenças, os poluidores passam a ter o “direito”, reconhecido pelo Estado, de poluir por um determinado período aquela área que foi previamente definida, ou poderão utilizar essas licenças a qualquer momento no mercado, para negociar, vender ou comprar de outros detentores do direito de propriedade, sem interferência do governo, seguindo apenas as regras pré-estabelecidas no período de sua aquisição. De acordo com Bellia (1996, p. 204), essa abordagem apresenta um baixo custo operacional para o governo, estabelecendo um mercado de licenças de poluição. As licenças negociadas têm sido utilizadas, dentre outros países, nos Estados Unidos, Alemanha, Canadá e Austrália. “O que fica evidente da experiência dos EUA é que as licenças devem ser sempre introduzidas como complemento às regulações diretas e não como alternativas a esta” (ALMEIDA, L., 1998, p. 11). No caso brasileiro, podia-se considerar, ainda, pouco significativo o uso de instrumentos econômicos na política ambiental. Destaca-se, porém, contemporaneamente, a iniciativa da cobrança pelo uso de água, nos termos da política nacional de recursos hídricos, estabelecida pela Lei 9.433/97, conforme análise a ser feita na Quarta Parte deste trabalho. 222 223 PARTE III O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR: SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO MEIO AMBIENTE O valor do meio ambiente na ecologia e na economia. Críticas de cunho ético às posturas utilitaristas do meio ambiente. O direito como instrumento social de formação e controle do mercado na proteção ambiental. A necessidade de integração normativa das esferas social, econômica e ecológica no desenvolvimento sustentável. “Há três tipos de governo: o que faz acontecer, o que assiste acontecer e o que nem sabe o que acontece”. George Santayana “O dia, a água, o sol, a lua e a noite – coisas que não tenho de comprar com dinheiro”. Plauto 223 224 1 O VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA 1.1 O VALOR E SUAS CARACTERÍSTICAS NA ONTOLOGIA AXIOLÓGICA DE JOHANNES HESSEN Todos os homens valoram. Conforme afirma Hessen (1967, p. 40): “Todos nós valoramos e não podemos deixar de valorar. Não é possível a vida sem proferir constantemente juízos de valor. É da essência do ser humano conhecer e querer, tanto como valorar”. O que significa, porém, dizer que alguma coisa tem valor? Hessen (1967, p. 40-42) responde que determinados bens nos parecem valiosos por satisfazerem determinadas necessidades elementares da vida. Assim, água, pão, vestuário, saúde, etc. são valores positivos, que nos parecem valiosos por satisfazerem determinadas necessidades humanas. Entretanto, a esfera de valores não se cinge a estes. Há, segundo Hessen (1967 p. 42), outros valores chamados éticos, estéticos e religiosos, que também satisfazem necessidades não vitais mas espirituais; não do homem externo, mas do homem interior, verbis: [...] Poderemos dizer: valor moral é tudo aquilo que satisfaz as nossas necessidades ou exigências morais; valor estético ou religioso tudo aquilo que satisfaz as nossas necessidades ou exigências estéticas ou religiosas. Mas ao mesmo tempo, dizendo isto, é aqui que se nos revela como, no fundo das coisas, é afinal insuficiente aquela determinação que fizemos do conceito de valor. Na verdade, nela não se diz em que consiste o conteúdo daqueles valores; diz-se simplesmente que eles produzem determinados efeitos. Por outras palavras: o objecto daquela determinação deu-nos apenas a noção do seu efeito psíquico mas não da sua essência. [...] Se fazemos a afirmação: <<alguma coisa tem valor>>, teremos proferido um juízo de valor. Um <<juízo de valor>> (Werturteil) é, porém, diferente de um juízo de existência ou de essência (Seinsurteil). Assim, ao afirmar que os valores buscam a satisfação das necessidades do homem externo e do homem interno, expressam-se, segundo Hessen (1967, p. 42-44), os “efeitos” daqueles valores, mas não a sua “essência”. Nessa abordagem, Hessen (1967, p. 47) define valor como “a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um sujeito dotado de uma certa consciência capaz de a registrar”. Assim, metodologicamente, Hessen utiliza a palavra “valor”, em um sentido subjetivo, se “x” tem valor, tem valor para alguém. Valor, nessa visão, torna-se algo existente para um certo sujeito. Poder-se-ia, indevidamente, imaginar que Hessen adota posição subjetiva e relativa dos valores. No entanto, não se trata de posição relativista pura do valor, para Hessen (1967, p. 54); o valor refere-se não ao indivíduo (visto concretamente em um determinado ser), mas ao gênero homem (sujeito abstrato). Procura, dessa maneira, mitigar a noção de que se filia ao 224 225 subjetivismo axiológico, ao mesmo tempo em que evita o objetivismo radical de Nicolas Hartmann. Trata, pois, de destacar o aspecto referencial do valor e não uma visão relativista do mesmo. No mesmo sentido, Ruyer (1969, p. 78) assinala que é impossível descrever o valor, abstraindo-se de um sujeito, verbis: [...] En este sentido preciso el valor es subjetivo. Un ideal, es el ideal de um sujeto. El valor o la forma de um objeto precioso, se aprehende por um sujeto. La gracia o la belleza de uma actitud, lo cómico de uma situación, la rectitud de um razonamiento, la utilidad de um material, deben ser captadas por um sujeto. Com relação à diferença entre o valor depender de um sujeito e ser arbitrário, Ruyer (1969, p. 81) afirma: [...] Un cuadro o un disco no pueden existir axiológicamente sino em la consciencia del artista o de su público, pero esto no quiere decir que su valor pueda ser decretado arbitraria o convencionalmente. El valor no puede sino definirse em uma subjetividad, sin ser “subjetivo”em el sentido de “arbitrario’, “convencional”, “falso”o “irreal”. El valor puede implicar siempre uma relación sujeto-objeto o sujeto-ideal o sujeto-sujeto sin ser por ello mismo relativo. El amor exige al menos dos personas; la admiración por la obra de um pintor, dos personas y uma cosa y em este sentido es “relación”,pero no se debe jugar com la palabra concluyendo que ela también es siempre relativa. Afirma Ruyer, como Hessen, portanto, que o valor é atributo relacional. A realidade do valor não pertence nem ao sujeito, nem ao objeto, pertence ao sistema de interação: sujeito -> objeto -> escala valorativa (idéia do valor). Ao relacionar valor e ser e tratar da realização do valor na Cultura, esclarece Hessen (1967, p. 57-58) que os valores nunca são “ens in se”, mas “ens in alio”, verbis: [...] Não consiste num ser em si mesmo, mas num ser que está noutro ser. Assim, por exemplo, um valor estético converte-se em existencial no quadro do pintor; o valor ético, na acção do homem virtuoso. O quadro do pintor passa então a chamar-se <<belo>>; a acção do homem, chamar-se <<boa>>. Isto é: os valores, portanto, só podem tornar-se existenciais sob a forma de qualidades, características, modos de ser. Não possuem um ser independente, mas são de certo modo <<trazidos>>, <<sustentados>> pelos objectos nos quais se realizam; estes objectos tornam-se seu <<suporte>>. As coisas são então <<portadoras>> dos valores (Wertträger). Assim Hessen diferencia a ordem ontológica da ordem axiológica. Destaca, na construção da ontologia dos valores, outros aspectos intrínsecos da ordem axiológica, relevantes para o presente trabalho: a estrutura polar do valor (oposição entre valores positivos e negativos) e sua estrutura hierárquica (os valores admitem graus intra e intervalorativos): [...] Há valores que estão mais alto que outros. Não só dentro da mesma classe, como entre as diferentes classes de valores, há distinções a estabelecer e preferências a atribuir. Por exemplo, o heroísmo da renúncia e o sacrifício de si mesmo valem eticamente 225 226 mais que uma simples pequena transformação moral. Todos nós falamos em valores menos nobres e em valores mais nobres. Todos sabemos que os valores sensíveis são inferiores aos valores espirituais. Todos falamos do <<primado do espiritual>>. E ainda dentro dos últimos, dos espirituais, nem todos são iguais em dignidade. Ninguém duvida de que, por ex., os valores éticos são superiores aos estéticos (HESSEN, 1967, p. 61). No presente trabalho, metodologicamente, utilizaremos da ontologia dos valores de Hessen, para buscar compreender o meio ambiente como valor para o “homo economicus” (valor na Economia) e para o “homo sapiens” (valor na Ecologia), não obstante com diferentes graus hierárquicos para cada uma das ciências a eles relacionadas. Aqui estaremos analisando, conseqüentemente, duas óticas de valoração: a econômica e a ético-ecológica, de forma simplificada, uma vinculada ao “homem externo” (“residem na esfera do vital”) e a outra, ao “homem interior” (“residem na esfera do espírito”), respectivamente.163 1.2 ECONOMIA E ECOLOGIA: DUAS CIÊNCIAS AFINS COM VALORAÇÕES DIVERSAS PARA O MEIO AMBIENTE NO TRATAMENTO DO EFEITO ESTUFA 1.2.1 Ecologia e economia: conceitos afins com pautas valorativas distintas A “ecologia” e a “economia” dirigem-se ao mesmo objeto no plano teórico, não obstante com diferentes finalidades. O prefixo grego “eco”, existente em ambas, provém do radical “oikos” (casa). Dahl (1999, p. 13) afirma: Economia e ecologia, palavras para dois dos conceitos fundamentais da sociedade moderna, partilham a mesma raiz grega, oikos, que significa <<casa>> ou habitat. A economia refere como administrar a nossa casa, a ecologia como conhecê-la ou compreendê-la. Esta unidade de raízes da palavra também reflecte uma unidade subjacente de objectivo e função que devia ligar a ecologia e a economia. O objetivo delas, de forma macro, vincula-se ao bem da humanidade. Dirigem-se, portanto, à realização de valores humanos. No plano prático, entretanto, há sérias divergências nas concepções econômicas e ecológicas. Este abismo entre a Economia e a Ecologia constitui-se em sintoma de disfunção da sociedade moderna, que ameaça o próprio futuro da humanidade. Dahl (1999, p. 13), nesse aspecto, assinala: 163 “Simplesmente, isto não é tudo. Já atrás aludimos a certos outros valores chamados éticos, estéticos e religiosos. Ora será a definição que acabamos de dar aplicável também a eles? Será aplicável aos valores que residem, não já na esfera do <<vital>>, da natureza, mas na do espírito, do espiritual? Sem dúvida – podemos responder. É evidente que por meio destes valores espirituais se satisfazem também necessidades; não necessidades vitais, mas espirituais; não do homem externo, mas do homem interior” (HESSEN, 1967, p. 42, grifo nosso). 226 227 [...] Contudo, na prática, cada disciplina vive num mundo bastante separado, falando uma linguagem diferente, aplicando diferentes princípios, começando por leis subjacentes muito diferentes e reflectindo muitas vezes paradigmas em conflito. No âmbito da Economia, de forma prática e simples, Dahl (1999, p. 13-14) ressalta que as crises econômicas atuais demonstram a imperfeição da nossa compreensão e administração dos sistemas econômicos. Destaca, pois, a vinculação da má gestão da Economia com a pobreza, o desemprego e o fosso crescente entre as nações ricas e pobres. A ecologia, para enfrentar os problemas globais, por outro lado, segundo Dahl (1999, p. 14), especifica outro conjunto de questões por meio do movimento ambiental e do trabalho científico, expondo problemas tais como os efeitos da poluição na saúde, dano da camada de ozônio e o efeito estufa que ameaçam provocar um aquecimento global. A chamada “Era de Ouro” 164 da economia do século XX do historiador Hobsbawm (1995, p. 257), época do crescimento da economia mundial a uma taxa explosiva (décadas de 50 e 60) foi, também, a era das trevas para os ecossistemas ambientais: Mal se notava ainda um subproduto dessa extraordinária explosão, embora em retrospecto ele já parecesse ameaçador: a poluição e a deterioração ecológica. Durante a Era de Ouro, isso chamou pouca atenção, a não ser de entusiastas da vida silvestre e outros protetores de raridades humanas e naturais, porque a ideologia de progresso dominante tinha como certo que o crescente domínio da natureza pelo homem era a medida mesma do avanço da humanidade. A industrialização nos países socialistas foi por isso particularmente cega às conseqüências ecológicas da construção maciça de um sistema industrial algo arcaico, baseado em ferro e fumaça. Mesmo no Ocidente, o velho lema do homem de negócios do século XIX. “Onde tem lama, tem grana” (ou seja poluição quer dizer dinheiro), ainda era convincente, sobretudo para construtores de estradas e “incorporadores”imobiliários, que descobriram os incríveis lucros a serem obtidos numa era de boom secular de especulação que não podia dar errado. Na Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e Desenvolvimento – UNCED, em 1992, governos representados por mais de cem chefes de Estado adotaram, mais uma vez, o “desenvolvimento sustentável” como tema central de ação no século XXI, integrado no plano de ação global – Agenda 21. Desenvolvimento sustentável enseja, pois, a integração da Economia e da Ecologia. Entretanto, há sérias dificuldades para a conjugação destas ciências por razões metodológicas e valorativas. Dahl (1999, p. 25) afirma: Os economistas gostam de medir tudo em termos monetários. Se se pode comprar ou vender, tem um valor, e assim é dentro do escopo da 164 Cf. HOBSBAWM, (1995, p. 29-219, 223-390, 393-562), respectivamente tratando de “A era da catástrofe”; “A era de ouro” e “O desmoronamento’. Para Hobsbawm (1995), a história do século XX poderia ser dividida em três eras. A primeira, a da catástrofe, marcada pelas duas grandes guerras, pelo crescimento do socialismo e pela crise econômica de 1929. A segunda, referida na citação, relaciona-se à era de ouro, décadas de 50 e 60 que, viram a viabilização e a estabilização do capitalismo, responsável pela promoção de uma extraordinária expansão econômica e de profundas transformações sociais. A última era, denominada do “desmoronamento’, vincula-se à queda das instituições que previnem o barbarismo contemporâneo. 227 228 economia. Isto leva a medições como produtividade, investimento de capital, valor acrescentado, depreciação e a índices mais amplos de sucesso na fileira moderna das nações, tal como Produto Nacional Bruto (PNB – uma medida padrão da actividade económica), Produto Interno Bruto (PIB) ou rendimento per capita.O problema é que muitas coisas não podem ser medidas em termos monetários, como a satisfação humana, a cultura, a beleza natural, a igualdade, o bairro seguro, ou o privilégio de respirar ar puro. Uma vez que a economia não pode facilmente ser aplicada a tais coisas, são tratadas como externalidades, o que significa que são ignoradas pelos sistemas econômicos tradicionais de contabilidade. Soros (1998, p. 85), economista húngaro, dono de imensa fortuna obtida no mercado de capitais do mercado globalizado, afirma sobre a metodologia da Economia que: [...] Em termos gerais, consideram-se apenas as preferências individuais, ignorando-se as necessidades coletivas. Assim, todo o campo social e político não é levado em conta (grifo nosso). Nesse sentido, resgatando a ontologia de Hessen e a estrutura polar do valor, observa-se como um valor para a Economia (exploração dos recursos naturais), pode ser um desvalor para a Ecologia. A exploração dos recursos naturais possui valor positivo para a Economia e, simultaneamente, valor negativo para a Ecologia. Nesse aspecto, para corroborar a assertiva anterior, far-se-á breve análise da questão do aquecimento global, tema relacionado diretamente com o desenvolvimento (um dos valores supremos da Economia) e com a preservação ambiental (um dos valores supremos da Ecologia). 1.2.2 O efeito estufa (aquecimento global) para a economia e para a ecologia 1.2.2.1 O efeito estufa (aquecimento global): conceituação e problemática A radiação solar compreende radiações luminosas (luz) e radiações caloríficas (calor). Nestas sobressaem as radiações infravermelhas. As radiações luminosas são de pequeno comprimento de onda e atravessam facilmente a atmosfera. Ao contrário, as radiações infravermelhas (radiações caloríficas) são de grande comprimento de onda e têm mais dificuldades em atravessar a atmosfera. O efeito estufa constitui-se em termo aplicável ao papel que desempenham certos gases como o vapor da água, o dióxido de carbono, o metano, o óxido nitroso, os clorofluorcarbonatos e o ozônio, presentes na atmosfera, no aquecimento da superfície terrestre. Esses gases formam camada que impede a dispersão no espaço das radiações solares refletidas pela Terra, em efeito semelhante ao que produz o vidro das estufas destinadas ao cultivo de plantas, razão pela qual o fenômeno, na língua inglesa, é denominado de “greenhouse effect”. A atmosfera, tal como o vidro da estufa, sendo pouco permeável a esssas radiações, constitui barreira, dificultando a propagação para grandes altitudes. Parte das radiações 228 229 solares é por ela absorvida e outra é reenviada, por reflexão (contra-radiação), para as camadas mais baixas, onde se acumula e faz elevar a temperatura. O vapor da água, o dióxido de carbono, os óxidos de azoto, o metano e o as partículas sólidas e líquidas constituem os elementos fundamentais dessa barreira, já que são eles os principais responsáveis pela absorção e reflexão da radiação terrestre. Conforme afirma Paterson (1996, p. 9), o efeito estufa é um fenômeno natural, no qual certos gases na atmosfera mantêm a temperatura da Terra significativamente mais alta do que seria sem eles. Os principais gases envolvidos em tal processo são o vapor da água, o dióxido de carbono (CO2), os clorofluorcarbonatos (CFCs), o metano (CH4) e o óxido de nitrogêncio (N2O). Esses gases permitem que a radiação solar ultrapasse a atmosfera, mas eles absorvem os raios de baixa freqüência e longo comprimento de onda oriundos da superfície da Terra. A chamada “Era de Ouro” da economia do século XX do historiador Hobsbawm (1995, p. 257) foi uma época de energia fóssil barata, causadora do efeito estufa devido à liberação do gás carbônico: [...] O fato de o consumo total de energia ter disparado – na verdade triplicou nos EUA entre 1950 e 1973 [...] está longe de surpreender. Um dos motivos pelos quais a Era de Ouro foi de ouro é que o preço do barril de petróleo saudita custava em média menos de dois dólares durante todo o período de 1950 a 1973, com isso tornando a energia ridiculamente barata, e barateando-a cada vez mais [...] Contudo, as emissões de dióxido de carbono que aqueciam a atmosfera quase triplicaram entre 1950 e 1973, quer dizer, a concentração desse gás na atmosfera aumentou quase 1% ao ano [...] A produção de clorofluorcarbonos, produtos químicos que afetam a camada de ozônio, subiu quase verticalmente. No fim da guerra, mal eram usados, mas em 1974 mais de 300 mil toneladas de um composto e mais de 400 mil de outro eram liberadas na atmosfera todo ano [...] Os países ricos do Ocidente naturalmente eram responsáveis pela parte do leão nessa poluição, embora a industrialização extraordinariamente suja da URSS produzisse quase a mesma quantidade de dióxido de carbono que os EUA. O aumento do percentual desses gases acarretou mudança no clima do planeta. Assim, tem havido aumento da temperatura média anual, o que afeta todo o planeta e todos os seres componentes da biosfera. Nesse aspecto, Dahl (1999, p. 62) afirma: A civilização ocidental depende enormemente de combustíveis fósseis como fonte energética primária para a indústria, transporte e vida urbana [...] A libertação de dióxido de carbono proveniente do consumo dos combustíveis fósseis está a ameaçar mudar o clima nos decênios vindouros com conseqüências imprevisíveis e desastrosas para muitas áreas desabitadas. O problema do “efeito estufa” ou do “aquecimento global” tem tantas implicações sociopolíticas que se tornou tema frequente em nível da imprensa mundial, bem como assunto de negociação política à escala planetária.165 165 “Global warming emerged as a significant global political issue in 1988. NASA scientist James Hansen’s statement to the US Congress that ‘it is time to stop waffling so much. We should say that the evidence is 229 230 Cientificamente, não há dúvida nenhuma de que o crescimento exponencial das atividades do homem, com início na época imediatamente anterior à revolução industrial, é o principal fator do acréscimo de gases com efeito de estufa como o dióxido de carbono, o metano, o óxido de nitrogênio e os clorofluorcarbonetos. O Barão Jean Baptiste Joseph Fourier foi reconhecido como a primeira pessoa a argumentar sobre o efeito estufa e a sugerir que a atmosfera era de fundamental importância na determinação da temperatura da Terra. Conforme assinala Paterson (1996, p. 17), tal assertiva foi feita em 1827 no estudo de termodinâmica desenvolvido por ele. A própria ciência da meteorologia, estudo científico da atmosfera da Terra, originouse da preocupação humana com o clima e com a atmosfera. Assim, os meteorologistas começaram a cooperar internacionalmente, reconhecendo que suas medições seriam muitas vezes mais eficientes se fossem conectadas entre si. Nesse sentido, como assinala Paterson (1996, p. 18), em 1872 foi proposta a criação da Organização Internacional de Meteorologia (International Metereology Organization – IMO). Nos anos imediatamente anteriores à segunda guerra mundial, dois avanços tecnológicos contribuiram enormemente para o aumento da cooperação metereológica a nível internacional: a aviação civil e o desenvolvimento de satélites (PATERSON, 1996, p. 21). Em 1975, cento e trinta dos cento e trinta e cinco países membros das Nações Unidas participavam de um sistema mundial de medição meteorológica. Esses desenvolvimentos culminaram com a organização da primeira conferência mundial sobre o clima em Genebra. Essa Conferência elaborou uma Declaração da qual consta que: “Todas as nações deveriam preocupar-se com as possíveis conseqüências da ação humana sobre o clima” (PATERSON, 1996, p. 28). A discussão política sobre o aquecimento global e a ação antropogênica causadora deste desenvolveram-se, gradualmente, a partir dos anos oitenta, especialmente em 1988, com a inundação ocorrida nos EUA. Em Novembro de 1988, no Congresso Mundial sobre o Clima e o Desenvolvimento ocorreu em Hamburgo na Alemanha, foi determinada a necessária redução, em trinta por cento das emissões de dióxido de carbono em 2000 e de cinqüenta por cento em 2015 (PATERSON, 1996, p. 35). De acordo com Denis–Lempereur (1995, p. 125), a ação antropogênica causadora do efeito estufa bem se caracteriza na atividade industrial, verbis: A indústria é responsável, nomeadamente, pelos 3,5 mil milhões de toneladas de gás carbônico que todos os anos são lançados na atmosfera, contribuindo assim para acentuar o efeito de estufa. Ela lança igualmente 89 milhões de toneladas de óxido de enxofre por ano, 84 milhões de toneladas de metano, 30 milhões de tonelada de óxido de azoto, 26 milhões de toneladas de hidrocarbonetos, 23 milhões de toneladas de partículas, 7 milhões de toneladas de amoníaco, 1,2 toneladas de clorofluorcarbonetos (CFC). Embora a pretty strong that the greenhouse effect is here” (PATERSON, 1996, p. 1). “Sobre a resposta a essa crise ecológica que se aproxima, só três coisas podem ser ditas com razoável certeza. Primeiro, que deve ser mais global que local, embora claramente se ganhasse mais tempo se se cobrasse à maior fonte de poluição global, os 4% da população do mundo que habitam os EUA, um preço realista pelo petróleo que consomem” (HOBSBAWM, 1995, p. 548). 230 231 maior parte das emissões venha do hemisfério Norte, a sua acção estende-se a todo o Planeta. Portanto, a indústria e o seu largo desenvolvimento, ao longo da segunda metade do século XX, é o principal fator relacionado ao efeito estufa, o que permite a correlação entre o crescimento econômico (economia) e o efeito deletério do efeito estufa dela decorrente para os ecossistemas terrestres. 1.2.2.2 O desvalor do efeito estufa (aquecimento global) para a ecologia Do ponto de vista ecológico, o constante acréscimo de temperatura, trazido pelo efeito estufa, constitui um desvalor para os ecossistemas existentes. Becker (1999, p. 10), Diretor da ONG Sierra Club, assinala, de forma contundente que: A raça humana está engajada na mais ampla e perigosa experiência da história – uma experiência para ver o que irá acontecer com a nossa saúde e com a saúde do nosso Planeta quando fizermos alterações drásticas no nosso clima. Isto não é parte de uma pesquisa científica controlável. Isto é um experimento incontrolável cujo objeto é a Terra, o qual põe em risco o futuro dos nossos filhos. Enfatizando os fundamentos científicos de tal preocupação, esse autor destaca que mais de dois mil e quinhentos cientistas, participando do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas – “Intergovernmental Panel on Climate Change – IPCC”, concluíram que há evidente influência nociva do homem no clima mundial e que o aquecimento global, ocasionado pelo homem está ocorrendo muito mais rápido do que em qualquer outro período da história (BECKER, 1999, p. 10). Especificamente, diante da crise ecológica decorrente do crescimento desregulado das sociedades capitalistas, Habermas (1980, p. 58-59) afirma o seu respeito e sua preocupação com o aquecimento global, que deve ser visto como limitação à atividade de produção: Entretanto, com pressupostos otimistas, uma absoluta limitação do crescimento pode ser declarada (se não, para o tempo próximo, precisamente determinado) : a saber, o limite da habilidade ambiental de absorver calor do consumo de energia. Se o crescimento econômico é necessariamente acoplado ao crescente consumo de energia e se toda energia natural é transformada em energia economicamente útil por última instância liberada com calor (isto se aplica ao conteúdo total de energia e não apenas à porção perdida na produção e transformaçao), então o crescente consumo de energia precisa resultar, a longo prazo, num crescimento de temperatura global. Analisando o aquecimento global de forma antropocêntrica (centrada na preocupação exclusiva com o homem) e ecocêntrica (centrada na preocupação com todos os elementos do ecossistema), o IPCC e a Organização Mundial de Saúde, na visão de Becker (1999, p. 1012), apontam as seguintes conseqüências negativas para o homem e para o ecossistema: 231 232 • Ondas de calor tão grandes ou maiores que as ocorridas em 1995 no verão americano; • Aumento das doenças infecto-contagiosas (dengue, malária dentre outras). Com o aumento da temperatura mais mosquitos e roedores poderão adentrar em novas áreas, infectando mais pessoas. BECKER cita como exemplo surto de dengue ocorrido no estado-americano do Texas em 1995; • Elevação dos mares com o derretimento das calotas polares e com a expansão da forma líquida da água existente no planeta (as formas gasosas (vapor da água) e sólidas (gelo) da água tendem a se converterem na forma líquida). Para enfrentar esse problema, as soluções apresentadas para preservação do equilíbrio atual dos ecossistemas devem enfatizar a melhoria da eficiência energética com o menor consumo de combustíveis fósseis, o que, para Becker (1999, p. 13-14), não acarretaria, necessariamente, redução da atividade econômica, mas, sim, a racionalização com o uso de tecnologias menos poluentes. 1.2.2.3 O maior valor do crescimento econômico em relação à externalidade “efeito estufa” para a economia americana No âmbito econômico, entretanto, a diminuição da atividade industrial e suas conseqüências são prejudiciais para a riqueza das nações. O efeito estufa, portanto, constituise em fenômeno que não deve estar no centro da pauta valorativa governamental, se for prejudicial ao crescimento econômico. Moore (1999, p. 26), Professor da Universidade de Stanford e ex-membro do Conselho de Consultores Econômicos do Presidente dos Estados Unidos da América entre 1985 e 1989, expressa, com clareza, a preocupação econômica americana com a diminuição do crescimento centrada na preocupação do efeito estufa: [...] um coro na imprensa, liderado por organizações com prestígio como o New York Times, The Public Broadcasting System, and Scientific American, espalha o medo da mudança climática. Respeitáveis cientistas, como Bert Boli (Stockholm University) [...] clamam que o clima está mudando ou irá mudar, e que medidas urgentes devem ser tomadas para evitar possíveis desastres. Se esse profetas estiverem corretos, nós devemos diminuir, rapidamente, a emissão dos gases ocasionadores do efeito estufa. Antes de aceitarmos estas assertivas, entretanto, devemos deixar bem claro que tais políticas, as quais podem ser desnecessárias, podem ser extremamente caras e podem levar a uma recessão mundial, aumentando o desemprego, os problemas sociais e aumentando as tensões entre as nações pela desobediência e desrespeito aos tratados internacionais [...] 232 233 Analisando a economia americana, centrada na indústria, e os efeitos puramente econômicos da mudança climática, Moore (1999, p. 29) afirma que: Uma análise pontual dos efeitos econômicos da mudança climática demonstra que as modernas indústrias são relativamente imunes ao clima. O clima afeta principalmente a agricultura, a atividade extrativista e a pesca, as quais juntas constituem menos que dois por cento do Produto Interno Bruto americano(PIB). As manufaturas, as indústrias de serviços e quase todas indústrias extrativas permanecem inalteradas pela mudança de clima [...] Os serviços bancários e de seguros, os serviços médicos, o comércio, a educação e uma variedade de outros serviços podem prosperar, tão bem, em climas quentes (com ar condicionado) como em climas frios (com aquecimento térmico). Um clima mais quente diminuirá os custos de transporte: menos neve e gelo a atormentar motoristas; menos tempestades de inverno para interromper o tráfico aéreo [...] Destacando que a tecnologia da própria era industrial está imune à questão climática e lembrando-se somente do seu país, afirma: Os habitantes dos países industriais avançados dificilmente notarão o aumento nas temperaturas mundiais. Como a sociedade contemporânea desenvolveu uma larga base industrial calcada nos serviços, cada vez mais se depende menos das atividades agropastoris, o que aumenta nossa imunidade às variações climáticas [...] (MOORE, 1999, p. 29-30). No mesmo aspecto, interessante comparar o pensamento coincidente de dois Presidentes dos Estados Unidos da América sobre o tema, George Bush e George Bush Jr. Assim, George Bush (apud PATERSON, 1996, p. 72), na Conferência Mundial do Meio Ambiente, no Rio de Janeiro, em 1992 (ECO92), afirmou: “Nós não podemos permitr que o extremismo dos movimentos ecológicos destruam os Estados Unidos. Nós não podemos destruir a vida de muitos americanos por sermos extremamente protetivos do meio ambiente”.166 Bush Junior (2002), em Silver Spring, Maryland, durante discurso proferido no National Oceanic and Atmospheric Administration, ratifica a preocupação americana com o crescimento, já externada por seu pai, há dez anos atrás, colocando-o em primeiro plano em relação à proteção ambiental, afirmando que: A abordagem do protocolo de Kyoto iria requerer que os Estados Unidos fizessem um profundo e imediato corte na nossa economia para atingir um objetivo arbitrário. Custaria a adesão a esse pacto o valor de $400 bilhões a nossa economia e representaria a perda de 4,9 milhões de empregos. Como Presidente dos Estados Unidos, responsável pela proteção do povo americano e do trabalhador americano, eu não posso comprometer nossa nação em um tratado internacional despropositado que tirará milhões de trabalhadores dos seus empregos. Por outro lado, nós reconhecemos as nossas responsabilidades internacionais. Assim, 166 Paterson (1996, p. 73) assinala que o maior conflito nas políticas por detrás das negociações da limitação da emissão dos gases do efeito estufa vincula-se à posição norte-americana do que ele chama de “Intra-North conflict”. A União Européia e o Japão concordaram com a necessidade de limitação da atividade industrial para a redução da produção do dióxido de carbono. 233 234 além de procurar reduzir nossas emissões, os Estados Unidos ajudaram as nações em desenvolvimento a crescerem de forma mais eficiente em um caminho ecologicamente responsável. No mesmo evento, afirma que apesar de não apoiar o Protocolo de Kyoto irá estabelecer metas próprias para redução dos gases do efeito estufa em 18% nos próximos dez anos: Nós promoveremos uma renovação das fontes de energia e uma tecnologia de uso de combustíveis fósseis limpa, bem como o uso de energia nuclear, que não produz emissões de gases do efeito estufa. Nós, também, iremos trabalhar para melhorar a economia de combustível de nossos carros e nossos caminhões. De forma global, meu orçamento destinará $4,5 bilhões para a proteção da mudança climática, mais do que qualquer outra nação no mundo (BUSH JUNIOR, 2002). Assim, os Estados Unidos da América, maior potência mundial econômica e o maior produtor de gases que ocasionam o efeito estufa, posiciona-se, claramente, em sua política internacional, na consideração de que o crescimento econômico constitui um valor maior do que a conservação de recursos naturais. 1.2.3 As diferentes hierarquias de valores presentes no debate internacional do crescimento econômico e do efeito estufa Conforme observa Paterson (1996, p. 77-90), a posição dos Estados Unidos da América sobre o tema efeito estufa não é meramente arbitrária. Há razões que as fundamentam. Assinala que as diferenças de posicionamento com relação ao efeito estufa, no âmbito das nações, podem ser agrupadas por três grandes fatores, com diferentes pesos, a saber: 1. de diferentes níveis e tipos de dependência energética. Assim, as nações com alta dependência de energia importada, normalmente, são mais favoráveis ao controle do desenvolvimento/efeito estufa. As nações que exportam petróleo, por outro lado, são menos favoráveis a este controle; 2. da posição das Nações na relação de comércio internacional. Assim, o chamado conflito Norte-Sul (nações desenvolvidas, exportadoras e nações subdesenvolvidas importadoras), a questão ambiental desloca-se para o eixo econômico da discussão da transferência tecnológica(dos países desenvolvidos para os em desenvolvimento) e do pagamento das dívidas externas (dos países em desenvolvimento para os países desenvolvidos); 3. das conseqüências materiais do aumento da temperatura a nível global e do controle do efeito estufa. Assim, países situados em pequenas ilhas marítimas podem desaparecer com a elevação do nível dos oceanos decorrentes do aquecimento global, sendo, portanto, extremamente, favoráveis ao controle do efeito estufa. Outros países como os Estados Unidos, ao considerar que os efeitos da elevação da 234 235 temperatura vão ser insignificantes para sua geografia territorial, não se preocupam com o controle deste fenômeno. Assim, Patrick Num, Professor de Geografia da Universidade do Pacífico do Sul, morador de ilha marítima que sofre, cotidianamente, os efeitos deletérios da elevação do mar e da temperatura oriunda do efeito estufa, possui diferentes argumentos para o trato desta questão mundial com efeitos locais. Conforme assinala, mais de vinte e nove por cento das pessoas das Ilhas do Pacífico do Sul vivem ao longo das costas marítimas, bem como a sua atividade econômica se desenvolve nesta área. Exemplifica que em Fiji, a cultura da cana-de-açúcar, a terceira maior da Ilha, só se desenvolve ao longo da costa e nos deltas dos rios que deságuam no mar. Nos últimos cinqüenta anos, entretanto, o aumento do nível do mar e a conseqüente penetração deste nos aqüíferos costeiros com o aumento da salinidade da água têm sido as causas da queda de produção da cana-de-açúcar. Também, a exploração turística da região vem sofrendo as conseqüências da erosão das praias pelo aumento do nível do mar (NUNN, 1999, p. 23-24). A noção dos diferentes posicionamentos das nações, no debate mundial do efeito estufa, põe em relevo a hierarquia valorativa estabelecida por cada Nação entre qual valor lhe é mais relevante dentre o crescimento econômico e as conseqüências do efeito estufa. Entretanto, as decisões tomadas em nível local, oriundas das diferentes valorações, como a exemplificada pelo Estados Unidos da América, terão efeitos diversos em diferentes locais do Planeta (como no caso das Ilhas do Pacífico do Sul). 1.3 OS RECURSOS NATURAIS COMO VALORES POSITIVOS COM DIFERENTES HIERARQUIAS PARA A ECONOMIA E PARA A ECOLOGIA 1.3.1 Os recursos naturais como valor Para Hessen (1967, p. 46), constitui característica basilar do valor a sua estrutura polar e a sua variabilidade, verbis: [...] O moralista procura determinar o valor <<bem moral >> e extrair daí normas para a acção prática. Tais normas serão o metro para medir, neste ponto de vista, os actos humanos. Aquilo que lhe interessa é precisamente poder demonstrar que tal valor é positivo, tal outro negativo; e, se for positivo, fixar a sua altura numa escala axiológica com relação a todos os outros, marcando-lhes a sua hierarquia. Este é o ponto de vista decisivo destas ciências que aspiram a elucidar sobre o valor dos seus objectos. Traduzem-se em juízos de valor e por isso se chamam ciências de valores (Wertwissenshafen), em oposição às ciências de seres (Seinswissenschafen). No mesmo escopo, Ruyer (1969, p. 97-98) relaciona a classificação dos valores com os diferentes ramos do conhecimento. Assim, os ramos do conhecimento constituem-se, 235 236 basicamente, em métodos de busca de valor (critérios para estabelecimento de juízos de valor): [...] La inmensa experiencia para el conjunto de los valores, es el conjunto mismo de las obras e instituciones humanas históricas, y su agrupamiento natural y espontáneo. Al lado de las ciencias y de las instituciones estéticas, de las costumbres, de la filantropía, de los ideales de moralidad, hay aún muchos otros dominios del valor: la religión, el derecho, la economia [...] Assim, as ciências ecológicas e econômicas valoram os recursos naturais em uma escala de valores distintos, não obstante os tenham como valores positivos. Para Reale, M., (1998, p. 191), as principais características dos valores são: bipolaridade, preferibilidade e referibilidade, dentre outras. Assim, o mestre das Arcadas e autor da teoria tridimensional do direito afirma: Além da bipolaridade, o valor implica sempre uma tomada de posição do homem e, por conseguinte, a existência de um sentido, de uma referibilidade. Tudo aquilo que vale, vale para algo ou vale no sentido de algo e para alguém. Costumamos dizer – e encontramos essa expressão também empregada por Wolfgang Köhler embora em acepção um pouco diversa – que os valores são entidades vetoriais, porque apontam sempre para um sentido, possuem direção para um determinado ponto reconhecível como fim. Exatamente porque os valores possuem sentido é que são determinantes da conduta. A nossa vida não é espiritualmente senão uma vivência perene de valores. Viver é tomar posição perante valores e integrá-los em nosso “mundo”, aperfeiçoando nossa personalidade na medida em que damos valor às coisas, aos outros homens e a nós mesmos (REALE, M.,1998, p. 190-191). Dessa maneira, as ciências humanas, de acordo com seu escopo, que molda seu referencial valorativo, ponderam determinados objetos com maior ou menor preferibilidade. No entanto, há a possibilidade de um denominador comum entre elas na visão do que seja “valor” e “desvalor”. Ecologia e economia, tão próximas em suas origens lingüísticas, têm estado distantes em demasia, tanto na sua dimensão acadêmica, quanto nas estruturas administrativas estatais responsáveis pela implementação de políticas públicas, com notórias conseqüências. 1.3.2 Os recursos naturais como valor para a economia 1.3.2.1 Os recursos naturais e o sistema econômico de produção 236 237 A economia, segundo Fauchex; Nöel (1997), apresenta uma dimensão física que é necessariamente uma transformação da natureza. Assim, afirma que: “a actividade econômica extrai desta natureza os materiais que utiliza, tal como torna a lançar sobre esta os desperdícios que produz” (FAUCHEX; NÖEL, 1997, p. 15). Engels (1974, t. 3, p. 52), na Introdução à Dialética da Natureza, afirma que as “forças da natureza” foram postas a serviço do homem e conseqüentemente houve um enorme incremento da produção de bens por meio da industrialização. Pillet (1993, p. 14) afirma que o homo economicus pode ser um consumidor ou um produtor individual, entretanto ambos atuam de forma “racional” em busca do máximo de utilidade. O agente consumidor procura o máximo de utilidade que obtém dos bens comprados com os meios escassos do mercado. O produtor procura o máximo de lucro, que se obtém da venda dos bens que produziu por meio de recursos escassos. Quando compradores e vendedores concordam sobre um preço e uma quantidade, esse preço e essa quantidade definem um equilíbrio de mercado. Nas palavras de Pillet (1993, p. 14): “Cada um satisfaz as suas necessidades em compras e em vendas neste mercado; há um equilíbrio da oferta e da procura, e óptimo de produção e de consumo para a sociedade”. Do ponto de vista econômico, um recurso natural corresponde a uma matéria-prima utilizável como fator de produção no fornecimento de bens e serviços. Fauchex; Nöel (1997, p. 16) acrescentam que: Enquanto as consequências da actividade humana, e em particular da actividade económica, não eram susceptíveis de pôr em causa as regulações que governam a reprodução da biosfera, pôde considerar-se a economia e a natureza como dois universos distintos, possuindo cada um a sua lógica e as suas condições de reprodução. Os economistas podiam interessar-se pelas regras que governam a optimização económica e pelas condições da reprodução económica, ignorando sempre o modo como a natureza assegurava espontaneamente a sua reprodução. Hoje, no entanto, a escassez dos recursos naturais, conforme veremos, ocasiona a preocupação econômica com estes, aumentando a sua pontuação na escala valorativa econômica. 1.3.2.2 O valor e o preço dos recursos naturais A tomada de consciência da amplitude das relações mútuas entre a economia, os recursos naturais e o meio ambiente, quer dizer, a constituição destas relações como problemas, foi concomitante com o aparecimento do risco de esgotamento dos recursos naturais e com o agravamento dos danos sofridos pelos ecossistemas.167 167 Com a escassez e com a finitude do bem ambiental, o mercado (consumidores e fornecedores) passou a valorizá-lo. <buscar autores com esta assertiva>. 237 238 Com a escassez dos recursos naturais, a economia encontra-se confrontada com os seguintes problemas, segundo Fauchex; Nöel (1997, p. 18-19): • a multidimensionalidade. Os problemas deixam de ser isoláveis uns dos outros e comportam todos várias dimensões. Exemplificando, um recurso poluído pode já não estar disponível para o uso que dele se espera. Há interacções entre a esfera econômica, a esfera natural e a esfera sociocultural; • a irreversibilidade. A extinção de espécies (diminuição da biodiversidade) e a mudança climática não passível de retorno ao seu status quo; • a presença de problemas de eqüidade, tanto intrageracionais como intergeracionais. As escolhas feitas em matéria de recursos naturais e de meio ambiente inserem-se necessariamente no tempo e no espaço. Estas escolhas põem igualmente em jogo o bem-estar, tanto dos indivíduos que actualmente existem, como o das gerações futuras. Para a presente geração, a questão da repartição deste bem-estar e dos efeitos ligados à exploração dos recursos naturais e aos problemas de poluição do meio ambiente está posta: basta pensar na importância das desigualdades entre países do Norte e do Sul, por exemplo. Para as gerações futuras, um recurso esgotável explorado actualmente deixará de estar futuramente disponível; • a incerteza. Incerteza quanto às reservas de recursos esgotáveis, quanto às possibilidades que os progressos técnicos futuros reservam, quanto às conseqüências exactas das poluições globais. A combinação da irreversibilidade e da incerteza leva, por outro lado, a definir critérios gerais de escolha, tal como o princípio da precaução. Por serem os recursos naturais, atualmente, um valor relevante para a economia, indaga-se qual o conceito de valor para a Economia e a sua relação com a filosofia de Hessen. O valor do meio ambiente para a Economia restringe-se meramente a ser input do processo econômico? Deve-se, inicialmente, destacar que a palavra valor para a economia possui um campo semântico distinto da conceituação filosófica até agora analisada. Para Smith (1999, v. 1, p. 117), o termo valor tem dois significados: Deve observar-se que a palavra VALOR tem dois significados diferentes; uma vez exprime a utilidade de um determinado objecto; outras, o poder de compra de outros objectos que a posse desse representa. O primeiro pode designar-se por <<valor de uso>>; o segundo por <<valor de troca>>. As coisas que têm o maior valor de uso têm, em geral, pouco ou nenhum valor de troca; e, pelo contrário, as que têm o maior valor de troca têm, geralmente, pouco ou nenhum valor de uso. Nada é mais útil do que a água: mas como ela praticamente nada pode comprar-se; praticamente nada pode obter-se em troca dela. Pelo contrário, um diamante não tem praticamente qualquer valor de uso; no entanto, pode obter-se grande quantidade de outros bens em troca dele (grifo nosso). 238 239 A primeira concepção de Adam Smith (valor de uso) aproxima-se da conceituação de valor de Hessen (1967, p. 47) “a qualidade de uma coisa, que só pode pertencer-lhe em função de um sujeito dotado de uma certa consciência capaz de a registrar”. Destaca-se a utilidade de um determinado objeto como a essência da valoração, o que se constitui em uma das formas de caracterização de valor, embora não seja a única. A segunda concepção de Adam Smith (valor de troca) possui, no entanto, conceito semântico bem distinto da ontologia axiológica de Hessen. O valor de troca vincula-se a noção econômica de mercado, o que faz com que o próprio fundador da Economia Liberal afirme que há discrepâncias marcantes entre o valor de uso e o valor de troca (BOARDMAN JR., 1966, p. 45). Para o valor de troca, associa-se um mecanismo utilitarista: o mercado. Smith (1999, cap. 5, p. 119-120) dá relevo ao valor de troca e à sua caracterização. Assim, ao tratar do preço real (preço em trabalho) e do preço nominal dos bens (preço em dinheiro), destaca que o trabalho é a verdadeira medida do valor de troca, verbis: O verdadeiro preço de todas as coisas, aquilo que elas, na realidade, custam ao homem que deseja adquiri-las é o esforço e a fadiga em que é necessário incorrer para as obter. Aquilo que uma coisa realmente vale para o homem que a adquiriu e que deseja desfazer-se dela ou trocá-la por outra coisa, é o esforço e a fadiga que ela lhe pode poupar, impondo-os a outras pessoas. Embora seja o trabalho o verdadeiro valor de troca (preço real do bem), o preço nominal, normalmente, não é calculado em trabalho, porque o trabalho é difícil de medir e porque é mais freqüente trocarem-se uns bens por outros bens, especialmente por dinheiro, que é, por isso, o termo de referência mais usado para se calcular o valor (SMITH, 1999, p. 121-122). Outro economista clássico, Ricardo (1982, p. 117), também ressalta a discrepância entre o valor de uso e o valor de troca, afirmando que a utilidade não é medida do valor de troca, ainda que lhe seja absolutamente essencial: A água e o ar são extremamente úteis; são, de fato, indispensáveis à existência, embora em circunstâncias normais, nada se possa obter em troca deles. O ouro, ao contrário, embora de pouca utilidade em comparação com o ar ou a água, poderá ser trocado por uma grande quantidade de outros bens. Já Marshall, tratando da utilidade marginal, indaga por que as pessoas procuram mercadorias, e aproxima as noções de valor de troca com o valor de uso, ao destacar que o consumo busca algum tipo de prazer ou satisfação (BOARDMAN JR., 1966, p. 77). A teoria da utilidade marginal procura explicar esse paradoxo em termos do valor subjetivo que tem para uma pessoa as sucessivas adições de mercadorias já possuídas por alguém (BOARDMAN JR., 1966, p. 77). Oliveira (1998, p. 81-107), de forma didática, esclarece o significado da teoria da utilidade marginal: Imaginemos agora que o prazer ou a satisfação percebidos por um consumidor pelo consumo de uma mercadoria possa ser medido, e chamemos essa medida de utilidade dessa mercadoria para esse consumidor. Mesmo que não saibamos nada acerca da medida exata 239 240 da utilidade, podemos, empregando um pouco de bom senso, predizer que ela deve ter um comportamento característico. [...] suponhamos que a mercadoria em questão seja chocolate em barra. Se passarmos a dar uma barra de chocolate por semana a uma criança que até então não consumia nada de chocolate, essa barra de chocolate provavelmente trará uma satisfação muito grande a essa criança, gerando assim uma utilidade relativamente alta. Se, depois disso, passarmos a dar uma segunda barra semanal de chocolate, essa barra será bem recebida pela criança, mas provavelmente não com o mesmo entusiasmo com que foi recebida a primeira barra [...] Se formos aumentando o número de barras de chocolate, chegaremos a um ponto em que uma barra adicional de chocolate representará para a nossa criança um benefício tão pequeno que para ela será quase indiferente receber ou não essa barra adicional. Isso porque o chocolate sendo consumido praticamente até a saciedade, deixou de ser para ela um produto escasso. A abundância da água em relação ao diamante, por esta teoria da utilidade marginal, justifica a discrepância entre o valor de uso e o valor de troca. Conforme assinala Boardman Jr. (1966, p. 79), ao analisar Alfred Marshall e a teoria marginalista, com base nesse raciocínio imaginou-se ter sido descoberta a razão do conflito entre valor de uso e valor de troca. Marshall, A., (1996, p. 185-195), igualmente, pondera que uma pessoa prudente se esforça para distribuir os seus recursos para uso presente e futuro, estando disposta a renunciar a um prazer atual por um igual prazer no futuro. O valor seria mensurado a partir do conceito de utilidade em um determinado momento sem perder a perspectiva de momentos posteriores, onde uma unidade monetária para um necessitado teria mais utilidade do que uma unidade monetária para um abastado, verbis: [...] é preciso notar, porém, que os preços da procura de cada mercadoria, sobre os quais avaliamos a utilidade total e o excedente do consumidor, pressupõem que as outras condições permanecem inalteradas, enquanto o preço sobe até o valor da escassez (Marshall, A., 1996, p. 195). Destacando o valor-utilidade das compras realizadas por um indivíduo no contexto da teoria marginalista, Pillet (1993, p. 16) afirma: Um sujeito económico dispõe de um rendimento ou orçamento. Deseja não um bem definido e completo, mas uma dose deste bem (não tem intenção, por exemplo, de adquirir o bem <<transporte>> de uma vez por todas, mas somente uma <<dose>> deste bem, quer dizer, um automóvel ou um bilhete de avião). Assim, essa evolução das correntes econômicas, sob a perspectiva da discrepância entre valor do ponto de vista filosófico (valor de uso) e o valor dado pelo mercado (valor de troca, preço nominal), destaca que, no âmbito estritamente econômico, a natureza só terá valor se o mercado lhe atribuir valor. Nesse aspecto, Fauchex; Nöel (1997, p. 44) afirmam: O mercado surge então, não só como mecanismo de regulação económica, mas também como o mecanismo de regulação social e, de 240 241 seguida, como o mecanismo de regulação da natureza. Não se trata do acesso da sociedade à dimensão económica, mas antes da redução da totalidade da sociedade, e mesmo da natureza, ao econômico. O econômico moderno, nos seus próprios fundamentos, afasta-se de qualquer preocupação moral ou ética. A lição de Smith (1999, v. 2, p. xx), segundo a qual a procura do interesse individual conduz automaticamente ao interesse geral, é corolário desta assertiva. No dogmatismo econômico, há o reducionismo da axiologia ao mercado. O mundo econômico é concebido de forma mecânica, no dizer de Fauchex; Nöel (1997, p. 40): O mundo é concebido como um conjunto atomista de compradores e vendedores, todos do tipo homo economicus, empenhados num comportamento egoísta com o intuito de melhorar o seu bem-estar individual. Deste modo, cada qual é <<conduzido por uma mão invisível a cumprir um objectivo que não entre de modo algum nas suas intenções>>. Entretanto, alguns economistas neoclássicos visualizaram que nem sempre o interesse individual no mercado acarreta, automaticamente (mecanicamente) o interesse social. Assim, surge, no século passado, versão normativa da teoria neoclássica. Segundo Fauchex; Nöel (1997, p. 46-47), essa teoria, cujos iniciadores foram Pareto, no começo do século XX, e Pigou, em 1920, constitui a moldura na qual os economistas neoclássicos do meio ambiente desenvolveram a noção de externalidade. Os dois teoremas fundamentais da economia do bem-estar estabelecem, respectivamente, a “optimalidade” paretiana do equilíbrio concorrencial e a possibilidade de atingir qualquer repartição ótima desejada com a ajuda do mecanismo de mercado, completado por transferências adequadas. A análise da noção econômica de externalidade e o papel da norma jurídica nesse contexto será efetuado mais adiante, no tópico terceiro deste trabalho (O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL). Assim, podemos afirmar que o valor econômico dos recursos naturais vinculam-se à sua mensuração nos mecanismos tradicionais de valoração econômica (o mercado), o que ocasiona, em diversas oportunidades, diferença entre o valor de uso e o valor de troca, afetando, sobremaneira, a valoração dos recursos naturais. Torna-se, pois, relevante apreciar a valoração dos recursos naturais para a ciência ecológica e, deste modo, compará-lo à visão filosófica e econômica de valor. 1.3.3 O valor dos recursos naturais para a ecologia 1.3.3.1 Origem do termo ecologia e as bases da sua valoração em Haeckel A ecologia é a disciplina científica que estuda as condições de existência dos seres vivos e as distintas interações existentes entre estes seres vivos e seu meio. 241 242 Ecologia, ao contrário de economia, era expressão desconhecida na civilização grega; foi composta por “oikos”e por “logos”, esta última palavra significando reflexão ou estudo. Assim, pode-se interpretar a ecologia como ciência de nossa casa, seja a nível micro, local em que vivemos, seja a nível macro, nossa casa maior, a Terra. “Ecologia” aparece pela primeira vez numa nota de pé de página de Generelle Morphologie der Organismen, substituindo o termo “biologia”, cujo sentido, na época, era bem mais restrito (ACOT, 1990, p. 27). Esse neologismo, formado com os vocábulos gregos oîkos e lógos, significa, portanto, literalmente, “ciência do habitat”. O conceito fundamental da ecologia é o da sua unidade funcional, o ecossistema.168 Ecossistema é: “Local de vida, grande ou pequeno em que há trocas nutritivas e respiratórias entre espécies vivas da biocenose que o ocupam, produzem-se as trocas no interior dos seus limites e não os ultrapassam, senão ligeiramente” (FRIEDEL, 1987, p. 50). Por constituirem subconceitos componentes do ecossistema, necessárias fazem-se as definições de biocenose e biótopo. A biocenose é: ”Conjunto equilibrado de animais e plantas que ocupam de maneira cíclica ou permanente um dado biótopo, e cujas populações não parecem modificar-se rapidamente” (FRIEDEL, 1987, p. 109). O biótopo é o: “Local onde vive habitualmente uma dada espécie animal ou vegetal” (FRIEDEL, 1987, p. 50). Conforme destaca Acot (1990, p. 84), os conceitos de biocenose e biótopo, elementos constituitvos do ecossistema, configuram, modernamente, o conceito de ecologia, verbis: Em 1935, o ecólogo A. G. Tansley cria o conceito de ecossistema num artigo bastante polêmico dirigido contra as concepções organicistas de que acabamos de falar. Certamente, afirmar que as unidades fitossociológicas ou biocenóticas constituem sistemas estruturados já não é um fato novo em 1935. Mas o ponto essencial é que Tansley quer integrar nesse conceito: “[...] o complexo dos fatores físicos que formam o que chamamos de meio ambiente do bioma, os fatores do habitat no sentido mais amplo [...] esses ecossistemas [...] são das mais variadas naturezas e tamanhos”. A ciência da ecologia foi desenvolvida em termos estritos por Ernst Haeckel (18341919), que definiu ecologia como a “ciência das relações dos organismos vivos face ao mundo externo, o seu habitat, costumes, energias, etc” (HAECKEL apud PEPPER, 2000, p. 237). Bramwell (1989, p. 40) destaca que Haeckel batizou o termo Oekologie, referindo-se à teia que vincula os organismos e o seu ambiente. A sua definição relaciona-se a “the science of relations between organisms and their environment”. A repercussão deste termo, entretanto, ultrapassa a biologia. Remonta, na Grécia, à expressão utilizada por Aristóteles, no sentido do funcionamento adequado de um lar, que deu origem, também, ao termo economia. Uma pólis viável vinculava-se a uma oikos organizada, assim, há uma ecologia política e, também, uma ecologia, stricto sensu, biológica em Aristóteles (BRAMWELL, 1989, p. 41). 168 “Aqui percebemos bem o que diferencia o ecossistema de Tansley daquele de Lindeman. O primeiro conceito imagina um conjunto composto por uma biocenose e por um biotópo. O segundo imagina esse conjunto como uma totalidade” (ACOT, 1990, p. 27). 242 243 A “ecologia” biológica de Aristóteles atingiria o seu ponto alto no tratado intitulado História dos animais e, mais particularmente, nos livros VIII e IX, em que o autor expõe os diferentes modos de vida dos animais. Assim, afirmava Aristóteles (apud ACOT, 1990, p. 3): Os animais estão em guerra uns com os outros quando ocupam os mesmos lugares e quando, para viver, utilizam os mesmos recursos. Assim como [...], para os mergulhadores, alguns fabricam aparelhos para respirar e para ficar por muito tempo debaixo d’água, aspirando graças ao aparelho de ar da superfície, assim também foi dentro desse princípio que a natureza regulou o tamanho do nariz dos elefantes. Conforme assinala Stauffer, quando Haeckel utilizou pela primeira vez o termo ecologia, sua utilização ocorreu como uma área da biologia relacionada às relações dos organismos entre si, tendo Haeckel ilustrado estas relações entre os seres vivos com base na teia de relações entre os seres estudadas por Darwin.169 Para Bramwell (1989, p. 4), na obra “Ecology in the 20th century a history”, duas formas distintas de ecologismo afloraram no século XX. Uma constituída de uma forma holística e anti-mecânica de apreciação da biologia oriunda do zoologista tedesco Haeckel. A outra forma de ecologismo foi uma nova abordagem econômica chamada economia energética. Segundo Pepper (2000), como um ardente darwinista, Haeckel sustentava a igualdade entre animais e seres humanos, que teriam partilhado uma origem comum durante o período terciário.170 Negava, pois, uma visão antropocêntrica da natureza, de que os seres humanos eram únicos e especiais; pelo contrário, acreditava que os vertebrados superiores também tinham mostrado “traços primários de razão” e “traços de religiosidade e conduta ética... as virtudes sociais... lucidez, consciência e sentido de dever”. Segundo Pepper (2000, p. 239), a lei biogenética de recapitulação dizia que o desenvolvimento biológico embrionário do organismo individual devia repetir o desenvolvimento de uma forma abreviada, a evolução dos seus ancestrais. Cada indivíduo revivia e experimentava novamente o processo evolutivo, partilhando os círculos eternos da unicidade da natureza. Essa teoria, hoje desacreditada, foi muito influente durante meio século. Para Pepper (2000, p. 241), verbis: O desejo de Haeckel em fazer o ser humano voltar à natureza foi absorvido pelo mito volkista, que, não obstante o pensamento moderno, prenderia as pessoas à sua terra natal, à sua região e à sua 169 170 “Quando Haeckel propôs ecologia, ele a discutiu como uma área da biologia e a classificou-a como parte da fisiologia das relações, mas não a definiu de modo objetivo. O termo ecologia apareceu pela primeira vez em uma nota de rodapé na página oito do primeiro volume. Aqui Haeckel o introduziu como um substituto para o uso arbitrariamente restrito do termo “biologia” e explicou ecologia como sendo a ciência da economia, dos hábitos, das relações externas dos organismos entre si, etc [...] Somente algumas centenas de páginas mais adiante, na parte final do segundo volume, quando ele começa a discutir o conceito de evolução de Darwin e da seleção natural, é que Haeckel apresenta uma concepção mais ampla do termo. Primeiro discutiu-o brevemente como a ciência da economia da natureza, das relações mútuas dos organismos; e descreveu a cadeia dos gatos-ao-trevo de Darwin como um exemplo” (STAUFFER apud AVILA-PIRES, 1999, p. 23). “Existem muitos pontos de contacto enre Haeckel e o ecocentrismo moderno, especialmente com a ecologia profunda. Por exemplo, como profeta do movimento volkish, ele propunha que o indivíduo pertence a algo maior do que ele. Ou seja, todas as pessoas teriam uma unidade mística entre si e com a totalidade do cosmos. E o processo evolutivo não era percepcionado à maneira mecânica de Darwin, mas como uma força cósmica, uma manifestação da energia criativa da natureza” (PEPPER, 2000, p. 239). 243 244 nação. Isto traduziu-se numa ideologia de <<terra e sangue>>, pelo que tais laços imaginados entre cultura tradicional e terra de origem foram usados no século XX para fomentar o nacionalismo extremo que caracterizou o fascismo. Neste trabalho, utilizaremos o termo ecologia na conceituação originária de Haeckel, não obstante não podemos deixar de caracterizá-la, também, pelo escopo valorativo de sua acepção, na visão finalística de Aristóteles de que a casa (oikos) constitui-se em um meio de tornar feliz a vida presente do indivíduo. No mesmo aspecto, Bramwell (1989, p. 43) destaca que: Apesar de Haeckel não expressar medo sobre a poluição e a erosão do solo, ele foi um ecologista em três importantes acepções. Primeira, que ele visualizou o universo como um conjunto único e equilibrado de organismos, visão monista. Ele, também, acreditava que homens e animais têm o mesmo direito moral e natural, portanto não era antropocêntrico. Terceiro, ele defendia a doutrina que a natureza era uma fonte da verdade e poderia guiar com sabedoria a vida humana. A sociedade humana deveria se reorganizar sobre os princípios extraídos da observação científica do mundo natural. Pela sua influência, ele possibilitou que a ecologia torna-se um credo político viável (grifo nosso). A noção de ecologia de Haeckel abre, pois, a perspectiva de a ecologia e do movimento ecológico atuarem como uma ideologia.171 Torna-se relevante, pois, apreciar a valoração dos recursos naturais para a ciência ecológica, na visão trazida pelos ecologistas estudados, e, deste modo, compará-lo à visão filosófica e econômica de valor. Na natureza todos os organismos vivos produzem resíduos. Mas o que constitui resíduo para uma espécie é considerado alimento para outra, conforme afirma Lovelock (1991, p. 23). Assim, mesmo os resíduos naturais constituem-se em valores ecológicos, pois permitem a homeostase172. O que constitui resíduo para uma espécie é considerado alimento para outra. Esse equilíbrio dinâmico constitui-se em essência o grande paradigma ecológico. Nesse sentido, Morin (1997, p. 65) afirma, na busca de um pensamento sistêmico que rompa a visão sujeito-objeto cartesiana, que: Este é um dos aspectos de uma revolução do pensamento. Sem esta revolução do pensamento, a importância do pensamento ecológico não poderá ser plenamente compreendida porque o pensamento ecológico 171 Utiliza-se o termo ideologia no acordo semântico dado por Loewenstein (1982, p. 30-31), que acentua o papel desempenhado pela ideologia na conformação do sistema político: “O conceito de ideologia se pode definir da seguinte maneira: Um sistema fechado de pensamentos e de crenças que explicam a atitude do homem perante a vida e sua existência na sociedade, e que propugnam uma determinada forma de conduta e de ação que corresponde a tais pensamentos e crenças, e que contribui para realizá-los’. As ideologias são as cristalizações dos valores mais elevados em que crê uma parte predominante da sociedade, ou – o que ocorre de raro – a sociedade em sua totalidade. É importante sublinhar expressamente que as ideologias – e é isto que as diferencia da teoria ou filosofía política – compelem seus partidários à ação para conseguir sua realização. Ideologias são, portanto, o telos ou o espírito do dinamismo político numa determinada sociedade estatal”. 172 A homeostase consistem em um conjunto de elemento auto-reguladores de um sistema aberto que permite manter o estado de equilíbrio do meio ambiente. 244 245 é ao mesmo tempo um pensamento ecologizado. Todos os fenômenos que parecem simplesmente independentes e sem conexões devem ser, a partir de agora, considerados indepedentes e autônomos e dependentes e conexos com todos os outros fenômenos que os cercam. [...] O ecossistema é um fenômeno organizador, não somente no sentido material, mas também em termos de processo: é um fenômeno de computação, multiforme e global. [...] Eu diria, então, que o que faz a especificidade da ecologia enquanto ciência é o fato de se basear não no isolamento arbitrário de seu objeto, mas em sua complexidade organizacional. Em outra obra, Morin (1980, p. 23-24) desenvolve raciocínio análogo ao definir ecossistema como: O conjunto das interacções no seio de uma unidade geofísica determinável contendo diversas populações vivas constitui uma unidade complexa de carácter organizador ou sistema [...] Como iremos ver, o ambiente concebido como a união de um biótopo e de uma biocenose é, plenamente, um sistema, isto é, um todo organizando-se a partir das interações entre constituintes (biológicos e geofísicos); é, plenamente, uma unidade complexa, ou Unitas multiplex [...] Como todo o sistema activo, o ecossistema é, ao mesmo tempo, constituído e dilacerado pelas suas interacções internas. Esse equilíbrio dinâmico somente é rompido pela ação humana, já que, como afirma Capra (1998a), enquanto a natureza é cíclica, os sistemas industriais são lineares, extraindo recursos que são transformados em produtos e em resíduos. Os produtos são consumidos e convertidos em novos resíduos, que são descartados em proporções que normalmente ultrapassam os limites de tolerância do meio ambiente. [...] a flexibilidade de um ecossistema é uma conseqüência de seus múltiplos laços de realimentação, que tendem a levar o sistema de volta ao equilíbrio sempre que houver um desvio com relação à norma, devido a condições ambientais mutáveis. Por exemplo, se um verão inusitadamente quente resultar num aumento de crescimento de algas num lago, algumas espécies de peixes que se alimentam dessas algas podem prosperar e se proliferar mais, de modo que seu número aumente e eles comecem a exaurir a população das algas. Quando sua principal fonte de alimentos for reduzida, os peixes começarão a desaparecer. Com a queda da população dos peixes, as algas se recuperarão e voltarão a se expandir. Desse modo, a pertubarção original gera uma flutuação em torno de um laço de realimentação, o qual finalmente, levará o sistema peixes/alga de volta ao equilíbrio (CAPRA, 1998a, p. 234). Dessa forma, os ecosistemas apresentam capacidade natural de resposta às perturbações e flutuações externas. As sociedades industriais, no entanto, têm negligenciado essa característica, interferindo nos diversos fluxos ecológicos, a ponto de gerarem desequilíbrios permanentes. Para Capra (1998a), em última análise, isso decorre de uma visão antropocêntrica e reducionista do ambiente, que desloca o homem da Natureza, colocando-o acima ou fora desta. Essa visão ecológica superficial (“shallow ecology”) contrapõe-se e desvirtua o paradigma valorativo do meio ambiente para a ecologia, que percebe o mundo como uma rede 245 246 de fenômenos profundamente interconexos e interdependentes e o homem como um dos fios na imensa e complexa teia da vida (CAPRA, 1998a, p. 26). Constitui, portanto, valor ecológico a preservação do status quo do ecossistema. O não fazer humano e o fazer em níveis toleráveis (aquele que não afete a homeostase) representa, sob o ponto de vista ecológico, um fazer o bem (aspecto positivo). 1.3.3.2 Os animais e o biótopo: valores equivalentes integrantes do ecossistema O quadro acima agrupa os conceitos já apresentados de ecossistema, biótopo e biocenose, elementos sistêmicos estruturais da ecologia, conforme já visto. Quadro 1 – Esquema conceitual dos elementos estruturais da ecologia Ecossistema Local de vida, grande ou pequeno em que há trocas nutritivas e respiratórias entre espécies vivas da biocenose que o ocupa, produzem-se as trocas no interior dos seus limites e não os ultrapassam, senão ligeiramente (FRIEDEL, 1987, p. 50). Biocenose Conjunto equilibrado de animais e plantas que ocupam, de maneira cíclica ou permanente, um dado biótopo, e cujas populações não parecem modificar-se rapidamente (FRIEDEL, 1987, p. 109). Biótopo Local onde vive habitualmente uma dada espécie animal ou vegetal (FRIEDEL, 1987, p. 50). Esquematicamente, dos elementos negritados temos que: ECOSSISTEMA = BIOCENOSE + BIÓTIOPO Assim, a noção de ecossistema pode ser compreendida a partir da noção de biocenose (conjunto equilibrado de animais e plantas) e de biótopo (local onde vivem os animais e plantas). Há, pois, um elemento biótico (biocenose) – animais e plantas e um elemento abiótico (biótopo) – local onde vive. Nesse aspecto, os homens, animais racionais, vinculam-se ao elemento biótico (biocenose), não sendo distingüidos deste conjunto, que, por definição, abarca uma coletividade de espécies, das quais o homem é uma delas. Verifica-se, no caso, que o elemento racional não acrescenta nenhuma diferenciação; o que vincula o homem à biocenose é ser animal. 246 247 Para os elementos estruturais da ecologia, portanto, o homem compartilha com as outras espécies uma relação comum com o local (biótopo) em que vive. Taylor (1998, p. 75), tratando da igualdade dos homens em relação aos animais e vegetais, perante o susbistema ecológico, afirma: “Nós não negamos a diferença entre nós mesmos e as outras espécies, mas mantemos aceso na consciência o fato de que em relação aos ecossistemas naturais do nosso planeta, nós somos apenas uma das espécies dentre muitas outras”. Continuando o seu raciocínio, Taylor (1998, p. 75) destaca que, na ótica do ecossistema, nós consideramos a nós mesmos como um dos membros da biocenose e não algo separado dela. De forma ontológica, a origem do termo ecologia assinala a valoração de que todos os membros da biocenose são relevantes. Não podendo, nessa ciência, visualizar o homem como fim em si mesmo, mas como parte de um todo maior – membro da biocenose em um determinado biótopo. Portanto, vislumbra-se, na ecologia, de forma marcante, uma visão de macroética ecocêntrica, o que afeta, substancialmente, a valoração do positivo e do negativo desta ciência, ao sublinhar a semelhança, e não a diferença, entre o homem e os outros seres da biocenose. 247 248 2 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO MEIO AMBIENTE 2.1 O UTILITARISMO E A TEORIA DO VALOR DE USO: O PARADOXO DO VALOR DO DIAMANTE, DA ÁGUA E DO AR PARA BENTHAM E STUART MILL Como princípio orientador para a política pública, Jeremy Bentham (1784-1832) assumiu postulado fundamental: “a melhor ação é a que proporciona a maior felicidade ao maior número de pessoas”. Bentham (1974, v. 34, p. 9) desenvolveu filosofia moral, que sustentava que o acerto e o erro de uma ação deviam ser julgados em termos de suas conseqüências (ou sejam, os motivos eram obscurecidos pelas conseqüências). As boas conseqüências eram as que davam prazer a alguém, enquanto as más conseqüências eram as que causavam dor a alguém. O indivíduo, fundamentalmente livre, ao exercer a atividade econômica em seu interesse exclusivo, buscando o prazer e evitando a dor, causaria, como efeito inarredável e absoluto, o bem da sociedade. No mesmo sentido, as palavras de Smith (1999, v. 1, 757-758): Cada indivíduo esforça-se continuamente por encontrar o emprego mais vantajoso para qualquer que seja o capital que detém. Na verdade, aquilo que tem em vista é o seu próprio benefício e não o da sociedade. Mas o juízo da sua própria vantagem leva-o, naturalmente, ou melhor, necessariamente, a preferir o emprego mais vantajoso para a sociedade [...] Na verdade, ele não pretende, normalmente, promover o bem público, nem sabe até que ponto o está a fazer. Ao preferir apoiar a indústria interna em vez da externa, só está a pensar na sua própria segurança; e, ao dirigir essa indústria de modo que a sua produção adquira o máximo de valor, está a pensar no seu próprio ganho, e, neste como em muitos outros casos, está a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fím que não fazia parte das suas intenções (grifo nosso). Defende-se, pois, no liberalismo, a teoria segundo a qual a economia está sujeita a leis naturais que a levam fatalmente a uma situação de equilíbrio entre os integrantes do mercado, com frutos positivos para toda a sociedade, que será rica, se os seus integrantes o forem. O Estado não deveria, portanto, através da lei, interferir no funcionamento do mercado. Com Mill (1988, p. 27), o princípio da utilidade passa a ter nuanças que o aproximam da economia, das políticas públicas e de modo profético da problemática ambiental. Nesse sentido, relevante a passagem extraída das observações preliminares da sua obra “Princípios de Economia Política”, a respeito da riqueza e da utilidade de ser rico, verbis: Ser rico é ter um grande estoque de artigos úteis, ou os meios para adquiri-los. Por conseguinte, constitui parte da riqueza tudo aquilo que tem poder de compra, tudo aquilo em troca de que se daria alguma coisa útil ou agradável. Coisas pelas quais nada se pode adquirir em 248 249 troca, por mais úteis ou necessárias que possam ser, não constituem riqueza no sentido em que o termo é usado em Economia Política. Após ter destacado que o mercado não pode tratar de todos os fenômenos humanos, exemplifica a dificuldade de aplicação dos preceitos econômicos para o “ar”, não obstante ressalte a possibilidade de aplicação do utilitarismo para a felicidade causada pela posse do ar, verbis: O ar, por exemplo, ainda que seja a mais absoluta das coisas necessárias, não tem preço no mercado, pelo fato de poder-se obtê-lo gratuitamente; acumular um estoque de ar não traria nenhum lucro ou vantagem para ninguém, e as leis que regem sua produção e distribuição constituem matéria de um estudo muito diferente do da Economia Política. Contudo, embora o ar não seja riqueza, a humanidade é muito mais rica obtendo-o gratuitamente, já que se pode dedicar a outras finalidades o tempo e o trabalho que de outra forma seriam necessários para atender à mais urgente de todas as necessidades (MILL, 1988, p. 27). Portanto, mostra que há deficiências no mercado para apreciar o ar como um bem, uma utilidade, um valor positivo. Não obstante esta dificuldade do mercado, o ar possui utilidade, valor positivo, vinculado ao seu “valor intrínseco” (independente de valoração no mercado) de “atender à mais urgente de todas as necessidades”, a de viver. Nesse aspecto, Reale, G., (1991, p. 324), destaca comparando Mill e Bentham: Mas diferentemente de Bentham, afirma que se deve levar em conta não somente a quantidade de prazer, mas também a qualidade: “É preferível ser um Sócrates doente do que um jumento satisfeito”. Para saber “qual de duas dores é a mais aguda ou qual de dois prazeres o mais intenso, é preciso confiar no juízo geral de todos os que têm prática de uns e de outros”. E, para Mill, também não se delineia o contraste entre a maior felicidade do indivíduo e a felicidade do conjunto: é a própria vida social que nos educa e radica em nós sentimentos desinteressados (grifo nosso). Na contemporaneidade, Saunders (1995, p. 7) destaca que o capitalismo moderno é um sistema monetário no qual os valores dos bens e serviços podem ser expressos por uma quantia em dinheiro. O dinheiro, aqui, torna-se mola do capitalismo ao instrumentalizar o mercado. Matéria-prima e mercadorias são vendidas e compradas por meio de dinheiro pelo mecanismo livre de mercado. Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 52) irá afirmar que a codificação binária para o sistema econômico, anteriormente na Antiguidade e na Idade Média, foi a propriedade de bens e, contemporaneamente, é receber/ não receber pagamento (dinheiro), ou seja, estar ou não estar no mercado. A respeito da crítica aos defeitos intrínsecos dos mecanismos de mercado, Soros (1998) assinala que, ao contrário do equilíbrio propugnado pela teoria clássica, os mercados possuem um potencial para o desequilíbrio, caracterizando-se por períodos de prosperidade e depressão, pois o mercado atua de forma reflexiva.173 173 “Para compreender os mercados financeiros e os acontecimentos macroeconômicos, precisamos de um novo paradigma. Temos que suplementar o conceito de equilíbrio com o conceito de reflexividade. A reflexividade não invalida as conclusões da teoria do equilíbrio como um sistema axiomático, mas adiciona uma dimensão que a teoria do equilíbrio não levou em consideração. É como combinar a geometria plana com a noção de 249 250 2.2 A IDOLATRIA DO MERCADO NA GLOBALIZAÇÃO E A MITIGAÇÃO DA PROTEÇÃO ESTATAL AO MEIO AMBIENTE: O CASO TUNA-DOLPHIN David Ricardo formulou as bases do comércio internacional vigentes há cerca de duzentos anos. A maior contribuição de David Ricardo era a lei da vantagem comparativa. Todas as Nações poderiam ser favorecidas pelo comércio internacional, à medida em que todas as Nações teriam a habilidade de ter uma vantagem comparativa em relação às outras por produzir, com menor custo, determinados bens.174 Não se podem entender as relações internacionais da indústria sem ter como referência a questão da competitividade, já que essa resulta dos processos de concorrência entre empresas, hoje as grandes exportadoras, em seus mercados de atuação. A competitividade pode ser inferida como a capacidade da empresa formular e implementar estratégias concorrenciais, que lhe permitam ampliar ou conservar, de forma duradoura, uma posição sustentável no mercado.175 O rápido processo de globalização e regionalização da economia mundial acarreta a necessidade de compreensão do conceito de competitividade. Enquanto no nível de uma empresa a competitividade é caracterizada pela participação crescente no mercado dessa empresa às custas de outras empresas, a competitividade no nível das nações (e, conseqüentemente, das regiões) mede-se por outros fatores. Conforme destaca Fischer (1998, p. 22), Diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas de Hamburgo, o Fórum Internacional de Empresários de Davos (International Management Forum Davos) identificou fatores nacionais que, de acordo com a teoria econômica e com as evidências empíricas, conduzem à aferição da competitividade entre Países. Um desses fatores é o grau de participação do país no comércio internacional e nos fluxos de investimentos (internacionalização da economia nacional). Nesse referencial, a competitividade depende da criação e da renovação das vantagens comparativas176 por parte das empresas, em consonância com os padrões de concorrência vigentes, idiossincráticos de cada setor da estrutura produtiva, valorizando sempre a internacionalização da economia nacional. Por outro lado, decisões sobre o uso dos recursos naturais com consideração ou desconsideração ao impacto sobre o ambiente são determinantes básicos para a poluição e 174 175 176 que a Terra é redonda. A teoria do equilíbrio foi concebida para proporcionar generalizações de validade intertemporal. A reflexividade acrescenta uma dimensão histórica. A flecha do tempo introduz um processo histórico que pode ou não tender ao equilíbrio. Isso faz uma enorme diferença no mundo real” (SOROS, 1998, p. 83). “Ricardo é autor da conhecida “Teoria das Vantagens Comparativas” que demonstra serem vantajosas as trocas internacionais mesmo numa situação em que determinado país tivesse maior produtividade que outro na produção de todas as mercadorias” (FEIJÓ, 2001, p. 176). “[...] O corpo predominante do pensamento econômico no século XX veio a definir a competição, não como uma atividade, mas como um estado de coisas existentes em um mercado idealizado – o modelo da concorrência perfeita” (BOETTKE, 1996, p. 106). “A teoria das vantagens comparativas fornece uma explicação para as trocas internacionais. Segundo ela, os diversos povos tendem a se expecializar na produção daqueles bens e serviços para os quais são melhor dotados em relação aos demais, não devendo, pois produzir internamente produtos outros” (NUSDEO, 2000, p. 324). 250 251 outras formas de degradação ambiental, bem como para o maior ou menor custo de produção do país e o conseqüente interesse de investimentos internacionais neste País. As decisões sobre o uso dos recursos naturais, que são tomadas pelo mercado, sem a internalização do custo ambiental, mostram-se, conforme já vimos, distorcidas. A internalização dos custos defronta-se, portanto, também, com a questão da competitividade internacional, com as vantagens comparativas e com o dumping ecológico (considerado vantagem comparativa reprovável). A preocupação de segmentos da atividade econômica com relação às diferenças de padrões das normas ambientais nos diversos países é, extremamente, relevante em um mercado globalizado. Agentes econômicos, que internalizam maior proporção dos custos ambientais da produção, pela implementação de normas ambientais rigorosas ou outras medidas atinentes à política ambiental, ficam em desvantagem em relação aos que seguem normas ambientais menos rigorosas. Como expressão desse jogo das forças de mercado, pode-se visualizar a forte pressão exógena sofrida pelos Estados para uma homogenização por baixo das normas protetivas ambientais. Tal fato demonstra o reflexo deletério do fenômeno globalização para a proteção ambiental. Para evitar tal comportamento, demonstrativo da ineficência protetiva do Estado pela perda de sua autonomia, conforme destaca Habermas (1999, p. 6), mecanismos internacionais devem ser utilizados. Assim, sobre os limites para a utilização de instrumentos de mercado nas políticas ambientais, o princípio n. 16 da Declaração do Rio de Janeiro, de 1992 (ECO92), buscando harmonizar a proteção ambiental e a livre concorrência no Comércio Internacional, declara: As autoridades nacionais devem esforçar-se para promover a internalização dos custos de proteção do meio ambiente e o uso dos instrumentos econômicos, levando-se em conta o conceito de que o poluidor deve, em princípio, assumir o custo da poluição, tendo em vista o interesse do público, sem desvirtuar o comércio e os investimentos internacionais (HESSEN, 1967, p. 42). Uma padronização mínima, em nível internacional, da internação dos custos ambientais dos produtos comercializados no exterior, portanto, faz-se necessária. Um exemplo de disputa comercial versus ambiental, no âmbito do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade – GATT), envolvendo mecanismos internacionais de proteção do comércio internacional e do meio ambiente, podem esclarecer essa questão. Trata-se de casos emblemáticos do debate ecológico entre comércio exterior e meio ambiente, relativos à existência de dumping ecológico, denominados tuna/dolphin disputes (atum e golfinhos), ocorridos em 1991/1992 (Tuna-Dolphin I) e em 1994 (Tuna-Dolphin II) . O caso Tuna-Dolphin I foi levantado, pelo México, contra embargos de importação de atum, impostos pelos Estados Unidos, com a alegação de que a pesca mexicana com rede estava ocasionando a morte de cardumes de golfinhos. Por outro lado, o caso Tuna-Dolphin II envolveu um embargo, também americano, só que, dessa vez, envolvendo outros países (União Européia e Nova Zelândia) que reexportavam o atum comprado do México. Tratava-se, então, de um embargo de segundo grau. 251 252 Os Estados Unidos perderam os dois casos perante o GATT, havendo farta literatura sobre o tema.177 Na visão norte-americana, as restrições protecionistas impostas estavam corretas e surgiram de normas protetivas ambientais internas de proteção a mamíferos marinhos (golfinhos), o que acarretou significativa mudança tecnológica nas frotas pesqueiras norteamericanas com aumento no custo da pesca do atum. Assim, o ingresso no país de atum pescado em desacordo com a legislação norteamericana era prejudicial ao mercado interno, que seguia as normas previstas, não podendo ser prejudicado por ser “ecologicamente correto”. O GATT decidiu que somente podem ser adotadas as medidas necessárias para a proteção do ambiente, ao invocar-se o artigo XX, alínea “b”, quando atendidas determinadas circunstâncias que, excepcionalmente, legitimam o protecionismo do mercado interno necessário para a proteção da vida ou da saúde humana, da saúde animal ou da saúde vegetal. Assim, a argumentação foi construída no sentido de que só pode ser invocada essa cláusula de proteção ambiental internacional, quando: a) o componente relevante do ambiente requerer proteção imediata; b) de todas as medidas possíveis para a proteção do recurso ou do bem ambiental, a adotada for a menos distorsiva do mercado;e c) a medida adotada for proporcional à proteção ambiental exigida (PEPPER, 2000, p. 71). Evidencia-se, pois, a mitigação da proteção ambiental estatal, mesmo de potências mundiais como o Estados Unidos da América, em face do comércio internacional em mundo globalizado ansioso por competitividade e “vantagens comparativas”, expressão do utilitarismo de Bentham e Mill no Comércio Internacional. 2.3 CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO À VALORAÇÃO DO MEIO AMBIENTE PELO MERCADO 2.3.1 O meio ambiente: valor de troca, valor-trabalho ou valor intrínseco O GATT, ao decidir o caso apresentado anteriormente, pautou-se por critérios que enfatizavam a ponderação de fatores exclusivamente econômicos: o comércio internacional e as barreiras protecionistas garantidoras do mercado interno. O meio ambiente, entretanto, não pode ser tratado de forma reducionista, simplesmente como um recurso natural. A teoria de valor utilizada no sistema econômico, baseia-se, fundamentalmente, no valor de troca, o que acarreta sérios contrastes com o sistema valorativo existente no subsistema funcional ecológico. As teorias capitalistas neoliberais usam os consumidores para estabelecer o valor, por meio da troca de bens e serviços num mercado. Quando a economia capitalista fala de 177 Cf. PORTER (1992, p. 91-116). 252 253 “valor”, quer significar o valor de troca presente restrito a um grupo de pessoas (consumidor e produtor). Esquece-se, no mercado, o contrato social178 e o contrato natural179, que fundamenta a sociedade moderna. A solidariedade dos cidadãos de um país desaparece na busca utilitária-individualista de um consumidor e de um produtor. Para Serres (1994, p. 65-66), há atualmente um contrato natural entre o homem e a Terra: Portanto, o retorno à natureza! O que implica acrescentar ao contrato exclusivamente social a celebração de um contrato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e o respeito, em que o conhecimento não suporia já a propriedade, nem a acção o domínio, nem estes os seus resultados ou condições estercorárias. Um contrato de armísticio na guerra objectiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita - o nosso actual estatuto – condena à morte aquele que pilha e o habita sem ter consciência de que, a prazo, se condena a si mesmo ao desparecimento. Do mesmo modo, assinala Sachs (2000, p. 49): A ética imperativa da solidariedade sincrônica com a geração atual somou-se a solidariedade diacrônica com as gerações futuras e, para alguns, o postulado ético de responsabilidade para com o futuro de todas as espécies vivas na Terra. Em outras palavras, o contrato social no qual se baseia a governabilidade de nossa sociedade deve ser complementado por um contrato natural. Como anota Bobbio (1997, p. 114), o “liberalismo é, como teoria econômica, autor da economia de mercado; como teoria política, é autor do estado que governe o menos possível ou, como se diz hoje, do estado mínimo”. Segundo Pepper (2000, p. 71), a visão utilitária caracteriza o valor de troca, “o que satisfizer o <<desejo>> de maior número de pessoas tem maior valor. O que é mais e menos procurado é assinalado (teoricamente) pelo preço – preço alto denotando procura alta em relação à oferta”. Já a teoria de Marx (1998, v. 1, p. 61) sobre o valor salienta o trabalho não se esqueceu, Marx , entretanto, de que o mercado dá destaque ao valor de troca. A teoria do valor-trabalho de Marx vincula-se à sua teoria da mais valia, constituindo etapa da demonstração de que tudo é trocado por determinado valor, que propicia o lucro (mais valia). Assim, conforme afirma Aron (1999, p. 140), o valor de qualquer mercadoria, para Marx, é, de modo geral, proporcional à quantidade de trabalho social médio nela contida. 178 Teoria de governo segundo a qual a sociedade é criada pela vontade comum dos indivíduos, que vêem maior vantagem na associação do que no isolamento, e que a legítima autoridade política, portanto, está no consentimento dos governados. O conceito remonta pelo menos a escolásticos medievais como Guilherme de Occam, segundo o qual o poder do Estado provinha da vontade do povo, mas apóia-se principalmente nas idéias desenvolvidas no Leviatã (1651) de Thomas HOBBES (2001), em Dois Tratados Sobre o Govemo (1690) de John LOCKE (1998) e no Contrato Social (1762) de Jean-Jacques ROUSSEAU (2000). 179 Cf. SERRES (1994, p. 60-66) com relação ao contrato natural. 253 254 Nesse aspecto, Aron (1999, p. 140) assinala: Por que é assim? O argumento essencial que Marx apresenta é o de que a quantidade de trabalho é o único elemento quantificável que se descobriu na mercadoria. Se consideramos o valor de uso estamos diante de um elemento rigorosamente qualitativo. Não é possível compara o uso de uma caneta com o de uma bicicleta. Trata-se de dois usos estritamente subjetivos e, sob esse aspecto, não podem ser comparáveis um com o outro. Como procuramos saber em que consiste o valor de troca das mercadorias, precisamos encontrar um elemento que seja quantificável, como o próprio valor de troca. E, diz, Marx, o único valor quantificável é a quantidade de trabalho que está inserido, integrado, cristalizado em cada uma delas. O próprio Marx (1998, v. 1, p. 62) destaca, categoricamente, que “a grandeza do valor de uma mercadoria varia na razão direta da quantidade e na inversa da produtividade do trabalho que nela se aplica”. Assim, a teoria marxista orienta-se para o produtor. Considerando o trabalho humano a principal fonte de valor, quanto mais trabalho investido nos produtos e serviços, mais valorosos eles tendem a ser, especialmente se forem ao encontro das “necessidades”, mais do que dos desejos. Para Pepper (2000, p. 71), a economia socialista, então, não se centra no “desejo de consumir” para estabelecer o valor, mas realçaria a utilidade social. Não obstante as diferenciações de ênfase no consumo por desejo ou necessidade, ambas as visões – a capitalista e a socialista – prendem-se à troca, conforme demonstramos. Todas essas teorias fundam-se na tradição do humanismo antropocêntrico, que se desenvolveu na Europa Ocidental a partir da Idade Média. Existe, entretanto, a teoria “verde” do valor, que considera a natureza como fonte primária de todo o valor. Na visão de Pepper (2000, p. 72), essa teoria verde do valor busca mais do que apenas atribuir “valores baixos a bens e serviços que engolem os recursos naturais. Também implica mérito e valor na própria natureza, independentemente da sua utilidade para os seres humanos”. A esse valor inerente da Natureza, que passa a ser considerada como fim em si mesmo e não como meio, denominaremos, nesta tese, de valor intrínseco. A denominação valor intrínseco vincula-se à expressão “intrinsic value in Nature”, oriunda de diversos autores da “environmental ethics” norte-americana, já analisados na parte I desta tese (dimensão ética do meio ambiente). Para a “deep ecology”, conforme já visto, os seres humanos não estão nem fora nem acima da natureza, sendo apenas um dos seus constituintes. Portanto, os seres humanos não podem ser árbitros do valor das outras partes constituintes da natureza. A igualdade factual da participação do homem no meio ambiente exige que os seres humanos valorizem e respeitem todas as outras entidades vivas e “não-vivas” (em certo sentido, pela Teoria de Gaia, tudo está vivo ao fazer parte de um todo ecológico). De forma simplificada, decorreria, dessa argumentação, uma das visões do valor intrínseco do meio ambiente, que pode ser questionada consoante se utilize de uma visão 254 255 subjetiva ou objetiva do valor, conforme analisamos no primeiro capítulo desta parte da tese, destacando que a corrente subjetiva predomina .180 Entretanto, há inúmeras outras justificativas para a valoração do bem ambiental como valor intrínseco, mesmo sob a visão antropocêntrica. Para fins de análise, entretanto, deve-se destacar que o valor de troca do mercado (seja em uma visão liberal ou socialista), de cunho utilitarista – meio pelo qual o maior número de pessoas pode satisfazer os seus desejos (visão positiva – capitalista) ou diminuir suas necessidades (visão negativa – socialista) – entra em choque metodológico em face da diferente hierarquia de valores utilizados. Para fins de melhor assimilação do que foi dito, apresenta-se o quadro abaixo. Quadro 2 - Teorias do valor e meio ambiente Economia neoclássica A sociedade é conjunto de consumidores racionais, agindo livremente nos mercados para maximizar as oportunidades de satisfazer os seus desejos. A fonte de valor dos bens e serviços é a preferência subjetiva (utilitária) desses indivíduos. Assim, a procura crescente em relação à oferta estabelece o valor do bem ambiental Marxismo A posse privada dos meios de produção e o imperativo de criar e acumular capital geram um sistema de classes no qual não se paga o total do valor dos bens e serviços às pessoas que o produzem. Por esta razão, o excedente (a mais-valia) é apropriado pelos produtores. O valor dos bens é oriundo do trabalho incorporado aos bens e aos serviços. Intrínseco O valor dos bens e serviços naturais não se originam da sua utilização pelo Homem; são inererentes a ele próprio. 180 “O’Neill considera que, para haver ética ambiental, tem de se acreditar que a natureza tem valor intrínseco. Isto é discutível, mas os ecologistas profundos concordavam certamente. No entanto, <<valor intrínseco>> pode ter três significados de acordo como O’Neil: Primeiro, é sinônimo de valor não instrumental, de forma que a natureza não é meio para alcançar um fim, mas um fim em si mesmo. Segundo, tem valor em termos das suas próprias propriedades, e não apenas por virtude da sua relação com outras entidades; por exemplo, uma floresta pode ter valor insignificante quer seja ou não a única da sua espécie. Terceiro, é um sinônimo de valor objectivo, isto é, reside valor na natureza independentemente de quem lhe possa também dar valor. Por outras palavras, se toda a vida humana cessasse, o resto da natureza continuava a ter valor e mérito” (O’NEILL, 1993 apud PEPPER, 2000, p. 74). 255 256 2.3.2 Críticas aos valores de mercado, decorrentes do valor intrínseco da natureza e suas diferentes fundamentações Segundo Zimmerman (1998), Professor de Filosofia e de Estudos Ambientais da Tulane University, a filosofia ambiental americana dá suporte conceitual para a fundamentação do valor intrínseco do meio ambiente em três grandes ramos: a) a ética ambiental (“environmental ethics”); b) os movimentos da ecologia radical (ecologia profunda – “deep ecology”; ecofeminismo – “ecofeminism” e ecologia social – “social ecology”, entre outros); c) os mecanismos protetivos antropocêntricos. As características principais de cada um desses movimentos filosóficos ambientais, analisados de forma exaustiva na primeira parte deste trabalho, foram detalhados de forma sintética no quadro abaixo (ZIMMERMAN, 1998). Quadro 3 – Ramos principais de suporte ao valor intrínseco da Natureza na “environmental philosophy” americana Elementos comparativos Conceito básico Ramos mais relevantes Ética ambiental Extensão de preocupações morais para outros entes nãohumanos • Visão ecocêntrica sentido lato – Igualdade substancial entre os diferentes elementos integrantes da teia da vida. • Visão biocêntrica – todos os entes vivos e não-vivos • Visão ecocêntrica no sentido estrito – só os seres vivos ou só Ecologia Radical Mecanismos protetivos antropocêntricos Grandes mudanças de paradigmas sociais e culturais para a resolução efetiva da crise ambiental presente A má administração dos recursos ambientais, ocasiona a atual crise, podendo ser resolvida sem posturas radicais ou filosóficas ecocêntricas As correntes variam em função da concepção da causa da crise ambiental. Variam em função da ênfase nas causas do mau comportamento perante os recursos naturais, não sendo rotulados explicitamente. • Ecologia Profunda – arrogância antropocêntrica; • Ecofeminismo – visão de que o patriarcado (domínio do sexo masculino) explora as mulheres, os filhos e a natureza por • Causa ganância; • Causa ignorância; • Causa comportamento 256 257 alguns deles ser arrogante. ilícito. • Ecologia social – hierarquia social Autores mais conhecidos contemporâneo s Visão biocêntrica Aldo Leopold; J. Baird Callicott; Holmes Rolston, James Lovelock. Visão ecocêntrica no sentido estrito Peter Singer; Tom Regan; Paul Taylor; Michael Zimmermam Ecologia Profunda Arnae Naess; George Sessions. Mark Sagoff Ecofeminismo Karen J. Warren; Carolyn Mercant Ecologia social John Clark Os dados do Quadro foram construídos com modificações das informações colhidas da leitura da obra “Environmental Philosophy: from animal rights to radical ecology”, cujo escopo é dar uma visão geral por meio de artigos da “environmental philosophy” americana (ZIMMERMAN, 1998). De forma marcante, os dois primeiros ramos defendem a existência de valores intrínsecos à Natureza; o terceiro ramo, de visão antropocêntrica, possui multiplicidade de visões; entretanto, também se preocupa com a natureza como valor que possui, pelo menos valor estético para o homem que independe de sua exploração física.181 Para a avaliação do meio ambiente, a Economia do Meio Ambiente ou dos Recursos Naturais, ramo da economia neoclássica, preocupada com as externalidades ambientais do mercado, de cunho antropocêntrico, surge como uma manifestação pungente do terceiro ramo, tendo sido analisada na segunda parte desta tese sob o prisma da dimensão econômica do meio ambiente. A Economia dos Recursos Naturais pertence à terceira corrente, por defender como causa da crise ambiental, a ignorância do Mercado. Reconhece, pois, que a adoção metodológica do valor de troca ocasiona efeitos indiretos perversos na busca do valor de equilíbrio entre a oferta e a procura, pela desconsideração de outros elementos vistos como externalidades. Essa variante da economia neoliberal, analisada na segunda parte da presente tese (DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE), defende a possibilidade de um valor 181 No âmbito da economia dos recursos naturais, o valor estético, existencial ou intrínseco do meio ambiente foi conceituado como “valor de existência”ou “valor de legado” (FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256). 257 258 que não esteja associado a qualquer utilização presente ou mesmo futura do bem (FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256). Nesse aspecto, Faucheux; Nöel (1997, p. 256), ao tratarem do valor de existência, ensinam: O valor de existência (Krutilla, 1967) reside em certos bens ambientais pelo simples facto da sua existência e independentemente de qualquer utilização. Ele pode ser <<apanhado>> pelos agentes através das suas preferências (e, por conseqüência, expresso pela sua anuência em pagar) sob a forma de um valor de não utilização. O seu fundamento reside na sua relação com os agentes, na simpatia que inspiram certas espécies animais ou, mais geralmente, no reconhecimento do direito à existência dos não humanos. Este valor de existência aparece como principalmente antropocêntrico mas pode incluir um reconhecimento do valor da simples existência de certas espécies ou de um ecossistema completo. O valor atribuído às baleias não reside na utilização presente ou futura que esperamos delas e é muito provável que os agentes susceptíveis de pagar para assegurar a sobrevivência destes cetáceos não verão nunca nenhum deles ao vivo. Porém, o simples facto de que estes animais existam basta para que se lhes atribua um certo valor. Por outro lado, considerando o valor de legado, como o aspecto transgeracional do valor de existência, afirmam esses consagrados economistas franceses: O valor de legado consiste em atribuir um valor a um bem ambiental em consideração pelo uso que dele poderão fazer as gerações futuras ou do valor de existência que estas lhe poderão reconhecer. Trata-se, para os agentes actuais, de exprimir um consentimento em pagar para que as gerações futuras possam dele usufruir. Não se trata portanto de um valor de utilização (se trata de um valor de existência) para o indivíduo que estabelece o valor, mas de um valor potencial de utilização ou de não utilização para os seus descendentes. O problema é que um tal comportamento por parte dos agentes actuais pressupõe que as preferências das gerações futuras serão as mesmas que as suas. Ora, nada é menos seguro (FAUCHEUX; NÖEL, 1997, p. 256). Sob o ponto de vista filosófico, há, na visão antropocêntrica, a existência mínima de, pelo menos, valor estético para a Natureza. Nesse aspecto, interessante é a obra de Sagoff (1988, p. 172), a qual critica o valor da propriedade natural intocada em contraste com o valor econômico dado à terra para venda e incorporações imobiliárias pelo homem. Sagoff, (1988, cap. 8) questiona em que extensão o valor da terra reflete o preço de mercado (valor de troca). Destaca, em seguida, o papel do Estado de implementação de melhores normas jurídicas para o trato da questão com base no consenso, sem que seja necessária a modificação da lógica do mercado. Afirma, pois: Qual a regra legislativa correta a ser formulada para resolver um determinado problema, pode ser uma questão de opinião. Um dos mais importantes fins do Estado, então, é permitir estruturas políticas abertas para que as pessoas com diferentes opiniões possam evitar a discussão acirrada e obter o consenso. A estrutura do Estado 258 259 Democrático Moderno parece ser o melhor mecanismo para obtenção deste consenso (SAGOFF, 1988, p. 191). Portanto, fica demonstrado que independentemente da postura filosófica que se adote para a questão ambiental, a visão, esquecida pelo mercado no valor de troca, de que o meio ambiente tem valor intrínseco, persiste, sendo, essa, a maior crítica à avaliação feita pelo preço de mercado, que não leva em conta este relevante elemento valorativo. 259 260 3 O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO 3.1 O HORROR AMBIENTAL E A NECESSIDADE DO ESTADO INTERFERIR NO MERCADO COM VISÃO SISTÊMICA 3.1.1 Os limites do estado e a indispensável prevalência do político sobre o econômico na visão de Habermas Habermas (1999, p. 4) após destacar as limitações do Estado para diminuir as externalidades do mercado globalizado, afirma existirem quatro respostas políticas possíveis: a) a favor da globalização; b) contra a globalização; c) terceira via atenuada em face da globalização; d) terceira via mais agressiva. A primeira resposta pauta-se pela ortodoxia neoliberal. Significa defender a submissão incondicional do Estado aos ditames do mercado, de forma a abandonar “seus cidadãos à afiançada liberdade negativa de uma competição mundial e limita-se, quanto ao mais, a por regularmente à disposição infra-estruturas que tornem atraente sua própria posição sob a perspectiva da rentabilidade e fomentem atividades empresarias” (HABERMAS, 1999, p. 4). Analisando tal resposta, Habermas (1999, p. 4) alerta para o perigo que esse posicionamento pode provocar em termos de perda de democracia e de desigualdade social. Perde-se a democracia porque o Estado nacional perde funções no contexto interno, sem que surja, no plano supranacional, uma dinâmica correspondente. Com relação à desigualdade social, Habermas (1999, p. 5) afirma que mesmo sob a premissa de que em um determinado momento haverá “um equilíbrio global das posicões” das Nações e uma “situação-limite de uma divisão simétrica de trabalho” , em um período, que supostamente fosse de transição, a ausência do Estado traria não só “aumento drástico da desigualdade social da fragmentação da sociedade, mas também a corrupção dos critérios morais e da infra-estrutura cultural”. Outra resposta possível é a diametralmente oposta. Orienta-se a rechaçar, totalmente, as forças que tendem a aniquilar o Estado nacional e a democracia. Para Habermas, os defensores da tese antiglobalização adotam um posicionamento tão perigoso como o anterior, à medida em que oferecem riscos incontornáveis para a sociedade. Assim, Habermas (1999, p. 5) afirma: O furor protecionista, em todo caso, leva água ao moinho da defesa etnocêntrica da multiplicidade, da defesa xenófoba do Outro e da defesa antimodernista das relações complexas de vida. O furor dirigese contra tudo que ultrapassa fronteiras – contra traficantes de armas e 260 261 drogas ou mafiosos que põem em risco a segurança interna, contra a enxurrada de informações e os filmes americanos que ameaçam a cultura pátria, ou contra o capital externo, os trabalhadores imigrantes e os refugiados, que são um perigo ao padrão de vida próprio. Também ressalta a dificuldade de implementação desta política, pela impossibilidade de o Estado nacional recuperar a antiga força, em face do atual modelo de globalização. Assim, partindo do pressuposto de que o processo de globalização é irreversível, Habermas simpatiza-se com as opções que envolvem a terceira via (terceira e quarta opções), em uma clara referência ao pensamento do principal teórico da terceira via, o sociólogo britânico Anthony Giddens, que tem forte influência no Governo do Primeiro-Ministro Britânico Tony Blair.182 Na visão do próprio Giddens (1999, p. 8), o Estado ainda é extremamente importante no contexto da globalização. Haverá reestruturação deste e da sua soberania; entretanto, continua o Estado a ter importantes papéis a serem desempenhados; o movimento nacionalista, também fruto da globalização, dá destaque à importância do Estado. Habermas (1999) observa que os defensores dessa tese – terceira via atenuada – são conduzidos por liberalismo que prega a igualdade social, entendida apenas como igualdade de oportunidades; que busca modo de vida orientado para o mercado, reconhecendo, em todo o cidadão, um empresário de si mesmo.183 A variante ofensiva da terceira via (quarta opção) distingue-se da anterior, segundo Habermas (1999), por “guiar-se pelo primado da política em relação à lógica do mercado”. 184 A terceira via atenuada estaria sujeita “à subordinação da política ao imperativo de uma sociedade mundial integrada pelo mercado” (HABERMAS, 1999, p. 5). Na obra “A crise de legitimação no capitalismo tardio”, “Capítulo IV – Teoremas da crise econômica”, Habermas (1980, p. 72-73) já afirmava que, diante das crises, o Estado passa a perseguir o fim de conduzir o sistema econômico, razão pela qual identificava quatro categorias de atividade estatal: a) b) c) d) as atividades de constituição e preservação do modo de produção; as atividades de complementação do mercado; as atividades de substituição do mercado; as atividade de compensação de disfunções do processo de acumulação. 182 Anthony Giddens, Diretor da “London School of Economics and Political Science”, é autor de mais de trinta livros dos quais se destaca “The Third Way” (Polity, 1998) e “Beyond Left and Right” (Polity, 1994). Influencia debates a respeito do futuro da social democracia em vários países no mundo. Notabilizou-se na Inglaterra como o principal conselheiro de Tony Blair, sendo que as idéias de Giddens tiveram um forte impacto na evolução do Novo Partido Trabalhista Britânico. (Informações disponíveis em: http://www.lse.ac.uk/Giddens/meet.htm. Consulta em 14/01/2002). 183 “Segundo a variante defensiva, não há como anular a subordinação da política ao imperativo de uma sociedade mundial integrada pelo mercado. O Estado nacional não deve cumprir somente um papel reativo em vista das condições de utilização do capital de investimento, mas também um papel ativo em todas as tentativas de qualificar os cidadãos da sociedade e capacitá-los à competição. A nova política social não é menos universalista do que a antiga. Mas ela não deve, em primeiro lugar, servir de resguardo contra os riscos-padrões do trabalho, e sim dotar as pessoas com qualidades empreendedoras típicas de ‘realizadores’, que saibam cuidar de si próprios” (HABERMAS, 1999, p. 5). 184 “Quem não quiser fugir a tais preceitos tomará em consideração uma outra variante, ofensiva, da terceira via. Essa perspectiva deixa-se guiar pelo primado da política em relação à lógica do mercado” (HABERMAS, 1999, p. 5). 261 262 Em objeção à visão marxista do Estado como uma “superestrutura” do modo de produção185, Habermas (1980, p. 71-72) afirma que: Hoje o Estado tem de cumprir funções que nem são explicadas com referência aos pré-requisitos da contínua existência do modo de produção, nem derivadas do movimento imanente do capital. Este movimento não é mais realizado através de um mecanismo de mercado que pode ser compreendido na teoria do valor, e sim um resultado das forças condutoras econômicas ainda efetivas e de uma ativa contrapartida política, na qual encontra expressão um deslocamento das relações de produção (grifo nosso). Assim, o Estado, para Habermas, pode e deve influenciar as forças de mercado, pois ele não é simples reflexo do modo de produção. Com o objetivo de modificar as relações de produção (“deslocamento das relações de produção”), distingüiu, pois, as quatro atividades estatais de deslocamento das relações de produção. Essa tarefa do Estado, conforme reconhece Habermas (1980, p. 72), está na sua própria atividade de constituição do mercado e preservação do modo de produção, restando à legislação civil destacado papel: O Estado assegura o sistema da lei civil, como as instituições básicas da propriedade e da liberdade de contrato; protege o sistema de mercado dos efeitos colaterais auto-destrutivos (por exemplo através da introdução da jornada normal de trabalho, da legislação anti-trust e da estabilização da moeda); cumpre os prérequisitos da produção na economia, enquanto um todo (tais como: educação, transporte e comunicação); promove a capacidade da economia doméstica diante da competição internacional (por exemplo, através de políticas de exportação e das áreas); e se reproduz através da preservação militar da integridade nacional no exterior e pela supressão paramilitar dos inimigos do sistema (grifo nosso). Outrossim, encontra-se nas atividades de complementação, pois o processo de acumulação de capital requer adaptação do sistema legal a novas formas de organização comercial, competição, financiamento, tal como a criação de novos arranjos legais em direito bancário, comercial e financeiro (HABERMAS, 1980, p. 72). Um exemplo histórico da atividade de complementação foi dado por Polanyi (2000, p. 18), ao destacar o papel do Estado de regular o mercado para correção das suas disfunções 185 “Base e superestrutura [...] são metáforas marxistas para descrever as relações entre a economia (relações de produção) e o governo [...] Uma sociedade existe se houver compatibilidade entre seu governo (política, leis), suas idéias e suas estruturas econômicas. Nem tudo é possível: se a economia muda, o governo e as idéias terão de mudar [...] As palavras “base e superestrutura” foram introduzidas por Marx (1859). Ele afirmava que estado, política e formas ideológicas compunham uma superestrutura construída sobre a base de relações de produção, sendo esta última compatível com um nível definido dos meios de produção [...] A afirmação de que pensamento e governo baseiam-se no modo de produção permeia todo o texto de A ideologia alemã (Marx e Engels, 1845-6). Engels discutiu as relações entre base e superestrutura em inúmeras cartas escritas entre 1890 e 1895. Ele introduziu a descrição de feedback dos relacionamentos entre base e superestrutura, destacando que as instituições pertencentes à superestrutura têm algumas características não-determinadas por sua base” (LOONE, 1996, p. 40-41). 262 263 e proteção da sociedade.186 Nesse ponto, salienta a importância dos instrumentos legais e fiscais para a proteção social no contexto do protecionismo alemão no fim do século XIX: Nossa tese é que a idéia de um mercado auto-regulável implicava uma rematada utopia. Uma tal instituição não poderia existir em qualquer tempo sem aniquilar a substância humana e natural da sociedade; ela teria destruído fisicamente o homem e transformado seu ambiente num deserto. Inevitavelmente, a sociedade teria que tomar medidas para se proteger, mas qualquer que tenham sido essas medidas elas prejudicariam a auto-regulação do mercado, desorganizariam a vida industrial e, assim, ameaçariam a sociedade em mais de uma maneira. Foi esse dilema que forçou o desenvolvimento do sistema de mercado numa trilha definida e, finalmente, rompeu a organização social que nela se baseava (grifo nosso). 187 Na atividade de complementação, o Estado se limita a adaptar o sistema legal ao mercado, não influenciando a sua dinâmica. Na atividade de constituição, dá o suporte normativo para que o mercado possa seguir a sua dinâmica própria. Esse é o ponto nodal que distingüe os dois primeiros grupos de atividades do Estado do terceiro (as atividades de substituição do mercado) e do quarto (as atividades de compensação de disfunções do processo de acumulação), extremamente relevantes para a análise do papel regulador do Estado de minimizar ou, por que não, corrigir as deficiências do mercado em um mundo globalizado. Nos dois primeiros grupos de atividades do Estado, característicos do Estado Liberal, o Direito é um garantidor das políticas de laissez-faire. Nos dois últimos, o Estado passa a ser o Estado Social, o Estado Dirigente, o Estado Ambiental, ou, pelo menos, o Estado Regulador, aquele que intervem no fenômeno 186 A obra de Karl Polanyi, “The Great Transformation”, não obstante tenha sido escrita na década de 1940, permanece atual para compreensão do debate da valoração feita pelo Mercado e o seu contraste com os valores basilares da sociedade. Esta grande obra pode ser apreciada sob a ótica da história, que já apresentou no início do seculo passado alguns dos problemas estruturais da economia de mercado e de suas conseqüências maléficas para a paz mundial.A grande transformação da economia primitiva para a economia capitalista na visão do húngaro Karl Polanyi (1886-1964) proporciona uma compreensão crítica do afastamento do homem, como sujeito por excelência do processo valorativo, em decorrência da valoração efetivada pela estrutura do mercado-liberal e dos efeitos perversos decorrentes desta alienação do homem do processo valorativo. Esta obra clássica está dividida em três partes. A primeira e a terceira partes – “O sistema internacional” e a “Transformação em progresso”- concentram-se na análise das circunstâncias que teriam ocasionado a primeira guerra mundial, a Grande Depressão de 1929, o crescimento do fascismo na Europa, do “New Deal” nos Estados Unidos da América e da planificação econômica da União Soviética. Na visão de Polanyi, a civilização do século XIX fracassou pelo efeito amargo das medidas tomadas como legítima defesa da sociedade contra mercado auto-regulável (POLANYI, 2000). 187 “The Great Transformation” foi escrita em 1944. Com expressão assemelhada, Hobsbawm (1995, p. 29) denomina a primeira era do século XX como a “era da catastrofe”, associando o termo as duas grandes guerras mundiais, a queda do liberalismo, ao surgimento do socialismo e à crise econômica de 1929. 263 264 econômico, com vistas à garantia dos direitos sociais, em um primeiro momento, e dos direitos ambientais, conforme queremos provar, em um segundo e distinto momento.188 Para Habermas (1980, p. 73), “a atividade governamental, nas duas últimas categorias, é típica do capitalismo organizado”, não obstante de modo concreto seja difícil diferenciar algumas atividades estatais que se encontram em uma zona cinzenta entre as atividades classificadas. Nas ações substitutivas do mercado, segundo Habermas (1980, p. 72), são levadas em consideração não apenas as situações econômicas, estas continuam em primeiro plano, muito embora o Estado passe a atuar como mais um agente econômico com vistas a uma reação à fraqueza das forças condutoras econômicas. O Estado passa a ser o Estado-empresário, aquele que atua diretamente como agente econômico no mercado, utilizando da lógica do mercado (oferta e procura), muito embora com objetivos que transcendem à axiologia dos empresários privados, conforme destaca Habermas (1980, p. 72-73): Tais “ações” por isto criam novas situações econômicas e negócios, seja através da criação e da melhora de oportunidades de investimentos (demanda governamental de progresso científicotecnológico, qualificação ocupacional de forças de trabalho etc. Em ambos os casos, o princípio da organização permaneceu inalterado, como pode ser visto na emergência do setor público estranho ao sistema. Finalmente, o Estado compensa conseqüências disfuncionais do processo acumulativo do método valorativo do mercado. Por um lado, encarrega-se das conseqüências externas da empresa privada, como afirma, textualmente, Habermas (1980, p. 73), “por exemplo, dano ecológico, ou assegura a capacidade de sobrevivência dos setores ameaçados (por exemplo, mineração e agricultura) através de medidas de política estrutural”. Nesse momento, no momento do capitalismo organizado, momento vivenciado por Habermas (1980, p. 74) em 1973, data em que publicou “Legimationsprobleme im spaetkapitalismus”, o Estado afeta o modo de produção capitalista, seja alterando a produção da mais valia (salário-mínimo, distribuição do lucro para os trabalhadores); seja criando estrutura salarial política (benefícios previdenciários, justiça dos “menos favorecidos” Justiça Trabalhista); seja na crescente necessidade de legitimação do sistema político, que traz ao jogo demandas orientadas aos valores de uso e não exclusivamente aos valores de troca. A mudança do modo de produção capitalista, na classificação de Habermas, mais relevante para a problemática ambiental é esta última: a correção da disfunção do mercado de centrar-se no valor de troca, esquecendo-se do valor de uso. O que pode tornar, por exemplo, o diamante escasso, muito mais valioso do que a água abundante, não obstante o primeiro seja um bem supérfluo e o segundo seja um bem essencial para a vida humana. Nas palavras de Habermas (1980, p. 73), extremamente relevantes para a dimensão protetiva do meio ambiente no contexto de uma economia globalizada de mercado: Finalmente, as relações de produção são alteradas por que o deslocamento das relações de troca pelo poder administrativo é ligado a uma condição, na qual o poder legítimo precisa estar a dispor do 188 Cf. LEITE, J., 2000, p. 13-40. Para análise da noção de um Estado de Direito Ambiental 264 265 planejamento administrativo. De funções que foram acrescidas ao aparelho do Estado, no capitalismo avançado, extensão de assuntos sociais procedidos administrativamente necessitam o incremento de legitimação. Não se discute aqui alguma misteriosa dimensão; a necessidade de legitimação emerge de condições funcionais evidentes de um sistema administrativo que preenche os hiatos funcionais de mercado (grifo nosso). Nesse momento, simultaneamente, ao estabelecer o papel de propugnar pelo “dever ser” do Estado, Habermas (1980, p. 73) rasga a cortina da visão marxista de que o Estado “é” uma superestrutura: [...] Na extensão que o Estado não mais representa apenas a supra estrutura de um relacionamento político de classe, os meios formalmente democráticos em busca da legitimação se demonstram peculiarmente ativos. Isto; nestas circunstâncias, o sistema administrativo é forçado a achar uso para as demandas orientadoras de valor, com meios disponíveis de controle (grifo nosso). Como fecho, podemos enfatizar que Habermas posiciona-se, claramente, por “uma terceira via mais agressiva” – aquela na qual o político (oriundo do estatal de origem democrática) prevaleça sobre o econômico, sem o esquecimento de que a Globalização é fenômeno irreversível, porque promove a perda da soberania dos Estados. Da mesma forma, descortina o papel do Estado de interferir no modo de produção capitalista, não o destruindo, mas organizando-o por meio de atividades de compensação e substituição do mercado, resgatando a disfunção deste de supervaloração da troca em relação ao uso,189 o que possui relevantes reflexos na questão ambiental. 3.1.2 O Horror ambiental, oriundo da falta de visão metodológica no trato da questão ambiental Uma única vida humana sacrificada é um horror. O principal impacto causado por Forrester (1999) consiste em lembrar-nos dessa evidência, ao tratar do desemprego e da pobreza na sua já comentada obra “Horror econômico”, salientando a falta de perspectivas na solução destes problemas por falhas metodológicas na sua apreciação.190 Mutatis mutandis, há um horror ambiental causado pelo mercado, o qual é visto, indevidamente, como meramente circunstancial. Fala-se de “ecofacismo’, ou de um 189 190 Do mesmo modo Soros (1998, p. 122) destaca a necessidade de adoção de valores fundamentais que se contrapõem à lógica utilitária do mercado: “A sociedade aberta exige alguns acordos básicos com relação ao que é certo e ao que é errado, e os indivíduos precisam estar preparados para agir da forma correta, mesmo que daí resultem conseqüências desagradáveis: correr em defesa da pátria ou erguer-se para a proteção da liberdade”. “Em que sonhos somos mantidos, entretidos com crises, ao fim das quais sairíamos do pesadelo? Quando tomaremos consciência de que não há crise, nem crises, mas mutação? Não mutação de uma sociedade, mas mutação brutal de uma civilização? Participamos de uma nova era, sem conseguir observá-la. Sem admitir e nem sequer perceber que a era anterior desapareceu. Portanto, não podendo enterrá-la, passamos os dias a mumificá-la, a considerá-la atual e em atividade, respeitando os rituais de uma dinâmica ausente. Por que essa projeção permanente de um mundo virtual, de uma sociedade sonâmbula devastada por problemas fictícios? – o único problema verdadeiro é que esses problemas não são mais problemas, mas, ao contrário, tornaram-se a norma dessa época ao mesmo tempo inaugural e crepuscular que não assumimos” (FORRESTER, 1999, p. 9). 265 266 “fundamentalismo ambiental” para camuflar-se as dimensões estruturais, e não meramente circunstânciais, da problemática ambiental moderna e da deficiência estatal de solução efetiva. Em geral, são precisos desastres ecológicos para que um “distúrbio funcional ambiental” nos incomode, e, muitas vezes, cataclismas naturais para que nos comova a verdade. A questão ambiental só nos preocupa quando ultrapassa determinado índice estatístico; a destruição de uma árvore só é monstruosa se envolver o desmatamento de considerável percentual da floresta amazônica. Quando se trata de estimarem-se as conseqüências nefastas ambientais da exploração econômica dos minérios na Amazônia, adota-se lógica numérica valorativa de percentuais que anulam os entes não-antropocêntricos do dano ambiental, cujas vidas, únicas e distintas, passam a ser esquecidas ou camufladas em meros dados estatísticos. Perde-se, pois, a visão sistêmica do real “problema”, na quantificação minimizada e separada do problema concreto ocorrido. O horror ambiental encontra-se não só nos danos efetuados, mas, principalmente, na falta de sensibilidade para percepção dos seus aspectos estruturais e sistêmicos. Nesses momentos, ideologicamente, tira-se da memória a visão transgeracional e supra-humana ínsita à natureza e ao conceito de meio ambiente.191 No final do milênio e no início do novo, presencia-se série de transformações da humanidade, que deveria abalar conceitos arraigados, como a visão antropocêntrica, que restringe o valor da natureza a valor instrumental (seja de troca, seja de uso para a atividade econômica). A axiologia no trato da questão ambiental – centro deste trabalho multidisciplinar – mostra-se ora reduzida ao valor-trabalho, ora ao valor de troca, ora ao valor de uso, ora ao valor dos custos de produção (em visão estritamente econômica). Se bem analisados todos os horrores – o econômico, o social, o ambiental e o de legitimação social – relacionam-se, de alguma forma, com a questão ambiental e entre si, devendo ser entendidos como problemas sistêmicos, interligados e interdependentes, que integram mesma e grave crise – uma crise de metodologia axiológica, que se baseia em um reducionismo econômico feito pelo mercado. Soros (1998, p. 153), nesse aspecto, ressalta a metodologia capitalista funcional: O sistema capitalista global é de natureza puramente funcional e a sua função é (não surpreendentemente) econômica: a produção, o consumo e o intercâmbio de bens e serviços. É importante observar que o intercâmbio envolve não apenas bens e serviços, mas também fatores de produção. Como Marx e Engels apontaram há 150 anos, o sistema capitalista transforma a terra, o trabalho e o capital em mercadorias. Com a expansão do sistema, a função econômica domina a vida das pessoas e as sociedades. Penetra em searas que até então não eram consideradas econômicas, como a cultura, a política e as profissões (grifo nosso). 191 “O meio ambiente é assim, a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos naturais e culturais” (SILVA, J., 1994, p. 1). 266 267 Buscando argumentação, analogicamente, aplicável ao caso, podemos utilizar-nos da visão holística de Capra (1998a, p. 23), ao afirmar que a crise deriva da realidade, de que ainda hoje muitas pessoas e instituições concordam com uma visão do mundo totalmente obsoleta e inadequada diante dos novos paradigmas da realidade global. O grande desafio do paradigma científico do século XX, no entanto, cada vez mais robustecido no século XXI, consiste em destacar a concepção sistêmica do mundo como um todo integrado, e não como conjunto funcional de partes dissociada. Nas palavras de Capra (1998a, p. 41): [...] a emergência do pensamento sistêmico representou uma profunda revolução na história do pensamento científico ocidental. A crença segundo a qual em todo sistema complexo o comportamento do todo pode ser entendido inteiramente a partir das propriedades de suas partes é fundamental no paradigma cartesiano [...] Na abordagem analítica, ou reducionista, as próprias partes não podem ser analisadas ulteriormente, a não ser reduzindo-as a partes ainda menores [...] O grande impacto que adveio com a ciência do século XX foi a percepção de que os sistemas não podem ser entendidos pela análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo. Nesse conceito de partes de um todo, evidencia-se que o resultado almejado pelo sistema meio ambiente é “o desenvolvimento equilibrado de todas as formas de vida” e não só a vida do homem, conforme enuncia Mukai192. Ademais, destaca-se que não obstante seja composto por partes (elementos naturais, artificiais e culturais), o meio ambiente é uno e indivisível, em face da mútua e permanente interação das partes que o compõe.193 Na verdade, a partir de uma compreensão sistêmica, os mecanismos econômicos desenvolvem-se em estreita e inelutável interação recíproca com o meio ambiente. Em tais condições, para Nusdeo (2000, p. 364), o sistema econômico atua como intermediário entre, de um lado, o meio ambiente e, de outro, o próprio meio ambiente. O fenômeno econômico de transformação de bens é simultâneamente input e output em relação ao meio ambiente. O pensamento sistêmico repercutiu fortemente no trato da matéria ambiental, seja no âmbito da Ecologia (com a noção de ecossistema – já analisada), seja nas ciências biológicas na autopoiese dos chilenos Maturana; Varela194 (1972), seja na hipótese de Gaia, concebida pelo biólogo inglês James Lovelock e pela microbióloga Lynn Margulis.195 192 193 194 “A expressão “meio ambiente” tem sido entendida como a interação de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o desenvolvimento equilibrado da vida do homem, não obstante a expressão, como observam os autores portugueses, contenha um pleonasmo, porque “meio” e “ambiente” são sinônimos” ( MUKAI, 1992, p. 3, grifo nosso) Cf. 1.3 Os recursos naturais como valores positivos com diferentes hierarquias para a economia e para a ecologia. Na obra “De maquinas y seres vivo”, Maturana (1972, p. 10) concluiu ser o próprio ser vivo um sistema fechado, constituído pela circularidade de seus processos, e concebeu uma representação do ser vivo por meio de uma seta circularmente voltada sobre si mesma. 195 A teoria de Gaia foi apresentada em 1972 pelo químico inglês Lovelock (1991), que propunha que, assim como nosso corpo é auto-regulador para compensar as mudanças nas nossas atividades e no ambiente, também o "corpo" da Terra se regula por meio dos organismos vivos que controlam sua atmosfera, seus oceanos e sua crosta. A evolução das 267 268 Capra (1998b, p. 278), destacando mais uma vez o aspecto sistêmico da questão ambiental, afirma, com base na hipótese de Gaia de Lovelock, que: [...] a Terra é, pois, um sistema vivo; ela funciona não apenas, como um organismo, mas, na realidade, parece ser um organismo Gaia, um ser planetário vivo. Suas propriedades e atividades não podem ser previstas com base na soma de suas partes; cada um de seus tecidos está ligado aos demais, todos eles interdependentes; suas muitas vias de comunicação são altamente complexas e não lineares; sua forma evoluiu durante bilhões de anos e continua evoluindo. A ciência dos valores utilizada, nesta parte do estudo, como instrumento teórico integrativo das diferentes disciplinas relacionadas ao meio ambiente, permite a integração normativa das dimensões éticas e econômicas, analisadas anteriormente, enfatizando o meio ambiente como sistema. A Economia e a Ecologia como ciências, conforme já visto, pactuam com essa visão valorativa-sistêmica, não obstante divirjam no método adotado. Assim, faz-se necessária a regulação dos conflitos entre a Economia e a Ecologia por meio das normas jurídicas. Conforme assinala Bobbio (2000, p. 568), para conseguir a observância dos princípios morais, a experiência histórica demonstra que é preciso ameaçar penas terrenas e ultraterrenas para evitar desvios de conduta. Cabe, pois, ao Estado, por meio do Direito, integrar as valorações díspares, com base na legitimidade democrática, conforme já destacado por Habermas, Polanyi e Sagoff.196 3.2 ANÁLISE DA CRISE ECOLÓGICA POR LUHMANN 3.2.1 O enfoque sistêmico social como mecanismo de análise da crise ambiental O enfoque sistêmico, conforme visto, proporciona análise multidimensional pela importância dada às relações entre as partes, implicando que a sustentabilidade dos recursos naturais só pode ser obtida em modelo capaz de analisar as complexas interações entre os subsistemas sociais e o sistema ambiental. O quadro abaixo diferencia o paradigma sistêmico-holístico do cartesianonewtoniano, muitas vezes, indevidamente utilizado no âmbito dos tratados das questões ambientais. Quadro 4 - Comparação dos paradigmas cartesiano-newtoniano e sistêmico-holístico formas de vida e do meio ambiente físico da Terra, portanto, não é uma série de processos independentes, mas parte da evolução de Gaia como um todo. 196 Cf. HABERMAS, 1999, p. 5; POLANYI, 2000, p. 18-19; SAGOFF, 1988, p. 191. 268 269 Paradigma cartesiano-newtoniano Paradigma sistêmico-holístico Dualidade sujeito-objeto Sujeito e objeto indissociáveis Universo composto por partículas sólidas Universo composto por energia; partículas e distintas da luz luz têm a mesma natureza Natureza e homem são distintos e objeto de Natureza e homem são indissociáveis estudo de ciências distintas Causalidade linear Recursividade efeito-causa O todo contém as partes O todo contém as partes e está contido nelas Extraído com adaptações de Bauer (1999, p. 138). Como observado pela Comissão Brundtland: “vista do espaço, a Terra é uma bola frágil e pequena, dominada não pela ação e pela obra do homem, mas por um conjunto ordenado de nuvens, oceanos, vegetação e solos” (COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 1). Paralela à visão sistêmica interna dos ecossistemas, existe, no âmbito sociológico, teoria sistêmica social com vários representantes. Pareto (apud ABRAHAM, 1982, p. 42) foi o fundador da análise sistêmica na sociologia com a sua formulação do conceito de sociedade como sistema em equilíbrio. Pareto concebia o sistema social como um todo constituído de partes interdependentes. Nessa visão, a modificação de uma das partes afetava o sistema como um todo, que buscava novo ponto de equilíbrio com base nos seus elementos internos (“raça, valores, conhecimentos, ideologias e sentimentos”) que se acomodavam à mudança nos elementos externos (“meio ambiente natural”). Após Pareto, alguns sociólogos, dentre eles Henderson e Talcott Parsons, elaboraram modelos sistêmicos sociais e os utilizaram para análise do fenômeno social. Parson, entretanto, consoante Abraham (1982, p. 53), é o mais importantes dos sociólogos da teoria social sistêmica. Com base nas informações colhidas de Abraham (1982, p. 42-52), podemos apresentam-se as vantagens da teoria sistêmica para a análise sociológica, verbis: 1) A utilização de um vocabulário comum unificando as diferentes correntes sociológicas; 2) Uma técnica para tratamento de organizações complexas como são as contemporâneas; 3) Uma análise sintética que não se esquece das partes e do todo; 4) Uma visão do coração do fenômeno sociológico porque analisa os subsistemas sociais em termos de informação e comunicação em rede; 5) A ênfase maior nas interações (relações) mais do que nas entidades; 6) Um objetivo operacional definido e não antropomórfico de estudo dos propósitos, do processo de conhecimento simbólico e da dinâmica dos sistemas sociais. Assim, fica claro, pelas próprias características do fenômeno ambiental e econômico já analisados, que a abordagem social sistêmica mostra-se adequada para o trato das 269 270 interações entre os distintos subsistemas vinculados à crise ambiental por seu caráter sistêmico. Como mola mestra dessa análise sistêmica social da crise ambiental, utilizar-se-á a visão de Luhmann que, juntamente com a análise de Habermas, Polanyi e Sagoff já feitas, sinalizam para a importância do subsistema político e jurídico na apreciação das dimensões éticas e econômicas do meio ambiente. 3.2.2 Breve análise dos conceitos fundamentais da visão sistêmica social autopoiética de Luhmann Para Luhmann (1989), há metodologia própria e única para o tratamento dos sistemas sociais. Conforme Benarz, tradutor americano da obra de Luhmann, “Ökologische Kommunikation: Kann die moderne Gesellschaft sich auf ökologische Gefährdungen einstellen?”, a compreensão da teoria sistêmica de Luhmann (1989, p. viii), passa pela síntese de pelo menos quatro correntes doutrinárias: 1. tratamento sistêmico da ação social de TALCOTT PARSONS; 2. a interpretação cibernética da relação entre sistema e entorno; 3. a abertura fenomenológica do sentido e a importância da relação entre os componentes do sistema social; 4. uma compreensão autopoiética da organização sistêmica extraída da visão de HUMBERTO MATURANA. A influência da teoria dos sistemas sociais de Parsons relaciona-se à interpretação da ação social como interação. Para Parsons; Shils (apud ABRAHAM, 1982, p. 53), o sistema social é sistema dinâmico, que apresenta as seguintes características: 1) Envolve um processo de interação entre dois ou mais atores, sendo que o processo de interação deve ser o foco da atenção do observador; 2) A motivação para a qual os atores estão orientados inclui outros atores (alters). Esses outros atores são objeto de expectativa. As ações dos alters são levadas em consideração pelo ego. As possíveis expectativas dos alters podem ser um objetivo ou um sentido para alcançar um objetivo Assim, as ações dos Alters são levadas em conta como informação para julgamento valorativo; 3) Há no sistema social ações interdependentes e consensuais, nas quais o consenso é fruto de objetivos e valores comuns, bem como de expectativas normativas e cognitivas. Parsons (apud ABRAHAM, 1982, p. 53) considera a “ação social” como o elemento básico de construção do sistema social. A “ação social” consiste das estruturas e dos processos por que os homens expressam as intenções e buscam implementá-las em situações concretas. Assim, a sociedade para Parsons é sistema em que as instituições (subsistemas) agem para regular as relações sociais e alcançar metas sociais (ABRAHAM, 1982, p. 5255). 270 271 Figura 1 – Modelo de Interação Institucional de Talcott Parson PROTEÇÃO/ PARTICIPAÇÃO POLÍTICA CONFORTO ESPIRITUAL/FIÉIS FAMÍLIA ENSINO/ CRIANÇAS SOCIALIZADAS EDUCAÇÃO BENS E RENDA/ MÃO DE OBRA RELIGIÃO ECONOMIA Desta noção de Parsons, Luhmann observa que, para funcionar com eficácia, portanto, o sistema deve ter comunicações197 eficientes entre seus subsistemas constituintes e mecanismos de controle eficazes para controlar suas operações. Os sistemas sociais têm, para Luhmann, como elemento básico, a comunicação. Por comunicação entende-se a síntese de três momentos: a emissão ou ato de comunicar, a informação e a compreensão. Só se aperfeiçoa um ato comunicativo quando o ego compreende que o alter emitiu uma comunicação (LUHMANN, 1989, p. 143). Sobre a importância do conceito de comunicação para a Modernidade, Brunkhorst (1996, p. 112-113) afirma que: [...] Aristóteles encarava o Estado como uma comunidade envolvendo a comunicação entre uma multiplicidade de perspectivas individuais. Enquanto isso diz respeito à ação individual deliberada na esfera 197 A respeito da análise do que ele denomina processos comunicativos, Teubner (1989, p. IXII). Aponta para uma convergência entre o pós-estruturalismo de Foucault, a teoria do agir comunicativo de Habermas e a teoria da autopoiesis vista a partir da teoria de Luhmann como formas de entendimento mais profundo da epistemologia social. 271 272 política. [...] C. S. Peirce analisa a comunidade científica a partir da perspectiva de uma comunidade de comunicação (idealizada) e G. H. Mead leva os processos sociais de individualização por meio de socialização para o quadro de um discurso universal. O principal aspecto dessa universalização teórica da comunidade de comunicação é a afirmativa de que, conforme as palavras de Jürgen Habermas (1981, p. 105), “o processo de vida social tem uma relação com a verdade que lhe é integrante”. Essa universalização, junto com a socialização (incluindo a “despolitização” ou diferenciação interna) do conceito de comunicação é um aspecto característico do pensamento pós-metafísico da Modernidade, marcando o rompimento radical entre o pensamento político do mundo antigo e dos clássicos da filosofia política. Da interação, surgem, para Luhmann, importantes conceitos como complexidade e a distinção entre sistema social e seu entorno, diretamente relacionados à comunicação entre os diferentes sistemas sociais e seus entornos. A complexidade de um sistema indica a impossibilidade de conexão de todos os elementos entre si (impossibilidade de comunicação simultânea). Desse modo, para lidar com a complexidade, o sistema limita as possibilidades de relação entre os elementos. Portanto, a complexidade ocasiona que as comunicações ocorram de forma seletiva. Exemplificando, pode haver perturbações que são mais facilmente captadas pela estrutura interna do sistema pela reverberação que produzem do que outras (LUHMANN, 1989, p. 143-144). Para Luhmann (1989, p. 145), um sistema social forma-se quando uma conexão autopoiética ocorre e o distingüe do seu entorno pela restrição das comunicações entre eles. Antunes, ao prefaciar a obra de Teubner (1989, p. xii), salienta este aspecto: Com efeito, no domínio dos fenômenos sociais, a unidade básica de análise é ainda o “ato comunicativo”, isto é, toda a interacção simbolicamente cristalizada que, ainda que de forma não voluntária, sucede a gerar e desenvolver um determinado padrão intersubjetivo de conduta. Logo que um tal padrão de conduta passe a orientar prospectivamente as relações intersubjectivas (ou seja, o padrão das interacções passadas passe a operar como pressuposto e limite das interacções futuras), assistimos à emergência de um sistema comunicativo. Ora é nisso justamente que consiste o sistema social: um sistema autopoiético de comunicação, ou seja, um sistema caracterizado por um perpetuum mobile auto-reprodutivo e circular de actos de comunicação que geram novos actos de comunicação (grifo nosso). Assim, os sistemas sociais, por definição, operam de modo auto-referencial (autopoiético). Destaca-se, pois, a importância da relação entre os componentes do sistema social (visão intra-sistêmica) e não só da relação entre o sistema social, outros sistemas sociais e seus entornos (visão intersistêmica). Para trato desse aspecto, Luhmann utiliza-se do termo diferenciação funcional. No texto, esse conceito refere-se à formação de sistemas dentro do sistema. A diferenciação é funcional, na medida em que o subsistema adquire sua identidade por meio do cumprimento de uma função do sistema macro. 272 273 A autopoiesis ocasiona e é ocasionada pelo fechamento operativo do sistema em face das operações recursivas nele existentes, ao contrário da visão sistêmica de outros autores que visualizam a interação do sistema, visão da cibernética,198 com o entorno por meio de inputs e outputs. O fechamento operativo do sistema, entretanto, não implica em seu fechamento comunicativo com o entorno e com os outros sistemas. Há a reação do sistema às modificações ocorridas em seu entorno por meio da ressonância.199 Luhmann (1989, p. 15), neste aspecto, afirma: [...] Assim, vamos simplificar a problemática da relação entre sistema e entorno pela descrição da relação entre sistema e entorno com o conceito de ressonância. Assumiremos que a sociedade moderna é um sistema com um grau tão grande de complexidade que é impossível descrevê-la como uma fábrica, isto é, em termos de trasnformação de inputs em outputs. Em vez disso, a interconexão do sistema com o entorno é produzida por meio do fechamento operacional do sistema pela sua estrutura recursiva. Deste modo, somente em situações excepcionais (o que depende dos diferentes níveis de irritabilidade do sistema pelo entorno) o sistema pode reverberar e se modificar. Nesse caso, estará havendo ressonância (grifo nosso). Pela ressonância, situação excepcional, o sistema com base nas suas próprias freqüências, irá reestruturar-se, se for o caso. Na Física, a ressonância é a “vibração enérgica que se provoca num sistema oscilante quando atingido por uma onda mecânica de freqüência igual a uma das suas freqüências próprias; reforço da intensidade de uma onda pela vibração de um sistema que tem freqüência própria igual à freqüência da onda” (FERREIRA, 1986, p. 1497, grifo nosso). Assim, o próprio Luhmann utiliza-se da Física para explicar o conceito de ressonância, indicando que um sistema diferenciado do seu entorno só pode sofrer a influência do entorno com base nas suas próprias freqüências. Já influenciado pelas ciências biológicas e da autopoiese de Maturana, Luhmann (1989, p. 144) faz menção ao acoplamento para destacar que não há nunca relações diretas entre os sistemas sociais e os seus entornos, não obstante haja recíproca dependência potencial entre eles, que pode se tornar efetiva ou não. Maturana (1997, p. 86), sobre o acoplamento estrutural, afirma: Todo sistema determinado por sua estrutura existe em um meio, ou seja, surge em um meio ao ser distinguido ou trazido à mão pela operação de distinção do observador. Essa condição de existência é 198 “Por fim, ainda à época que surgiam a teoria dos sistemas e o estruturalismo, N. Wiener desenvolvia esforços semelhantes de interdisciplinaridade que resultaram na cibernética, do grego kybernytiky, que significa algo como ‘a arte de governar navios’. Em um navio, de fato, a função do capitão é dar ordens, a do timoneiro é comandar o timão e a do remador é remar. Cabe ao piloto, porém, como um processador de informação, a tarefa de traduzir o objetivo final (a rota) em orientações práticas, que a todo instante mudam (por exemplo, porque o vento mudou). Assim, governar o navio equivale a controlá-lo, por meio da comunicação com todos os demais agentes envolvidos; a cibernética é, portanto, uma ciência da comunicação que visa ao controle. É a comunicação o que faz de um sistema um todo integrado, e é o controle o que regula o seu comportamento. A cibernética representa, portanto, um processo de transformação de informação que visa à consecução de ações” (BAUER, 1999, p. 46). 199 A ressonância para Luhmann permite que o sistema possa reagir às modificações do entorno, levando em conta a sua própria estrutura interna (LUHMANN, 1989, p. 145). 273 274 também, necessariamente, uma condição de complementaridade estrutural entre o sistema e o meio no qual as interações do sistema são apenas perturbações. Se a complementaridade estrutural se perde, se ocorrer uma única interação destrutiva, o sistema se desintegra e deixa de existir. Essa complementaridade estrutural necessária entre o sistema determinado por sua estrutura e o meio – que eu qualifico de acoplamento estrutural – é uma condição de existência para todo o sistema (grifo nosso). O sistema sempre interagirá com o ambiente como uma totalidade e, nesse processo, sofrerá mudanças estruturais desencadeadas por essas interações, mas jamais determinadas por elas. Assim, os sistemas autopoiéticos são estruturalmente determinados, à medida em que as mudanças na estrutura dependerão exclusivamente do estado em que se encontrar a própria estrutura, ainda que possam ser disparadas (triggered) pelas interações com o ambiente. Ou, ainda, é o potencial interior (a estrutura do próprio sistema) para a mudança o que determina se uma mudança exterior será ou não fator de fomento a uma mudança interior correspondente. A estrutura interna do sistema filtra, pois, as potenciais mudanças provocadas pelas interações com o ambiente. Assim, o sistema “cria um mundo”, o seu mundo, fruto de sua própria estrutura. Fisiologicamente falando, um animal, como o cachorro, incapaz de distinguir cores, não será afetado pelas mudanças de cores no ambiente, assim como os seres humanos só conseguem ouvir sons que estejam contidos numa estreita faixa de freqüências. Ao indagar como os problemas ecológicos encontram ressonância na sociedade, se o sistema social é especializado (diferenciado funcionalmente) e só pode reagir a eventos e mudanças por meio das estruturas dos seus subsistemas funcionais, Luhmann (1989, p. 141) apresenta o conceito de codificação binária. Assim, para Luhmann, a comunicação interna entre os subsistemas funcionais ocorre por meio da codificação binária. Os códigos de comunicação no sistema autopoiético surgem a partir de um valor ambivalente (positivo ou negativo), que podem ser transformados por um determinado programa em um (positivo) ou outro (negativo). O programa, por outro lado, seguindo um critério (aquilo que serve de base para o julgamento e a ação – pauta valorativa), designa as condições sobre as quais associa-se um valor negativo ou positivo a determinadas situações ou eventos. Vinculam-se os programas ao processo de decisão do sistema de valoração positiva ou negativa de uma determinada situação por meio do critério (LUHMANN, 1989, p. 145). A diferenciação entre a codificação e a programação do sistema mostra-se extremamente relevante na teoria de Luhmann, pois ela permite a operação estruturalmente fechada do sistema e cognoscivelmente aberta. No nível da codificação, o sistema é diferenciado pelo esquema binário (no caso do sistema jurídico, por exemplo, legal/ilegal), nesse aspecto será estruturalmente fechado por só admitir esse domínio de sentido (a saber, para o jurídico, legal/ilegal) (LUHMANN, 1989, p. 45). No nível da programação, há, no entanto, a manutenção da dinâmica do sistema. Ao nível dos programas, um sistema pode mudar as estruturas sem perder a identidade de codificação (LUHMANN, 1989, p. 45). No sistema jurídico, por exemplo, o adultério já foi considerado, no âmbito penal e civil, ilícito, hoje; no entanto, considera-se lícito. O sistema jurídico permanece com a 274 275 codificação binária característica (legal/ilegal); o valor atribuído, entretanto, por modificação no programa, que se baseia em critérios, dá uma nova resposta do sistema ao problema, permitindo uma dinâmica temporal. Com esses conceitos básicos, Luhmann desenvolve a análise da crise ecológica contemporânea, conforme analisaremos em seguida, enfatizando a importância da relação entre os componentes do sistema social e a sua efetiva comunicação que permita a ressonância e a provocação da sua modificação estrutural. 3.2.3 Análise da crise ecológica por Luhmann com base nos subsistemas funcionais relevantes Luhmann (1989, p. 51-105) distingüe diferentes subsistemas sociais que compõem o sistema social macro, na obra Ecological Communication, a saber: 1) a Economia; 2) o Direito; 3) a Ciência; 4) a Política; 5) a Religião; e 6) a Educação. Luhmann procura desenvolver a idéia de que a sociedade moderna é fenômeno rico em possibilidades de adaptações a novos ambientes, mas, ao mesmo tempo, difícil de lidar, porque só opera, efetivamente, por meio dos seus diferentes subsistemas, com as características específicas e seletivas estruturadas nos diferentes códigos e programas. Deste modo, Luhmann (1989, p. 50) declara: A ressonância da Sociedade, portanto, deve ser analisada em dois níveis ao mesmo tempo (e aqui, como sempre, a idéia de diferentes “níveis” produz um problema de sistemas teóricos). Por um lado, a ressonância está condicionada pela diferenciação funcional da sociedade em seus subsistemas (em vez de estar condicionada em níveis com descompromisso no nível mais baixo e responsabilidade no nível superior). Por outro lado, está estruturado pelos diferentes tipos de códigos e programas dos subsistemas que os afetam reciprocamente de acordo com o tipo de sistema ou de entorno. Como pode ser facilmente visto, isto produz efeitos dentro do sistema, os quais são distintos das mudanças do entorno que os ocasionaram. Estes efeitos modificativos, por outro lado, são observados com preocupação pelo sistema e precisam ser controlados. Mas as mudanças só ocorrem dentro dos subsistemas funcionais de acordo com os seus respectivos códigos e programas (grifo nosso). 275 276 Portanto, não sendo possível avaliar a sociedade moderna como um todo de forma instantânea, as buscas de soluções e mudanças só podem ocorrer no âmbito dos subsistemas e das formas com que estes operam por meio de seus códigos e programas. Este é o grande desafio para a crise ambiental no mundo contemporâneo. A complexidade do mundo natural requer uma complexidade de soluções que atuem em todos os subsistemas que a compõem. Assim, para demonstrar as características de cada um dos subsistemas funcionais, correlacionamos suas características no quadro abaixo, para, em seguida, salientarmos o papel dos subsistemas Político, Jurídico e Econômico na proteção do meio ambiente, bem como referir-nos ao Científico, Educacional e Religioso. Quadro 5 – Códigos, programas e critérios do sistema de Luhmann Subsistemas Códigos Funcionais Programas Critério Economia Mercado Preços Originalmente: Ter propriedade/não ter propriedade. (valoração monetária) Atualmente: Ter dinheiro(receber pagamento)/não ter dinheiro(não receber pagamento) Direito Legal/ilegal Normas legais válidas Político Situação (estar no poder) / oposição (não estar no poder) Procedimentos de legitimação do poder Ciência Verdadeiro/falso Teorias/métodos Educação Melhor capacitado / pior capacitado Construção de uma Conhecimento carreira (seqüência de eventos seletivos) Religião(Mor Imanente (manifesto)/ al) transcendente(latente) Regras da sagrada escritura e da tradição Justiça Vontade popular (communitas perfecta) Verdade Revelação Construída com adaptações a partir da leitura da obra de Luhmann (1989, p. 51-105) e dos paradigmas teóricos já apresentados. Buscando concretizar o preciso modelo teórico de Luhmann, podemos exemplificar, afirmando que para contribuir para a solução da crise ambiental e proteger o meio ambiente, deve-se pensar em todos os subsistemas a ele vinculados nas suas características particulares. Desse modo, para proteger o meio ambiente, deve-se pensar como a Economia pode lucrar (obter valores monetários) sem a utilização maciça dos recursos naturais; como 276 277 convencer os políticos de que os temas ecológicos poderão garantir a sua eleição ou reeleição (garantir que estejam na situação); como a Ciência, vista como mecanismo de solução de problemas e busca da verdade (do conhecimento verdadeiro), pode contribuir com teorias que otimizem a utilização dos recursos naturais; como a Educação ambiental pode ser utilizada como disciplina de capacitação profissional (melhor capacitação pessoal), como a Natureza possui um valor transcendente ao homem (valor intrínseco), sendo para a ortodoxia cristã contemporânea (Religião), o homem, um administrador de recursos que não foram por ele criados; como o Direito pode, com regras de consenso, legitimadas pela população por valores de Justiça presentes no corpo social, proibir e incentivar condutas favoráveis à proteção ambiental . Luhmann (1989, p. 135) enfatiza que a unidade de cada um dos subsistemas funcionais reside em serem guiados por códigos binários válidos somente para eles. A unidade dos subsistemas é a sua diferença e isto rouba do macrosistema a possibilidade de posicionar-se como um todo do lado certo (ou seja, a favor da proteção ambiental). Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 136) critica Habermas por buscar uma racionalidade universal reflexiva no sistema, pois este não é um, mas vários subsistemas.200 A crítica de Luhmann, baseada nas identidades próprias de cada subsistema, não impede a busca da racionalidade dentro de cada subsistema funcional em função de seus paradigmas (critérios) que fundamentam os seus programas (procedimentos geradores de ações comunicativas). Portanto, a crítica de Luhmann não descarta a busca do agir comunicativo intrasistêmico. Pode-se concluir que Luhmann (1989, p. 137) sugere uma racionalidade para a comunicação ecológica que não se esqueça das partes (subsistemas funcionais) que compõem o todo (macrosistema social). 200 “Whoever still localizes rationality in the reflexivity of reason – for example, like Habermas, in the reflexivity of a discursively ascertained rationality – will find it impossible from now on to discover rationality either here or in what follows” (LUHMANN, 1989, p. 136). Habermas (2000, p. 516-517), por sua vez, também critica a teoria de Luhmann, considerando que a teoria do sistema simplifica a visão do ser e da verdade, comprometendo-as: “A passagem filosoficamente refletida ao paradigma do sistema tem como conseqüência, em quarto lugar, uma ampla revisão dos conceitos da tradição ocidental fixados sobre o Ser, o pensamento e a verdade. O quadro de referência não-ontológico torna-se nítido quando se esclarece que a pesquisa da teoria dos sistemas é concebida como um subsistema (dos sistemas da ciência e da sociedade) com seu próprio mundo circundante. Neste, as relações sistema-mundo circundante dadas constituem a complexidade que a teoria de sistemas tem de apreender e reelaborar. Desse modo, são invalidadas, com um único golpe, tanto as premissas ontológicas de um mundo autosustentável dos entes racionalmente ordenados, quanto as premissas epistemológicas de um mundo de objetos representáveis referido aos sujeitos cognoscentes, ou as premissas semânticas de um mundo de estados de coisas existentes referido a proposições assertóricas. Todas as premissas que, na metafísica, na teoria do conhecimento ou na análise da linguagem, postulam o caráter não elidível de uma ordem cósmica, da relação sujeito-objeto ou da relação entre proposições e estados de coisas são afastadas sem discussão. A teoria de sistemas de Luhmann efetua um movimento de pensamento que vai da metafísica à metabiologia.” 277 278 3.3 AS EXTERNALIDADES AMBIENTAIS DO MERCADO E O PAPEL DO DIREITO ECONÔMICO 3.3.1 As externalidades ambientais do mercado A visão sistêmica de Luhmann, juntamente com a análise de Habermas, já feita, sinalizam para a importância do subsistema jurídico e político na apreciação da complexidade do mundo moderno e das relações entre as dimensões ético-ecocientíficas e econômicas do meio ambiente. Luhmann (1989, p. 88), ao tratar da ressonância do Político à crise ambiental, afirma, destacando que esse é só uma parte dos subsistemas, que: “[...] há pouco sentido em atribuir uma posição social especial ao sistema político, como se este fosse garantidor da solução dos problemas ecológicos” (grifo nosso). As restrições oriundas da sua codificação própria (estar no poder / não estar no poder) evitam visualizar o político, isoladamente, como a panacéia para a solução integrativa do problema ambiental. Entretanto, constitui-se em um mecanismo importante quando visualizado juntamente com os outros. Ademais, na obra “Ecological Communications”, Luhmann (1989) dá especial destaque ao Direito e à Economia, em relação aos outros subsistemas.201 Destarte, Luhmann (1989, p. 63) particulariza que: Na contemporânea discussão ecopolítica, o contraste entre a linguagem dos preços e a linguagem das normas é tão relevante quanto é demasiadamente simples. Este contraste corresponde à distinção, existente há muito tempo, entre sociedade e Estado e sugere uma alternativa simples na solução dos problemas ecológicos - o que não for passível de compreensão na linguagem dos preços deve ser expresso na linguagem das normas. Em outros termos, o que a Economia não consegue lidar, a Política com a ajuda do seu instrumento legal tem que lidar. Portanto, o problema ecológico desenvolve-se rapidamente em uma responsabilidade política residual que inesperadamente torna-se um estado permanente de vigilância (grifo nosso). A visão sistêmica de Luhmann destaca que há um papel latente do subsistema jurídico de atuar nas falhas de mercado do sistema econômico, substituindo a valoração do mercado pela valoração normativa com vistas à integração normativa dos sistemas econômico (cujo programa é o Mercado e cujo paradigma é a valoração monetária) e político (cujo paradigma é a busca da harmonia social – communitas perfecta). Recorda que, nesse momento, o Direito deve, por meio de correta elaboração legislativa fruto do subsistema Político, trabalhar com todos os outros subsistemas, aparece, contextualmente, como o subsistema integrador dos outros (ou pelo menos da Economia e da Política conforme enunciado explicitado por Luhmann (1989, p. 74). 201 Cf. LUHMANN, 1989, p. 51-75. 278 279 Se de forma simplificada destacamos o papel do Direito (como instrumento legal do Político) na busca de soluções da crise de comunicação ecológica de Luhmann, destacar-se-á, de forma análoga, que o subsistema Economia é o que causa os maiores danos ao meio ambiente, e que para “consertá-lo” necessitar-se-á lidar com os seus códigos (receber pagamentos/ não receber pagamentos) e programa (mercado). Nesse aspecto, Luhmann (1989, p. 62) afirma: A chave para o problema ecológico, até onde a economia está preocupada, reside no idioma dos preços. A codificação econômica vinculada aos preços filtra, com antecedência, tudo que acontece na economia, quando os preços mudam ou não mudam. A economia não pode reagir para perturbações que não são expressas neste idioma (grifo nosso). Sob este aspecto devem ser vistas as externalidades ambientais – danos ecológicos resultantes da produção e consumo de bens e serviços, que são impostos a terceiros (indivíduo, empresa, coletividade) sem nenhuma compensação e que não são considerados na formação dos preços desses bens e serviços para transação no mercado. Essas perturbações ambientais, decorrentes do modo de produção capitalista, não são visualizadas pelo subsistema econômico tradicional, em face de suas limitações perceptivas. Conforme análise feita na segunda parte desta tese – a dimensão econômica do meio ambiente – na busca de sensibilização do sistema econômico às externalidades, surgem reações intra-sistêmicas; a economia do bem estar e a economia do meio ambiente que têm, em comum, a preocupação com a sociedade, buscando a proteção, respectivamente, para os direitos sociais(direitos de segunda dimensão) e para os direitos ambientais (direitos de terceira geração).202 Cabe, pois, ao Direito Econômico203 e ao Direito Ambiental204 transpor para o mercado, por meio de normas jurídicas que se utilizem de instrumentos econômicos,205 a preocupação do sistema econômico com o preço (custo) das externalidades ambientais causadas. 3.3.2 Diferentes teorias sobre a relação mercado e direito na visão de Norbert Reich 202 203 204 205 Ambas se desenvolveram, principalmente, na elaboração de técnica de valoração econômica das externalidades, sendo que o objeto da economia do meio ambiente é a externalidade perturbadora de um meio ambiente sadio, consoante Capítulo V da segunda parte desta tese. “Falar de Direito Económico como disciplina jurídica e como ramo do direito pressupõe, pelo menos, a enunciação de dois problemas. O primeiro, externo ao Direito, é o das relações entre economia e direito, enquanto fenómenos da vida social e disciplinas do quadro das ciências sociais e humanas que estudam esses fenômenos. O segundo, interno ao direito, é o de saber que razões justificam a emergência de um novo ramo e disciplina jurídica, o Direito Económico, e que implicações o seu aparecimento traz à geografia dos ramos de direito e das disciplinas jurídicas clássicas” (SANTOS; GONÇALVES, 1997, p. 9). “El Derecho Ambiental no se entiende si no es a partir de la comprensión sistémica de la realidade en que incide [...]” (MARTÍN MATEO, 1998, p. 55). Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade ambiental (OECD, 1989, p. 12-14). 279 280 3.3.2.1 A visão sistêmica de Norbert Reich Sobre o mercado, instituição nuclear do sistema econômico vigente e o Direito, significativa a obra de Norbert Reich, “Markt und Recht”, a ser analisada em sua tradução espanhola “Mercado y derecho (teoria y praxis del derecho de la economia em la Republica Federal de Alemania)”. Nessa obra, Reich expõe a dualidade do Direito Econômico que deve, de um lado, organizar os processos econômicos de forma que o mercado funcione e, de outro, em razão das externalidades sociais (e ambientais) deve manipulá-lo. Reich (1985, p. 19) salienta que o debate da relação intersistêmica entre o Direito e a Economia (Mercado), estabelecido por meio do Direito Econômico, não tem sido tratado adequadamente. Por um lado, os economistas e sociólogos decompõem a Economia sem fazer referência nenhuma ao Direito. Por outro lado, o Direito, segmentado nos ramos público e privado, entende ser completamente independente das disciplinas afins. Perde-se, pois, a noção fundamental de Luhmann de que o Direito só atuará, efetivamente, no campo sujeito à regulação, se levar em conta as características do objeto regulado. A obra de Reich (1985, p. 19) almeja – o que a torna extremamente valiosa para o nosso trabalho – preencher essa deficiência com análise sistêmica na composição de seu conteúdo, verbis: [...] El libro opera com el concepto de mercado como categoría central, el cual, no obstante, no viene determinado em forma autónoma, sino que aparece organizado e incluso <<manipulado>> por uma doble actuación de carácter jurídico-estatal. Las relaciones de mercado se presentan así ampliamente, juridificadas>>. Por esta razón, em el primer capítulo se examina la problemática teóricocientífica de la relación entre mercado y derecho, de la mano de las corrientes doctrinales más representativas, exponiendo el autor su propia postura personal. Portanto, trata-se de obra sistêmica, que traz novas luzes ao debate Direito e Economia, especialmente para o objeto desta tese, em seu primeiro capítulo - “La relacion entre mercado y derecho como objeto de uma investigación socioeconômica y juridicocientifica” (REICH, 1985, p. 19). No capítulo primeiro, o autor divide a matéria em três blocos conceituais: 1. O mercado como fenômeno característico do Capitalismo; 2. Teorias sobre a relação entre o Mercado e o Direito; 3. Sua teoria sobre a relação necessária sistêmica entre o Mercado e o Direito, denominada de “teoria da dupla instrumentalidade do Direito Econômico” (REICH, 1985, p. 25-66). Utilizando-se da estrutura de Reich, analisar-se-ão os posicionamentos apresentados, de forma crítica e comparada com outros autores. 280 281 3.3.2.2 O mercado e o direito como instrumentos de orientação social: semelhanças e diferenças Para Weber (2000, P. 419), o mercado, do ponto de vista sociológico, “representa uma coexistência e seqüência de relações associativas racionais”. Ao conceituar ordem jurídica e ordem econômica, contrapõe Weber dois planos: o que deve ocorrer e o que de fato ocorre. Weber procura salientar que a ordem jurídica e a ordem econômica se situam em planos distintos. A primeira tem um sentido ideal e se indaga que sentido normativo logicamente correto deve corresponder a um texto que se apresenta como norma jurídica, verbis: A consideração jurídica ou, mais precisamente, a dogmático-jurídica, propõe-se a tarefa de investigar o sentido correto de normas cujo conteúdo apresenta-se como uma ordem que pretende ser determinante para o comportamento de um círculo de pessoas de alguma forma definido (WEBER, 2000, p. 209). Ao passo que a segunda se pergunta sobre o que de fato acontece numa comunidade em razão de existir a probabilidade de que os homens que participam da atividade comunitária considerem subjetivamente como válida uma determinada ordem, verbis: A economia social, ao contrário, examina aquelas ações humanas efetivas – que estão condicionadas pela necessidade de orientar-se pela “situação econômica”- em suas conexões efetivas. Chamamos “ordem econômica” a distribuição do efetivo poder de disposição sobre bens e serviços econômicos, que resulta consensualmente do modo de equilíbrio de interesses e da maneira como ambos, de acordo com o sentido visado, são de fato empregados, em virtude daquele poder de disposição efetivo baseado no consenso (WEBER, 2000, p. 209). Essa distinção de planos impede, em regra sujeita a exceções, que a ordem jurídica e a ordem econômica se encontrem habitualmente: É evidente que os dois modos de consideração se propõem problemas totalmente heterogêneos, que seus “objetos” não podem entrar imediatamente em contato, e que a “ordem jurídica” ideal da teoria do direito não tem diretamente nada a ver com o cosmos das ações econômicas efetivas, uma vez que ambos se encontram em planos diferentes: a primeira, no plano ideal de vigência pretendida; o segundo, no dos acontecimentos reais (WEBER, 2000, p. 209). Visualiza, entretanto, o autor a possibilidade de interferência do jurídico no econômico e do econômico no jurídico, como exceção, sendo que, neste aspecto, entende-se o jurídico no sentido sociológico (“vigência empírica” – “complexo de motivos efetivos que determinam ações humanas reais”, poderíamos chamar tal conceito de efetividade social do Direito) (WEBER, 2000, p. 226-227). 281 282 Para Reich (1985, p. 25), inicialmente, no século XIX, o mercado foi instrumento de socialização, por permitir que “uma parte importante da satisfação das necessidades coletivas e individuais ocorresse por meio do mecanismo do mercado”. O mercado possui, como o Estado, um aspecto regulador, de “la utilización de capital y de trabajo para la obtención de determinados resultados” (REICH, 1985, p. 25). Nesse aspecto, o Mercado concorre com o Estado na regulação social. Sob esse prisma, pode-se afirmar que o Estado e o Mercado, em certo sentido, são instrumentos de regulação. Do mesmo modo, Weber, no seu conceito sociológico de ação social, expressa que a regulação existe no âmbito do Direito e no da Economia, não obstante se realizem em planos distintos. Assim, tanto o Direito como a Economia podem orientar as condutas humanas do ego pelo alter. Na terminologia weberiana, ambos podem constituir relações sociais.206 Sobre o aspecto orientador do Mercado, Weber (2000, p. 13-14) é explícito, verbis: A ação social (incluindo omissão ou tolerância) orienta-se pelo comportamento de outros seja este passado, presente ou esperado como futuro (vingança por ataques anteriores, defesa contra ataques presentes ou medidas de defesa para enfrentar ataques futuros). Os “outros” podem ser indivíduos e conhecidos ou uma multiplicidade indeterminada de pessoas completamente desconhecidas (“dinheiro”, por exemplo, significa um bem destinado à troca, que o agente aceita no ato de troca, porque sua ação está orientada pela expectativa de que muitos outros, porém desconhecidos e em número indeterminado, estarão dispostos a aceitá-lo também, por sua parte, num ato de troca futuro). Na terminologia de Luhmann (1989, p. 51-75), Estado e Mercado realizam atos de comunicação, conforme já visto. Entretanto, conforme destaca Weber (2000, p. 21), só o Direito possui um quadro coativo: “Para nós, o decisivo no conceito do “direito”(que para outros fins pode ser definido de maneira completamente diferente) é a existência de um quadro coativo”. No mercado, ao contrário, não há um quadro particular de pessoas que aplicam a coação de forma concentrada e institucionalizada. Reich destaca outro aspecto diferenciador entre o Estado e o Mercado. Relembra que a formulação clássica do pensamento de Adam Smith apresenta o mercado como procedimento de interação entre sujeitos privados que visa um consenso. Sendo ambos privados, há igualdade formal entre eles, não havendo hierarquia, que legitima a coerção. Para demonstrar as diferentes relações históricas entre Mercado e Direito, Reich (1985, p. 30) assinala, em primeiro momento, o papel do Estado de organizar o mercado: 206 “Por ´relação` social entendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência. A relação social consiste, portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável (pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade” (WEBER, 2000, p. 16). 282 283 El derecho es uno de los medios decisivos para que el Estado pueda organizar los procesos de mercado (regulación) y para que pueda intervenir em ellos (manipulación). Durante el siglo XIX el aspecto organizativo aparecia claramente em um primer plano. El instrumento jurídico de la organización era el derecho civil y las instituciones jurídicas ligadas al mismo. Em este contexto, para el Estado no era tan importante establecer determinadas normas jurídicas para la regulación del intercambio de mercancías, como tutelar a través de sus órganos las instituciones básicas del tráfico jurídico burguês, especialmente el contrato y la propiedad. Em um segundo momento, o Estado não se preocupa em organizar o mercado, mas, sim, em intervir nele, verbis: El derecho del Estado social e intervencionista tiene que adoptar naturalmente otras características, pese a que el papel de organización del mercado permanece sustancialmente inalterado. Así pues, entra en escena um segundo aspecto, que es característico e identificador del derecho actual de los Estados burgueses (REICH, 1985, p. 30). Com vistas a analisar a relação entre o Mercado e o Direito no presente, Reich propõe abordagem interdisciplinar da Sociologia, da Economia e do Direito, em quatro grandes grupos conceituais, a saber: 1. Da sociologia do direito burguesa, na qual enfatiza como autores Max Weber e Luhmann; 2. Da economia burguesa neoliberal e da teoria funcional da concorrência; 3. Da teoria jurídica burguesa; 4. Da fundamentação materialista de MARX. Com base na análise detalhada dessas diferentes respostas ao relacionamento Mercado e Direito, construiu-se o quadro abaixo, destacando as características principais de cada corrente e as subteorias com distintas abordagens a ela vinculadas. Quadro 6 – Distintas concepções teóricas da relação entre mercado e direito na visão de Reich Concepções teóricas Sociologia do direito burguesa Características principais - Economia, Direito e Política são subsistemas autônomos e interdependentes; - Direito pode atuar sobre o sistema econômico capitalista Diferentes correntes MAX WEBER (Domínio racional, Direito no século XIX, formação do direito civil); NIKLAS LUHMANN (Caráter contingente e precário do Direito, limitações do Direito de atuar sobre o Mercado por suas características intrasistêmicas). 283 284 Economia neoliberal e teoria funcional da competência - Ênfase em instrumentos jurídicos que garantam a concorrência no Mercado ESCOLA NEOLIBERAL –EUCKEN y HOPPMAN (O Estado só deve agir para evitar o monopólio e garantir a livre concorrência) ESCOLA FUNCIONAL– KANTZENBACH (Estado e Economia se complementam para garantir: distribuição de renda; composição da oferta; direção da produção; elasticidade no processo de adaptação e progresso técnico). 284 285 Concepções teóricas Teoria jurídica burguesa Fundamentação materialista Características principais Diferentes correntes Direito é visto como ciência das decisões (previsão e fundamentação), busca de uma abordagem intrajurídica. - TEORIA DO DIREITO NEOLIBERAL – BÖHM e MESTMÄCKER (Direito só deve ser utilizado para combater o abuso do poder) - TEORIAS PLURALÍSTICAS – RAISER e CLAUS OTT (Relações entre Mercado e Direito explicam-se do ponto de vista teórico-democrático). As relações de produção constituem a base sobre a qual se constrói (ou se deve analisar) a superestrutura política e jurídica - Análise de MARX (Base e superestrutura); - Análise de PASUKANIS (fetichismo econômico); - Análise de HABERMAS e de OFFE (Estado pode atuar com atividades substitutivas e compensatórias do Mercado); - Análise de LENIN (Direito atua em defesa dos monopólios). Fonte: Reich (1985, p. 32-60). Reich (1985, p. 61) conclui que as respostas são variadas, segundo a concepção teórico-científica escolhida. O autor posiciona-se, entretanto, a favor da análise materialista moderna de Habermas e de Offe por reconhecerem a “dupla instrumentalidade” do Direito Econômico, verbis: Esta teoría reconoce, pues, el doble carácter del derecho que, por um lado, organiza los procesos que discurren conforme a las reglas de uma economia de mercado, poniendo a su disposición normas e instituciones (em especial, el contrato,la propiedad privada, el derecho de la propiedad industrial, etc.) y que, por outro, se convierte en um instrumento del Estado para ejercer su influencia em dichos procesos y, al mismo tiempo, obtener la consecución de determinados objetivos de política social. Así pues, el derecho resulta de este modo instrumentalizado doblemente: por parte del Estado (social) y por parte de los agentes que actúan en el mercado; y precisamente en ello, como se verá, hay que buscar la razón de la contradicción fundamental que existe en el moderno derecho de la economia. La ideología de um derecho unitario presenta ya fisuras considerables; los conflictos entre economia y política se reproducen ahora em el plano del derecho (grifo nosso). 3.3.3 O papel do direito econômico de proteção ambiental: integração normativa eficiente do jurídico e político no econômico 285 286 3.3.3.1 Formas de intervenção do direito no mercado No arcabouço teórico analisado, para fins da proteção ambiental, salientam-se, na visão de Habermas e de Reich, respectivamente, as funções substitutivas e compensatórias do Estado perante o mercado e a dupla instrumentalidade do Mercado. Assim, põem-se à disposição do Estado “e das Empresas”, para Reich, determinados instrumentos jurídicos que podem ser empregados para alcançar os objetivos de direção e controle da Economia. Para Reich (1985, P. 112-115), pode haver a direção do mercado pelo oligopólio, situação em que o mercado dirige a si mesmo, o que apresenta aspectos de instabilidade perigosa. Seja para Habermas, conforme já vimos, seja para Reich, deve haver, sim, a direção do mercado pelo Estado. Reich (1985, p. 115), nesse aspecto, afirma: Todos los sistemas económicos del capitalismo actual conocem um sin número de posibilidades de actuación para llevar a término la dirección de la economia por parte del Estado. Aquí se expondrá revemente sólo el material instrumental de que dispone la República Federal de Alemania, debiendo distinguir cuatro ámbitos diversos: la dirección global, la microdirección indirecta, microdirección direta y la direción mediante la propia actuación del Estado. Assim, com base na experiência tedesca, Reich apresenta quatro níveis diversos de atuação estatal na economia, a saber: 1. A direção global; 2. A microdireção indireta; 3. A microdireção direta; 4. A direção feita pelo próprio Estado. A direção global vincula-se ao disposto na Constituição Federal (no caso da Alemanha, na Lei Fundamental de Bonn de 1949), no estabelecimento das metas da Constituição Econômica. Envolve a política fiscal, monetária, tributária, do comércio exterior e a ação participativa dos sujeitos relevantes do Mercado na política econômica do Estado. Para essa última, peculiar em relação às outras presentes na Constituição Econômica Brasileira requer-se que o Estado haja informado e solicitado a cooperação dos agentes principais de mercado (REICH, 1985, p. 120). A microdireção indireta encontra sua expressão no âmbito das subvenções e dos tributos, desenvolvendo-se bastante ultimamente (REICH, 1985, p. 122). Será objeto de nossa análise na cobrança pelo uso da água objeto principal da presente tese na Quarta Parte. A microdireção direta manifesta-se no chamado “comando e controle” do Estado, por meio de normas mandamentais, em franco desuso atualmente, pelo indesejado dirigismo estatal e pela condenação da inflação legislativa (REICH, 1958, p. 123). 286 287 Também, poderíamos acrescentar, a respeito da microdireção direta, a sua ineficácia social. Na atuação direta do Estado, refere-se à transformação do estado em empresário privado (REICH, 1985, p. 123). No Brasil, concretizou-se, por meio da atuação das empresas públicas e sociedades de economia mista, estando em desuso pela privatização ocorrida com o sopro neoliberal iniciado a partir da eleição de Fernando Collor de Mello e amplificado nos governos seguintes do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Assim, o Direito Econômico, para Reich, apresenta-se como instrumento de intervenção (direção) nas formas apresentadas. Entretanto, a intervenção efetiva e eficiente do Estado no mercado só poderá ocorrer, como indica Luhmann (1989, p. 62), quando se levar em conta nas medidas interventivas, a linguagem própria dos preços e quando, na visão de Weber (2000), houver efetividade social nas normas jurídicas.207 A Economia não pode reagir a distúrbios que não são expressos em sua linguagem em face da estrutura social funcional diferenciada dos subsistemas e, também, vincula-se ao mundo do ser, só sofrendo influência do jurídico quando este tornar-se efetivo no mundo real. Assim, no panorama contemporâneo brasileiro, a microdireção indireta e a ação concertada têm fundamental papel nas medidas jurídicas de proteção ambiental, por lidarem com os preços e com o consenso social do jurídico – mecanismos eficazes de intervenção jurídica na Economia. E estas (microdireção indireta e ação concertada) deverão ser utilizadas pelo Estado, nas suas tarefas de substituição e complementação do mercado (atividades diretivas do Estado sobre o mercado). 3.3.3.2 O papel dos instrumentos econômicos (microdireção indireta) e a ação participativa dos agentes relevantes do mercado (ação concertada) na proteção ambiental Para evitar que a Natureza seja vista como uma despensa, da qual se tira, sem constrangimento, o máximo possível de inputs, para, em segundo momento, transformá-la em um depósito de lixo, outputs, o Jurídico e o Político devem causar ressonância no Econômico. A irreversível diminuição da atuação estatal direta trazida pelo Estado Neoliberal ocasiona a preferência ideológica pela utilização da microdireção indireta e da ação participativa dos agentes econômicos na tarefa protetiva do meio ambiente, como meio de proteção dos valores ético-ecológicos do meio ambiente. Os instrumentos econômicos, conforme já analisados na parte II desta tese (DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE), são considerados como uma alternativa economicamente adequada (por permitir a participação do mecanismo de mercado) 207 “Quando, apesar disso, a ordem econômica e a jurídica estão numa relação bastante íntima, é porque esta última é entendida não em seu sentido jurídico mas no sociológico: como vigência empírica. O sentido da palavra ‘ordem jurídica’ muda então completamente. Não significa um cosmos de normas interpretáveis como logicamente ‘corretas’, mas um complexo de motivos efetivos que determinam as ações humanas reais” (WEBER, 2000, p. 209-210). 287 288 e ambientalmente eficaz para a complementação das estritas abordagens da política ambiental de comando e controle, que muitas vezes permanece etérea somente no mundo do dever ser. Também, são mais flexíveis que os instrumentos de comando e controle, pois permitem que o próprio agente decida quanto, quando e como vai utilizar os recursos naturais, em função da variação ocorrida nos seus custos. Portanto, os instrumentos econômicos carreiam para o jurídico, as forças favoráveis do mercado à proteção ambiental, permitindo a ressonância protetiva entre o jurídico e o econômico, com vistas para que um mínimo ético-ecológico também possa ser resguardado. Já a participação dos agentes econômicos relevantes (consumidores e fornecedores) ao meio ambiente na esfera pública contribui para que o Político e o Jurídico possam ocasionar ressonância no Econômico. Nesse sentido, e no que diz respeito à política, o princípio da participação é tão antigo quanto a própria democracia, mas tornou-se, em determinado período, difícil pela necessidade de decisões precisas e rápidas, como as que ocorreram no período entre as duas guerras mundiais. No período do pós-guerra, como assinala Diani (1996, p. 558), a tendência, entretanto, foi de estender a participação a outros campos além do político – por exemplo, à educação superior, à indústria, à atividade comercial e aos governos locais. Na esfera ambiental, essa tendência também prevaleceu, hodiernamente, seja em princípios ambientais internacionais, seja na Constituição vigente.208 208 A Declaração do Rio de Janeiro, da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, de 1992, como seu décimo princípio estabeleceu que: “O melhor modo de tratar as questões do meio ambiente é assegurando a participação de todos os cidadãos interessados, no nível pertinente”. No âmbito nacional, conforme artigo 225, caput da Constituição vigente, com relação ao meio ambiente, impõe-se “ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo” (AGENDA 21, 1997, p. 595). 288 289 4 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DAS ESFERAS SOCIAL, ECONÔMICA E ECOLÓGICA NO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 4.1 A NECESSIDADE DE INTEGRAÇÃO NORMATIVA DOS DIFERENTES VALORES SUBJACENTES AOS DIFERENTES SUBSISTEMAS FUNCIONAIS Ao longo deste trabalho, foram apresentadas as principais alternativas para a visão valorativa da questão ambiental, nos diferentes subsistemas funcionais existentes, surgindo, ao fim, a necessidade de integração dessas distintas visões.209 Verificou-se que as formas de intervenção antrópica210 sobre o meio ambiente (relação homem-ambiente) não eram muito diferentes dos conflitos oriundos das relações entre os homens (relações sociais), no que se refere à busca incessante da apropriação de benefícios de quaisquer natureza, respectivamente, em detrimento do outro homem (e da coletividade) ou da Natureza.211 A norma jurídica constitui-se em instrumento com potencialidade para mediar os interesses éticos, sociais, econômicos e políticos, atinentes à matéria ambiental, visando à justiça. Portanto, o direito econômico e o direito ambiental passam a ser, também, instrumentos de intervenção da sociedade, por meio do Estado (internamente), por meio das organizações internacionais (externamente), nas questões econômicas, sociais e ambientais, não se podendo perder a noção integrativa-normativa, essencial para sua efetividade social. Nesse sentido, Giddens (2000, p. 68) afirma que: “Não é realmente convincente supor que a proteção ambiental e o desenvolvimento econômico se adaptem confortavelmente – um está fadado a entrar por vezes em conflito com o outro”, pois o choque é proveniente de uma relação de base social, onde a relação de desenvolvimento econômico tem por princípio a competição, a concorrência, o conflito e os direitos de terceira geração estão localizados em uma perspectiva de colaboração, solidariedade e harmonização supra-individual . 4.2 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL COMO PARADIGMA INTEGRAÇÃO DAS ESFERAS SOCIAL, ECONÔMICA E AMBIENTAL DE 209 Assim, as partes que compõem o presente trabalho procuraram analisar, em um primeiro momento, “O VALOR DO MEIO AMBIENTE NA ECOLOGIA E NA ECONOMIA”, para em seguida comparar as distintas valorações em “CRÍTICAS DE CUNHO ÉTICO ÀS POSTURAS UTILITARISTAS DO MEIO AMBIENTE”, destacando ao final “O DIREITO COMO INSTRUMENTO SOCIAL DE FORMAÇÃO E CONTROLE DO MERCADO NA PROTEÇÃO AMBIENTAL”. 210 Antrópico – relativo à ação humana. Resolução Conama 12/94, art. 1º. "aprova o Glossário de Termos Técnicos elaborado pela Câmara Técnica Temporária para Assuntos de Mata Atlântica". Publicação DOU: 05 ago. 1994. 289 290 4.2.1 Por que a preocupação com a esfera social? Poder-se-ia indagar, por que a esfera social se apresenta como relevante, neste trabalho, cujas divisões anteriores haviam enfatizado a dimensão ética e econômica? A tese, nesta terceira parte, após suas incursões filosóficas (Parte I) e econômicas (Parte II), tratou da contribuição de alguns teóricos sociais contemporâneos a duas questões: as origens e os efeitos da degradação do ambiente na sociedade contemporânea e as condições sob as quais as forças políticas podem ser mobilizadas com êxito contra a degradação do ambiente, o que diretamente é uma preocupação humana da sociedade. A origem e os efeitos da degradação do ambiente na sociedade contemporânea foram tratados, com maior relevo, na primeira e na segunda parte; cabe, pois, à terceira parte, a busca de soluções, que passam pela conscientização e pela ação social. A emergência de movimentos políticos que tentam impedir a destruição do ambiente é um dos efeitos mais significativos da atual degradação do ambiente. Assim, sociólogos contemporâneos já analisados, como Giddens, Bauman, Forrestier, Habermas, Santos e Luhmann, refletiram sobre a questão social da crise ecológica, seja de forma direta, seja de forma indireta, com ênfase para os direitos sociais. Também, os sociólogos clássicos, como Marx, Weber e Durkheim deram suas contribuições a essa questão, não obstante estivessem em um contexto histórico distinto do atual.212 Por outro lado, sob o aspecto conceitual jurídico de meio ambiente, a questão principal é a utilização dos recursos, bem como a posição do homem na biosfera. Essa perspectiva humanista tem sido, por diversas vezes, adotada em pronunciamentos realizados no fórum de organismos internacionais.213 4.2.2 A tragédia dos comuns de Hardin e o desenvolvimento sustentável 211 Cf. Parte I – DIMENSÃO ÉTICA DO MEIO AMBIENTE, cap. 1 - O SER HUMANO E A NATUREZA NA HISTÓRIA. 212 Nesse aspecto, pertinente a colocação de Goldblatt (1988, p. 21): “Apesar de tudo, a obra de Marx e Durkheim tem para nós, no máximo, uma aplicação limitada. Em primeiro lugar, porque a sua estrutura teórica para estudar a relação entre sociedades e ambientes é muito pouca específica para os nossos objectivos. A interpretação do ambiente natural de Marx e Durkheim foi sempre constrangida pelos seus conhecimentos limitados de biologia [...] Em segundo lugar, para a teoria social clássica, o problema ecológico fundamental não eram as origens da degradação do ambiente, mas o modo como as sociedades prémodernas haviam sido controladas pelos seus ambientes naturais, e o modo como as sociedades modernas haviam conseguido ultrapassar esses limites ou, em certa medida, se haviam desligado das suas origens naturais”. Nesse diapasão é significativo o primeiro princípio da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento: “Os seres humanos estão no centro das preocupações com o desenvolvimento sustentável. Têm direito a uma vida saudável e produtiva, em harmonia com a natureza” (AGENDA 21, 1997, p. 595). 213 290 291 A crítica à idolatria do mercado não é só contemporânea. A tragédia dos comuns, de Hardin, bem expressa problema trazido em 1833 pelo matemático William Forster Lloyd sobre a superexploração de pastagens inglesas, em razão da ótica utilitarista gananciosa (SAUNDERS, 1995, p. 67). O argumento do panfleto escrito por Lloyd à época era de que quando a terra para pastagem de ovelhas era disponilizada para todos, seria interesse de cada um dos pastores maximizar a utilização deste pasto comum, o que, inevitavelmente, levaria à exaustão do solo e a destruição da pastagem para todos. Trata-se, pois, de questão central da crise ecológica, os limites da capacidade dos ecossistemas da terra. Se os seres tentarem utilizar os recursos fornecidos pelo ambiente, além de determinados limites, haverá o desequilíbrio ecológico (desvalor para a ecologia) e a exaustão dos recursos naturais (desvalor para a economia). Assim, na parábola de Hardin, o solo esgota a sua capacidade de sustentar as ovelhas, o que acarreta problemas sociais para todos os pastores, em decorrência de um problema de desequilíbrio ecológico ocasionado pela lógica do mercado. A liberdade individual dos pastores, direcionada pelo princípio utilitarista, trouxe a ruína para todos. Conforme assinala Hardin (1997b, p. 4), como um ser racional participante do mercado, cada um dos pastores, de forma mais ou menos consciente irá indagar: Qual será o meu ganho com a colocação de mais um animal no pasto comum? A resposta a esta pergunta acarreta a colocação de mais e mais animais, segundo a lógica de incremento do lucro, o que irá acarretar numa “tragédia”. Cada pastor estará fechado em um sistema que o compele a aumentar o seu rebanho sem limites, em um Mundo cujas pastagens são limitadas (HARDIN, 1997b, p. 5). A parábola de Hobbes (2001, p. 97-98) do homem no estado da natureza é um protótipo da tragédia dos comuns. Os homens buscam, por natureza, o seu próprio bem e terminam lutando uns com os outros na busca dos seus próprios interesses: Na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a atacar os outros visando lucro. A segunda, a segurança. A terceira, a reputação. Os primeiros praticam a violência para se tornar senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos dominados [...]. Da mesma maneira que as pastagens foram destruídas, os comuns de Gaia, tal como o Oceano, podem ser destruídos pela ganância utilitarista. Desse modo, afirma Hardin (1997b, p. 5): De modo análogo, os oceanos do mundo continuam a sofrer pelo resgate da lógica dos pastos comuns. Nações marítimas ainda respondem mecanicamente ao emblema da “liberdade dos mares”. Acreditando na infinitude dos recursos marinhos, elas ocasionam a extinção de peixes e baleias. A poluição (output do fenômeno econômico), também, é vista por Hardin como uma tragédia dos comuns às avessas. Aqui a questão não é retirar um recurso comum, mas, sim, colocar coisas indesejáveis privadas em comum. Conforme destaca Hardin (1997b, p. 6): 291 292 [...] Os cálculos utilitários são quase os mesmos de antes. O homem racional descobre que compartilhar o custo do lixo, o que ele coloca para ser compartilhado por todos é menor que o seu custo de purificação. Uma vez que isto é verdadeiro para todo mundo, nós ficamos presos em um mecanismo de ‘infringir as regras do nosso próprio ninho’, no momento que nos comportamos como livres e independentes empresários. Ao procurar responder o que deve ser feito para solucionar esta tragédia ambiental, no âmbito da degradação ambiental, ocorrida nos Parques Nacionais vistos, também, como “tragédia dos comuns”. Hardin (1997b, p. 5) afirma existirem várias possibilidades, a saber: 1. Vender tudo e tornar propriedade privada; 2. Manter como propriedade pública, restringindo o seu acesso com base em diferentes critérios (riqueza, mérito, aleatório, por ordem de chegada).214 Destaca, por outro lado, que todas as escolhas são razoáveis, mas que uma delas deve ser feita sob pena de, pela omissão, estarmos aceitando a destruição do Parque Nacional unidade de conservação da natureza.215 Para Saunders (1995, p. 68), a tragédia dos comuns destaca um grande problema para a economia de mercado, porque, por meio dela, parece que a competição e o individualismo irão levar o planeta à destruição, a menos que o Estado intervenha. Para este autor britânico, entretanto, a solução deve ser encontrada no próprio mercado, na clara definição dos direitos de propriedade dos recursos naturais. Quando os recursos naturais possuem um valor de mercado e podem ser comprados e vendidos como propriedade privada, eles tendem a ser conservados e protegidos (SAUNDERS, 1995, p. 70). Outros irão defender as soluções públicas para a questão, como os socialistas revolucionários, que afirmam que os males ambientais são específicos do capitalismo, por isso, este deve ser abolido. Requer-se uma mudança revolucionária por meio de transformações nas atividades econômicas das pessoas, erradicando a competição compulsiva e o consumismo. (PEPPER, 2000, p. 381). Haverá, também, a solução democrática proposta por Bobbio e a já analisada de Habermas, que admitem a necessidade de regulação da atividade privada com respeito ao indivíduo, à coletividade e ao mercado. Bobbio (2000, p. 101), ao destacar as duas espécies de liberdades existentes no mundo contemporâneo, a liberal clássica (resgatada pela corrente neoliberal), que prega o não controle do Estado, e a liberdade democrática, aquela que aumenta o número de ações controladas pelo Estado: Na linguagem política há dois palavra "liberdade", sobre a significa ora a faculdade de impedimento dos outros que modos predominantes de se entender a qual me detive alhures. "Liberdade" cumprir ou não certas ações, sem o comigo convivem, ou da sociedade, 214 De modo semelhante a Hardin, Ostrom (1997, p. 1)postula que debates de como melhor defender os recursos naturais e o meio ambiente devem ser vistos sob a ótica de que o Estado deve controlar estes recursos, protegendo-os, e outros recomendam que a privatização desses recursos irá resolver o problema dos comuns (OSTROM, 1997, p. 1). 215 “[...] unidades de conservação são espaços territoriais que, por força de ato do Poder Público, estão destinados ao estudo e preservação de exemplares da flora e da fauna. As unidades de conservação podem ser públicas ou privadas. O estabelecimento de unidades de conservação foi o primeiro passo concreto em direção à preservação ambiental” (ANTUNES, 1994, p. 218). 292 293 como complexo orgânico ou, mais simplesmente, do poder estatal; ora o poder de não obedecer a outras normas além daquelas que eu mesmo me impus. O primeiro significado é aquele recorrente na doutrina liberal clássica, segundo a qual "ser livre" significa gozar de uma esfera de ação, mais ou menos ampla, não controlada pelos órgãos do poder estatal; o segundo significado é aquele utilizado pela doutrina democrática, segundo a qual "ser livre" não significa não haver leis, mas criar leis para si mesmo. De fato, denomina-se "liberal" aquele que persegue o fim de ampliar cada vez mais a esfera das ações nãoimpedidas, enquanto se denomina "democrata" aquele que tende a aumentar o número de ações reguladas mediante processos de autoregulamentação. Donde "Estado liberal" é aquele no qual a ingerência do poder público é o mais restrita possível; "democrático", aquele no qual são mais numerosos os órgãos de autogoverno. Nesse aspecto, deve ser visto o desenvolvimento sustentável, não se trata de uma solução radical, trata-se de solução democrática que busca conjugar as duas opções dadas por Hardin, deixando um espaço para a esfera privada e outro para a esfera pública em um eterno devir dialético de publicização e de privatização do meio ambiente, conforme será visto na última parte da tese – A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS PLURAIS E PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA E ECONÔMICA NO CASO CONCRETO, ao se referir à Política Nacional de Recursos Hídricos Brasileiro. 4.2.3 O desenvolvimento sustentável como paradigma de integração no âmbito normativo interno e internacional No âmbito normativo internacional, o conceito de sustentabilidade foi assimilado com uma notável velocidade, sendo determinante de boa parte da agenda da Conferência das Nações Unidas, realizada no Rio de Janeiro em 1992. A Agenda 21, um programa no qual governos de todas as partes do mundo comprometeram-se, representa um plano de ação (agenda – plano de ação em etapas) para tornar concreto o desenvolvimento sustentável. Agenda 21 (1997, p. 13) tem reflexos no âmbito internacional e no âmbito local, ao prever políticas nacionais e internacionais: Para fazer frente aos desafios do meio ambiente e do desenvolvimento, os Estados decidiram estabelecer uma nova parceria mundial. Essa parceria compromete todos os Estados a estabelecer um diálogo permanente e construtivo, inspirado na necessidade de atingir uma economia em nível mundial mais eficiente e eqüitativa, sem perder de vista a interdependência crescente da comunidade das nações e o fato de que o desenvolvimento sustentável deve tornar-se um item prioritário na agenda da comunidade internacional. O desenvolvimento sustentável, conforme assinala Holland (2001, p. 390), constituiu-se em uma reação à resposta ambientalista inicial do conservacionismo absoluto. Nessa visão, repelida pela comunidade internacional e nacional, deveria ser abandonada a 293 294 possibilidade de melhoria da humanidade por meio do crescimento econômico (desenvolvimento). A razão de não se adotar o conservacionismo na agenda internacional e nacional pode ser facilmente explicado pela noção de que tal postura não seria aceita pelo subsistema econômico (ansioso por obter mais recursos naturais) e pelo subsistema político (repleto de líderes ansiosos de assegurar melhores dias para os seus simpatizantes políticos). Por outro lado, o desenvolvimento exarcebado antípoda do conservacionismo, da mesma forma, não se mostrava mais viável. Nesse aspecto, Hobsbaw (1995, p. 548) mostra-se categórico no sentido de que os defensores de políticas ecológicas têm razão ao proclamarem que o crescimento deve ser sustentável para garantir um equilíbrio entre a humanidade e os recursos (renováveis) que ela consome. Holland (2001, p. 391) destaca, também, a existência de uma analogia entre o princípio do desenvolvimento sustentável e o princípio da liberdade, defendido por Stuart Mill na obra On Liberty. Para Stuart Mill, a liberdade, direito fundamental de primeira geração, permite o seu pleno exercício, contanto que seja compatível com o seu exercício pelas outras pessoas. Desta maneira, o ecodesenvolvimento autoriza perseguir-se a qualidade de vida individual no desenvolvimento econômico, contanto que seja compatível com a qualidade de vida para todos os presentes e, também, para as futuras gerações. Do mesmo modo, no âmbito normativo interno, a coexistência do desenvolvimento econômico e da proteção ambiental, ambos direitos fundamentais passíveis de proteção na Carta de 1988, resolve-se pela noção de desenvolvimento sustentável.216 Portanto, é viável compatibilizar desenvolvimento e preservação ambiental, desde que se considerem os problemas ambientais dentro de um processo contínuo de planejamento, atendendo-se adequadamente às exigências de ambos os bens jurídicos e observando-se as suas inter-relações particulares a cada contexto sócio-cultural, político, econômico e ecológico, dentro de uma dimensão tempo/espaço.217 Em outras palavras, a política ambiental não se deve constituir em obstáculo ao desenvolvimento, mas sim em um de seus instrumentos, ao proporcionar a gestão racional dos recursos que constituem sua base material, como prevê a Ordem Econômica da vigente Carta Magna no seu art. 170 (GRAU, 1990, p. 255). Identificando-se o princípio da defesa do ambiente como expoente conformador da ordem econômica (mundo do ser), por ele são informados, conseqüentemente, os princípios da garantia do desenvolvimento nacional (art. 3o, II) e do pleno emprego.218 O 216 “Quer seja denominado ecodesenvolvimento ou desenvolvimento sustentável, a abordagem fundamentada na harmonização de objetivos sociais, ambientais e econômicos não se alterou desde o encontro de Estocolmo até as conferências do Rio de Janeiro, e acredito que ainda é válida, na recomendação da utilização dos oito critérios distintos de sustentabilidade parcial apresentados no Anexo 1” (SACHS, 2000, p. 54) . 217 Questões como a agricultura, a matriz energética, a mineração, a indústria de transformação, os transportes, a população, a urbanização, o saneamento, a saúde e a questao indígena devem ser vistas sob a ótica do desenvolvimento sustentável (CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO, 1991, p. 25-66). 218 “O princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o art. 225, caput. O desenvolvimento nacional que cumpre realizar, um dos objetivos da República Federativa do Brasil, e o pleno emprego que impede 294 295 desenvolvimento nacional não haverá mais de ser reduzido ao conceito de crescimento econômico, mas deverá ser equilibrado,219 não só no sentido de atendimento do plano nacional e do plano regional (procedimento necessário em face do princípio federativo), mas para obediência do princípio da defesa do meio ambiente, com o conteúdo delineado pelo artigo 225 da Constituição Federal. O fato de que o desenvolvimento nacional recebeu tratamento constitucional diverso do que lhe fora deferido na Carta anterior, deslocando-se da categoria de princípio norteador da atividade econômica para objetivo fundamental da República, confirma a argumentação de que o seu programa normativo deve abarcar não só a vertente econômica, mas todas as dimensões que o termo desenvolvimento comporta. A par de informador dos princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego, o princípio da defesa do meio ambiente constitui instrumento elementar e necessário para a realização da finalidade da ordem econômica, a de assegurar a todos existência digna – valor atado aos fundamentos da República Federativa do Brasil por meio do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III) (GRAU, 1990, p. 256). A pertinência do princípio da defesa do meio ambiente ao princípio da dignidade da pessoa humana manifesta-se cristalina em face da determinante da qualidade de vida, insculpida no artigo 225, caput, da C. F. Evidencia-se, ademais, a necessidade de exercício da atividade econômica com a preocupação do não-esgotamento dos limitados recursos naturais, comprometendo a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações. O princípio da defesa do meio ambiente constitui, pois, um dos limites constitucionais ao livre exercício da atividade econômica (pública ou privada), dando-lhe precisos contornos. Portanto, o exercício da atividade econômica deve-se integrar à defesa do meio ambiente, sob pena de violação de vários dispositivos constitucionais, entre outros, a saber: • do disposto no artigo 225, caput, que impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo – porque todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado; • do disposto no artigo 170, caput, porque impedido assegurar-se a todos existência digna, e do disposto no artigo 3o, II, porque, sem a defesa material do meio ambiente, amputa-se a garantia do desenvolvimento nacional; e • do disposto no art. 174 § 1o, que almeja um desenvolvimento nacional equilibrado, que incorpa e compatibiliza os planos nacionais e regionais de desenvolvimento em um Estado Federal. Situamos o princípio de desenvolvimento sustentável220 em diversos artigos da Constituição, mas o núcleo se encontra no caput do artigo 225: “Todos têm direito a um meio 219 220 assegurar supõem economia autossustentada, suficientemente equilibrada para permitir ao homem reencontrar-se consigo próprio, como ser humano e não apenas como um dado ou índice econômico. Por esta trilha segue a chamada ética ecológica e é experimentada a perspectiva holística da análise ecológica, que, não obstante, permanece a reclamar tratamento crítico científico da utilização econômica do fator recursos naturais” (GRAU, 1994, p. 249). A Constituição Federal vigente em seu art. 174, §1o, assinala: “Art. 174 como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. § 1o – A lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento” (grifo nosso). A “Comissão Mundial Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Comissão Brundtland), criada em 1983, 295 296 ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O capítulo da ordem econômica também consagra o respeito ao meio ambiente como limitador da atividade econômica (artigo 170, inciso IV), bem como o artigo 186, que trata da função social da propriedade dentro do Título da Ordem Econômica e Financeira.221 O conceito de desenvolvimento sustentável – aquele capaz de satisfazer as necessidades sociais atuais sem comprometer as necessidades futuras – engloba questões ideológicas, visto que a própria noção de desenvolvimento sempre acompanhou disputa por diferentes formas de apropriação da riqueza e reprodução social. Nesse contexto, Sachs (2000, p. 49) esclarece, verbis: A Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, de 1972, ocorrida em Estocolmo, colocou a dimensão do meio ambiente na agenda internacional. Ela foi precedida pelo encontro Founex, de 1971, implementado pelos organizadores da Conferência de Estocolmo para discutir, pela primeira vez, as dependências entre o desenvolvimento e o meio ambiente, e foi seguida de uma série de encontros e relatórios internacionais que culminaram, vinte anos depois, com o Encontro da Terra no Rio de Janeiro. Completando sua exposição e explicando que o desenvolvimento sustentável, na sua segunda e correta forma de interpretação, consolida a desprivatização do meio ambiente, afirma, ainda, Sachs (2000, p. 48): As conseqüências epistemológicas são, talvez, ainda mais contundentes. Francisco Sagasti argumenta que o paradigma básico do pensamento científico, herdeiro de Bacon e Descartes, chegou ao fim no que concerne à pretensão de dominar a natureza. Essa linha de interpretação do desenvolvimento sustentável não aceita a privatização do meio ambiente como solução para a crise ambiental, até porque o cálculo realizado pelas empresas só leva em conta aspectos mercantis, e o meio ambiente é uma globalidade. Exemplificando: uma floresta desmatada nunca pode ser recuperada em sua biodiversidade com o simples replantio de eucaliptos, que empobrecem o solo, afastam os pássaros e criam outro ecossistema distinto do originário, resolvendo apenas a necessidade do empresário de “preservação do meio ambiente”. A ambição de ampliar a produtividade não se coaduna com a diversidade da natureza e com seu processo de regeneração. O uso de insumos químicos nas plantações é bom exemplo disso, pois acabam por exaurir a capacidade de produção da terra. 221 trabalhou durante quatro anos para produzir o documento “Nosso Futuro Comum”, em que foi consagrada a expressão “Desenvolvimento Sustentável”, que foi ali conceituado como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem a suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: a) o conceito de “necessidade”, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; e b) a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender às necessidades presentes e futuras. Ao se decompor essa disposição constitucional percebe-se que, entre esses aspectos, se encontra um de feição eminentemente ecológica ou ambiental, qual seja o item II (utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente), que, na verdade, constitucionalizou e ampliou uma disposição infraconstitucional já presente na alínea “c” do parágrafo 1o do art. 2o da Lei no 4.504/64 (Estatuto da Terra), qual seja, a que “assegura a conservação dos recursos naturais”. 296 297 A Constituição de 1988 adotou, como conceito de desenvolvimento sustentável, aquele que não permite a privatização do meio ambiente, prioriza a democratização do controle sobre o meio ambiente, ao definir meio ambiente como “bem de uso comum do povo”, e exige o controle do capital sobre o meio por intermédio de instrumentos como o Estudo de Impacto Ambiental, e muitos outros, que chamam a comunidade a decidir. Para uma aplicação eficiente do desenvolvimento sustentável faz-se necessário um levantamento da medida de suporte do ecossistema, ou seja, estuda-se a capacidade de regeneração e de absorção do ecossistema e estabelece-se limite para a atividade econômica. Este limite permite que as atividades econômicas não esgotem o meio ambiente, mas que este seja protegido para o futuro. Nas precisas palavras de Sachs (2000, p. 48): A ecologização do pensamento (Edgar Morin) nos força a expandir nosso horizonte de tempo. Enquanto os economistas estão habituados a raciocinar em termos de anos, no máximo em décadas, a escala de tempo da ecologia se amplia para séculos e milênios. Simultaneamente, é necessário observar como nossas ações afetam locais distantes de onde acontecem, em muitos casos implicando todo o planeta [...]. Para Morin (1997, p. 56), o movimento ecológico nasceu da convergência entre a ciência ecológica de um lado e o movimento neonaturista (sobretudo o americano) de outro. Assim Morin (1997, p. 56-57), referindo-se ao movimento conservacionista da Natureza, oriundo das previsões catastróficas do Clube de Roma, afirma: [...] O verdadeiro problema não estava em deter o crescimento econômico, mas em controlá-lo e regulá-lo. Podemos dizer que o crescimento zero foi um mito que abriu uma problemática, e que as previsões do Clube de Roma foram o equivalente ecológico das primeiras cartas geográficas desenhadas pelos navegadores árabes da Idade Média: estes enganavam-se completamente sobre a posição dos continentes e dos países, mas tinham o grande mérito de esforçar-se em refletir sobre o mundo que conheciam e em representá-lo tão precisamente quanto podiam [...] (grifo nosso). Assim, a noção de desenvolvimento sustentável está intimamente ligada à proteção ambiental das presentes e das futuras gerações, razão por que se define desenvolvimento sustentável como aquele capaz de assegurar o desenvolvimento das atuais gerações, sem comprometer o meio ambiente para as gerações futuras, incluindo não apenas o aspecto econômico, mas também os seus valores de beleza, harmonia social e equilíbrio (valores ético-ecológicos).222 Tal desenvolvimento terá que definir a medida da capacidade de suporte dos ecossistemas, em relação a bens renováveis; a taxa de uso não poderá ser superior à taxa de regeneração (plano de manejo); as taxas de resíduos não poderão exceder a capacidade de absorção do meio ambiente; e, quanto aos bens naturais não renováveis, a taxa de uso não poderá exceder a taxa de recursos substitutos. 222 No Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1991, p. 388), definiram-se como princípios gerais a eqüidade entre as gerações (2. Os Estados devem conservar e utilizar o meio ambiente e os recursos naturais em benefício das gerações presentes e futuras) e a conservação e uso sustentável (3. Os Estados devem manter os ecossistemas e os processos ecológicos essenciais ao funcionamento da biosfera, preservar a diversidade biológica e observar o princípio da produtividade ótima sustentável, ao utilizarem os ecossistemas e recursos naturais vivos). 297 298 Por fim, não se pode esquecer que a sustentabilidade sempre envolve o desenvolvimento socialmente justo, com a distribuição das riquezas e do conhecimento. 298 299 PARTE IV A COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA: MECANISMOS NORMATIVOS PLURAIS PARTICIPATIVOS DE INTEGRAÇÃO ÉTICA ECONÔMICA NO CASO CONCRETO E E A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã. A contribuição internacional na gestão dos recursos hídricos e a construção de um direito fundamental à água. A política nacional de recursos hídricos (Lei Federal n. 9.433/97) e seus princípios estruturantes. A cobrança pela utilização da água na política nacional brasileira de recursos hídricos. Desafios jurídico-institucionais da gestão integrada participativa por bacia em país federado. Mecanismos normativos de resolução da lide pela água. “A terra flutua na água que é de certo modo a origem de todas as coisas...” Tales de Mileto “Andávamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas [...] Fomos até uma lagoa grande água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaülada por cima e sai por muitos lugares [...] Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que,querendo-a aproveitar [a terra], dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” Carta de Pero Vaz de Caminha 299 300 1 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL FUNDAMENTAL ONTEM, HOJE E AMANHÃ 1.1 A ÁGUA NA VISÃO COSMOGÊNICA DOS FILÓSOFOS PRÉ-SOCRÁTICOS A denominação “filósofos pré-socráticos” é basicamente cronológica e designa os primeiros filósofos, que viveram antes de Sócrates (470-399 a.C.), chegando alguns dos últimos a serem seus contemporâneos. Sócrates é tomado como um marco, não só devido a sua influência e importância, mas também por introduzir uma nova problemática na discussão filosófica, as questões éticopolíticas, ou sejam, as problemáticas humana e social que praticamente ainda não haviam sido discutidas, pois os filósofos que o antecederam preocuparam-se mais com a explicação do cosmos.223 Aristóteles (1968, p. 694), na sua obra Metafísica, afirma que os primeiros filósofos acreditavam que na Natureza nada era gerado ou destruído. Logo, o objeto de investigação dos primeiros fílósofos é o mundo natural, sendo que suas teorias buscam dar uma explicação causal dos processos e dos fenômenos naturais a partir de um elemento primordial (arqué). Ao contrário da visão mítica, não buscam as explicações em um mundo sobrenatural, divino; ao contrário, utilizam-se do mundo natural e humano, baseando-se na causalidade dos fenômenos naturais (MARCONDES, 2001, p. 24). A fím de evitar a regressão ao infínito da explicação causal, o que a tornaria insatisfatória, esses filósofos vão postular a existência de um elemento primordial. O primeiro a formular essa noção é exatamente Tales de Mileto, que afirma ser a água (hydor) o elemento primordial. Não sabemos por que Tales teria escolhido a água, entretanto, podemos realizar conjecturas a respeito de: 1. ser o único elemento que se encontra na natureza nos três estados sólido, líquido e gasoso; 2. Tales ter sido influenciado por antigos mitos do Egito224 e da Mesopotâmia (origem oriental da concepção da água), civilizações de regiões áridas e que se desenvolveram em deltas de rios e onde por isso mesmo a água aparece como fonte de vida; 223 224 “O significado do termo kosmos para os gregos desse período liga-se diretamente às idéias de ordem, harmonia e mesmo beleza (já que a beleza resulta da harmonia das formas; daí, aliás, o nosso termo “cosmético”). O cosmo é assim o mundo natural, bem como o espaço celeste, enquanto realidade ordenada de acordo com certos princípios racionais. A idéia básica de cosmo é, portanto, a de uma ordenação racional, uma ordem hierárquica, em que certos elementos são mais básicos, e que se constitui de forma determinada, tendo a causalidade como lei principal. O cosmo, entendido assim como ordem, opõe-se ao caos, que seria precisamente a falta de ordem, o estado da matéria anterior à sua organização. É importante notar que a ordem do cosmo é uma ordem racional, “razão” signifícando aí exatamente a existência de princípios e leis que regem, organizam essa realidade” (MARCONDES, 2001, p. 26). “Ninguém lhe deu lições, com a única exceção de sua viagem ao Egito onde passou algum tempo com os sacerdotes. Hierônimos conta-nos que Tales mediu a altura das pirâmides pela sombra das mesmas, fazendo a medição na hora em que nossa própria sombra corresponde ao nosso tamanho” (LAÊRTIOS, 1977, p.18). 300 301 3. que a Terra bóia no Oceano, “A terra que emerge de uma vastidão ilimitada de água primeva continuará a estar rodeada de água” (KIRK; RAVEN, 1966, p. 6). 4. os alimentos e os germes serem todos húmidos (ARISTÓTELES, 1968, p. 694). 5. razões metereológicas pela observação do ciclo hidrológico (chuvas, rios, mares, infiltração da água no solo, evaporação) 6. precedentes homéricos na Ilíada e na Odisséia. 7. razões fisiológicas, conforme teoria defendida por Aristóteles ao se referir a Tales, assinalando que todos os seres vivos dependem da água no que respeita à sua alimentação e que o sêmen é humido, dentre outras razões (KIRK; RAVEN, 1966, p. 85). 8. A própria origem familiar fenícia de Tales, sendo os fenícios os grandes desbravadores do mar da época.225 No que se refere ao fundamento para escolha da água como arqué, Aristóteles (1968, p. 693-694), na Metafísica, de forma clara, analisa o significado de arqué e uma possível razão para a escolha da água por Tales de Mileto (a umidade existente nos alimentos e nos germes): Na sua maior parte, os primeiros filósofos pensaram que os princípios, sob a forma de matéria, foram os únicos princípios de todas as coisas: pois a fonte original de todas as coisas que existem, aquela a partir da qual uma coisa é primeiro originada e na qual por fim é destruída, a substância que persiste mas se modifica nas suas qualidades, essa, afirmam eles, é o elemento e o primeiro princípio das coisas que existem, e por essa razão consideram que não há geração ou morte absolutas, com base no facto de uma tal natureza ser sempre preservada [...] Para Kirk; Raven (1966, p. 85), com base em analogia com os sucessores imediatos de Tales era possível supor que ele tivesse aduzido razões meteorológicas, de forma mais evidente, em apoio à importância cósmica da água. Ainda, defendem esses autores a origem oriental desta concepção, com base na visão do Egito e da Mesopotâmia. Assim, afirmam: A origem próximo-oriental de parte da cosmologia de Tales é indicada pela sua concepção de que a terra flutua ou repousa na água. No Egipto, a terra era geralmente concebida como uma taça rasa e com rebordo, em repouso sobre a água, que também enchia o céu; o Sol navegava diariamente através do céu num barco, e bem assim por baixo da terra todas as noites [...]. Na epopéia babilônica da criação, Apsu e Tiamat representam as águas primevas, e Apsu subsiste como água subterrânea depois que Marduk fragmentou o corpo de Tiamat para formar o céu (com as suas águas) e a terra. Na história de Eridu século sétimo a.C. (na versão mais recente que possuímos), a princípio <<toda a terra era mar>>; então Marduk construíu uma jangada à 225 “Tanto Herôdotos como Dúris e Demôcritos dizem que Tales era filho de Examias e Cleobuline, e pertencia à família dos Telidas, que eram de origem fenícia e estavam entre os descendentes mais nobres de Cadmos e de Agênor. De acordo com o testemunho de Platão ele era um dos Sete Sábios; foi o primeiro a receber o nome de sábio, no arcontado de Damasias em Atenas [...]” (LAÊRTIOS, 1977, p. 18). 301 302 superfície da água, e sobre a jangada, uma cabana de junco que se transformou em terra (KIRK; RAVEN, 1966, p. 86). Segundo Mileto (apud LAÊRTIOS, 1977, p.19), o princípio de todas as coisas é a água. A água seria, então, um substrato permanente, origem de todas as coisas, elemento da vida. Nesse sentido, ilustrativa a passagem de Villiers (2002, p. 50), a respeito da origem da vida e da água na ciência evolucionista de Darwin: Darwin e os primeiros evolucionistas imaginavam a vida evoluindo em uma piscina de água pastosa, rica em nutrientes e substâncias químicas, uma idéia ainda muito aceita hoje em dia, mesmo que exista um pequeno mas influente grupo científico que acredita que a vida também possa ter nos chegado do espaço [...] A ciência contemporânea retrata que Tales não estava distante da verdade. Ball (2001, p. 16), em sua biografia da água, ressalta que a composição química desta (dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio) demonstra que, caso exista um único elemento primordial no Universo, este será o hidrogênio, um dos componentes da água, que possui etmologicamente este nome, exatamente em razão de ser gerador da água. 1.2 A ÁGUA COMO SÍMBOLO CULTURAL DA INTEGRAÇÃO DO HOMEM COM A NATUREZA Para Jung (1964, p. 20), o que chamamos símbolo é um termo, um nome, ou mesmo uma imagem que pode ser familiar na vida cotidiana, mas que possui uma conotação específica além do seu sentido óbvio. Na arte e na literatura, freqüentemente há o uso de uma imagem ou atividade para representar outra coisa, geralmente um emblema tangível de algo abstrato ou um objeto mundano que evoque um domínio superior. Os símbolos podem-se basear em correlações convencionais (como o aperto de mão, que representa a acolhida e abertura para o diálogo), semelhanças físicas (como a rosa vermelha que se associa a eros ao lembrar os lábios) ou de outro tipo de correlação entre o símbolo e seu referente. Assim, Jung (1964, p.20-21) afirma: Então uma palavra, uma imagem é simbólica quando implica alguma coisa mais que o seu significado óbvio ou imediato. Possui um maior aspecto do inconsciente que o que é definido ou explicado. Ninguém pode esperar definir ou explicar isso completamente. Quando a mente explora um símbolo, a mente é levada para idéias que estão além do racional. A roda pode levar nossos pensamentos a um conceito de sol “divino”, mas esse conceito deve admitir a sua incompetência. Quando, com nossas limitações intelectuais, nós chamamos alguma coisa de divina, nós estamos, simplesmente, dando um nome a isto, que pode ser baseado em uma crença, mas nunca em uma evidência fática. 302 303 Para a lingüística, todas as palavras são consideradas símbolos, ou signos, arbitrários, vinculados àquilo a que se referem em virtude do uso e do costume, estudados neste aspecto pela semiótica.226 Segundo a psicanálise, os símbolos, em especial as imagens dos sonhos, são manifestações de desejos e temores subconscientes e reprimidos de extrema relevância para o equilíbrio psíquico (JUNG, 1964, p. 50). A maior parte das imagens religiosas e rituais é simbólica; por exemplo, o que se põe à mesa nos banquetes e nas cerimônias realizadas no âmbito da páscoa judaica e cristã simbolizam fatos ocorridos, quando os israelitas se libertaram do Egito, ou quando ocorreu a morte e ressureição de Cristo (páscoa cristã). Do mesmo modo, ao buscar a explicação do mundo, o homem se apoiou em símbolos e imagens mitológicos tendo eles influenciado, também, a “ciência”, conforme pudemos constatar na busca pelos pré-socráticos de um princípio fundamental. Da mesma forma como o sol representou a divindade, a água, também, sempre foi uma fonte simbólica, não tendo perdido esta característica com a modernidade. Como Jung (1964, p. 23) afirma, o homem desenvolveu a consciência lentamente e laboriosamente, em um processo que levou muito tempo para que fosse atingido o estado de civilização. O que nós chamamos de “psíque”, portanto, não é, de nenhum modo, idêntico ao que a nossa consciência contém. A água está, assim, na natureza e, a um só tempo, na cultura. Está nos mitos e na história. Como afirma Cunha (2000, p. 15): Prenhe de significados, a água é um elemento da vida que a encompassa e a evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários. Se, por um lado, é condição básica e vital para a reprodução, dependendo dela o organismo humano, por outro, a água se inscreve no domínio do simbólico, enfeixando várias imagens e significados. Isso se manifesta quer nos ritos, nos cerimoniais sagrados e mitológicos, quer nas práticas agrícolas, no cultivo das plantas e das flores, na fecundação da terra (e da alma). A própria idéia de Tales de Mileto, de que a água é o elemento primordial, enseja a visão simbólica de sua relevância para o Homem e para a Natureza. Assim, tudo dela teria surgido, tanto o Homem, como os animais, como todas as partes do ecossistema natural.227 Barlow; Clark (2003, p. 3), ativistas ecológicos canadenses, utilizando-se de passagens bíblicas, afirmam, ao destacarem a importância da água para os povos bíblicos, que os poços de água abertos por Abrão, Isaac e Jacó eram motivos de constantes disputas nas tribos de Israel. Corbin (1989, p. 12), ao afirmar que o oceano representa o inacabado, assinala: Esse elemento indomável manifesta o inacabamento da Criação. O oceano constitui a relíquia daquela substância primordial indiferenciada que tinha necessidade, para tornar-se natureza criada, de que Ihe fosse imposta uma forma. Esse reino do inacabado, 226 A respeito de uma Teoria Geral da Semiótica e sua intrínseca relação com a cultura,. Cf. ECO, 2000. Para Eco (2000, p. 39), “um signo é sempre constituído por um (ou mais) elementos de um PLANO DA EXPRESSÃO convencionalmente correlatos a um (ou mais) elementos de um PLANO DO CONTEÚDO”. 227 Do mesmo modo, a dependência da vida humana da água pode ser representada pela afirmativa de Villiers (2002, p. 36): “os seres humanos podem viver um mês sem comida, mas morrerão em menos de uma semana sem água.” 303 304 vibrante e vago prolongamento do caos, simboliza a desordem anterior à civilização. A convicção sugere que já nos tempos pré-diluvianos o oceano irascível era contido com dificuldade em seus limites. Neste aspecto, Bachelard (1989, p. 23-24) destaca o papel da imagem simbólica da água de integração do homem à Natureza: [...] a água serve para naturalizar a nossa imagem, para devolver um pouco de inocência e de naturalidade ao orgulho de nossa contemplação íntíma. Os espelhos são objetos demasiado civilizados, demasiado manejáveis, demasiado geométricos; são instrumentos de sonho evidentes demais para adaptar-se por si mesmos à vida onírica [...]. Diante da água que lhe reflete a imagem, Narciso sente que sua beleza continua, que ela não está concluída, que é precíso conclui-la. Os espelhos de vidro, na viva luz do quarto, dão uma imagem por demais estável. Tornarão a ser vivos e naturais quando pudermos compará-los a uma água víva e natural, quando a imaginação renaturalizada puder receber a participação dos espetáculos da fonte e do rio. Corbin (1989, p. 85), no mesmo âmbito, afirma que a água é mecanismo de contato corpóreo entre o homem e a Natureza, o banho, seja com significação sagrada, seja com significação profana, propicia uma sublime experiência entre o homem e a Natureza. Nesse aspecto, assinala: O banhista e os médicos concordam em exigir do mar três qualidades fundamentais: a frieza (ou pelo menos o frescor), a salinidade e a turbulência. O prazer nasce da água que flagela. O banhista delicia-se ao experimentar as forças imensas do oceano. O banho nas ondas participa da estética do sublime: implica enfrentar a água violenta, mas sem riscos; gozar do simulacro engolido; receber a vesgatada da onda, mas sem perder o pé. Para as três maiores religiões monoteístas do mundo (a religião judaica, cristã e muçulmana), a água possui um significado simbólico e sacro. Villiers (2002, p. 100), a respeito da água e das religiões orientais, afirma que os povos da Mesopotâmia e do Oriente Médio, que estiveram em condições críticas de água, mesmo em tempos bíblicos, possuem contos que correm o Mundo: Os muçulmanos acreditam que o Domo da Pedra, em Jerusalém, está mais próximo de Deus que qualquer outro lugar da Terra e que embaixo dele origina-se toda a água doce do planeta. As culturas antigas tinham os mesmos conceitos. O deus egípcio Hapi, um homem, freqüentemente era mostrado com dois seios cheios; de um deles jorrava o Nilo do norte e, do outro, o Nilo do sul. Nun (ou Nu) é Caos, o oceano primevo, o germe de todas as coisas e de todos os seres. Ele foi o “pai dos deuses” e muitas vezes é representado como um personagem mergulhado até o peito na água, os braços suspensos para sustentar os deuses que emanaram dele [...] No mesmo sentido, Gleick (1993a, p. 3) afirma que para o hinduísmo e para o budismo, o Monte Meru é o centro do universo, local no qual originam-se todos os rios da Terra, inclusive o Ganges e o Brahma. 304 305 Para o hinduísmo, a água é um poderoso meio de purificação e uma importante fonte de energia. Algumas vezes, com o espargimento de água em cerimônias religiosas, acredita-se que a pureza é alcançada. Nesse aspecto, o Código de Manu já afirmava que: “Uma pessoa não deve urinar, tossir ou defecar na água. Qualquer coisa que é misturada com sangue e veneno não deve ser jogada na água” (DIWIVEDI, 2000, p. 47). Assim, na Índia, muitos rios são santuários sagrados, dentre eles, o Rio Ganges é considerado o corpo de água mais sagrado que existe, constituindo dever religioso a não realização de certos atos no rio, tal como defecar, banhar-se (atividades poluentes), brincar e nadar na água (atividades recreativas), ter relações sexuais (atividades que atentem ao senso de pudor e pureza) (DIWIVEDI, 2000, p. 47). Para o Cristianismo, o batismo, ritual de molhar o corpo com água, em imitação do batismo de Jesus realizado por João Batista no Rio Jordão, representa o ingresso na fé e a purificação dos pecados. É praticado por quase todas as doutrinas cristãs, geralmente ao nascer, embora a idade em que é realizado e o grau de imersão variem. Corbin (1989, p. 16) afirma: Essa cosmologia sagrada, aqui evocada em linhas gerais, impõe o mar e às criaturas que o habitam certos esquemas de apreciação e Ihes confere um forte valor simbólico. Através da figura do Leviatã, “o monstro que habita o mar”, a Bíblia consagrou o caráter teratológico do peixe. Isso, aliás, é uma decorrência lógica do relato da Criação. É do mar que surge o dragão que vem atacar o arcanjo São Miguel. Os périplos dos monges irlandeses da Idade Média, sobretudo o de São Brandão, vieram reforçar essa interpretação. Segundo o relato de Benedeit, foi necessária toda a santidade do herói para apaziguar os horríveis animais saídos das profundezas do abismo. Eliade (1967, p. 127-128), ao tratar da sacralidade da natureza, destaca o simbolismo aquático de imersão/emersão para a vida e a morte: [...] Una de las imágenes ejemplares de la Creación es la de la Isla que <<aparece>> de repente en medio de las olas. Por el contrario, la inmersión simboliza la regresión a lo preformal, la reintegración al modo indiferenciado de la preexistencia. La emersión repite el gesto cosmogónico de la manifestación formal; la inmersión equivale a una disolución de las formas. Por ello, el simbolismo de las Aguas implica tanto la muerte como el renacer. El contacto com el agua implica siempre una regeneración: no sólo porque la disolución va seguida de un <<nuevo nacimiento>>, sino también porque la inmersión fertiliza y multiplica el potencial de vida. Nos devaneios da morte e da vida que a água parece anunciar e contemplar, Bachelar (1989, p. 75) alude a Carl G. Jung, quando este interpreta o Todtenbaun, a árvore do morto: [...] o morto é devolvido à mãe para ser re-parido [...]. É que as sombrias águas da morte se transformam em águas da vida, que a morte e seu frio abraço sejam o regaço materno, exatamente como o mar, embora tragando o Sol, torna a pari-lo em suas profundidade [...]. Nunca a vida conseguiu acreditar na Morte. Corbin (1989, p. 18-19), ao tratar do mar e da literatura, ressalta o papel deste para as peças de Shakespeare: 305 306 A imensidade movente do mar carrega em si a desgraça. Nas peças de Shakespeare, da juventude e da maturidade, animais ferozes, tempestade, cometa, doenças e vícios tecem uma rede de associações, evocadora de um mundo em conflito, dominado pela desordem. O oceano hibernal cinzento, lúgubre e frio, sintetiza as formas do medo; alimenta o temor de sermos surpreendidos pela morte imprevisível privada dos últimos sacramentos, longe do círculo familiar; de sermos, corpo e alma, entregues sem sepultura a essas ondas infinitas que não conhecem nenhum repouso. Corbin (1989, p. 25), fazendo referência ao naufrágio de Robinson Crusoé, na obra de Daniel Defoe, destaca a apreciação negativa do litoral que permeou o início do século XVIII, bem como a integração do homem, da natureza e do divino em uma ilha (pedaço de terra cercado por água de todos os lados): A aurora do século XVIII, Daniel Defoe sintetiza e reordena essas imagens nefastas da praia. A ilha de Robinson apresenta todas as características do Éden após a queda: a felicidade serena ali se realiza, com a condição de que o homem não poupe seu suor, de que organize o tempo e administre minuciosamente seu trabalho. No correr das páginas, o romance, como se sabe, recapitula simbolicamente as etapas da civilização, dentro de uma perspectiva prometéica: a coleta e a pesca, a agricultura e a criação de animais. Demonstrando a metamorfose ocorrida da visão negativa para a visão positiva do litoral e da praia, que ensejaram o nascimento do desejo da beira-mar, que culmina com a invenção das praias de veraneio, Corbin (1989, p. 24) afirma que: Durante o primeiro terço do século XIX, principia e logo se desenvolve uma prolixa literatura da praia, da falésia, da caverna. O romance, e sobretudo a novela, comprazem-se com esses locais que em breve a ópera e a ópera cômica contribuirão igualmente para popularizar. Outro dado para a demonstração da simbologia cultural (no âmbito religioso, psíquico e das artes literárias) de integração do Homem e da Natureza na sacralidade da água é que Herbert (1999, p. 301-310), na obra Dune de ficção científica, descreve que na morte das pessoas em um mundo carente de água, a água do corpo do cadáver seria retirada antes do enterro para uso pela coletividade. Montes; Ramón Antúnez (1999, p. 93), professores espanhóis de Ecologia na Universidade de Madrid, afirmam: El agua es algo más que uno de los recursos naturales básicos de la civilización; es la base de la vida y sus flujos son las venas de este gran sistema ecológico que es nuestro planeta (ecosfera). Prácticamente cualquier proceso que mantiene a nuestra sociedad y a la naturaleza necesita agua. Por fim, a água, símbolo comum da humanidade, respeitada e valorizada nas diversas religiões e culturas, conforme demonstrado, possui forte significado metafórico de integração do homem com a natureza, na busca de uma volta ao Éden. 306 307 1.3 A ÁGUA COMO RECURSO NATURAL LIMITADO 1.3.1 A Água no mundo Qual é a quantidade de água que existe? A quantidade total de água existente no planeta, com certeza, não mudou desde as eras geológicas primevas aos dias atuais: o que tínhamos, continuamos a ter. A diferença, portanto, que pode existir da água de ontem para a de hoje estará na qualidade e não na quantidade. Nesse sentido, a observação de Villiers (2002, p. 52), a respeito da água existir em um sistema fechado dinâmico, mostra-se relevante : A água existe, portanto, em um sistema fechado, chamado de hidrosfera, e contemplar a hidrosfera e o ciclo hidrológico é quase suficiente para fazer um cético acreditar na oniexistência de Gaia. O sistema é tão intrincado, tão complexo, tão interdependente, tão interpenetrado e tão incrivelmente estável que parece construído de propósito para regular a vida. Getches (1997, p. 1), a respeito da existência de um ramo jurídico só para as águas, afirma que a água é por demais importante e preciosa e isto justifica a existência de um ramo do Direito só para ela: É fora do comum para uma área do Direito ser definida somente em função de um recurso natural específico. Mas a água é única na diversidade e na importância que possui. A água mata nossa sede, dá existência para os produtos agrícolas, permite a atividade da pesca, possibilita a recreação e a satisfação estética e purifica o ar. É a mais completa substância, na verdade é considerada freqüentemente tão importante porque, normalmente, não existe tanta água com a qualidade e a quantidade desejada no momento certo. O termo água refere-se, como afirma Rebouças (1999, p. 1), ao elemento natural, desvinculado de qualquer uso ou utilização. Por sua vez, o termo recurso hídrico refere-se a água como bem econômico, passível de utilização.228 Deste modo, deve-se destacar que nem toda a água da terra é necessariamente um recurso hídrico, na medida em que seu uso ou utilização nem sempre tem viabilidade econômica. As águas doces utilizadas para abastecimento do consumo humano e de suas atividades sócio-econômicas são captadas nos rios, lagos, represas e aqüíferos subterrâneos. Pelo fato desses mananciais se encontrarem nos domínios terrestres – continentes e ilhas – são, também, referidos como águas interiores. 228 Entretanto, na legislação brasileira contemporânea de recursos hídricos, não é feita tal diferenciação (art. 1 da Lei 9.433/97), razão pela qual não será feita tal diferenciação no presente trabalho. 307 308 A água do mar, hoje, não é um recurso hídrico. Não implica esta afirmação presente numa vedação a que no futuro possa vir a ser. A utilização econômica (como recurso hídrico) do mar, pela sua alta salinidade, atualmente está descartada.229 Nesse aspecto, do fato de água do mar não ser um recurso hídrico, Gleick (1993a, p. 3) destaca o poema de Coleridge, intitulado “O poema do velho marinheiro”, no qual afirma, descrevendo o mar: “água, água, por todo o lado e nenhum pingo para beber”. Como destaca Rebouças (1999, p. 6), nas últimas décadas, os volumes de água que compõem o gigantesco ciclo hidrológico foram avaliados por diferentes autores. Sendo destacado em geral o trabalho feito pela Unesco no International Hydrological Programme – IHP-IV, de 1998. Considera-se, atualmente, que a quantidade total de água na Terra, de 1.386 milhões de km3, tem permanecido de modo aproximadamente constante durante os últimos 500 milhões de anos, conforme dados coletados por cientistas soviéticos.230 Villiers (2002, p. 54) ilustra, no quadro abaixo, a quantidade de água doce de forma didática, ao expressá-la em termos de profundidade da piscina natural formada pela água, se a mesma fosse igualmente distribuída em todo o planeta: Quadro 7 – Quantidade de água doce existente na Terra TIPO DE ÁGUA Total (100%) QUANTIDADE EXISTENTE (km3) PROFUNDIDADE DA PISCINA MUNDIAL (m) 1.400.000.000 2.700 Água doce total (2,5%) 350.000 70 Água doce (0,65%) 90.000 1,82 superficial A água doce é renovável, pelo menos no sentido de que o ciclo hidrológico evapora a água dos oceanos e devolve grande parte dessa água para a terra. Esta água, de forma cíclica, acaba por fazer o caminho de volta para os oceanos, por meio dos rios, cursos d’água, dos lagos e aqüíferos subterrâneos. A esta renovação da água no sistema hidrológico fechado da Terra denomina-se ciclo hidrológico.231 Nas precisas palavras de Gleick (1993a, p. 3): 229 “A classificação mundial das águas, feita com base nas suas características naturais, designa como água doce aquela que apresenta teor de sólidos totais dissolvidos (STD) inferior a 1.000 mg/1. As águas om STD entre 1.000 e 10.000 mg/1 são classificadas como salobras e aquelas com mais de 10.000 mg/L sâo consideradas salgadas” (REBOUÇAS, 1999, p. 1). 230 Cf. SHIKLOMANOV, 1993, p. 13. REBOUÇAS, 1999, p. 7. VILLIERS, 2002, p. 54. 231 Pode definir-se ciclo hidrológico como a sequência fechada de fenômenos pelos quais a água passa da superfície do globo terrestre para a atmosfera, na fase de vapor, e regressa àquele, nas fases líquida e sólida. A transferência de água da superfície do globo para a atmosfera, sob a forma de vapor, dá-se por evaporação direta, por transpiração das plantas e dos animais e por sublimação (passagem directa da água da fase sólida para a de vapor). 308 309 A água doce é um recurso natural renovável, continuamente colocado à nossa disposição pelo constante fluxo de energia solar incidente sobre a Terra, o qual evapora a água dos oceanos e do solo e a redistribui pelo globo. Mais água evapora dos oceanos do que a que cai sobre eles; portanto há uma contínua transferência de água dos oceanos para o continente. Esta água é drenada para os rios e cursos de água que sustentam os nossos ecossistemas naturais e sociais, além de recarregar nossos aqüíferos. Figura 2 – Ciclo Hidrológico Em outro argumento, Gleick (1993b, p. 67) destaca a questão da escassez da água, nos aspectos espacial, temporal, quantitativo e qualitativo, intimamente vinculada à questão do ciclo hidrológico: [...] Enquanto a água é abundante em termos globais, nós, normalmente, não a possuímos quando queremos, onde queremos ou na forma que queremos. O fato de que a maior parte da água doce estar presa no gelo da Groelândia e da Antártida é só um dos exemplos frustantes. Quando a demanda urbana e rural da água crescem, nós, de forma crescente, nos encontramos com o problema de atendimento ao consumo humano que exige o transporte de água de lugares distantes (grifo nosso). 1.3.2 A água no Brasil 1.3.2.1 Situação hídrica brasileira 309 310 Como assinala Villiers (2002, p. 52), o Brasil está em uma situação especial com relação aos recursos hídricos: Em termos nacionais, o Brasil possui a maior quantidade de água, ou seja, um quinto de toda a reserva global. Os vários países da antiga União Soviética estão em segundo lugar, coletivamente, com 10,6% de reservas. A China (5,7 %) e o Canadá (5,6%) são o terceiro e quarto. No mesmo aspecto, referindo-se ao Brasil e a uma “possível” partilha de seus recursos hídricos com o resto do Mundo, com destaque ao aspecto ecocêntrico da água, afirma: Nem a água pode ser avaliada sem levar em consideração seus outros propósitos, aqueles não-humanos. Ainda que isso fosse possível, não poderíamos transferir os 20% da água do Brasil para, digamos, o Saara. Fazer isto acabaria com o maior reservatório de biomassa do mundo e com a maior floresta tropical do planeta, que, hoje sabemos, é o sistema respiratório da Terra. Fazer isto seria como colocar um enorme torniquete ao redor dos pulmões do mundo (VILLIERS, 2002, p. 58). Com uma área de 8.544.416 Km2 e cerca de 161,8 milhões de habitantes, o Brasil é, atualmente, o quinto país do mundo, tanto em extensão territorial como em população. Um país-continente, terra de contrastes, é assim que muitos estudiosos consideram o Brasil (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 17-19). Como afirma Rebouças (1999, p. 29): O Brasil possui uma ampla diversificação climática, predominando os tipos equatorial úmido, tropical e subtropical úmidos, e semi-árido sobre menos de 10% do território. Em termos pluviométricos, mais de 90% do território brasileiro recebe abundantes chuvas – entre 1.000 e 3.000 mm/ano. A interação desse quadro climático com as condições geológicas dominantes engendra importantes excedentes hídricos que alimentam uma das mais extensas e densas redes de rios perenes do mundo. A exceção é representada pelos rios efêmeros e temporários que nascem nos domínios das rochas do embasamemo geológico subaflorante – 400.000 km2 – do contexto semi-árido da região Nordeste. Como resultado, o Brasil destaca-se no cenário mundial pela grande descarga de água doce dos seus rios, cuja produção hídrica, 177.900 m3/s e mais 73.100 m3/s da Amazônia internacional, representa 53% da produçao de água doce do continente Sul Americano (334.000 m3/s) e 12% do total mundial (1.488.000 m3/s). Assim, fica caraterizada a nossa aparente abundância de água doce,232 o que, infelizmente, tem servido de suporte à cultura do desperdício da água disponível, a não 232 “Entretanto, os problemas de abastecimento no Brasil decorrem, fundamentalmente, da combinação do crescimento exagerado das demandas localizadas e da degradação da qualidade das águas, em níveis nunca imaginados. Esse quadro é uma conseqüência da expansão desordenada dos processos de urbanização e 310 311 realização dos investimentos necessários ao seu uso, à ineficiência à proteção dos nossos mananciais, e à ilusória consideração de que a água é um bem livre, abundante e sem valor econômico. Nesse aspecto, Cordeiro Netto (2002, p. 29) afirma: A água é um problema seríssimo no mundo todo. No Brasil, se tem a falsa sensação de que é um país muito rico em água, mas na verdade nós temos uma falsa riqueza, porque a abundância de água doce está situada na Amazônia, longe do grande centro produtor, consumidor e longe da grande concentração da população brasileira (grifo nosso). No semi-árido nordestino, no Sudeste e Sul o problema é sério. Há falta de água e há muita poluição de recursos hídricos. O próprio Centro-Oeste já tem problemas dessa natureza. Às vezes a água está tão próxima, mas ela é tão poluída que não pode ser aproveitada para usos mais importantes como o abastecimento público das cidades. O caso clássico é o de São Paulo e do Rio de Janeiro, cidades que sofrem, ao mesmo tempo, de falta de água e de enchentes. Porque a água que inunda é tão poluída que não pode ser aproveitada e a água que se bebe é buscada em locais muito distantes. De acordo com a divisão adotada pela Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente, são oito as grandes bacias hidrográficas no País: a do rio Amazonas, a do rio Tocantins, as do Atlântico Sul, trechos Norte e Nordeste, a do rio São Francisco, as do Atlântico Sul, trecho Leste, a do rio Paraná, a do rio Paraguai, e as do Atlântico Sul, trecho Sudeste. O Brasil é uma potência incontestável quando se fala em água (16% da água utilizável no mundo). Possui a maior bacia hidrográfica do planeta, entretanto, mesmo assim, sofre com a falta de água potável nas grandes cidades (REBOUÇAS, 1999, p. 31). Segundo Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 34), algumas das principais características da rede de Bacias Hidrográficas do País são as seguintes: • As bacias do Paraná e Uruguai (parte da bacia do Prata no Brasil) e do São Francisco apresentam o predomínio de rios do tipo de Planalto, que, em decorrência do relevo, apresentam em seu leito rupturas de declive e vales encaixados que Ihes conferem grande potencial hidrelétrico; • Com precipitações geralmente acima de 1.000 mm em suas bacias de drenagem, os rios apresentam predomínio de regime pluvial. A maior parte do País se localiza na zona tropical, sendo que seus rios apresentam cheias no verão e estiagens no inverno. Há exceções: o rio Amazonas, com regime complexo (em face de sua diversidade de afluentes), o Uruguai (cheias de primavera) e os rios do Nordeste (Piranhas, Jaguaribe, Paraíba e Capibaribe), cujas cheias são de outono/invemo; industrialização, verificada a partir da década de 1950. [...] Vale ressaltar, ainda, que estas formas desordenadas de uso e ocupação do território em geral, engendram o agravamento dos efeitos das secas ou enchentes que atingem as populações e suas atividades econômicas. No meio urbano, esse quadro é especialmente agravado pelo crescimento de favelas nas áreas de alto risco ambiental – encostas dos morros e várzeas dos rios -, falta de coleta ou lançamentos de esgotos não tratados nos corpos de água utilizados para o abastecimento, não para coleta do lixo urbano produzido – doméstico e industrial – ou deposição inadequada do resíduo coletado e grande desperdício da água disponível” (REBOUÇAS, 1999, p. 30). 311 312 • Existe predominância de rios perenes em grande parte do País com exceção da região Semi-árida do Nordeste brasileiro onde, durante parte importante do ano, os rios secam; • Os lagos no Brasil podem ser agrupados em três categorias: costeiros, formados pelo fechamento de uma restinga ou cordão arenoso (caso das lagoas dos Patos, Mirim e Mangueira, no Rio Grande do Sul; Araruama e Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro); fluviais ou de transbordamento, originados pelo transbordamento de cursos fluviais. Segundo Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 35), há uma distribuição desigual da água no Território Brasileiro. Cerca de 68% de nossos recursos hídricos estão no Norte, apenas 3% estão no Nordeste e 6% estão no Sudeste. Segundo Thame (2000, p. 11), apesar de o Brasil possuir uma das maiores reservas de água doce do mundo – mais de 12% da água potável do mundo – esta avaliação, porém, esconde uma desproporcional distribuição espacial desses recursos. Conforme a tabela abaixo, há uma desproporção na disponibilidade de água nos Estados-membros brasileiros. O índice considerado suficiente para a vida em comunidade, para o exercício normal das atividades humanas, sociais e econômicas, é de 2.500m3 de água por habitante por ano. Abaixo de 1.500 m3, a situação é considerada crítica. Quadro 8 – Situação hídrica pobre e crítica de Estados-membros brasileiros DISPONIBILIDADE HÍDRICA (Situação) Pobre <2500; Crítica <1500 ESTADO BRASILEIRO DISPONIBILIDADE HÍDRICA PER CAPITA m3/hab/ano Pobre Ceará 2.436 Pobre R. Grande do Norte 1.781 Pobre Alagoas 1.751 Pobre Sergipe 1.743 Pobre Rio de Janeiro 2.315 Pobre Distrito Federal 1.752 Crítica Paraíba 1.437 Crítica Pernambuco 1.320 Fonte: (THAME, 2000, p. 12). De que adianta haver água abundante na Amazônia, quando o sertão da região nordeste sofre com a ausência de água na época da estiagem das chuvas? A utilização da água possui, portanto, uma dimensão espacial e temporal que ocasiona sua escassez, razão pela qual é considerada um bem econômico finito. A qualidade adequada233 é outro aspecto que caracteriza a utilização econômica dos recursos hídricos. A água salgada do mar, mesmo quando está próxima, não pode ser 233 “A maioria dos rios que atravessam as cidades brasileiras estão deteriorados, sendo esse considerado o maior problema ambiental brasileiro. Essa deterioração ocorre porque a maioria das cidades brasileiras não possui 312 313 utilizada, exceto se for dessalinizada a um preço muito alto para a maioria dos usos. Nem o homem com sede, nem as indústrias, nem a agricultura desejam água salgada. Assim, o Brasil, apesar de sua abundância hídrica, tem recursos hídricos limitados para utilização efetiva no espaço e no tempo. Nesse aspecto, a Lei Federal nº 9.433/97 da Política Nacional de Recursos Hídricos reconhece a água como bem econômico e recurso limitado, fato que decorre das situações de escassez fixadas por questões espaciais, temporais e de adequação ao uso. Destacando o impacto nocivo da atividade antrópica nos recursos hídricos brasileiros, Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 48) afirmam: As principais cargas de poluição afluentes às águas interiores podem ser pontuais ou difusas. As cargas pontuais se devem a: (a) efluentes da indústria; (b) esgoto cloacal e pluvial. As cargas difusas se devem ao escoamento rural e urbano, distribuído ao longo das bacias hidrográficas. As cargas podem ser de origem orgânica ou inorgânica. As cargas orgânicas têm origem nos restos e dejetos humanos e animais e na matéria orgânica vegetal. As cargas inorgâncias têm origem nas atividades humanas, no uso de pesticidas, nos efluentes industriais e na lavagem pelo éscoamento de superfícies contaminadas, como áreas urbanas. Em conclusão, o que mais falta no Brasil não é água vista de forma quantitativa, mas água com qualidade no local e no tempo certo. Há pois a necessidade de uma cultura de preservação deste bem, que melhore a eficiência de desempenho político dos governos e da sociedade organizada, promotores do desenvolvimento econômico em geral e da sua água doce. Nesse diapasão, uma das mudanças mais relevantes, impostas pela Carta Magna de 1988, foi exatamente a atribuição das águas doces aos domínios da União e dos Estadosmembros, tornando, estes, bens de titularidade do poder público para que este, em conjunto com a sociedade, busquem o equilíbrio ecológico deste bem fundamental para a vida do homem, dos animais e da Natureza, em geral. 1.3.2.2 A água, hidroeletricidade e o racionamento de energia elétrica ocorrido em 2001 Gleick (1993b, p. 67) retrata com sensibilidade a íntima relação entre a água e a energia: coleta e tratamento de esgotos domésticos, jogando in natura o esgoto nos rios. Quando existe rede, não há estação de tratamento de esgotos, o que vem agravar ainda mais as condições do rio, pois se concentra a carga em uma seção. Em algumas situações, é construída a estação, mas a rede não coleta o volume projetado porque existe um grande número de ligações clandestinas de esgoto no sistema pluvial, que de esgoto separado passa a misto. Muitos dos rios urbanos escoam esgoto, já que, devido à urbanização, grande parte da precipitação escoa diretamente pelas áreas impermeáveis para os rios. Não ocorrendo a infiltração, a vazão de água subterrânea se reduz, agravando as estiagens (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 47). 313 314 Água fresca e energia, duas fontes necessárias para uma razoável qualidade de vida, estão intrisicamente conectadas. Nós usamos energia para limpar e transportar a água que necessitamos. Nós usamos água para produzir a energia que usamos. E quando o século XXI se aproxima, nós estamos correndo contra as dificuldades da escassez desses dois recursos fundamentais. Na hidroeletricidade, conjugam-se dois elementos relevantes para a questão do desenvolvimento sustentável: a água e a energia. Kelman et al. (1999, p. 371) relembram a revolução trazida pela hidroeletricidade em termos de rendimento energético em comparação a outras fontes energéticas utilizadoras da água como as rodas d’água: Até quase o final da Idade Média, a populaçao européia ainda realizava laboriosas tarefas; por exemplo, moagem de grãos ou corte de madeira, a partir do esforço humano ou animal. No século XIII difundiu-se o uso das rodas dágua, que atingiu seu ápice no século XVIII, quando, só na Inglaterra, havia mais de 10.000 unidades (Gulliver e Arndt, 1991). A potência de uma roda de água era de 0,l MW, cerca de 1.000 vezes menor do que uma típica turbina de usina hidrelétrica nos dias de hoje. Gleick (1993b, p. 70) afirma que a hidroeletricidade234 constitui-se em um uso moderno da água, vinculando-se, diretamente, a sua abundância e escassez, exemplificando tal fato com o racionamento de energia ocorrido na Califórnia entre 1987 e 1991 e com a seca no Egito em 1980. Conforme destaca Kelman et al. (1999, p. 373), comparando as vantagens e desvantagens da hidroelétrica com a termoelétrica, afirmam que a opção hidrelétrica tem prevalecido largamente no Brasil por ser uma energia limpa, com uma relação de custobenefício extremamente vantajosa em relação às outras opções energéticas, tal qual a termoelétrica. O Brasil e poucos outros países, como Canadá, Suécia e Noruega têm a sorte de possuir numerosos rios com potencial de aproveitamento hidrelétrico. Por esta razão, o parque hidrelétrico brasileiro é um dos maiores do mundo, em termos absolutos e relativos: enquanto em termos mundiais as usinas hidrelétricas são responsáveis pela produção de cerca de 25% da energia elétrica, no Brasil esta cifra tem atingido nos últimos anos 97% (KELMAN et al. 1999, p. 372). 235 Felicidade; Martins; Leme (2000, p. 8), ao criticarem as novas formas de regulação do setor elétrico brasileiro com o afastamento do Estado e o seu reflexo na crise energética de 2001,236 afirmam, com relação à matriz energética brasileira, que: 234 235 236 “As usinas hidrelétricas aproveitam a diferença de energia potencial existente entre o nível de água de montante e o de jusante. Quando a água cai do nível mais elevado para o menos elevado, dentro de um tubo, esta energia potencial é transformada em energia cinética e de pressão, que por sua vez faz girar a turbina e, junto com ela, o gerador. O giro do gerador produz energia elétrica, que é proporcional ao produto da vazão turbinada pela altura da queda da água. Por esta razão, rios caudalosos, como o Amazonas, mas sem queda d’água, ou rios com grande queda, mas com vazão intermitente, não são vocacionados para aproveitamento hidrelétrico” (KELMAN et al., 1999, p. 371). Para Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 64), o percentual de participação da hidroeletricidade brasileira no total de energia elétrica produzida é de 91%. “A partir da década de 1990, o Estado brasileiro começou a redefinir sua atuação, deixando de lado sua trajetória histórica de responsabilizar-se pelos investimentos em setores estratégicos, dentre eles o de energia, 314 315 O setor elétrico brasileiro constituiu-se predominantemente pela matriz hidrelétrica, seja aproveitando as quedas naturais de água (cachoeiras, por exemplo) ou construindo Grandes Projetos Hídricos (GPHs) e Pequenas Centrais hidrelétricas (PCHs). A predominância da hidroeletricidade no Brasil encontra similar somente na Noruega que, por sua vez, apresenta o equivalente a apenas 50% da capacidade brasileira instalada. O desenvolvimento da hidroenergia no Brasil fezse principalmente por meio de investimentos estatais, grande parte deles durante o regime militar. O Brasil, de forma semelhante ao racionamento americano ocorrido na Califórnia, pela primeira vez na sua história energética, foi obrigado a adotar o racionamento de energia no período de fevereiro de 2001 a março de 2002. A imprensa denominou esse momento vivido de contenção de energia, por meio de racionamento, de “apagão”, aludindo à escuridão ocasionada pela falta de energia elétrica, marcadamente oriunda da hidroeletricidade no Brasil. Criticando a falta de planejamento das autoridades brasileiras no trato deste tema, Rosa (2001, p. 01) destaca que a questão da crise energética não pode ser imputada ao acaso, à Natureza ou a Deus. Conforme explica de forma objetiva: O sistema hidrelétrico depende das chuvas, mas foi projetado para suportar variações pluviométricas aleatórias. Para isso, nós contribuintes, nós consumidores, pagamos ao longo do tempo a construção de imensos reservatórios, que, aliás, causaram impactos ambientais e vários transtornos às populações locais, aos atingidos por barragens. Estas foram planejadas para garantir acumulação de água plurianual até por cinco anos, de modo que o período seco é compensado pela água armazenada. Portanto, a responsabilidade pelo esvaziamento dos reservatórios não está no céu, está na Terra entre os homens, ou seja não existe capacidade instalada de geração elétrica suficiente para atender a demanda que tem crescido (grifo nosso). Assim, verifica-se que a origem da crise elétrica brasileira é uma crise de água nos reservatórios, combustível da geração de hidroeletricidade. Segundo informações do próprio governo, extraídas da Internet, a crise energética decorre do reduzido nível dos reservatórios, verbis: É evidente, portanto, que a causa primeira da presente crise energética é a baixa ocorrência de chuvas, o que acarretou reduzido nível de acumulação de reservas para enfrentar o período seco (ENERGIA BRASIL, [2001], grifo nosso). Buscando a modificação do quadro brasileiro de dependência energética brasileiro dos recursos hídricos. Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 67) afirmam: para assumir como prioridade o saneamento de suas contas, passando, então, a privatizar as empresas estatais sob a alegação da necessidade de melhorar a efíciência dos serviços prestados ao consumidor do abatimento das dívidas e da inserção com competitividade no cenário mundial. Esse foi um período de muitos rearranjos institucionais para o Estado e para o setor de energia. Destacamos, em 1990, a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND) e a criação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), pela Lei n° 9.427/96 e pelo decreto n° 2.335/97 que aprovou a estrutura regimental da agência [...] Quando o governo engendra um processo de reestruturação do setor elétrico, cujo principal meio é a privatização de empresas, algumas opções políticas são feitas e muitas delas, de forma direta ou indireta, agridem direitos essenciais do cidadão” (FELICIDADE; MARTINS; LEME, 2000, p. 8-9). 315 316 A tendência atual do setor é a de aumentar a introdução de termelétrica a gás, diminuindo a dependência do setor ao risco da disponibilidade hídrica o que, atualmente, é julgado excessivo. Além disso, hidrelétricas, embora utilizem um recurso renovável, envolvem investimentos altos, com período muito longo antes de se iniciar o retomo do capital. Adicionalmente, as barragens sofrem uma pressão muito grande da área ambiental devido a problemas, tais como: inundação de áreas produtivas, deslocando um grande número de pessoas; modificação da flora e fauna a montante e a jusante do reservatório e deterioração da qualidade da água. Além disso, o layout dos sistemas hidrelétricos de uma bacia pode envolver um reservatório de regularização e vários de queda. Como os reservatorios de regularização inundam maior área, a tendência é que sejam construídos os reservatórios com grande altura para compensar a redução da regularização com maior impacto a jusante do que a montante. O art. 37 da Constituição Federal (redação dada pela EC n. 19), com destaque para o princípio da eficiência, combinado com a atribuição do Poder Público de proteção do meio ambiente (caput do art. 225 da Constituição Federal) possui no seu âmbito normativo: a noção do melhor uso possível de recursos e bens públicos ambientais, enfatizando, também, o papel finalístico do Estado.237 Nesse sentido, observa-se que, despertado pelo problema do racionamento de energia elétrica como uma ineficiência estatal, o Tribunal de Contas da União realizou auditoria para avaliar a atuação do Governo Federal na gestão dos Recursos Hídricos no País, tendo concluído que: a) a água não é tratada como um bem estratégico no país, muitos a consideram, indevidamente, um recurso infinito; b) falta integração entre a política nacional de recursos hídricos e as demais políticas públicas; c) há graves problemas na área de saneamento básico. #(TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2003, p. 70). Havia sido formulado requerimento pelo então Presidente Ministro Humberto Guimarães Souto, o qual foi aprovado por unanimidade pelo plenário do Tribunal. O requerimento afirma que: Ao contrário da maioria dos países, onde a geração é de origem térmica, o Brasil possui um parque com predominância de usinas hidrelétricas. A participação da geração de origem hídrica supera 90% do total produzido. Formado por rios de planalto que traçam trajetórias suaves em direção ao mar, nossos rios, quando represados, tendem a formar grandes reservatórios de acumulação cuja característica principal é sua 237 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]” (BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988), 2002). 316 317 regularização plurianual. Isso faz com que a maioria dos reservatórios brasileiros levem anos para esvaziar. [...] Desde o início do ano passado, os órgãos de imprensa têm divulgado que os reservatórios de nossas hidrelétricas vêm operando em níveis extremamente baixos como conseqüência da falta de investimentos em geração e do aumento do consumo de energia. [...] Cortes de energia nesse patamar [20%], que, conforme anunciado pela imprensa, irão ocorrer durante os próximos seis meses, só têm paralelo em países em guerra. Submeto, portanto, ao Tribunal proposta para que seja realizada Auditoria Operacional no Sistema Elétrico Brasileiro que compreenda a análise das causas que levaram à atual crise de abastecimento, e produza um diagnóstico acerca dos cenários de fornecimento de energia elétrica para o médio e longo prazo envolvendo os aspectos econômicos, sociais e seus reflexos, bem como identifique possíveis soluções para o Setor Elétrico para que racionamentos de energia não mais ocorram nos próximos anos (BRASIL. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2001, p. 107, grifo nosso). Também, o Ministro Adylson Mota solicitou uma auditoria para avaliar a atuação do Governo Federal na gestão dos Recursos Hídricos no País, com o objetivo de “evitar prejuízos sociais e econômicos às presentes e futuras gerações” ( apud PAUL, 2001, p. 1). Tais intervenções do TCU não se limitam a apontar problemas. Além do aspecto de identificação de causas, buscam, também, soluções. Coloca-se, de forma pioneira, o controle de contas como mecanismo de proteção ambiental, não obstante tal proteção ocorra de forma reflexa (a preocupação central é com a crise energética). A atuação concreta do Tribunal de Contas, trazida a título de exemplo, certifica, por meio de órgão responsável pela eficiência do Estado, a ineficiência deste no trato da questão energética brasileira e da gestão de recursos hídricos. Para combater a ineficácia social do Estado, requerem-se novos instrumentos de ação social efetiva. Portanto, verifica-se no Brasil, de forma concreta, que o racionamento de energia elétrica destaca a necessidade de melhoria da gestão dos recursos hídricos em pelo menos uma de suas utilizações: o uso energético. 1.4 A ÁGUA COMO O DIAMANTE AZUL DO SÉCULO XXI 1.4.1 A água como recurso escasso valioso Conforme já visto, o tema relativo aos recursos hídricos é de indiscutível interesse nos dias de hoje: constitui elemento essencial à vida (MARTÍN MATEO, 1977, p. 223) “O planeta azul [...] a bela imagem enviada pelos satélites do nosso planeta destaca a água e sua 317 318 coloração vista do espaço. Apesar de cobrir três quartos da superfície de nosso globo, é escassa”. A aparente abundância ocasionaria, indevidamente, despreocupação com a falta dos recursos hídricos. Entretanto, a abundância é falsa, como afirma Vernier (1994, p. 11-13): a) não basta haver água, ela tem de ser encontrada no lugar certo e na hora certa; b) é preciso haver água de qualidade adequada; Atualmente, conforme já se pode depreender da análise dos recursos hídricos no Mundo e no Brasil, há lugares que possuem água em abundância na qualidade e quantidade desejadas, no tempo desejado; outros, não. Para aqueles lugares nos quais há falta, a água já é um “diamante azul”, para aqueles em que não há falta, a água poderá ser, também, um “diamante azul” como mercadoria de troca. Portanto, a escassez é um problema presente com perspectiva de agravamento futuro. Nesse sentido, indaga-se: Poderia a água ser comercializada entre os países como o petróleo o é atualmente? A água poderia ter a relevância econômica que o ouro negro possui no século que entra? Nesse aspecto, trabalho realizado pelas Nações Unidas assinala que: El agua tiene un valor económico, y debe considerarse un bien tanto económico como social. Al igual que cualquier outro bien valioso, el consumo de agua tiene un costo en términos tanto de desarrollo de los recursos hídricos como de pérdida de oportunidades. El costo del consumo o del desperdicio de esos recursos no desaparece, sino que lo pagan los usuarios o la comunidad en su conjunto, o conduce al agotamiento del capital natural existente. A medida que aumenta la demanda de agua, es más importante aprovechar esse recurso para actividades de elevado valor económico. Es imprescindible que se rindan cuentas y se recuperen los costos derivados del suministro de agua, y que los usuarios paguen el agua utilizada para fines económicos (ORGANIZAÇÃO METEOROLÓGICA MUNDIAL, 1997, p. 25, grifo nosso) O problema com a água – e existe um problema com a água, conforme já demonstrado nas seções anteriores – é que não se está produzindo mais água, o sistema hídrico, a nível planetário, é um sistema fechado. As pessoas, entretanto, estão fazendo mais – muito mais do que é ecologicamente sustentável. Há um crescimento contínuo da população humana e a demanda por água aumenta duas vezes mais rápidamente (GLEICK, 1993c, p. 105). Nesse aspecto, Villiers (2002, p. 50) afirma que a crise da água apresenta-se como um problema real apontado não só por “ambientalistas malthusianos”, mas também por funcionários graduados do Banco Mundial. Shiva (2002), tratando do mesmo fato, afirma que, em 1995, Ismail Seralgeldin, vicepresidente do Banco Mundial, fez precisa declaração sobre a água e o seu futuro sombrio: “Se as guerras deste século originaram-se da busca de petróleo, as guerras do próximo século vincular-se-ão à água”. Desse modo, foi feita explícita analogia entre o “ouro negro” e o “diamante azul”. 318 319 Destaca esta conhecida ativista ambiental indiana que uma silenciosa guerra pela água está ocorrendo em todas as sociedades modernas, que lutam contra a escassez deste recurso. De um lado desta luta ecológica global, encontram-se milhões de espécies e milhões de pessoas buscando água para viver. De outro lado, estão corporações internacionais como a Suez Lyonnaise des Eaux, Vivendi Environment e Bechtel, assistidas por organizações internacionais como o Banco Mundial, a Organização Internacional de Comércio e o Fundo Monetário Mundial (SHIVA, 2002, p. ix-x). Outros ativistas canadenses como Barlow; Clarke (2002) destacam, de forma explosiva, a compra de direitos de uso de água, em países como a Inglaterra e a França, por corporações transnacionais como Perrier, Evian, Naya e Coca-Cola, com claros fins de monopólio do mercado mundial de engarrafamento de água. 1.4.2 Guerras pela água e o papel do direito internacional A história está repleta de disputas bélicas relacionadas às fontes de água doce. A escassez presente, bem como a previsão do seu aumento no futuro são indicativos de que tais conflitos podem aumentar. Muitos rios e fontes de água são compartilhados por mais de uma Nação. Esse fato geográfico tem levado a várias disputas relativas a rios internacionais como o Nilo na África, o Jordão e o Eufrátes no Oriente Médio e o Indu, Ganges e Bramasutra no sudoeste da Ásia, e o Colorado, Rio Grande e Paraná nas Américas (MCCAFFREY, 1993, p. 92). Consoante ensina Gleick (1993c, p. 108), à medida em que o crescente nível populacional requer mais água para a agricultura e para o desenvolvimento econômico, a tensão no uso dos recursos hídricos irá crescer e disputas internacionais aumentarão. Nesse sentido, autores como McCaffrey (1993, p. 99) defendem a utilização de normas de direito internacional e regional para reduzir as tensões. McCaffrey (1993, p. 92), especificamente tratando do problema da água no Rio Jordão do Oriente Médio, afirma que: O Rio Jordão drena parte do território de quatro dos Estados mais beligerantes da região durante as últimas quatro décadas: Israel, a Jordânia, o Libano e a Síria. O Jordão não é um rio longo, estende-se somente por 93 Km da sua origem no Libano até a sua descarga final no Mar Morto. Todos os três afluentes do Rio Jordão se situam em diferentes países [...] Entretanto, desde 1967, Israel tem controlado as áreas nas quais esses afluentes estão localizados, dando a este país um completo controle do Rio Jordão. Sobre a controvérsia da construção de Itaipu no Rio Paraná, entre Brasil e Paraguai, McCaffrey (1993, p. 97) destaca: Uma disputa emergiu no início da década de 1970 entre Brasil e Argentina em relação ao plano brasileiro e paraguaio de construir uma das maiores represas do mundo no Rio Paraná em Itaipu, onde o Paraná divide a fronteira do Brasil e do Paraguai. Argentina estava 319 320 preocupada que o projeto de Itaipu afetasse a construção de uma represa dela com o Paraguai logo a juzante onde a Argentina e o Paraguai fazem divisa. A Argentina defendeu a posição de que o Brasil tinha perante o direito internacional a obrigação de informar os detalhes técnicos do projeto de Itaipu e levar em conta as preocupações argentinas a juzante. O Brasil, de forma enérgica, negou, inicialmente, que tivesse tal obrigação de notificação prévia e de consulta aos interesses argentinos. Agindo desta forma, o Brasil adotou uma corrente semelhante a de Harmon, na qual se nega qualquer direito ao país a juzante. [...] Finalmente, a Argentina e o Brasil resolveram a controvérsia de uma forma amigável com base na notificação prévia e na consulta ao país à juzante. Assim, McCaffrey (1993, p. 98) atesta que o direito internacional, por meio, principalmente, dos tratados internacionais, tem um importante papel na resolução atual dos conflitos de água, baseando-se esses tratados no princípio geral do uso eqüitativo deste recurso. Shamir (2000, p. 19-20), Diretor do Instituto de Pesquisas Hídricas de Israel, demonstra preocupação com o uso eqüitativo deste recurso, analisando os tratados de Israel e da Palestina sobre a água, ao afirmar que: A água tem um importante papel na paz do Oriente Médio. Foi umas das muitas áreas das discussões de paz [Tratado de Paz do Jordão, assinado em Outubro de 1994 e o II Acordo de Oslo, assinado em Setembro de 1995]. Todas as partes envolvidas nesse acordo consideram a água um tema estratégico. A escassez de água vivida nesta região assinala que está é e pode ser causa de guerras futuras, razão pela qual acordos internacionais neste âmbito são imprescindíveis para a paz na região. Este uso eqüitativo da água consagra, pois, o seu caráter de valor econômico e ético, uma vez que a sua utilização passa a basear-se em aspectos de valoração de bem escasso e de justiça na distribuição eqüitativa deste bem. Destaca, também, o aspecto de valoração positiva do recurso hídrico no âmbito internacional, fato este que pode ser corroborado pela quantidade de tratados relativos ao uso de águas internacionais.238 1.4.3 A água e o desenvolvimento sustentável 238 “Numerosos acordos têm sido propostos na tentativa de definir em que consiste uma participação justa nas águas de um rio. A Organizaçâo das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) já identifícou mais de 3.600 tratados relativos ao uso das águas para outros fins que não a navegação, assinados entre os anos 805 e 1984. A partir de 1945 foram negociados cerca de 300 tratados relativos à administração ou à distribuição da água em bacias internacionais. Nenhum dos vários e ricos arquivos de dados sobre as causas das guerras registra a água como o fator primordial de uma delas. Até mesmo no tenso Oriente Médio, o primeiro papel assinado pelas três partes principais no curso das negociações multilaterais de paz dizia respeito à água. Na verdade, acordos sobre o uso da água têm prevenido conflitos importantes no subcontinente entre o Paquistão e a India” (SELBORNE, 2002, p. 64). 320 321 As secas periódicas no Nordeste Brasileiro (nível interno do País) e as migrações que elas provocaram dão uma noção do que pode acontecer no futuro, em nível mundial. No caso brasileiro referido, a migração foi interna, mas, quando se tratar da migração da população de um país para outro vizinho ou para regiões desenvolvidas, os problemas vão se multiplicar. Nesse aspecto, interessante a recordação da seca sofrida pela Etiópia em 1980: No início dos anos 80, uma prolongada seca na Etiópia, associada à degradação ambiental (desmatamento das nascentes, erosão e empobrecimento dos solos) provocou fome generalizada à populaçao. As dramáticas cenas mostradas pela televisão, na época, provocaram na comunidade internacional, inclusive artistas e músicos famosos, uma onda de solidarielade e cooperaçao para a remessa de alimentos. Mas grande parte da população afetada migrou para o vizinho Sudão, em busca desesperada por comida e água, o que provocou o aparecimento de graves tensões com as populações locais, em virtude do aumento da competição pelos recursos já escassos. Estas tensões quase provocaram um conflito entre os dois países, que fez com que o PNUMA criasse uma classificação para refugiados (além dos de guerra e políticos): os refugiados ambientais (SALATI; LEMOS; SALATI, 1999, p. 48-49). No futuro, os usuários da água para fins doméstico (de consumo humano) e industrial vão competir cada vez mais com a agricultura irrigada, particularmente em algumas regiões da Ásia e da África. Para se produzir uma tonelada de grãos são necessárias mil toneladas de água, e para uma tonelada de arroz, duas mil toneladas de água. Além disso, sistemas de irrigação mal planejados e/ou mal operados podem provocar a salinização e degradação dos solos. A melhoria da eficiência dos sistemas de irrigação é, portanto, um dos requisitos prioritários para se atingir o desenvolvimento sustentável.239 O Banco Mundial publicou, logo após a Conferência do Rio de Janeiro de 1992, o relatório “Gerenciamento de Recursos Hídricos”, que define a política do Banco para apoio à proteção dos recursos hídricos. Neste relatório, afirma que: “a água é um recurso cada vez mais escasso e que necessita de um cuidadoso gerenciamento econômico e ambiental”, e recomenda que os países em desenvolvimento adotem, com urgência, uma política integrada de gerenciamento dos recursos hídricos, que considere os aspectos intersectoriais dos usos da água. Esta política deve criar condições favoráveis para que as agências internacionais de desenvolvimento, os órgãos governamentais, o setor privado, as organizações não governamentais, as comunidades e os consumidores possam contribuir para a melhoria do gerenciamento dos recursos hídricos (WORLD BANK, 1993, p. 5). A Lei 9.433/97, ao estabelecer o valor econômico da água como um dos fundamentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, destacou o fato de que a água é um 239 “A agricultura produz a maior parte dos alimentos consumidos pela humanidade. Simplesmente não há outra solução para o nosso futuro senão continuar a cultivar o planeta, e a usar plantas e animais como alimento. No entanto, a agricultura é também o maior consumidor de água doce, sendo responsável por cerca de três quartos do consumo mundial. Se a população aumentar em 65% nos próximos cinqüenta anos, como é virtualmente certo, cerca de 70% dos habitantes deste planeta enfrentarão defíciências no suprimento de água, e 16% deles não terão água bastante para produzir sua alimentaçâo básica. O necessário aumento da produção de alimentos não poderá ser alcançado sem uma maior produtividade na terra existente e com a água disponível (SELBORNE, 2002, p. 32). 321 322 bem finito e escasso. Assim, a cobrança pelo uso da água surge como mecanismo de uso racional e conservação de um bem natural para as presentes e futuras gerações. Emerge da argumentação apresentada, pois, a íntima correlação entre o desenvolvimento sustentável e a água no Brasil. 322 323 2 A CONTRIBUIÇÃO INTERNACIONAL NA GESTÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS E A CONSTRUÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL À ÁGUA 2.1 DIFERENTES MODELOS INTERNACIONAIS DE GESTÃO 2.1.1 Visão geral dos modelos analisados no direito comparado Conforme visto, no âmbito dos conflitos internacionais pelo diamante azul (“guerras”de água), a água possui um valor econômico, ecológico e social atual, com vistas a uma valoração positiva crescente ao longo do tempo. Nesse aspecto, relevante o estudo do direito comparado para análise dos modelos nacionais de água existentes em outros países, bem como do consenso internacional sobre a água presente nos tratados e convenções internacionais. Pelo escopo do trabalho, aspectos éticos e econômicos da cobrança pelo uso da água no Brasil, selecionaram-se diversas experiências internacionais analisadas para comparar as diferentes metodologias de gestão da água, com ênfase nos institutos jurídicos utilizados. Assim, procurou-se analisar os modelos americano, francês e alemão, em escolha planejada das influências efetivas e potenciais destes modelos na gestão brasileira de recursos hídricos. A experiência americana é marcada pela utilização de licenças negociáveis, com ênfase à esfera privada para a solução do problema da água ao incentivar um mercado de compra e venda de direitos de uso240 (GETCHES, 1997, p. 156; COLBY, 1999, p. 69). A experiência francesa, que serviu de base para a legislação brasileira, utiliza as "redevances" como forma de internalizar os custos sociais, mostrando-se centrada na bacia hidrográfica.241 A experiência alemã centra-se no desenvolvimento de técnicas que visem melhorar a qualidade dos efluentes com base, também, na bacia hidrográfica, não obstante tenha um 240 Tratando da criação de mercados de direitos da água no Brasil, Motta (1998b, p. 37) afirma: “A discussão que se segue terá o objetivo de analisar a utilização de mercados de direitos de uso de água (MDU) no qual a titularidade continua pública, mas permite-se que o direito de uso por quantidade, dado pela outorga, seja transacionado entre usuários. Outra opção seria o mercado de certificados de poluição (MCP) que estabelece um limite de descarga de poluentes por usuários e autoriza que os usuários transacionem entre si partes dessa permissão de carga poluente. Desta feita, pretende-se resolver mediante criação de mercado alguns dos problemas com precificação apontados anteriormente e qualificar essas opções como instrumentos disponíveis para a NGRH”. 241 “Os comités de bacia são compostos de maneira a representar, de forma tripartida, as coletividades locais, os <<utilizadores>> e os diferentes níveis de administração [...] Eles deliberam igualmente sobre o ordenamento global dos recursos ao seu nível. O plano qüinquenal, o orçamento anual e o emprego dos fundos são, em seguida, decididos pelo conselho de administração de cada agência, emanação restrita do comité de bacia (26 membros para Sena-Normandia, dos quais 8 para cada tipo de parceiro, mais um representante do pessoal da agência e o presidente, designado pelo Estado)” (BARRAQUÉ, 1996, p. 162). 323 324 Estado Federado características distintas e peculiares em relação ao Estado Francês Unitário.242 Como se observa a seguir, estas experiências, consideradas isoladamente, não constituem um modelo ideal para a situação brasileira, mas certamente são peças importantes de um quebra-cabeça que podem ser utilizadas na construção de um modelo brasileiro que absorva as experiências estrangeiras adequadas a nossa realidade geográfica, hidrológica, política, social, econômica e cultural. 2.1.2 Estados Unidos da América 2.1.2.1 Situação hídrica americana: um retrato histórico e geográfico Os Estados Unidos, berço do federalismo moderno, possuem uma alta descarga média dos rios (119.365 m5/s), colocando-se em terceiro lugar em nível mundial nesse parâmetro hídrico (REBOUÇAS, 1999, p. 14). Os Estados Unidos apresentam uma condição particular em relação aos recursos hídricos, que é o fato de ter o seu território dividido em duas porções distintas: uma úmida(leste americano) e outra seca (oeste americano), o que caracterizou dois sistemas jurídicos distintos de apropriação dos recursos hídricos. Ao lado, entretanto, dessas duas regiões (leste e oeste), há uma grande preocupação com a água que, no âmbito do Estado Federal, possui interesse tanto nacional quanto regionalmente. MacDonnell; Rice (1989, p. 69), nesse sentido, afirmam: Os interesses nacionais com a água são amplos e incluem a proteção dos cursos d’água em alguns casos. Expressão deste interesse nacional pode ser encontrada na Constituição Americana, em leis aprovadas pelo Congresso, nas ações das agências implementadoras desta legislação, e na interpretação das leis feitas pelas Cortes Americanas. Em 1982, a Suprema Corte Americana estabeleceu que os corpos d’água americanos estão sujeitos à cláusula de comércio da Constituição Americana, não podendo os Estados impedirem o livre trânsito dos rios que percorrem mais de um Estado americano. Assim, a água americana foi considerada uma mercadoria (“commodity”), cujo movimento pelos estados-membros americanos está protegido pela cláusula de comércio da 242 “Os Länder puseram de pé estruturas de cooperação entre si, nomeadamente para coordenar a gestão das grandes bacias-vertentes. Mas não existe organismo de bacia-vertente enquanto tal, como pode existir nos países de tradição centralizadora. Mesmo na região do Rur, o Lippeverband não é competente para a gestão do rio a montante da fronteira da Renânia da Vestefália do Norte. A mais importante instituição de cooperação inter-regional é o Grupo de Trabalho dos Länder sobre a Água, LAWA (Länderarbeistsgemeinschaft Wasser), que reúne os ministros do Ambiente para a sua própria cooperação e para a sua participação nas questões da União Européia. Os Länder participam igualmente, com o nível federal, nas instituições de cooperação internacionais para as bacias transfronteiriças e mares poluídos” (BARRAQUÉ, 1996, p. 39-40). 324 325 Constituição Americana, não podendo os estados-membros adotarem leis que limitem o fluir dos corpos de água superficiais MacDonnell; Rice (1989, p. 70). Esta competência nacional com os cursos de água vem modificando os dois regimes historicamente existentes da água, sem, entretanto, descaracterizá-los. Apesar da existência de diversos sistemas híbridos, pode-se caracterizar em dois grandes grupos a Water Law americana: o riparian rights (os direitos ribeirinhos) e o prior appropriation (o direito de apropriação dos primeiros) (GETCHES, 1997, p. 3-4). 2.1.2.2 Riparian rights Na parte leste, com fartura de água, o processo histórico demonstra que predominou o direito ribeirinho (riparian right) como doutrina orientadora (GETCHES, 1997, p. 4). Conforme destaca Getches (1997, p. 5), a doutrina ribeirinha aplica-se em vinte nove Estados-membros americanos, em sua maior parte situados no leste americano. Baseia-se na noção de que os proprietários das margens de um curso de água têm determinados direitos de utilização do curso de água que outras pessoas não possuem. Assim, Getches (1997, p. 15) define a forma de apropriação privada baseada nos direitos ribeirinhos: O princípio fundamental da doutrina ribeirinha é que o proprietário da margem adquire certos direitos sobre o uso da água. Qualquer proprietário marginal pode usar, de forma proporcional, a água, caso seu uso não afete o uso dos outros proprietários ribeirinhos. Atualmente, os sistemas de leis escritas modificaram consideravelmente este direito de apropriação, fazendo com que os Tribunais e as Agências apliquem elementos desta doutrina nos termos do disposto na legislação. Historicamente, os proprietários ribeirinhos utilizavam a água para mover moinhos e tinham acesso à superfície da água para a canoagem, a caça, a pesca e para consumirem consideráveis quantidades de água. Esse direito dos ribeirinhos, que originariamente baseava-se no precedente judicial (fonte primária do Common Law), hoje se apresenta bastante influenciado pela lei escrita (statutes). Atualmente, por influência de leis, os ribeirinhos devem obter permissão da agência estatal para a utilização da água, podendo, também, tal permissão ser dada para usuários não ribeirinhos (GETCHES, 1997, p. 5). Entretanto, a utilização da superfície da água (para esportes aquáticos, por exemplo) continua sendo um direito quase exclusivo dos ribeirinhos. 2.1.2.3 Prior Appropriation 325 326 O oeste americano, como assinala Getches (1997, p. 77-82), foi colonizado mediante incentivo do Governo Federal, proprietário da maioria das terras lá existentes. MacDonnell; Rice (1989, p. 70-71), nesse sentido, afirmam: Aproximadamente um terço das terras americanas no oeste eram terras públicas administradas por agências federais [...] Essas terras públicas reservadas para determinados propósitos associavam um direito específico de utilização dos recursos hídricos necessários para o fim que se destinavam [...] Direitos reservados de água existem nos casos de parques nacionais, monumentos nacionais, rios selvagens e reservas de vida selvagem. Historicamente, isto fez com que nesta região não se aplicassem os “riparian rights”, mas sim outro modelo, uma vez que os mineiros que foram para a Califórnia, por exemplo, utilizavam a água dos rios, mesmo sem serem proprietários, pois as terras eram de propriedade, em sua maioria, da União (GETCHES, 1997, p. 78-79). Assim, os mineiros, como destaca Getches (1997, p. 6), simplesmente utilizaram da mesma regra que usavam para resolver as disputas de propriedade das lavras: “o primeiro a chegar é o primeiro a ter direitos”. As cortes americanas ratificaram e corroboraram este preceito baseado nos costumes dos mineiros. O sistema também funcionou razoavelmente para os fazendeiros e foi incorporado pelas normas escritas de então (GETCHES, 1997, p. 80-81). Os direitos sobre a água pertenciam, portanto, àqueles que utilizavam a água primeiro em seu benefício, e esse direito, em regra, excluía o dos demais. Assim, como afirma Getches (1997, p. 7), a doutrina da apropriação pelo primeiro uso comanda o direito das águas em nove Estados-membros americanos, a saber: Alasca, Arizona, Colorado, Idaho, Montana, Nevada, New Mexico, Utah e Wyoming. Entretanto, modernamente, assim como os riparian rights, todos os usos exclusivos da água (prior appropiation) exigem licença das agências administrativas americanas, e estas levam em consideração, também, os interesses públicos. Assim, Getches (1997, p. 85) destaca que: Boa parte dos Estados-americanos que adotam o sistema de uso exclusivo da água afirmam que nenhuma pessoa natural ou jurídica possui a propriedade plena da água, ao contrário, destacam que a água é um recurso comum a ser administrado para o bem da sociedade. O controle estatal dos recursos hídricos pode estar previsto em um dispositivo constitucional ou legal afirmando que “a água pertence à sociedade” (Arizona, Nevada, New Mexico, Oregon), ou que a água é “propriedade do Estado” (Idaho, Montana, North Dakota, Texas, Wyoming), ou que a água “é propriedade do povo do Estado” (California, Colorado, South Dakota), ou que a água “é propriedade pública”(Nebraska e Utah), ou em outra linguagem semelhante. 326 327 2.1.2.4 A água americana: bem público com permissão de uso privado com monitoramento federal e estadual Após tratar dos sistemas privados predominantes de apropriação das águas, Getches (1997, p. 11) afirma que a água é legal e historicamente um recurso público, mesmo sendo possível seu uso privado. Assinala que a primeira necessidade de uso público da água ocorreu na navegação. Sob a cláusula de comércio, da Constituição Americana, o Governo Federal pode regular a navegação interestadual. Assim, mesmo na ausência de legislação, nenhum proprietário privado poderia impedir a navegação. Em Gibbons v. Ogden, em 1824, a Suprema Corte Americana constatou que a autorização dada a Robert Fulton pelo Estadomembro de Nova Iorque de um direito exclusivo de operar cursos de água neste Estadomembro, mostrava-se contrário à clausula de comércio da Constituição Americana. O Chief Justice Marshall, na construção da competência da União, declarou que: ”Todos os americanos compreendem que a palavra comércio abrange a palavra navegação” (GETCHES, 1997, p. 348). Destacando o case Diana Shooting Club v. Husting, decidido na Suprema Corte de Wisconsin em 1914, Getches explica que uma das partes navegava sobre um rio com um pequeno barco para caçar patos, e o proprietário ribeirinho não aceitou tal conduta considerando que o caçador estava invadindo a sua propriedade. A Suprema Corte Estadual entendeu que os direitos de pesca e caça são inerentes ao direito de navegação, não podendo ser impedidos pelo proprietário ribeirinho, que possui um direito limitado ao uso do rio, subordina-se à autoridade do Estado-membro de assegurar a todos o uso da navegação e outros direitos dela decorrentes (caça e pesca) (GETCHES, 1997, p. 224). Assim, desde o século XX, os direitos dos ribeirinhos e da apropriação pelo primeiro uso foram limitados à função social da água, resguardada pela autoridade do Estado, seja sob a garantia da sua navegabilidade, seja sob outros usos. Nesse aspecto, contemporaneamente, Getches (1997, p. 227) ressalta o case Stream Access v. Curran, decidido pela Suprema Corte do Estado-membro de Montana em 1984, no qual a Corte afirmou que a propriedade por apropriação de um curso d’água não impedia o seu uso para propósitos recreativos. Independentemente de ser ou não navegável, o curso d’água poderia ser utilizado para recreação pela população em geral. O uso público das águas de superfícies freqüentemente não pode ser exercido sem que se atravesse a propriedade privada ou que se utilize das margens das fazendas ribeirinhas. Assim, foi construída uma teoria jurisprudencial que permitisse o acesso público da terra privada para o usufruto do corpo de água, baseado no costume das populações de se banharem naquele curso de água (GETCHES, 1997, p. 231). A criação de associações para promover a defesa do interesse comum foi uma decorrência do crescimento da demanda por água no oeste americano e do conseqüente agravamento dos conflitos por seu uso. As regulamentações estaduais, embora tendo evoluído sobremaneira, tornaram-se insuficientes para resolver os problemas decorrentes do aumento da demanda. Surgiram vários tipos de agências independentes, algumas de atuação federal, outras interestaduais e algumas outras de atuação regional ou local. 327 328 Em 1965, com relação à preservação da qualidade dos cursos d’água, foi aprovada lei federal voltada para o planejamento dos recursos hídricos. A partir desse momento, os Estados-membros passaram a regulamentar o controle da poluição das águas em seus respectivos territórios, com implementação a cargo das agências estaduais. Nesse sentido, há interessantes decisões de Cortes Americanas a respeito da preservação da água para a proteção de ecossistemas a ela vinculados. O case Sierra Club v. Block (1985), decidido por uma federal district court no Estado-membro do Colorado, estabeleceu que as áreas de preservação da vida selvagem deverão ter, conseqüentemente, os direitos de água protegidos para atingir os propósitos para os quais foram criadas (MACDONELL; RICE, 1989). Em Cappaert v. United States (1976), a Suprema Corte Americana já havia decidido, de modo semelhante, definindo que a proteção da caverna Devil’s Hole, situada em Nevada, que contém uma piscina natural povoada por uma espécie rara de peixe, incluía a preservação dos níveis de águas subterrâneas na região para a proteção deste peixe (MACDONELL; RICE, 1989). Entretanto, a relevância da água para a proteção dos ecossistemas dela dependentes não evita a coexistência de estudos expressivos com relação à cobrança pelo uso da água, nem o vasto mercado de águas existente no oeste americano. A existência de um mercado de águas no oeste americano, por outro lado, não impede que exista uma política definida para o estabelecimento do preço da água para a agricultura. Este preço é comandado pelo governo federal por meio do Bureau of Reclamation (BOR), que desenvolve os projetos de provisão de água. Conforme destaca Motta (1998b, p. 37): O Bureau of Reclamation tem subsidiado fortemente os agricultores com contratos de longo prazo de provisão de água a custos suficientes apenas para cobertura dos custos operacionais dos projetos. Estima-se que o subsídio varie entre 57% e 97% do custo total dependendo da região. A água para irrigação é preferencialmente outorgada, mesmo naqueles projetos implantados com vistas a privilegiar o múltiplo uso dos recursos hídricos. A comercialização das outorgas concedidas pelo Bureau of Reclamation, apesar de factíveis, estão sujeitas a uma série de restrições impostas pelas normas vigentes. Além disso, fazendeiros temem vender seus direitos e, assim, terem suas outorgas reduzidas no ano seguinte, o que faz com que até as revendas para o Bureau of Reclamation sejam evitadas (COLBY, 1989, p. 69). Em resumo, a experiência americana, centrada, também, na água vista como um bem público, com a criação de mercados de água, tem oferecido a possibilidade do uso de uma ética utilitarista centrada no mercado, com a transformação do direito de seu uso em uma “commodity”, não obstante haja decisões judiciais que enfatizam a ética ecocêntrica de uso da água, descaracterizando-a como simples mercadoria em determinados casos concretos. 2.1.3 França 328 329 2.1.3.1 Situação hídrica A França tem uma superfïcie de 550.000km2 e uma população de mais de 57 milhões de habitantes, o que ocasiona uma densidade média bastante fraca em relação aos outros países da Europa. Seus rios principais são: Sena, Loire, Garona, Ródona, Reno e Mama, que lhes garantem um recurso potencial de água de 3.600m3/hab/ano, sendo considerado um país “razoavelmente rico” em recursos hídricos (BARRAQUÉ, 1996, p. 135-136). Essa abundância de água foi que levou a perdurar por muito tempo os direitos dos ribeirinhos se apropriarem das águas de lagos artificiais, subterrâneas, das nascentes localizadas em solos privados e das margens das águas correntes. Situação essa que só foi alterada pela Lei de 1898, que estabeleceu normas para utilização das águas pelos ribeirinhos. 2.1.3.2 Ordenamento institucional e legal Como assinala Barraqué (2000, p. 87), quanto mais se estuda a diversidade das políticas de água na Europa, mais se verifica um denominador comum na abordagem de uma política de desenvolvimento sustentável da água. Conforme destaca Barraqué (1996, p. 155): Em França, o direito da água deriva da reinterpretação do direito romano no Renascimento e na época clássica, que divide as águas em três categorias: as águas «fechadas» (lagos artificiais), as águas subterrâneas, as nascentes captadas nos solos privados, tudo isso é considerado como res nullius e deixado à apropriação dos proprietários. As águas correntes <<navegáveis e flutuáveis>>, segundo uma expressão caída em desuso, são públicas, assim como o seu leito; as margens são deixadas à apropriação dos habitantes ribeirinhos, mas estão submetidas a obrigações, nomeadamente de reboque; essas águas chamam-se agora «dominiais». O essencial das águas correntes, não dominiais, escapa no entanto desde sempre ao princípio de apropriação, pois é res communis omnium. Após as hesitações do século XIX, a lei de 1898 sobre o regime e a divisão as águas faz delas, claramente, bens inapropriáveis no sentido jurídico e de que apenas o uso é objecto de uma divisão. A lei previa a criação de sindicatos de rios para regular esta divisão de forma equitativa, mas de uma forma geral eles não surgiram, de tal forma a dicotomia domínio público-propriedade privada era importante na época (grifo nosso). O primeiro instrumento legal sobre água data de abril de 1829. Neste documento legal foram previstas multa e prisão para a pessoa que lançasse qualquer produto na água 329 330 que envenenasse e matasse os peixes. Quase setenta anos depois (1898), foi aprovada a legislação de água na França, organizando os princípios de uma política administrativa, estabelecendo: • autorização para utilização das águas pelos ribeirinhos, que deveria ser obtida junto ao Serviço de Ponte e Estrada; • sistema de divisão das águas em três categorias, que vigora até os dias atuais (as águas subterrâneas, as nascentes captadas nos solos privados [res nullius] as águas correntes "navegáveis e flutuáveis" dominiais e as não dominiais - que não pode ser apropriada, pois é [res communis omnium]); • divisão dos usos das águas, pelos Comitês de Bacia, entre os utilizadores desse recurso (BARRAQUÉ, 1996, p. 155-157). Outros instrumentos legais foram elaborados e aprovados, objetivando um melhor controle da poluição das águas superficiais, como: o que estabeleceu compromisso obrigatório de não tornar as águas impróprias para homem e animal: o que submeteu as indústrias e comércios ao controle administrativo; e o que estabeleceu normas de proteção dos mananciais, lençóis subterrâneos e superficiais (Leis de 1905, 1906, 1917, Decreto de 1935 e Ordenança de 1958). Cabe observar que profundas modificações, tanto na estrutura institucional dos órgãos gestores das águas quanto na forma de gestão desse recurso, foram promovidas pela Lei das Águas de 1964. Essa lei permitiu à França planejar a gestão dos recursos hídricos a partir dos “objetivos de qualidade”, possibilitando investimentos em estações de tratamento no final de cada rede de esgoto.243 A Lei Francesa de 1964 possibilitou a gestão das dimensões técnica, política, econômica e financeira, simultaneamente, como esclarece Duc (1992, p. 42): A dimensão técnica consiste em gerir a água não setorialmente, mas sim considerando seus problemas a nível de toda a bacia hidrográfica. A dimensão política consiste em decidir-se os trabalhos de despoluição necessários pelos usuários da água por eles próprios, grupados nos organismos chamados Comitês de Bacia. A dimensão econômica e financeira visa completar a via regulamentar por uma incitação à despoluição por intermédio do princípio poluidor-pagador: os poluidores recalcitrantes são penalizados pelas cotizações obrigatórias a um fundo especial de investimento, onde os impostos são fixados em função dos trabalhos a realizar e dos inconvenientes que sua poluição ocasiona; por outro lado, os que executam os trabalhos de despoluição são ajudados financeiramente por este fundo especial, em função das despesas que empenham. As cotizações ou imposto, não são recolhidos ao orçamento do Estado, 243 “Até o início dos anos 60, a gestão das águas baseou-se, na França, num conjunto de textos e regulamentos que se constituíram, ao longo dos anos por níveis sucessivos, num verdadeiro labirinto jurídico. Os diferentes dispositivos que a regeram foram denominados com diversos códigos: Civil, Rural, do Urbanismo, de Mineração, das Comunas, da Saúde ública, do Domínio Fluvial Público, etc. A polícia das águas foi organizada seguindo um esquema escolhido em função da atuação que cada Ministério especializado desenvolvia em função de sua competência (alimentação e saneamento das comunas: Ministerio do Equipamento quanto às obras e Ministério do Interior quanto aos financiamentos; alimentação e saneamento das comunas rurais pelo Ministério do Interior, navegação pelo Ministério dos Transportes, hidro-eletricidade pelo Mistério da Indústria, etc.)” (DUC, 1992, p. 41). 330 331 mas a um operador único, independente da administração, que é a Agência de Bacia (chamada atualmente de Agência da Água). Um Comitê de bacia e uma Agência da água foram criadas em cada uma das seis bacias hidrográficas francesas, para empreender as novas disposições assim previstas pela lei. [...] Neste esquema institucional, uma Agência da água é um estabelecimento público de caráter administrativo submetido a um único contrato do equilíbrio orçamentário via o recebimento e o emprego do orçamento. Constitui-se no executivo previsto na lei de 1964. É, também, pela presença do Comitê de Bacia, um organismo para o acordo entre os que decidem a política da água a vigorar na bacia correspondente. Verdadeiro “Parlamento da água”, o Comitê é constituído (ver Anexo 2) da seguinte maneira: • 20% dos membros: de representantes do Estado, ou seja, do poder regulamentar; • 80% dos membros: de representantes eleitos locais e de usuários da água, seja como consumidores, seja como poluidores (industriais, agricultores, pescadores) (grifo nosso). Segundo Duc (1992, p. 43), a Lei de 64 criou organismos de coordenação em nível de grandes bacias hidrográficas e um sistema de gestão racional da água. A lei reforça o exercício do poder de polícia da qualidade das águas, periodicamente atualizado com definição dos níveis de poluição, permitindo satisfazer ou conciliar os diversos usos, sendo que a responsabilidade dos que poluem constitui um ponto capital no sucesso do sistema francês. Contemporaneamente, está em vigor na França a Lei 92-3, de 03/01/1992, que é um aperfeiçoamento da lei de 1964, relativa à propriedade e à repartição das águas e à luta contra a poluição.244 Ainda nos anos sessenta, foram criadas as Agências de Bacia, abrangendo cada uma das seis regiões hidrográficas do País e atuando como entidades financeiras e técnicas do sistema, apoiando os comitês de bacias de sua área de abrangência. Atualmente, a filosofia da cobrança pelo uso da água na França (redevance) é a de recuperar todos os custos do sistema, em particular aqueles incorridos pelas administrações públicas das coletividades locais. Conforme destaca Motta (1998b, p. 26): O sistema de cobrança teve implantação gradual e enfrentou diversos problemas políticos. A cobrança por quantidade, por exemplo, até hoje não foi implantada em algumas sub-bacias e a maioria dos irrigantes não participa do sistema. A cobrança por poluição iniciou-se com matéria orgânica e sólidos em suspensão, enquanto salinidade e toxicidade foram introduzidas, respectivamente, em 1973 e 1974; nitrogênio e fósforo em 1982; hidrocarbonetos e outros inorgânicos em 1992. 244 “Votada após vários anos de preparação, a lei de 1992 não contém tudo o que os partidários de uma política integrada da água podiam esperar. Além da modificação do direito da água já evocado [maior participação dos usuários], ela contém, no entanto, várias disposições importantes. É preciso citar ainda a unificação da polícia da água e dos meios aquáticos e a extensão, e generalização, do regime das autorizações de captação e descarga nas águas superficiais e subterrâneas” (BARRAQUÉ, 1996, p. 169). 331 332 2.1.3.3 Preço da água Na conta de água do consumidor, constam valores referentes a: preço base, taxas de captação e contribuição para o Fundo Nacional para o Desenvolvimento das Aduções de Água - FNDAE (cuja soma corresponde a 60% do total da conta de água); e taxas de recolhimento das águas residuais e depuração, e de poluição (que correspondem a 40% do valor total da conta de água). Quanto à utilização de instrumentos econômicos na gestão da água, a França é um dos exemplos mais consolidados, porque estabeleceu taxas com base no princípio poluidorpagador, que inclusive é especificada na conta de água do consumidor final, conforme acima mencionado. Com o estabelecimento dessas taxas, os órgãos gestores da água conseguiram dispor de recursos financeiros para aplicar em pesquisa, novas tecnologias de tratamento, recuperação de mananciais, etc. As receitas geradas com a cobrança são aplicadas nas bacias na forma de gastos com gestão, estudos e pesquisa, investimentos de interesse comum e empréstimos aos usuários. Com as receitas, os comitês conseguem aportar 40% dos investimentos das bacias. Os outros 60% são cobertos por dotações orçamentárias do governo central. Os investimentos são definidos qüinqüenalmente e o papel das Agências de Bacia, que são estatais, é promover "ajudas" aos executores das obras e intervenções aprovadas pelo correspondente comitê de cada bacia. O critério norteador do nível de cobrança no sistema francês é o do custo de provisão para o consumo de quantidade e o de custo de tratamento no caso da poluição. Tais critérios guardam coerência com os critérios de preços públicos e custoeficiência. A receita com a cobrança por poluição tem representado mais ou menos o triplo da arrecadada com a cobrança de quantidade, no entanto as obras de tratamento receberam seis vezes mais recursos no período 1992 a 1996 (MOTTA, 1998b, p. 28). Os resultados do sistema francês são considerados muito bons na literatura. Estimase que essa cobrança (quantidade - consumo e qualidade - tratamento) signifique um sobrepreço de 15% no preço total da água. Em termos de investimentos, o sistema permitiu que a taxa de tratamento de efluentes domésticos crescesse de menos de 50%, em 1982, para mais de 72 % em 1992. No mesmo período, a indústria reduziu as emissões residuais de carga orgânica em mais de 27 % e de sólidos em suspensão e material tóxico em mais de 38%. No entanto, pouco se sabe dos ganhos de eficiência em termos de maximização dos beneficios do uso da água, da redução do dano ambiental e da minimização dos custos de controle. 2.1.4 Alemanha 2.1.4.1 Situação hídrica 332 333 A Alemanha é um Estado Federal, localizado no centro-norte da Europa, em uma área de 357.000 km2, que abriga 80,3 milhões de habitantes, distribuídos por dezesseis Länders (Estados). Em termos de recursos hídricos, a Alemanha conta com uma disponibilidade de mais de 2.000 m3/hab/ano, num total de 164 km3/água/ano, para uma demanda bruta de apenas 51,75 km3, que é atendida em 83,5% com águas superficiais e o restante com águas subterrâneas. Seus rios principais são: Reno, Elba, Oder e Weser, que é a única bacia nacional, sendo todas as outras internacionais (BARRAQUÉ, 1996, p. 19-20). Pela disponibilidade hídrica apresentada, bem superior à demanda, pode-se pensar que a Alemanha não enfrenta problemas de escassez de água. De certa maneira, isso é verdade, porque a única região alemã que tem déficit hídrico fica a sudeste do país, tendo sua demanda atendida com as transferências inter-regionais, feitas através de cooperação voluntária entre os municípios ou por associações instituídas pelos Länder (BARRAQUÉ, 1996, p. 20). Nesse aspecto, afirma Barraqué (1996, p. 157) sobre os recursos disponíveis: As precipitações são bastante importantes em média nos Länder do Oeste (873 mm), mas menos nos de Leste, mais continentais (612 mm). A evaporação é bastante importante, de forma que dos 343 Km3 trazidos anualmente pela chuva e pelos rios que vêm de países a montante, restam apenas 164 km3, isto é pouco mais de 2000 m3/hab. No entanto, estes recursos são globalmente suficientes, graças aos lençóis freáticos; as regiões em dificuldade são aquelas em que a água subterrânea é explorada ao máximo: em Berlim, por exemplo, a recarga do lençol representa apenas metade das captações. Na realidade, os problemas dos recursos hídricos na Alemanha não estão relacionados à quantidade desse recurso, mas sim à poluição das águas pela mineração de carvão e de aço, pela indústria, pela agricultura, pelos esgotos domésticos, etc. A gravidade da situação levou os usuários da água, o governo e a comunidade local da região carborífera de Ruhr a discutirem, já em 1880, a possibilidade de gestão integrada desse recurso. 2.1.4.2 Ordenamento institucional e legal: as associações de recursos hídricos e a gestão integrada Assim, foi na Renânia do Norte–Vestfália245 que, em 1904, os conflitos entre os usuários dos recursos hídricos levaram à formação da primeira associação do rio Emscher "sindicato cooperativo", o Emschergenossenschaft. Esse "sindicado cooperativo" ficou com a responsabilidade de garantir o abastecimento urbano e viabilizar a canalização e depuração das águas poluídas na bacia Emscher (BARRAQUÉ, 1996, p. 33). 245 “O estado da Renânia do Norte – Vestfália é o mais industrializado entre os 16 estados da República Federal da Alemanha. Sua população de 16.7 milhões de habitantes corresponde a 20% da população total do país. Na Renânia do Norte – Vestfália existem 10.000 indústrias/fábricas de diferentes portes e campos de atuação e o consumo de água para fins industriais perfaz aproximadamente 5,0 bithões de m3 anuais” (ALBRECHT, 1992, p. 49). 333 334 Os bons resultados apresentados pela associação de Emscher tiveram, como conseqüência, a criação, em 1913, de duas outras associações para a Região de Ruhr: a Ruhrverband, que ficou responsável pelo controle da qualidade das águas residuais (luta contra a poluição), e a Ruhrtalsperrenverein, responsável pela quantidade de água para consumo (armazenagem da água para abastecimento urbano e regulação do fluxo do rio). Conforme destaca Albrecht (1992, p. 51), a preocupação com o Ruhr ensejou uma série de ações: Sérios problemas no abastecimento municipal de água do Ruhr ocorreram em meados deste século, quando a capacidade das instalações não era suficiente para suprir a demanda de água e tratar os esgotos das comunidades, então, em crescimento acelerado. Conseqüentemente, doenças como a febre tifóide, cólera e outras epidemias propagaram-se na região. Estas circunstâncias prementes levaram à solução do problema, a partir de discussões coletivas. Após longos debates, nos quais predominaram a atribuiçâo de responsabilidades e distribuição de custos, os três grupos, a saber, as comunidades as agências de água bem como as indústrias, concordaram com a criação de duas associações de gerenciamento hídrico para a bacia do rio Ruhr. Em 1913, o estado prussiano promulgou uma lei, visando a instauração do Ruhrverband (responsável pela qualidade da água) e o Ruhrtalsperrenverein (responsável pelo volume de água) como duas organizações independentes, responsáveis por toda a bacia hidrográfica natural do rio. Estas leis foram firmadas ainda pelo próprio Imperador alemão. A partir de então, várias outras associações foram criadas, como a de Lippeverband, que foi constituída em 1926 pelos habitantes das margens do Lippe, chegando, em 1958, a existirem onze associações só na região de Ruhr. A criação da associação Lippeverband viabilizou a formação de um acordo de gestão por especialização dos rios Ruhr, Emscher e Lippe. Tal acordo foi definido segundo as condições dos cursos d'água de cada um. O rio Emscher (“foi transformado em um esgoto a céu aberto”) foi canalizado para receber as águas residuais dos esgotos urbanos e industriais das duas outras bacias-vertentes; o Ruhr tornou-se uma fonte de água potável bem protegida para a região e as águas do Lippe foram destinadas para abastecimento agrícola e industrial (BARRAQUÉ, 1996, p. 33). Albrecht (1992, p. 51) assinala que a Ruhrverband e a Ruhrtalsperrenverein foram unificadas após julho de 1990 pelo novo estatuto. Barraqué indaga por que as associações cooperativas (Genossenschaffen) se multiplicaram na zona do Ruhr e não em outros locais. E responde que, certamente, a escassez dos recursos de água foi um dos motivos. Entretanto, outro aspecto mostra-se relevante: a intensa participação popular nesta região de carvão e de aço. Esse modelo de gestão dos recursos hídricos, por associações com personalidade jurídica de “sindicatos cooperativos”, que tanto podem atuar em nível local como de bacia hidrográfica, surge para, de forma criativa, enfrentar os problemas federativos, a disfunção entre o território natural e o político das bacias. Os sindicatos cooperativos mostram-se eficientes, segundo Barraqué (1996, p. 2425): Em função das necessidades, estas associações podem estar limitadas a uma vizinhança em meio rural, ou cobrir um território regional e 334 335 ter orçamentos de vários milhões de DM. Elas baseiam-se no princípio da participação dos utilizadores e da autonomia local. Os Länder estabeleceram um quadro jurídico que permite que estas associações funcionem sem respeitar os limites territoriais tradicionais, para que não sejam perturbadas na sua abordagem segundo os critérios hidrológicos. O traço essencial que caracteriza a gestão da água na Alemanha é o federalismo e o princípio da subsidiariedade a ele vinculado. Assim, como assinala Barraqué (1996, p. 25), os grandes serviços de água são da competência dos municípios ou dos sindicatos que eles podem formar. O princípio constitucional que lhes dá esta prerrogativa é o da autonomia municipal: Na Alemanha, o princípio de subsidiariedade faz com que seja difícil imaginar que uma cidade importante não tenha o poder de policiar o ambiente no seu território, contrariamente ao que acontece na França. As cidades controlam, por conseguinte, os estabelecimentos industriais no seu território, nomeadamente no que respeita às descargas poluentes na água [...] Do mesmo modo, enfatiza Albrecht (1992, p. 52): Além do Ruhrverband, foram criadas outras nove associações similares no estado. Estas associações são responsáveis peto controle de poluição das águas de todas as bacias hidrográficas. Desconhecendo fronteiras políticas, estas associações planejam, constroem e operam as estações necessárias. Assim, foi criada uma forma de gerenciamento, abrangendo todo o sistema, a fim de equalizar e minimizar custos. A forte participação das coletividades locais nas decisões sobre os serviços básicos, principalmente na gestão dos recursos hídricos, sofreu algumas modificações com a divisão do país em República Federal da Alemanha-RFA e República Democrática da AlemanhaRDA, em 1949, como relata Barraqué (1996, p. 26), tendo havido, com a unificação, uma remunicipalização e uma descentralização. Na República Democrática da Alemanha, a administração, a partir da década de 50, foi aos poucos retirada da esfera municipal, concentrando-se em quinze regiões administrativas, que não correspondiam exatamente às bacias-vertentes. O planejamento passou a ser feito pelo governo central, sem a participação da comunidade e dos usuários da água, e bastante distante das necessidades locais. Com o aumento das dificuldades financeiras no Leste Europeu, os investimentos em infra-estrutura (construção de novas redes, substituição e manutenção de redes antigas, construção de novas estações de depuração etc) deixaram de ser feitos, resultando no aumento da poluição dos rios, principalmente à jusante dos afluentes do Elba, ficando evidenciado, neste aspecto, o malefício da centralização na gestão dos recursos hídricos ocorrida na Alemanha comunista . Na República Federal da Alemanha, a gestão da água era descentralizada e participativa; a bacia era utilizada como unidade ideal de gerenciamento, ao contrário do que ocorria na outra parte da Alemanha. Com a reunificação da Alemanha em outubro de 1990, a gestão dos recursos hídricos na ex-RDA passou a ser exercida por instituições municipais semi-autônomas (Stadtwerke) e sindicatos intermunicipais (BARRAQUÉ, 1996, p. 27). 335 336 Assim, a estrutura basilar da Alemanha unificada, à semelhança da francesa, continuam sendo as associações(sindicatos) de bacia. Exemplificando o funcionamento destas associações, podemos utilizar-nos da análise do Ruhrverband contemporâneo, pelas precisas explanações de Albrecht (1992, p. 51-52): Associados do Ruhrverband são todos aqueles que poluem o rio Ruhr e seus tributários, como, por exempto, as comunidades, indústrias e empresas comerciais. Associadas são igualmente as agências de água como empresas públicas de abastecimento de água, que se beneficiam com o trabalho do Ruhrverband, podendo transferir água potável para bacias hidrográficas subjacentes. A associação é composta por uma Assembléia Cooperativa, um Conselho Diretivo e uma Diretoria Executiva. A Assembléia Cooperativa é composta por 152 representantes eleitos pelos associados, de acordo com a contribuição financeira dos mesmos. O Conselho Diretivo é formado por 15 membros, dos quais cinco são eleitos pelos funcionários do Ruhrverband e dez pela Assembléia Cooperativa. Três diretores executivos forma a Diretoria Executiva, que desempenha função administrativa. Cabe a cada um dos diretores, respectivamente a responsabilidade pelos setores de engenharia, financeiro e social/recursos humanos. As vantagens deste modelo de gerenciamento alemão, adotado em um país federativo, à semelhança do Francês, centrado na Bacia, podem ser elencadas abaixo, segundo a concepção de Albrecht (1992, p. 55), membro do Ruhrverband: • Visto os rios desconherem fronteiras políticas é mais eficaz, econômico e portanto razoável, realizar o gerenciamento dos recursos hídricos em suas respectivas áreas naturais de captação; • Todas as medidas relacionadas à água podem ser implementadas por meio de planos diretores supramunicipais, em lugar de decisões a nível local, que em sua maioria são decorrentes de interesses locais, negligenciando as necessidades dos usuários a jusante; • O planejamento de novas instalações pode ser feito por uma central, para minimizar os custos. Medidas centralizadas são mais facilmente implementáveis a nível municipal; • A operação das estações pode ser regionalizada de acordo com a topografia da bacia e as condições de transporte. Isto também diminui custos, se comparado com a operação independente por parte de cada comunidade. “A dúzia é sempre mais barata”; • A auto-gestão de uma associação assegura a participação de todos os membros captadores no processo decisório e o desempenho do gerenciamento dos recursos hídricos; • Em comparação às comunidades, as associações de bacias, como grandes órgãos públicos, têm acesso facilitado a empréstimos; • Integrar indústrias, municípios e agências de água e estabelecer a participação obrigatória. 336 337 O núcleo essencial do funcionamento do modelo alemão de gestão hídrica baseia-se na gestão por bacia, com ênfase na participação social e dos entes federados na composição do Comitê de Bacia (Associação da Bacia), levando para dentro deste órgão a integração dos elementos federativos (políticos) e sociais do uso da água daquela bacia. Assim, o modelo alemão assemelha-se ao francês na forma de gerenciamento, tendo por unidade de gestão a bacia hidrográfica, não obstante sofra influência das autonomias das entidades federadas (BARRAQUÉ, 1996, p. 39-40). 2.1.4.3 Preço da água Os serviços de captação-distribuição de água e o saneamento são tratados de forma diferente pelo governo. O primeiro é atividade comercial e industrial, portanto paga imposto. O segundo é serviço de utilidade pública é isento de impostos. O tratamento diferenciado dos serviços de captação e distribuição de água e saneamento está expresso na formação do preço da água, estabelecido com base em cinco princípios de direito administrativo voltados para os serviços de captação e distribuição, que são: • cobrir a totalidade dos custos de abastecimento (Kostendeckungprinzip) - tanto da manutenção quanto de novos investimentos; • diferenciar os diferentes tipos de utilizadores, refletindo os custos específicos relativos às diferentes classes de utilizadores de água. Esse princípio beneficia com redução progressiva de tarifas os grandes utilizadores de água e cria redes e contratos separados para os grandes utilizadores; • traduzir a estrutura dos custos por tarifas binômicas (taxa de ligação e taxa de utilização do serviço), destas tarifas a taxa de ligação é a mais em conta (10% do total arrecadado pelos distribuidores) do que a taxa de utilização, preço proporcional ao volume consumido do serviço, (90% do total arrecadado pelos distribuidores). Em alguns municípios a tarifa é monômica, só contém o preço relativo ao volume; • oferecer um retorno do capital investido; e • permitir um superavit para reinvestir em melhoras técnicas. Esses princípios mantêm a estabilidade das empresas municipais alemãs ao propor, como regra, a geração de lucros para renovação de equipamentos e um rendimento do capital equivalente ao dos bancos. Isso impede a descapitalização dos serviços de água e evita dependência das subvenções do estado. Conforme destaca Barraqué (1996, p. 36): “Os benefícios anuais deveriam permitir simultaneamente constituir provisões para a renovação dos equipamentos e oferecer um rendimento do capital equivalente ao dos mercados bancários”. Por outro lado, para os serviços de saneamento, foram estabelecidos quatros princípios, que orientam a formação das taxas de saneamento, que são: 337 338 • proporcionalidade em relação ao serviço prestado (Leitungsproportionalität), que proíbe a majoração das taxas unitárias em função do utilizado, mas não proíbe a majoração das taxas fixas anuais de ligação; • as taxas devem refletir o beneficio retirado pelos utilizadores, assim como os custos específicos do financiamento do serviço; • os utilizadores devem se tratados igualitariamente, sem concessão de redução a certas categorias de usuários como ocorre com a captação e distribuição da água; e • equilíbrio entre receitas e despesas, sem possibilidades de gerar beneficios (BARRAQUÉ 1996, p. 37). Observa-se que os princípios orientadores da formação de preços dos serviços de distribuição de água potável e saneamento refletem bem o tratamento dado pelo governo às empresas prestadoras desses serviços, com isenção ou não de impostos. Enquanto as empresas distribuidoras de água podem reduzir algumas taxas, de acordo com os usuários, e são obrigadas a gerar lucros equivalentes aos de Banco, para as empresas de saneamento, isso não é permitido. A respeito da administração orçamentária e financeira do Ruhrverband, Albrecht (1992, p. 55) afirma: Os associados são obrigados a pagar contribuições ao Ruhrverband, para que este possa desempenhar suas funções legais, principalmente quando outras verbas, por exemplo, subsídios estaduais para a construção de novas estações, não cobrirem os custos totais da obra. Os princípios para o cálculo de tarifas estão pormenorizados no Estatuto do Ruhrverband. O cálculo da tarifa anual a ser aplicada ao poluidor, baseia-se no volume e na composição dos resíduos despejados. As agências de água são tributadas de acordo com o volume de água derivada do rio. A Alemanha, portanto, utiliza instrumentos econômicos na gestão de seus recursos hídricos em nível federal, estadual, municipal e dos sindicatos cooperativos da água, formados por entes de direito público, principalmente após a aprovação da Lei Federal de 1976, que concretiza o princípio do poluidor-pagador. 2.2 CONTRIBUIÇÕES DOS TRATADOS E DAS CONFERÊNCIAS INTERNACIONAIS À GÊNESE DE UM DIREITO FUNDAMENTAL DE ACESSO À ÁGUA 2.2.1 Argumentos contemporâneos favoráveis à construção do direito fundamental de uso da água 338 339 O acesso à água, conforme já visto, é uma das condições fundamentais para o desenvolvimento humano. Entretanto, na entrada do século XXI, bilhões de pessoas o têm (GLEICK, 2002, p. 1).246 Como destaca Priscolli (2000, p. 2), a noção de que a água é um bem da humanidade e de que deve ser disponibilizada para todos vincula-se, diretamente, ao princípio da dignidade humana. A falha da Comunidade Internacional, dos Estados e das organizações nãogovernamentais(representantes ativos da sociedade), em buscar satisfazer essa necessidade humana fundamental, tem ensejado amplos debates sobre a busca de mecanismos internacionais, nacionais e locais de trato desta questão. Nesta secção, analisaremos a proteção internacional do acesso à água como um direito fundamental em construção pelos tratados e conferências internacionais sobre a água. A primeira questão metodológica, a ser indagada refere-se à existência de um direito fundamental universal à água. O termo “direito fundamental”, neste momento, relaciona-se à proteção de direitos comuns a todos os povos que transcendem a sua cultura e o local em que se encontram.247 Como afirma Gleick, até recentemente, a questão dos indivíduos ou grupos possuirem um direito legal a um mínimo de recursos hídricos e de haver uma obrigação dos Estados e da Comunidade Internacional em prover estes recursos não tem sido corretamente respondida. Esse direito à água, sem sombra de dúvida, está presente na proteção ao meio ambiente, no direito do desenvolvimento sustentável, na saúde, na vida, dentre outros direitos fundamentais. Gleick, com razão, entretanto, entende que tal posicionamento protetivo deve ser mais direto e específico, com uma especificação e explicitação de um direito fundamental de acesso à água. Assim, Gleick (2002, p. 3) questiona: Qual o propósito ou o valor de explicitar-se um direito humano à água, quando a Comunidade Internacional tem explicitamente reconhecido um direito humano à comida e à vida? [...] Uma razão é para encorajar a Comunidade Internacional e os Estados a renovar seus esforços no atendimento das necessidades de água das suas populações. Esses esforços estão à caminho por meio da Visão 21, um processo de criação de um Conselho Internacional de Fornecimento e Tratamento da Água [Water Supply and Sanitation Collaborative Council - WSSCC]. A discussão internacional deste tema é importante, por que levanta um tema que é global e que, muitas vezes, passa despercebido no âmbito nacional e local. A 246 No Brasil, segundos dados do IBGE, 58,40% dos distritos brasileiros pesquisados em 2000 não possuem rede coletora de esgotos, sendo que 1,5% lançam o esgoto diretamente sem tratamento em cursos d´água. (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2002). 247 Conforme afirma Piovesan (1997, p. 76): “Os tratados são, por excelência, expressão de consenso. Apenas pela via do consenso podem os tratados criar obrigações legais, uma vez que os Estados soberanos, ao aceitálos, comprometem-se a respeitá-los. A exigência de consenso é prevista pelo art. 52 da Convenção de Viena, quando dispõe que o tratado será nulo se a sua aprovação for obtida mediante ameaça ou o uso da força em violação aos princípios de Direito Internacional consagrados pela Carta da ONU”. 339 340 segunda razão da divulgação da existência de tal direito, relaciona-se à pressão de que o mesmo seja incorporado nas normas obrigacionais internacionais, nacionais e locais [...] A terceira razão é dar destaque à situação deplorável da gestão hídrica em muitas partes do mundo.[...] Uma quarta razão refere-se à ajudar à resolução dos conflitos internacionais por recursos hídricos compartilhados por mais de um país, identificando a necessidade de atendimento mínimo do recurso a todos eles [...] Finalmente, explicitando o conhecimento deste direito humano pode-se contribuir para a criação de políticas públicas hídricas que assegurem a utilização humana da água para consumo como preferencial em relação aos outros usos que possui. Há inúmeras convenções e acordos internacionais, formalmente, identificadores e declaradores do leque de direitos humanos vigentes no âmbito internacional. Dentre esses, destacamos, na tabela abaixo, os principais com o seu endereço eletrônico na Internet. Quadro 9 – Principais documentos internacionais relativos aos direitos fundamentais reconhecidos internacionalmente e seus endereços eletrônicos DENOMINAÇÃO DO DOCUMENTO EM PORTUGUÊS DENOMINAÇÃO INTERNACIONAL ENDEREÇO NA WORLD WIDE WEB Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) Universal Declaration of Human Rights (UDHR), 194 8 http://www.unhchr.ch/udhr/inde x.htm Convenção Européia dos Direitos Fundamentais (1950) European Convention on Human Rights (“Convention for the protection of human rights and fundamental freedoms”) http://www.coe.fr/eng/legaltxt/5e .htm Convenção internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais (1966) International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights (ICESCR), 1966 http://www.unhchr.ch/html/men u3/b/a_cescr.htm Convenção internacional sobre direitos civis e políticos (1966) International Covenant on Civil and Political Rights (ICCPR), 1966 http://www.unhchr.ch/html/men u3/b/a_ccpr.htm Convenção Americana dos Direitos Humanos (Tratado de São José da Costa Rica, 1969) American Convention on Human Rights, 1966 http://www.oas.org/EN/PROG/ic hr/enbas3.htm Declaração sobre o direito ao desenvolvimento (1986) Declaration on the Right to Development (DRD), 1989 http://www.unhchr.ch/html/men u3/b/74.htm Convenção internacional Convention of the Rights http://www.unhchr.ch/html/men 340 341 sobre os direitos das crianças (1989) of the Child (CRC) u3/b/k2crc.htm . Conforme destaca Gleick (2002, p. 4), entre os direitos explicitamente protegidos nas declarações referenciadas no Quadro anterior, estão o direito à vida, à qualidade de vida, à proteção contra a doença e por uma alimentação adequada. Apesar do direito à água limpa (consumo da água) estar implicitamente mencionado como pré-requisito a esses direitos, a água só é explicitamente mencionada na Convenção internacional sobre os direitos das crianças. Assim sendo, por que a água não foi expressa nas outras declarações, tal qual o foram o direito à alimentação e ao vestuário,248 por exemplo? Nesse aspecto, não se pode esquecer de situarem os direitos fundamentais como direitos históricos249, não sendo a água, na declaração universal de 1948, um problema visível ou efetivo como se apresenta hoje. No entanto, conforme iremos demonstrar com a análise das Conferências Internacionais relativas à água, hoje já se pode visualizar um direito fundamental à água, e Gleik estabelece até parâmetros quantitativos para este direito, conforme o quadro abaixo. Quadro 10 – Quantidade de água básica para as necessidades humanas domésticas TIPO DE UTILIZAÇÃO Água Para Beber LITROS POR PESSOA POR DIA 5 Água para saneamento pessoal 20 Água para banho 15 Água para preparação de comida 10 TOTAL 50 Assim, Gleick (2002, p. 11) propõe que a recomendação de 50 litros (por volta de 13 galões) diários por pessoa, seja uma meta mínima universal de garantia de acesso à água. A aritmética de Gleick já representa um enorme desafio, tendo também um aspecto político relevante de solidariedade entre os povos a respeito da água. Assim, violará a ética da deontologia inerente aos direitos fundamentais o desperdício de água em países como o Brasil. Neste aspecto, o senador Cabral (2001, p. 15), com propriedade, afirma: 248 249 O art. 25 da UDHR afirma que: “everyone has the right to a standard of living adequate for the health and well-being of himself and of his family, including food, clothing, housing [...]” Essa evolução, como ressalta Bobbio (1992, p. 5), mostra-se impulsionada pela luta em defesa de novos direitos fundamentais em razão de novas circunstências fáticas vivenciadas pelo homem. 341 342 Como pode ter problemas um país que tem água? Como nós, brasileiros, a estamos tratando? [...] É muito aflitivo comprovar que a estamos tratando muito mal. A administração dos recursos hídricos é um setor para o qual não podemos adiar ações concretas. [...] A escassez, em algumas áreas do Brasil e do mundo, não nos permite postergar medidas para estabelecer o uso racional dos recursos disponíveis. No mesmo sentido, Selborne (2002, p. 23) afirma que embora todos precisemos de água, isso não nos dá o direito de acesso a toda a água que quisermos utilizar. É preciso que a sociedade comece garantindo, em primeiro lugar, uma hierarquização que permita atender “às necessidades essenciais da humanidade, assim como dos nossos ecossistemas”. Barlow; Clark (2002, p. 4) revelam e criticam um complô das grandes corporações que comercializam água, baseando-se na necessidade vital da água para todas as pessoas (aquelas que podem pagar e as que não podem pagar pela água). Nesse contexto, deve ser vista a existência de um direito fundamental à água, direito correlato a um meio ambiente sadio, que reforça a racional gestão hídrica, que deve transcender aos interesses de determinado indivíduo e determinada coletividade no tempo (futuras gerações) e no espaço (os outros povos com carência de água têm direito ao recurso existente de forma abundante em outro país). 2.2.2 Conferências internacionais anteriores à ECO92 A Conferência de Estocolmo foi a primeira a colocar o tema ambiental na agenda política internacional, estabelecendo, em seus princípios, a necessidade de preservar e controlar os recursos naturais – a água, a terra, o ar, a fauna e a flora – por meio da gestão e do planejamento adequados. A primeira Conferência das Nações Unidas sobre Água e Meio Ambiente, ocorrida em 1977, em Mar del Plata, além de abordar a necessidade do uso eficiente da água, ressaltou o seu múltiplo aproveitamento, englobando os seus principais usos, como o abastecimento público e a disposição dos efluentes líquidos, os usos para fins agrícolas e o uso racional da irrigação, o uso industrial, a geração de energia e a navegação. A Declaração de Dublin, ocorrida em janeiro de 1992, sobre recursos hídricos e desenvolvimento sustentável, foi aprovada em evento preparatório à ECO-92. A Declaração de Dublin reuniu mais de quinhentos participantes, incluindo especialistas de mais de cem países e representantes de cerca de oitenta entidades internacionais e organizações não governamentais. A principal constatação dos especialistas presentes nesta declaração foi que: Escassez e mau uso da água doce representam séria e crescente ameaça ao desenvolvimento sustentável e à proteção do meio ambiente. A saúde e bem-estar do homem, a garantia de alimentos, o desenvolvimento industrial e o equilíbrio dos ecossistemas estarão sob risco se a gestão da água e do solo não se tornar realidade, na presente década, de forma bem mais efetiva do que tem sido no passado (GLOBAL DEVELOPMENT RESEARCH CENTER, 2002, p. 02). 342 343 Neste encontro, foram estabelecidos os seguintes princípios mais importantes: • A água doce é um recurso finito e vulnerável, essencial para a conservação da vida e manutenção do desenvolvimento e do meio ambiente. • O desenvolvimento e a gestão da água devem ser baseados em participação dos usuários, dos planejadores e dos decisores políticos, em todos os níveis. • As mulheres devem assumir papel essencial na conservação e gestão da água. • A água tem valor econômico em todos seus usos competitivos e deve ser promovida a sua conservação e proteção. Assim, evidencia-se que o tema no âmbito internacional é extremamente rico, o que demonstra a sua relevância. Nesse aspecto, a ONU, em Assembléia Geral de 22 de fevereiro de 1993, adotou a resolução A/RES/47/193, que declara o dia 22 de março como o Dia Mundial da Água, de acordo com as recomendações do capítulo 18 da Agenda 21, firmada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento do Rio de Janeiro em 1992. Como destaca Pio (2000, p. 228): Todos os países, anualmente, são convidados a comemorar o Dia Mundial da Água com o objetivo de concretizar atividades que promovam a conscientização da população e discutam os problemas relacionados com a conservação, o desenvolvimento e a proteção de seus recursos hídricos, por meio de publicações, de difusão de documentos, de conferências, seminários e exposições, induzindo a ampliação da participação de instâncias governamentais, agências internacionais, organizações não governamentais e o setor privado (grifo nosso). 2.2.3 Agenda 21 A Agenda 21, documento que reflete um consenso mundial, foi formulada a partir das premissas da resolução 44/228 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 22 de dezembro de 1989, adotada quando as nações do mundo convocaram a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, e quando se verificou a necessidade de adotar uma abordagem equilibrada e integrada das questões relativas ao meio ambiente e ao desenvolvimento. A Declaração do Rio de Janeiro, fruto também da ECO92, aprovada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em 1992, apresenta os direitos e responsabilidades dos países, em matéria de meio ambiente e em matéria do trato de seus recursos hídricos, traçando os princípios norteadores. 343 344 Destacando os preceitos gerais correlacionados à gestão dos recursos hídricos, podemos enumerá-los abaixo: • Princípio 3. O direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas eqüitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras; • Princípio 4. Para alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção ambiental constituirá parte integrante do processo de desenvolvimento e não pode ser considerada isoladamente deste. • Princípio 10. A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados (AGENDA 21, 1997, 593-595). Como princípios específicos de proteção da água doce, podemos, de forma sucinta, selecionar os seguintes previstos na Agenda 21 (1997, cap. 18, p. 593-595): • Os recursos de água doce são componentes essenciais da hidrosfera terrestre e parte fundamental dos ecossistemas terrestres. • O ambiente das águas doces é caracterizado pelo ciclo hidrológico, seus eventos extremos como as cheias e as secas que, em algumas regiões, estão se tornando mais acentuadas e dramáticas em suas consequências. • As mudanças climáticas globais e a poluição atmosférica podem produzir impactos nos recursos de água doce e na sua disponibilidade e, através da elevação do nível dos mares, ameaçar as baixadas costeiras e os pequenos sistemas insulares. • A água é necessária para quase todas as necessidades da vida. • O objetivo geral é assegurar o suprimento adequado, de água de boa qualidade, à toda a população deste planeta e, ao mesmo tempo, preservar as funções hidrológicas, biológicas e químicas dos ecossistemas, compatibilizar as atividades humanas com a capacidade limite da natureza e combater os vetores de enfermidades de veiculação hídrica. • Inovações tecnológicas, inclusive o melhoramento de tecnologias autóctones, são necessárias para utilização integral dos limitados recursos hídricos e para preservá-los da poluição. • A disseminação da escassez hídrica, a gradual deterioração e o agravamento da poluição dos recursos de água doce, em muitas regiões, juntamente com a progressiva proliferação de atividades incompatíveis com a disponibilidade de recursos hídricos, exigem planejamento e gerenciamento integrado desses recursos. Essa integração precisa considerar tanto as águas superficiais e subterrâneas como aspectos de quantidade e qualidade. • A natureza multi-setorial do desenvolvimento dos recursos hídricos, no contexto do desenvolvimento sócioeconômico, precisa ser considerada, assim como a utilização múltipla dos recursos hídricos, para abastecimento de água e saneamento, agricultura, indústria, desenvolvimento urbano, geração de energia hidrelétrica, pesca interior, transporte fluvial, recreação, gestão de planícies e outras atividades. 344 345 • A utilização racional da água, com esquemas de aproveitamento de águas superficiais e subterrâneas e de outros recursos potenciais, deve ser assegurada por medidas coerentes de conservação da água e de diminuição de perdas. • Deve haver acordo sobre prioridades para a prevenção de inundações e para o controle de sedimentos, onde for necessário. • A adequada utilização dos cursos de água internacionais reveste-se de grande importância para os Estados ribeirinhos. A esse respeito, pode ser desejável a cooperação entre esses Estados em conformidade com acordos existentes ou outros mecanismos pertinentes, tendo presente os interesses de todos os Estados interessados. 2.2.4 Conferências internacionais posteriores à ECO92 A Declaração de San José da Costa Rica de 1996, relativa aos recursos hídricos, surge a partir da Conferência sobre avaliação e gerenciamento estratégico dos recursos hídricos na América Latina e Caribe, preparada pela Organização Meteorológica Mundial – OMM e o Banco Inter-Americano de Desenvolvimento – BID (1996), teve por objetivo o desenvolvimento de um Plano de Ação, sob o contexto do desenvolvimento sustentável, assegurando que o acesso irrestrito e integrado à água e o gerenciamento integrado dos recursos hídricos refletem as necessidades socioeconômicas de um país e de seus cidadãos, bem como a preservação do meio ambiente. Nesse Plano, as agências nacionais de recursos hídricos terão papel fundamental e deverão buscar a auto-suficiência. O Plano de Ação foi elaborado segundo as diretrizes do Relatório sobre Acesso aos Recursos Hídricos da UNESCO, 1991, os princípios do Capítulo 18 da Agenda 21 e de uma série de estudos sobre o gerenciamento dos recursos hídricos elaborados por Organizações Regionais, a ONU, Agências e o BID, em colaboração com os países envolvidos. A Conferência reconheceu que o acesso aos Recursos Hídricos na América Latina e Caribe deveria ser baseado numa forte determinação de se desenvolver auto-suficiência, eficiência e eficácia, por meio das seguintes diretrizes: • refletir as necessidades socioeconômicas e ambientais dos países; • servir aos interesses e necessidades dos usuários no âmbito local e regional, com real respeito à conservação e sustentabilidade dos usos dos recursos naturais e da biodiversidade; • adotar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento; • maximizar o uso dos recursos financeiros e humanos; • aprimorar a coleta de dados e dar suporte aos programas de monitoramento para o desenvolvimento sustentável; 345 346 • aumentar esforços para fortalecer a participação da comunidade; • dar especial atenção ao aumento da demanda dos recursos hidricos e ao aumento da poluição das águas; • dar suporte ao desafio de atender as necessidades de abastecimento de água para uma população urbana crescente, com a necessidade de preservação do meio ambiente (BANCO INTERAMERICANO DE DESENVOLVIMENTO, 1996, p. 01). Já a Declaração de Paris, de 19 de março de 1998, oriunda da Conferência Internacional sobre Água e Desenvolvimento Sustentável, destacou que a água é tão essencial para o desenvolvimento sustentável quanto para a vida. Outra premissa básica, considerada no direcionamento dos trabalhos, foi a corroboração de que a água é um bem com valores econômico, social e ambiental, que estão inter-relacionados e se compensam mutuamente. A noção de desenvolvimento sustentável existente na água, com suas diferentes dimensões, tomou forma consagrada. Por outro lado, deu-se destaque à escassez da água, ao verificar-se que um quarto da população mundial não tem acesso à água potável; mais da metade da humanidade não conta com saneamento básico adequado. Além disso, a baixa qualidade de água e a falta de condições de higiene estão entre as causas de mortes e doenças; bem como a escassez de água, as enchentes e secas, a pobreza, a poluição, o tratamento inadequado de resíduos e a falta de infra-estrutura impõem sérias ameaças ao desenvolvimento econômico e social, à saúde pública, à segurança global de alimentos e ao meio ambiente. De acordo com este cenário, foram estabelecidas as seguintes recomendações: • • • • • • • os recursos hídricos são essenciais não só para a satisfação das necessidades básicas da população, para a saúde, a energia, a produção de alimentos, a preservação dos ecossistemas, como também para o desenvolvimento econômico e social; a proteção dos ecossistemas é essencial para a manutenção e a recuperação do ciclo hidrológico, visando ao gerenciamento dos recursos hídricos de uma forma sustentável; a água é um recurso natural essencial para a estabilidade e a prosperidade futuras, e deveria ser reconhecida como o catalisador para a cooperação regional; o desenvolvimento, o gerenciamento e a proteção dos recursos hídricos e sua utilização mais eficiente, eqüitativa e de forma auto-sustentável, dependem do aumento de conhecimento e compreensão da realidade hidrológica; a principal prioridade deve ser o fortalecimento das instituições, em especial as locais, bem como a melhoria do treinamento e a conscientização dos profissionais e usuários; o desenvolvimento, o gerenciamento, o uso e a proteção da água dependem de: promoção de parcerias entre os setores público e privado, associadas à grande mobilização e financiamentos de longo prazo; 346 347 • • processo de decisão participativo, aberto a todos os usuários, em especial às mulheres, à população de baixa renda e aos grupos de minorias; participação essencial das entidades não governamentais e outros parceiros socioeconômicos; - a cooperação internacional deve ter um papel importante para se atingir tais metas, nos âmbitos nacional, regional e global (INTERNATIONAL INSTITUTE FOR SUSTAINABLE DEVELOPMENT, 1998, p. 1-2) A última declaração hídrica foi a Declaração de Haia, em 22 de Março de 2000, oriunda do II Fórum Mundial da Água, que enfocou a importância estratégica da água para o século XXI. Nesta declaração, estabeleceu-se, entre outras conclusões, que: • A água é vital para a vida e para a saúde das pessoas e dos ecossistemas (VISÃO ECOCÊNTRICA), além de ser uma exigência básica para o desenvolvimento de países. Contudo, ao redor do mundo, mulheres, homens e crianças não têm acesso a esse bem para satisfazer suas necessidades mais básicas. Os recursos hídricos e os ecossistemas relacionados que os provêem e os sustentam, estão sob ameaça de poluição, de uso não sustentável, de manejo não adequado do solo, de alterações climáticas e de muitas outras influências, devendo-se destacar o vínculo entre estas ameaças e a pobreza. • A enorme diversidade de necessidades e de situações ao redor do mundo impõem uma exigência comum: a meta de se garantir água para o Século XXI. Isto significa assegurar a proteção dos ecossistemas litorâneos e de água doce, bem como os relacionados, em uma melhor situação do que a atual; promover o desenvolvimento sustentável e a estabilidade política; garantir o acesso à água, em quantidade suficiente e custos adequados a todas as pessoas (DEMOCRATIZAÇÃO DO USO DA ÁGUA – SOLIDARIEDADE DO USO) e para conduzir a uma vida saudável e produtiva. Para alcançar a meta de proteção estratégica da água, propõem-se: • Consolidar as necessidades básicas reconhecendo que o acesso aos mananciais de água, ao abastecimento suficiente e ao serviço de saúde pública, são necessidades humanas básicas e essenciais à saúde e ao bem-estar e garantindo aos cidadãos, especialmente às mulheres, participação no processo de gestão da água; • Garantir provisão de alimentos aumentando a disponibilidade de alimento, principalmente aos pobres e mais vulneráveis e a distribuição mais eqüitativa de água para a produção de alimentos (CONSUMO HUMANO); • Proteger os ecossistemas assegurando sua integridade pela gestão sustentável da água (entre outros, DESSEDENTAÇÃO DE ANIMAIS); • Compartilhar os recursos hídricos promovendo, sempre que possível, uma cooperação ativa e desenvolvendo sinergias entre os diferentes 347 348 usos de água em todos os casos e nas limitações de recursos hídricos transfronteiriços entre estados concernidos, bem como a gestão sustentável de bacias de rios ou de outros métodos apropriados; • Administrar riscos provendo segurança nos casos de inundações, secas, poluição e outros perigos relacionados com os recursos hídricos; • Valorizar a água, administrando os recursos hídricos de modo a refletir seus valores econômicos, sociais, ambientais e culturais em todos seus usos e adequando valores que reflitam o custo de seu abastecimento (COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA CORRELACIONADA AO CUSTO DE SUA UTILIZAÇÃO); • Administrar a água com sabedoria, garantindo o envolvimento e o interesse da população e de todos os "stakeholders" incluídos na administração de recursos de água para assegurar um bom governo (PARTICIPAÇÃO NA GESTÃO DA ÁGUA DOS USUÁRIOS E DAS AGÊNCIAS DE ÁGUA) (SECOND WORLD WATER FÓRUM. 2002). O fator comum a todas estas declarações é a atribuição de valores econômicos, éticos, sociais, ecológicos e culturais à água, que deve ser vista não só de forma direta, em benefício do homem, mas, também, vinculada à proteção dos ecossistemas por meio de uma gestão participativa, que não se esqueça da ponderação dos diversos valores que a água representa. Por outro lado, destaca-se a construção nos documentos internacionais de um direito humano internacional ao uso da água (Declaração de Paris (1998) e Haia (2000) a ser protegido pelo direito internacional, com reflexos nos direitos nacionais dos países. 348 349 3 A POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS (LEI FEDERAL N. 9.433/97) E SEUS PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES 3.1 IMPORTÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NA COMPREENSÃO DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA Por ser um bem escasso, a cobrança pelo uso da água constitui, em termos econômico-liberais, uma forma adequada de tratamento de sua oferta e procura. O conceito de Economia surge exatamente quando se conjugam duas situações: as necessidades e a escassez (recursos limitados, finitos) (NUSDEO, 2000, p. 28). As profundas alterações ocorridas na sociedade, na economia e no meio ambiente, na segunda metade do século XX, ensejaram modificações no Direito de Águas, em vários países, com a conseqüente adoção de novos princípios diretores. No Brasil, esse tema logrou densificação jurídica, inicialmente, com a edição do Código de Águas (Decreto-lei 24.643, de 10/07/1934), com alto teor de princípios passíveis de extração das suas regras.250 Pompeu (1999, p. 604), a esse respeito, assinala: Graças à cultura, à inteligência e aos esforços de Alfredo Valladão, autor do anteprojeto, o Código brasileiro é considerado mundialmente como das mais completas entre as leis de águas já produzidas. Os princípios nele constantes são invocados em diversos países como modelos a serem seguidos, mesmo por legislações modernas. Veja-se, por exemplo, que o “princípio-poluidor-pagador”, introduzido na Europa como novidade na década de 70, está presente em seus arts. 111 e 112 (grifo nosso). O Código de Águas, diploma legal formulado na terceira década do século XX,251 foi considerado um instrumento avançado para a época. Todavia, a evolução das atividades humanas acarretou sua desconformidade à realidade, à medida que novas atividades econômicas surgiram, ensejando a necessidade de criação de outros instrumentos de controle, em função do aumento da demanda da água, de forma qualitativa e quantitativa. A legislação sobre águas, no plano federal, até a edição da Lei Federal nº 9.433, de 8/01/1997, não fornecia os instrumentos necessários à administração dos recursos hídricos, no que se refere à proteção e melhoria dos aspectos de qualidade e quantidade, em conformidade com os princípios das declarações internacionais de água posteriores à Agenda 21.252 250 Assim, por exemplo, os seus oito primeiros artigos classificam as águas em públicas, comuns e particulares estabelecendo mecanismos de proteção jurídica destas a partir de suas diferentes naturezas jurídicas. 251 “O Anteprojeto de Código de Águas, elaborado por Alfredo Valladão, revisto por Comissão Especial em 1917 e aprovado pela Câmara, sem emendas, em 1920, mas sem prosseguimento, seguindo a teoria francesa, previa concessão administrativa, para a derivação de águas públicas e autorização administrativa para o aproveitamento das águas particulares” (POMPEU, 1999, p. 604). 252 Do total de 205 artigos do Código de Águas cerca de trinta por cento (30%) referem-se ao aproveitamento do potencial hidráulico. Tais artigos foram regulamentados e aplicados na íntegra, em função do total interesse do governo em viabilizar a produção de energia a baixo custo para atender às demandas das novas industrias 349 350 Novas circunstâncias sociais e econômicas propiciaram a construção de uma nova ordem jurídica para a água.253 A Lei Federal nº 9.433/97 incorpora à ordem jurídica novos conceitos, como: o de bacia hidrográfica, considerada como unidade de planejamento e gestão; o da água como bem econômico passível de ter a sua utilização cobrada; a gestão das águas delegada a comitês e conselhos de recursos hídricos, com a participação, da União, dos Estados, dos Municípios, de usuários de recursos hídricos e da sociedade civil. Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 90) afirmam: O Sistema criado se sobrepõe, mas não se opõe, à estrutura administrativa existente. A Lei mantém as competências dos organismos existentes e potencializa sua atuação. Cria somente os organismos necessários à execução das novas atividades, as quais, por terem base territorial diversa da divisão político-administrativa do País, não poderiam ser exercidas pelos organismos existentes, que têm base municipal, estadual ou federal. As Agências de Água têm como área de atuação uma ou mais bacias hidrográficas e suas competências primordiais são o planejamento dos recursos hídricos da bacia e a cobrança pelo uso da água. A Lei busca assegurar viabilidade ao Sistema: viabilidade financeira, ao destinar os recursos arrecadados com a cobrança pelo uso da água ao custeio dos organismos que integram o Sistema e à constituição dos financiamentos das intervenções identificadas pelo processo de planejamento; viabilidade administrativa, ao criar organismos de apoio técnico, financeiro e administrativo aos colegiados do Sistema – as Agências de Água e a Secretaria Executiva. A parceria que se estabelece entre o Poder Público e a sociedade civil é original, em se tratando da gestão de um bem de domínio público. A nova lei inscreve-se, desse modo, em tendência mundial de reformulação do papel do Estado na gestão de bens e serviços públicos.254 A Lei nº 9.433/97 propõe, como um dos fundamentos da política nacional de recursos hídricos, que a água é um recurso natural limitado e dotado de valor econômico. Sua origem encontra-se na Carta Européia da Água, de 1968, que mencionou o valor econômico da água, embora não tenha abordado a cobrança. Além disso, o Conselho da OECD, de 1972, definiu a necessidade de cobrar pelo uso da água, o que se repetiu na Declaração de Dublin, de 1992, e na Declaração do Rio de Janeiro, também de 1992. Segundo Martín Mateo (1977, p. 224), os aspectos prioritários da água na União Européia são: 253 254 que estavam sendo instaladas no País (foi criado o Conselho Nacional de Àguas e Energia Elétrica – CNAEE, por meio do Decreto nº 1.284, de 1939). Com essa política, o governo privilegiou o setor energético, com prioridade no uso dos recursos hídricos em relação aos demais usuários. Já a “Lei n. 9.433, de 8 de janeiro de 1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, resultou de um longo processo de avaliação das experiências de gestão de recursos hídricos e de formulação de propostas para a melhoria dessa gestão em nosso País. É um marco histórico, de grande significado e importância para os que aqui trabalham com recursos hídricos” (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 89). “[...] em países como a China, com população de 1 bilhão e 200 milhões de habitantes, os lençóis freáticos mostram sinais de exaustão [...] se discute, no Legislativo, a transposição das águas do Rio São Francisco, tal é o seu valor para a Região Nordeste” (LEITE, P., 2000, p .6). Nesse sentido vide a Resolução da ONU (A/RES/50/225 de 1 de Maio de 1996) que trata da Administração Pública e do Desenvolvimento. 350 351 a) La definición de objetivos em cuanto a calidad del agua; b) El vertido de sustancias peligrosas em el medio acuático; c) La vigilancia y control de la calidad de las aguas; d) Medidas específicas para las industrias; e) Investigación y desarollo. Jordaan et al. (1993, p. 31) destacam que uma das maiores dificuldades do uso dos recursos hídricos com atendimento ao desenvolvimento sustentável refere-se a questões financeiras. Um processo de utilização racional da água não pode prosperar sem recursos adequados para a construção, planejamento e operação de sistemas hídricos de informação e de utilização adequada dos recursos. Saliente-se que a cobrança não é propriamente uma novidade no campo normativo brasileiro. O Código de Águas já previu a possibilidade de remuneração pelo uso das águas públicas.255 O Código Civil de 1916 também faculta a cobrança pela utilização do bem público.256 O novo Código Civil de 2002 mantém a possibilidade da cobrança, inovando ao referir-se ao termo mais amplo “entidade” e não às pessoas jurídicas de direito público interno.257 Existem outros exemplos de bens públicos utilizados e pagos, como, por exemplo, o pedágio, onde se paga para passar pela estrada, que é bem de uso comum. Todavia, para a água até então nunca se havia implementado esse princípio. A cobrança é o instrumento econômico adequado à promoção do equilíbrio entre as forças que comandam a oferta e a demanda de água, o que, na verdade, não é novidade na história das relações entre o meio ambiente e a economia, conforme já vimos na ampla difusão dos instrumentos econômicos na proteção ambiental existente no mundo contemporâneo.258 A cobrança, por outro lado, não pode ser vista isoladamente do corpo da norma e dos princípios retores da água, previstos no ordenamento jurídico. Desse modo, por razões metodológicas, como pressuposto para a análise da água, torna-se necessário o detalhamento dos princípios escritos e corporificados no art. 1º da Lei 9.433/97, muitos deles relacionados a aspectos já identificados no capítulo pertinente à importância da água (A água como recurso natural fundamental ontem, hoje e amanhã), no relativo ao direito comparado (experiências jurídicas americana, francesa e alemã) e nas declarações internacionais sobre a água (Declaração de Mar del Plata, Declaração de Dubin, Agenda 21, Declaração de San José, Declaração de Paris, Declaração de Haia) . 255 “Art. 36 É permitido a todos usar de quaisquer águas públicas, conformando-se com os regulamentos administrativos. [...] § 2º O uso comum das águas pode ser gratuito ou retribuído, conforme as leis e regulamentos da circunscrição administrativa”. (Decreto n. 26.643, de 10 de Julho de 1934 – Código de Águas). 256 “Art. 68. O uso comum dos bens públicos pode ser gratuito, ou retribuído, conforme as leis da União, dos Estados, ou dos Municípios,a cuja administração pertencerem” (Lei 3.071, de 1 de janeiro de 1916 – Código Civil Brasileiro). 257 “Art. 103. O uso dos bens públicos pode ser gratuito ou retribuído, conforme for estabelecido legalmente pela entidade a cuja administração pertencerem”. (Lei 10.406, de 10 de Janeiro de 2002). 258 Cf. Parte II deste trabalho – DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE. 351 352 3.2 A ÁGUA DOCE COMO BEM DE DOMÍNIO PÚBLICO FEDERATIVO: A ESFERA PÚBLICA DA ÁGUA A água no direito brasileiro, sempre se revestiu de uma preocupação híbrida de esfera privada259 do direito de propriedade e de esfera pública,260 exemplificativamente, na responsabilização penal dos reservatórios.261 Monteiro (1987, v. 3, p. 5) recorda que “a importância do seu estudo manifesta-se tanto no campo do direito privado como no do direito público, razão por que se deparam com normas que lhes são concernentes não só no direito civil, como no direito constitucional, no direito administrativo e no direito penal”. Expressão do caráter híbrido da legislação sobre águas no Brasil (privado e público), antes do advento da Constituição Federal de 1988 e da Lei 9.433/97, pode ser encontrada na classificação das águas prevista no Código de Águas (Decreto n. 24.643, de 10 de outubro de 1934). Os Capítulos I – Águas Públicas (arts. 1º a 6º), Capítulos II – Águas Comuns (art. 7º) e Capítulo III – Águas Particulares (art. 8º) do Código de Águas, bem demonstram a dicotomia de tratamento das águas em públicas, (que podem ser de uso comum ou dominical), e privadas (águas comuns, fígura do condomínio privado no âmbito da água).262 Freitas, V., (2000, p. 19), em abalizado pronunciamento, analisando apelação cível constante da Revista dos Tribunais, v. 260, p. 539, ocorrida no Estado de São Paulo, destaca: É possível dizer que durante décadas e mesmo sob a vigência do Código de Águas de 1934, o enfoque dado ao tema era sempre mais sob a ótica do direito privado do que do direito público [...] O município de Tietê pediu autorização ao proprietário de um terreno para passar canos de duas polegadas em seu terreno, a fim de abastecer de água um bairro novo. Iniciados os trabalhos, o dono do imóvel acionou o município com negatória de servidão, alegando não ter concordado com a colocação dos canos. O juiz de Direito julgou a 259 260 261 262 Habermas (1984, p. 95) registra que as grandes codificações desenvolveram um sistema de normas para assegurar uma esfera privada – livre intercâmbio das pessoas privadas entre si-, bem como para garantir a instituição da propriedade privada e sua livre circulação, representada pela liberdade de contratação, de empreendimento e de herança. Para Lafer (1991, p. 258-259), na pólis, o que era economia era da casa e dizia respeito à vida privada do indivíduo. Não era público. Já no mundo moderno a distinção entre o social (privado coletivo), ligado às necessidades da vida, e o político (público) foi-se tornando difusa com o crescimento da oikia, ou seja, à medida que as atividade econômicas ultrapassaram a esfera privada da família para se tornarem uma preocupação coletiva. A noção de esfera pública em contraste com esfera privada, aqui assemelha-se à clássica dicotomia públicoprivado, na visão de Kelsen (1992, p. 203-204), que ao diferenciar o direito público do privado, menciona a superioridade/inferioridade dos sujeitos na relação, verbis: “Qualquer pessoa privada é igual a qualquer outra e é inferior apenas ao Estado [...]” Arts. 270 (envenenamento de água potável) e 271 (corrupção ou poluição de água potável) do Código Penal Brasileiro (Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940). Nesse sentido, bem clara a definição de águas particulares no Código de Águas (Decreto n. 24.643 de 10 de julho de 1934), obtida por exclusão das outras categorias: “Art. 8 São particulares as nascentes e todas as águas situadas em terrenos que também o seja, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas comuns de todos, as águas públicas ou as águas comuns”. Por outro lado, são comuns (condomínio privado), “Art. 7 São comuns as correntes não navegáveis ou flutuáveis e de que essas não se façam”. Já com relação às águas públicas havia a categoria de dominicais e de uso comum, sendo dominicais, aquelas que não fossem de uso comum (“Art. 6 São públicas dominicais todas as águas situadas em terrenos que também o seja, quando as mesmas não forem do domínio público de uso comum, ou não forem comuns”). 352 353 ação procedente, ordenando que os canos fossem retirados. Todavia, julgando recurso de apelação, o Tribunal reformou a sentença, concedendo ao autor apenas o direito de ser ressarcido pelos prejuízos causados pela obra e pela desvalorização do terreno. A leitura da decisão colegiada mostra que na análise do caso havia verdadeiro conflito entre princípios de Direito Público e Direito Privado (grifo nosso). Atualmente, na busca da resolução da “tragédia dos comuns”, envolvendo a água, a solução adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro modifica esta configuração híbrida, buscando uma apreciação uniforme, calcando-se na proteção da água (de toda ela)263 como bem público, o que salienta o interesse comum na sua preservação, por se tratar de um recurso natural limitado, representativo da integração do homem à Natureza. Não existem, pois, mais águas particulares no País. Mesmo as nascentes que se encontram nos limites de uma propriedade privada, definidas, então pelo Código de Äguas como privadas, como os rios que servem de limites entre duas propriedades privadas, definidas, então, pelo Código de Águas como comuns (condomínio privado), todas, atualmente, são águas públicas. Pelo disposto na Constituição Federal sobre o tema, as águas passaram a ser consideradas bens dos Estados e da União, pela sua titularidade pública, são tratadas como bens públicos, nos expressos termos do previsto no art. 26, inciso I (águas estaduais) e do art. 20, inciso III (águas federais) da Constituição Federal.264 Para Freitas, V., (2000, p. 22), as águas são estaduais ou federais, não havendo de falar em águas municipais. A concretização destes dispositivos constitucionais ocorreu por meio da Lei 9.433, de 08/01/1997, que no seu art. 1º, expressamente, declara que a água é bem de domínio 263 264 “Utilizando a locução ‘a água é um bem de domínio público’, a Lei 9.433/97 abrange todo o tipo de água, diante da generalidade empregada. Não especificando qual a água a ser considerada, a água de superfície e a água subterrânea, a água fluente e a água emergente passaram a ser de domínio público” (MACHADO, P., 2001, p. 107). “Art. 20. São bens da União: [...] III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; [...] VIII – os potenciais de energia hidráulica; [...] Art. 21 Compete à União: [...] XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão: [...] b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos; [...] d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território; [...] XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso; [...] Art. 26. Incluem-se entre os bens do Estados: I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União. [...] Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra. § 1º. A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que se refere o caput deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas [...]§ 4º. Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia renovável de capacidade reduzida”. 353 354 público265, submetendo-se o seu uso a uma licença concedida pelo órgão administrativo competente. Nesse sentido, Silva, D., (1998, p. 83) afirma, expressamente, destacando a inexistência de direitos adquiridos por tratar-se de norma constitucional: [...] não mais subsiste o direito de propriedade relativamente aos recursos hídricos. Os antigos proprietários de poços, lagos ou qualquer corpo de água devem se adequar ao novo regramento constitucional e legislativo passando à condição de meros detentores dos direitos de uso dos recursos hídricos, assim mesmo, desde que obtenham a necessária outorga prevista na lei citada (grifo nosso). Pompeu (1994, p. 60), por outro lado, ao salientar a diferença entre o regime de águas atual e anterior à Constituição Federal de 1988, afirma: Ao ordenamento jurídico de cada país cabe definir a natureza jurídica das águas nele existentes. No Brasil, a Constituição Federal, de 1988, praticamente, publicizou todas as águas, ao reparti-las entre a União e os Estados, sem deixar espaços para a inclusão das águas municipais, das particulares e das comuns, como anteriormente existia. No contexto da esfera pública do direito das águas, após a Constituição Federal de 1988, deve ser vista a criação, no âmbito federal, da Agência Nacional de Águas (ANA), autarquia sob regime especial, pela Lei 9.984, de 17 de Julho de 2000, que tem, entre suas incumbências, a concessão de outorgas na esfera federal e a organização do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Dispõe-se de leis estaduais sobre gerenciamento de recursos hídricos, com fundamentos semelhantes à legislação nacional, em 17 Estados (Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe) e no Distrito Federal (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETO, 2001, p. 91). No âmbito estadual, pode ser citada, desde 1992, a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (COGERH) do Ceará, responsável pela administração e oferta de água no Estado. A política estadual de recursos hídricos, prevista no artigo 326 da Constituição Estadual, foi disciplinada pela Lei nº 11.996, de 24 de julho de 1992 (MACEDO, 2000, p. 31). Da mesma forma, o Rio Grande do Sul, desde 1994, tem sua Lei das Águas (Lei 10.350, de 30/12/94). O sistema está integrado pelos: Conselho Estadual de Recursos Hídricos; Departamento de Recursos Hídricos, subordinado à Secretaria de Planejamento Territorial e Obras; Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas; e Agências de Bacias Hidrográficas (BARTH, 1999, p. 578). A dominialidade pública da água, afirmada na Lei 9.433/97, não permite ao poder público federal e estadual alienar a água como se fosse seu dominus. 265 “Segundo a definição que nos dá a lei civil brasileira, bens públicos são todos os que fazem parte do domínio da União, dos Estados Federados e dos Municípios, não importando o uso ou fins a que se destinem. Desse modo, a qualidade de públicos atribuída aos bens, decorre precipuamente da condição de pertencerem às pessoas de Direito Público, tal como é condição dos bens particulares pertencerem às pessoas de direito privado” (SILVA, D., 1989, p. 316). O Novo Código Civil define os bens públicos como: “Art. 98 São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem” (Novo Código Civil, Lei 10.406, publicada no Diário Oficial da União em 11 jan. 2002). 354 355 A titularidade do poder público na noção da água como bem público, como em qualquer recurso natural, prende-se à função estatal de administrar (cuidar de algo que não é seu, mas sim da coletividade). Nesse aspecto, o art. 18 da Lei 9.433/97 para corroborar que a água não é bem dominical público, afirma que: “A outorga não implica a alienação parcial das águas que são inalienáveis, mas o simples direito de uso”. Pompeu (1999, p. 608), do mesmo modo, assinala: É de reconhecimento universal que as águas públicas de uso comum são inalienáveis. Outorga-se apenas o direito ao uso, conforme estabelece o Código [Código de Águas, art. 46: “A concessão não importa nunca, a alienação parcial das águas públicas, que são inalienáveis, mas no simples direito ao uso destas águas]. Essa disposição foi mantida pela Lei 9.433/97 [art.18]. Assim, nos termos da Constituição Federal, cabe ao poder público somente outorgar os direitos de uso da água, pois o poder público na água não é dominus no sentido estrito, mas sim administrador de um bem comum a todos. 3.3 A ÁGUA DOCE COMO RECURSO NATURAL LIMITADO COM VALOR ECONÔMICO INTRÍNSECO: A ESFERA PRIVADA DA ÁGUA A noção de que a água constitui um recurso natural limitado possibilitou, conforme já visto, a sua valoração econômica, em razão da sua escassez qualitativa, quantitativa, espacial ou temporal. Nesse aspecto, destacando a existência de uma hidroeconomia, Lanna (1999, p. 593) enfatiza que os problemas de escassez devem ser geridos por meio do regime de propriedade e da transação, instituto do direito privado: [...] Um usuário de um recurso, na medida em que ele se torne escasso, procurará geri-lo para seu próprio proveito. Caso seja possível a negociação entre quem tem o recurso e quem não o tem, mas demanda o seu uso, este último buscará adquirí-lo daquele. O detentor da propriedade, mesmo não tendo necessidade de usar o recurso, deverá geri-lo de forma a obter a maior renda com sua venda. Isso ocorre com o solo, urbano ou rural, um carro, ou um animal com utilidade para o homem, entre inúmeros outros exemplos. E, para que isto ocorra, o atributo da propriedade privada deve ser aceitável pelas instituições e fisicamente viável de ser implementado. A nova legislação hídrica brasileira busca, por um lado, dar uma solução “privada” para a escassez pelo estabelecimento de uma hidroeconomia, só que não de acordo com a utilização absoluta das regras de mercado. Esta solução de esfera privada concentra-se na faculdade de uso da água, pois o domínio pleno, como já foi visto, é público. Cumpre esclarecer que, hodiernamente, o que se vem pagando pela água corresponde à prestação dos serviços de captação e tratamento. A captação e o tratamento tinham valor econômico e eram agregados à água que não possuía valor nenhum (res nullius). Com a 355 356 implementação das leis federais e estaduais de valoração econômica da água, per si, haverá a majoração dos valores das atuais contas de água com parcelas de natureza jurídica remuneratória distintas. Assim, a água, em si, terá um valor a ser agregado aos demais serviços acessórios de captação e tratamento. A água tornar-se-á, pois, o bem principal e os serviços serão acessórios. O Estado do Ceará já cobra pelo bem natural em si, desde 1996 com a aprovação do decreto que regulamenta o artigo 7º da Lei n. 11.996, de 24 de julho de 1992. A tarifa para o uso industrial, dependendo da vazão consumida (metros cúbicos por mês), atinge o valor máximo de R$ 0,60/m3 (MACEDO, 2000, p. 31). No ano de 2002, o processo de cobrança pelo uso da água na Bacia do Paraíba do Sul, bacia hidrográfica federal que percorre os Estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, foi iniciado com a constituição do Comitê para a integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba dos Sul – CEIVAP.266 A cobrança decorrente do valor econômico declarado à àgua vincula-se a uma variação histórica do trato da matéria pelo poder público. Assim, o poder público brasileiro, a exemplo dos modelos do direito comparado americano, alemão e francês, adotou diferentes concepções e estratégias no tratamento da questão hídrica (de total descaso com a superexploração dos recursos naturais e de desenvolvimento sustentável). A explicação para estas variações no entendimento e no tratamento da questão ambiental pelo Estado deve ser compreendida muito além de seu significado estritamente ambiental: tem origem e reflete diretamente nos caminhos que o Estado assumiu perante os processos produtivos e as transformações da organização social,267 de forma mais ampla, portanto, do que se identifica em uma análise estritamente ecológica, conforme já analisado na parte terceira desta tese. Assim, conforme analisado anteriormente neste trabalho, ao fenômeno econômico o Estado responde historicamente de diferentes modos. Do mesmo modo, a legislação brasileira refletirá estas mudanças, por meio de distintas normas e arranjos institucionais correspondentes, na busca de integração normativa do econômico e do ético-ecológico nos recursos hídricos brasileiros. Destacando esta variação legislativa do trato da questão ambiental, Goldenstein (2000, p. 166) afirma que a legislação ambiental, que remonta à legislação colonial no Brasil, apesar de seu cunho formalmente protetivo, foi de pouca eficácia social. O próprio Estado Português, que reservava apenas aos magistrados o direito de autorizar o corte da madeira, desrespeitava a sua própria norma com a exploração indiscriminada de madeira destinada à reconstrução de Lisboa e a alimentação dos estaleiros portugueses. 266 A nova política de recursos hídricos, na bacia do rio Paraíba do Sul, é definida pela seguinte legislação: Lei Federal nº 9.433/97, política nacional de recursos hídricos, Lei Estadual nº 7.663/91, política estadual de recursos hídricos de São Paulo, Lei nº 3.239/99, política estadual de recursos hídricos do Rio de Janeiro, Lei nº 13.199/99, política Estadual de recursos hídricos de Minas Gerais. O seu principal objetivo é assegura o fornecimento de água de boa qualidade e em quantidade suficiente par os diversos usos, da atual e das futuras gerações dos usuários de água dos Estados-membros São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. BRASIL. Conselho nacional de recursos hídricos. Resolução n. 19, de 14 de março de 2002, que aprova o valor de cobrança pelo uso dos recursos hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul. Disponível em: <<http://www.cnrh-srh.gov.br/resoluções/index.htm>>. Consulta em: 11 jun. 2002. 267 Cf. parte II e III do presente trabalho. 356 357 Assim, conforme já analisado no estudo relativo aos instrumentos econômicos, o uso de instrumentos de comando e direção (normas meramente regulativas sancionadoras – puramente heterônomas) pelo Estado brasileiro, apesar de ter tido e continuar tendo ampla utilização,268 não se tem mostrado eficaz na proteção ambiental. Assim, Goldenstein (2000, p. 168) afirma que: A área ambiental deixa, paulatinamente, desde o final da década de 80, de centrar-se exclusivamente nos procedimentos meramente reguladores ou normativos, em que o poder público dita à sociedade regras de conduta. Segmentos da área ambiental apercebem-se de que estas normas e critérios vêm sendo adotadas, ou não, em função de processos econômicos e sociais que, na verdade, sempre escaparam à compreensão e à ação tecnocrática dos agentes públicos envolvidos. Há um esgotamento das políticas públicas setoriais e parciais que não buscam a comunicação com as esferas social e econômica para resolução da complexa problemática ambiental, conforme se evidencia pela análise já feita das obras de Luhmann e Habermas, pertinentes à crise ambiental e à legitimação do capitalismo tardio, que não admite as soluções simplistas dos modelos tradicionais de normas jurídicas puramente heterônomas que se vinculam à tradicional soberania estatal (extremamente enfraquecida pelo fenômeno da globalização, consoante análise realizada na terceira parte deste trabalho). Aqui se verifica a busca de novos mecanismos que retratem a necessária integração sistêmica entre os subsistemas sociais, relevantes para a crise ecológica, já analisados quando se tratou da visão de Luhmann (1989) sobre a crise ecológica. O desenvolvimento de conceitos e de procedimentos negociais passa a ser, pois, instrumento privilegiado do planejamento ambiental. Há uma valorização da legitimação pelo procedimento.269 A utilização dos instrumentos econômicos, que enseja a transferência de responsabilidades para o cidadão, passa a ser a nova tônica da proteção ambiental e, neste contexto, deve ser visualizada a valorização econômica da água por meio do critério econômico da escassez, intimamente vinculado ao mecanismo de mercado da oferta e da procura. O valor econômico declarado à água pela legislação de recursos hídricos, apesar de torná-la uma mercadoria, constitui-se, pois, em mecanismo de busca da eficiência protetiva do meio ambiente, por meio do uso de instrumentos econômicos que favorecem a participação e a negociação dos atores sociais e econômicos da água, sem que sejam desprezados os aspectos éticos que ensejam uma atuação estatal regulativa. 268 269 A vigente Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, representa, mais uma tentativa de utilização eficaz do modelo tradicional de comando e controle, ao dispor sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, dentre outras providências). “Para poder apresentar uma história própria do processo jurídico, o comportamento dos participantes dentro dele tem de ser elegível e assim também atribuível. Os processos estão estruturalmente organizados de tal forma que realmente não determinam a ação, mas trazem-na, contudo, para uma perspectiva funcional determinada” (LUHMANN, 1980, p. 41). No Comitê de Bacia estrutura-se um processo que não determina a priori qual será o uso da água e o valor de sua cobrança, mas no qual são estabelecidos caminhos para esta comunicação entre diversos sistemas funcionais. 357 358 3.4 A GESTÃO CENTRADA NA MULTIPLICIDADE DE USOS DA ÁGUA E NA PROTEÇÃO DE PRECEITOS ÉTICOS VINCULADOS À VIDA DOS ELEMENTOS SENSITIVOS DA BIOCENOSE Apesar do Estado atribuir relevante valor à participação social na escolha da utilização da água pelo mercado, na conformidade das atividades negociais da oferta e da procura, a legislação deve refletir os valores éticos de proteção ao homem e aos animais, visando à integração da visão antropocêntrica e ecocêntrica, analisadas na primeira parte desta tese. Conforme preceitua o Capítulo 18 da Agenda 21, deve-se reconhecer o caráter multis-setorial do desenvolvimento dos recursos hídricos, no contexto do desenvolvimento socioeconômíco, bem como os interesses múltiplos na utilização desses recursos para o abastecimento de água potável e saneamento, agricultura, indústria, desenvolvimento urbano, geração de energia hidroelétrica, pesqueiros de águas interiores, transporte, recreação, manejo de terras baixas e planícies e outras atividades. Os planos racionais de utilização da água para o desenvolvimento de fontes de suprimento de água doce, subterrâneas ou de superfície e de outras fontes potenciais, têm que contar com o apoio de medidas concomitantes de conservação e minimização do desperdício (AGENDA 21, 1997, p. 331-332). Assim, a Agenda 21 (1997, p. 333-347), a exemplo dos outros documentos internacionais posteriores a ela, conforme já analisado no Capítulo II desta parte do trabalho, ao tratar dos Recursos Hídricos e Desenvolvimento Sustentável, contém princípios importantes, perfeitamente coerentes com o sistema jurídico constitucional e legal brasileiro, e que constam como princípios básicos da Lei 9.433/97. Entre esses princípios, merecem destaque pelos seus aspectos éticos e econômicos: • o manejo integrado dos recursos hídricos, considerando a água parte integrante do ecossistema, bem natural, econômico e social cuja quantidade e qualidade determinam a natureza de seu uso (18.8 ). • a consideração no manejo dos recursos hídricos de aspectos relacionados à terra e à água, a ser feita ao nível de bacia ou subbacia (18.9). • a integração das medidas de proteção e conservaçâo de fontes de água, com o planejamento do uso da terra, recursos florestais, proteção de margens e encostas (18.12.b). • a consideraçâo da água doce como um recurso indivisível, exigindo que o manejo hídrico seja holístico e fundado em um exame equilibrado das necessidades da população e do meio ambiente (18.35 e 18.36) • a disciplina da ocupação de áreas de captação e de recarga de aqüíferos (18.40. a. v.). • a aplicação do princípio usuário-pagador (18.40.b.i). Devem-se conjugar, ao mesmo tempo, os valores antropocêntricos e ecocêntricos na busca do múltiplo uso da água, que respeitem os homens e os animais. 358 359 Em uma situação catastrófica, a simples administração do recurso água, para que as pessoas tenham o que beber, parece uma tarefa imensa – mesmo desconsiderando outros aspectos relevantes, como o uso na agricultura e na indústria. Sob este prisma, o fornecimento de água para outros fins, tais como a preservação do ecossistema por meio da dessedentação de animais, pareceria ser algo de inferior prioridade. Com efeito, a questão é mostrada, muitas vezes, como um conflito entre demandas competitivas, como se estivéssemos diante de uma opção entre a água para a população e para a vida selvagem, aqui amparada nos animais. Entretanto, como bem indica Selborne (2002, p. 46), em uma ética antropocêntrica mitigada, “isso não leva em conta os benefícios indiretos que os ecossistemas sadios proporcionam à humanidade”. Os documentos internacionais protetivos do meio ambiente e do desenvolvimento, tal como o Relatório Brundtland (Nosso Futuro Comum) e a Agenda 21 da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e o Meio Ambiente marcaram uma mudança importante na forma como visualizamos a água, o homem e o meio ambiente. Como bem coloca Selborne (2002, p. 46), “Um princípio fundamental que emergiu dessa mudança foi o de que a vida das pessoas e o meio ambiente estão profundamente interligados, e que os processos ecológicos mantêm o planeta capacitado a sustentar a vida”. Assim, nesse momento, no trato ético do uso da água, verifica-se a união das esferas privadas e públicas pela expressa valorização do seu elemento vital para os elementos sensitivos da biocenose (homens e animais), com a conseqüente limitação ponderada e proporcional do privado em nome do público. 3.5 A GESTÃO DE ÁGUA DESCENTRALIZADA E PARTICIPATIVA NOS COMITÊS DA BACIA HIDROGRÁFICA Conforme assinalam Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 79-80), houve enorme modificação na tradição legislativa brasileira com a administração da água centrada na Bacia: A administração dos problemas de recursos hídricos, levando-se em conta os limites de uma bacia hidrográfica, não é uma tradição no Brasil. Até os anos 70, as questões de recursos hídricos eram sistematicamente consideradas a partir dos objetivos do sub-setor usuário da água ou a partir de políticas específicas de combate aos efeitos das secas e das inundações. A exceção foi a criação, no fim dos anos 40, da Comissão do Vale do São Francisco, com uma proposta de desenvolvimento integrado da bacia, que drena territorio de 6 Estados e do atual Distrito Federal. [...]A partir dos anos 70, no entanto, a ocorrência de sérios conflitos de uso da água começou a suscitar discussões nos meios acadêmico e técnico-profissional sobre como minimizar os problemas decorrentes. Os conflitos envolviam não só setores usuários diferentes, como 359 360 também os interesses de unidades político-administrativas distintas (Estados e Municípios). Nesse período, o poder se achava muito concentrado na área federal, tendo partido, justamente, de técnicos do Governo Federal a iniciativa de se criarem estruturas para gestão dos recursos hídricos por bacia hidrográfica (grifo nosso). Dispõe a Constituição Federal no “caput” do art. 225, integrante do Título da Ordem Social: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (grifo nosso). Dentre os princípios insculpidos na Constituição Federal de 1988, no referido artigo 225 da C.F./88, destaca-se o princípio da participação (caput): a) princípio da obrigatoriedade da intervenção estatal (caput e parágrafo primeiro); b) princípio da prevenção e precaução (caput, § 1º, inciso IV, com a exigência do EIA/RIMA); c) princípio da informação e da notificação ambiental (caput e § 1º, VI); d) princípio da educação ambiental (caput e § 1º, VI); e) princípio da participação (caput); f) princípio do poluidor pagador (§ 3º); g) princípios da responsabilidade da pessoa física e jurídica (§ 3º); h) princípio da soberania dos Estados para estabelecer sua política ambiental e de desenvolvimento com cooperação internacional (§ 1º do artigo 225 combinado com as normas constitucionais sobre distribuição de competência legislativa); e i) princípio do desenvolvimento sustentado: direito intergerações (caput) (SILVA, J., 1994, p. 36; MACHADO, P., 1995, p. 34; ANTUNES, 1990, p. 75; BENJAMIN, 1993b, p. 226; MARTÍN MATEO, 1991, p. 32). Portanto, a imposição à coletividade do dever de defesa e preservação do meio ambiente para as presentes e futuras gerações, em atuação comum com o Poder Público, institucionaliza a participação popular como elemento integrante das políticas públicas ambientais, em sua definição, gestão e fiscalização. Assim, o disposto no art. 1º, inciso VI da Lei 9.433/97, constitui-se em uma regra concretizadora do princípio da participação, aplicável na gestão descentralizada dos recursos hídricos por meio do Comitê de Bacia. A participação popular da sociedade civil é condição essencial para a plena eficácia das normas de proteção ao meio ambiente e da gestão eficaz dos recursos hídricos proposta na Lei 9.433/94. Roberto Castro (1992, p. 67) traduz com precisão essa imprescindível relação do direito com a sociedade: “Somente quando interligarem a lei e a sociedade num amálgama de vontade política decididamente reorientadora do processo de desenvolvimento, poder-se-ão 360 361 atingir as metas ecológicas em benefício da humanidade e da geografia econômica do Planeta”. A Constituição não está indiferente a essa necessidade da sociedade alicerçada na democracia. Assim, encontramos lúcida disposição da Constituição brasileira em inserir a participação coletiva na gestão ambiental. Ressaltamos que não nos referimos a qualquer tipo de participação, mas à participação nos processos legislativos e administrativos, bem como na proteção judicial ambiental. O artigo primeiro da Carta de 1988 consagra a cidadania como fundamento do Estado Democrático de Direito, instituído pela Assembléia Nacional Constituinte, conforme o preâmbulo ressalta, destinado a assegurar o bem-estar, o desenvolvimento e o exercício dos direitos individuais e coletivos, entre outros. No artigo 5o da Constituição Federal, podemos enumerar diversos meios assecuratórios da participação nas decisões administrativas, tais como: o direito à informação, como forma de assegurar a conseqüente manifestação do pensamento; o direito de petição, que garante que o cidadão receba dos órgãos públicos informações necessárias para defesa de seus direitos ou contra ilegalidade e abuso de poder; direito de certidão (visa à obtenção de certidões para defesa de direitos ou esclarecimento de situações). Há, por fim, o direito de receber, dos órgãos públicos, informações de interesse particular, coletivo ou geral no prazo legal, salvo quando ocorrer necessidade de sigilo imprescindível à segurança do Estado e da sociedade. O constituinte não facultaria ao cidadão tamanho leque de acesso às informações, se não fosse para que este pudesse participar e se expressar. O direito à informação constitui base para o direito à participação, visto que, sem esta, jamais poderá o indivíduo formar opinião e se manifestar, ou, até mesmo, propor a intervenção do Poder Judiciário. No âmbito dos recursos hídricos, o direito à informação, correlato ao da participação na sua instrumentalização, corporifica-se no disposto no art. 5o da Lei 9.433/97, que prevê nos seus incisos os instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, devendo ser destacado o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos.270 Nesse aspecto, Tucci; Hespanhol; Cordeiro Netto (2001, p. 49) afirmam: As informações hidrometeorológicas e de qualidade da água são indispensáveis para se promover um adequado aproveitamento dos recursos hídricos em bases sustentáveis. A falta de informações aumenta a incerteza nas decisões, acarretando resultados negativos no uso e aproveitamento dos recursos hídricos. De um modo geral, o custo associado à falta das informações é geralmente superior ao custo da obtenção do dado e de sua análise final em um projeto (grifo nosso). O planejamento e gestão de recursos hídricos dependem fundamentalmente de informações confiáveis, tanto no que diz respeito à demanda como à oferta de água. Esta última só poderá ser adequadamente estimada se existirem redes de monitoramento que gerem dados sobre variáveis de interesse no setor de quantidade e de qualidade das águas. 270 Nos termos do art. 25 da mesma Lei: “O Sistema de Informação sobre Recursos Hídricos é um sistema de coleta, tratamento, armazenamento e recuperação de informações sobre recursos hídricos e fatores intervenientes em sua gestão”. 361 362 Aqui interessa conhecer a variabilidade espacial e temporal das águas atmosféricas, superficiais e subterrâneas. Em âmbito mais abrangente, o dever de preservação e defesa dos recursos hídricos, imposto à coletividade, revertido em direito de participação, traz como correlato o direito à informação – qualitativamente satisfatória – sobre dados ambientais, mantidos não apenas pelos órgãos ambientais estatais, como também pelos agentes econômicos envolvidos na utilização de recursos naturais, uma vez que o ambiente constitui bem de uso comum do povo e os recursos hídricos são de domínio público. Conforme destacam Braga; Porto; Tucci (1999, p. 637), as informações básicas necessárias a um adequado gerencimento dos recursos hídricos envolvem: Características físicas dos sistemas hídricos: relevo, hidrografia, geologia, solo, cobertura vegetal, ações antrópicas, obras hidráulicas, entre outros; Comportamento hidroclimatológico: séries históricas e em tempo real de variáveis climáticas, fluviometria, sedimentometria e qualidade da água. Dados socioeconômicos como: dados censitários sobre população, indústrias, produção e ocupação rural e, principalmente, dados referentes ao uso e impacto dos recursos hídricos (grifo do autor). Trata-se de dados técnicos que deverão ser interpretados e traduzidos para o Comitê de Bacia por meio da Agência de Água.271 A participação popular engendra numerosas indagações, especialmente como alternativa – não excludente – para a democracia representativa. Coloca em causa, também, a distinção entre Estado e sociedade civil,272 distinção esta que, progressivamente, tem seu sentido alterado – não apenas em virtude da relevância que toma a democracia participativa, mas, principalmente, pelas crescentes atuações de substituição e compensação das disfunções dos mecanismos de mercado. A institucionalização da participação popular representa, ademais, medida compensatória da crise de legitimação que sofre o Estado, além de, economicamente, reduzir os custos da administração. Como afirma Priscolli (2000, p. 4), o controle da água é o controle da vida e da qualidade de vida, por ser um aspecto tão relevante da vida da comunidade deve esta participar das decisões, pois “o processo de participação constrói-se na noção clássica da teoria democrática: aqueles que são afetados por uma decisão devem sobre elas se manifestar para que possam ser considerados cidadãos”. Para a gestão de águas, exigem-se modelos distintos do tradicional modelo de administração pública, fundado na decisão exclusiva do órgão governamental, não obstante esta seja fundamentada e com ampla publicidade. Para a administração pública tradicional a decisão pode ser tomada sem a participação popular. 271 272 Art. 41 da Lei 9.433/97: “As agências de água exercerão a função de secretaria executiva do respectivo ou respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica”. A respeito da regulamentação e natureza jurídica das Agências de Água, Barth (1999, p. 580) sugere que as Agências de Água ainda deverão ser objeto de lei específica e os estudos preliminares indicam a natureza jurídica de fundação de direito privado, com gestão mista, entre governo e representantes dos usuários das águas e de organizações civis de recursos hídricos. Cf. BOBBIO, 1987, p. 33-52. Para detida análise das acepções do termo “sociedade civil”,. 362 363 O que se deseja na gestão das águas pela sua relevância é a participação dos cidadãos no processo decisório, na busca de um consenso-participativo coletivo, oriundo de informações fornecidas à população pelo Estado antes da decisão final. A decisão final deverá ser tomada pela coletividade (PRISCOLLI, 2000, p. 3). A defesa e a preservação dos recursos hídricos pela via participativa, compreende – além das formas acima citadas, inseridas no campo da formulação e da execução de políticas públicas – a atuação no processo legislativo, por meio da iniciativa popular na apresentação de projetos de leis complementares ou ordinárias, em todos os níveis, por certo número de cidadãos e, finalmente, pela participação do Poder Judiciário, obedecendo as vias processuais previstas.273 Em suma, a inclusão da sociedade na gestão hídrica, por meio do Comitê de Bacia, transcendendo os estritos limites da administração formal, possibilita a plena eficácia das normas de proteção do meio ambiente. A cidadania participativa constitui-se em instrumento de defesa dos recursos hídricos, que visa ultrapassar as fronteiras geográficas e políticas institucionais. 273 Cf. MILARÉ, 1990. p. 30-33. Para aprofundamento das formas de participação popular por meio do Poder Judiciário. 363 364 4 A COBRANÇA PELA UTILIZAÇÃO DA ÁGUA NA POLÍTICA NACIONAL BRASILEIRA DE RECURSOS HÍDRICOS 4.1 A COBRANÇA COMO MEDIDA DE VALORIZAÇÃO DO RECURSO HÍDRICO NA ESFERA PÚBLICA E PRIVADA A medida de valor de algum bem – seja na visão econômico-liberal, seja na visão de bem jurídico como objeto de relações jurídicas – está localizada no interesse despertado por este bem, para satisfação de necessidade específica ou na proteção de determinado valor, conforme análise já realizada da obra de Hessen (1967, p. 42).274 Assim, existem vários titulares de interesses à gestão da utilização dos recursos hídricos. O primeiro deles é o Estado Federal Brasileiro, na figura de seus componentes (a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios) que, na qualidade de detentores do domínio público, são interessados na sua fiscalização, proteção e manutenção em nome do bem da coletividade. Há também o interesse difuso das gerações presentes e futuras na proteção dos recursos naturais hídricos e o interesse dos outros seres da biocenose275. Neste âmbito, destaca-se a esfera pública da água na busca da sua proteção ética. O outro grupo de interesse consiste dos usuários da água como bem econômico: o setor elétrico, a indústria, a irrigação e a navegação. Neste âmbito, ressalta-se a esfera privada da água e a sua valoração econômica como fator de produção de bens e serviços. Para a esfera privada, não constitui surpresa que a valoração econômica apareça como mecanismo, por excelência, de resolução dos conflitos. Conforme visto na segunda parte desta tese, muitos problemas ecológicos, aparentemente, assemelham-se a problemas econômicos. A distribuição de recursos escassos, a análise de custos e benefícios, de interesses múltiplos competitivos são problemas vividos pelo recurso hídrico e pelos bens, em geral, econômicos e ecológicos. O fato de o mercado medir a intensidade das preferências (“traduzidas” na vontade de pagar-preço) permite uma comparação dos desejos individuais. Entretanto, conforme analisado na parte III deste trabalho, o mercado (a valoração econômica) não pode medir ou quantificar determinados valores e crenças. Nesse momento, surgem as normas jurídicas e o papel do Estado de proteção de valores e crenças não quantificáveis pelo mercado. A Lei n. 9.433, de 08/01/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos, configura, pois, um marco que reflete uma profunda modificação valorativa no que se refere aos usos múltiplos da água, às prioridades desses usos, ao seu valor ético e econômico, à sua finitude e à participação popular na sua gestão. 274 Cf. Parte III deste trabalho O PAPEL NORMATIVO DO ESTADO REGULADOR SUPERAÇÃO E SÍNTESE DOS ASPECTOS ÉTICOS E ECONÔMICOS DO ( : MEIO AMBIENTE . ) 275 A biocenose é o conjunto equilibrado de animais e plantas que ocupam de maneira cíclica ou permanente um dado biótopo, e cujas populações não parecem modificar-se rapidamente ( FRIEDEL, 1987, p. 109). 364 365 A Política Nacional de Recursos Hídricos rege-se pelos seguintes fundamentos: a água é um bem de domínio público276 (inciso I); a água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico (inciso II); em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais (inciso III); a gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas (inciso IV); a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (inciso V); e a gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades277 (inciso VI). Tais preceitos basilares já foram analisados no Capítulo anterior, restando, agora, a apreciação jurídica da cobrança pelo uso da água. Assegurar à atual e às futuras gerações além dos seres vivos em geral a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos são os objetivos a serem alcançados, portanto, por meio da Política Nacional de Recursos Hídricos e da cobrança pelo uso da água doce. Os instrumentos necessários à concretização desses objetivos e à gestão integrada dos recursos hídricos são, de acordo com o art. 5° dessa Lei, os Planos de Recursos Hídricos (inciso I); o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água (inciso II); a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos (inciso III); a cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso IV); a compensação a municípios (inciso V); e o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos (inciso VI). A Lei n. 9.433/97 também criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, com o objetivo de coordenar a gestão integrada das águas (inciso I); arbitrar administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos (inciso II); implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos (inciso III); planejar, regular e controlar o uso, a preservação e a recuperação dos recursos hídricos (inciso IV); e promover a cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso V).278 Integram esse sistema o Conselho Nacional de Recursos Hídricos, os Conselhos de recursos hídricos dos Estados e do Distrito Federal, os comitês de bacia hidrográfica, os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais e municipais, cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos e as agências de água. Os conselhos nacional e estaduais e os comitês de bacia hidrográfica são colegiados democráticos, constituídos por representantes dos governos e da sociedade civil, representativos, como já visto, da participação da sociedade na proteção ambiental e dos recursos hídricos, compreendendo segmentos dos usuários e entidades não-governamentais, para a gestão dos recursos hídricos. Ou seja, todos os setores interessados decidem como 276 277 278 A respeito da noção de bem de domínio público, vide neste trabalho a PARTE II, referente à DIMENSÃO ECONÔMICA DO MEIO AMBIENTE e a sua proteção jurídica como direito fundamental na análise do “Macrobem Ambiental como bem de uso comum do povo”. Interessante observar a ênfase dada aos consumidores dos recursos hídricos, que são tratados de uma forma individualizada (“usuários”) e coletiva (“comunidades”). Assinalando as dificuldades federativas e econômicas desta cobrança, Freitas (2000, p. 22) assinala: “É evidente que o tema é polêmico e que acarreta sérias conseqüências econômicas. Imagine-se, a título de exemplo, uma indústria que venha utilizando há anos as águas de um rio e que se veja obrigada, agora, a pagar pelo uso. É óbvio que isso representará um custo maior e exigirá da empresa um realinhamento de suas contas. Tal fato levou o presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo a reivindicar, em congresso realizado em 27 e 28/09/99, na capital paulista, a cobrança em todas unidades da Federação, sob pena de elevarem-se os custos dos produtos dos Estados que fizerem a exigência”. 365 366 planejar e gerenciar de forma participativa o uso da água, compatibilizando os seus diversos usos: abastecimento, produção de energia, uso industrial, irrigação, transporte, dentre outros. As agências de água brasileira, a exemplo das francesas, vão funcionar como secretarias executivas dos comitês de bacias hidrográficas e terão por atribuição, nos termos do art. 44 da Lei de Política Nacional de Recursos Hídricos: Manter balanço atualizado da disponibilidade de recursos hídricos em sua área de atuação (inciso I); manter o cadastro de usuários de recursos hídricos (inciso II); efetuar, mediante delegação do outorgante, a cobrança pelo uso de recursos hídricos (inciso III); analisar e emitir pareceres sobre projetos e obras a serem financiados com recursos gerados pela cobrança pelo uso de recursos hídricos e encaminhá-los à instituição financeira responsável pela administração desses recursos (inciso IV); acompanhar a administração financeira dos recursos arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos em sua área de atuação (inciso V); gerir o Sistema de Informações sobre Recursos Hídricos em sua área de atuação (inciso VI); celebrar convênios e contratar financiamentos e serviços para a execução de suas competências (inciso VII); elaborar a sua proposta orçamentária e submetê-la à apreciação do respectivo ou respectivos comitês de bacia hidrográfica (inciso VIII); promover os estudos necessários para a gestão dos recursos hídricos em sua área de atuação (inciso IX); elaborar o Plano de Recursos Hídricos para apreciação do respectivo comitê de bacia hidrográfica (inciso X); dentre outras tarefas. As agências de água são, pois, os braços estatais destinados a efetivar as decisões oriundas do Comitê de Bacia, que declaram preceitos éticos e econômicos relacionados à água. Trata-se, na verdade, da gestão cotidiana dos recursos hídricos. Busca-se, pois, assegurar a disponibilidade da água, tanto em termos de qualidade como de quantidade, considerando-se as necessidades e os usos correntes desse recurso. O nível da demanda pelo uso, a localização dos recursos e das necessidades, as práticas correntes de captação e de dejeção, as obras e redes existentes, as instituições e os mecanismos de financiamento estão incluídos no rol das variáveis mais importantes a serem consideradas. A gestão dos recursos hídricos tem por objetivo satisfazer os diversos tipos de demanda com o menor custo, limitar certos efeitos negativos ou excessivos e levar em conta os interesses dos diversos atores sociais ou institucionais (União, Estados-membros, Municípios, Distrito Federal, Sociedade) na medida de seu peso social ou de suas possibilidades de ação. Assim, a legislação analisada almeja vários níveis: a escolha dos usos e a melhor forma de gerir cada um deles. O regime de outorga de direitos de uso dos recursos hídricos, previsto nessa Lei (seção III do capítulo IV), visa assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso à água. A gestão deverá situar-se no, tempo, presente e futuro para a plena realização do desenvolvimento sustentável em solidariedade que transcende o espaço e o tempo. 366 367 A gestão prospectiva dos recursos hídricos tem como variáveis de ação elementos do domínio biofísico e de estilo de desenvolvimento territorial desejado (estruturas de consumo, opções tecnológicas, localização e organização do espaço). Nela, os intrumentos de mercado (instrumentos econômicos) devem, não só considerar a demanda, mas, também, modificá-la. Aqui se busca, também, um aspecto éticointerventivo, não puramente liberal, de preceitos deontológicos vinculados a direitos fundamentais. Nessa gestão, verifica-se a integração dos elementos éticos, econômicos e sociais estudados nas partes anteriores desse trabalho. Há, ainda, a consideração de forma ampla da proteção ambiental e do desenvolvimento nas políticas públicas. Evita-se, pois, o trato isolado da questão dos recursos hídricos, em enfoque único e exclusivo, quer de substrato para o desenvolvimento, quer de bem ambiental intocável. A importância dos elementos do domínio biofísico e do estilo de desenvolvimento territorial desejado pode ser analisada na gestão descentralizada, que leva em consideração o modelo federativo brasileiro. Exigem-se, por outro lado, nas mútuas relações dos entes federados, harmonia e eficiência no trato das questões hídricas agrupadas nos comitês de bacia hidrográficas. A gestão da bacia hidrográfica, embora centrada em aspectos hidrológicos, nunca se tornará efetiva sem a preocupação de transposição para o Comitê de Bacia da questão federativa, razão pela qual se exige uma abordagem holística de apreciação do natural e do político-social. 4.2 NATUREZA JURÍDICA PRIVADA DA ÁGUA E SUA CLASSIFICAÇÃO COMO BEM 4.2.1 Como podem ser caracterizados os recursos hídricos na classificação dos bens prevista no novo código civil brasileiro? No âmbito da classificação dos objetos da relação jurídica, utilizando como paradigma a esfera privada do Código Civil, como podemos caracterizar a água? Fixar a noção exata dos recursos hídricos, como objeto de relações jurídicas, assume especial importância, porque rigor é fundamental em qualquer ciência. Entretanto, não há, na doutrina nacional, trabalhos sistematizados sobre o tema que, conforme já visto, admite uma esfera privada concorrente à pública na idéia de usufruto da água. Assim, os recursos hídricos precisam ser caracterizados como coisas ou bens para o Direito, para que o operador saiba, efetivamente, aplicar corretamente as normas pertintes a este diamante do século XXI. 367 368 A relação jurídica é uma vinculação entre duas ou mais pessoas, cujo objeto pode ser uma coisa sobre a qual o titular pode praticar certos atos, devendo os terceiros absterem-se de qualquer ingerência (direitos reais), ou ainda uma ação ou prestação do sujeito passivo da relação jurídica (direitos obrigacionais) e, finalmente, os que recaem sobre a própria pessoa do titular e que chamamos direitos de personalidade. Ao estudar a relação jurídica, devemos examinar, em primeiro lugar, os seus sujeitos - pessoas físicas ou jurídicas,279 para, em seguida, classificar os objetos sobre os quais recaem os direitos e, desse modo, poder-se-ão analisar os atos e fatos que criam, modificam ou extinguem direitos - os fatos e atos jurídicos previstos na Lei 9.433/97 pertinentes à cobrança pelo uso da água. A análise dos sujeitos principais (os proprietários da água) já foi parcialmente feita na análise da titularidade pública da água, restando a análise dos papéis jurídicos do Comitê de Bacia e de outros valores relevantes a ser feita quando do exame dos mecanismos normativos de resolução dos conflitos da água. O objeto da relação jurídica é um bem, em sentido amplo. É tudo o que satisfaz uma necessidade humana. O bem jurídico seria, assim, todo interesse protegido pela lei, seja material, como a água, ou imaterial, como a outorga de uso da água. Bem280, portanto, é o objeto da relação jurídica, sendo bens em si a água e o seu direito de outorga. Em sentido amplo, o conjunto de bens, de qualquer ordem, pertencentes a um titular, constitui o seu patrimônio. Para Beviláqua (1980, p. 167): “o conjunto das relações jurídicas suscetíveis de avaliação pecuniária”. O Novo Código Civil brasileiro (Lei 10. 406/2002), paradigma da análise dos objetos em uma Teoria Geral do Direito, apresenta diferentes classificações dos bens, utilizando-se de diferentes fatores de discriminação, o Código de águas (Decreto-lei 24.643, de 10/07/1934) e a Lei 9.433/97, também. Assim, faremos um paralelo entre as classificações legais dadas pelo Código com a legislação hídrica, visando: • facilitar a compreensão dos diferentes aspectos da água como objeto das relações jurídicas; • agrupar as várias espécies do gênero para aproximar as que apresentam um elemento comum e afastar as que não apresentam elemento comum; • permitir uma análise sistemática da água no ordenamento brasileiro, comparando a sua esfera privada com a pública, para decompô-la na sua essência valorativa; • verificar a correlação entre a outorga (esfera pública) e a cobrança pela água (esfera privada ou pública-híbrida); 279 280 Neste aspecto, na PRIMEIRA PARTE do trabalho, analisamos as dificuldades transponíveis de personalização dos animais, das plantas e dos elementos abióticos em geral da Natureza, concluindo que o tratamento jurídico dos mesmos ocorre como res no nosso ordenamento, nada impedindo uma evolução no sentido de serem “personas” representadas. Os termos “coisa” e “bem” eram usados no Código de 1916, de forma aparentemente indiferente, para designar o objeto do direito. O que ensejou discussões doutrinárias sobre a diferença desses dois termos. O Novo Código Civil, entretanto, buscando evitar esta discussão, utilizou-se sempre do termo “bem” na Parte Geral como todo e qualquer valor corpóreo ou incorpóreo, que pode ser objeto de uma relação de direito. 368 369 • analisar pontos de conflito entre a esfera privada (Código Civil, Código de Águas) e a esfera pública (Constituição Federal e Lei 9.433/97). 4.2.2 A água e a outorga de direitos de uso são um bem móvel ou imóvel? Fundada na efetiva natureza dos bens, a classificação da mobilidade de um bem é das mais importantes. Os seus principais efeitos práticos são: os bens móveis são adquiridos por simples tradição, enquanto os imóveis dependem da escritura pública e registro no Cartório de Registro de Imóveis; estes exigem, também, para serem alienados, a outorga uxória, o que não acontece com os móveis; usucapião de bens imóveis exige prazos maiores do que os de bens móveis; hipoteca, em regra, é direito real de garantia reservado aos imóveis, enquanto o penhor é reservado aos móveis; só os imóveis são sujeitos à enfiteuse, enquanto os móveis prestam-se ao contrato de mútuo; enquanto os imóveis estão sujeitos, em caso de alienação, ao imposto de transmissão (ITIV e ITCD), a venda de móveis é geradora do imposto de circulação de mercadorias e serviços (ICMS). Além disso, observa-se que só os bens móveis podem ser objeto de furto e de roubo (“coisa alheia móvel”). Beviláqua (1980, p. 174), partindo de uma abordagem fundada na própria natureza, considera bens imóveis as coisas que não podem ser removidas de um lugar para o outro sem destruição. Esse conceito não abrange, porém, os imóveis por determinação legal. Essa concepção não abarca, em toda abrangência, outros bens voltados à imobilidade, sob o aspecto jurídico. O Novo Código Civil pátrio (arts. 79 e 81) descreve os bens imóveis, que podem ser, doutrinariamente, classificados como: imóveis por natureza, por acessão física, industrial ou artificial; por acessão intelectual (ou por destinação do proprietário) e por determinação legal: a) Imóveis por natureza: O inciso I do art. 43 do antigo Código Civil descrevia os bens imóveis por natureza: “O solo, com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendo as árvores e frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo”. O atual cinge-se no art. 79, a destacar o solo. A primeira observação que devemos fazer é que a Constituição Federal (art. 176) considera propriedade distinta do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, as jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais, e os potenciais de energia hidráulica. Do mesmo modo, os recursos hídricos são considerados no art. 21, inciso XIX, como passíveis de utilização privada no uso e na fruição e não nos outros elementos caracterizadores da propriedade plena (“usar, fruir, dispor e reaver”). b) Imóveis por acessão física, industrial ou artificial281: São as coisas incorporadas, em caráter permanente ao solo, tais como as construções e plantações. Segundo o art. 43, II do antigo Código Civil. É “tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções, de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano”. Ficam afastadas as 281 Acessão significa justaposição ou aderência de uma coisa a outra. Acessão industrial ou artificial é a produzida pelo trabalho do homem 369 370 construções provisórias, que se destinam à remoção ou retirada, como os circos ou parques de diversões, as barracas de feiras, pavilhões, etc. Os materiais de construção, “provisoriamente separados de um prédio, para nele mesmo se reempregarem”, não perdem o caráter de imóveis (antigo CC, art. 46). Pois o que se considera é a finalidade de separação, a destinação dos materiais. Coerentemente, aduz o art. 49: “Os materiais destinados a alguma construção, enquanto não forem empregados, conservam a sua qualidade de móveis. Readquirem essa qualidade os provenientes da demolição de algum prédio”. Já o Novo Código Civil afirma ser possível a incorporação natural (imóveis por natureza incorporados sem a ação humana pelo contato com o solo) ou artificialmente (imóveis por acessão física em que o homem atua). As águas superfíciais naturais (os rios, os lagos etc) podem ser vistos como bens imóveis por natureza por serem incorporadas ao solo bem imóvel primordial. Já as águas represadas pelo homem (barragens que constroem grandes reservatórios) podem ser vistas como imóveis por acessão física industrial ou artificial. c) Imóveis por acessão intelectual (ou por destinação do proprietário): São móveis por natureza, tornados imóveis pela vontade do proprietário, mantendo-os intencionalmente empregados em sua exploração industrial, aformoseamento, ou comodidade, como as máquinas (inclusive tratores) e ferramentas, os objetos de decoração, os aparelhos de ar condicionado, etc. (antigo CC, art. 43, III). Não aderem materialmente ao imóvel. Mas são considerados imóveis, porque se leva em consideração a vontade do dono, de mantê-los incorporados a um imóvel. O vínculo, entretanto, é meramente subjetivo, podendo, em conseqüência, retornarem à categoria de móveis, pela mesma vontade. Dispõe, com efeito, o art. 45 do velho Código Civil que “Os bens, de que trata o art. 43, n. III, podem ser, em qualquer tempo, mobilizados”. As águas colocadas em um carro pipa para uso em uma determinada área municipal, as caixas d’água das residências podem ser, então, consideradas imóveis por acessão intelectual, sujeitando-se a modificação da imobilidade, quando houver mudança da vontade ou das circunstâncias físicas, tal qual ocorre com a modificação da destinação da água. d) Imóveis por determinação legal. São (Novo CC, art. 80): os direitos reais sobre imóveis (tal como a propriedade, o usufruto e a enfiteuse) e as ações que os asseguram, dentre outros. Trata-se de bens incorpóreos, imateriais (direitos), que não são, em si, móveis ou imóveis. O legislador, no entanto, para maior segurança das relações jurídicas, os considera imóveis. Nesse aspecto a outorga de direito de uso pelas características do corpo de água, caso se trate de um corpo de água imóvel, também adquire esta característica, devendo ser registrada e a sua transferência de titularidade deve atender determinados requisitos especiais estabelecidos por lei e por atos administrativos. O novo e o antigo Código Civil consideram móveis (respectivamente no art. 82 e art. 47): “os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia”. Estão agrupados em duas classes: 370 371 a) bens móveis por natureza: Incluem-se, nessa categoria, todos os bens corpóreos que admitem remoção sem dano, por força própria (como os semoventes: animais) ou alheia (como os objetos inanimados, não imobilizados por sua destinação, que podem ser deslocados como a água contida em um caminhão pipa). O gás e a corrente elétrica são bens móveis, assim como os navios. Estes últimos, no entanto, são imobilizados somente para fins de hipoteca (antigo CC, art. 825; no novo Código Civil não há artigo tratanto do tema). b) bens móveis por determinação legal (novo CC, art. 83): I - as energias que tenham valor econômico; os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes; II - os direitos pessoais de caráter patrimonial e as ações respectivas. São bens imateriais, que adquirem essa qualidade jurídica por disposição legal. Interessante destacar que a água contida em uma barragem hidroelétrica pode ser analisada como bem imóvel por acessão física artificial, no entanto o potencial de energia hidroelétrica282 nele contido será móvel por determinação legal. Se por um lado a corrente de água apresenta-se com bem jurídico imóvel natural (na definição constante do Código Civil de 1916 de rios como bens imóveis por natureza) ou por acessão física (nas transposições feitas pelo homem). O ciclo hidrológico acrescenta, por outro lado, que ao percorrer as suas fases, a água escoa pela superfície e pelos aqüíferos, sendo nesse ângulo um recurso móvel, o que a distingue, por exemplo, dos recursos minerais. 4.2.3 A água e outorga de direitos de uso são bens fungíveis ou infungíveis? Há certos bens que intervêm nas relações jurídicas não in espécie, isto é, como individualmente determinados, mas in genere, apreciáveis por gênero, qualidade e quantidade. A fungibilidade é típica dos móveis, e é nesse sentido que se tem a definição do Código Civil pátrio (antigo no art. 50 e novo no art. 85). Deste modo, a outorga de um determinado córrego, por ser este imóvel, não pode ser substituída por outra de um outro córrego semelhante. A outorga vincula-se ao objeto outorgado, não podendo fugir de sua natureza. Por ser o corpo d’água imóvel, do direito de outorga, bem acessório, também, o será imóvel e infungível. Assim, faz-se necessária a classificação dos bens em: a) fungíveis: Bens fungíveis são aqueles que podem ser substituídos por outros do mesmo gênero, qualidade e quantidade, como o dinheiro. b) infungíveis: Bens infungíveis, os que não têm essa qualidade, porque são encarados de acordo com as suas qualidades individuais, em espécie (não 282 “O potencial hidrelétrico é produto das vazões e das quedas de água, e, como decorrência tem o mesmo caráter aleatório das vazões, sendo essa a principal característíca de tal fonte de energia. A disponibilidade de energia hidrelétrica é, portanto, associada a riscos. O aproveitamento da energia hidrelétrica é a principal forma de uso não consuntivo de água. Merecem menção os seguintes aspectos: a construção de barragens de regularização causa alterações no regime dos cursos água, perdas por evaporação da água dos reservatórios, principalmente em regiões semi-áridas, e diversas alterações no meio físico” (Freitas (Coord.), 2001, p. 57). 371 372 em gênero), como o quadro de um pintor célebre, uma escultura famosa, a água e os direitos dela decorrentes de uma água superficial ou subterrânea por suas características particulares de vazão, qualidade e quantidade etc. Portanto, a outorga de direito de uso dada a um determinado córrego (bem imóvel) não pode ser substituída por outra sem a participação da autoridade administrativa, por se tratar de um bem infungível com informações individualizadoras previstas na sua regulamentação.283 4.2.4 A água e a outorga de direitos de uso são bens consumíveis ou inconsumíveis? Bens consumíveis (novo CC, art. 87; antigo CC, art. 52) são os móveis que se extinguem pelo uso normal, seja porque esse uso importe a destruição imediata de sua substância (naturalmente consumíveis), seja porque são destinados à alienação (juridicamente consumíveis). Em síntese, a consumibilidade das coisas é uma qualidade que lhes é própria (consumo natural) ou decorre de seu destino jurídico (alienação). Nesse enunciado, presente no Código Civil, tem-se que consumíveis são aqueles bens que são destruídos na sua substância pelo uso normal, enquanto os não-consumíveis são aqueles cuja utilização não atinge sua integridade. Com efeito, prescreve o art. 51 do Código Civil que são consumíveis os bens móveis cujo uso importa destruição imediata da própria substância (de fato, como os gêneros alimentícios e a água bebida pelo homem e pelos animais), sendo também considerados tais os destinados à alienação (a vazão de água outorgada para consumo de determinado usuário). Inconsumíveis, ao contrário, são os que admitem uso reiterado, não havendo destruição de sua substância e não sendo destinado à alienação. Pode a coisa consumível tornar-se inconsumível pela vontade das partes, como um comestível ou uma garrafa de bebida rara, emprestados para uma exposição. Assim também, uma coisa consumível, como os livros colocados à venda nas prateleiras de uma livraria, que possuirão uma consuntibilidade jurídica. Não devemos confundir com bem consumível, o bem suscetível de consumir-se ou deteriorar-se depois de um lapso de tempo mais ou menos longo. Não se confundem a consuntibilidade jurídica com a classificação econômica de bens duráveis e não-duráveis. Fundamental esta classificação para o mecanismo de gestão das águas, pois há usos consuntivos e não-consuntivos da água. Nesse sentido, a publicação oficial da ANA e da ANEEL afirma: Os setores usuários das águas são os mais diversos com aplicação para inúmeros fins. A utilização pode ter caráter consuntivo ocorrendo quando a água é captada pelo seu curso natural e somente parte dela 283 Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 20: “Do ato administrativo da outorga, deverão constar, no mínimo, as seguintes informações: I – identificação do outorgado; II – localização geográfica e hidrográfica, quantidade, e finalidade a que se destinem as águas; III – prazo de vigência; IV – obrigação, nos termos da legislação, de recolher os valores da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, quando exigível, que será definida mediante regulamento específico; V – condição em que a outorga poderá cessar seus efeitos legais, observada a legislação pertinente, e VI – situações ou circunstâncias em que poderá ocorrer a suspensão em observância ao art. 15 da Lei n. 9.433, de 1997 e do art. 24 desta Resolução”. 372 373 retorna ao curso normal do rio, ou não consuntivo, onde toda a água captada retorna ao curso de água de origem. Cada uso da água deve ter normas próprias, mas são necessárias normas gerais que regulamentem as suas inter-relações e estabeleçam prioridades e regras para a solução dos conflitos entre os usuários (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2001, p. 43). Os principais usos consuntivos dos recursos hídricos são: abastecimento humano, animal (dessedentação), industrial e irrigação, observando que a irrigação, tanto no Brasil quanto no aspecto mundial, constitui a utilização consuntiva de maior volume de água.284 Figura 3 – Distribuição de água por tipo de consumo consuntivo no Brasil Na figura acima é apresentada a distribuição por tipo de uso consuntivo no Brasil, devendo-se notar que o principal uso não consuntivo ocorre na utilização da água para produção de hidroeletricidade (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO; 2001, p. 64). 4.2.5 A água e a outorga de direitos de uso são bens divisíveis ou indivisíveis? O Novo Código Civil torna indivisível não só o bem que mantém a natureza do todo, como fazia o antigo Código Civil, mas, também, aquele que se tornaria menos valioso, desproporcionalmente, ou que causasse prejuízo ao uso a que se destina.285 Exemplificando, vamos supor que seja objeto de outorga uma pequena vazão de um pequeno rio. Tal outorga não poderia ser desmembrada em outras com distintos usos múltiplos de água, sob pena de que nenhum deles fosse suficiente para atender à real necessidade dos usuários após a divisão da vazão total do rio. 284 “Today, agriculture accounts for about two-thirds of global water use. By enabling farmers to apply water when and where needed, irrigation has turned many of the earth´s sunniest, warmest, and most fertile lands into important crop-producing regions. Egypt could grow virtually no food without water drawn from the Nile or from underground aquifers. California´s Central Valley and the Aral Sea basin – the fruit and vegetable baskets of the United States and the former Soviet Union – could barely be cultivated without supplemental water supplies” (POSTEL, 1993, p. 56, grifo nosso). 285 “Art. 87. Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”. 373 374 Tratando-se da divisibilidade no novo Código Civil, deve-se observar que não se confunde o critério jurídico de divisibilidade com o critério físico. Fisicamente, as coisas são suscetíveis de divisão. Todo e qualquer corpo admite divisão. Mas, se dividirmos um relógio em várias partes, ele deixa de ser um relógio. Por isso que, ao direito, não interessa apenas a divisibilidade material, devendo ser introduzido um dado específico: a manutenção, em cada uma das porções reais e distintas, das qualidades essenciais do todo. Nesse caso, compreende-se que a outorga de direito de uso poderá ser suspensa parcial ou totalmente, dentre outras razões, pela necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo que não poderiam ser divididos com outros usos.286 4.2.6 A água e a outorga de direito de uso são bens singulares ou coletivos? O diploma civil (novo CC, art. 89) declara que os bens singulares podem considerarse de per si (destaca-se a parte em relação ao todo), independentemente dos demais; já os coletivos são analisados como universalidade (destaca-se o todo em relação a parte). Esta classificação mostra-se, também, importante para o trato da água de rio ou de córrego que pertencem a uma Bacia Hidrográfica. O conceito de Bacia Hidrográfica, para fins jurídicos, pode ser construído em analogia com o previsto no art. 90 do Novo Código Civil como uma universalidade de fato, constituída por uma pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa gestora – Comitê de Bacia – tenham destinação unitária. Interessante observar que, em algumas oportunidades, a legislação de recursos hídricos nacional (Lei 9.433/97) trata da água como um bem singular (sub-bacia) e, em outras, encara o conjunto, a universalidade, na figura da bacia hidrográfica ou grupo de bacias hidrográficas. 287 No trato da qualidade e quantidade do recurso hídrico como macrobem, ganha especial relevância a visão da água e da outorga de direito de uso como bens coletivos. A própria noção de ciclo hidrológico destaca o aspecto do todo em relação à parte. Conceitualmente, o ciclo deve ser considerado unido com as normas jurídicas. Entretanto, tal não é feito. Há, por exemplo, uma clara distinção de diplomas legislativos para águas superficiais e águas subterrâneas, os quais devem ser unificados com o conceito de bacia hidrográfica. Tal distinção dificulta a gestão integrada das águas superficiais e subterrâneas, o que é 286 O art. 15 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas seguintes circunstâncias: I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga;II ausência de uso por três anos consecutivos; III - necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas; IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental; V necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas; VI - necessidade de serem mantidas as características de navegabilidade do corpo de água”. 287 O art. 37 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 37 Os Comitês de Bacia Hidrográfica terão como área de atuação: I – a totalidade de uma bacia hidrográfica; II – sub-bacia hidrográfica de tributário do curso de água principal da bacia, ou de tributário desse tributário; ou III – grupo de bacias ou sub-bacias hidrográficas contíguas”. 374 375 importante em regiões como o Distrito Federal na qual os aqüíferos subterrâneos muitas vezes são exageradamente utilizados, sem que haja o rigor administrativo e legislativo existente para com as águas superficiais. No mesmo sentido, o homem ainda não dispõe de tecnologia para intervir significativamente no regime das águas meteóricas, todavia, como destaca Barth (1996, p. 121), as chuvas artificiais do futuro poderão depender da disciplina integrada dada às águas na superfície, no subsolo e nas nuvens. 4.2.7 A água e a outorga de direito de uso são bens principais ou acessórios? Uma outra classificação dos bens a que se deve dar grande importância é a que se faz em acessórios e principais, pois esta é uma classificação que se funda, não nas qualidades físicas ou jurídicas da coisa, mas na relação recíproca em que elas se encontram. Uma coisa, se considerada isoladamente, não é nem principal, nem acessória. Para que possa tomar uma dessas designações, é preciso que ela se ache em relação com outra e que se possa, então, perceber, nessa relação, um vínculo de dependência. A dependência de uma coisa a outra é, portanto, a essência mesmo desta relação. Diz-se, então, que é principal a coisa que existe por si própria, ou, para usar-se a expressão do Código Civil: a coisa que existe sobre si, e diz-se que é acessória a coisa que, para existir, depende da principal. As principais conseqüências da referida regra são: a) a natureza do acessório é a mesma do principal (se o solo é imóvel, a água a ele anexada também o é); b) quem adquire o direito à outorga de água irá adquirí-lo com o expresso direito de retirar uma parcela do rio para uso, extinto o curso d’água, extinta estará a outorga;288 c) o proprietário do principal é proprietário do acessório. Entre as inúmeras aplicações do aludido princípio podem ser mencionadas as constantes dos arts. 1.209, 233, 287 do Novo Código Civil. É muito grande a importância desta classificação, porque nela se funda a conhecida regra de direito que assim se enuncia: “o acessório segue, em regra, o principal” (antigo CC, art. 59). Para que tal não ocorra, é necessário que tenha sido convencionado o contrário (venda de veículo, convencionando-se a retirada de alguns acessórios). Assim, comparando um rio e o solo seu substrato, o solo é bem principal, porque existe por si, concretamente, sem qualquer dependência. O rio é acessório, naturalmente, porque sua existência supõe a do solo, onde se movimenta. 288 Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 24: “Art. 24. A outorga de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa pela autoridade outorgante, parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, sem qualquer direito de indenização ao usuário, nas seguintes circunstâncias: [...] III – necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas; IV – necessidade de se previnir ou reverter grave degradação ambiental; V – necessidade de se atender a usos prioritários de interesse coletivo para os quais não se disponha de fontes alternativas [...]” 375 376 Juridicamente, entretanto, dependendo das circunstâncias, o rio e o solo podem ser ambos principais, tal qual ocorre com a distinção de titularidade de propriedade entre um e outro. Esta regra é o enunciado do chamado princípio da gravitação jurídica, que faz com que um bem atraia, para sua órbita, um outro que é o seu acessório, comunicando-lhe o seu próprio regime jurídico. No elenco dos bens acessórios, têm-se, entre outras classificações: a) os frutos. Frutos são as utilidades que uma coisa periodicamente produz. Nascem e renascem da coisa, sem acarretar-lhe a destruição no todo ou em parte, como o café, os cereais, os frutos das árvores, o leite, as crias dos animais, etc.A água conforme já visto não é um fruto por existir em uma quantia fixa na atmosfera, variando segundo o ciclo hidrológica o seu estado em líquido, gasoso ou sólido; b) os produtos. Produtos que são as utilidades que se retiram da coisa, diminuindo-lhes a quantidade – porque não se reproduzem periodicamente, como as pedras e os metais, que se extraem das pedreiras e das minas; e a água retirada por meio de outorga de uso do corpo de água. Distinguem-se dos frutos porque a colheita destes não diminui o valor nem a substância da fonte, e a daqueles, sim; c) as pertenças. No elenco dos bens acessórios estão as pertenças, que se destinam a conservar ou facilitar o uso das coisas principais, sem que se tornem partes destas. A aplicação do princípio acessorium sequitur principale não se faz com a intensidade das coisas acessórias, pois a vontade das partes pode estipular destino diverso para a pertença em relação à coisa principal. O Novo Código Civil prevê expressamente (art. 93) “São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao adorno de outro”. Assim, Ruggiero (1936, v. 2, p. 287) exemplifica que pode ser pertença: a moldura em relação ao quadro, a estátua colocada para ornamento da entrada da residência. No âmbito dos recursos hídricos, as matas ciliares, em relação aos cursos d’água, podem ser vistas como pertenças, no aspecto da proteção do assoreamento do curso d’água. Interessante, nesse sentido, fazendo um paralelo entre o Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGREH, no ordenamento jurídico brasileiro, destacar que o SISNAMA poderia ser visto como principal em relação ao SINGEREH, mas a importância desta acessório (SINGEREH) faz com que este possa ter um tratamento jurídico próprio e setorial, com regras específicas para a sua proteção. O SINGEREH pode ser visto, mutatis mutandi, como uma pertença na qual, em determinados aspectos, a regulação jurídica que diz respeito ao bem principal (SISNAMA) não se torna automaticamente aplicável a pertença (SINGEREH). As características específicas e o valor próprio significativo do SINGEREH tornam adequado um tratamento específico, embora correlacionado ao SISNAMA.289 289 Nesse sentido, para o paralelo realizado poder-se-ia colacionar o “Art. 94. Os negócios jurídicos que dizem respeito ao bem principal não abrangem as pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação de vontade, ou das circunstâncias do caso” (Novo Código Civil, Lei 10.406, publicada no Diário Oficial da União em 11 de janeiro de 2002). 376 377 4.2.8 A água e a outorga de direito de uso são bens públicos federais, estaduais, distritais ou municipais? O Código Civil classifica os bens em públicos ou privados, em função da titularidade do domínio pertencer ou não pertencer ao Poder Público. Para o nosso estudo, não basta, entretanto, a noção de que a água é bem público por força da Constituição, torna-se necessária a análise da Bacia ser federal, estadual, distrital ou municipal. São três os tipos de domínios das águas no Brasil: águas federais, estaduais e distritais. Não se considera que o Município seja dominus da água, não obstante possa ter interesses sobre o curso de água que percorre o seu território. São bens da União (águas federais) os lagos, rios e quaisquer correntes em terrenos de seu domínio ou que banhem mais de um Estado da federação, sirvam de limite com outros Países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham. Incluem-se, também, como corpos hídricos de domínio da União, as águas em reservatórios construídos pela União, como, por exemplo: reservatórios da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco - CODEVASF, do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas - DNOCS, do extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento – DNOS, Companhia Hidrelétrica do São Francisco - CHESF, etc. São bens do Estado as águas não-federais superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito encontradas em seu território. A responsabilidade pela concessão e gestão da outorga, desse modo, depende do tipo de domínio da água. 4.3 NATUREZA JURÍDICA DA OUTORGA 4.3.1 A natureza jurídica da outorga pelo uso da água e o fato de a água ser “bem de uso comum” Conforme já visto, as águas doces são de domínio público de uso comum e, conseqüentemente, o que se outorga não é a sua propriedade, mas o seu direito de uso. Di Pietro (1983, p. 10-11) elenca as características básicas do uso comum, sintetizadas de acordo com a sua relação à outorga da água: • aberto a todos ou a uma coletividade de pessoas;290 290 A respeito da amplitude de todos, interessante observar, no caso da água doce, a expressa menção à 377 378 • é, em geral, gratuito, mas pode ser remunerado, sem que isso desnature o uso comum;291 • está sujeito ao poder de polícia292 do Estado; • o uso comum permite a utilização do bem como uma faculdade da liberdade humana293 e não um direito subjetivo adquirido do Estado (grifo nosso). De regra, a utilização de bens de uso comum pode ser gratuita ou pode ser remunerada, como no caso do pedágio em estradas e na cobrança pelo uso da água, ora em análise. Conforme Pietro (1983, p. 10), o “uso privativo é o que se exerce, com exclusividade, por pessoas determinadas, mediante título jurídico conferido individualmente pela Administração”. Com o uso privativo de bem público, dado pela outorga, transpõem-se o que era aberto a todos para um indivíduo específico. A própria noção de exclusividade, apresentada no conceito de Pietro, destaca a modificação da ênfase da esfera pública (do bem de uso comum) para a esfera privada (do bem outorgado) mediante a outorga. Assim, a exclusividade é característica da propriedade privada294 e da outorga295. A propriedade perfaz uma categoria de direitos subjetivos, orientados pelo domínio, porém se tornam direitos obrigacionais em sua eficácia real, para terem oponibilidade frente aos demais indivíduos (obrigação passiva universal). A outorga individualiza e restringe o acesso de outros ao bem público, constituindo-se em espécie do gênero o uso privativo de bem público. Pode ser definida, então, como ato administrativo mediante o qual o Poder Público outorgante (União, Estados ou Distrito Federal) faculta ao outorgado o uso de recurso hídrico, por prazo determinado, nos termos e nas condições expressas no respectivo ato. O referido ato é publicado no Diário Oficial da União (caso da ANA), ou nos Diários Oficiais dos Estados e Distrito Federal, onde dessedentação dos animais. Na Lei 9.433/97, independem de outorga e conseqüentemente de cobrança o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural e as derivações, captações e lançamentos, assim como acumulações de volumes de água considerados insignificantes (art. 12, par. 3). O Código de Águas, do mesmo modo, assegura no art. 34, o uso gratuito de qualquer corrente ou nascente de água, para as primeiras necessidades da vida, se houvesse caminho público que a tornasse acessível, garantido o direito de passagem, desde que não causasse dano aos proprietários. 292 “Na doutrina, o conjunto de tais prerrogativas e ônus vem recebendo a denominação de polícia dos bens públicos ou polícia do domínio público. O termo polícia aqui deve ser entendido com o seu sentido de fiscalização, vigilância, adoção de medidas fortes para preservar tais bens [...] À Administração competem as medidas de preservação do bem em si, de sua integridade física, impedindo que se deteriore; é a chamada ‘polícia’de manutenção, que se traduz em providências relativas à limpeza, restauração etc” (MEDAUAR, 2002, p. 300-301). 293 Aqui destaca-se a noção de res communi omnium, pois o bem de uso comum não tem como titular o próprio Estado, mas sim a população em geral. 294 “A propriedade em direito CLÁSSICO e JUSTINIANEU, no qual se baseia a nossa concepção moderna, é o direito PRIVADO mais AMPLO que alguém pode ter sobre uma coisa; o pleno domínio jurídico privado que, podendo ser limitado de várias formas, não está previamente limitado. Contrapõem-se-lhe, por um lado, a posse como mero domínio de facto e, por outro, os direitos reais limitados (servidões, usufruto, penhor, etc.)” (KASER, 1999, p. 137). 295 Resolução n. 16 do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, de 8 de maio de 2001, art. 20: “Do ato administrativo da outorga, deverão constar, no mínimo, as seguintes informações: I – identificação do outorgado; II – localização geográfica e hidrográfica, quantidade, e finalidade a que se destinem as águas; III – prazo de vigência [...]” 291 378 379 o outorgado é identificado e estão estabelecidas as características técnicas e as condicionantes legais do uso das águas que o mesmo está autorizado a fazer. Kelman (2000, p. 95), nesse sentido, afirma: A outorga garante ao usuário o direito de uso da água. Cabe ao poder outorgante (Governo federal, estados ou Distrito Federal) examinar cada pedido de outorga para verificar se existe água suficiente, considerando-se os aspectos quantitativos e qualitativos, para que o pedido possa ser atendido. Uma vez concedida, a outorga de direito de uso da água protege o usuário contra o uso predador de outros usuários que não possuam outorga. Em situações de escassez, seja para captação seja para diluição de efluentes, os não-outorgados deverão ser reprimidos para garantir a utilização da água e conseqüentemente os investimentos daqueles que seguiram o procedimento legal. Meadauar (2002, p. 302-303) indica os contornos do uso privativo de bem público: • compatibilidade com o interesse público – o uso privativo pelo particular não pode contrariar o interesse público, pois se assim fosse não poderia ocorrer [...]; • consentimento da Administração – o uso privativo do bem por particular depende de consentimento da Administração, que é o título legal para esse uso. Há figuras jurídicas que veiculam esse consentimento e a legislação a respeito há que ser cumprida pela Administração e particulares [...]; • observância das condições fixadas pela Administração; • pagamento de preço – o uso privativo de bem público admite a cobrança de preço por parte da Administração a que se vincula o bem havendo também uso gratuito; • precariedade – é a regra para o uso privativo; por motivo de atendimento ao interesse público, a Administração pode cessar unilateralmente o uso privativo, mesmo dotado de prazo determinado, mesmo formalizado mediante contrato [...] (grifo nosso). A compatibilidade com o interesse público para os recursos hídricos pode ser expressa pela necessidade da outorga adequar-se ao Plano de Bacia que restringe os tipos de uso a serem dados à água em função da qualidade almejada desta. As outorgas estão condicionadas às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos, ao respeito à classe em que o corpo de água estiver enquadrado e à manutenção de condições adequadas ao transporte aqüaviário, quando for o caso, devendo, também, preservar o uso múltiplo dos recursos hídricos.296 O consentimento da Administração estará explicitado no documento de outorga dado pelo Poder Executivo competente (Federal ou Estadual). No caso da outorga para 296 O art. 13 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 13. Toda outorga estará condicionada às prioridades de uso estabelecidas nos Planos de Recursos Hídricos e deverá respeitar a classe em que o corpo de água estiver enquadrado e a manutenção de condições adequadas ao transporte aquaviário, quando for o caso.Parágrafo único. A outorga de uso dos recursos hídricos deverá preservar o uso múltiplo destes”. 379 380 aproveitamento hidrelétrico da água, esta é de atribuição da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica.297 Estabelece a Política Nacional de Recursos Hídricos que o Poder Executivo Federal pode delegar aos Estados e ao Distrito Federal competência para conceder outorga de direito de uso de recurso hídrico de domínio da União.298 A observância das condições fixadas pela Administração, juntamente com a precariedade, consubstancia a possibilidade de suspensão total ou parcial da outorga.299 O pagamento de preço estará fundado no uso privado de um bem público comum, tornado exclusivo pelo ato de outorga, que enseja uma contra-prestação pecuniária ao Poder Público, para compensação da sua utilização excludente dos outros membros da coletividade. 4.3.2 Deficiências normativas na especificação dos instrumentos de outorga e na outorga de lançamento de resíduos 297 “Essa Agência, que incorporou atribuições do extinto DNAEE – Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, foi instituída pela Lei n. 9.427 de 26 de dezembro de 1996. Cabe à ANEEL disciplinar, de forma geral, o regime das concessões de serviços públicos de energia elétrica. No que se refere à questão do aproveitamento da água para geração de energia, a ANEEL tem responsabilidades na definição do aproveitamento ótimo energético dos cursos d’água, levando em conta os outros usos, na outorga de concessão para o aproveitamento de potenciais hidráulicos, nos estudos de viabilidade, anteprojetos e projetos de aproveitamento dos potenciais hidráulicos e em atividade de hidrologia” (TUCCI; HESPANHOL; CORDEIRO NETTO, 2001, p. 82-83). Neste caso, há uma perigosa quebra da unidade de planejamento dos recursos hídricos de uma Bacia com a setorização do poder público pelo tipo de uso da água e não pela Bacia em que se situa, o que acarreta uma não unificação do trato das águas em uma Bacia, centralizando em uma autarquia federal, algo que deveria ser competência do Comitê de Bacia. Foi mantido neste caso a idéia do preceito contido no Código de Águas, que prevê no art. 62 que: “As concessões ou autorizações para derivação que não se destine a produção de energia hidroelétrica serão outorgadas pela União pelos Estados ou pelos municípios, conforme o seu domínio sobre as águas a que se referir ou conforme os serviços públicos a que se destine a mesma derivação, de acordo com os dispositivos deste Código e as leis especiais sobre os mesmo serviços”. 298 O art. 14 da Lei 9.433/97 estabelece: “Art. 14. A outorga efetivar-se-á por ato da autoridade competente do Poder Executivo Federal, dos Estados ou do Distrito Federal. § 1º O Poder Executivo Federal poderá delegar aos Estados e ao Distrito Federal competência para conceder outorga de direito de uso de recurso hídrico de domínio da União”. 299 O art. 15 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 15. A outorga de direito de uso de recursos hídricos poderá ser suspensa parcial ou totalmente, em definitivo ou por prazo determinado, nas seguintes circunstâncias: I - não cumprimento pelo outorgado dos termos da outorga; II ausência de uso por três anos consecutivos; III - necessidade premente de água para atender a situações de calamidade, inclusive as decorrentes de condições climáticas adversas; IV - necessidade de se prevenir ou reverter grave degradação ambiental; V necessidade de se atender a usos prioritários, de interesse coletivo, para os quais não se disponha de fontes alternativas; VI - necessidade de serem mantidas as características de navegabilidade do corpo de água”. 380 381 Conforme lembra Granziera (2001, p. 180), o termo “outorga” é utilizado na legislação específica sobre telecomunicações, Lei n. 9.472, de 16/07/1997, em que se menciona a necessidade de outorga prévia, pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), para a exploração de serviços, por meio de concessão, permissão ou autorização, obedecendo-se a um plano geral de outorgas. A legislação de telecomunicações, de forma clara e direta, determinou qual o instrumento a ser utilizado para a outorga do direito de uso das radiofreqüências necessárias, como concessão de uso: “Art. 83. A exploração do serviço no regime público dependerá de prévia outorga, pela Agência, mediante concessão, implicando esta o direito de uso das radiofreqüências necessárias, conforme regulamentação”. Comparando-se a legislação de telecomunicações e a legislação de águas, verifica-se que esta foi omissa no estabelecimento do instrumento a ser adotado para a outorga do uso de água. A autorização, a permissão e a concessão de uso representam os meios clássicos pelos quais é consentido que os particulares utilizem privativamente bens públicos. Assim, indaga-se se a outorga é o instrumento pelo qual o poder público atribui ao interessado o direito de utilizar privativamente o recurso, em qual das espécies clássicas se enquadra a outorga de uso da água? Será uma nova espécie de instrumento de utilização privativa de bem público? O Código de Águas, também, estabeleceu o tipo de instrumento de outorga para a hipótese de derivação ao dispor que: Art. 43. As águas públicas não podem ser derivadas para as aplicações da agricultura, da indústria e da higiene, sem a existência de concessão administrativa, no caso de utilidade pública e, não se verificando esta, de autorização administrativa, que será dispensada, todavia, na hipótese de derivações insignificantes. Buscando resolver esta omissão legislativa perniciosa, Granziera (2001, p. 194) posiciona-se no sentido de que continuaria em vigor o Código de Águas: “A Lei 9.433/97 não alterou o regime de outorgas, fixado nos arts. 43 ss, do Código de Águas, mas apenas o menciona. Os instrumentos de outorga, estabelecidos no Código de Águas, são a concessão e a autorização (grifo nosso).” Data venia, discorda-se desse posicionamento, uma vez que: • o Código de Águas foi revogado tacitamente pela Política Nacional de Recursos Hídricos ao regular toda a matéria dos recursos hídricos nacionais; • a própria Constituição federal já o havia derrogado parcialmente ao instituir o regime público de águas, retirando a validade dos dispositivos pertinentes a águas privadas e comuns; • o art. 43 do Código de Águas referido pela ilustre autora só menciona a hipótese de derivação esquecendo-se das outras previsões normativas já constantes da Lei 9.433/97, a saber: captação, extração de água em aqüífero, lançamento de efluente em corpo d’água aproveitamento hidroelétrico. 381 382 Há, pois, uma omissão legislativa flagrante no que se refere ao instrumento da outorga de recursos hídricos em geral, só havendo previsão legislativa expressa para a outorga relativa à utilização de potenciais hidroelétricos.300 Assim, a falta de norma específica para a análise do instrumento de outorga do uso da água nos recursos hídricos gera grande insegurança jurídica na efetividade da referida outorga e da cobrança pelo uso da água. É imprescindível a determinação legislativa específica do instrumento de outorga, para que a relação entre o outorgante e o outorgado possa ser definida de forma precisa, com a atribuição consensual e indiscutível dos direitos e deveres de cada um deles, como foi feito para a outorga hídrica de uso hidroelétrico. Enquanto tal preceito normativo não for concretizado de forma específica, fazse necessário observar a legislação federal genérica sobre o tema, a saber a Lei 8.987/95,301 bem como a atividade normativa da Agência Nacional de Águas sobre o tema.302 A discussão do instrumento a ser utilizado para a outorga do uso de água não se refere a um aspecto meramente conceitual ou acadêmico. O instrumento de outorga pelo uso da água possui importantes implicações práticas, como destaca Medauar (2002, p. 303304), ao dispor sobre os instrumentos mais freqüentes de utilização privativa de bens públicos no Brasil e suas diferenças são: • autorização de uso – é o ato administrativo discricionário e precário, pelo qual a Administração consente que um particular utilize privativamente um bem público. Pode incidir sobre qualquer tipo de bem. De regra, o prazo de uso é curto; poucas e simples são suas normas disciplinadoras; independe de autorização legislativa e licitação; pode ser revogada a qualquer tempo. Ex: uso de área municipal para instalação de circo, para formar canteiro de obra pública. 300 A Lei 9.074 de 7 de Julho de 1995 e o Decreto n. 2003, de 10 de setembro de 1996 fundamentam, dentre outros objetivos, a outorga de recursos hídricos no âmbito da hidroeletricidade, que são analisados e fiscalizados pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL (criada pela Lei 9.427/96) e estabelece que o instrumento de outorga para a hidroeletricidade será a concessão de uso ou a autorização de uso em função da quantidade de Kwh (>1000Kwh – concessão de uso) e ao uso exclusivo ou não da energia elétrica (art. 5º(concessão) e art. 7º (autorização) da Lei 9.074, que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências). 301 A Lei 8.987/95 e a Lei 9.075/95, que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, apresenta instrumentos genéricos para duas formas de outorga clássicas a permissão e a concessão da prestação de serviços públicos, sendo norma geral passível de aplicação na falta de norma especial sobre a prestação do serviço público: uso pela água doce. 302 O art. 4 da Lei 9.984/2000, que institui a Agência Nacional de Águas prevê expressamente o poder normativo desta agência: “Art. 4o A atuação da ANA obedecerá aos fundamentos, objetivos, diretrizes e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos e será desenvolvida em articulação com órgãos e entidades públicas e privadas integrantes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, cabendo-lhe: [...] II – disciplinar, em caráter normativo, a implementação, a operacionalização, o controle e a avaliação dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos;” 382 383 • permissão de uso – é o ato administrativo discricionário e precário pelo qual se atribui ao particular o uso privativo de bem público. Em geral, a permissão se aplica a usos privativos não conformes à real destinação do bem, mas compatíveis, por exemplo: bancas de jornais em ruas, mesas e cadeiras em frente a restaurantes e bares. Qualquer tipo de bem público poderá ser objeto de permissão de uso; independe de autorização legislativa; quanto à licitação, embora de regra não se exija, melhor parece efetuar o certame se o caso comportar disputa entre interessados, propiciando-se, desse modo, igualdade de oportunidade e evitando-se favoritismos[...]; • concessão de uso – é o contrato administrativo pelo qual a Administração consente que particular utilize privativamente bem público. Qualquer tipo de bem público pode ser objeto de concessão de uso. Em geral, a concessão se efetua para uso conforme a própria destinação do bem, ou seja, é inerente a esse tipo de bem o uso privativo, no todo ou em parte, de particular, como é o caso de boxes em mercados municipais, dependências de aeroportos, de portos, de estações rodoviárias, cantinas de escolas. Depende de autorização legislativa [...] Sendo contrato, deve ser precedido de licitação, na modalidade de concorrência [...] (grifo nosso). Pelo vulto dos recursos exigidos para determinadas formas de captação, pela estabilidade do uso de água em determinada atividade e por ser res communis omnium, conclui-se que, a exemplo do que ocorre com o uso hidroelétrico, a concessão de uso, em muitas hipóteses, deve ser o instrumento por excelência da utilização pelo uso da água. Outro aspecto que necessita de maior detalhamento normativo refere-se à outorga de lançamento de esgotos e resíduos nos corpos d’água, estabelecida pela Lei 9.433/97. Faz-se mister normas com maiores detalhes a respeito da forma de sua gestão, não obstante o modelo adotado de forma principiológica indique que deve ser gerido conjuntamente com as outras outorgas.303 Com relação à gestão desta outorga peculiar, Barth (1999, p. 585) afirma que há duas posições a respeito: a primeira, que a delega para as entidades de recursos hídricos assim como as outras outorgas em geral, uma vez que ela se insere em uma metodologia que deve ser unificada, envolvendo planos de recursos hídricos (onde estaria contido o enquadramento), aprovados pelos Comitês de Bacias, e programas de investimentos associados às metas de enquadramento e à cobrança pelo uso dos recursos hídricos. A segunda posição, destoante da sistemática unificada, imprescindível para o modelo adotado pelo Comitê de Bacias (nos termos do art. 1 da Lei 9.433/97 – “a bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos”), colocaria esta outorga de lançamento de efluentes como mais uma 303 O art. 12 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 12. Estão sujeitos a outorga pelo Poder Público os direitos dos seguintes usos de recursos hídricos: [...] III - lançamento em corpo de água de esgotos e demais resíduos líquidos ou gasosos, tratados ou não, com o fim de sua diluição, transporte ou disposição final;”. Assim, na legislação de recursos hídricos esta espécie de outorga aparece sempre junto com as outras, não tendo sentido seu tratamento diversificado, sob pena de comprometimento do princípio basilar da gestão ser descentralizada na Bacia. 383 384 exceção (ao lado do uso da água para a hidroeletricidade) à regra do controle pelo Comitê de Bacias, associando a outorga de lançamentos de resíduos a entidades de licenciamento ambiental. 4.4 NATUREZA JURÍDICA DA COBRANÇA PELO USO DA ÁGUA 4.4.1 A cobrança pelo uso da água como um instrumento econômico A cobrança insere-se na Política Nacional de Recursos Hídricos e em outros diplomas legislativos estaduais, configurando um instrumento econômico, destinado à realização dessa política. Assim, o aspecto que se destaca na sua natureza jurídica é o de um instrumento econômico (de uma forma de internação de um custo que até então não era incorporado ao procedimento de utilização da água). A cobrança pelo uso da água fundamenta-se nos princípios do "poluidorpagador" (lançamento de efluentes) e "usuário-pagador" (captação e derivação de água), já analisados anteriormente.304 O princípio "poluidor-pagador" constitui princípio econômico introduzido nos ordenamentos jurídicos de vários países. Economicamente, entretanto, exprime a vontade de neutralizar o custo social provocado pela externalidade – poluição. 305 Com a análise da legislação306 e com os argumentos já apresentados, de forma didática, atribuem-se três finalidades básicas à cobrança da água: • a primeira de cunho ético-econômico, é a de reconhecer o seu valor, rompendo a visão de que esta espécie de bem ambiental é res nullius, ou na visão liberal-econômica não possui valor apreciável por ser abundante e não ter trabalho humano; 304 De acordo com o princípio "poluidor-pagador", se todos têm direito a um ambiente sadio, deve o poluidor pagar pelo dano que provocou. Havendo um custo social proveniente de uma determinada atividade, esse deve ser internalizado ou assumido pelo empreendedor. Ou seja, se uma indústria exerce determinada atividade e com isso causa poluição ou degradação de um rio, o custo da despoluição deveria ser assumido por essa indústria. Segundo o princípio "usuário-pagador", paga-se pela utilização da água, em detrimento dos demais. Na verdade, o poluidor não deixa de ser um usuário, que se utiliza desse recurso para diluir e transportar efluentes. Interessante observar que a Lei sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) prevê os dois princípios no art. 4o , inciso VII. 305 Dada uma situação de poluição, a solução para o restabelecimento do equilíbrio de mercado seria a internalização, por parte do agente poluidor, das externalidades por ele provocadas. “Art. 19. A cobrança pelo uso de recursos hídricos objetiva: I – reconhecer a água como bem econômico e dar ao usuário uma indicação de seu real valor; II – incentivar a racionalização do uso da água; III – obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos planos de recursos hídricos” (Art. 19 da Lei 9.433/97). 306 384 385 • a segunda com ênfase de gestão jurídico-protetiva é incentivar a racionalização, a busca de realização do desenvolvimento sustentável; • a terceira de expressão econômico-financeira, é a de arrecadar recursos financeiros para o financiamento de todos os programas (de comando e controle e de instrumentos econômicos) que estiverem contidos no plano, quer dizer, um instrumento de financiamento da recuperação ambiental dos recursos hídricos. Adaptam-se, portanto, às características de instrumento econômico na conceituação da Organização Comercial do Desenvolvimento Econômico – OCDE.307 Demonstram, ainda, a confluência do ambiental e do econômico na busca de uma utilização adequada e racional, para a concretização do crescimento econômico e da proteção ambiental. Atendem, por fim, aos quatro objetivos de proteção ambiental estabelecidos pelo secretário-geral da ONU em seu relatório do milênio (incremento da informação pública, colocação de temas ambientais de forma integrada nas políticas públicas, criação pelo Estado de mecanismos reguladores de mercado incentivadores da proteção ambiental e criação de um sistema de avaliação ambiental), constituindo-se em marco na utilização de instrumentos econômicos na política ambiental brasileira (ANNAN, 2000, p. 29-30) . 4.4.2 A natureza jurídica da cobrança pelo uso da água: preço público A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um dos instrumentos de gestão que, ao lado da outorga e de outros, atua como um dos mais eficazes indutores do uso racional desse recurso. Conforme destaca Garrido (2000, p. 1): A cobrança pelo uso dos recursos hídricos é um dos instrumentos de gestão mais eficientes para induzir o usuário da água a uma utilização racional desse recurso. A sua importância reside no fato de atuar sobre as decisões de consumo do agente econômico que tem, na água bruta, um dos insumos, às vezes matéria-prima, para sua produção. Assim, caracterizada a cobrança da água como instrumento econômico, devemos analisá-la perante as espécies de receitas estatais, previstas no ordenamento jurídico brasileiro, para verificar seus contornos jurídicos correspondentes. O produto da cobrança pelo uso da água constitui-se, sob o aspecto jurídicofinanceiro, em receita pública vinculada. Ao tratar da vinculação dos recursos oriundos da cobrança pelo uso da água, Kelman (2000, p. 103) destaca a finalidade de sustentabilidade na utilização dos recursos hídricos obtida com os recursos financeiros da cobrança. A legislação hídrica nacional vinculou tais recursos à sua aplicação prioritária na bacia hidrográfica em que foram gerados, com o escopo de permitir a obtenção de recursos 307 Um instrumento seria tido como econômico uma vez que afetasse o cálculo de custos e benefícios do agente poluidor, influenciando, portanto, suas decisões, com o objetivo de produzir uma melhoria na qualidade ambiental (OECD,1989, p. 12-14). 385 386 financeiros para o financiamento das inúmeras atividades protetivas a serem exercidas pelo Comitê de Bacia.308 A cobrança da água não se subsume, na previsão do Código Tributário Nacional, como prestação pecuniária compulsória. Logo, não possui natureza tributária.309 Conforme já visto, a água e a sua cobrança possuem uma marcante esfera privada no nosso ordenamento e no ordenamento estrangeiro americano, alemão e francês, vinculando-se a sua utilização por ato voluntário do usuário por determinado curso de água. Logo, a cobrança pelo uso da água não possui caráter tributário, o que descarta a sua natureza de taxa310, como espécie tributária que tem como fato gerador o exercício regular do Poder de Polícia, ou a utilização efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou colocado a sua disposição. Por se tratar de um bem público e não de um serviço prestado pelo poder público, titular do domínio deste bem, a cobrança pelo uso da água só é cobrada pela sua utilização efetiva, não sendo cobrada pela utilização potencial como ocorre com a taxa. Na espécie, trata-se de uma oneração estatal por meio de tarifa pública ou preço de serviço público, por não ter a lei estabelecido um caráter compulsório, o que a caracterizaria como tributo da espécie taxa. Importante assinalar que a natureza jurídica da cobrança não é de um tributo da espécie taxa, mas de preço público, nos exatos termos da distinção feita pela Súmula 545 do Supremo Tribunal Federal, verbis: “Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”. Conforme ensina Machado, H., (1985, p. 221): A distinção entre taxa e preço público reside na natureza do serviço que lhe serve de suporte para a instituição e cobrança. E a natureza do serviço, do ponto de vista jurídico, depende do regime jurídico de sua prestação, vale dizer, define-se como serviço público aquele que é imposto ao cidadão. Observa-se que a cobrança pelo uso da água vincula-se e tem como pré-requisito a outorga de direitos de uso de recursos hídricos, nos exatos termos da legislação hídrica.311 Assim, a cobrança pelo uso da água será descartada pela falta de seu pré-requisito, a outorga, quando o uso de recursos hídricos for para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; as derivações, captações e lançamentos forem considerados insignificantes assim como as acumulações de volumes de água.312 308 Nesse sentido, o caput do art. 22 da Lei 9. 433/97 dispõe que: “Os valores arrecadados com a cobrança pelo uso de recursos hídricos serão aplicados prioritariamente na bacia hidrográfica em que foram gerados e serão utilizados. 309 “O que caracteriza a remuneração de um serviço público como taxa ou como preço público é a compulsoriedade, para a taxa, e a facultatividade, para o preço, conforme já decidiu o STF (Súmula 545)” (MACHADO, H., 1992, p. 337). A par desses critérios, adverte Pires (1989, p. 93) que “a doutrina jurídica ainda está a buscar a verdadeira distinção entre taxa e preço público [...] Resta-nos tão somente dizer, até a instituição de uma ou de outra, prevalece uma decisão de natureza política que nos leve à opção entre duas alternativas. Uma vez criada a obrigação, fácil é distinguir uma da outra pelas suas características. 310 Art. 145, inciso II da CF e art. 79 do CTN. 311 O art. 20 da Lei 9.433/97 afirma: “Art. 20. Serão cobrados os usos de recursos hídricos sujeitos a outorga, nos termos do art. 12 desta Lei”. 312 Art. 12, § 1º da Lei 9.433/97 dispõe: “Independem de outorga pelo Poder Público, conforme definido em regulamento: I – o uso de recursos hídricos para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural; II – as derivações, captações e lançamentos considerados 386 387 Sustenta-se que o que se cobra em razão do uso da água é preço; também porque se cuida de disponibilidade patrimonial do Poder Público em relação aos particulares e, sendo o fato gerador o uso do bem público, cabe cobrar o preço àqueles que se utilizam efetivamente da água - bem de domínio público. Entende-se que a natureza do produto da cobrança é de preço público, pois se trata de exploração de bem de domínio público. Sua natureza não é compulsória em decorrência da lei, mas negocial, cabendo ao detentor da gestão (Comitê de Bacia) estabelecer o respectivo valor. Kelman (2000, p. 103-104), sobre a cobrança e a aplicação do princípio da subsidiariedade pela Política Nacional de Recursos Hídricos, sugere que a cobrança pelo uso da água seja feita pela própria Agência de Bacia para bem caracterizar que o seu pagamento se destina a aplicação na própria Bacia. Em verdade, o montante pago destina-se à manutenção e melhoria da Bacia Hidrográfica. O que embasa a cobrança é o uso de bem público, segundo parâmetros legais definidos em cláusulas gerais legais, corporificados por meio de atos administrativos dos Poderes Estaduais, Distritais, Municipais e Federais, que homologam decisões tomadas pelos membros do Comitê de Bacia. insignificantes; III – as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes”. 387 388 5 DESAFIOS JURÍDICO-INSTITUCIONAIS DA GESTÃO INTEGRADA PARTICIPATIVA POR BACIA EM UM PAÍS FEDERADO 5.1 O SISTEMA NACIONAL DE GERENCIAMENTO DE RECURSOS HÍDRICOS (SINGERH) E O SISNAMA: UM PARALELO NECESSÁRIO DAS COMPETÊNCIAS HÍDRICAS E AMBIENTAIS DOS ENTES FEDERADOS BRASILEIROS Quando a comitiva do presidente Luís Inácio Lula da Silva chegou ao município piauiense de Guaribas, em fevereiro do ano de 2003, para lançar o programa Fome Zero, proclamou que a fome é grave naquela região; entretanto a sede é maior (GARCIA, 2003, p. 43). De um modo geral, o que se verifica é que a sede caminha pari passu com a pobreza e com a destruição ambiental e social. Constitui papel relevante do desenvolvimento sustentável reverter esta penosa equação vivenciada no nosso país. Nesse sentido, destaca-se que os problemas brasileiros da fome, da degradação ambiental e da escassez de água correlacionam-se. Castro compreendeu a angústia da fome, não na Sorbonne parisiense, mas nos mangues e nos bairros inóspitos do Recife. Pobres coitados, alimentados com caranguejo e farinha de mandioca. Mais nada! Nessa obra, mostra-se de forma poética, mas trágica, a correlação entre o meio ambiente, a fome e os recursos hídricos simbolizados na figura de homens e caranguejos, nascidos à beira do rio que, a medida que crescem se atolam cada vez mais na própria lama (mistura da terra e da água) por eles criadas (CASTRO, J., 2001, p. 1-3). Mutatis mutandi, no âmbito do ordenamento jurídico apresenta-se, como desafio, a necessidade de conjugação das atividades do sistema de proteção ambiental com o sistema de proteção hídrica. Nesse aspecto, desafia o modelo jurídico de gestão da água a necessidade de integração dos procedimentos de Outorga e Licenciamento Ambiental313 no âmbito da proteção ambiental brasileira. A integração mostra-se imprescindível, pois, conforme já visto, a proteção hídrica constitui acessório fundamental pertença) do bem principal, o meio ambiente. Seja no âmbito normativo legal, seja no âmbito operacional (institucional e técnico), os órgãos hídricos (SINGERH) e ambientais (SISNAMA) necessitam trabalhar juntos em determinados momentos de conjugação dos dois sistemas. A outorga e o licenciamento materializam momentos marcantes de superposição dos dois sistemas que devem apresentar soluções compatíveis, sob pena de esvaziamento da proteção ambiental no âmbito dos próprios órgãos protetivos. Nesse contexto, a nível normativo, a Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, que 313 Licenciamento ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso. 388 389 dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, adequa-se perfeitamente ao objetivo de integração normativa que deflui da própria Constituição de 1988 (que prevê sistema nacional de águas (art. 21, XIX) e de proteção ambiental (arts. 23 e 24)), ao indicar verbis: Art. 1o – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividade utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento do órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. A cooperação e a coordenação entre o SISNAMA e o SINGERH encontra-se, normativamente, prevista na idéia de que o licenciamento ambiental não esgota a atividade protetiva do meio ambiente. Nesse aspecto, a outorga para o uso de recursos hídricos representa outra licença exigível para o funcionamento de atividades utilizadoras de recursos ambientais. Por outro lado, a nível do SINGERH, na Lei de criação da ANA (Lei no 9.984, de 17 de julho de 2000, que dispõe sobre a entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos – SINGERH) criou-se de forma complementar, a figura jurídica da outorga preventiva (art. 6o ), que não confere direito de uso de recursos hídricos, só se destinando reservar a vazão passível de outorga, possibilitando, outrossim aos investidores, o planejamento de empreendimentos que necessitam desses recursos e que, também, deverão obter licença ambiental. A necessária integração administrativa e normativa entre os sistemas hídricos e ambientais pode ser facilmente demonstrada na noção da intrínseca relação entre a água e as resoluções do CONAMA. Historicamente, várias resoluções do CONAMA trataram de questões relacionadas à água. Algumas focalizaram temas como a classificação de cursos d' água (Resolução CONAMA n. 20); outras procuraram proteger as florestas que produzem água, outras ainda trataram de resíduos sólidos, cujas repercussões sobre a qualidade da água são expressivas. Assim, por exemplo, os resíduos de embalagens (incluindo o PET) dispostos de forma inadequada poluem rios e provocam entupimentos nas redes de drenagem, agravando as conseqüências das enchentes urbanas. Resíduos da construção civil causam assoreamento e obstruções nas redes de drenagem e resíduos de lâmpadas mercuriais e de pilhas e baterias, dispostos em aterros ou lixões, contaminam a água superficial ou subterrânea. O licenciamento ambiental de cemitérios, assim como a degradação de compostos orgânicos ou o uso de bio-remediadores são temas de grupos de trabalho do CONAMA e da ANA (relevantes para a qualidade das águas subterrâneas). Acidentes com a movimentação interestadual de resíduos perigosos podem causar danos a mananciais de abastecimento de água de superfície (AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, 2003, p. 69). Em março de 2002, o CONAMA aprovou resolução estabelecendo critérios para a definição de Áreas de Preservação Permanente (APPs) nos diversos ecossistemas e no entorno de reservatórios de água. As Áreas de Preservação Permanente (APP) são as áreas marginais aos rios; os mangues, dunas e restingas; as escarpas, os cumes e bases de morros e chapadas ou tabuleiros. Por serem consideradas essenciais à conservação de mananciais, nascentes e cursos de água, nessas áreas não pode haver exploração econômica direta. As resoluções 389 390 levaram em consideração as peculiaridades do país, diferenças políticas, sociais e culturais, além das diversidades biológicas e fitogeográficas. Tratar do meio ambiente é tratar da água e tratar da água é tratar do meio ambiente. Sob o ponto de vista operacional, o papel da Administração mostra-se extremamente relevante quando tantas e várias necessidades conflitantes aparecem na relação meio ambiente e água. A ausência de gestão integrada do SISNAMA e do SINGERH, nesse tipo de conflito, pode ocasionará a perda da qualidade da água e da proteção do meio ambiente. A base operacional da gestão de recursos hídricos envolve base institucional constituída pelas entidades componentes do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos - SINGERH e base técnica compreendendo: (i) informações quanto às disponibilidades hídricas do corpo hídrico, em termos de quantidade e qualidade; (ii) cadastro de usuários; (iii) informações hidrometeorológicas para avaliar as necessidades de demandas dos usuários de irrigação,principalmente; (iv) critérios técnicos para análise das demandas dos pedidos; (v) modelos de análise dos impactos do uso no corpo hídrico (os chamados modelos de suporte de decisão). Por tratar, a presente tese, de aspectos jurídicos, dar-se-á ênfase à base institucional e não à base técnica; não obstante, não se pode perder de vista que as informações técnicas constituem mecanismos imprescindíveis para as decisões hídricas consensuais a serem tomadas pelo Comitê de Bacia. 314 O SINGERH, base institucional criada pela Lei no 9.433, tem por objetivos: coordenar a gestão integrada das águas; arbitrar administrativamente os conflitos relacionados com os recursos hídricos; implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, planejar, regular e controlar o uso de recursos hídricos (art. 32). Esses objetivos ganham diferentes ênfases no âmbito da base territorial considerada; suas realizações dependem da estreita articulação com os demais sistemas de gerenciamento que atuam no uso e ocupação do solo (definidos pelos Municípios). Integram o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos: o Conselho Nacional de Recursos Hídricos; a Agência Nacional de Águas; os Conselhos de Recursos Hídricos dos Estados e do Distrito Federal; os Comitês de Bacia Hidrográfica; os órgãos dos poderes públicos federal, estaduais e municipais, cujas competências se relacionem com a gestão de recursos hídricos, e as Agências de Água. Portanto, do ponto de vista da abrangência territorial da atuação dos diversos integrantes do Sistema, distinguem-se os 314 Os sistemas de suporte à decisão (SSD), informações técnicas suscetíveis de auxiliar indivíduos ou grupos organizados no processo de busca, análise e seleção de alternativas para solução de seus problemas, devem possuir algumas características importantes para análise, controle e administração da outorga de direitos de uso da água. Azevedo et al. (2003, p. 5), nesse sentido, assinala: “A outorga não é um instrumento de fácil implantação e administração. Sua complexidade advém, de um lado, da própria natureza dos recursos hídricos, com seus usos e atributos múltiplos em um quadro de ocorrência estocástica e demandas crescentes, e, do outro, do contexto em que se insere seu gerenciamento, envolvendo interesses conflitantes e os mais distintos atores, desde os órgãos públicos gestores e entidades da sociedade civil até os usuários finais da água [...] soma-se a falta de informações confiáveis tanto para avaliação e acompanhamento da disponibilidade hídrica, em seus aspectos qualitativo e quantitativo, quanto para conhecimento, controle e gerenciamento da demanda". 390 391 órgãos e entidades nacionais (Conselho Nacional, Agência Nacional de Águas), os estaduais (Conselhos Estaduais e, em alguns Estados, Comitês Estaduais, como ocorre nos Estados de Pernambuco e do Ceará), e os órgãos de bacia hidrográfica (Comitês de Bacia e Agências de Bacia). Os órgãos dos poderes públicos federais e estaduais atuam conforme competências institucionais, conforme descreve a Figura abaixo, já os municípios participam dos colegiados de decisão, principalmente, nos Comitês de Bacia: Figura 4 – Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos Fonte: Agência Nacional de Águas (2003, p. 13). Assim, a complexidade da gestão integrada hídrico-ambiental apresenta-se maior com a questão federativa. Barroso (1992, p. 127), ao tratar da competência comum ambiental, ressalta a necessidade de evitar-se a superposição de atribuições, sem que se esqueça, entretanto, da possível atuação das três esferas federativas brasileiras. Importante lembrar que o modelo de bacia hidrográfica como unidade de gestão, baseado na experiência francesa de um Estado Unitário, ganha novos contornos no Brasil, Estado Federativo em que, numa mesma Bacia, misturam-se rios federais, estaduais e distritais (tripla dominialidade dos rios). Assim, a já complexa questão federativa deverá resolver mais um problema: a compatibilização da gestão por Bacia, com a divisão política federativa do País que estabelece tripla dominialidade dos rios, conjugada com a atuação dos Municípios sobre o meio ambiente e reflexos para os recursos hídricos. Ao estabelecer os dois diferentes domínios dos recursos hídricos no Brasil, a Constituição Federal de 1988 criou modelo que acrescenta dificuldade adicional para a gestão do uso das águas de mananciais do País centrado na Bacia Hidrográfica. Hidrológica e ecologicamente, as águas dos dois domínios são um corpo só, seja porque um rio de domínio estadual é afluente de outro de domínio da União Federal, seja porque esse fenômeno se dá ao contrário, seja ainda porque as águas superficiais se relacionam com as subterrâneas e viceversa. 391 392 Ora, o fato de a água ser um bem físico em movimento, podendo assumir, em momentos distintos, domínios diferentes, dentro, muitas vezes, de uma mesma bacia hidrográfica, explica a dificuldade com que se defrontam o gestor para conciliar os interesses conflitantes de diferentes esferas de poder. Em termos concretos, o vazamento de produtos tóxicos que atingiram os rios Pomba e Paraíba do Sul, no início de 2003, fez com que a União, o Estado de Minas Gerais e do Rio de Janeiro criassem uma comissão permanente para acompanhar a recuperação da bacia hidrográfica da região atingida.315 A solução para a problemática dos recursos hídricos passa, portanto, pela cooperação e transversalidade que devem caracterizar a federação instituída pela Constituição Federal de 1988. Nesse aspecto, na competência comum, a própria Constituição determina que lei complementar federal fixe normas para a cooperação entre as diversas esferas de poder, “tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (art.23, parágrafo único), o que evidencia que essa área de administração comum não deve estar sujeita a desperdícios de esforços e à superposição de atividades, muito menos ao entrechoque de ações administrativas de órgãos entre si autônomos, mas que todos, sob a égide da lei, devem agir de maneira harmoniosa. Interessante destacar que a concepção normativa de sistemas nacionais para a área hídrica (previsto na Lei 9.433/97) e ambiental (previsto na Lei 6.938/81) permite a conjugação da harmonia hídrico-ambiental com a federativa de atuação administrativa de três esferas do Poder Público no âmbito dos órgãos estatais e sociais ambientais e hídricos de âmbito municipal, estadual e federal. Assim, uma das grandes atribuições do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH)316 e do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) é o de desempenhar a função de agente integrador e articulador das políticas públicas correlacionadas com a gestão de recursos hídricos e ambientais, particularmente quanto à harmonização do gerenciamento de águas de diferentes domínios. Nesse aspecto, a Resolução n. 16, de 08/05/2001, do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, estabelece que a suspensão da outorga também poderá ocorrer no caso de indeferimento ou cassação da licença ambiental. 5.2 O INTERESSE LOCAL, A OCUPAÇÃO DO SOLO E A ATUAÇÃO REFLEXA DOS MUNICÍPIOS NA GESTÃO DAS ÁGUAS 315 Em 29 de março de 2003, um acidente causado pelo derramamento de 1,4 milhões de m³ de efluente industrial, composto basicamente por licor de madeira e soda cáustica, proveniente do rompimento da barragem de rejeitos da Fábrica Cataguazes de Papel, localizada no Município de Cataguazes, Estado de Minas Gerais, afetou a qualidade das águas dos rios Pomba e Paraíba do Sul, provocando, conseqüentemente, a interrupção de água potável para parte da população dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. O acidente provocou, ainda, a morte da ictiofauna dos rios Pomba e Paraíba (DARIANO, 2003, p. 1). 316 O CNRH, criado em junho de 1998, Decreto 2612 de 03/07/98, de caráter normativo e deliberativo, tem entre as suas atribuições promover a articulação do planejamento de recursos hídricos com os planejamento nacional, regional, estadual e dos setores usuários, é composto por Presidente e Secretário e membros que representam a União, os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, os representantes dos usuários de recursos hídricos e representantes de organizações civis de recursos hídricos (BRASIL. Agência Nacional de Águas, 2002, p. 9). 392 393 Conforme já visto na caracterização do bem água, o Município não tem domínio sobre recursos hídricos. As águas, no Brasil, são federais ou estaduais. Em análise simplista poder-se-ia afirmar, indevidamente, que a atuação dos municípios no âmbito administrativo e legislativo fosse irrelevante para os recursos hídricos. Tal postura, entretanto, não poderá ser adotada, pois nela se esquece a correlação já corroborada neste Capítulo entre o meio ambiente e os recursos hídricos, bem como as competências municipais ambientais previstas na Constituição Federal de 1988 (art. 23 e 30) e na Lei de Política Nacional do meio ambiente com expressa previsão normativa de que os Municípios integram o SISNAMA como órgãos locais (art. 6 da Lei 6.938/81). Com o advento da nova Constituição, os Municípios passam a ter autonomia e competência legislativa mínima317, rigidamente estabelecida. Entretanto, parte desta competência não está explicitada, estando implícita na necessária identificação do fluido conceito de interesse local.318 Nesse aspecto, interessante destacar que a indiscutível atuação municipal ambiental terá reflexo na gestão dos recursos hídricos, em especial aquela vinculada à ocupação do solo (art. 30, inciso VIII da CF). Além de questões estritamente técnicas, o planejamento hídrico abrange aspectos de natureza político-institucional, uma vez que a administração da água apóia-se em aparato legal federativo especializado, constituído por disposições constitucionais no âmbito da União e dos Estados, e amplo espectro de leis, decretos, portarias, resoluções, instruções normativas, e regulamentos referentes à política e ao gerenciamento de recursos hídricos, ao sistema ambiental (do qual os recursos hídricos se constituem em subsistema), e a outros sistemas usuários dos recursos hídricos como os da política municipal de uso do solo. O ordenamento do território, por sua vez, é processo que visa adequar a organização e utilização do território, tendo como finalidade o desenvolvimento integrado, harmonioso e sustentável das diferentes regiões que o compõem e abrange todos os recursos naturais disponíveis: além dos recursos hídricos, aqueles da biodiversidade, os florestais e os minerais, e também os aspectos socioeconômicos decorrentes da apropriação do território, as bases 317 Ferreira Filho (1989, p. 59-60), nesse sentido, afirma: “A competência que lhe é concedida pela Constituição, o é, aliás, nos mesmos termos que a da União. Esta e o Município têm os poderes enumerados; os Estadosmembros, os poderes remanescentes. Sua competência, pois, impõe-se, ainda que implícita, aos poderes estaduais remanescentes e até aos poderes da própria União. Tal deflui do art. 102, III, c, pois aí se vê que a regra local pode impor-se à regra federal, dentro de sua esfera. Essa competência envolve legislação (pode o Município cobrar tributos e de acordo com o art. 150, I, III, a, b, só a lei pode criá-los [...]) e administração (art. 30, III a IX)”. Por outro lado: “[...] Afastando-se, em parte, da técnica tradicional, a Constituição de 1988 não se limitou a demarcar a área das competências municipais circunscrevendo-as à categoria genérica dos assuntos concernentes ao peculiar interesse do Município. Foi mantida, sim, uma área de competências privativas não enumeradas, à medida que os Municípios legislarão sobre os assuntos de interesse local (art. 30, I). Mas, o constituinte optou – e aqui está a diferença em relação à técnica anterior – por discriminar também certas competências municipais exclusivas em alguns dos incisos do artigo 30 e em outros dispositivos constitucionais. Destarte, pode-se dizer das competências reservadas dos Municípios, que parte delas foi enumerada e outra parte corresponde a competências implícitas, para cuja identificação o vetor será sempre o interesse local” (ALMEIDA, F., 1991, p. 122). 318 Nesse sentido, Moreira Neto (1998, p. 140), comentando o projeto de Constituição aprovado em primeiro turno, afirma: “Finalmente, a competência municipal, tradicionalmente não enumerada nas cartas anteriores, passa a ser parcialmente enumerada: os incisos III, IV, V, VI, VII, VIII e IX discriminam competências específicas municipais, enquanto o inciso I, sob o conceito-chave de reserva de interesse local, autoriza a edição de quaisquer leis em que predomine este interesse. A predominância e não a exclusividade continua sendo, portanto, a justa interpretação desse novo conceito que substitui o tradicional peculiar interesse, que remontava ao artigo 68 da primeira Constituição republicana” (grifo nosso). 393 394 legais, institucionais e financeiras envolvidas. Em face da complexidade desse processo, prevalece a visão reducionista em seu tratamento, o que, por outro lado, coloca o desafio da integração e da compatibilização dos vários segmentos contemplados. Em seus fundamentos, a Lei Nacional das Águas estatui que a bacia hidrográfica é a unidade territorial para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, disposição que, por um lado, traduz a realidade física de ser a bacia hidrográfica a área que drena para o corpo de água e, por isso, todo o processo de utilização do território por ela delimitado repercute nos corpos de água, via interação com o ciclo hidrológico e, por outro lado, permite ao gestor uma avaliação das alternativas de usos do solo e seus efeitos sobre os recursos hídricos. Com a mesma ênfase, destacam-se, dentre as diretrizes gerais de ação para a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433, art. 3o): a adequação da gestão de recursos hídricos às diversidades físicas, bióticas, demográficas, econômicas, sociais e culturais das diversas regiões do País; a integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental e a articulação da gestão de recursos hídricos com a do uso do solo. A Política Nacional de Recursos Hídricos, ao instituir o enquadramento como seu instrumento, explicitou uma das vias de integração das gestões de recursos hídricos com a do meio ambiente, ao definir que “As classes de corpos de água serão estabelecidas pela legislação ambiental” (Lei nº 9.433, art. 10º), ou seja, conforme a Resolução CONAMA 20/86, que estabelece nove classes de usos, sendo cinco referentes a águas doces (Classe Especial e Classes 1 a 4), duas a águas salinas (Classes 5 e 6) e duas para as salobras (Classes 7 e 8). O zoneamento das águas e o zoneamento do território guardam relação direta, pois seria impossível manter as águas que se prestam a usos mais nobres com a liberalização do uso do território, havendo, ao contrário, necessidade do controle permanente da ocupação permitida. A Resolução 20/86, ao estabelecer que “nas águas de Classe Especial não serão tolerados lançamentos de águas residuárias, domésticas e industriais, lixo e outros resíduos sólidos, substâncias potencialmente tóxicas, defensivos agrícolas, fertilizantes químicos e outros poluentes” (art. 18), está fazendo zoneamento do território, na medida que restringe drasticamente o uso e a ocupação da bacia hidrográfica, induzindo sua ocupação como Unidades de Conservação da Natureza, na forma prevista na Lei nº 9.985/2000. O enquadramento de corpos de água foi objeto de diretrizes complementares do CNRH, em sua Resolução no 12, de 19/07/2000, a qual destaca a vinculação do enquadramento com os planos de recursos hídricos e com as normas estabelecidas na legislação ambiental, especialmente a Resolução CONAMA 20/86. Define os procedimentos para o enquadramento em quatro etapas, a saber: “I – diagnóstico do uso e da ocupação do solo e dos recursos hídricos na bacia hidrográfica; II – prognóstico do uso e da ocupação do solo e dos recursos hídricos na bacia hidrográfica; III – elaboração da proposta de enquadramento, e IV - aprovação da proposta de enquadramento e respectivos atos jurídicos”. Para cada etapa, a Resolução no 12 identifica a abordagem a ser observada, que implica em estudos e levantamentos nos corpos de água e no território. O enquadramento de corpos de água e os planos de bacia hidrográfica são instrumentos técnico-jurídico-institucionais interligados, e ambos dependem de estudos e avaliações do uso e ocupação do território (BRASIL. Ministério do Meio Ambiente, 2002, p. 82-84). Assim, evidencia-se a razão por que deve ser considerada a atuação legislativa e administrativa dos Municípios na gestão ambiental e, em especial, no uso do solo, como variável relevante para a gestão hídrica de uma determinada Bacia Hidrográfica. 394 395 5.3 A GESTÃO INTEGRADA FEDERATIVA DO SANEAMENTO DA REGIÃO METROPOLITANA: ENGENHOSA SOLUÇÃO LEGISLATIVA PARA TORMENTOSO PROBLEMA JURÍDICO O crescimento urbano, ocorrido de forma rápida e concentrada no Brasil, gerou a emergência do fenômeno metropolitano no Brasil. Afirmam Pereira; Baltar (2000, p. 379) que “todas as regiões metropolitanas, sem exceção, têm deficiência nos serviços de coleta dos esgotos domésticos e, principalmente, no tratamento e disposição final”. O alto grau de poluição e degradação da água, resultante principalmente do não tratamento dos esgotos municipais torna a questão hídrica extremamente relevante para as regiões metropolitanas. As três mais importantes regiões metropolitanas do país – São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – encontram-se no Sudeste. Assinala, a esse respeito, Zulauf (1994, p. 3435), referindo-se à região sudeste, verbis: Em termos ambientais, foi a região que sofreu a mais severa ação predatória, apresentando portanto os maiores problemas nesse campo. Das matas tropicais primitivas restam apenas áreas muito limitadas, que cobrem as encostas mais íngremes e úmidas. Os solos das áreas rurais estão degradados, observando-se por toda a região sérios problemas de erosão. Nas cidades são graves os problemas de poluição do ar, dos recursos hídricos e do solo, além de outras mazelas típicas dos desequilíbrios criados pelo modelo de desenvolvimento adotado, como a carência de habitações, a falta de segurança, o excesso de ruído, as dificuldades de locomoção, o trafego difícil e moroso e a falta de transporte público adequado (grifo nosso). Mukai (1989, p. 38-39) enfrenta o problema das regiões metropolitanas que se vincula à delimitação de competências entre os Estados e Municípios assinalando, verbis: [...] a Lei Orgânica Municipal será a Constituição Municipal, que, votada em dois turnos e aprovada por um quórum qualificado, será promulgada pela própria Câmara Municipal. Deverá observar os princípios estabelecidos na Constituição Federal e na Constituição do respectivo Estado. Esta, a Constituição do Estado, somente poderá dispor normas sobre os Municípios, que regulem assuntos supramunicipais, tais como aqueles relativos às regiões metropolitanas e às aglomerações urbanas. No mais, qualquer disposição sobre o município, específica, será inconstitucional, por invasão da autonomia municipal. O Estadomembro perdeu toda e qualquer competência para dispor sobre a organização municipal, salvo aqueles assuntos que extrapolam o interesse puramente local (grifo nosso). Moreira Neto (1998, p.10), ao tratar do poder concedente, competente para o abastecimento de água e da autonomia municipal, em face de controvérsia sugerida na ADIN 1.775319 apresentada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) contra a Lei Complementar 319 STF – Ação Direta de Inconstitucionalidade no 1.775-RJ (medida liminar), Rel. Min. Maurício Corrêa, publicação do acórdão em 18/05/2001. O Tribunal, por votação majoritária, não conheceu da ação direta. A inicial elaborada pelo Partido Democrata Trabalhista – PDT pleiteava, dentre outros pedidos, a declaração da inconstitucionalidade da Lei Complementar Estadual n. 87, de 16 de dezembro de 1997, do Estado do Rio de 395 396 no 87/97 que trata do poder concedente de água e de esgoto estadual na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, ensina: A expressão interesse local vem utilizada na Constituição vigente para balizar a atividade legislativa (art. 30, I) e a atividade administrativa (art. 30, V). Trata-se de uma cláusula geral com forte conteúdo, que veio substituir no texto constitucional o tradicional peculiar interesse, que vinha consignado no art. 15, II da Constituição de 1967, com a redação que lhe deu a Emenda no 1 de 17 de outubro de 1969, tal como utilizado nas anteriores. A inicial da referida ADIN afirmava, com base no art. 30, inciso I e V da Constituição Federal, que competia aos Municípios legislar em assuntos de interesse local, bem como organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão os serviços públicos de interesse local e que a Lei Complementar fluminense estaria usurpando a autonomia dos municípios. Outras ADINs perante o Supremo Tribunal Federal demonstram a complexidade jurídica da questão, em face da multiplicidade de dispositivos constitucionais que permitem a configuração do poder concedente do saneamento básico ora para os Municípios, ora para os Estados-membros. Nesse aspecto, deve ser trazida à colação o julgamento da liminar no âmbito da ADIN 2.340-SC (ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Governador do Estado de Santa Catarina contra a Lei 11.560/2000, do mesmo Estado, que torna obrigatório o fornecimento de água potável pela Companhia Catarinense de Águas e Saneamento – CASAN). Nesse julgamento, por distintos e, muitas vezes, contraditórios argumentos, alguns Ministros foram favoráveis e outros contrários à competência municipal, tendo sido concedida a liminar por diferença de um voto: O Min. Marco Aurélio, relator, proferiu voto no sentido de indeferir o pedido de medida cautelar, por entender inexistir, à primeira vista, a alegada ofensa à competência dos municípios para legislar sobre interesse local (CF, art. 30, I) [...] De outra parte, a Ministra Ellen Gracie votou pelo deferimento do pedido de medida cautelar, por entender competir ao Município o serviço de fornecimento de água, ainda que atribuído por concessão a uma empresa estadual [...], e o Min. Carlos Velloso, por entender que o Estado não teria competência para editar a norma impugnada. À vista do empate na votação, o julgamento foi suspenso para aguardar o voto do Min. Maurício Corrêa.320 (grifo nosso) De acordo com a Constituição Federal: (i) é competência exclusiva da União a definição das diretrizes gerais para a prestação e regulação dos serviços de saneamento e (ii) a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios têm competência comum para implementar programas para a melhoria das condições de saneamento básico. Entretanto, a Constituição Federal, ao contrário do que ocorre em outros serviços de utilidade pública, como energia elétrica, telecomunicações e gás, não define expressamente qual ente federado tem a responsabilidade pela prestação dos serviços de saneamento básico (titularidade), inclusive a competência para delegar estes serviços (poder concedente). Esses serviços não estão incluídos no chamado “rol geral” dos serviços púbicos. Sua competência, não sendo explicitamente atribuída à União, é descentralizada para os níveis sub-nacionais. Quando os serviços públicos, em geral, são considerados de interesse local, sua titularidade está claramente expressa na Constituição (serão atribuição dos municípios). A definição de interesse local pode basear-se em critérios técnicos e jurídicos. Tecnicamente, poder-se-ia especificar que serviços locais são aqueles prestados ao cidadão em determinado município e que, para tal prestação, não há dependência de infra-estrutura de outro município. No caso dos serviços de água e esgotos, por exemplo, poder-se-ia definir como locais aqueles 320 Janeiro por ofensa a autonomia muncipal hídrica de poder concedente legítimo para o abastecimento da água. STF – ADInMC 2.340-SC, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado no Diário de Justiça de 21/03/ 2001. 396 397 serviços que, obtendo outorga da autoridade competente pela gestão de recursos hídricos, se iniciam com a captação de água, se desenvolvem no tratamento e na distribuição de água, e na coleta e no tratamento de esgotos, e se encerram na disposição final destes, no território ou para exclusivo uso dos munícipes. Nesse caso, enquadra-se a grande maioria dos municípios brasileiros. Entretanto, a crescente urbanização brasileira gerou série de aglomerações urbanas em que é necessário compartilhar infra-estrutura e serviços de saneamento básico, como nas regiões metropolitanas. Nesses casos, os serviços são de interesse não de um município (local), mas, antes, de todos os municípios envolvidos. Ou seja, existe um interesse regional comum a todos, convivendo com o interesse local de cada um dos Municípios. Ainda sob o ponto de vista jurídico, a questão é, sem dúvida, complexa e controvertida. Como visto, a Constituição não atribui estes serviços à União. Se eles não podem, porventura, na sua integralidade, ser considerados de interesse local, a sua competência poderia ser atribuída aos Estados-membros. Estes possuem competência remanescente sobre tudo aquilo que não lhes for vedado; portanto, a titularidade de serviços comuns ou regionais, poderia recair sobre eles, exatamente como ocorre, historicamente, com o transporte intermunicipal de passageiros.Ademais, os estados têm competência para criar regiões metropolitanas e nelas organizar o planejamento e a execução das funções públicas comuns (CF, art. 25, parágrafos 1o e 3 o). Nesse quadro apresentado, da possibilidade de diferentes configurações de interesse local e regional, deve ser apreciada favoravelmente a solução legislativa integrada, decorrente