Perspectivas Para uma Nefrologia Baseada em Evidências Marília Bahiense Oliveira Naomar de Almeida Filho João Egidio Romão Júnior RESUMO O conceito e a aplicação da epidemiologia clínica e da medicina baseada em evidências vêm sendo cada vez mais discutidos em diversas áreas da medicina. Bastante difundido em outras especialidades, tem sido crescente o interesse em nefrologia nesse tema. Apresentamos aqui alguns conceitos básicos dessa prática e algumas possibilidades de influência no dia-a-dia do médico clínico. No que diz respeito à nefrologia, a epidemiologia clínica e a proposta de uma medicina baseada em evidências vêm ao encontro de uma necessidade antiga de reflexão sobre as suas próprias práticas e de geração de novos paradigmas para entender e explicar as doenças no sentido de controlá-las e aos seus efeitos. (J Bras Nefrol 2004;26(2): 96-103) Descritores: Medicina baseada em evidências. Nefrologia. Epidemiologia clínica. ABSTRACT Disciplina de Nefrologia (MB-O & JER-Jr) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo e Instituto de Saúde Coletiva da Uni versidade Federal da Bahia e Insti tuto de Saúde Coletiva da UFBA. Perspectives For An Evidence-Based Nephrology. The concept and practice of clinical epidemiology and evidence-based medicine are important topics of discussion in many areas of medicine. In nephrology a growing interest is noted in this theme. We presented here some basic concepts of this new practice and some possibilities of its influence in physicians’ every day routine. As for nephrology, clinical epidemiology and the proposal of an evi dence-based medicine have met an old need for reflection about its own prac tice and for the development of new paradigms to understand and explain dis eases. (J Bras Nefrol 2004;26(2): 96-103) Keywords: Evidence-based medicine. Nephrology. Clinical epidemiology. INTRODUÇÃO Recebido em 04/02/2003 Aprovado em 25/06/2003 As idéias geradoras da atualmente denominada “medicina baseada em evidências” encontram-se presentes há muito, pois a crença de que observações sistemáticas (metódicas, organizadas) devem ser a base para uma prática médica de boa qualidade prevalece desde a medicina antiga, na Grécia e no Oriente Médio. Com a emergência da ciência moderna, em diversos momentos da história têm-se proposto o aprimoramento das abordagens sistemáticas e racionalizadoras da prática médica1. Nesse sentido, destaca-se, na década de 80, o movimento denominado de Epidemiologia Clínica. Em 1992, a expressão “medicina baseada em evidências” vem a ser consolidada e difundida a partir de publicações da Universidade de McMaster, no Canadá. Desde então, o número de artigos sobre práticas de saúde baseadas em evidências multiplicou -se enormemente, bem como cresceu o interesse internacional com o desenvolvimento de revistas médicas especializadas, sites na internet, livros (convencionais e multimídia) e outras publicações sobre o assunto2. J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 2 - Junho de 2004 A nefrologia vem sentindo essa transformação, ainda que de modo mais lento do que outras áreas da medicina. Tem sido crescente a participação do campo da nefrologia na colaboração com bases de dados de revisões sistemáticas na atualidade 3. Do mesmo modo, observa-se um incremento nas publicações baseadas em evidências nos periódicos mais influentes da especialidade. EPIDEMIOLOGIA CLÍNICA O termo Epidemiologia Clínica tem sido definido de várias maneiras. A maioria das definições é centralizada na Clínica e considera epidemiologia clínica como o estudo de desfechos (outcome) como, por exemplo, progressão, complicações, mortalidade das doenças em grupos de pessoas acompanhadas por provedores de cuidados em saúde. Implica, também, uma maneira de produzir e interpretar observações científicas em medicina, desenvolvendo e aplicando métodos de observação clínica capazes de levar a conclusões válidas4,5. Utiliza-se de estratégias comuns à epidemiologia, como a comparação de taxas de ocorrência de eventos entre grupos de indivíduos que compartilham características particulares, produzindo inferências e explicações para as diferenças encontradas. As características que definem um grupo de comparação podem ser um sintoma, um sinal, um procedimento diagnóstico, um tratamento. A forma de estruturação das observações em epidemiologia clínica é semelhante à da epidemiologia, com desenhos de estudo similares. Na epidemiologia clínica, há maior tendência para a utilização de processos de randomização por conta do grande potencial para a presença de fatores de confusão4. Os ensaios clínicos randomizados (ECR) foram considerados por alguns autores 6 o protótipo do estudo de epidemiologia clínica. Entretanto, há diversas questões da prática médica que não podem ser respondidas através desse tipo de estudo por razões como raridade da doença (ou evento estudado) ou por se tratar de situações onde a ética impede estudos de intervenção, para ficar em alguns exemplos. Nesse sentido, também fazem parte da estruturação das observações clínico-epidemiológicas estudos de corte transversal, de coorte, de caso controle, estudos de série, relatos de casos e outras formas de ensaios clínicos, controlados ou não 7. A depender da natureza da pergunta que se apresenta, deve-se buscar o desenho de estudo mais apropriado para respondê-la 8. Muito embora tenha sido proposta há mais de duas décadas, a epidemiologia clínica ainda se constitui em tema bastante atual de discussão entre clínicos e epidemiologistas. Debates sobre a medicina ser ou não ciência (no que diz respeito à “arte de curar”) ainda vigoram. Por 97 outro lado, a antiga postura autoritária dos médicos na tomada de decisão tem sido, aos poucos, substituída por maior participação do paciente e dos provedores de serviços de saúde nas intervenções. Além do mais, inúmeros progressos nas áreas de fisiopatologia, biologia molecular e genética e o desenvolvimento da farmacologia não têm sido capazes de garantir o sucesso terapêutico esperado pela clínica tecnológica moderna. Nesse contexto, surge a epidemiologia clínica, propondo a adoção do raciocínio probabilístico – antes reservado aos epidemiologistas –, na prática clínica para orientar a tomada de decisão diante do paciente. A complexidade cada dia maior na abordagem do paciente vem induzindo a busca de métodos mais poderosos, além da experiência prática, para determinar a validade dos parâmetros diagnósticos (incluindo exame clínico), a confiabilidade dos ensaios clínicos e a eficácia de medidas preventivas e terapêuticas9-11. Sem dúvida, os clínicos encontram-se cada vez mais “expostos” a expressões como randomização, viés (bias), fatores de confusão, desenhos de estudo, validade, significância estatística etc. Esta linguagem era antes utilizada basicamente por epidemiologistas, sempre preocupados com questões metodológicas e analíticas. O interesse dos clínicos por metodologia de pesquisa ainda é bastante incipiente, de forma que, apesar da crescente utilização do jargão epidemiológico, tem-se muito que avançar na aplicação do rigor metodológico. A chamada epidemiologia clínica veio ao encontro de muitas necessidades no cuidado dos pacientes, especialmente no que diz respeito à nefrologia. Nessa disciplina, o clínico se depara com pacientes acometidos de distúrbios de flagrante complexidade, não controlados apesar de todos os avanços em tecnologia, conhecimento fisiopatológico e biologia. A epidemiologia clínica vem somar-se ao arsenal da prática clínica do nefrologista, juntamente com o desenvolvimento da fisiopatologia, medicina molecular e medicina preventiva. Muitas perguntas – no mais das vezes sem resposta – são a rotina na prática do nefrologista. Ainda que, com todo progresso, a qualidade das perguntas tenha mudado, a capacidade de resolução das respostas mostrase longe de ser satisfatória. Mesmo em temas considerados simples, conta-se com respostas efetivas? Ou melhor, qual a qualidade das respostas disponíveis? Diante de um paciente com disúria, ardor para urinar, desconforto abdominal e presença de leucocitúria em exame de urina tipo I, no restante normal, qual o grau de certeza que se tem de que se trata de uma infecção urinária? Tem-se um bom exame diagnóstico, validado por um padrão-ouro, capaz de confirmar a presença de infecção urinária? A depender de quão extensiva e aprofundada seja a busca diagnóstica, provavelmente haverá surpresas nas respostas12. 98 Nefrologia baseada em evidências A epidemiologia clínica apresenta-se, para os nefrologistas, como mais uma possibilidade de respostas de melhor qualidade, de maior impacto na nossa atividade. Trata-se de uma ferramenta a mais na construção do conhecimento em nefrologia e na melhoria da sua prática. A BUSCA DE EVIDÊNCIAS Quando o clínico se depara com um artigo médico que chamou a sua atenção, na maior parte das situações procura soluções ou ajuda para questões do seu dia-a-dia no contato com os pacientes e suas demandas. Dessa maneira, os olhos com os quais o clínico escolhe, analisa e avalia o conhecimento gerado naquele artigo e o utiliza constitui um tema fundamental para apreciação. Apenas recentemente as escolas médicas têm incentivado o ensino de metodologia de pesquisa aplicada à prática clínica na formação dos seus alunos. Por muito tempo, essas questões não foram abordadas na formação do médico. Ainda existe, por parte dos clínicos, a necessidade de reconhecimento da importância dessa proposta, bem como da aplicação desses conhecimentos no cotidiano. Supondo que tenhamos um paciente recentemente transplantado renal em uso de ciclosporina e prednisona. Por experiências prévias, estamos preocupados com a nefrotoxicidade da primeira droga. Buscando alternativas, encontramos um artigo no Trans plantation13, no qual uma proposta de alternativa terapêutica é testada. Ainda que interessados em questões além da nefrotoxicidade, os autores realizaram a conversão do esquema ciclosporina A + prednisona para azatioprina + prednisona (AZA) ou micofenolato mofetil + prednisona (MMF) após um ano do transplante renal. Depois da conversão, observou-se queda da creatinina em ambos os grupos, com p < 0,02 no grupo MMF e p < 0,01 no grupo AZA. Durante o acompanhamento, houve mais rejeição aguda celular no grupo AZA do que no grupo MMF, sendo essa diferença considerada estatisticamente significante, com valor de p < 0,05. [O valor de p, expressão muito utilizada nos artigos científicos, refere-se a uma probabilidade, mais especificamente à probabilidade de que o resultado do que esteja sendo estudado tenha ocorrido ao acaso. Ou seja, um valor de p menor do que 0,05 (ou 5%) quer dizer que, do ponto de vista estatístico, a probabilidade do evento estudado ter ocorrido por acaso é menor do que 5%. No nosso exemplo, a probabilidade do grupo MMF ter um desempenho melhor do que o grupo AZA seria elevada, de 0,95 (ou 95%), porque a chance do bom resultado do grupo MMF ter ocorrido por acaso é menor do que 5%4,5. Entretanto, é de fundamental importância destacar que o valor de p não garante que a qualidade do resultado é confiável. A confiabilidade dos resultados depende da qualidade metodológica com a qual o estudo foi realizado.] Partindo deste pressuposto, de que modo a leitura desse artigo poderá influenciar a atitude frente ao nosso paciente? Se o valor p é significante entre os grupos, isso me garante que os grupos sejam, de fato, diferentes em relação ao efeito das medicações? Os dois grupos de estudo podem ser, do ponto de vista do rigor metodológico, realmente comparáveis? A população estudada foi representativa do grupo de pacientes transplantados naquele serviço? A randomização foi realizada corretamente? Quais as prováveis fontes de viés? Quais foram os critérios utilizados para o diagnóstico de rejeição aguda celular? Esses critérios foram validados? O MMF é, de fato, superior a AZA no que diz respeito ao desenvolvimento de rejeição? Quais seriam as evidências de que diante do nosso paciente transplantado em uso de ciclosporina e prednisona, a conversão para MMF traria benefício? Na proposta de avaliação metodológica mais rigorosa trazida pela epidemiologia clínica, a busca de evidências para as respostas torna-se a pedra-de-toque do que denominamos atualmente “medicina baseada em evidências”, expressão cada vez mais aceita entre os clínicos, embora não ainda com unanimidade. MEDICINA BASEADA EM EVIDÊNCIAS David Sackett e seus colegas definem a medicina baseada em evidências como uma “integração da melhor evidência proveniente de pesquisas à habilidade clínica e aos valores dos pacientes” 2,7. A melhor evidência externa viria de pesquisas clinicamente relevantes, seja proveniente de estudos da ciência básica ou preferencialmente daquelas pesquisas clínicas centralizadas em pacientes. As evidências se aplicariam à acurácia e precisão de testes diagnósticos (incluindo o exame clínico), ao poder de marcadores prognósticos, à eficácia e segurança de medidas terapêutica, reabilitadora ou preventiva etc. O que se denomina de “habilidade clínica individual” compreende a proficiência e o tirocínio de julgamento adquirido através da experiência e da prática clínica. Envolve a capacidade de fazer diagnósticos, de prever respostas e aderência às intervenções propostas de acordo com as características individuais dos pacientes, adquirida através de treinamento e prática. Os valores dos pacientes incluem suas preocupações, preferências e expectativas em relação à sua J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 2 - Junho de 2004 doença, às condutas propostas. Sem a experiência clínica, a prática médica se arriscaria a tornar-se tiranizada pela “evidência” e, sem a “melhor evidência”, a prática se arrisca a, rapidamente, tornar-se ultrapassada. Diante das limitações impostas por deficiências na formação em metodologia de pesquisa, pela constante falta de tempo e pela dificuldade de acesso a periódicos científicos, é difícil para o médico estar em dia com as “melhores evidências”. A produção de novos artigos é cada vez maior e a complexidade dos temas desafiadora. Os livros de texto, no geral, encontram-se desatualizados e muitas vezes não conseguem responder às perguntas do clínico. Freqüentemente apresentam poucas referências para o leitor, com diminuta possibilidade de se inferir a atualidade das informações. Nos seus artigos originais, algumas revistas médicas trazem dados muitas vezes não diretamente pertinentes para a prática clínica. Os periódicos especificamente em nefrologia têm, entretanto, garantido espaço para a publicação de revisões e atualizações. Digno de nota ainda é a crescente preocupação com a divulgação de informações “baseadas em evidência”. Tome-se como exemplo a recente publicação em suplemento do Kidney International ìEvidence-based rec ommendations for the management of glomerulonephri tisî14. Trata-se de um trabalho extenso realizado por nefrologistas canadenses cuja forma de caracterizar os níveis de evidência e os graus das recomendações foi gerada a partir de diferentes modelos de apresentação dessas recomendações. No quadro 1, apresentam-se os níveis de evidência considerados para esse estudo. O sistema de graduação para recomendações foi: A. Recomendações baseadas em um ou mais estudos de nível 1 B. Melhor nível de evidência disponível foi o nível 2 C. Melhor nível de evidência disponível foi 3 D. O melhor nível de evidência disponível foi menor que 3, porém inclui a opinião de um especialista no tema. 99 Como esperado, houve poucas orientações de terapêutica de glomerulonefrites baseadas em informações com recomendações A e B. A maioria delas foi baseada em estudos com níveis de evidência menos convincentes do ponto de vista da epidemiologia clínica (sem randomização, sem grupos de controle adequados etc.). A necessidade de se aumentar os esforços na implementação de pesquisa nessa área da nefrologia pôde, de certa forma, ser “quantificada”. Individualmente, o clínico recebeu subsídios para rever a sua prática, suas certezas e incertezas com informações a mais para firmar sua opinião sobre o tema e auxiliar em suas decisões. Diante de um paciente com Glomeruloesclerose Segmentar e Focal, devemos iniciar tratamento com corticóide? Quais as evidências de que esse tratamento pode trazer mais benefícios do que riscos para o nosso paciente? Ao optarmos por um tratamento, é importante saber com que grau de certeza, sobre benefícios e riscos, estaremos trabalhando? A proposta de medicina baseada em evidências diz que sim. Em situações nas quais as evidências sobre risco e benefício revelam-se incompletas ou contraditórias (como no caso do tratamento das glomerulonefrites), como o conceito de medicina baseada em evidências pode ajudar?15. Por que insistir em tratar uma condição sem muita certeza sobre a efetividade do tratamento, com poucas recomendações de nível A? Essa resposta quem pode dar é o clínico na sua prática, baseado na sua experiência e nas suas impressões sobre o paciente. Todavia, não há dúvida de que se deva sempre buscar a produção de um conhecimento de melhor qualidade como auxílio da prática médica. Na medida em que se têm gerado informações baseadas em evidências, revelam-se grandes deficiências metodológicas dos estudos produzidos em diversas áreas da nefrologia, bem como a insuficiência de recomendações com maior grau de acurácia. Quadro 1- Níveis de evidência considerados na publicação de recomendações para as condutas em glomerulonefrites (ref. 14). Níveis de Evidência 1. Ensaio clínico randomizado que demonstrou diferença estatisticamente significante em, no mínimo, um objetivo considerado importante. Ou se a diferença não foi estatisticamente significante em um ensaio clínico randomizado de tamanho de amostra adequado para excluir uma diferença de risco relativo de 25% com 80% de poder nos dados observados. 2. Ensaio clínico randomizado que não alcança critérios de nível 1. 3. Ensaio clínico não randomizado com controles contemporâneos selecionados por algum método sistemático ou subgrupo de análise de um ensaio randomizado. 4. Série de casos com controles históricos ou controles contraídos de outros estudos. 5. Série de casos (no mínimo 10 pacientes) sem controles. 6. Relato de caso (menos de 10 pacientes). 100 Nefrologia baseada em evidências REVISÕES NARRATIVAS E REVISÕES SISTEMÁTICAS No contexto da já comentada limitação do acesso pelos clínicos a informações de base científica mais rigorosa, são cada vez mais difundidas as guidelines, as diretrizes com as recomendações baseadas em evidências. A publicação de diretrizes é prática antiga em medicina, com recomendações antes estabelecidas em revisões de literatura. Atualmente, existe uma expectativa de que as diretrizes sejam publicadas seguindo um padrão mínimo de informações sobre nível de evidência e elaboradas, quando possível, a partir de revisões sistemáticas de estudos clínicos e de ensaios clínicos randomizados propriamente. As revisões narrativas, no geral, não sofrem a exigência de que os autores sejam extensivos nas escolhas dos artigos a serem citados. Freqüentemente, revisões são escritas por um perito naquele campo, sem deixar explícitas no texto as regras básicas pelas quais a contribuição de cada estudo é ponderada. Recentemente, foi publicada no Jornal Brasileiro de Nefrologia15 uma revisão sobre depressão em pacientes renais crônicos muito oportuna diante da freqüência elevada dessa condição e dos novos lançamentos de medicações antidepressivas no mercado. Ficou clara para o leitor a necessidade de melhorar a capacidade de diagnóstico correto da condição na clínica nefrológica, além de se realizar estudos com maior poder metodológico e estatístico no que diz respeito à etiologia e tratamento. Nas orientações terapêuticas, contudo, não estavam explicitados os níveis de evidência e o grau de segurança de cada recomendação de tratamento farmacológico. Para isso, seria necessária uma outra metodologia no momento da realização do estudo. Uma revisão sistemática, por outro lado, traz a vantagem de tornar explícitas as pressuposições por trás do peso atribuído a vários estudos. Seguem um critério científico definido antecipadamente, com objetivos claros, metodologia rigorosa na coleta de dados (resultados de artigos publicados e, às vezes, não publicados), com conclusões seguindo critérios pré-estabelecidos para a comparação entre os dados. Pondera a importância de cada estudo de acordo com sua adequação a critérios metodológicos pré-determinados e sintetiza quantitativamente os resultados desses trabalhos para formar um estudo com maior poder estatístico do que cada um isolado 17. Quando, do ponto de vista metodológico, é possível, além da comparação entre os estudos, realizar uma avaliação estatística em conjunto dos resultados, a revisão sistemática pode ser apresentada como uma metanálise. Texto publicado no Annals of Internal Medicine18 constitui exemplo do auxílio potencial que as metanálises podem oferecer ao clínico. Interessante notar que não se baseou em ensaio clínico randomizado, porque não era esse o melhor desenho de estudo para a condição em questão: o papel do ANCA no diagnóstico da granulomatose de Wegener. A partir desse artigo, ficou mais clara a necessidade de novos estudos para definição do papel do ANCA no diagnóstico desse tipo específico de vasculite. No corpo do texto são explicitados os passos para a escolha dos artigos, as exigências metodológicas de admissão de cada um na revisão, sendo en passant descrita a própria metodologia da metanálise. Após encontrar 747 artigos na sua primeira busca sobre o tema em questão, apenas 15 restaram para serem incorporados à revisão, por suas possibilidades de comparação entre si e potencialidade de gerar dados confiáveis (quadro 2). Em nefrologia, as revisões sistemáticas e metanálises assumem uma importância ímpar, pois a raridade e a cronicidade na evolução de boa parte das condições clínicas limitam a realização de estudos com amostras de tamanho adequado (do ponto de vista estatístico) e com tempo de seguimento prolongado. As comorbidades que freqüentemente acompanham pacientes com nefropatias são fatores limitantes adicionais à realização de pesquisas clínicas na especialidade. Quadro 2 - Resumo dos resultados do protocolo de seleção de artigos para a metanálise sobre o papel do ANCA-c no diagnóstico da granulomatose de Wegener (ref. 17). 1) Encontrados 747 artigos no MEDLINE – revisados por 2 autores *excluídos 407 2) Um autor revisou os restantes 340 *excluídos 278 3) Foram considerados potencialmente inclusos 62 por 2 autores *excluídos 39 4) Restaram 23 artigos para avaliação *excluídos 8 *Foram excluídos artigos não pertinentes ao tópico, se não apresentavam dados de pacientes, relatos de casos, artigos de revisão, cartas ao editor, série de casos sem controle, artigos sem critérios de definição da Granulomatose de Wegener, aqueles com dados impossíveis de serem agrupados em tabelas de contingência. J Bras Nefrol Volume XXVI - nº 2 - Junho de 2004 101 Quadro 3 - Critérios adotados pela Associação Européia de Nefrologia (ERA – EDTA) para as diretrizes sobre condutas em distúrbios de cálcio e fósforo em pacientes renais crônicos (ref. 19). Nível de evidência A: Metanálise de vários ensaios clínicos randomizados, ensaio clínico randomizado. Nível de evidência B: Ensaio controlado sem randomização, estudo experimantal, estudo comparativo, estudo de caso, estudo de correlação. Nível de evidência C: Relato de um perito, opinião ou experiência clínica de autoridades respeitadas. Diante da ausência de ensaios clínicos randomizados individuais que apresentassem “a melhor evidência” quanto ao procedimento dialítico preferencial para pacientes renais agudos internados em unidades de terapia intensiva, Tonelli e cols19. lançaram mão da realização de uma metanálise para comparar a impacto da utilização de hemodiálise intermitente (HI) ou de terapia renal substitutiva contínua (TRSC) nessas circunstâncias. Na descrição dos métodos, os autores explicitam o protocolo de busca dos artigos, enfatizando que procuraram incluir artigos publicados e pesquisas não publicadas, bem como textos em línguas variadas, para evitar vieses na seleção do dados. Quando necessário, entraram em contato direto com os autores dos textos selecionados para esclarecimentos metodológicos. Para ser incluído na revisão, o estudo deveria ser randomizado e ter dados sobre mortalidade dos pacientes tratados com HI ou TRSC. Embora procedimentos dialíticos sejam amplamente utilizados no atendimento aos pacientes críticos, de 2.028 resumos de textos pertinentes ao tema que foram examinados, apenas 6 ensaios clínicos puderam ser incluídos na revisão sistemática. Os autores concluíram, baseados em dados com um maior número de pacientes observados em estudos com metodologia mais rigorosa, que a terapia renal substitutiva contínua não oferece vantagem quanto à mortalidade ou recuperação da função renal em pacientes críticos, não selecionados, com insuficiênia renal agurda. DIRETRIZES As metanálises, juntamente com os ensaios clínicos randomizados, têm sido importante fonte (quando possível) para a confecção de diretrizes ou guidelines. Nem sempre os ECR e metanálises de ECR podem ser realizados, como já comentado. Em nefrologia, por exemplo, diante da raridade de algumas condições, heterogeneidade dos pacientes e das patologias, cronicidade da evolução de determinadas condições etc., muitas vezes são necessários outros desenhos de estudo para a concretização de uma pesquisa clínica. São cada vez mais comuns diretrizes baseadas em evidências publicadas em nefrologia. Com isso, é fla- grante, nessa disciplina, a parca produção de estudos de maior poder metodológico para a orientação da tomada de decisão na prática. Em contraste com outras áreas da medicina, em nefrologia há um longo caminho a ser percorrido para a realização de estudos comprometidos do ponto de vista metodológico com essa nova forma de abordagem baseada em evidências. Diretrizes publicadas no Nephrology Dialysis Transplantation20 sobre condutas diante de distúrbios de cálcio e fósforo em pacientes renais crônicos, também foram elaboradas segundo níveis de evidência. Não há consenso sobre qual a melhor forma de classificar as recomendações de acordo com níveis de evidência. Nessa publicação, em particular, foram seguidos critérios vigentes nos Estados Unidos20,21 (quadro 3). Os critérios para as recomendações utilizados pelo grupo europeu desta publicação foram diferentes dos já aqui citados, desenvolvidos pelo grupo canadense14. Contudo, fica claro para o leitor, na medida em que se aprofunda no texto, que as condutas recomendadas para o tratamento dos distúrbios de cálcio e fósforo em renais crônicos basearam-se em um único ensaio clínico randomizado. Ainda assim, trata-se de informação importante para a tomada de decisão pelo clínico e demonstra a necessidade de investimento em produção científica mais rigorosa em mais essa área da nefrologia. Em sintonia com a tendência internacional, o Jornal Brasileiro de Nefrologia tem aberto espaço para publicação de diretrizes baseadas em evidências. Entretanto, a caracterização dos níveis de evidência não tem sido uniforme entre as diretrizes publicadas no JBN, o que exige atenção maior do leitor na hora de apreciar as recomendações que venham a orientar a sua prática médica22,23. Muito se tem investido na confecção de guide lines, mas relativamente pouco em sua implementação e em estudar o seu impacto real na prática clínica e na qualidade do atendimento, bem como na saúde e qualidade de vida dos pacientes. Esse é mais um desafio atual para a proposta de medicina baseada em evidências. Alguns estudos em andamento, outros já realizados, apontam para mais essa preocupação em nefrologia24. Os organizadores das diretrizes frisam o papel destas como a de apenas mais um instrumento de orien- 102 Nefrologia baseada em evidências tação do médico. A responsabilidade pela decisão tomada frente ao paciente é do médico de forma autônoma e baseado na sua experiência, nas evidências externas encontradas e de acordo com a adequação e aceitação do paciente e da comunidade na qual a sua prática está inserida. CONCLUSÃO Críticas não faltam em relação a essa nova proposta de prática médica7,9,15,25,26, a começar pela suposta novidade. Alguns autores consideram que é antiga a prática de avaliação de evidência pelos médicos diante de uma decisão a tomar. Os defensores da medicina baseada em evidências rebatem que, em verdade, o mais comum entre os médicos é a multiplicidade de condutas diante de quadros semelhantes. Além disso, boa parte dos médicos busca a opinião de colegas mais experientes como fonte de informação mais rápida, mesmo estando sujeita a vieses. Verifica-se, ainda, uma declarada preocupação, tanto dos críticos quanto dos defensores da medicina baseada em evidências, no que diz respeito às pressões de mercado. Diretrizes racionalizadoras do uso de recursos diagnósticos e terapêuticos beneficiam muitas vezes as empresas privadas e governos na prestação de serviços em saúde, diminuindo os custos. Há o receio de que pressões para a redução de custos na prática médica atinjam o compromisso dos médicos e pesquisadores com a imparcialidade na prestação de serviços, na utilização de informações e produção de conhecimento. Em contrapartida, surge a hipótese de que a melhoria da qualidade na condução dos pacientes traria benefícios à sobrevida dos mesmos com conseqüente elevação de custos em última instância para os prestadores de serviços em saúde. Outro desafio a ser enfrentado e equacionado é o conflito entre a ética individual da eficácia utilizada pelos clínicos com informações baseadas em evidências e a ética populacional da eficiência (eficácia com menor custo). Utilizar a “melhor evidência” pode significar a conduta mais cara. Se os provedores de saúde gastam muito com um paciente, isso pode significar falta de recurso para outro. Cria-se um impasse. Os provedores em saúde argumentam que os orçamentos são finitos e provocam questionamentos sobre a possibilidade de que pacientes estejam recebendo os benefícios de recursos de formas diferentes. O debate continuará provavelmente por bastante tempo. Especialidades clínicas que enfocam condições crônicas, como a nefrologia, deverão cada vez mais se engajar nessa importante discussão. Ainda que não seja consenso nas escolas médicas e nas instituições promotoras e financiadoras da saúde individual e coletiva, a tendência é que cada vez mais os currículos assumam a epidemiologia clínica como disciplina básica fundamental para a formação do médico. Aos poucos, a difusão da medicina baseada em evidências como uma nova forma de abordar os problemas da prática médica tem contribuído para o entendimento mais completo das patologias. Além disso, tem influenciado positivamente na atualização dos médicos que, cada vez mais, por diversas razões, sofrem limitações de acesso às informações sobre a produção do conhecimento geral e específico. No que diz respeito à nefrologia, a epidemiologia clínica e a proposta de uma medicina baseada em evidência vêm ao encontro de uma necessidade antiga de reflexão sobre as suas próprias práticas e de geração de novos paradigmas para explicar as doenças no sentido de controlá-las e aos seus efeitos, melhorando a qualidade de vida dos pacientes. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Carlos Alfredo Marcílio de Souza por suas críticas e sugestões a esse texto. REFERÊNCIAS 1. Luz M. Natural racional social-razão médica e racionalidade científica moderna. Rio de Janeiro: Campus, 1988. 6. Miettinen O. The clinical trial as a paradigm for epidemiological research. J Clin Epidemiol 1989;42:491-6. 2. Sackett DL, Straus S, Richardson WS, Rosenberg W, Haynes RB. Evidence-based medicine. 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