From the SelectedWorks of Letícia de Campos Velho Martel Fall March 18, 2010 Direitos Fundamentais Indisponíveis: os limites e os padrões do consentimento para a autolimitação do direito fundamental à vida Letícia de Campos Velho Martel Available at: http://works.bepress.com/leticia_martel/5/ UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DOUTORADO EM DIREITO PÚBLICO DIREITOS FUNDAMENTAIS INDISPONÍVEIS – OS LIMITES E OS PADRÕES CONSENTIMENTO PARA A AUTOLIMITAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL RIO DE JANEIRO 2010 DO LETÍCIA DE CAMPOS VELHO MARTEL DIREITOS FUNDAMENTAIS INDISPONÍVEIS – OS LIMITES E OS PADRÕES DO CONSENTIMENTO PARA A AUTOLIMITAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA Tese de Doutoramento, apresentada ao Centro de Pós-Graduação em Direito Público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do título de Doutor em Direito Público. Orientador: PROF. DR. LUÍS ROBERTO BARROSO RIO DE JANEIRO 2010 Elogio da sombra Jorge Luis Borges1 A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade. O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma. Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão. Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser a Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Once e as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul. Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade. Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros. Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno. Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte convergem os caminhos que me trouxeram a meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas. Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho. Breve saberei quem sou. 1 BORGES, Jorge Luís. Elogio da sombra. In: BORGES, Jorge Luis. Elogio da Sombra e Um ensaio autobiográfico. Trad. [para Elogio da Sombra] Carlos Nejar e Alfredo Jacques; Trad. [para Um ensaio autobiográfico] Maria da Glória Bordini. 5.ed. São Paulo: Globo, 1993, p.67. LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS Abr./Apr. ACP ADIn ou ADI Ago/Ag. AMM CCB CEDH CF/88 CFM Cit. CNS COE CP CPC CPP CRM Des. Dez. DJ e.g. ECA Extr. Fev. FMC GT HC i.e. IEE Jan. Jul. Jun. LCT LICC M.S. Mai. Mar. Min. MP MPT MS n. nº Nov. NSV Abril Ação Civil Pública Ação Direta de Inconstitucionalidade Agosto Associação Médica Mundial Código Civil Brasileiro Corte Européia de Direitos Humanos Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Conselho Federal de Medicina Citado Conselho Nacional de Saúde Conselho Europeu Código Penal Código de Processo Civil Código de Processo Penal Conselho Regional de Medicina Desembargador(a) Dezembro Diário de Justiça exempli gratia Estatuto da Criança e do Adolescente Extraordinário Fevereiro Fundamentação da Metafísica dos Costumes Grupo de Trabalho Habeas Corpus isto é Intervenção Efetiva Estabelecida Janeiro Julho Junho Limitação Consentida de Tratamento Lei de Introdução ao Código Civil Ministério da Saúde Maio Março Ministro(a) Ministério Público Ministério Público do Trabalho Mandado de Segurança Número Número Novembro Não-oferta de suporte vital OMS ONR ONU Out./Oct. PGR POP RE Rel. REsp. RISF RSV Set. STF STJ TJ TJRJ TJRS TJSP TRF TST UNESCO UTI v. v. Organização Mundial da Saúde Ordem de Não-Ressuscitação Organização das Nações Unidas Outubro Procuradoria Geral da República Procedimento Operacional Padrão Recurso Extraordinário Relator(a) Recurso Especial Regimento Interno do Senado Federal Retirada de Suporte Vital Setembro Supremo Tribunal Federal Superior Tribunal de Justiça Tribunal de Justiça Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Tribunal Regional Federal Tribunal Superior do Trabalho Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura Unidade de Terapia Intensiva Versus Volume ii LISTA DE SÍMBOLOS ^ = ⌐ ↔ C D E F G O P S X Y A B Combinado com (conjuntivo) Igual Negação Logicamente Equivalente Competência Direito Destinatário do Direito (Estado) Operador deôntico indicador de Proibição Objeto do Direito Operador deôntico indicador de Mandato Operador deôntico indicador de Permissão Sujeição Titular do Direito Destinatário do Direito (particular) Titular do Direito Destinatário do Direito (particular) iii Tese defendida em 18 de Março de 2010. Aprovada com nota máxima (10,0), Distinção e Louvor. Banca examinadora: Luís Roberto Barroso - UERJ Ricardo Lobo Torres – UERJ Daniel Antônio de Moraes Sarmento – UERJ Clemerson Merlin Cleve – UFPR Cláudio Pereira de Souza Neto – UFF iv RESUMO O tema da tese é a indisponibilidade dos direitos fundamentais de cunho pessoal. Está delimitado no exame da possibilidade de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida e na análise dos limites e padrões do consentimento para a autolimitação, no contexto da morte com intervenção, à luz do sistema constitucional brasileiro. Como marco teórico, foi adotado o liberalismo igualitário, aliado a teorias primariamente baseadas em direitos. O objetivo geral foi discutir a possibilidade de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida e os limites e padrões do consentimento autolimitador, no contexto da morte com intervenção. Para atender ao objetivo, foram traçados quatro objetivos específicos, cada qual correspondente a um Capítulo. O primeiro foi delimitar conceitualmente a disposição de direitos fundamentais, distinguindo-a de figuras afins. Concluiu-se que a indisponibilidade é normativa e que dispor de um direito fundamental significa enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado, quer sejam particulares, permitindo-lhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. Reputado indisponível um direito, apenas o consentimento do titular não será suficiente a alterar posições subjetivas de direito fundamental, não justificando a interferência de terceiros, nem criando novos deveres de mesmo conteúdo para o titular. O consentimento é necessário à disposição e opera como justificação procedimental. O segundo objetivo específico foi investigar as teses de justificação da (in)disponibilidade. O estudo levou à adoção da premissa operativa da tese, a disponibilidade prima facie das posições subjetivas de direitos fundamentais. Concluiu-se pela necessidade de justificação para o emprego de argumentos de paternalismo jurídico e afins, bem como para a dignidade como heteronomia, eis que o sistema constitucional, à luz da integridade, tende mais à dignidade como autonomia. O terceiro objetivo específico foi investigar as teses de aplicação sobre a disponibilidade. Concluiuse que a genuinidade do consentimento, centrada na escolha livre e informada, é elemento aplicativo nuclear, ao lado das modalidades de disposição, da relação de base, dos postulados normativos aplicativos e do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Concluiu-se que para que o titular possa dispor, é preciso que seja um sujeito do consentimento. Em hipóteses de julgamento por substituição e de atuação de representantes, poderá ocorrer disposição, se houver recondução ao consentimento ou modo de decidir do titular. O quarto objetivo específico consistiu em compreender e discutir a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida no contexto da morte com intervenção. Como conclusão central, entendeu-se que é justificável que sejam reputadas indisponíveis as posições subjetivas do direito fundamental à vida como linha de princípio, em função da proteção dos direitos de terceiros, da manutenção dos níveis de proteção do direito à vida em sua dimensão objetiva e da dignidade humana como heteronomia. As condicionantes fáticas e jurídicas da morte com intervenção modificam a justificação para a indisponibilidade das posições subjetivas do direito fundamental à vida quanto à LCT, em razão: (a) das diferenças entre a LCT e os cuidados paliativos, de um lado, e a eutanásia e o suicídio assistido, de outro; (b) do equacionamento diferenciado na aplicação do postulado da proporcionalidade; (c) da dignidade humana como autonomia; (d) da vedação do paternalismo e afins injustificados. Em assim sendo, há hipóteses permitidas de disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida, quais sejam, a recusa genuína em iniciar ou persistir em intervenções médicas de prolongamento e de manutenção de vida. Concluindo-se pela permissão da LCT e das disposições de posições subjetivas do direito à vida que acarreta, elaboraram-se as diretrizes para a genuinidade do consentimento. Além das diretrizes básicas, expostas no Capítulo 3, na LCT são necessárias: (a) verificação da origem da decisão e da maturidade da manifestação por profissionais habilitados, após o adequado processo de informação; (b) confirmação do diagnóstico e do prognóstico; (c) verificação da inocorrência de depressão tratável; (d) verificação da adequação dos paliativos e tratamentos para a dor oferecidos; (e) verificação de eventuais conflitos de interesses entre a instituição hospitalar, a equipe de saúde e os interesses dos pacientes e de seus responsáveis; (f) garantia de assistência plena, se desejada, e verificação da inexistência de conflitos econômicos; (g) verificação da inexistência de eventuais conflitos de interesses entre o paciente e seus familiares ou representantes; (h) debate dos casos e condutas por Comitês Hospitalares de Bioética, quando ainda não houver posicionamento em situações análogas; (i) formulação de TCLE específico. Conjuntamente às salvaguardas, concluiu-se pela necessidade de adoção de quatro políticas públicas: (a) regulamentação dos contornos da LCT; (b) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos sistemas de cuidados paliativos e de controle da dor; (c) incentivo, aperfeiçoamento e promoção dos CBs; (d) educação dos profissionais da saúde para a tomada de decisões morais complexas e para o trato com a finitude humana, além de informação do público em geral. AGRADECIMENTOS “No fim da minha visita ao hospital, ele começou a contar suas lembranças. Lembrou-me de coisas que devo ter dito quando tinha dezesseis anos. Naquele momento, compreendi o único sentido que a amizade pode ter hoje. A amizade é indispensável ao homem pata o bom funcionamento de sua memória. Lembrar-se do passado, carregá-lo sempre consigo é talvez condição necessária para conservar, como se diz, a integridade do seu eu. Para que o eu não se encolha, para que guarde seu volume, é preciso regar as lembranças como flores num vaso e essa rega exige um contato regular com testemunhas do passado, quer dizer, com os amigos. Eles são nosso espelho; nossa memória; não exigimos nada deles, a não ser que de vez em quando nos lustrem esse espelho para que possamos nos olhar nele. Mas estou pouco ligando para o que fazia no ginásio! O que sempre desejei, desde a adolescência, desde a infância talvez, foi outra coisa: a amizade como valor elevado acima de todos os outros. Gostava de dizer: entre a verdade e o amigo, escolho sempre o amigo. Dizia para provocar, mas acreditava seriamente nisso. Hoje sei que esta máxima está superada. Podia ser válida para Aquiles, amigo de Pátroclo, para os mosqueteiros de Alexandre Dumas, até mesmo para Sancho, que era um amigo verdadeiro de seu amo, apesar de todas as suas desavenças. Mas para nós ela não vale mais. Vou tão longe no meu pessimismo que hoje estou pronto a preferir a verdade à amizade. (…) A amizade para mim era a prova de que existe alguma coisa mais forte do que a ideologia, do que a religião, do que a nação. No romance de Dumas, os quatro amigos se encontram muitas vezes em campos opostos, obrigados assim a lutar uns contra os outros. Mas isso não altera a amizade deles. Não deixam de se ajudar (…). Como a amizade nasceu? Certamente como uma aliança contra a adversidade, sem a qual o homem ficaria desarmado perante seus inimigos. Talvez não se tenha mais necessidade de alianças desse tipo. (…) [os inimigos] são invisíveis e anônimos (…). Atravessamos nossas vidas sem grandes perigos, mas também sem amizade”.2 Ao pensar em como redigir os agradecimentos, lembrei de um trecho de Milan Kundera, sobre a diferença entre caminhos e estradas. Minha memória me traiu e procurei na obra errada. Foi então que encontrei o excerto que transcrevi. As personagens de Kundera invariavelmente levam-me à reflexão sobre a formação do caráter e da identidade e sobre o nosso relacionamento com o outro. Jean-Marc que me perdoe, mas penso que o pessimismo incorre em petição de princípio. Posso até compreender que, diante de inimigos invisíveis, as amizades desmanchariam no ar. Como diria Baumann, nossas relações liquefeitas, em rede distante e virtual. Compreender não significa concordar. Ainda creio na amizade como uma das virtudes nicomaquéias, aquelas amizades que são preciosamente cultivadas nos mais diversos âmbitos da existência, cada qual com suas nuances, na vida familiar, íntima, profissional. Acredito na solidez em tempos líquidos e creio que os agradecimentos que seguem dão uma boa prova. Agradeço imensamente a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram na construção deste trabalho. Os agradecimentos não se restringem às pessoas e instituições que colaboraram de modo direto para a pesquisa, mas àquelas que, por algum meio, tornaram-na viável. Meu sincero muito obrigada: 2 KUNDERA, Milan. A identidade. Trad. Teresa Bulhões de Carvalho. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p.43-46. À Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Aos meus olhos que buscam cor, a primeira impressão foi cinzenta. Mas as cores estão nas pessoas que compõem a Universidade. Bastou saber olhar para encontrar um ambiente de aprendizagem, respeito e efervescência acadêmica. Agradeço especialmente à Pós-Graduação em Direito, pela acolhida, seriedade, republicanismo e espaço proporcionado. À CAPES, por viabilizar materialmente parte da realização da pesquisa, bem como pela manutenção dos portais de periódicos e de teses e dissertações. À Universidade do Extremo Sul Catarinense, por proporcionar aos seus docentes a constante busca pelo saber. Ao Prof. Dr. Luís Roberto Barroso, pelo exemplo. Pela confiança. Pela sabedoria. Por ser a pessoa que é. Mais do que exemplo acadêmico, exemplo de vida. Em um dos seus discursos, ele escreveu que teve uma pitada de sorte em sua carreira (mas eu creio que o merecimento, no seu caso, não depende de sorte alguma...). De qualquer modo, desta vez a sorte esteve comigo, por ser orientada por um estudioso tão competente e com tantas virtudes morais. Como aprendi com meu orientador de mestrado, existem virtudes que só os espíritos elevados possuem. Felicidade a minha conviver academicamente com uma pessoa assim, que não apenas crê no bem, na tolerância e igualdade, mas os pratica, sem perder a leveza e o bom humor. Tudo isso em conjunto a um conhecimento jurídico inigualável. Obrigada. Ao Prof. Dr. Daniel Sarmento, pesquisador incansável, que constrói e pratica o direito sempre ao ensejo do igual respeito e consideração. Como Professor, instiga os estudantes ao exercício do pensar, com abertura, inteligência e, claro, com igual respeito e consideração. Obrigada por todos os ensinamentos, pelo espaço, pelas indicações de leitura, troca de ideias. Com certeza minha trajetória acadêmica estará profundamente marcada pelas suas aulas. Obrigada. À Profª. Drª. Bethânia de Albuquerque Assy, uma daquelas surpresas inacreditáveis que a vida nos traz. Obrigada pelos ensinamentos, pelos debates, pela confiança. Obrigada por mostrar a sabedoria, o tempero da força com a gentileza, da razão com a sensibilidade. Obrigada pela inspiração. Ao Prof. Dr. Ricardo Lobo Torres, pela sua seriedade e amor pela vida acadêmica, que se transmite aos seus alunos. Agradeço também pela paciência e incentivo. Expresso minha intensa admiração pela combinação ímpar de conhecimento e humildade. À Profª. Drª. Maria Celina Bodin de Moraes e à turma de civil-constitucional pela instigação ao conhecimento e pela acolhida. À Professora Ana Paula de Barcellos, pela seriedade, caráter e receptividade. Ao Prof. Dr. Ingo Sarlet, pelos ensinamentos e, especialmente, por ter enviado um texto crucial para o desenvolvimento do projeto de doutoramento. A todos os professores da Pós-Graduação em Direito da UERJ, em especial às professoras Jane Reis Gonçalves Pereira, Patrícia Glioche e Paulo Galvão. Agradeço imensamente à Sônia Leitão, que, com gentileza, simpatia e competência, está sempre pronta a auxiliar e amparar os pós-graduandos da UERJ. Ao Prof. Dr. Cláudio Ladeira de Oliveira, pelo grande apoio acadêmico. Ao Prof. Dr. Salo de Carvalho, pela colaboração acadêmica. vi Aos colegas do mestrado e do doutorado em Direito da UERJ, em especial: Amália, uma amiga de verdade. Bruno e Antônio, colegas, interlocutores e amigos. Fábio Andrade e Rachell, pela amizade e gentileza. Fábio Leite, pela interlocução e amizade. À Ana Maria, pela força e constância. Aos Professores Sílvio Dobrowolski e Moacyr Motta da Silva, sempre presentes. Ao meu grande e primeiro amigo Daniel Aragão, ou seria Dartagnan? À minha grande e primeira amiga, Carla Ribeiro, ou seria Aramis? À minha amiga Cristiane de Menezes. Única. Demorei mais de dez anos para perceber sua estatura real, tão grande a alma... À minha amiga Leca. À minha amiga Mônica, “em todo tempo ama o amigo, e na angústia se faz o irmão” (Rogério, você também...). Ao meu amigo Carlos Strapazzon, ou seria Athos? À minha amiga Liana Lins, que sabe onde a beleza está. À minha amiga Dida, presente enviado pela Liana, a riqueza em pessoa. À minha querida amiga Débora, “presença certa nas horas incertas”. As amigas de sempre, Dani Estevão, Fofa, Bila, Luthi, Karen (eu estou muito ligando para o que fazíamos no ginásio!), Di, Simone, Kümell, Pati, Josi, Flica&Fábio. Agradeço também à Aline Daronco, Valerinha, Bibi, Rogério e Ekatherina. Ao Gustavo Pedrollo, pela trilha sonora. À Ju, por cuidar de como pisar com alma leve. Agradeço à Diana, Ivi e Maíra, pelo apoio. Aos colegas e estudantes da UNESC, principalmente os Professores Luís Afonso, Gildo Volpatto, Félix, Ricardo Pinho, João Quevedo, Michel Alisson, Aline Bez, Alfredo Engelmann, Janete, Sheila, Geralda, Carlos Magno, Clélia, Tânia, Vanessa e Karina. À Patrícia Gaspar dos Santos. E, mais do que especial, à Louvani de Fátima Sebastião da Silva. Aos amigos da Prorunner, especialmente Riro e Kari, Santi e Vavá, Gerusa e ao Marco. Aos amigos da Água Doce, por entenderem a falta de horários... À Maria Joana, presença constante, forte e discreta na minha vida acadêmica. Creio que todos os meus textos passaram por suas mãos... À Ana Agassi e sua família, verdadeiros amigos. Reservei o final àqueles a quem mais grata sou. Sempre: Nadão (in memorian), Izara, Teca, João, Gué (a terceira), Paulo, Inho, Greice, Camilinha, Kenji, Fer, Zé, Ellen, João, Rafa, Catito, Clarice, Lelo, Jamile, Lucca e Jaime. A propósito, o doutorado foi um caminho, não uma estrada. E a obra era A imortalidade... vii SUMÁRIO 1. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS E DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS................................................................. 15 1.1 DIREITOS INDISPONÍVEIS: CONCEITO LACÔNICO, CONSEQUÊNCIAS DUVIDOSAS ...................... 17 1.1.1 A DOUTRINA: TENDÊNCIA CONCEITUAL E DISTINTOS POSICIONAMENTOS ................................... 17 1.1.2 A LOCUÇÃO DIREITOS INDISPONÍVEIS: SEUS DIVERSOS SENTIDOS NA LEGISLAÇÃO E NA JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRAS ............................................................................................................. 22 1.1.3 SÍNTESE CONCLUSIVA .................................................................................................................. 34 1.2 DIREITOS FUNDAMENTAIS: COMPREENDER A ESTRUTURA PARA COMPREENDER O CONCEITO ............................................................................................................................................................... 37 1.2.1 CONFUSÃO CONCEITUAL E A IMPORTÂNCIA DA CLAREZA ........................................................... 37 1.2.2 OPÇÃO METODOLÓGICA ............................................................................................................... 38 1.2.3 ESTRUTURA DE UM DIREITO FUNDAMENTAL................................................................................ 40 1.2.4 SÍNTESE CONCLUSIVA E TOMADA DE POSIÇÃO ............................................................................. 57 1.3 DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA PROPOSTA CONCEITUAL ............................... 60 1.3.1 O TRIPÉ: TITULARIDADE DA DIMENSÃO SUBJETIVA, INTERSUBJETIVIDADE E O OBJETO DA RELAÇÃO JURÍDICA JUSFUNDAMENTAL................................................................................................. 60 1.3.2 CONDIÇÃO NECESSÁRIA: MANIFESTAÇÃO AUTÔNOMA ................................................................ 63 1.3.3 ENFRAQUECIMENTO DE POSIÇÕES JURÍDICAS SUBJETIVAS DE DIREITO FUNDAMENTAL .............. 67 1.4 DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS ...................................................................................................... 75 1.4.1 NÃO-EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL............................................................................... 75 1.4.2 RESTRIÇÃO HETERÔNOMA DO DIREITO ........................................................................................ 77 1.4.3 O DANO A SI E A AUTOCOLOCAÇÃO EM RISCO .............................................................................. 83 2. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE JUSTIFICAÇÃO............................................................................................................. 85 2.1 CONCEPÇÕES DE DIREITO SUBJETIVO: AS TEORIAS DA VONTADE E DO INTERESSE .................. 88 2.1.1 DIREITO SUBJETIVO, TEORIA DA VONTADE E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ............ 89 2.1.2 DIREITO SUBJETIVO, TEORIA DO INTERESSE E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS ........... 91 2.2 A EXTENSÃO DO DIREITO DE LIBERDADE E SEUS REFLEXOS SOBRE A DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................................................................... 93 2.2.1 O DIREITO GERAL DE LIBERDADE: DIREITOS FUNDAMENTAIS DISPONÍVEIS PRIMA FACIE ............ 94 2.2.2 LIBERDADES BÁSICAS: EXERCÍCIO INTERPRETATIVO PARA DETERMINAR O PONTO DE PARTIDA 99 2.2.3 SÍNTESE CONCLUSIVA E TOMADA DE POSIÇÃO ........................................................................... 108 2.3 LIMITES À LIBERDADE: O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO E O PATERNALISMO JURÍDICO ........ 113 2.3.1 O PRINCÍPIO LIBERAL DO DANO .................................................................................................. 115 2.3.2 O PATERNALISMO JURÍDICO ....................................................................................................... 121 2.3.3 PATERNALISMO JURÍDICO E INDISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS ...................... 142 2.4 A DIGNIDADE HUMANA: A TENSÃO ENTRE AS VERSÕES AUTÔNOMA E HETERÔNOMA ............ 147 2.4.1 A DIGNIDADE HUMANA COMO CONCEITO INÚTIL ....................................................................... 149 2.4.2 A DIMENSÃO MATERIAL DA DIGNIDADE HUMANA ..................................................................... 151 2.4.3 DIGNIDADE HUMANA COMO VIRTUDE ....................................................................................... 153 2.4.4 A DIGNIDADE HUMANA COMO AUTONOMIA ............................................................................... 154 2.4.5 A DIGNIDADE HUMANA COMO HETERONOMIA ........................................................................... 172 2.4.6 DIGNIDADE HUMANA E DISPOSIÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: ASSUMINDO UMA POSIÇÃO 188 3 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE APLICAÇÃO................................................................................................................. 201 3.1 AS MODALIDADES DE DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES JURÍDICAS SUBJETIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS .................................................................................................................................. 203 3.2 QUALIDADE DO CONSENTIMENTO .............................................................................................. 212 3.2.1 OS SUJEITOS DO CONSENTIMENTO .............................................................................................. 217 3.2.2 GENUINIDADE DO CONSENTIMENTO .......................................................................................... 232 3.3 OS SUJEITOS DA RELAÇÃO JURÍDICA DE DIREITO FUNDAMENTAL .......................................... 267 3.4 OS POSTULADOS NORMATIVOS................................................................................................... 275 3.5 O CONTEÚDO ESSENCIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DISPOSIÇÃO: O LIMITE DOS LIMITES?............................................................................................................................................. 289 4 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À VIDA NO CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO ..................................................................... 297 4.1 O DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA: UM VELHO (DES)CONHECIDO............................................ 303 4.1.1 O DIREITO À VIDA: APONTAMENTOS INICIAIS ......................................................................... 303 4.1.2 A ESTRUTURA BÁSICA DO DIREITO À VIDA ................................................................................. 311 4.2 DA INDISPONIBILIDADE DO DIREITO À VIDA ........................................................................... 326 4.3 DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES SUBJETIVAS DO DIREITO À VIDA NO CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO ..................................................................................................................................... 333 4.3.1 MORTE COM INTERVENÇÃO: UM DIÁLOGO SOBRE NOVOS CONCEITOS E SEUS REFLEXOS JURÍDICOS ............................................................................................................................................ 333 iv 4.3.2 CONCLUSÕES PARCIAIS SOBRE OS NOVOS CONCEITOS ............................................................ 358 4.3.2 HIPÓTESES DE DISPOSIÇÃO DE POSIÇÕES SUBJETIVAS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS NA MORTE COM INTERVENÇÃO ................................................................................................................. 360 4.4 4.4.2 REVISITANDO A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO 364 LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: OUTRA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL NA MOLDURA DO DIREITO PENAL ............................................................................................................................... 373 4.4.3 LEGISLAÇÃO PENAL E LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: A NECESSÁRIA FILTRAGEM CONSTITUCIONAL .................................................................................................................................. 377 4.4.4 A LEGISLAÇÃO CIVILISTA: A VEDAÇÃO DA RENÚNCIA, TRANSMISSÃO E NÃO-EXERCÍCIO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE E A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO .................... 392 4.4.5 4.5 LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: QUAL DIGNIDADE? .......................................... 398 AINDA É LONGO O CAMINHO: AO PERMITIR, É PRECISO REGULAMENTAR .......................... 402 4.5.2 A LIMITAÇÃO CONSENTIDA DE TRATAMENTO: DIRETRIZES BASILARES ................................. 404 4.5.3 OS SISTEMAS DE CUIDADOS PALIATIVOS ................................................................................ 410 4.5.4 OS COMITÊS HOSPITALARES DE BIOÉTICA ............................................................................. 414 4.5.5 EDUCAÇÃO DOS PROFISSIONAIS E INFORMAÇÃO DO PÚBLICO ................................................ 417 REFERÊNCIAS ................................................................................................................................ 430 v INTRODUÇÃO “Gosto imensamente desta vida e desejo falar sobre ela com liberdade: dá-me o orgulho de minha condição de homem. Sobre o mar, o silêncio enorme do meiodia. Todo ser belo tem o orgulho natural de sua beleza, e o mundo, hoje, deixa seu orgulho destilar por todos os poros. Diante dele, por que haveria de negar a alegria de viver, se conheço a maneira de não encerrar tudo nessa mesma alegria de viver? Não há vergonha alguma em ser feliz. Há um tempo para viver e um tempo para testemunhar a vida. (…). Penso agora em flores, sorrisos, desejo de mulher, e compreendo que todo o meu horror de morrer está contido em meu ciúme de vida. Sinto ciúme daqueles que virão e para os quais as flores e o desejo de mulher terão todo o seu sentido de carne e de sangue. Sou invejoso porque amo demais a vida para não ser egoísta... Quero suportar minha lucidez até o fim e contemplar minha morte com toda a exuberância de meu ciúme e de meu horror.”3 “Aqui, compreendo o que se chama glória: o direito de amar sem medida”4 “Eu amo a vida, eis minha verdadeira fraqueza. Amo-a tanto que não tenho nehuma imaginação para o que não for vida”5 3 CAMUS, Albert. Núpcias, o verão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979. CAMUS, Albert. Núpcias..., Op. cit. 5 Atribuído a Albert Camus, na obra A Queda, por Jorge Luis Gutiérrez. 4 Conta-se que Sigmund Freud, após dezesseis anos de sofrimentos atrozes em decorrência de um câncer de maxilar, solicitou ao seu fiel amigo e médico Schur a abreviação daquilo que chamou tortura. Com a aquiescência de Anna, o médico despediu-se do amigo e ministrou doses demasiadamente altas de morfina. Diz-se que Freud havia viajado à Inglaterra para morrer em liberdade (parafraseando Veríssimo, é assim que nascem os mitos)*. Setenta anos se passaram. Neste longo lapso, o mundo assistiu à barbárie nazista, à matança, dita eugênica, de milhões de pessoas. Forjaram-se Declarações Internacionais de Direitos, manifestou-se, mais e mais, o intenso e sagrado valor da vida e da liberdade humanas. Paralelamente, muito avançou a medicina, tanto em suas técnicas, como na discussão do seu papel ético. Também mudaram muito as sociedades políticas ocidentais, que vem se modificando, se reconstruindo criticamente e quebrando muitos tabus, como os referentes à sexualidade, à família, e também à morte. Repudiada a ideia eugênica, segue aceso o debate a respeito da escolha, livre, do momento e das condições da própria morte. Sabe-se que o tema da eutanásia voluntária, do suicídio assistido e da recusa e da suspensão de tratamentos médicos está na ordem do dia. Na linguagem cinematográfica, o morrer voluntariamente foi retratado em quatro magnânimas obras, todas galardoadas com prêmios de destaque. No canadense As Invasões Bárbaras, um professor, acometido de incurável enfermidade, escolhe morrer entre seus amigos, e recusa, com veemência, a internação em um sistema de saúde altamente avançado, para manter-se fiel às suas mais altas convicções político-sociais. No espanhol Mar adentro, versão artística de um caso real, um homem luta com todas as forças para despedir-se da vida, diante de uma condição que considerava exageradamente sofrível. No estadunidense Menina de Ouro, sentimentos confusos levam um treinador, a pedido da amiga boxeadora, a realizar um homicídio piedoso. Mais leve, o Escafandro e a Borboleta mostrou, biograficamente, a realidade de quem padece e os diferentes modos de enfrentar o sofrimento. São representações simbólicas de um assunto da mais alta seriedade e complexidade. Os profissionais e pesquisadores da saúde, os bioeticistas, os juristas, os ativistas dos direitos humanos, os pacientes e a sociedade em geral abordam-no sob os mais variados ângulos. * A palavra “conta-se” foi utilizada porque não há certeza histórica a respeito dessa passagem da vida de Freud, que é largamente repetida, por vários autores e até mesmo via internet. Informa-se que, a título de estruturação de texto e ordenação metodológica, a Introdução e a Conclusão da tese não trazem indicações bibliográficas, pois as informações nelas contidas encontram-se devidamente atribuídas ao longo da tese. Salvo quando tal não ocorre é que se faz a menção completa. 2 Variam entre extremos: há tabus, há estudos profundos à luz da principiologia da bioética, de teorias da moral e da justiça, há pesquisas sob a ótica da dignidade da pessoa humana, da intangibilidade do direito à vida, da exaltação da liberdade humana, há visões religiosas. Há preocupação com o perigo constante da ladeira escorregadia, de reviver os tempos hitlerianos. Há preocupação com o perigo constante da submissão compulsória de pessoas acometidas por doenças incuráveis, debilitantes, no limiar da vida, a sofrimentos exasperadores. O debate atinge a arena das instituições jurídico-políticas em diversos países. Legisladores propõem desde proibições mais árduas às práticas de abreviamento piedoso da vida até permissões relativamente amplas da limitação consentida de tratamento, da eutanásia voluntária e do suicídio assistido. Nancy Cruzan, Sue Rodriguez, Ramon Sampedro, Diane Pretty, Anthony Bland, Terry Schiavo, Hannah Jones e Eluana Englaro tiveram seus dramas privados expostos na arena pública quando eles, ou seus representantes, levaram ao Judiciário seus pleitos pela abreviação do processo de morrer ou pelo direito de recusar intervenções médicas de prolongamento de vida, pela permissão de suicidar-se com auxílio e até pelo assim chamado direito de morrer. Também há casos como os dos médicos Thimothy Quill, Jack Kervockian e Maurice Genereux, que foram acusados por haver, deliberadamente, auxiliado ou causado as mortes de seus pacientes. Então, os órgãos judicantes são chamados a se manifestar, quer quando da acusação de pessoas que realizaram estes atos, quer quando da arguição de inconstitucionalidade de leis restritivas ou permissivas. Já houve, inclusive, decisões judiciais reconhecendo o direito à morte digna e também o direito de recusar ou exigir suspensão de tratamento médico. Está-se frente a uma importante gama de problemas práticos da justiça. Não somente os legisladores e julgadores de países específicos enfrentam a questão. Organismos, Cortes e Associações Profissionais, nacional e internacionalmente, são chamados ao debate. Juridicamente, o assunto faz emergir muitas perguntas, dentre elas, se é possível dispor do direito fundamental à vida. É possível, mediante consentimento genuíno, despojar alguns ou diversos indivíduos dos deveres gerados pelo direito fundamental à vida? Responder essas indagações exige enfrentar, no plano jurídico-constitucional, a teoria dos direitos fundamentais, em especial no que toca a uma característica que é comumente impingida ao direito à vida: a indisponibilidade. 3 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em que pese manifestar a inviolabilidade de uma série de direitos fundamentais, não expressa proibição geral acerca da livre disposição dos direitos fundamentais pelo titular. O Código Civil brasileiro, por seu turno, ao tratar dos direitos da personalidade, proíbe expressamente sua renúncia e a limitação voluntária do seu exercício, ressalvando os permissivos legais. Ora, se a Constituição brasileira não elencou tal enunciado geral de indisponibilidade dos direitos fundamentais, poderia o legislador ordinário fazê-lo quanto aos direitos da personalidade6? Ao categorizar um direito fundamental como indisponível, não seria lançada sobre o titular uma ablação correlata em seu âmbito de liberdade? Tal não significaria que, na exata medida em que o titular não pudesse dispor do direito, existiria constrição à sua liberdade quanto ao destino de seus próprios direitos? Além disso, quando um direito fundamental é identificado como indisponível, recairia, sobre todos os demais, o dever de não infringi-lo mediante consentimento do titular. Haveria, nesse dever, ablação de posições jusfundamentalmente protegidas?7 Se efetivamente houver ablação de posições jusfundamentalmente protegidas, quer do titular, quer de terceiros, é necessária justificação adequada, é preciso arcar com o ônus argumentativo. Quando se tem em mente o direito fundamental à vida, a justificação para a indisponibilidade soa autoevidente. Trata-se de proteger zelosamente o direito que se afigura como pré-condição à titularidade e exercício de todos os outros direitos; trata-se de demonstrar a valorização e o respeito que uma determinada sociedade lança sobre o valor vida humana; trata-se, prioritariamente, de proteger direitos de terceiros. Acaso fosse o direito fundamental à vida reputado disponível, considerar-se-ia o consentimento do titular, mesmo em circunstâncias banais e simplistas, mecanismo hábil a ensejar seu desrespeito. Com dois exemplos, um singelo, outro até macabro, inspirados em casos reais, pode-se ilustrar a situação. Um jovem, ao colocar uma garrafa na boca, consente que outro atire na garrafa, assumindo declaradamente o risco de perder a vida com a brincadeira. Quando o tiro é proferido, acerta o alvo e o jovem, que falece. Noutra hipótese, 6 Nesta tese, entende-se, com apoio em Luís Roberto Barroso, que os direitos da personalidade são algumas projeções dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas. Já os direitos humanos, como situa Ingo Sarlet, referem-se aos sistemas de proteção internacional dos direitos (sistemas regional e global) e os direitos fundamentais ao sistema nacional de proteção. 7 Não se desconhece a problemática da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, apenas se está a referir o direito à vida como aplicável a estas relações em razão das mediações concretizadoras já existentes. Tampouco é ignorada a diferença entre Estado e particulares na violação de direitos fundamentais. As distinções serão formuladas ao longo da tese. 4 dois homens adultos pactuam que um pode matar o outro, dividir seu corpo e comê-lo, com o consentimento da vítima e evidências, inclusive escritas, da aquiescência. Teria o consentimento, emitido em frente a testemunhas, ou devidamente comprovado, o condão de neutralizar os efeitos jurídicos do ato praticado, bem como de absolver o agente? Se a resposta a esta indagação for afirmativa, diversos problemas serão postos. Um deles, de fundo, é a vulgarização da vida humana e até a aceitação de uma cultura da morte. Outro deles refere-se a uma séria diminuição da capacidade de um sistema jurídico de responder a ataques ao direito à vida. Dificilmente um homicida deixaria de alegar que a vítima consentira na sua conduta. Desta feita, a tutela do direito à vida de terceiros não consententes estaria sob sério risco. Percebe-se, com certa nitidez, que pode haver coerência e plausibilidade na justificação da indisponibilidade do direito fundamental à vida, e, por conseguinte, na eventual restrição do âmbito de liberdade do titular e dos outros indivíduos. Sustentar a indisponibilidade do direito à vida acarretaria uma série de benesses e produziria impactos mínimos sobre outros direitos ocasionalmente colidentes. Todavia, a questão foi exemplificada a partir de um de seus extremos. Existe outro ângulo a considerar. Uma vez categorizado o direito à vida como indisponível, uma outra gama de situações será abrangida. Incluem-se nesse extrato pessoas que, em condições nada ordinárias, reclamam a possibilidade de dispor de posições subjetivas do direito à vida, seja por estarem acometidas por doenças terminais extremamente dolorosas ou por enfermidades degenerativas que conduzem à perda paulatina da independência. Ou, ainda, por pessoas que, antevendo algumas condições que julgam demasiadamente penosas para suportar, manifestam formalmente sua vontade no sentido de não serem mantidas em estado vegetativo persistente, ou de não serem submetidas a processos de ressuscitação. Em posição distinta, mas incluídos na mesma gama, estão os profissionais da saúde. Versados na arte do cuidado e da cura, os profissionais da saúde podem ser levados a tratar alguns pacientes que não mais querem receber tratamento, iniciando uma relação que não se funda no consentimento nem no reconhecimento do outro como um sujeito jurídico-moral pleno, mas na autoridade ou no paternalismo. Nestas ocasiões, pode-se dar vazão à chamada distanásia, ao prolongamento sacrificado da vida, até com o emprego da futilidade médica, ou mesmo à obstinação terapêutica. A arte de curar se transmuda, então, na arte de prolongar a vida a qualquer custo e sob quaisquer condições. Além disso, os profissionais da saúde, 5 acuados pelas normas jurídicas vigentes, podem lançar mão das técnicas referidas, não apenas contra a vontade dos pacientes, mas em violação à sua própria consciência. Nestas situações in extremis, a equação formulada para fundamentar a indisponibilidade do direito à vida parece inverter-se. Se a linha geral, a indisponibilidade, quando aplicada a um sem-número de casos distintos, atinge resultados plausíveis e acordes com a proteção dos direitos fundamentais, da vivência societária e da dignidade humana, quando aposta neste outro extremo, composto por um grupo bem seleto de casos, torna-se perversa. Começam a pesar, ao lado da liberdade, outros direitos e metas societárias, como a prevenção do sofrimento, o bloqueio de tratamentos desumanos ou degradantes, a dignidade na morte e a memória póstuma. Aqui, as justificações da indisponibilidade mostram-se mais tênues, e as inquietações mais salientes. É justificável que um sistema jurídico, ancorado nas teses de indisponibilidade do direito fundamental à vida, exija que um indivíduo sofra dolorosamente? É justificável que exija que as relações dos profissionais da saúde com seus pacientes sejam autoritárias e paternalistas? É justificável a limitação da esfera de liberdade de pacientes e profissionais da saúde? Nestas situações, são efetivamente mínimos os danos proporcionados por figurar o direito à vida no rol dos direitos indisponíveis? Para que a indisponibilidade do direito à vida siga plausível mesmo nessas condições, seus argumentos de sustentação devem possuir relevância suficiente frente aos mencionados direitos e interesses. Foi exatamente a partir deste segundo extremo que nasceu o problema de pesquisa desta tese de doutoramento: “Podem-se considerar hipóteses de disposição de posições jurídicas do direito fundamental à vida? Quais os limites e padrões a serem observados, sob o enfoque constitucional, para a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito à vida?” Como hipótese, foi formulada a seguinte: Apesar de ser justificável, em linha de princípio, que um sistema jurídico repute o direito à vida indisponível, poderá ocorrer a autolimitação, mediante consentimento genuíno, quando associada a determinadas condicionantes de fato e de direito. Então, a par de todas estas vertentes de exame e das questões práticas, a tese que ora se apresenta tem como meta estudar a temática em um recorte epistemológico bastante definido. Em virtude da muito difundida tese da indisponibilidade dos direitos fundamentais, lança-se como questão central a possibilidade de se considerar hipóteses de disposição do direito fundamental à vida, bem como a existência de limites e padrões a serem observados, sob o enfoque constitucional, para a autolimitação, mediante consentimento, de posições jurídicas subjetivas deste direito fundamental. 6 A pesquisa é justificada em face da gravidade dos casos-limite apontados linhas atrás. Como será visto, é necessário definir com precisão e rigor a locução indisponibilidade dos direitos fundamentais. Faz-se mister que sejam densamente conhecidas as origens e as razões das teses de defesa da indisponibilidade dos direitos fundamentais, assim como é necessário aprofundar o estudo das consequências dessa classificação. Importa conhecer, ainda, as teses que negam a indisponibilidade dos direitos fundamentais e examinar os resultados da sua adoção. Assevera-se que essas investigações são necessárias, pois a indisponibilidade do direito fundamental à vida (assim como dos demais direitos), se tomada como simples comando a priori, ou como dogma, pode se converter em um absoluto que oblitera o debate. Sem que se conheçam suas raízes e suas formulações teóricas, pode ela demudar-se em um rótulo que traduz tanto as mais sinceras e aceitáveis defesas constitucionais do direito à vida, quanto as mais arraigadas vertentes ideológicas, religiosas ou morais abrangentes, muitas vezes situadas à longa distância dos argumentos constitucionalmente admissíveis. Sem o devido aprofundamento teórico, a indisponibilidade pode tornar-se um locus argumentativo privilegiadíssimo, cuja simples invocação é capaz de encerrar e fundamentar o deslinde de um problema concreto, por mais que ele se afigure um hard case. Mais premente se torna este exame, na medida que se visualiza, na doutrina e na jurisprudência nacionais, uma imprecisão conceitual muito intensa no cenário da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Os vocábulos jurídicos adicionados aos direitos fundamentais, absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, intransferíveis e invioláveis, são compreendidos de diversas maneiras, havendo quem iguale absolutização, indisponibilidade e inviolabilidade, quem elabore distinções entre tais termos, ainda que tais distinções sejam, por vezes, divergentes e até antagônicas. Ademais, algumas concessões já são feitas à tese da indisponibilidade dos direitos fundamentais, tanto no plano de justificação quanto no aplicativo. No primeiro, são construções teóricas sobre as funções dos direitos fundamentais, sobre a extensão do direito de liberdade, o paternalismo jurídico e seus institutos afins e, também, sobre a dignidade humana. No segundo, são construções teóricas referentes ao núcleo mínimo dos direitos fundamentais, à diferenciação entre um direito e seu exercício, entre um direito e seu objeto, e, ainda, à categorização de modalidades de disposição. Neste ponto, o direito à vida mostra sua singularidade. É extremamente difícil tentar imaginar situações nas quais o titular possa 7 dispor do bem protegido ou do exercício do direito à vida sem que esteja a abrir mão do próprio direito, assim como parece o direito à vida confundir-se com seu conteúdo essencial. A temática da indisponibilidade do direito à vida é carregada de nuances que a tornam unicamente intrincada. Várias das propostas de relativização da tese da indisponibilidade mostram-se falhas ou superficiais quando a ele aplicadas. O direito possui certos elementos distintivos que efetivamente dificultam a situação. Entretanto, é preciso manifestar que da dificuldade teórica não se pode retirar a indisponibilidade de um direito. Pois, frisa-se, ao passo que se caracteriza o direito à vida como indisponível, pode-se impactar negativamente outros direitos do titular ou de terceiros, sem, muitas vezes, haver uma proteção correlata de outros direitos, tampouco cumprimento do ônus argumentativo. O exposto torna clara a razão da escolha do direito à vida. Suas singularidades teóricas e os problemas práticos e atuais relativos à sua indisponibilidade são justificativas suficientes. O problema da indisponibilidade do direito à vida reclama propostas de solução acordes com o sistema constitucional. Não podem valer soluções demasiadamente simplistas, calcadas em noções paternalistas de proteção do indivíduo contra seus próprios atos, à revelia de seus interesses, direitos, e das suas mais profundas convicções, nem soluções cujo lastro são axiomas intocáveis, que, com a palavra mágica indisponíveis, fundamentam hard cases e desconsideram direitos fundamentais. Na mesma esteira, não são aceitáveis soluções vazias de argumentação, como aquelas que alçam o direito à vida à posição hierarquicamente superior aos demais e, portanto, o excluem de qualquer debate. Cada uma das soluções propostas deve estar respaldada em profundas reflexões quanto ao desenho de políticas públicas de proteção dos direitos fundamentais. E qualquer olhar acurado não pode prescindir da análise do impacto adverso nos mais variados leques de situações, não pode abster-se de investigar detidamente todos os direitos fundamentais em jogo, nem pode deixar de considerar a proteção de terceiros. É necessário, pois, um arrazoado qualificado e o estabelecimento de mecanismos razoáveis de tutela. Nesse sentido, o objetivo geral da tese consiste em investigar a possibilidade de disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida e os limites e padrões para o consentimento autolimitador, à luz do atual sistema brasileiro de regras e de princípios constitucionais, no contexto da morte com intervenção. Para tanto, há quatro objetivos específicos, cada qual correspondente a um capítulo da pesquisa: (a) delimitar conceitualmente a disposição de direitos fundamentais, distinguindo-a de figuras afins e de outros institutos jurídicos; (b) investigar as teses de justificação da (in)disponibilidade dos 8 direitos fundamentais, ou seja, os motivos pelos quais se aceita-se ou se rechaça a possibilidade de disposição; (c) investigar as teses de aplicação propostas para o problema da disponibilidade; (d)compreender e discutir a autolimitação de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida à luz do atual sistema constitucional brasileiro de princípios e de regras no contexto da morte com intervenção. Para tanto, a tese está dividida em quatro capítulos. No Capítulo 1, será formulado um mapeamento dos sentidos conferidos à expressão direitos indisponíveis na doutrina e na jurisprudência brasileiras, pois a expressão parece confusa e de aplicação discutível. A seguir, será estudada a estrutura dos direitos subjetivos e as posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, a fim de melhor apreender a primeira parte da expressão direitos indisponíveis. Compreendida a estrutura dos direitos subjetivos fundamentais, será discutido o sentido de indisponível e proposto um conceito para a indisponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Por fim, a (in)disponibilidade será diferenciada de institutos que podem com ela confundir-se, como o não-exercício de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, a interferência heterônoma nos direitos fundamentais, a autocolocação em risco e o dano a si. Perceber-se-á que a disposição está associada ao consentimento, condição necessária à disposição. No Capítulo 2, serão inventariadas as teses de justificação tanto da disponibilidade quanto da indisponibilidade. Nem todas as teses pertencem ao mesmo marco teórico. Por isso, será discutida sua possível adequação ao marco teórico adotado na tese e, também, ao sistema constitucional brasileiro. Será visto que nem todas as teses admitem ou recusam de plano a disponibilidade ou a indisponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. No fundo, trata-se de discutir a suficiência do consentimento para a disposição diante de aspectos substantivos, ou seja, trabalhar as razões pelas quais o consentimento deve ou não ser suficiente à disposição em um sistema jurídico. Neste rumo, serão apreciadas as seguintes justificações: (a) a concepção de direito subjetivo; (b) a extensão do direito de liberdade; (c) o paternalismo jurídico e seus institutos afins; (d) a dignidade humana. No Capítulo 3, serão investigadas as teses de aplicação propostas para o exame da disponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. A simples existência das teses denota certa aceitação da disponibilidade, dando a perceber que já existe relativização da propagada ideia de indisponibilidade de todos os direitos fundamentais. Serão examinadas as seguintes propostas: (a) as modalidades de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais; (b) a qualidade do consentimento; (c) os sujeitos da 9 relação de disposição; (d) a proteção de direitos de terceiros; (e) os postulados normativos aplicativos; (f) o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Enfim, no Capítulo 4, os elementos dos três primeiros capítulos serão conjugados para aplicação no problema da morte com intervenção, que envolve disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Neste ensejo, será, inicialmente, formulada a estrutura do direito subjetivo fundamental à vida, com demarcação das posições subjetivas e discussão das suas características e alcance. Logo após, serão trabalhadas as situações referentes à terminalidade da vida, à luz dos conceitos adotados no campo hegemônico da bioética. Discutir-se-á a limitação consentida de tratamento (forma de recusa de tratamento médico), a extensão do dever de salvamento e a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental no ponto. Como se trata de uma tese de doutoramento, serão propostos alguns limites e padrões à disposição de posições jurídicas subjetivas do direito à vida em cada uma das hipóteses. Como será percebido, nesse Capítulo final sustentar-se-á que as posições jurídicas subjetivas do direito à vida são, em linha de princípio, indisponíveis. Para defender esta posição, serão evitados alguns argumentos, anteriormente descartados na tese. O ponto é muito relevante, uma vez que a tese gira em torno da possibilidade de disposição de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Ou seja, demonstrar-se-á, primeiro, que é substantivamente justificável que o sistema jurídico brasileiro repute as posições jurídicas subjetivas do direito à vida indisponíveis, considerando o consentimento, ainda que válido, insuficiente para que terceiros ajam ou deixem de agir de forma que não poderiam se não houvesse o consentimento. Depois, mostrar-se-á que a justificação não é absoluta e válida para toda e qualquer situação. Haverá situações nas quais não subsiste a justificação e o consentimento passa a adquirir suficiência, pois associado a outras condicionantes fáticas e jurídicas. Embora pareça circular e até contraditório primeiro sustentar a indisponibilidade das posições jurídicas subjetivas do direito à vida para depois mostrar situações nas quais haverá disponibilidade, trata-se apenas de uma aparência. Em primeiro lugar, porque efetivamente existem razões de monta para que se considere o direito à vida indisponível. Ademais, este é o pensamento corrente na doutrina e na jurisprudência. Em sendo assim, a pesquisa acadêmica exige não apenas compreender tais razões com olhar crítico, como arcar com o ônus argumentativo caso se pretenda defender posturas diversas, ainda que em casos bem determinados. Em segundo lugar, porque o direito à vida é delicadíssimo. Considerado 10 jusfundamental desde as primeiras Declarações de Direitos e Constituições em sentido moderno (século XVIII), componente da bem conhecida tríade lockeana, ele possui força não apenas substantiva, mas também instrumental. Alguns salientam, inclusive, que seu valor é intrínseco. O direito à vida, por sua estrutura, características e funções, é um direito individual. Todo o engendramento teórico da tese é formulado prioritariamente para os direitos individuais. De início, pode ser semelhante a uma teoria geral, aplicável a todos os direitos. Mas não é este o foco. Alguns argumentos podem, até mesmo, em novas pesquisas, ser transladados para outros tipos de direitos, mas a tarefa exige muito cuidado e atenção às peculiaridades de cada tipo, segundo suas características, estrutura e, especialmente, sua razão de ser e funções em um sistema jurídico. A clivagem epistemológica inclui os direitos individuais. Utilizar os argumentos e conclusões que serão expostos para outros grupos de direitos exige honestidade intelectual. Outro recorte da tese é o tipo de disposição que será examinada. Tratar-se-á apenas dos casos de disposição não-onerosa, ligados ao viés pessoal dos direitos. Estão excluídas do objeto de estudo as hipóteses de disposição onerosa e ligadas ao viés patrimonial ou econômico das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Então, o centro está nos direitos pessoais (em oposição aos direitos reais), no seu viés existencial (em oposição a um eventual viés econômico dos direitos pessoais). Em sendo o foco primário o sistema jurídico nacional, entendeu-se oportuno centrar a discussão sobre a disponibilidade de posições subjetivas do direito à vida no contexto da morte com intervenção, mais precisamente na limitação consentida de tratamento e nos cuidados paliativos. A agenda dos direitos fundamentais, no que tange à disposição de posições subjetivas do direito à vida, está nesses dois pontos. Há um relevante processo em andamento (ACP da Ortotanásia) e discussões legislativas de monta, inclusive com a realização de audiência pública e aprovação, em uma das Casas Legislativas, da excludente de ilicitude de formas de limitação consentida de tratamento. Cumpre tornar claro que o marco teórico selecionado é o liberalismo igualitário, no qual se concebe o sujeito como hábil a fazer escolhas morais relevantes no que toca à sua existência e também visualiza os sujeitos como iguais entre si8. O marco teórico possui como 8 Compreende-se que se situam nesse marco autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Joel Feinberg, Robert Alexy e Cass Sustein, respeitadas suas peculiaridades, é claro. Nesta tese, exercerão influência determinante o 11 pressuposto o fato do pluralismo9. Não se pode confundir o liberalismo igualitário com o libertarianismo, tampouco com o liberalismo clássico e suas neoversões. O liberalismo igualitário situa no indivíduo a unidade de agência, não o substituindo por outras agências coletivas, como a comunidade. Porém, não adota um sujeito completamente ilhado, autossuficiente por si só e absolutamente distanciado de manifestações coletivas do eu. No amplo arco liberal, o liberalismo igualitário não é refratário à ideia de justiça social e suas manifestações na formulação de políticas públicas. Também não recusa de plano a ideia da formação de alguns consensos substantivos a serem protegidos pela força estatal ou promovidos pelo Estado, desde que não sejam produto exclusivo de doutrinas morais abragentes, que penetram nos mais variados ângulos da vida dos sujeitos sem uma base comum de justiça política que eles possam razoavelmente endossar. Tais consensos substantivos, no marco do liberalismo igualitário, coexistem com o fato do pluralismo e com o respeito devido ao sujeito, normalmente traduzido em seus direitos jusfundamentais. A tradução do respeito ao sujeito a partir de seus direitos, que funcionam como seu invólucro protetor, indica que se está a trabalhar com uma teoria baseada em direitos e não com teorias baseadas em deveres ou em metas10. método da integridade de Ronald Dworkin, a concepção dos sujeitos como destinários de igual respeito e consideração, o que exige considerar-se que eles possuem habilidades de agência, dentre elas a de ter uma concepção moral do bem e considerar uns aos outros desse modo”. Ademais, “a identidade pública ou legal do sujeito não se altera se se alterar a sua concepção de bem”. Também são relevantes os estudos de Alexy, especialmente acerca da estrutura dos direitos fundamentais e também, em certa medida, da ponderação, com suas características e seus limites. Joel Feinberg vem à cena especialmente por sua habilidade em precisar conceitos. Cass Sunstein, por seu turno, mostra-se no final do trabalho, em razão da sua proposição de um minimalismo judicial e de seus estudos sobre o Estado regulatório. 9 O termo é de John Rawls. O fato do pluralismo razoável “consiste em profundas e irreconciliáveis diferenças nas concepções religiosas e filosóficas, razoáveis e abrangentes, que os cidadãos têm do mundo, e na idéia que eles têm dos valores morais e estéticos a serem alcançados na vida humana”. Outro fato que Rawls toma como um dado (premissa ora aceita) é o fato da opressão: certas compreensões do bem não podem ser abandonadas a não ser autonomamente, se a constrição for heterônoma, haverá opressão e isso se mostra de modo particularmente forte ao longo da história, especialmente em sociedades calçadas em uma doutrina moral abrangente. Por doutrina moral abrangente, no pensamento de Rawls, são “doutrinas - filosóficas, morais, religiosas - pessoais que englobam, de maneira mais ou menos sistemática e completa, os diversos aspectos da existência humana e, portanto, que ultrapassam as questões meramente políticas, considerando-as como um caso particular de uma concepção mais ampla”. Cf. RAWLS, John. Justiça como eqüidade – uma reformulação. Trad. Claudia Berliner. Rev. Técnica: Álvaro de Vita. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.04-05. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997. RAWLS, John. Justiça e Democracia. Sel. Catherine Audard. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002. AUDARD, Catherine. Glossário. In: Justiça e democracia. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.376. 10 Diferenciam-se aqui as teses (a) baseadas em direitos; (b) baseadas em metas; (c) baseadas em deveres. Nas primeiras, o centro está no exercício e na preservação de direitos morais (e jurídicos) e os interesses que eles protegem. Nas segundas, o foco está nas consequências produzidas, normalmente à luz de um critério de utilidade. Nas terceiras, o foco está em conformar o comportamento humano segundo proibições estipuladas para manutenção da integridade moral (e jurídica). A respeito, consultar: DWORKIN, Ronald. Levando os 12 Acredita-se que a combinação do liberalismo igualitário a uma teoria baseada em direitos está em ampla conformidade com a ordem constitucional vigente no Brasil, bem como as teorias e doutrinas formuladas no período que se segue à abertura democrática do país. Algumas peculiaridades de índole mais comunitária podem se mostrar na ordem vigente, mas, como será argumentado adiante, são pequenas aberturas do sistema liberal igualitário ao comunitarismo, sem que este se torne a marca da ordem constitucional atual. Ao liberalismo igualitário e a uma teoria baseada em direitos há outra parte do conjunto. Procurar-se-á, o máximo possível, lidar com a ideia de coerência interna do sistema jurídico, buscando reconstrutivamente a integridade principiológica subjacente ao seu conjunto constitucional, legal e jurisprudencial. Intui-se que a tarefa nem sempre seja possível, principalmente em um sistema jurídico produto de ruptura constituinte recente – final da década de 1980 –, no qual as tradições ainda estão em formação. Como toda pesquisa acadêmica, esta tese tem seus contornos delineados. Centra-se nos problemas da morte com intervenção e da (in)disponibilidade de posições jurídicas do direito fundamental à vida. Diante dos acalorados debates sobre as técnicas de abreviação da vida em circunstâncias extremas, não se pretende, logicamente, que esta pesquisa seja capaz de pôr fim à contenda, muito menos de abrangê-la integralmente. Soa sequer desejável que tal aconteça, pois, com tão precioso direito em liça, em uma sociedade pluralista, a maturação democrática (leia-se, diálogo constitucional, envolvendo os três poderes e a sociedade) há de ser o rumo inexorável para o estabelecimento de políticas públicas. Contudo, é importante tentar contribuir academicamente para o desenlace de alguns tópicos correlacionados ao tema. A tese, a partir de um enfoque epistêmico bastante delimitado, visa a cooperar com a construção de elementos de objetivação e de racionalização do discurso jurídico acerca da indisponibilidade do direito à vida. Salienta-se que não se trata de uma tese sobre a morte, o morrer e sua leitura jurídica. O tema é a (in)disponibilidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, aplicado ao direito à vida no contexto da morte com intervenção. O elemento maturação democrática traz à superfície um assunto: as correlações entre o direito e a bioética. Em primeiro lugar, embora seja comum referir-se à bioética como um sistema uno de pensar, os estudos empreendidos nesse ramo do conhecimento possuem diretrizes e marcos teóricos diversos. Pode-se falar em uma bioética principiológica (hoje direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002, Capítulo 6. BROCK, Dan W. Life and death: philosophical essays in biomedical ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.95-99. 13 hegemônica), comunitarista, utilitarista, feminista, kantiana, fundada na ética da virtude, laica, não-laica, enfim, a bioética encampa diferentes enfoques. Isso não permite que se faça referência ao termo como uno e fechado. Em segundo lugar, os estudos realizados por bioeticistas são forjados, via de regra, na ambiência da filosofia moral e da ética aplicada. Portanto, não podem ser tomados como as soluções únicas e necessárias a um sistema jurídico simplesmente porque se forma certo consenso entre bioeticistas e profissionais envolvidos com as ciências da vida. Se esta postura for adotada, adentra-se em um elitismo epistemológico, no qual um grupo de iniciados em um ou alguns ramos do saber ditam as regras e os princípios de conduta autoritativamente para toda a sociedade política. As soluções e diretrizes eventualmente sustentadas pelos bioeticistas e pelas associações profissionais carecem de ligação com o arcabouço jurídico, especialmente quanto ao debate nas instituições democráticas de cada sistema, sejam elas o Legislativo, o Executivo ou o Judiciário. Nesse sentido, se trabalha, aprioristicamente, nesta tese, com argumentos oriundos de ramos diversos da bioética como autoritativos para solucionar questões jurídicas sem qualquer crivo democrático. O que se propõe é um diálogo entre as vertentes da bioética e o sistema jurídico, ou, parafraseando Potter, a construção de pontes entre as bioéticas, os sistemas jurídicos e as ciências da saúde. 14 1. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: DEMARCAÇÕES CONCEITUAIS E DISTINÇÃO DE FIGURAS AFINS “SINÔNIMOS Esses que pensam que existem sinônimos, desconfio que não sabem distinguir as diferentes nuanças de uma cor”11. “AH! OS RELÓGIOS Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidas em seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios... Porque o tempo é uma invenção da morte: não o conhece a vida - a verdadeira em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira. Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida: não cabe, a cada qual, uma porção. E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida acaso lhes indaga que horas são...12” “A COISA A gente pensa uma coisa, acaba escrevendo outra e o leitor entende uma terceira coisa... e, enquanto se passa tudo isso, a coisa propriamente dita começa a desconfiar que não foi propriamente dita”13. 11 QUINTANA, Mário. Caderno H. Rio de Janeiro: Globo, 2007, p.190. QUINTANA, Mário. A cor do invisível. Rio de Janeiro: Globo, 2006. 13 QUINTANA, Mário. Caderno H, p.156. 12 O que significa afirmar a tradicionalmente aceita indisponibilidade dos direitos fundamentais enunciada na introdução? O objetivo nuclear deste Capítulo é enfrentar essa indagação, pois o conceito de disposição dos direitos fundamentais é impreciso. Notam-se diferenças significativas no seu emprego. Algumas vezes, ele é invocado como um axioma, não carecedor de maiores explicações, tampouco de justificação; noutras, integra contextos tão diferenciados entre si que se torna realmente difícil encontrar um mínimo denominador comum que lhe confira utilidade e clareza14. Além disso, a assertiva indisponibilidade dos direitos fundamentais assume duas conotações. A primeira sustenta que a indisponibilidade é parte integrante do conceito de direito fundamental, constituindo-o. Na hipótese, a afirmação da indisponibilidade é meramente descritiva. A segunda, cuja afirmação da indisponibilidade é normativa, entende que é justificável que um sistema jurídico repute os direitos fundamentais como indisponíveis, apresentando razões para que aos titulares não seja permitido dispor dos seus direitos. Nesse sentido, o primeiro item do Capítulo (1.1) destina-se justamente a expor a imprecisão conceitual que reina sobre o assunto. Em seguida, a tarefa consistirá em lapidar o conceito. Porém, para fazê-lo, será necessário ultrapassar outra questão: o entendimento do que seja um direito fundamental. No exame dos direitos fundamentais, não se deterá atenção nas funções que exercem, nem nas razões para se ter direitos, nem na sua justiciabilidade. A opção 14 O termo axioma é aqui utilizado no sentido que lhe empresta Humberto Ávila: “Axioma denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la. Por isso mesmo são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da lógica, e deduzidos sem a intervenção de pontos de vista materiais. A veracidade dos axiomas é demonstrada pela sua própria e mera afirmação, como se o fossem autoevidentes. Não se encontram, portanto, no mundo jurídico do dever ser, cuja concretização é sempre prático-institucional”. No entender de Ávila, um axioma é tratado “como se fosse descoberto a priori, sem o prévio exame da sua referência ao ordenamento jurídico” [sem grifos no original]. ÁVILA, Humberto. Repensando “o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”. In: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo a supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.176-177. ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização jurídica, v.I, n. 4, jul. 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 16 metodológica consistirá em apreciar a estrutura de um direito fundamental, lançando mão de um olhar analítico e formal, com foco, apenas nas posições e nas relações jurídicas de direito fundamental (itens 1.2.). A partir da compreensão estrutural de um direito fundamental, apresentar-se-á e discutir-se-á um conceito de disposição de direitos fundamentais (item 1.3). Por fim, serão exploradas as diferenças entre a disposição de direitos fundamentais e outras figuras afins, como o não-exercício, a perda, a suspensão e a interferência heterônomas de direitos fundamentais, a autocolocação em risco e o dano a si (item 1.4.). 1.1 Direitos indisponíveis: conceito lacônico, consequências duvidosas Para compreender o sentido da proclamada indisponibilidade dos direitos fundamentais, faz-se necessário investigar na doutrina, na legislação e na jurisprudência os significados atribuídos e as consequências advindas da locução direitos indisponíveis. Assim, iniciar-se-á o estudo pelo levantamento doutrinário quanto aos direitos fundamentais e aos direitos da personalidade, sendo, depois, exposto um amplo levantamento constitucional-legal e jurisprudencial, formulado e redigido com o intuito de desnudar o sentido da expressão direitos indisponíveis e seus impactos15. Analisarse-á a plurissignificação dos termos direito e indisponível e sua reverberação em diferentes entendimentos sobre o conceito e as consequências da indisponibilidade dos direitos fundamentais. Nesta etapa do estudo, a atenção é primordialmente conceitual. Nos capítulos seguintes, atentar-se-á para questões de justificação e para critérios de aplicação. 1.1.1 A doutrina: tendência conceitual e distintos posicionamentos A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) não consagrou dispositivo específico referente à indisponibilidade dos direitos fundamentais, nem foi a palavra indisponibilidade esculpida no preâmbulo constitucional. Existe, apenas, referência à indisponibilidade dos interesses individuais no art. 127, associada à legitimidade processual do Ministério Público16. Já o Código Civil, no Capítulo destinado aos direitos da personalidade, trata da indisponibilidade 15 Foi realizada uma ampla coleta jurisprudencial, com enfoque prioritário para os tribunais superiores. Dos dados obtidos, foi elaborado um catálogo com os sentidos da expressão direitos indisponíveis. Não foram excluídos os acórdãos que lidavam com direitos não-fundamentais. Constam aqui os principais sentidos e os acórdãos considerados determinantes. 16 Ver art. 127 da CF/88. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. São Paulo: Saraiva, 2008. 17 desses direitos, ressalvando a limitação voluntária apenas na medida de lei autorizadora17. A doutrina publicista brasileira refere, com poucas exceções, que os direitos fundamentais são indisponíveis18. Na mesma esteira, os privatistas afirmam que os direitos da personalidade são indisponíveis19, e os internacionalistas, que os direitos 17 A proibição mencionada encontra-se no artigo 11 do CC: “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo seu exercício sofrer limitação voluntária”. BRASIL. Código Civil. Lei nº10.406, de 10/01/2002. São Paulo: Saraiva, 2009. 18 No que se refere ao pensamento constitucional brasileiro, não há aprofundados estudos sobre a temática da existência de direitos fundamentais indisponíveis e suas consequências. O assunto é normalmente tratado de forma pouco generosa e recebe espaço, no mais das vezes, como simples dictum nos manuais, quando da explanação das características dos direitos fundamentais. Como exemplo de publicistas que consideram os direitos fundamentais indisponíveis, José Afonso da Silva: “II – inalienabilidade: são direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode se desfazer, porque são indisponíveis. […] IV – Irrenunciabilidade: não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, mas não se admite sejam renunciados. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 166. [sem grifos no original]. Tupinambá Miguel Castro do Nascimento assim se refere: “Os direitos e garantias individuais são indisponíveis. Seus titulares não podem transferi-los, negociá-los ou aliená-los a quem quer que seja. Configuram-se como direitos públicos subjetivos que, ingressando na esfera jurídica de alguém, passam a ser tratados como personalíssimos. Por isso, se demonstram intransferíveis, inegociáveis e inalienáveis. […] por idênticas razões, são irrenunciáveis”. NASCIMENTO, Tupinambá Miguel Castro do. Comentários à constituição federal: direitos e garantias fundamentais – artigos 1º a 17. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p.17. Luiz Alberto David de Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior mencionam que uma das “características intrínsecas” aos direitos fundamentais é a irrenunciabilidade. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p.125. Exatamente no mesmo sentido: CAPEZ, Fernando et al. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva: 2004. Para Alexandre de Moraes, os direitos fundamentais estão “em elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementaridade: […] inalienabilidade: não há possibilidade de transferência dos direitos humanos fundamentais, seja a título gratuito, seja a título oneroso; irrenunciabilidade: os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia. Dessa característica surgem discussões importantes na doutrina e posteriormente analisadas, como a renúncia ao direito à vida e a eutanásia, o suicídio e o aborto”. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral. Comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil:. doutrina e jurisprudência. São Paulo: Atlas, 2000, (Coleção Temas Jurídicos) p.41 [itálicos do original. Os grifos não constam do original]. 19 A menção ocorre, normalmente, em relação ao art.11 do Código Civil. Não obstante o fato de os autores enunciarem a indisponibilidade, muitos reconhecem casos de disposição, sem, no entanto, abandonar a classificação. Cite-se, a título exemplificativo, José Antônio Peres Gediel: “A indissociabilidade entre sujeito e bens da personalidade, por sua vez, não só orientou a formulação da teoria do direito geral da personalidade e o reconhecimento da necessária garantia jurídica das condições para o livre desenvolvimento da personalidade humana, mas tem resultado a crescente afirmação da irrenunciabilidade desses direitos, como reflete o texto do artigo 11 do novo Código Civil brasileiro […]”. GEDIEL, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade dos direitos do trabalhador. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.149 [sem grifos no original]. BARROS, Ana Lúcia Porto de et al. O novo código civil comentado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2003, p.19: “A intransmissibilidade deriva da indisponibilidade, não podendo seu titular dispor do direito, decorrendo daí também a irrenunciabilidade e a impenhorabilidade”. No mesmo rumo, LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. Vol. I, Parte Geral (arts. 1º a 232). São Paulo: Saraiva, 2003. DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo. A parte geral do novo Código Civil: estudos numa perspectiva civilconstitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.35-59. TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 18 humanos o são20. Ainda, no âmbito do direito penal, é forte a ideia de que o consentimento da vítima (ou do ofendido) não produz efeitos jurídicos, quando se tratar (o que é, no mais das vezes, o caso) da proteção de bens ou de direitos indisponíveis, o que seria, em grande parcela das vezes, o caso21. Também na ambiência dos direitos sociais, assevera-se que são indisponíveis: percebe-se essa aplicação no ramo trabalhista e previdenciário e também no que concerne aos direitos à saúde e à educação22. Apesar de juristas de vários ramos do direito adotarem, em um primeiro olhar, a premissa da indisponibilidade dos direitos fundamentais, não se pode inferir a inexistência de um problema quanto ao assunto. De um lado, a Constituição não expressa notoriamente a indisponibilidade dos direitos fundamentais. De outro lado, questões práticas vêm recebendo respostas que se distanciam da premissa de indisponibilidade. A afirmação geral da indisponibilidade dos direitos fundamentais torna-se nebulosa, seja em face de elementos teóricos, seja em face da realidade que cotidianamente a desafia, mediante múltiplos exemplos de disposição de tais direitos e das consequências previstas em lei a respeito da consideração de um determinado direito como indisponível. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. Ressalte-se, todavia, que Tepedino, ao escrever seus comentários ao novo Código Civil, junto a Heloisa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, embora ainda sustentando que os direitos da personalidade são indisponíveis, menciona que a tese admite “temperamentos”. TEPEDINO, Gustavo et al. Código civil interpretado conforme a constituição da república. Vol. I, Parte Geral (arts. 1º a 420). Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 20 No Preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, há manifestação de que os direitos indisponíveis compõem, ao lado da dignidade humana, a estrutura da liberdade, da justiça e da paz mundiais: “whereas recognition of the inherent dignity and the equal and inalienable rights of all members of the human family is the foundation of freedom, justice and peace in the world, […]”. UN. Eveyone’s United Nations: a handbook on the work of United Nations. New York: United Nations Publication, Tenth Edition, 1986, p. 462. [sem grifos no original]. No sentido de serem os direitos humanos inalienáveis, Almir Oliveira: “[…] esses direitos caracterizam-se como: inatos, ou congênitos,- universais,- absolutos,- necessários,- inalienáveis,- invioláveis, - imprescritíveis. […] Porque pertencem de modo indissolúvel à essência mesma do homem, sem que possa dele separarse, não podem ser transferidos a outrem, a qualquer título, diferentemente do que acontece com os direitos que podem ser objeto de transação jurídica, são inalienáveis. OLIVEIRA, Almir. Curso de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 11-14; 58-59 e 97-98 [sem grifos no original]. Na doutrina portuguesa, Cristina de Queiroz, sem grandes aprofundamentos, refere: “‘Fundamentais’ ainda que não se fundam em atos legislativos, mas na natureza do homem no momento do seu nascimento. Por isso encontram-se subtraídos a todo acto do Estado ou da legislação. O Estado não pode subtraí-los ao cidadão, nem este pode ‘renunciar’ a estes”. QUEIROZ, Cristina M.M. Direitos fundamentais: teoria Geral. Coimbra: Coimbra, 2002 (Série Teses e Dissertações), p.67 [sem grifos no original]. 21 Discutindo a questão, PIERANGELI, José Henrique. O consentimento do ofendido na teoria do delito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. 22 GOLDSHMIDT, Rodrigo. Os clássicos princípios do direito do trabalho frente às novas competências da justiça obreira. Revista do Tribunal Regional do Trabalho 12ª Região. Florianópolis: v.14, n.23, 2007, p.283-295. Com novas leituras sobre o contrato de trabalho: BACARAT, Eduardo Milléo. A boa-fé no direito individual do trabalho. São Paulo: LTr, 2003. 19 O que se percebe é que muitos juristas seguem referindo, de modo laudatório, que os direitos fundamentais são indisponíveis e apresentando os casos de disposição de direitos fundamentais (ou da personalidade) como anomalias incapazes de afetar o epíteto indisponíveis (a propalada indisponibilidade). É pouco comum, ainda, encontrar uma definição do que deva ser compreendido por direito fundamental, para que se possa ter claro exatamente o que é indisponível. Por vezes, a ideia é de que o bem protegido pelo direito é que não pode ser afetado pelo próprio titular; noutras, tem-se a noção de que terceiros não podem interferir em direito alheio, mesmo com o consentimento do titular. Atentos às frequentes hipóteses de disposição de direitos fundamentais e de direitos da personalidade, alguns autores asseveram que a clássica noção de indisponibilidade há de ser relativizada ou temperada. Uns aderem à relativização com mais intensidade, outros com menos23. Aqui, basta lembrar que a doutrina civilista, em 23 Nesse sentido, Luís Roberto Barroso: “Nesse ponto, seria possível enveredar por uma discussão teórica mais ampla acerca da disponibilidade dos direitos fundamentais ou dos direitos da personalidade, de forma geral. A afirmação simplista de que tais direitos seriam integralmente indisponíveis está longe de captar todas as nuances do tema, sobretudo tendo em conta a liberdade e a autonomia pessoal reconhecidas pela Constituição aos indivíduos. O ponto será retomado adiante, mas apenas para dar um exemplo, tatuar o corpo de alguém contra a sua vontade seria, sem dúvida, uma agressão a sua integridade física. Não se pode dizer o mesmo nos casos em que a prática é consentida. Da mesma forma, divulgar fotos ousadas de uma pessoa sem a sua autorização constitui grave invasão ao seu direito à intimidade, mas não se pode dizer o mesmo quando a exposição é voluntária.” BARROSO, Luís Roberto. O direito individual à própria imagem e a possibilidade de disposição por parte do titular: conteúdo e limites. Parecer não publicado. Mimeografado. [sem grifos no original]. Na doutrina brasileira, relativizam a ideia de indisponibilidade: SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.310-311. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo, 2004. Tese (Livre Docência em Direito) – USP. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos de personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. TEPEDINO, Gustavo et al. Comentários... Também José Antônio Peres Gediel, apesar de afirmar fortemente a indisponibilidade, admite relativizações GEDIEL, Op.cit. Na doutrina portuguesa, são exemplos Canotilho: “As clássicas declarações de direitos referiam-se aos direitos inalienáveis e imprescritíveis. Todavia, ao lado do processo de relativização dos direitos resultante da ideia clássica de réglémentation de libertés, assistiu-se e assiste-se ainda a um processo paralelo de relativização através da ideia de renúncia a direitos fundamentais […]. Em síntese, propor-se-á como eixo argumentativo a invocação do caráter inalienável dos direitos, liberdades e garantias, (e direitos de natureza análoga). Dizer que as liberdades básicas são inalienáveis é o mesmo que dizer que qualquer acordo entre cidadãos que prescinda de uma liberdade básica ou a viole, mesmo que esse acordo possa ser racional e voluntário, é nulo ab initio, isto é, não tem qualquer força legal nem afeta as liberdades básicas de qualquer cidadão”. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, s/d, p. 422. E Jorge Miranda: “Por princípio, ninguém pode renunciar a direitos, liberdades e garantias, ou a direitos econômicos, sociais ou culturais (precisamente porque são direitos fundamentais, assentes na dignidade da pessoa humana e elementos estruturantes da ordem constitucional). Apenas se concebe que o próprio titular deste ou daquele direito venha a estabelecer uma limitação temporária do seu exercício ou uma autorrestrição, sem afetar o respectivo conteúdo essencial, em hipóteses bem contadas [...]”. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional: direitos fundamentais. Tomo IV. 3. ed. rev. atual. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 357-358 [sem grifos no original]. 20 que pese dispositivo legal proibitivo, está debatendo possibilidades de disposição de alguns dos direitos da personalidade, lançando relativizações à interpretação do art. 11 do Código Civil24. Há também, em minoria no Brasil, aqueles que sugerem que os direitos fundamentais e os direitos da personalidade deveriam ser vistos justamente do ângulo oposto – como direitos disponíveis25. Mas o que significa dizer que alguns direitos são indisponíveis? No grupo dos que esposam a indisponibilidade geral, ela normalmente é apresentada como uma característica intrínseca aos direitos fundamentais, descritivamente. Esses doutrinadores difundem, também, conceitos circulares, ou seja, mencionam que os direitos fundamentais são indisponíveis por serem irrenunciáveis ou vice-versa. Torna-se ainda mais complicada a tarefa de investigar o sentido da expressão direitos indisponíveis 24 Por exemplo, o enunciado aprovado na Jornada de Direito Civil: “Limitação Voluntária. Jornada STJ 4. ‘o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente, nem geral’”. NERY Junior, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação extravagante. 2.ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.158. 25 No Brasil, Alexandre dos Santos Cunha, ao tratar da patrimonialização do próprio corpo, refere: “Assim sendo, a decisão de patrimonializar ou não o próprio corpo diz respeito única e exclusivamente, desde que não atinja direitos de terceiros, ao livre arbítrio de cada um, no exercício de seu direito constitucional à autonomia. Por isso, contrariamente ao que versa o art. 11 do novo Código Civil, o único tipo de limitação que pode ser dado a este direito fundamental é o voluntário. Disso advém a inconstitucionalidade do dispositivo”. CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental no direito civil. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado: reflexos dos princípios, diretrizes e direitos fundamentais no direito privado.. São Paulo: RT, 2002, p.260. [sem grifos no original]. Do mesmo autor: CUNHA, Alexandre dos Santos. A normatividade da pessoa humana: o estatuto jurídico da personalidade e o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro, Forense, 2005. Na doutrina portuguesa, Jorge Reis Novais parte do eixo da disponibilidade dos direitos fundamentais, uma vez que analisa a renúncia como um ato complexo, de dupla via, pois “na renúncia se verifi[cam], simultaneamente, um exercício e uma restrição de um direito fundamental”. Ele sustenta, então, que a indisponibilidade não pode ser a regra. Em seu olhar, a regra é justamente a disposição do direito fundamental, disposição esta que somente poderá ser reduzida ou impedida mediante justificação em interesse público dotado de peso relevante em face das circunstâncias que envolvem a renúncia. NOVAIS, Jorge Reis. Renúncia a direitos fundamentais. In: MIRANDA, Jorge. Perspectivas constitucionais nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra, 1996, p.299. Também José Carlos Vieira de Andrade posiciona-se no sentido da disponibilidade como ponto de partida nas relações permeadas pela igualdade entre os sujeitos, desde que mantidos certos limites: “Num contexto jurídico-constitucional em que, ultrapassada a visão liberalista, a liberdade individual está associada à solidariedade cívica e a uma ética de responsabilidade comunitária, em que os direitos fundamentais têm uma dupla dimensão, subjetiva e objectiva, percebe-se que o primado da liberdade e o consequente princípio da disponibilidade dos direitos fundamentais depende de algumas condições e estejam sujeitos a determinados limites. […] A Constituição, como é compreensível, não regula ex professo a questão da admissibilidade da autolimitação e das respectivas condições e limites, mas dos seus preceitos podem retirar-se, por via interpretativa, algumas indicações normativas mais ou menos claras sobre as hipóteses, condições e limites da sua admissibilidade [...]. Contudo, apesar das distinções entre os direitos, o problema da disponibilidade e do grau de disponibilidade dos direitos, liberdades e garantias pelos seus titulares não se resolve em abstracto, constitui um problema que, em última análise, só é susceptível de uma solução definitiva nas circunstâncias dos casos concretos”. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 3.ed. Coimbra: Almedina, 2004, p.331-335. Na doutrina italiana, Adriano de Cupis parte da noção de disponibilidade dos direitos da personalidade, com fulcro na autonomia privada. DE CUPIS, Adriano. Os direitos de personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1961. 21 quando se leva em conta os exemplos utilizados. Por vezes, referem-se ao bem tutelado pelo direito; noutras, a relações jurídicas subjacentes a tais direitos. Já no grupo que adere à relativização da indisponibilidade dos direitos fundamentais, percebe-se com um pouco mais de clareza algumas notas compartilhadas. O mesmo pode ser dito daqueles que primam pela disponibilidade dos direitos como ponto de partida. A indisponibilidade aparece associada à renúncia, a acordos, contratos ou transações que diminuem ou afastam a incidência de um dado direito em face de terceiros. Destarte, parece haver uma tendência no sentido de ser a indisponibilidade ligada a comportamentos do titular que conduzem ao enfraquecimento do direito perante terceiros. Ainda assim, o sentido não é unívoco, pois os exemplos oferecidos por alguns juristas vinculados a estes grupos referem-se à afetação do bem tutelado pelo próprio titular, e não à modificação da relação jurídica de direito fundamental diante de terceiros26. Pelo visto, da doutrina não se extraem delineamentos certeiros do conceito de indisponibilidade dos direitos fundamentais. Primeiro, porque de regra não se encontram definições do que se entende por direitos fundamentais. Segundo, por não existir um consenso sobre o que é, exatamente, dispor, tampouco sobre qual é o objeto de um ato de disposição. Faz-se, portanto, necessário perscrutar na legislação brasileira e na jurisprudência quais os sentidos conferidos à expressão direitos indisponíveis, bem como as consequências do seu reconhecimento. 1.1.2 A locução direitos indisponíveis: seus diversos sentidos na legislação e na jurisprudência brasileiras Já foi assinalado que a CF/88 refere-se aos interesses indisponíveis, no que tange à legitimidade processual do Ministério Público. Existem diversas menções legislativas, em dispositivos infraconstitucionais, à atuação do MP e aos interesses indisponíveis. É o que ocorre na LC nº75/93, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e no Estatuto do Idoso27. Nesses diplomas legais, a palavra indisponíveis aparece ligada aos interesses individuais e, em alguns casos, aos sociais. Porém, não há elo entre as 26 Um dos exemplos utilizados nesse sentido é o do suicídio. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização..., p.73. 27 Na LC nº75/93, conferir os arts. 1º; 5º; 6º e 83; no ECA, o art.201; no Estatuto do Idoso, os arts.74; 79 e 81. BRASIL. LC nº75/93. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/Leis/LCP/Lcp75.htm.; BRASIL. ECA. Lei nº8.069/90. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm; BRASIL. Estatuto do Idoso. Lei nº10741/03. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/2003/L10.741.htm. 22 expressões direitos ou interesses homogêneos, coletivos e difusos. Dos enunciados normativos, não se conclui se a palavra interesses é empregada como sinônima de direitos. Todavia, diversas decisões judiciais utilizam os termos como intercambiáveis. Aliás, é exatamente a atuação do MP quanto aos interesses indisponíveis que levanta discussões jurisprudenciais de relevo, tanto quantitativa como qualitativamente. É nesse contexto que se encontram casos paradigmáticos do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a matéria, nos quais é possível localizar o conceito de indisponibilidade de direitos. No STF, o debate sobre ser indisponível o direito das crianças e dos adolescentes de conhecer e pleitear a sua paternidade biológica levou o Ministro Relator a inserir em seu voto o conceito de indisponibilidade de direitos individuais: A indisponibilidade de determinados direitos não decorre da natureza privada ou pública das relações jurídicas que lhes são subjacentes, mas da importância que elas têm para a sociedade. O interesse público de que se cogita é aquele relacionado à preservação do bem comum, da estabilidade das relações sociais, e não o interesse da administração pública em sentido estrito. Daí reconhecer-se ao Estado não só o direito, mas o dever de tutelar essas garantias, pois embora guardem natureza pessoal e imediata, revelam, do ponto de vista mediato, questões de ordem pública. Direito individual indisponível é aquele que a sociedade, por meio de seus representantes, reputa como essencial à consecução da paz social, segundo os anseios da comunidade, transmudando, por lei, sua natureza primária marcadamente pessoal. A partir de então dele não pode dispor seu titular, em favor do bem comum maior a proteger, pois gravado de ordem pública subjacente, ou no dizer de Ruggiero “pela utilidade universal da comunidade”28. Do conceito, nota-se que o Ministro não situou a indisponibilidade como uma característica intrínseca a um tipo específico de direito (fundamental, da personalidade, oriundo de relações de direito público ou privado), mas exprimiu um entendimento normativo de que existem motivações para que se considere determinado direito individual indisponível. A motivação suficiente é o interesse público na proteção e tutela daquele direito, de modo que o caráter de indisponibilidade torna-o “patentemente 28 BRASIL. STF. RE nº248.869/SP. Rel. Min. Maurício Corrêa. [sem grifos no original]. O ECA define, em seu artigo 27, a indisponibilidade do direito discutido no acórdão: “Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de justiça”. BRASIL, ECA, Op. cit. 23 público”29. Está límpido no excerto que, para que isso ocorra, é preciso que o legislador se manifeste, determinando quais direitos são disponíveis e quais não são. Entretanto, o conceito gerou algumas inquietações. O então Ministro Nelson Jobim fez uma interessantíssima indagação quanto às consequências do conceito adotado e à legitimação do MP: Perfeito, mas, veja, oponho-me a que o Ministério Público possa substituir, em absoluto, à vontade da mãe. Essa é a minha dúvida, pois é difícil conciliar um direito personalíssimo à indisponibilidade: se ele é personalíssimo, é disponível ao titular do direito30. O debate travado no Tribunal é realmente importante. Se a CF/88 e a legislação infraconstitucional determinam que há legitimidade do MP para atuar quanto aos interesses individuais indisponíveis, se um direito personalíssimo pode ser – como determina o art.11 do CC – indisponível; ou mais: se todos os direitos fundamentais são indisponíveis, a legitimidade do MP agiganta-se e pode pôr em risco, como bem viu o Ministro Nelson Jobim, a própria defesa de alguns direitos personalíssimos – cuja tutela pode ligar-se, exatamente, ao não-conhecimento público. Ao final, o STF concluiu que, apesar de indisponível o direito, ao MP somente incumbe atuar se provocado pelos interessados diretos. O julgado torna nítido o descompasso entre muitas abordagens doutrinárias sobre a indisponibilidade dos direitos, o entendimento do STF e as consequências legislativas da indisponibilidade. É de fato bastante árduo conciliar a ideia de que todos os direitos fundamentais ou de que todos os direitos da personalidade são indisponíveis com a legitimação do MP para atuar quando em cena interesses individuais indisponíveis. Outro ponto que deve ser salientado é o fato de ter o STF definido direitos individuais indisponíveis tendo em vista justamente a legitimação do MP; isto é, por um dos efeitos provocados e não por característicos típicos à indisponibilidade31. Também na jurisprudência do STJ encontram-se diversos acórdãos reconhecendo a 29 BRASIL, STF, RE nº248.869/SP, Op. cit. Nesse caso, o Min. Relator citou os estudos de Hugo Nigro Mazzili sobre a atuação do MP: “Num sentido lato, portanto, até o interesse individual, se indisponível, é interesse público, cujo zelo é cometido ao Ministério Público”. 30 BRASIL, STF, RE nº248.869/SP, Op. cit. Intervenção do Min. Nelson Jobim. A indagação foi corroborada pelo Min. Marco Aurélio: “[...] o Ministério Público não pode sequer representar entidade pública. Poderá representar uma pessoa natural quanto à defesa de direito personalíssimo? Surge uma incongruência”. 31 Um dos elementos que corrobora essa possibilidade foram os problemas contingentes quanto às defensorias públicas que se apresentaram no caso. Pareceria a melhor solução entender que incumbe às defensorias públicas a tarefa de propor a ação investigatória de paternidade. Porém, a deficiência desse serviço levou o MP a propor a ação e a instaurar a discussão sobre a legitimidade ou não para fazê-lo. 24 indisponibilidade do direito das crianças e dos adolescentes ao conhecimento de sua paternidade biológica32. Se todos os direitos fundamentais forem indisponíveis, ou se todos os direitos da personalidade o forem, haveria de se reconhecer o caos na jurisprudência dos tribunais brasileiros. Tome-se por ilustração a matéria tributária. Sabe-se que as limitações ao poder de tributar são instituídas para garantir pelo menos dois direitos fundamentais: a propriedade e certas manifestações da liberdade33. Todavia, os tribunais não reconhecem a legitimidade do parquet para propor ações na defesa dos contribuintes, por entenderem, de modo geral, que a tributação indevida não atinge direitos individuais indisponíveis, nem que os contribuintes são consumidores34. Ademais, é forte na doutrina e mesmo nos tribunais o entendimento de que o direito à previdência social é fundamental, aí incluídos os benefícios a que fazem jus os segurados. Entrementes, é cediça na jurisprudência a orientação de que os benefícios previdenciários são direitos disponíveis, sobre os quais pode o beneficiário transacionar e renunciar, faltando ao MP legitimidade processual para pleiteá-los em nome de terceiros35. Na mesma trilha, a 32 O sentido oferecido pelo STJ para a expressão direito indisponível nesses casos difere de muitos outros julgados do mesmo tribunal. Aqui, a noção é a de um direito que não pode ser obstado ou restringido: “Necessário, portanto, para a solução do embate jurídico, pautar a controvérsia sob a perspectiva dada pelo art.27 do ECA, que qualifica o reconhecimento do estado de filiação como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, o qual pode ser exercitado em face dos pais ou seus herdeiros, sem restrição. Tal dispositivo, portanto, assenta a respeito do amplo e irrestrito direito de toda pessoa ao reconhecimento do respectivo estado de filiação. [...] Não se deve concluir que o referido dispositivo alcança apenas aqueles investigantes que não foram adotados, porque jamais a interpretação da lei pode dar ensanchas a decisões discriminatórias, excludentes de direitos de cunho marcadamente indisponível, de cunho personalíssimo, sobre cujo exercício não pode recair nenhuma restrição, como ocorre com o Direito ao reconhecimento do estado de filiação”. BRASIL. STJ. REsp. nº813.604-SC. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJ de 17/09/07 [sem grifos no original]. 33 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional financeiro e tributário: os direitos humanos e a tributação – imunidades e isonomia (Vol III). 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. Ver também: BRASIL. STF. ADI nº939-DF. Rel. Min. Sydney Sanches. Disponível em: www.stf.gov.br. 34 O STF, nessa situação, não trabalhou com a questão da indisponibilidade dos direitos individuais. Centrou-se na diferença entre o consumidor e o contribuinte. BRASIL, STF, AgRg no RE nº248.191-2/ SP, Op.cit. 35 Quando os benefícios previdenciários são tarjados de direitos disponíveis – o que ocorre quando está em liça a legitimidade do MP para propositura de ações em prol dos possíveis segurados – o sentido emprestado à disponibilidade é o daquilo que é passível de abdicação ou renúncia. O mesmo se passa nos julgados que consideram o direito aos benefícios indisponíveis, bem mais raros, diga-se. O STJ reiteradamente define o benefício previdenciário como direito disponível, cerrando as portas à legitimidade do MP para propor ação, no que tem sido seguido pelos Tribunais Regionais Federais. Em um acórdão paradigmático, o Ministro Relator lançou como questão norteadora se “os benefícios previdenciários são bens disponíveis ou não? Ensejam renúncia ou transação?”. E respondeu: “O benefício previdenciário traduz direito disponível. Refere-se à espécie de direito subjetivo, ou seja, pode ser abdicado pelo respectivo titular, contrapondo-se ao direito indisponível, que é insuscetível de disposição ou transação por parte de seu detentor”. É límpida a associação entre dispor e abdicar, renunciar e transacionar. No acórdão também fica patente a ligação entre disponibilidade e a possibilidade de decidir pleitear ou não um direito em juízo. BRASIL. STJ. REsp. nº369.822-PR. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 22/04/2003 [os grifos constam do original]. Na jurisprudência do STJ, conferir ainda, a título 25 literatura contempla, frequentemente, a noção de que todos os direitos dos trabalhadores, por serem fundamentais, são indisponíveis, sem, contudo, defender a legitimidade do MPT para propor ações por toda e qualquer lesão aos direitos dos trabalhadores. Ademais, admite-se a transação judicial desses direitos (dos valores que os traduzem), ainda que limitadamente36. Outra controvérsia de monta no STF acerca do conceito, extensão e interpretação da ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais ocorreu no exemplificativo: BRASIL, STJ. REsp. nº448.684-RS. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 02/08/2006; BRASIL. STJ. REsp. nº757.828-PR. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 19/06/2006; BRASIL. STJ. REsp. nº770.741-PA. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 15/05/2006; BRASIL. STJ. REsp. nº762.136-RS. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 01/08/2006. É importante verificar a decisão em sede de habeas corpus, no qual foi discutida a possibilidade de renúncia ao benefício previdenciário como condição de suspensão condicional do processo criminal por suposta fraude na sua obtenção. A cláusula foi considerada abusiva, e a Sexta Turma concluiu que não se pode privar alguém do benefício sem o devido processo legal, manifestando que “não nos parece que se tenha como condição da suspensão condicional do processo renúncia a direito em si irrenunciável, como o direito à aposentadoria, se eventualmente cabível”. Ainda que o direito à aposentadoria seja mencionado como indisponível nesse julgado, em linha diametralmente oposta daqueles que versam sobre a legitimidade do MP, o sentido emprestado é o mesmo: o de um direito que não pode ser abdicado nem renunciado. BRASIL. STJ. HC nº60.447/RJ. Rel. Min. Hamilton Carvalhido. DJ de 05/02/2007 [sem grifos no original]. Em alguns acórdãos mais antigos dos Tribunais Regionais Federais, especialmente o da 4ª Região, é possível encontrar referência aos benefícios previdenciários como direitos indisponíveis, sempre no sentido de imunes à abdicação. Um dos principais argumentos em razão da indisponibilidade foi o caráter alimentar do benefício. Ilustrativamente, conferir: BRASIL. TRF4. AC nº91.04.14004-4. Rel. Des. Sílvio Dobrowolski. DJ de 11/03/1992; BRASIL. TRF4. AC nº91.04.09097-7. Rel. Des. Gilson Langaro Dipp. Redator do Acórdão: Sílvio Dobrowolski. DJ de 08/04/1992. É interessante conferir um acórdão do STJ que reconhece o MP como parte legítima para pleitear benefício previdenciário de companheiro homoafetivo, em virtude da “igualdade na aplicação da lei”. BRASIL. STJ. REsp. nº 395.904-RS. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ de 06/02/2006. 36 No STF, há importante julgado sobre a constitucionalidade do art.83, IV, da LC75/93, que permite ao MPT propor ações cabíveis para a declaração de nulidade de cláusula de acordo ou convenção coletiva que viole, dentre outros, direitos indisponíveis dos trabalhadores. Em primeiro lugar, é nítido que o texto legal permite a propositura de ações “cabíveis”, não apenas as coletivas, mas o STF interpretou o enunciado normativo no sentido de permitir apenas “ações coletivas”. Não há maior discussão sobre a definição de “direitos individuais indisponíveis”, todavia, o que se extrai dos votos é que se trata de direitos que interessam à ordem pública ou à coletividade. Em momento algum os Ministros afirmam que todos os direitos dos trabalhadores são indisponíveis, como costuma acontecer na doutrina. BRASIL. STF. ADI nº1.852-1/DF. Rel. Min. Carlos Velloso. DJ de 21/11/2003. BRASIL. STF. AgRg no AI nº404.860-1-DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa Gomes. Disponível em: www.stf.gov.br. Também no TST não se encontra tal menção, especialmente nos acórdãos que lidam com a legitimidade do MPT. Nos julgados do TST, a indisponibilidade dos direitos aparece com o sentido de ser um direito insuscetível de abdicação, transação ou renúncia. Contudo, não há precisão na delimitação da legitimidade do MPT quanto aos “direitos individuais indisponíveis”, uma vez que é frequente o elo entre a legitimidade do parquet e os direitos que são de interesse da coletividade, que extrapolam claramente os lindes individuais, sem labor mais aprofundado sobre a indisponibilidade. Além disso, a flexibilização quanto aos direitos dos trabalhadores repercute na possibilidade, ainda que limitada, de disposição (no sentido de abdicação parcial). A título exemplificativo, ver: BRASIL. TST. RR nº563227/99.8. Rel. Juiz Convocado Luiz Philippe Vieira de Mello Filho. DJ de 24/09/2004; BRASIL. TST. RR nº1143/2004-005-04-40. Rel. Min. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi. DJ de 06/06/2008; BRASIL. TST. ED-RR 2090/2003-003-16-00. Rel. Min. Rosa Maria Weber Candiota da Rosa. DJ de 09/05/2008. Quando da análise da constitucionalidade de artigos da Lei de Arbitragem, indagado acerca da disponibilidade dos direitos dos trabalhadores, o Min. Moreira Alves respondeu que são eles direitos patrimoniais disponíveis, com o significado de direitos que podem ser abdicados. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Disponível em: www.stf.gov.br. 26 julgamento da constitucionalidade de alguns artigos da Lei de Arbitragem37. À época da publicação desse texto legal, muitos sustentaram a sua inconstitucionalidade, por entenderem que a inafastabilidade do controle jurisdicional e o amplo acesso à justiça (estatal) constituíam direitos fundamentais indisponíveis, que não poderiam ser afastados pela vontade das partes, ou seja, que não poderiam ser objetos de disposição. De pronto, entende-se que a disponibilidade era vista como a possibilidade de abrir mão ou abdicar de algum direito fundamental por ato de vontade do titular. E foi esta a tônica do julgado do STF: seria o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional passível de renúncia em prol do sistema arbitral? Em tema de disponibilidade dos direitos fundamentais, esse longo julgado é fulcral38. Primeiro, porque a indisponibilidade foi compreendida, de modo uníssono, como a impossibilidade de abdicação, sob a forma de renúncia parcial, de um direito fundamental. Segundo, porque a indisponibilidade foi relacionada à limitação de liberdades constitucionalmente protegidas. Terceiro, porque foram discutidos os limites e o alcance da disposição de um direito fundamental. Quarto, porque, não obstante a afirmação de que os direitos fundamentais, “em princípio, são irrenunciáveis por sua própria natureza”, foi admitida a disposição do direito fundamental de acesso à justiça estatal conforme delineada pela Lei de Arbitragem. Para obter a conclusão, entraram em jogo a dicção do dispositivo constitucional que consagra a inafastabilidade do controle jurisdicional, o histórico do enunciado normativo, além de outros fatores, como as necessidades sociais. Por fim, ressalte-se a pertinência desse julgado para esta tese, pois nele é feita a distinção entre direitos patrimoniais disponíveis e direitos indisponíveis (patrimoniais ou não). Efetivamente, há direitos que são meramente patrimoniais, em geral tidos como disponíveis (i.e., passíveis de abdicação, renúncia total, transação, etc.), e outros que 37 O art. 1º da Lei da Arbitragem permitiu a escolha pelo sistema arbitral em detrimento do sistema judicial estatal, quando a lide versar sobre direitos patrimoniais disponíveis. BRASIL. Lei de Arbitragem. Lei nº9.307/96. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9307.htm. No STF, foi questionada a constitucionalidade de vários tópicos da lei, em especial a da cláusula compromissória. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7, Op.cit. 38 No acórdão (Voto do Min. Relator) encontra-se o seguinte conceito de direitos disponíveis, dentre outros de igual ou semelhante teor: “direitos a respeito das quais as partes podem transigir”. Nos votos do Min. Marco Aurélio e Nelson Jobim é fortíssima a associação entre a indisponibilidade de um direito e a ablação da liberdade. Eles insistentemente referiram que a disposição do direito, no caso da arbitragem, prestigia a liberdade e a autonomia da vontade, todas constitucionalmente tuteladas. Ver, também Proposta de Diligência do Min. Moreira Alves. BRASIL. STF. AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha. Op. cit. 27 possuem um âmbito existencial ou pessoal que se destaca, para os quais a disposição se mostra mais problemática. Porém, apesar de a divisão entre direitos patrimoniais e nãopatrimoniais facilitar a questão da disponibilidade, não se pode simplesmente definir que os direitos patrimoniais são disponíveis, ao passo que os demais não são. Muitos direitos fundamentais traduzem-se justamente em valores financeiros, e seria um imperdoável sofisma sustentar que os valores pecuniários são disponíveis e o direito, em si, não é (e.g., direitos dos trabalhadores, direitos relacionados à previdência social, dentre outros). Além do mais, muitos direitos não-patrimoniais são sujeitos à disposição, como ocorreu com a inafastabilidade do controle jurisdicional no julgado em comento. Sobre o assunto, Luís Roberto Barroso percebeu que há direitos fundamentais conhecidos pelo seu cunho existencial que são dotados de uma “esfera econômica”, inexistindo contradição em admitir simultaneamente as duas esferas em um mesmo direito fundamental39. A compreensão de uma esfera econômica aliada à esfera existencial de alguns direitos fundamentais dirime muitas dúvidas no que tange à disposição (no sentido de abdicação) de direitos fundamentais e é um potente auxiliar no traçado de padrões para a disposição. No entanto, a abordagem desta tese restringese à esfera existencial dos direitos fundamentais, ou seja, a dimensão econômica, mesmo que presente em muitos direitos, não constitui, aqui, objeto de exame. Dessa forma, a clivagem epistemológica da tese exclui da análise os direitos patrimoniais e a esfera econômica dos demais direitos. Por isso, os esforços serão concentrados na dimensão existencial, sem maiores preocupações com elementos econômicos, que serão trabalhados como disposição onerosa (alienação) de direitos. 39 O autor estuda a possibilidade de disposição do direito à imagem: “É corrente a identificação de duas esferas no direito à imagem. Trata-se das dimensões existencial e econômica, que se superpõem parcialmente e apresentam implicações recíprocas”. E adiante, aduz: “A identificação das duas esferas do direito à imagem – a existencial e a econômica – tem um papel importante justamente na definição dos limites à liberdade contratual na matéria, como se verá. Assinale-se, porém, que as conexões entre elas são inúmeras. Na realidade, trata-se de dois aspectos de uma mesma realidade, e não de realidades distintas, de modo que seria incorreto subestimar a dimensão econômica. A motivação econômica é um dos fatores considerados na decisão existencial sobre a exposição da imagem, embora não seja necessariamente o elemento preponderante em todas as ocasiões. Ninguém é obrigado a buscar a exposição na mídia, mas uma das razões que pode ser considerada legitimamente é a expectativa de retorno financeiro”. BARROSO, O direito individual..., p.5 e 8. Ver também: FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2001. 28 Volvendo à investigação da jurisprudência, vale colacionar uma posição do STF sobre indisponibilidade que é insistentemente repetida na jurisprudência brasileira. Ela se refere ao direito à saúde, “que se qualifica como direito subjetivo inalienável”40. Cumpre não perder de perspectiva que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República. Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular – e implementar – políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar41. Não há maior explicitação, em todo o acórdão, do sentido do termo indisponível, tampouco sobre o que significa prerrogativa. Do contexto, é possível visualizar dois sentidos para indisponível: (a) um direito que não pode ser violado, in casu, um direito que deve (em sentido forte) ser concretizado pelo Poder Público; (b) utilização do termo para motivar a legitimidade ativa do MP para ajuizar ações individuais, como interesse ou direito indisponível42. A palavra indisponível, neste excerto, não soa de acordo com o uso, dantes registrado, de um direito que o titular não pode abrir mão ou abdicar. Há, nesse mesmo sentido, acórdão do STF que reconhece o direito subjetivo público à educação infantil (creche) como prerrogativa indisponível, com aparente sentido de direito que deve (em sentido forte) ser concretizado pelo Poder Público e que 40 BRASIL. STF. RE-AgRg nº271.286-8. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br. Porém, há alguns julgados, especialmente do STJ, que não reconhecem a legitimidade do MP para ajuizar ações pleiteando medicamentos, tratamentos médicos para uma pessoa apenas, por não estar em palco direito individual indisponível, ou por exigirem que, além de individual indisponível, seja o direito, simultaneamente, homogêneo. Do STJ, colhe-se: “In casu, mostra-se inafastável a ilegitimidade do Ministério Público Estadual para propor ação civil pública, uma vez que não se trata da defesa de interesses coletivos ou difusos, transindividuais e indivisíveis, tampouco de direitos individuais indisponíveis e homogêneos, mas de direito individual ao recebimento de medicamento”. BRASIL. STJ. REsp. nº665.164/RS. Rel. Min. Franciulli Netto. DJ de 20/03/2006; BRASIL. STJ. REsp. nº664.139/RS. Rel. Min. Castro Meira. DJ de 20/06/2005. Há também julgados que não reconhecem a homogeneidade do direito individual, tampouco a presença de interesse público: BRASIL. STJ. REsp. nº613.493/DF. Rel. Min. Cezar Asfor Rocha. DJ de 20/03/2006. 41 BRASIL. STF. AgRg no RE nº271.286/8. Voto do Min. Celso Mello [os grifos constam no original]. 42 Em alguns acórdãos anteriores, mencionados no julgado em exame, o Ministro empregava exatamente as mesmas frases, sem, no entanto, utilizar o termo indisponível. Isso pode sugerir que a palavra ali se encontra para justificar a legitimidade do MP para propor ações relativas ao direito à saúde, mesmo em casos individuais. Em diversos julgados sobre o tema, especialmente do STJ e dos TRFs, cuida-se do direito à saúde de crianças, adolescentes e idosos, cujos direitos são, por força legal, indisponíveis. Entrementes, é possível encontrar muitos acórdãos nos quais estão em causa direitos de pessoas carentes ou hipossuficientes, e esses elementos não são empregados como razão para titularidade do direito, mas para a concessão da sua tutela em juízo. 29 pode ser reclamado pelo MP em juízo43. No STJ, houve importante discussão sobre o tema, pois, apesar de o STF ter reconhecido o direito à educação infantil como prerrogativa indisponível, em alguns acórdãos não foi reconhecida a legitimidade do MP para buscar a tutela em juízo para crianças individualmente consideradas44. No STJ, o conceito de direito indisponível foi formulado em um caso no qual era posta em dúvida a legitimidade do MP para propor a ação45: Com efeito, direito disponível refere-se à espécie de direito subjetivo que pode ser abdicado pelo respectivo titular e contrapõese ao direito indisponível, que é insuscetível de disposição por parte de seu titular. In casu, os candidatos preteridos podem reivindicar ou não a nomeação intentada pelo parquet, o que confirma a disponibilidade do direito. À luz do voto, a marca da disponibilidade de um direito consistiria na possibilidade de abdicação por parte do titular. Todavia, há uma conexão direta entre a abdicação e a existência de um espaço de escolha, por parte dos titulares, sobre buscar a tutela jurisdicional ou não. Em assim sendo, outro sinal da disponibilidade seria o de um direito a respeito do qual incumbe ao titular decidir pleiteá-lo judicialmente. O elemento traz a lume a confusão conceitual instaurada. Ora, se o STF reconheceu que o direito ao conhecimento da paternidade biológica é indisponível, mas não há um dever de protegêlo judicialmente, nem pode o MP fazê-lo se os interessados não o requererem, como conciliar com a noção de que uma das características da disponibilidade é justamente a possibilidade de decidir ou não pela busca da tutela jurisdicional? No mesmo rumo, poderia o MP, sem a provocação dos interessados, ajuizar ações cujos pedidos sejam tratamentos médicos ou fornecimento de medicamentos para uma pessoa apenas? A 43 BRASIL. STF. RE nº410.715-AgR-SP. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br. STF. RE nº436.996-AgR-SP. Rel. Min. Celso de Mello. Disponível em: www.stf.gov.br. 44 Citando o STF, assim se posiciona o STJ: “A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeitos de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste, a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ‘crianças de zero a seis anos de idade’ (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal”. E, mais adiante: “6. O direito à educação, insculpido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, é direito indisponível, em função do bem comum, maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria”. BRASIL. STJ. Embargos de Divergência em REsp. nº485.969/SP. Rel. Min. José Delgado. DJ de 11/09/2006. Conferir ainda: BRASIL. STJ. REsp. nº753.565/MS. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 28/05/2007 e BRASIL. STJ. Embargos de Divergência em REsp. nº466.861/SP. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. DJ de 07/05/2007. 45 BRASIL. STJ. AgRg no Recurso Especial nº547.704/RN. Rel. Min. Paulo Medina. DJ de 13/06/2005. [sem grifos no original]. 30 ligação da indisponibilidade com a justiciabilidade, nesse julgado do STJ, tampouco está em conformidade com ideia de um direito gravado pelo interesse público, muito menos com a noção de um direito que não pode ser alvo de restrições46. Apesar das incongruências apontadas, o sentido geral da expressão direito disponível no acórdão do STJ é o de um direito que pode ser abdicado por manifestação do seu titular. Então, de modo simplista, encontra aproximação com o conceito forjado pelo STF na decisão sobre a constitucionalidade de artigos da Lei de Arbitragem. O sentido de disposição de direito fundamental como possibilidade de abdicação por manifestação de vontade do titular (sob a forma de renúncia total ou parcial, alienação, cessão, etc.) é muito recorrente na jurisprudência, como atestam os casos retrocitados e os seguintes: (a) impossibilidade de renúncia ao processo de extradição e irrelevância jurídica do consentimento do extraditando para sua entrega imediata ao país de origem47; (b) impossibilidade de renúncia ao devido processo penal, inclusive quanto à possibilidade de recurso, quando houver dissenso entre o réu e seus defensores48; (c) impossibilidade de confissão por criança e adolescente e de renúncia à produção probatória49; 46 Não é compatível porque o tema do julgado era a contratação de um professor substituto em detrimento de candidatos aprovados em concurso público e habilitados para a ocupação do cargo. Ora, tratando-se de legalidade da contratação de servidor público e da lisura dos concursos públicos, parece claro que há interesse público envolvido na questão, não apenas direitos subjetivos dos candidatos já aprovados e não nomeados. Em decisão mais antiga, o STJ decidira que o MP era parte legítima para propor ação sobre a mesma matéria. BRASIL. STJ. REsp. nº268.548/SP Rel. Min. Edson Vidigal. DJ de 06/11/2000. [sem grifos no original]. Há também acórdão aceitando a legitimidade do MP em caso análogo, em razão da presença de interesses difusos e metaindividuais. BRASIL. STJ. REsp. nº191.751/MG. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJ de 06/06/2005. 47 É bastante antigo e pacífico este entendimento no STF. Ver: BRASIL. STF. HC nº67.775/SP. Rel. Min. Paulo Brossard. DJ de 23/02/1990. Neste acórdão, são citados precedentes há longa data firmados. Em decisões mais atuais, tem-se: BRASIL. STF. Ext. nº953 Governo da República Federal da Alemanha. Rel. Min. Celso de Mello. DJ de 11/11/2005 e BRASIL. STF. Ext. nº1.071-9 República Francesa. Rel. Min. Cezar Peluso. DJ de 11/04/2008. 48 Esta questão é importante, pois, por vezes, a demora processual faz com que o réu permaneça detido, sem condenação transitada em julgado, por mais tempo do que permaneceria se a decisão de primeiro grau transitasse em julgado, em razão dos regimes da pena. Em assim sendo, não se pode tarjar de irracional a escolha feita pelo réu. Ver, ilustrativamente: BRASIL. STJ. HC nº33.385/SP. Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca. DJ de 03/05/2004. 49 Na matéria, assim se pronunciou o STJ: “1. O Supremo Tribunal Federal assentou entendimento de que o direito de defesa, consagrado no art. 5º, inciso LV, da Constituição Federal, é irrenunciável, ou seja, as partes litigantes não podem dele dispor. 2. O respeito aos princípios do due process of law e da ampla defesa interessa também ao Estado, representado na figura do Ministério Público, na busca do esclarecimento dos fatos e da verdade real. Assim, o juízo menorista, ao homologar a desistência das partes de produzirem provas durante a realização da audiência de instrução, feriu diametralmente o direito constitucional da ampla defesa assegurado ao paciente”. Esse entendimento do STJ é pacífico, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes. Porém, quanto à confissão, há de ser observado que, ao passo que adolescentes não podem confessar (abdicar de uma alternativa de ação), adultos podem 31 (d) validade do consentimento expresso do proprietário quanto à vistoria para fins de reforma agrária sem atenção a prazos estabelecidos em lei 50; (e) possibilidade de renúncia ao direito de impenhorabilidade de bens legalmente estipulado, excluído o bem de família51; (f) impossibilidade de a genitora transacionar acerca da paternidade de seu filho52; (g) irrelevância do consentimento e da participação de médicos na pactuação e na elaboração de regras de exclusividade de prestação de serviços com cooperativa de saúde53. Exemplo muito incidente, cujo sentido não é fácil desvelar, é a consideração de indisponibilidade dos direitos das pessoas jurídicas de direito público, especialmente no que toca às consequências previstas pelo CPC para as lides que versam sobre direitos indisponíveis54. À primeira vista, parece certeiro o sentido oferecido à locução direitos indisponíveis, empregada para designar o direito que não pode ser abdicado. Todavia, um exame mais cauteloso enseja pelo menos duas dúvidas. Primeira, qual é o direito que é indisponível? O processual – ampla defesa, produção probatória – ou o elemento mediato versado na lide – o patrimônio público? Em conformidade com os enunciados normativos processuais, é o direito versado na lide que deve ser indisponível para que se fazê-lo. O fato atesta que o direito em si não é indisponível, pois o que entra em questão é justamente a capacidade para dispor, não uma indisponibilidade intrínseca. BRASIL. STJ. HC nº61.017/RJ. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 30/10/2006 [sem grifos no original]. Colhe-se ainda na jurisprudência do STJ: “2. A ampla defesa e os meios a ela inerentes são processualmente indeclináveis, deles não se abrindo mão; portanto não se admite, em relação a eles, haja renúncia. BRASIL. STJ. HC nº48.003/SP. Rel. Min. Nilson Naves. DJU de 03/04/2006 [sem grifos no original]. Exemplificativamente, conferir: BRASIL. STJ. RHC nº15.559/SP. Rel. Min. Laurita Vaz. DJ de 02/08/2004; BRASIL. STJ. HC nº42.496/SP. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJU de 06/06/2005. De modo geral, esse entendimento é seguido pelos TRFs. 50 “Ainda que, na linha do entendimento majoritário do Tribunal, se empreste à notificação prévia da vistoria do imóvel expropriando, prevista no art.2º, 2º, da L. nº8.629/93, as galas de requisito de validade da expropriação subsequente, não se trata de direito indisponível: não pode, pois, invocar a sua falta o proprietário que, expressamente, consentiu que, sem ela, se iniciasse a vistoria”. O Min. Sepúlveda Pertence foi enfático quanto à questão da disponibilidade: “Mas, posto me ajuste à maioria, não posso chegar a elevar o seu prazo em direito indisponível. Realmente, aí estamos indo além da marca que a dúvida de redação daquele dispositivo permite. Obviamente um homem sui juris, proprietário, que consente em que a vistoria se faça sem o decurso de prazo não pode depois impugnar a sua validade”. Quanto ao ponto, houve discordância entre os Ministros, vencido o Relator. BRASIL. STF. MS nº23.3702/Goiás. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. Redator do Acórdão: Min. Sepúlveda Pertence. DJ de 28/04/2000 [sem grifos no original]. 51 O STJ entendeu que, se o devedor indica bem à penhora, renuncia à impenhorabilidade, dispondo do seu direito. Mas excetuou o direito sobre o bem de família, não suscetível de renúncia em virtude da proteção da entidade familiar e da ordem pública. Foi vencida a Relatora e o Min. Carlos Alberto Menezes Direito, que entendiam nula a renúncia, por tratar-se de direito indisponível. BRASIL. STJ. REsp. nº351.932. Rel. Min. Nancy Andrighi. Rel. do Acórdão. Min. Castro Filho. DJ de 09/12/2003. 52 BRASIL. STJ. AgRg no Ag nº19.374. 53 Cf. BRASIL. STJ. REsp. nº768.118/SC. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 30/04/2008. 54 O CPC menciona regras para os direitos indisponíveis nos arts. 320, 333 e 351. É admitida, também, a atuação ex officio do magistrado quando em questão direitos indisponíveis das partes. BRASIL. Código de Processo Civil. Lei nº5.869/73. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_ 03/LEIS/L5869.htm. 32 operem as consequências ali previstas. Então, é o direito ao patrimônio público que é indisponível. Porém, quando está em liça o patrimônio público, há sempre um direito? Qual o sentido da palavra direito? Mesmo com a exclusão dessa pergunta, é carente de lógica sustentar que se trata, no caso, de direito indisponível, uma vez que quem não pode abdicar do direito não é o seu titular, mas apenas aquele que representa a pessoa jurídica de direito público em circunstâncias bem delimitadas. Ora, se dispor de um direito significa manifestar-se de modo a abdicar (renunciar total ou parcialmente, transacionar, ceder, etc.), para que possa haver a disposição torna-se imprescindível a titularidade do direito. Destarte, neste caso não há que se falar, propriamente, em direito indisponível, mas em ausência de atribuição, advinda da falta de titularidade, para movimentar direito e bens alheios55. Em muitos desses acórdãos, as expressões direito indisponível e indisponibilidade do interesse público são tratadas como intercambiáveis, ou, pelo menos, como análogas. Entretanto, reforça-se a ideia de que não está claro exatamente qual é o direito em jogo e o que se entende pelo termo, assim como resta obscurecido o sentido de interesse público56. 55 São incontáveis os acórdãos que se referem à indisponibilidade dos direitos das pessoas jurídicas de direito público como indisponíveis, para extrair as consequências previstas no CPC. Na matéria, é necessário frisar que em muitas ocasiões sequer é cogitada a hipótese de serem tais direitos fundamentais. Porém, embora essa referência seja comum na jurisprudência dos tribunais, não é nada usual nos julgados do STF. No STJ, encontra-se pacificada a seguinte orientação: “O executivo fiscal versa sobre direito de natureza patrimonial e, portanto, indisponível. O julgador singular, ao decretar de ofício a prescrição da execução fiscal, deixou de observar esta indisponibilidade, conforme estabelece o artigo 166 do Código Civil e parágrafo 5º do artigo 219 do Código de Processo Civil”. BRASIL. STJ. REsp. nº607.350/SC. Rel. Min. Castro Meira. DJ de 23/05/2005. Há julgado do STJ que manifesta com clareza a não-titularidade do direito pelo presentante da pessoa jurídica de direito público. Essa clareza é, no entanto, rara: “Entendeu a Corte a quo que a revelia não induzira o efeito de presunção de veracidade se o litígio versasse sobre direitos indisponíveis. Decidiu, entretanto, que, na espécie, a matéria em questão – crédito tributário – caracterizava-se como direito disponível, já que a Fazenda Pública poderia sempre celebrar acordos com o contribuinte. Por essa razão, com apoio no art. 320, II, do CPC, teve como revel o Estado do Paraná, aplicando-lhe os efeitos legais daí decorrentes. [...] Com efeito, o crédito tributário da Fazenda Pública, no meu entender, constitui direito indisponível, seja por si mesmo, seja pela natureza de seu titular, sobretudo em razão do preceito inscrito no art. 97 do CTN, o qual dispõe que somente por lei podem ser estabelecidas as hipóteses de exclusão, suspensão e extinção de créditos tributários, ou de dispensa ou redução de penalidades. Tal preceito, sem dúvida, impede que se tenha como disponível o direito do ente público ao respectivo crédito tributário. Por essa razão, concluo também que, em razão do disposto no art. 320, II, do CPC, não há como serem aplicados ao ora recorrente os efeitos da revelia, já que o litígio versa sobre direitos indisponíveis”. BRASIL. STJ. REsp. nº96.691/PR. Rel. Min. João Otávio de Noronha. DJ de 13/12/2004. Nos TRFs e nos TJs, são inúmeros os acórdãos que se referem aos direitos do erário, da fazenda, do INSS, etc., como direitos indisponíveis. 56 Dois acórdãos lançam luzes sobre a temática. O primeiro, do STF, no qual foi admitida transação envolvendo o interesse público. O segundo, do STJ, no qual foi admitida opção pela arbitragem por sociedade de economia mista. Neste último, a diferenciação entre direito disponível e indisponível da administração é feita aliada às noções de interesse público primário e secundário, aquele indisponível, este disponível. BRASIL. STF. RE nº253.885-0/MG. Rel. Min. Ellen Gracie. Disponível em: www.stf.gov.br; BRASIL. STJ. MS nº11.308/DF. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 19/05/2008. Acerca da 33 Com frequência bem menor, há acórdãos que se referem aos direitos indisponíveis como aqueles que não podem sofrer ablações, existindo, até mesmo, relação com a imprescritibilidade57. Por fim, há uns poucos acórdãos que evidenciam a diferença entre o direito – a relação jurídica – e o bem tutelado pelo direito. São casos nos quais o bem está gravado pela indisponibilidade quanto ao titular do direito, aceitando-se, todavia, que o titular possa alienar, ceder ou renunciar ao direito. Cabe aqui ressaltar que não se pode confundir nem igualar a disposição de um bem juridicamente tutelado com a disposição do direito que o protege, pois são institutos distintos. 1.1.3 Síntese conclusiva Na pesquisa doutrinária, foi possível entrever um sentido prevalente para o termo indisponível, que significaria aquilo que não é passível de abdicação, nas mais diversas formas jurídicas que o ato de abdicar pode assumir. Entrementes, não se pôde comprovar o emprego unívoco da palavra, principalmente quando qualificadora do termo direito, pois às vezes refere-se ao bem tutelado pelo direito, noutras, à relação jurídica subjacente, e noutras, ainda, a uma entidade altamente abstrata e abrangente cognominada direito. Em repetidas ocasiões, a indisponibilidade é referida na literatura jurídica como uma característica intrínseca ao conceito de direito fundamental. Quanto à possibilidade de disposição (no sentido de abdicação) de direitos fundamentais, foram encontradas três correntes, cujas diferenças não estão apenas no resultado a que chegam, mas também nos conceitos que esposam: (a) indisponibilidade dos direitos fundamentais; (b) disponibilidade relativa ou temperada dos direitos fundamentais (nesse grupo, a ideia é, normalmente, de indisponibilidade prima facie); (c) disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. Do levantamento legislativo, nota-se que quando um direito (fundamental ou não) for reputado indisponível, haverá consequências de monta, que se referem não expressão interesse público, seus significados, seu emprego na prática jurídica nacional e novas leituras, é relevante a coletânea: SARMENTO, Interesses públicos... . 57 Afora os casos já expostos, o sentido de direitos que não podem ser violados, aliado à manifestação, por citação da doutrina, de que os direitos humanos são indisponíveis e de que a dignidade humana é inalienável, é trabalhado em demandas por danos morais e materiais promovidas por dissidentes políticos do regime militar que vigorou no Brasil. Desse modo, são casos nos quais a intrusão nos direitos individuais é fortíssima, constituindo grave violação. Cf. BRASIL. STJ. REsp. nº845.228/RJ. Rel. Min. Luiz Fux. Vencido, quanto à prescritibilidade, o Min. Teori Albino Zavascki. DJ de 18/02/2008. BRASIL. STJ. REsp. nº816.209/RJ. Rel. Min. Luiz Fux. DJ de 03/09/2007. 34 apenas ao direito material, mas também ao direito processual. Porém, o sentido dado à expressão não é simples de divisar nos enunciados normativos, especialmente quando eles são cotejados com a doutrina, que se mostra flutuante ao ensejo da matéria em pauta. Ou seja, muitos dos dissensos doutrinários acerca da indisponibilidade advêm da diferença entre áreas do direito e textos legislativos estudados por cada autor. Desta forma, asseverar, em um âmbito do direito, que “os direitos fundamentais são indisponíveis” acarreta consequências que são negadas em outro âmbito, tornando os posicionamentos incoerentes entre si e diante do ordenamento jurídico visto sistematicamente. No que concerne às manifestações jurisprudenciais apresentadas, ficou patente que nem todos os direitos fundamentais são considerados indisponíveis. Além do mais, os julgados demonstram que a consideração de um direito como indisponível é casuística, seja porque a legislação assim determina em circunstâncias específicas, seja porque os tribunais assim decidem diante do caso concreto. Este elemento pode sugerir que os tribunais brasileiros elaboram a indisponibilidade como uma questão normativa, isto é, não como um componente ontológico, intrínseco ao conceito de direito fundamental, o que destoa de uma linha doutrinária bastante difundida, que sustenta justamente o oposto. O exame dos julgados tornou evidente que o conceito de indisponibilidade aplicado nem sempre é o mesmo. Em alguns, trata-se de direito não suscetível de abdicação total ou parcial, transação, acordo ou renúncia, desencadeada por manifestação do titular. Em outros, de direito gravado pelo interesse público ou coletivo, sem que isto implique, necessariamente, a impossibilidade de abdicação. Existem casos nos quais o conceito de indisponibilidade é combinado à possibilidade de o titular do direito decidir pleiteá-lo em juízo ou não. Sinteticamente, os sentidos encontrados na jurisprudência são: (a) direitos que não podem sofrer ablações, mesmo que o titular coopere para tanto; (b) direitos que não podem ser abdicados por manifestação pelo titular; (c) direitos gravados pelo interesse público, sem que fique claro o significado de indisponível; (d) direitos que não estão ao alcance de um indivíduo, por não ser ele o titular; (e) direitos que devem ser pleiteados em juízo; (f) direitos titularizados por pessoas que não possuem capacidade plena para abdicá-los. Dentre todos os sentidos, quer os doutrinários, quer os legislativos e jurisprudenciais, opera-se a prevalência da conexão do conceito de indisponibilidade com a manifestação do titular para abdicar o direito. Então, ainda que haja certo 35 descompasso, é possível delinear uma tendência. No entanto, a tendência é obscura, pois não há coerência e aprofundamento na delimitação de qual é o objeto de abdicação, quais os casos e formas nos quais ela pode ser admitida, quais são seus limites; tampouco há congruência quanto a ser a indisponibilidade uma característica intrínseca a alguns direitos ou uma opção normativa que grava certos direitos. Tudo isso conduz à inexorável afirmação de que efetivamente existe um problema conceitual por detrás da ideia de indisponibilidade dos direitos fundamentais. E o problema não reside apenas na conceituação de indisponível, mas também na de direito, e, mais especificamente, de direito fundamental. Quando um conceito é confuso, pode ser usado como um joguete na argumentação jurídica e facilitar demasiadamente a perda da coerência interna da interpretação. A análise ora realizada demonstra que não há, mesmo sob a melhor luz, um fio de integridade, uma teia inconsútil que permita reconhecer, com clareza e utilidade, o que são, quais são e, especialmente, quais os efeitos jurídicos dos chamados direitos fundamentais indisponíveis58. Esclareça-se, contudo, que essa confusão conceitual não é exclusividade brasileira. Terrance McConnell, no primeiro parágrafo da introdução da obra dedicada unicamente ao tema, identifica a disfunção conceitual: Para muitos, os direitos indisponíveis têm parecido muito misteriosos e confusos, na melhor hipótese, e suspeitos ou até mesmo incoerentes, na pior. […] A expressão “direitos indisponíveis” é usada de múltiplas maneiras, o que incrementa a confusão. Em um sentido flexível e popular, direitos indisponíveis são aqueles que jamais poderão ser tomados de uma pessoa. Mas em um sentido mais acurado e um tanto técnico, direitos indisponíveis são aqueles que não podem ser temporariamente suspensos ou transmitidos pelos seus possuidores59. Por seu turno, Judith Jarvis Thomsom – jusfilósofa estadunidense – revelou três conceitos de indisponibilidade dos direitos, a saber: (a) significa dizer que outras pessoas não possuem autoridade para operar alterações relevantes em direito alheio, isto é, terceiros não podem fazer com que o titular do direito deixe de possuí-lo, e o titular 58 As noções de integridade, teia inconsútil e de reconstrução da jurisprudência sob sua melhor luz foram inspiradas em DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, passim. 59 McCONNELL, Terrance. Inalienable Rights: the limits of consent in medicine and the law. Oxford: Oxford University Press, 2000, p.ix. “Inalienable rights have seemed to many mysterious and confusing at best, and suspicious or even incoherent at worst. […] The expression ‘inalienable rights’ is used in multiple ways, which adds to the confusion. In a loose and popular sense, inalienable rights are ones that may never be taken from a person. But in a more focused and somewhat technical sense, inalienable rights are ones that may not be waived or transferred by their possessors.” 36 mantém-se em posição de exigir o cumprimento do direito; (b) significa dizer que o titular do direito não pode deixar de possuí-lo mediante venda ou comércio; (c) significa dizer que o titular não deixa de possuir o direito por nenhum meio ao seu alcance, seja venda ou qualquer outro. Portanto, nada pode o titular fazer para cessar a titularidade do direito. Nesse terceiro sentido, inclui-se a impossibilidade de perda ou suspensão do direito como sanção por alguma conduta adversa do titular60. 1.2 Direitos fundamentais: compreender o conceito compreender a estrutura para Apontada a confusão conceitual sobre a indisponibilidade dos direitos, fundamentais ou não, buscar-se-á entender, em primeiro plano, a estrutura de um direito fundamental. O labor será empreendido, de início, em um marco analítico-estrutural, cuja função é justamente depurar conceitos. Por este motivo, os tópicos que seguem não se concentram nas razões para se ter direitos nem para que se considere um determinado direito fundamental, tampouco nos critérios de aplicação e de justiciabilidade dos direitos fundamentais. 1.2.1 Confusão conceitual e a importância da clareza Marvin Schiller, em texto intitulado Are there inalienable rights?, publicado na década de 1960 na Revista Ethics, dedica-se a demonstrar uma plêiade de conclusões distintas que podem ser obtidas segundo o significado atribuído aos termos direitos e indisponíveis. Assim, por exemplo, se a palavra indisponível for compreendida como um qualificador que impede a perda ou a restrição de um direito, atingir-se-á um tipo de conclusão; caso seja compreendida como impeditivo de renúncia, chegar-se-á a outras conclusões. Neste ensejo, o autor labuta com distintas concepções dos termos, e aponta quais conclusões cada uma delas e cada combinação permite angariar61. A investigação da jurisprudência brasileira demonstrou a ausência de um acordo semântico sobre os direitos fundamentais e também sobre a indisponibilidade. Dessa forma, confirmam-se as palavras de Schiller, pois as consequências obtidas são diferentes, na medida em que os conceitos são diversos e também na proporção em que os elementos lacônicos permitem. 60 THOMSON, Judith Jarvis. The realm of rights. Cambridge: Harvard University Press, 1990, p.283284. 61 SCHILLER, Marvin. Are there any inalienable rights? Chicago: Ethics, v. 74, n.4. Jul. 1969, passim. 37 Os conceitos utilizados na argumentação jurídica devem ser adequados e úteis. Do contrário, convertem-se em locus argumentativo privilegiado, cuja simples invocação é capaz de definir um caso complexo; ou, então, operam como joguetes, ora servindo a uma função adequada, ora a outras sequer admissíveis pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, tais conceitos impregnam o sistema de insegurança e de incoerência, o que acarreta, também, desigualdade no tratamento dos jurisdicionados. Assim, é com o escopo de buscar um conceito adequado e útil, que sirva para evitar as situações de deficit argumentativo, que os tópicos seguintes serão redigidos. 1.2.2 Opção metodológica Consoante mencionado, um dos problemas envolvidos na conceituação da disponibilidade de direitos fundamentais é o próprio modo de conceber um direito fundamental. Portanto, é necessário esclarecê-lo para, posteriormente, definir os contornos do conceito de disposição. Nos sistemas de tradição romano-germânica, os direitos fundamentais são expostos como direitos subjetivos. A categoria direito subjetivo é antiga. Porém, segue sendo confusa, controversa e discutível62, o que, segundo Alexy, é produto da “distinción insuficiente” entre três diferentes níveis: (a) as razões para ter direitos; (b) as posições e as relações jurídicas; (c) a exigibilidade judicial (justiciabilidade)63. Os níveis não são incompatíveis entre si. Ao contrário, Alexy admite que eles se relacionam. A relação entre (a) e (b) é de fundamentação e é necessária. Enquanto uma (a) fornece as razões para se ter direitos, fundamentando a sua existência, a outra (b) oferece a compreensão analítica dos direitos. Já a relação entre (b) e (c) é, no entender do autor, contingente. Apesar de a primeira (b) oferecer razões para a segunda (c), o fato de não haver possibilidade de imposição judicial não implica, necessariamente, a inexistência de um direito subjetivo. Assim, a relação entre (b) e (c) é uma relação entre posições jurídicas. Para desenvolver sua análise dos direitos fundamentais como direitos subjetivos, Alexy adere ao nível (b), tratando os “direitos subjetivos como feixes de 62 Como exemplo, ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p.173-245; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.117 e ss, que concebe o direito subjetivo à luz da teoria da vontade; Daniel Sarmento, apesar de admitir a estrutura relacional típica do direito subjetivo, também parece concebê-lo como ligado à justiciabilidade. SARMENTO, Daniel. Dimensão objetiva dos direitos fundamentais: fragmentos de uma teoria. In: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.254 e ss. 63 ALEXY, Teoria de los... p.178 e ss. 38 relações e de posições jurídicas”64. Este é o cerne da dimensão analítica do conceito de direito fundamental. Quando se trata da disponibilidade dos direitos fundamentais, as consequências da não-distinção entre os planos das relações e das posições jurídicas e o das razões para se ter direitos (bem como o das funções que eles exercem) são relevantes. Se o conceito for construído a partir das razões para se ter direitos ou das funções por eles exercidas, ele poderá trazer em si mesmo a resposta para a questão da disponibilidade. É o que ocorre com a teoria dos direitos subjetivos como vontade. Uma vez adotada, ela leva à conclusão de que os direitos são disponíveis. Seguindo Alexy, neste estudo acredita-se que o trabalho com as razões para se ter direitos ou as funções que eles exercem em um sistema jurídico pertencem a um plano de justificação65. Em prol da clareza, é mister separá-lo do âmbito estrutural. Por isso, a abordagem adotada será o estudo analítico do objeto. Por analítico, entende-se o exame dos conceitos basilares relativos ao objeto, sua estrutura e as relações que com ele se estabelecem66. Trata-se, pois, de um labor de depuração conceitual, em grande parte neutralizado, na medida em que se busca primeiramente definir determinados objetos, compreender sua estrutura e examinar suas inter-relações, deixando de lado, momentaneamente, elementos de justificação e de aplicação. Cabe observar que a dimensão analítica não esgota o fenômeno jurídico, especialmente quando se trata de um tema complexo e mesmo polêmico como o dos direitos fundamentais. Todavia, é de muita utilidade, pois ao preencher um pressuposto das tarefas de justificação e de aplicação do direito, evita a disseminação de “conceitos camaleônicos”67 que turvam a mente dos intérpretes e obliteram os debates jurídicos68. 64 ALEXY, Teoria de los... p.186. O plano da justificação será examinado no Capítulo 2. 66 Alexy considera que a analítica é uma das três dimensões da dogmática jurídica. Ao seu lado, estão as dimensões empírica e normativa. ALEXY, Teoria de los... p.39 e ss; ALEXY, Robert. Teoria de la argumentación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997, p. 241 e ss. No Brasil, ver: SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e as normas constitucionais. São Paulo, 2005. Tese (Concurso de Professor Titular) – USP, p.32 e ss.; PEDROLLO, Gustavo Fontana. Princípio da proporcionalidade e controle material de constitucionalidade das leis. Florianópolis, 2000. Dissertação (Mestrado em Direito) – UFSC, p.40 e ss.. 67 A expressão é inspirada em uma das muitas passagens nas quais Hohfeld enfatiza o importante papel do rigor terminológico e da clareza conceitual: “Even if the difficulty related merely to inadequacy and ambiguity of terminology, its seriousness would nevertheless be worthy of definite recognition and persistent effort toward improvement; for in any closely reasoned problem, whether legal or non-legal, chameleon-hued words are a peril both to clear thought and lucid expression”. [sem grifos no original]. HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied in judicial reasoning. New Jersey: The Law Book Exchange, 2000, p.35. Neste estudo, foi utilizada também a versão em italiano: 65 39 Retirar o caráter camaleônico da ideia de disposição de direitos fundamentais é justamente o objetivo deste Capítulo. Em assim sendo, o que se faz importante analisar são as posições e as relações jurídicas de direitos fundamentais e ligá-las à indisponibilidade, sem adentrar nas funções dos direitos fundamentais, nas razões para se ter direitos ou no intrincado tema da sua justiciabilidade. A tarefa estruturalconceitual é um primeiro e necessário passo que criará a condição teórica para a discussão do problema de pesquisa, fator que justifica a adoção da abordagem metodológica analítica dos direitos fundamentais nesta etapa do estudo. 1.2.3 Estrutura de um direito fundamental O exame da estrutura de um direito teve seu impulso com dois artigos de Wesley Newcomb Hohfeld, publicados em 1913 e em 1917, no Yale Law Journal, posteriormente reunidos na obra Fundamental legal conceptions, as applied in judicial reasoning and other legal essays. O texto exerceu grande influência em autores e juristas anglo-americanos e também estrangeiros. Robert Alexy, professor germânico cuja obra é muito difundida no Brasil, ao trabalhar com a categoria direito subjetivo para compreender analiticamente os direitos fundamentais, utilizou como substrato originário as categorias hohfeldianas, operando modificações importantes e baseando sua análise em um sistema-padrão de lógica deôntica. Os elementos nucleares a seguir expostos serão construídos com apoio nas obras de Hohfeld, Alexy e também de Judith Jarvis Thomson, acompanhados de alguns de seus comentadores e críticos69. 1.2.3.1 As categorias hohfeldianas O intento de Hohfeld foi o de distinguir relações jurídicas que eram tratadas de modo amplo e assistemático sob as insígnias “direito” e “dever”. Exatamente como salienta J.J. Thomson, ele não pretendeu tomar um partido entre diferentes teóricos do direito, e.g., entre positivistas e não-positivas, os quais discordam sobre a natureza de HOHFELD, Wesley Newcomb. Concetti Giuridici Fondamentali. A cura di Mario G. Losano. Torino: Giulio Einaudi, 1969, p.16. 68 A dimensão analítica possui relação metodológica com a jurisprudência dos conceitos, alvo de largas críticas em razão do seu hermetismo. Efetivamente, se ela for a única abordagem realizada, haverá obtenção de clareza conceitual, mas também um sério empobrecimento da apreensão do fenômeno jurídico. A opção metodológica ora realizada não desdenha das críticas e dos debates acerca da dimensão analítica; apenas a toma como uma primeira e necessária abordagem, porém limitada e não suficiente. Sobre o assunto, ver: PEDROLLO, Princípio da..., p.10 e ss. ALEXY, Teoria de la..., p.241 e ss. 69 HOHFELD, Fundamental…, passim. ALEXY, Teoria de los... passim. THOMSON, Op.cit., passim. Quanto à obra de Thomson, é importante referir que seu epicentro é a justificação moral dos direitos, embora ela também labore com a justificação social. Porém, na parte inicial do estudo, Thomson descreve, discute e reapresenta teses hohfeldianas no ambiente jurídico. 40 um fenômeno, mas construir um mapa estrutural do “reino dos direitos jurídicos”70. Como resultado, ele obteve oito conceitos jurídicos fundamentais, componentes de relações jurídicas fundamentais, que apresentou em esquemas de correlativos e opostos71: Correlativos Jurídicos72 Direito Dever Privilégio Não-direito Competência Sujeição Imunidade Incompetência Quadro I – Correlativos Jurídicos Opostos Jurídicos Direito Não-direito Privilégio Dever Competência Incompetência Imunidade Sujeição Quadro II – Opostos Jurídicos As relações hohfeldianas são sempre tríplices ou triádicas. Dois dos seus elementos são os sujeitos, o que as torna um conceito “two-hat”73. Cada relação envolverá sempre dois sujeitos, e nisto reside um impeditivo lógico de se sustentar que um sujeito possui um direito ou uma imunidade contra si mesmo. O terceiro elemento é 70 A expressão é de J.J. Thomson, “a map of the realm of legal rights”. Sabe-se que a união das palavras direitos e jurídicos, formando direitos jurídicos ou mesmo direitos legais, pode soar muito estranha em língua portuguesa. O que se quer exprimir é que Hohfeld não teve a intenção de mapear os direitos no reino dos direitos morais, ou seja, no patamar das razões para se ter direitos. Para uma compreensão e discussão mais acurada da ideia de direitos jurídicos e de direitos morais, sob vértices teóricos diversos, ver também: THOMSON, Op.cit., p.73 e ss.; NINO, Carlos Santiago. Sobre los derechos morales. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.7, p. 311-325, 1990; WALDRON, Jeremy. A right to do wrong. Ethics, v. 92, n.1, p.21-39, Oct. 1981. 71 Conforme George W. Rainbolt, uma afirmação será correlativa à outra se (1) ambas possuírem o mesmo conteúdo, (2) o sujeito passivo da primeira for o sujeito ativo da segunda e (3) o sujeito passivo da segunda for o sujeito ativo da primeira. Se assim for, elas serão logicamente equivalentes. Isto pode ser assim esquematizado: “(1) P1 has a claim wrt [with relation to] P2 that P2 not hit P1. (2) P2 has a duty wrt P1 that P2 not hit P1”. RAINBOLT, George W. Rights as normative constrains on others. Philosophy and phenomenological research, v.53, n.1, Mar., 1993, p.95. HOHFELD, Fundamental..., passim. 72 Alguns termos hohfeldianos são de difícil tradução para o português. Buscando acuidade, utilizou-se o artigo em italiano, textos em língua inglesa e espanhola. As opções foram as seguintes: a) claim/right: direito em sentido estrito, abreviado para direito estrito; b) duty: dever; c) privilege/liberty: privilégio; d) power: competência; e) liability: sujeição; f) disability: incompetência; g) immunity: imunidade. 73 Com isso não se quer dizer, necessariamente, que os sujeitos tenham de ser seres humanos. Podem ser pessoas jurídicas, coletividades ou outras entidades, até mesmo animais não-humanos, como ventilam algumas teses hodiernas dos direitos. Quem exatamente pode ser titular ou quem pode ser o sujeito passivo não se resolve no plano estrutural. Como o foco desta tese é a terminalidade da vida, torna-se despiciendo analisar este assunto. Por isso, quando o termo pessoa ou sujeito ou indivíduo for empregado, poderá ser compreendido em sentido abrangente. THOMSON, Op.cit., p. 42; p.62. 41 o objeto, identificado ao conteúdo – que é sempre um comportamento, comissivo, omissivo, ou mesmo uma alternativa de ação74. 1.2.3.1.1 Direito em sentido estrito e dever Hohfeld conceituou o direito em sentido estrito (claim-right) a partir de seu correlativo, o dever. Segundo o autor, “um dever ou obrigação jurídica é aquilo que se deve ou não se deve fazer. Dever e direito são termos correlativos. Quando se viola o direito, transgride-se um dever”75. Assim, o dever de Y de não entrar na propriedade de X corresponde ao direito em sentido estrito de X a que Y não entre em sua propriedade. Hohfeld não define exatamente o que é um dever, cujo significado é fulcral. J.J. Thomson chama a atenção para o fato e conclui que um dever é um constrangimento comportamental76. Para a autora, a primeira premissa hohfeldiana (H1) é: X possui um direito em sentido estrito em face de Y quanto a p, na qual “p”, substituído por qualquer sentença que você prefira, diz algo equivalente ao resultado de escrever a mesma sentença para “p” em Y possui um dever em face de X, nominalmente, o dever do qual Y se desobriga se e somente se p77. 1.2.3.1.2 Privilégio, não-dever e liberdade jurídica Outra importante categoria do grupo dos direitos subjetivos em sentido lato é o privilégio, oposto ao dever e correlativo ao não-direito. Hohfeld afirma que o privilégio é a “negação do dever legal”. Dizer “é um privilégio teu”, significa “não ser sujeito ao dever de fazer de outro modo”78. Notadamente, o conteúdo do dever mencionado é o oposto ao do privilégio em questão. Para Hohfeld, possuir um privilégio não significa 74 HOHFELD, Fundamental… passim; RAINBOLT, Op.cit., p.94; THOMSON, Op.cit., p.40 e ss.; ALEXY, Teoria de los…, p.202 e ss. 75 HOHFELD, Fundamental… p.38. “A duty or a legal obligation is that which one ought or ought not to do. ‘Duty’ and ‘right’ are correlatives terms. When a right is invaded, a duty is violated”. Hohfeld está citando uma definição forjada em uma decisão judicial. 76 THOMSON, Op.cit., p.64. Jeremy Waldron também menciona a vagueza do conceito de dever em Hohfeld e assume uma posição. WALDRON, Jeremy. Introduction. In: WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford University, 1984, p.8. 77 THOMSON, Op.cit., p.41. “X has a claim against Y that p, where ‘p’ is replaced by any sentence you like, says something equivalent to the result of writing that same sentence in for ‘p’ in Y is under a duty toward X, namely, the duty that Y discharges if and only if p”. Thomson opta por expressar as premissas mediante operadores modais: “(H1) Cx,y p is equivalent to Dy,x p”. 78 HOHFELD, Fundamental..., p.45. “negation of a legal duty”. “This is manifest in the terse and oftrepeated expression, “that is your privilege,” – meaning, of course, “You are under no duty to do otherwise”. Quando motiva a adoção do termo privilégio, Hohfeld torna límpido que não o emprega com o sentido de um favorecimento indevido, ou nos sentidos que a palavra recebia nas relações feudais ou monárquicas. J.J. Thomson também refere a importância de se compreender isso. THOMSON, Op.cit., p.44. 42 possuir um direito em sentido estrito, ou seja, este não decorre daquele. Alguém pode ser titular de um privilégio sem que exista dever alheio correlativo79. Rainbolt oferece um exemplo assaz esclarecedor de privilégio. Suponha-se que X, em um típico sistema jurídico, possui um carro e permite que Y o dirija em uma terça-feira, retirando de Y o dever de não dirigir o carro. A permissão poderá ser de dois tipos. No primeiro, X se obriga em relação a Y a deixá-lo dirigir o carro na terça-feira. Existiria, assim, para Y, um direito em sentido estrito de dirigir o carro de X na terçafeira e o correlativo dever de X. No segundo, X meramente permite, sem se obrigar. Aqui haveria o privilégio de Y de dirigir o carro de X na terça-feira, sem que, com isso, Y possua qualquer direito em sentido estrito e sem que X tenha o dever de deixá-lo dirigir ou de não impedi-lo de dirigir seu carro na terça-feira80. No exemplo, percebe-se que não se faz necessário sequer o dever de nãointerferência para que exista um privilégio. Por este motivo, J.J. Thomson acredita que o conceito de privilégio é débil, realmente muito fraco. A debilidade do conceito de privilégio em Hohfeld levou J.J. Thomson a formular as seguintes premissas hohfeldianas: (H2) Px,yp é equivalente a Não-(Dx,y Não-p). (H3) Nenhum privilégio implica qualquer direito em sentido estrito. (H4) Nenhum direito em sentido estrito implica qualquer privilégio81. O privilégio corresponde, para Hohfeld, à liberdade jurídica: “o sinônimo mais próximo de ‘privilégio’ parece ser ‘liberdade’ jurídica”. O ponto é deveras importante, pois demonstra que Hohfeld não considera a liberdade jurídica geral como direito em sentido estrito e, portanto, a ela não corresponde o dever de não-interferência (não haveria, pois, o direito – claim-right – geral de liberdade)82. A liberdade jurídica é, em Hohfeld, um conceito débil, assim como o de privilégio. J.J. Thomson questiona essa premissa e posiciona-se contrariamente, pois, a seu entender, a liberdade jurídica inclui, além de privilégios, pelo menos o direito em 79 HOHFELD, Fundamental…, p.44-46. RAINBOLT, Op.cit., p.95. 81 THOMSON, Op.cit., p.46; 48 e ss. “(H2) Px,yp is equivalent to Not (Dx,y Not-p)”; “(H3) No privilege entails any claim”; “(H4) No claim entails any privilege”. 82 HOHFELD, Fundamental…, p.47; 42-43. “The closest synonym of legal ‘privilege’ seems to be legal ‘liberty’ or legal ‘freedom’”. J.J. Thomson discordará desse raciocínio hohfeldiano e reconstruirá, ao passo que Rainbolt apresentará razões para a sua aceitação. Esse assunto será abordado adiante. RAINBOLT, Op. cit., p.101-102. THOMSON, Op. cit., p.44 e ss. 80 43 sentido estrito de não-interferência. Ela oferece maior força ao conceito de liberdade jurídica do que Hohfeld. Adiante, a importância deste tópico virá à tona. 1.2.3.1.3 Competência e sujeição Para explicar o conceito de competência, é preciso primeiro saber que uma modificação em uma determinada relação jurídica pode advir de dois fatos ou grupos de fatos: (a) aqueles supervenientes que não estão sujeitos ao controle da vontade de um ou mais seres humanos; (b) aqueles supervenientes que estão sujeitos ao controle da vontade de um ou mais seres humanos. As competências situam-se na hipótese (b), da qual “se pode dizer que a pessoa (ou as pessoas) cuja vontade é relevante para o controle dos fatos – possuem a competência (jurídica) de provocar aquela modificação específica nas relações jurídicas que o problema comporta”83. O correlativo de competência é a sujeição; o oposto é a imunidade. Portanto, a competência é a habilidade jurídica que uma pessoa possui de modificar relações jurídicas fundamentais próprias ou alheias. Hohfeld parece não confundir o poder fático de agir com uma competência. Todavia, alguns autores elaboram esta crítica ao seu esquema, dizendo que escapou a Hohfeld a diferença entre um ato voluntário qualquer e a manifestação volitiva requerida para o exercício de uma competência84. Embora a palavra sujeição possa sugerir uma desvantagem ou submissão, Walter Wheeler Cook devidamente adverte que não é este o sentido que o conceito assume em Hohfeld. A sujeição, nas palavras de Cook, pode ser algo desejável no sistema hohfeldiano. Para compreender esse elemento com clareza, basta trazer à tona o exemplo de Hohfeld: X possui uma fazenda e decide vendê-la por um preço inferior ao do valor venal. Para isso, envia uma proposta escrita a Y. X usou sua competência para fazer a proposta e deixou Y em uma posição de competência (ficando X em sujeição) quanto à aceitação da proposta85. 83 HOHFELD, Fundamental… p.50-51. “A change in a given legal relationship may result: (1) from some superadded fact or group of facts not under volitional control of a human being (or human beings); or (2) from some superadded fact or group of facts which are under volitional control of one or more human beings. As regards the second class of cases, the person (or persons) whose volitional control is paramount may be said to have the (legal) power to effect the particular change of legal relations that is involved in the problem”. 84 Um desses autores é Alexy, como será demonstrado adiante. ALEXY, Teoria de los..., p.228. 85 COOK, Walter Wheeler. Introduction. In: HOHFELD, Wesley Newcomb. Fundamental legal conceptions as applied to judicial reasoning. New Jersey: The Law Book Exchange, 2000, p.8. Também chamam a atenção para este ponto: BEYLEVELD, Deryck; BROWNSWORD, Roger. Consent in the law. Oxford: Hart Publishing, 2007, p.66 e ss. 44 1.2.3.1.4 Imunidade e incompetência Haverá uma imunidade quando o sujeito não puder modificar uma relação jurídica alheia. A imunidade é o oposto de sujeição, e o seu correlativo é a incompetência. Hohfeld assevera que contrastar uma competência com uma imunidade é o mesmo que contrastar um direito em sentido estrito com um privilégio, sendo a imunidade a “liberdade de uma pessoa do controle ou da competência jurídica de uma outra, no que concerne a alguma relação jurídica”86. 1.2.3.1.5 Um feixe de relações hohfeldianas Em síntese, são essas as relações jurídicas fundamentais hohfeldianas. Diversos autores mencionam que um tópico que escapou a Hohfeld foi o de que um direito em sentido amplo pode possuir um conjunto dessas relações e não apenas uma. Por isso, tornou-se usual mencionar os direitos em sentido amplo como um “pacote de relações hohfeldianas”, ou, como faz J.J. Thomson, denominar direitos que englobam mais de uma relação hohfeldiana de “cluster-rights”87. Como exemplo, pode-se mencionar o direito à vida (em sentido amplo), composto, pelo menos, do direito em sentido estrito correlativo ao dever de terceiros de absterem-se de matar, bem como do privilégio de proteger-se contra ameaças à vida perpetradas por terceiros88. 1.2.3.2 A releitura e a proposta de Robert Alexy As categorias hohfeldianas serviram de protoespécie para o exame analítico dos direitos fundamentais empreendido por Robert Alexy. Ele atesta a importância dos estudos de Hohfeld, mas indica a sua incompletude. Por isso, o jurista germânico fez uma releitura (revisando, modificando e ampliando) dos conceitos hohfeldianos. A proposta alexyana é apresentada com apoio em operadores deônticos e modais e está 86 HOHFELD, Fundamental..., p.60. “an immunity one´s freedom from the legal power or ‘control’ of another as regards to some legal relations”. 87 A respeito dos package-rights, Rainbolt: “Each [right] is a package of hohfeldian relations which contains a claim that protects the relation which the right is named” e também McConnell: “The idea is that rights cannot be analyzed simply in terms of claims, or simply in terms of liberties [privilégios] or simply in terms of immunities or powers. Rather, typically rights involve several of those notions in various combinations. Some refer to these as ‘rights packages’. So, for example, the right of free speech may involve immunity from legislative regulations plus certain liberties [privilégios]”. RAINBOLT, Op.cit., p.103; McCONNELL, Op. cit., p.3; THOMSON, Op.cit., p.55, nota nº11. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword denominam o pacote de relações de “complex network of legal relationships”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.63. 88 THOMSON, Op.cit., p.285. Ao discutir isso, Thomson menciona que alguns daqueles que sustentam a possibilidade da eutanásia incluem no direito à vida uma competência. 45 destinada a deslindar a estrutura dos direitos fundamentais, de sorte que a figura do Estado aparecerá com mais intensidade do que nas relações hohfeldianas, cujo enfoque primário são os direitos e não os direitos fundamentais89. 1.2.3.2.1 Direito subjetivo em sentido amplo Para Alexy, o direito subjetivo em sentido lato se manifesta como um feixe de relações e de posições jurídicas. O autor opta por empregar a expressão direito subjetivo em um sentido amplo e distinguir entre as posições que a categoria pode encampar90. Para que se possa entender posição jurídica, é preciso antes compreender enunciado normativo e norma de direito fundamental. Adaptando os exemplos de Alexy à CF/88, tem-se que um enunciado normativo é (a) “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”. A norma será (b): X possui um direito em face do Estado (E) de manifestar livremente a sua opinião. Em virtude de (b), X se encontra em uma posição jurídica que consiste em X possuir diante do Estado o direito a manifestar livremente seu pensamento91. Como dito, na teoria alexyana há o emprego dos operadores deônticos para conceituar e explicitar as relações e as posições jurídicas de direito fundamental. O caráter relacional é fundamental92. Os operadores são o mandato (O), a permissão (P) e a proibição (F), situados no plano do dever-ser, ou seja, não são descritivos. A compreensão dinâmica desses três enunciados é determinante. Assim, por exemplo, se X possuir um direito em sentido estrito em face de Y a que este efetue um pagamento, expressar-se-á a relação da seguinte forma: DxyG. Ao direito de X corresponderá um dever de Y, de modo que a ele estará ordenado pagar e não permitido (ou proibido) não pagar: OyxG ou ¬Pyx¬G (ou Fyx¬G)93. Uma vez conferido o caráter relacional, o dever será logicamente equivalente ao mandato (O). 89 ALEXY, Teoria de los..., p.202 e ss., prioritariamente a nota nº96. J.J Thomson também apresenta as categorias hohfeldianas mediante operadores modais, por motivação diversa da de Alexy. THOMSON, Op.cit., p.41, nota nº5. Acerca da possibilidade de os conceitos hohfeldianos serem profícuos no direito público: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.84. Os autores informam que Hart não considerou de todo adequado e útil o uso das categorias hohfeldianas no âmbito do direito público. 90 Ao apresentar suas razões para esta opção, Alexy assim conclui: “Es aconsejable, por ello, utilizar la expresión ‘derecho (subjectivo)’ siguiendo el uso existente, como un concepto general para posiciones muy diferentes, y luego, dentro del marco de este concepto, trazar distinciones y llevar a cabo caracterizaciones terminológicas”. ALEXY, Teoria de los..., p.185. 91 ALEXY, Teoria de los..., p.177-178. BRASIL, Constituição ..., Op.cit., art. 5º, IV. 92 ALEXY, Teoria de los..., p.201. 93 É deveras relevante compreender a dinâmica das modalidades deônticas. Alexy apresenta um quadro das modalidades que é esclarecedor, conferir: ALEXY, Teoria de los..., p.199-202. Para uma visão mais 46 Segundo Alexy, as posições que podem ser designadas como direitos subjetivos em sentido amplo dividem-se em três grupos: (a) direitos a algo; (b) liberdades; (c) competências94. 1.2.3.2.1.1 Os direitos a algo Os direitos a algo são enunciados por relações triádicas entre o titular, o destinatário e um objeto. O titular do direito (aqui representado sempre pela letra X), o destinatário do direito (sujeito passivo ou titular do dever) e o objeto ou conteúdo da relação (G). O objeto será necessariamente uma ação, comissiva ou omissiva. O destinatário poderá ser o Estado (E) ou, na medida em que sujeitos privados estiverem vinculados aos direitos fundamentais, um particular (Y)95. Alexy esquematiza do seguinte modo os direitos a algo em face do Estado, levando em consideração seu objeto, não a estrutura (DxeG) 96: (a.1) Direitos a ações negativas: (a.1.1) Direitos ao não-impedimento de ações (Dxe(¬estorva e (Ax)). A título ilustrativo, toma-se o exemplo do direito à manifestação do pensamento. Se X possui em face de E o direito de manifestar livremente o seu pensamento, E terá o dever correlato de não estorvar a ação de X de manifestar o seu pensamento. (a.1.2) Direitos à não-afetação de propriedades e situações (Dxe(¬ afeta e (Sx)). Alexy diferencia ações, propriedades e situações jurídicas. Propriedades jurídicas correspondem a determinados estados que podem ser afetados, como o de viver e o de estar sadio. Como exemplo de situação jurídica, Alexy menciona a inviolabilidade do domicílio. Destarte, abrangente acerca da lógica deôntica e da lógica modal, ver: DEONTIC LOGIC. In: STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/logic-deontic/. 94 ALEXY, Teoria de los..., p.186. Segundo o autor, essa distinção tricotômica foi formulada com base em Bentham e em Bierling. Sobre o tratamento analítico dos direitos fundamentais formulado por Bierling, Roscoe Pound informa que o autor considera os direitos como interesses reconhecidos e delimitados, para os quais encontra três significados: a) anspruch (direito), que corresponde ao direito em sentido estrito hohfeldiano (claim/right); b) befugniss (autorização, faculdade ou potestade): b.1) durfen (permissão), que possui relação com a noção de liberdade/privilégio hohfeldianos, traduzido por Pound como “natural power unrestrained – liberty”; b.2) können (poder, competência ou capacidade), que equivaleria ao grupo das competências alexyanas. POUND, Roscoe. Legal rights. International Journal of Ethics, v.26, n.1, p.110-11, Oct. 1915. 95 Na literatura jurídica nacional, é comum referir o objeto do direito como o bem por ele protegido. Nesse sentido, o objeto do direito à vida seria a vida, o da propriedade, a propriedade e assim sucessivamente. Percebe-se que a postura adotada por Alexy é diferente. O objeto do direito será uma ação, comissiva ou omissiva, ou uma alternativa de ação, ao passo que o bem tutelado pelo direito será um elemento material ou imaterial protegido pela relação jurídica de direito fundamental. A vantagem desta proposta reside em evitar a confusão de se pensar que um direito pode ser uma relação entre um sujeito e um elemento material ou imaterial, por exemplo, a relação do titular com o bem vida, sem a basilar presença de terceiros. 96 ALEXY, Teoria de los..., p.196. 47 se X possui o direito à vida, E tem o dever correlato de não afetar a propriedade de X de estar vivo, ou seja, dever de não matá-lo. (a.1.3) Direitos à não-eliminação de posições jurídicas (Dxe(¬ elimina e (PJx)). Uma vez cientes do que é uma posição jurídica de direito fundamental, é necessário esclarecer que existe também o direito a que tal posição não seja eliminada. Se X é titular do direito à vida, a ele correspondendo o dever de E de não matá-lo, também corresponde a E o dever de não eliminar tal posição jurídica de X. Paralelamente aos direitos a ações negativas, há os direitos a ações positivas, esquematizados do seguinte modo: (a.2) Direitos a ações positivas: (a.2.1) Direitos a ações positivas fáticas (Dxe (Afe)). Para ilustrar, novamente o direito à vida. Se X possui em face de E o direito à vida, em alguns casos X possuirá o direito ao qual corresponde o dever de E de implementar ações que ofereçam a X as condições fáticas necessárias à realização desse seu direito. (a.2.2) Direitos a ações positivas normativas (Dxe (Ane)). Se X possui em face de E o direito à vida, em alguns casos possuirá o direito ao qual corresponde o dever de E de produzir enunciados e normas jurídicas destinadas à salvaguarda do direito à vida de X. Os enunciados normativos de direito penal que criminalizam o homicídio são formas de E desincumbir-se do dever de ação positiva normativa que tem97. Alexy considera que os direitos a algo possuem correlação com as categorias hohfeldianas: Segundo Hohfeld, existem oito “strictly fundamental legal relations… sui generis”. Ele as designa com as expressões “right”, “duty”, “noright”, “privilege”, “power”, “liability”, “disability” e “immunity”. As quatro primeiras referem-se ao âmbito dos direitos a algo; as quatro últimas, ao âmbito das competências98. O trecho torna límpido que Alexy associa o conceito hohfeldiano de privilégio aos direitos a algo, que podem ser mencionados como direitos em sentido estrito, aos quais corresponde um dever. Sabe-se que Hohfeld não imprimiu essa força ao 97 Alexy emprega a noção prima facie para uma série de direitos em sentido amplo, compreendendo que este qualificativo está presente na estrutura dos enunciados normativos de direito fundamental e permitindo entrever que também considera que ele está embutido estruturalmente em uma posição jurídica de direito fundamental. Por ora, basta apenas entender a postura do autor. 98 Reafirma a questão o esquema duplo que Alexy constrói, no qual o privilégio hohfeldiano situa-se dentro do marco dos direitos a algo. ALEXY, Teoria de los..., p.216; 208-209. “Según Hohfeld, existen ocho ‘strictly fundamental legal relations… sui generis’. Las designa con las expresiones ‘right’, ‘duty’, ‘no-right’, ‘privilege’, ‘power’, ‘liability’, ‘disability’ y ‘immunity’. Las cuatro primeras se refieren al ámbito de los derechos a algo; las cuatro últimas, al ámbito de las competencias”. 48 privilégio, e o próprio Alexy menciona isso em mais de uma passagem da sua obra, ao traduzir o privilégio como uma combinação de permissões99. Pode-se, então, pensar em duas alternativas: (a) os direitos a algo não guardam equivalência aos direitos em sentido estrito hohfeldianos, a eles não correspondendo deveres; (b) Alexy impropriamente deriva pelo menos o dever de não-intervenção (não-estorvamento de ações) do privilégio hohfeldiano. A primeira alternativa não soa nada coerente, pois é difícil imaginar, ainda que seja inserido o qualificador prima facie na etapa estrutural, que aos direitos a algo não corresponda um dever. A categoria direitos a algo perderia seu sentido por completo. A segunda alternativa poderia demonstrar que Alexy relê o conceito hohfeldiano de privilégio, compreendendo que a ele corresponde um dever. Todavia, o trabalho teórico que Alexy realiza sobre a liberdade jurídica parece desdizer essa possibilidade. Cabe, portanto, a seguir, discorrer sucintamente sobre a compreensão alexyana da liberdade jurídica e discutir a postura de Alexy em face dos conceitos hohfeldianos de privilégio e de direito em sentido estrito. 1.2.3.2.1.2 As liberdades jurídicas Quando houver uma combinação de permissões, existindo alternativas de ação, o sujeito estará em uma posição livre (Lp = PxG ^ Px¬G). O conceito de permissão é constitutivo do de liberdade jurídica, a qual, segundo Alexy, representa a existência jurídica de alternativas de ação. A liberdade jurídica é uma relação triádica na qual o terceiro membro – o objeto – é uma alternativa de ação, e os obstáculos são ações impeditivas de terceiros, sobretudo o Estado100. Haverá uma liberdade fática quando o indivíduo, além de juridicamente livre, contar com possibilidades reais (fáticas) de realizar o que é permitido. Desta sorte, a relação entre o objeto da liberdade jurídica e o obstáculo é analítica, enquanto a que existe entre o objeto da liberdade fática e o obstáculo é empírica. Com o conceito de liberdade jurídica, Alexy afirma aderir a uma concepção neutra, pois a tabela de liberdades que pode ser formada a partir da relação triádica organiza a ideia das liberdades sem antecipar valorações101. 99 ALEXY, Teoria de los..., p.210. Aqui o autor afirma que o conceito de privilégio pode ser referido ao de permissão. 100 Esta é a que Alexy denomina liberdade negativa em sentido estrito, que corresponde à concepção liberal da liberdade. O sentido que ele confere à palavra negativo é simplesmente a existência de alternativas de ação. ALEXY, Teoria de los..., p.216. 101 ALEXY, Teoria de los..., p.218. Uma combinação de permissões não esgota a liberdade jurídica. 49 Alexy assevera que as liberdades jurídicas podem ser não-protegidas ou protegidas. As primeiras refletem a conjugação de uma permissão jurídica de fazer algo com a permissão jurídica de não o fazer. Pode-se expressá-las de modo relacional ou não. À liberdade jurídica não-protegida não corresponde, necessariamente “o direito a não ser obstaculizado no gozo dessas liberdades”102, nem é imprescindível que ela seja assegurada mediante enunciados normativos ou normas jurídicas. As liberdades nãoprotegidas podem existir por duas razões: (a) pela inexistência de um mandato ou uma proibição no ordenamento jurídico; (b) pela existência de uma norma jurídica permissiva. Se a norma jurídica permissiva for de hierarquia constitucional, servirá para impedir enunciados e normas infraconstitucionais que a contradigam. Quando à liberdade jurídica corresponder um direito a algo, será uma liberdade jurídica protegida. Em sua estrutura analítica, as liberdades jurídicas protegidas não diferem dos direitos a algo. Um direito perfeito de liberdade juridicamente protegida é, para Alexy, uma combinação de posições, que inclui: o direito a algo, ao nãoestorvamento de ações por parte do Estado, bem como a competência para fazê-lo valer judicialmente103. É interessante perceber que as liberdades jurídicas protegidas não diferem, em sua estrutura, dos direitos a algo. Deste modo, a elas correspondem deveres. Isso leva a questionar o porquê da divisão tricotômica formulada por Alexy. Se ele está interessado em compreender estruturalmente as diferentes posições jurídicas que se enfeixam em direitos subjetivos em sentido amplo, qual a razão de conceber um grupo distinto dos direitos a algo – as liberdades – se grande parte delas serão juridicamente protegidas e, portanto, não estruturalmente diferentes dos direitos a algo? Mesmo que sua intenção fosse a de separar as liberdades juridicamente protegidas em razão do seu objeto diferenciado – uma alternativa de ação –, posicioná-las em um grupo distinto dos direitos a algo não faria sentido, pois a tipologia dos direitos a algo foi formulada tendo por critério o objeto e não dessemelhanças estruturais. Outra questão é a da liberdade jurídica não-protegida. Em sendo uma combinação de permissões sem corresponder a um direito a algo correlativo a um dever, elas seriam muito semelhantes ao conceito hohfeldiano de privilégio. Porém, Alexy informa que a liberdade jurídica não-protegida teria o condão de impedir o legislador 102 ALEXY, Teoria de los..., p.221. “las libertades no protegidas no implican el derecho a no ser obstaculizado en el goce de estas libertades”. 103 Mas seu objeto será sempre uma alternativa de ação. ALEXY, Teoria de los..., p.219-226. 50 ordinário de editar certos enunciados normativos ou normas, caso a origem da liberdade não-protegida seja um enunciado normativo constitucional permissivo104. Haveria aqui, em termos hohfeldianos, uma imunidade e uma incompetência, não um privilégio. Detrás dessa concepção alexyana das liberdades não-protegidas parecem residir substratos morais e de teoria política importantes, ainda que Alexy afirme apresentar um conceito neutro de liberdade jurídica. Aceitar a liberdade não-protegida como uma combinação de permissões, ou como ausência de mandato ou de proibição, pode significar a concepção da pré-existência da liberdade em relação ao ordenamento jurídico. A noção remete aos contratualistas clássicos, como Hobbes, que salientavam existir liberdade no Estado de Natureza, muito embora ela não fosse um direito ao qual correspondesse qualquer dever. A importância moral e política deste fator é muito intensa, uma vez que traz à tona uma ideia semelhante à dos direitos naturais que a fortiori – com a normatização jurídica – tornam-se direitos jurídicos. Se assim for, a liberdade assume uma conotação demasiadamente relevante na teoria alexyana dos direitos, demonstrando o seu cunho liberal105. É sintomático também o fato de Alexy assumir que, aos particulares, o que não está proibido está permitido. Com isso, conclui-se que uma liberdade jurídica particular, segundo a análise de Alexy, pode conter um feixe de posições jurídicas. Pode assumir as feições de um direito a algo, cujo objeto é uma alternativa de ação (liberdade jurídica protegida); ou as de um privilégio hohfeldiano (liberdade jurídica não-protegida) e, até mesmo, de uma imunidade hohfeldiana (liberdade jurídica protegida). Compreendidas as liberdades jurídicas alexyanas, passa-se ao estudo das competências. 1.2.3.2.1.3 As competências As competências também são posições jurídicas que podem ser designadas como direitos, em sentido amplo, e existem tanto no direito privado quanto no direito público. 104 ALEXY, Teoria de los..., p.223-224. Alexy nega tal possibilidade, informando que a liberdade não-protegida não é a negação do dever-ser. Não obstante, assume que quando uma pessoa é objetiva e pessoalmente livre (em relação a todas as ações e a todas as pessoas), produz-se uma situação similar à do estado de natureza hobbesiano. ALEXY, Teoria de los..., p.220-222. Discute a questão quanto ao privilégio hohfeldiano: THOMSON, Op.cit., p.49-52. Assume posição contrária à de Thomson: WALDRON, Introduction, p.6. Sobre o contratualismo clássico e suas vertentes: HOBBES, Thomas of Malmesbury. Leviathan or the matter, forme & power of a common-wealth ecclesiastical or civil. London, 1651; LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998; KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: EDIPRO, 2003; BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. São Paulo: Brasiliense, 1987. 105 51 Quando se possui competência, é possível modificar, criar ou extinguir situações ou posições jurídicas mediante ações jurídicas: A modificação de uma situação jurídica através de uma ação pode ser descrita de duas maneiras; como imposição de normas individuais ou gerais, que não seriam válidas sem esta ação, e também como modificação das posições jurídicas dos sujeitos jurídicos que caem sob estas normas106. A competência não se confunde nem com a permissão, nem com o poder fático de agir. Nem toda a ação que modifica situações ou posições jurídicas é um exercício de competência107. Para que seja competência, faz-se necessária a existência de enunciado normativo (jurídico) que a constitua. A ação que caracteriza a competência é institucional108. Em assim sendo, a competência é uma posição conferida por um enunciado normativo de competência. Um exemplo de competência é o casamento. Para que se possa efetuá-lo, são indispensáveis enunciados normativos que constituam a competência dos particulares para alterar sua situação jurídica, bem como suas posições jurídicas. Ao expor a estrutura das competências, Alexy monta um esquema e informa seu paralelismo com as relações hohfeldianas. Quando X possuir uma competência em relação ao sujeito Y, X estará na posição de competência (C) e Y na de sujeição (S): Cxy(PJY) ↔ Syx(PJY). De modo oposto, quando X não possuir uma competência, Y estará na posição de não-sujeição (a imunidade hohfeldiana): ⌐Cxy(PJY) ↔ ⌐Syx(PJY)109. Para Alexy, há casos nos quais as competências dos particulares estão jusfundamentalmente protegidas, tanto objetiva quanto subjetivamente. Portanto, em 106 ALEXY, Teoria de los..., p.228. “La modificación de una situación jurídica a través de una acción puede ser descrita de dos maneras; como imposición de normas individuales o generales, que no serián válidas sin esta acción, y también como modificación de las posiciones jurídicas de los sujetos jurídicos que caem bajo estas normas” 107 A competência não se confunde com a permissão porque nem tudo que está permitido enseja modificação em situações ou posições jurídicas, característico elementar das competências. Ademais, o oposto da permissão é a proibição, conquanto o da competência seja a incompetência. A competência não se confunde com o poder fático de agir. Muitas ações podem alterar posições ou situações jurídicas, sem que sejam competências. Um ilícito civil é um exemplo. Quando se comete um ilícito civil, podem ser alteradas posições e situações jurídicas, sem que se esteja no exercício de uma competência, a qual requer reconhecimento jurídico-normativo. ALEXY, Teoria de los..., p.229-230. 108 Nesse sentido, Alexy distingue as normas de comportamento (que somente qualificam as ações que sem elas poderiam existir) e as normas de competência (que criam a possibilidade de atos jurídicos, e, com isso, a habilidade de modificar posições jurídicas mediante atos jurídicos). O descumprimento das primeiras enseja um ilícito, já o das segundas enseja anulabilidade, nulidade ou deficiência do ato. ALEXY, Teoria de los..., p.232-233. 109 ALEXY, Teoria de los..., p.236. Com especial ênfase para a nota nº178, na qual Alexy compara seus conceitos aos de Hohfeld. 52 determinadas hipóteses poderá haver o direito subjetivo em sentido estrito do indivíduo diante do Estado à constituição de uma competência110. Se isso ocorrer, a estrutura analítica será a de um direito a algo, provavelmente um direito a uma ação positiva normativa ou à não-eliminação de uma posição jurídica. Cabe aqui o exemplo do casamento. Se deixarem de existir normas constitutivas da competência para casar, poderão os particulares exigi-las do Estado, como um direito à não-eliminação de uma posição jurídica. A competência, porém, não vira um direito a algo. Quando for jusfundamentalmente protegida, haverá uma outra posição jurídica, com estrutura de direito a algo, que não se confunde com a estrutura da posição de competência. 1.2.3.2.1.4 Competência e liberdade Algumas palavras devem ser ditas sobre a relação que Alexy afirma haver entre a liberdade jurídica e as competências. Muitas vezes, para criar, modificar ou extinguir posições ou situações jurídicas, os indivíduos carecerão de competências. Sem elas, os atos serão incompletos, serão ou nulos ou anuláveis ou mesmo inexistentes. Alexy enxerga sob dois prismas a conexão entre a liberdade jurídica e as competências. Por um prisma, a competência, em diversas circunstâncias, é o elemento constitutivo da liberdade jurídica. Se, de um lado, a liberdade jurídica é outorgada pela ordem jurídica mediante um comportamento passivo quanto à alternativa de ação, de outro lado, a competência amplia o campo de ação por um comportamento ativo da ordem jurídica diante da alternativa de ação: Com isso formula-se o ponto central da relação entre liberdade e competência: mediante a outorga de competências, amplia-se o campo de ação do indivíduo. Se se pressupõe que o exercício da competência não será nem ordenado nem proibido, uma ampliação das competências do indivíduo significa um aumento da sua liberdade jurídica. Por isso, a não-outorga ou a eliminação de uma competência é um obstáculo à liberdade e, por certo, de um tipo especialmente eficaz. Por razões conceituais, faz desaparecer o objeto da liberdade (realizar ou não o ato jurídico)111. 110 ALEXY, Teoria de los..., p.237. “Con esto se formula el punto central para la relación entre libertad y competencia: mediante el otorgamiento de competencias, se amplía el campo de acción del individuo. Se si presupone que el ejercicio de la competencia no será ni ordenado ni prohibido, una ampliación de las competencias del individuo significa un aumento de su libertad jurídica. Por ello, el no otorgamiento o la eliminación de una competencia es un obstáculo a la libertad y, por cierto, de un tipo especialmente eficaz. Por razones conceptuales, hace desaparecer el objeto de la liberdad (realizar o no el acto jurídico). La libertad jurídica para realizar un acto presupone necesariamente la competencia al respecto”. Ao tratar das restrições, Alexy também demonstra como a negação de uma competência pode ser uma restrição, em face do caráter de princípio das normas: “[...] cada vez que la eliminación de uma competencia obstaculiza la realización de um princípio jusfundamental, no estamos frente a uma mera configuración, 111 53 Por outro prisma, quando a ordem jurídica cria ativamente alternativas de ação, cria também, de modo mediato ou imediato, não-liberdades, pois “o uso das competências conduz a deveres, assim como a não-direitos e não-competências [...]”112. O não-reconhecimento por parte do Estado de uma competência gera a nãocompetência, que estará associada à não-permissão de fazer ou não fazer algo. Desta feita, quando o Estado não confere uma competência para criação, modificação e extinção de posições ou situações jurídicas subjetivas (para os casos nos quais ela se faz necessária, logicamente), haverá uma negação conceitual do objeto da liberdade jurídica, que é sempre uma alternativa de ação. Em resumo, para Alexy, o direito fundamental como direito subjetivo em sentido amplo traduz um feixe de posições (e de relações) jusfundamentais. Essas posições dividem-se em três grandes grupos, os direitos a algo, as liberdades e as competências. O direito fundamental como um todo possui um conjunto de posições subjetivas. Notase que um dos temas trazidos à tona pelos comentaristas e críticos de Hohfeld não passou em branco para Alexy. O jurista germânico, em sua proposta estrutural dos direitos subjetivos em sentido amplo, concebeu-os como feixes de relações e de posições, postura que não se distancia daquelas que sustentam que um direito em sentido amplo contém um pacote de relações hohfeldianas, afirmando-se, assim, a existência de cluster-rights. Entretanto, há uma parcela do conceito de “direito fundamental como um todo” presente na teoria alexyana que é estranha às relações hohfeldianas e àquelas comumente reconhecidas pelos estudiosos e críticos do trabalho de Hohfeld. Pode-se dizer, até mesmo, com apoio no escólio de Daniel Sarmento, que esta parcela não é laborada no direito estadunidense113. Trata-se da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, que compõe, lado a lado à dimensão subjetiva, o direito fundamental como um todo. 1.2.3.2.2 A dimensão objetiva sino frente a uma restrición que, em tanto tal, tiene que ser justificada”. Isso conduz, na teoria de Alexy, à necessidade de o Estado arcar com o ônus argumentativo, demonstrando a existência de uma restrição e não de uma violação. ALEXY, Teoria de los…, p.238 e p.326. 112 ALEXY, Teoria de los…, p.239. “El uso de competencias conduce a deberes como así también a noderechos y no-competencias […]”. 113 SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.267. 54 A dimensão objetiva dos direitos fundamentais é um produto das construções jurisprudenciais e teóricas da Alemanha do pós-guerra. Sua gênese coincide com a passagem do Estado Liberal de Direito para o Estado Social de Direito, momento em que se admitem novas tarefas ao Estado, eminentemente prestacionais, para que ele atue perante a questão social, notadamente nas áreas de saúde, educação, trabalho e regulação econômica. Na origem dos esforços teórico-práticos sobre a dimensão objetiva, há um elo com a compreensão da Constituição como uma ordem cognoscível e objetiva de valores, ideia que marcaria a superação de determinadas leituras estreitas e menos sofisticadas do positivismo jurídico. Contudo, para que se admita a existência da dimensão objetiva dos direitos fundamentais não se faz necessário aderir à concepção da Constituição como uma ordem objetiva de valores. A relação entre elas é contingente e não-necessária, como bem apresentou Daniel Sarmento114. Hodiernamente, muitos autores europeus e brasileiros concebem a dimensão objetiva dos direitos fundamentais, tendo havido, também, a adesão de muitos tribunais à ideia115. Conquanto ainda seja uma noção multifacetada, recebendo conceituações discrepantes, é possível apreender, pelo menos, um mínimo denominador comum acerca da dimensão objetiva. Em primeiro lugar, frisa-se que não se trata da mera distinção entre direito subjetivo e direito objetivo, este último pensado como enunciado normativo positivado. A dimensão objetiva traduz uma “mais valia”, traz em si elementos que ultrapassam os efeitos da subjetiva. É um arcabouço de mecanismos, instituições, procedimentos, organizações e sistemas destinados a garantir e a efetivar os direitos fundamentais, de forma direta ou indireta. Reis Novais referiu que, embora pesem as imprecisões sobre o conceito, há certo acordo na doutrina e jurisprudência “na sua tradução em deveres de conformação institucional e de organização e procedimento, bem como em deveres de prestações e de protecção que impendem objectivamente sobre o Estado”. Ainda conforme o jurista português: Genericamente, poderá dizer-se que o dever de proteção se traduz numa obrigação abrangente de o Estado conformar a sua ordem jurídica de tal forma que nela e através dela os direitos fundamentais 114 SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.278. “Assim, e reconhecendo a procedência, pelo menos parcial, de algumas críticas endereçadas à teoria da ordem de valores, cumpre destacar que não se afigura necessária a adesão a ela para a aceitação da existência de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais [...]”. 115 Sobre o tema, consultar: ALEXY, Teoria de los..., p.500 e ss.; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.113-170; NOVAIS, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra, 2003, p.57-125; CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional..., p.1025 e ss; SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.251-314. 55 sejam garantidos e as liberdades nele sustentados possam encontrar efectivação. Nesse sentido, como assinala Böckenförde, o dever de proteção pode constituir o conceito central da dimensão jurídicoobjetiva dos direitos fundamentais116. A relação entre as dimensões não é de dependência, mas de “integração essencial”, na medida em que pode existir uma dimensão objetiva autônoma quanto a alguns diretos, a qual não corresponda diretamente uma dimensão subjetiva117. Quando a dimensão objetiva dos direitos fundamentais é aceita, há duas consequências jurídicas importantes. A primeira é a eficácia irradiante, que quer dizer, sinteticamente, a (re)leitura do ordenamento jurídico sob a lente dos direitos fundamentais, cujos significados “penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário”118. A eficácia irradiante tem como uma de suas manifestações a chamada filtragem constitucional119. A segunda consequência é o reconhecimento dos deveres estatais de proteção, de promoção e de conformação institucional, isto é, de mandamentos destinados ao Estado para que institua, por meio da criação e execução de políticas públicas e da produção normativa, mecanismos e aparatos de proteção e promoção dos direitos fundamentais, bem como adote medidas de adequação institucional para este fim. Embora a dimensão objetiva possua reflexos sobre a jurisdição constitucional, eles não são importantes do ponto de vista analítico-estrutural. O alargamento ou o estreitamento dos lindes da jurisdição constitucional refere-se a discussões nos planos normativo e empírico acerca das relações entabuladas entre as posições jurídicas de direito fundamental apresentadas no âmbito analítico-estrutural, como mencionado páginas atrás. Deste modo, reconhecer a dimensão objetiva dos direitos fundamentais não significa, necessariamente, a existência de direitos subjetivos em sentido estrito que a 116 NOVAIS, As restrições..., p.67; p.89. O termo dever não se encontra destacado no original. NOVAIS, As restrições..., p.67. 118 SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.279. O termo eficácia é empregado aqui no sentido de produção jurídica de efeitos, não de produção de efeitos sociais. 119 Sobre a expressão filtragem constitucional e o sentido de sua aplicação, ver: SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Safe, 1999; SCHIER, Paulo Ricardo. Novos desafios da filtragem constitucional no momento do neoconstitucionalismo. Revista Eletrônica de Direito do Estado. Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n.4, out/nov/dez/2005. Disponível em: www.direitodoestado.com.br; BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro (Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo). Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v.I, n.6, set. 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br; SARMENTO, Dimensão objetiva..., p.281. 117 56 acompanhem, tampouco a admissão de que eles sejam justiciáveis ou que o Poder Judiciário possua competência institucional para concretizá-los em todo e qualquer caso. De todo o explanado, conclui-se que, para Alexy, o direito fundamental como um todo significa a reunião da dimensão subjetiva – o enfeixamento de posições e de relações jurídicas subjetivas de direitos fundamentais – e da dimensão objetiva. É um conceito deveras complexo, mas de modo algum incognoscível. Quando são cotejadas as relações jurídicas fundamentais hohfeldianas com as noções estruturais de um direito fundamental alexyanas, percebem-se muitos pontos em comum, mas também diferenças notáveis. No tópico que se segue, serão assumidas posições a respeito do que foi apresentado e serão definidos os termos operacionais adotados para a construção desta tese. 1.2.4 Síntese conclusiva e tomada de posição Os conceitos de Hohfeld são claros e úteis – e por isso valiosos – especialmente se for aceita a ideia – não exposta por ele, mas por seus comentadores – de que um direito em sentido amplo pode conter um pacote de relações hohfeldianas. Da mesma forma, certos pontos abordados por Alexy e por J.J. Thomson são muito importantes e também profícuos. Alguns se mostram compatíveis com as noções hohfeldianas; outros, embora não compatíveis, apresentam características relevantes dos direitos fundamentais, bem como se ajustam às muitas mudanças enfrentadas pelo Direito no último século. Por isso, tendo como norte os conceitos hohfeldianos, apresentar-se-á uma proposta terminológica que intenta combinar elementos dos três autores, começando-se pela dimensão subjetiva dos direitos em sentido amplo. Em primeiro lugar, tem-se que os direitos subjetivos em sentido amplo são sempre triádicos: envolvem um titular, um destinatário e um objeto. O objeto será a ação (ou alternativa de ação). Estruturalmente, não se pode conceber que os dois sujeitos sejam a mesma entidade, pelo menos no que diz respeito aos direitos jurídicos. O conceito é “two-hat”, mesmo para aqueles direitos que são referidos como erga omnes. A razão disso é simples. Se X é proprietário de um vasto terreno, diz-se que seu direito é oponível diante de todos. Entrementes, é necessário tratar cada destinatário separadamente, pois existe certa relatividade. Suponha-se que X permita que Y e apenas Y acampe em seu terreno. Todos os demais destinatários seguem com o dever de não acampar no terreno de X, mas Y terá o privilégio, ou mesmo o direito estrito (a 57 depender da situação) de acampar no terreno de X. Portanto, cada relação tem de ser tratada separadamente. Adotar-se-á a noção hohfeldiana de “direito em sentido estrito”120 que é correlativa a um dever. O dever, por seu turno, será entendido como um constrangimento comportamental jurídico-normativo correlativo a um direito em sentido estrito e fundado na existência de tal direito. Ao compreender dever deste modo, surge automaticamente a indagação: é possível existir dever sem que exista direito em sentido estrito? Quando se pensa que o dever, como apresentado por Alexy, é o equivalente lógico do mandato (O)121, tende-se a pensar que a resposta deve ser negativa. Entretanto, o dever correlativo a um direito estrito não esgota as possibilidades de ações (omissivas ou comissivas) ordenadas, tampouco as proibidas. É perfeitamente possível (em termos lógicos) que um ordenamento jurídico contenha mandatos (O) ou proibições (F) que não sejam correlativos a direitos estritos122. Notase, portanto, que se pode conceber a existência de “dever em sentido amplo”, ou seja, ações ordenadas que não sejam correlativas ao direito estrito. Todavia, em razão da clareza, o termo dever será mais empregado no seu sentido estrito (quando correlativo ao direito estrito). Para os casos em que existe mandato (O), utilizar-se-á a expressão ação ordenada, valendo tanto para comportamentos omissivos como comissivos, conforme o caso. Já se considerou haver certa correspondência entre a categoria “direitos a algo” de Alexy e o “direito estrito” de Hohfeld. As pormenorizações efetuadas por Alexy são compatíveis com o direito estrito, que pode ser catalogado como ele mencionou, desde que se tome o cuidado para não confundir o rol com as imunidades hohfeldianas. O conceito de privilégio será utilizado de modo um pouco diverso ao formulado por Hohfeld, pois serão feitos alguns ajustes baseados em Alexy e J.J. Thomson. Uma vez que a opção foi compreender o dever em sentido estrito, haverá privilégio quando houver uma combinação de permissões ou uma permissão explícita (liberdade jurídica não-protegida em Alexy) e não apenas como a negação do dever, mas como a negação do dever e das ações ordenadas (em uma relação específica). Tal qual em Hohfeld, o privilégio será um conceito fraco, não correlativo a um direito em sentido estrito. 120 A expressão poderá ser abreviada para direito estrito. Deve-se manter em mente que é o equivalente lógico quando relacional. 122 Doravante, trabalhar-se-á com o mandato (O), uma vez que se pode compreender as proibições a partir dele (OG ↔F⌐G). Então, em certas hipóteses, pode-se usar ação proibida. 121 58 Todavia, o privilégio não será empregado como um sinônimo de liberdade jurídica. Como fizeram Alexy e Thomson – e pelas mesmas razões por eles arroladas – entende-se que a liberdade jurídica poderá, sim, conter direito estrito, no qual o objeto será uma alternativa de ação. Nestas hipóteses, a liberdade jurídica será denominada pelo nome, acompanhada da palavra estrito (e.g., direito estrito à liberdade de expressão). Esta alternativa permitirá distingui-la do privilégio, bem como das imunidades e do direito fundamental como um todo. A competência será entendida como a habilidade de modificar relações jurídicas alheias. A ela corresponde a sujeição, que deve ser entendida não apenas com o sentido desvantajoso que comumente lhe é atribuído. A imunidade é a impossibilidade de ter uma relação jurídica alterada por ação alheia. Quando houver a imunidade de um dos polos, haverá uma incompetência por parte do outro. Em Alexy, as competências são sempre institucionais, ou seja, é necessário que seja juridicamente constiuída. Em Hohfeld, a ideia de institucionalização não é tão clara, muito embora os exemplos de competência que ele e seus comentadores empregam normalmente remetam à institucionalização. Dessa forma, prefere-se adotar o conceito de modo similar ao de Alexy, ou seja, considerar necessário que exista enunciado normativo constituindo a competência. Caso não existir, e a competência for jusfundamentalmente protegida, haverá o direito a algo de exigir a constituição da competência. O direito fundamental como um todo será compreendido como um feixe de posições e de relações jurídicas jusfundamentais – dimensão subjetiva – aliado à dimensão objetiva. Quando os direitos fundamentais são apresentados em sua estrutura triádica, parecem perder a substância, e muito da magia que os envolve parece dissipar-se. Introduz-se a frieza em algo que possui anima. Todavia, é apenas uma impressão. É tãosomente na primeira etapa – a analítica – que os direitos fundamentais aparecem assim, desencarnados. E isso ocorre para facilitar a apreensão dos próprios direitos em um exame normativo ou empírico. Seguindo na esteira analítica, buscar-se-á relacionar a estrutura de um direito fundamental até o momento forjada com o conceito de disposição de direitos fundamentais, foco deste Capítulo. 59 1.3 Disposição de direitos fundamentais: uma proposta conceitual O desafio deste tópico é discutir e propor um conceito de disposição de direitos fundamentais. Ainda que muitos passos do caminho traçado contribuam para facilitar a tarefa, ela é árdua. Por isso, os exemplos utilizados serão bastante simplistas e não será uma preocupação – nesta etapa – saber se cada um deles é ou deve ser permitido ou proibido em uma dada ordem jurídica. 1.3.1 O tripé: titularidade da dimensão subjetiva, intersubjetividade e o objeto da relação jurídica jusfundamental Uma vez cientes de que um direito fundamental como um todo possui duas dimensões, uma subjetiva e outra objetiva, e que à segunda nem sempre corresponde um direito subjetivo em sentido amplo ou estrito, tem-se um primeiro e importante elemento do conceito de disposição de direitos fundamentais. Se, grosso modo, dispor de um direito fundamental significa que um titular dele abre mão, é fácil concluir que ele apenas pode fazê-lo em relação às posições subjetivas que titulariza. Não se pode abrir mão de algo cuja titularidade não se possui. Em assim sendo, o conceito de disposição de direitos fundamentais refere-se à parcela subjetiva de um direito fundamental. Quando à dimensão objetiva não corresponder uma dimensão subjetiva, não há que se falar em disposição. Quando houver uma dimensão subjetiva associada à objetiva, ou apenas uma dimensão subjetiva, cabe tratar da disposição. Porém, é preciso atentar para o fato de que muitas disposições de posições subjetivas de direito fundamental poderão impactar a concretização da dimensão objetiva, como será visto adiante. O estudo da estrutura do direito subjetivo em sentido amplo permitiu perceber, em primeiro lugar, que os direitos subjetivos em sentido amplo são sempre relacionais. Representam a relação de um sujeito com outro sujeito; não a relação de um sujeito consigo e nem de um sujeito com um bem corpóreo ou incorpóreo. Em síntese, são intersubjetivos. Desta feita, dispor de um direito significa movimentar com essa relação intersubjetiva, ou seja, com as posições subjetivas de direito fundamental. Para que exista disposição, é imprescindível a modificação (alteração, criação ou extinção) de posições subjetivas de direitos fundamentais, as quais envolvem, necessariamente, dois sujeitos. Além disso, o objeto da relação não é o bem por ela protegido, mas uma ação, comissiva ou omissiva, ou uma alternativa de ação. Então, quando se dispõe de uma 60 posição subjetiva de direito fundamental, não se trata de uma ação do titular em relação ao bem juridicamente protegido pela posição. Trata-se da modificação da posição quanto aos seus sujeitos e ao seu objeto – uma ação ou alternativa de ação. Em assim sendo, o mero uso, o gozo, a fruição, o exercício ou mesmo a destruição de um bem pelo titular não representam necessariamente disposição de posição subjetiva de direito fundamental. Por exemplo, se X for proprietário de um livro e, ao usá-lo, riscá-lo, desgastá-lo ou mesmo destruí-lo, não terá exercido uma disposição de nenhuma posição subjetiva do direito fundamental, uma vez que não permitiu a nenhum outro sujeito fazer o que fez com o seu livro. Se Y houvesse riscado o livro de X, teria descumprido um dever, violando o direito estrito de X à propriedade do livro. Porém, se X houvesse emprestado seu livro a Y e meramente permitido que Y o riscasse, teria disposto de posições subjetivas de direito fundamental, pois permitira que Y agisse de forma que não poderia agir em razão do direito. Nessa hipótese, o direito estrito de X, ao qual correspondia o dever de Y, foi alterado, de modo que Y passou a ter um privilégio e X um não-direito. Se for admitido que o uso, o gozo, o exercício, ou mesmo a destruição do bem configuram uma disposição de posição subjetiva de direito fundamental, ter-se-ia de assumir, para classificar um direito como indisponível, que a relação estabelecida é a de um sujeito com um bem, ou, pior, que o mesmo sujeito figura nos dois polos de uma relação. É claro que certos comportamentos do sujeito quanto ao bem possuem reflexos nas posições subjetivas de direito fundamental, especialmente quando se trata da destruição de um bem. Se X destruir seu livro, um dos efeitos de seu ato será justamente a extinção das posições subjetivas que o direito à propriedade do livro lhe conferia. Entretanto, o que ocorre não é propriamente uma disposição da posição subjetiva de direito fundamental, porquanto a modificação é meramente um reflexo de um comportamento asilado do titular, que não modificou, enquanto titularizava o direito em sentido amplo, suas posições em face de terceiros, tudo o mais sendo igual. Ninguém diferente do titular poderia ter destruído o bem, a menos que houvesse permissão para tanto, tudo o mais sendo igual. Buscando um exemplo fronteiriço, tome-se o direito à vida. Ao entender que o suicídio de X é uma disposição das posições subjetivas do direito à vida, compreende-se a destruição do bem vida como disposição (renúncia). Inexoravelmente, a destruição do 61 bem ensejará consequências quanto às posições subjetivas do direito à vida. Mas isso autoriza a chamar essa extinção do direito de disposição? Não123. Tudo o mais sendo igual, nenhum terceiro poderia agir de forma diversa daquela ditada pelas posições subjetivas do direito à vida de X enquanto o bem ainda fosse existente. Em hipótese, se for entendido que uma das posições subjetivas do direito à vida é o direito estrito de X a ser salvo por Yn , Y teria o dever de tentar salvar X, mesmo que para isso tivesse que empregar a força razoável. Tudo o mais sendo igual, Y não poderia, ao saber que X pretendia matar-se, matá-lo, pois X não efetuou nenhuma modificação na posição subjetiva de Y124. Além disso, o conceito de disposição ficaria tão extenso que perderia sua utilidade e sua clareza. Suponha-se que X tente suicidar-se e, não conseguindo, fique em estado vegetativo persistente. Teria ele disposto de alguma posição subjetiva de direito fundamental? Do direito à vida, não. Mas, se está em estado vegetativo persistente, X destruiu sua habilidade para comunicar-se, bem como para locomover-se. Se for aplicado o tirocínio de que a destruição do bem é uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental, a conclusão terá que ser a de que X dispôs (renunciou) às posições subjetivas do direito à liberdade de expressão e do direito à liberdade de ir e vir. Com isso, perde-se muito em clareza conceitual, pois os fenômenos a serem abarcados pela ideia de disposição serão tantos, tão distintos entre si e, em determinadas ocasiões, terão resultados tão absurdos, que não há como enquadrá-los em um conceito delimitado e útil125. Por enquanto, há uma conclusão inicial. A disposição de direito fundamental refere-se à disposição de posição subjetiva de direito fundamental, realizada entre dois sujeitos de uma relação jusfundamental tendo em vista seu objeto, na qual há modificação ou extinção da posição original, ou, ainda, criação de novas posições. A 123 No Brasil, Virgílio Afonso da Silva adota a teoria alexyana e posiciona-se em sentido diverso: “Mesmo que não se recorra a exemplos limítrofes – a renúncia ao direito à vida por meio do suicídio, por exemplo [...]”. SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., p.73. 124 Utiliza-se a expressão “tudo o mais sendo igual”, pois poderia haver circunstâncias nas quais a Y fosse permitido matar X, como a legítima defesa. 125 Outra discussão que teria de ser feita é a colocação do bem em risco pelo titular. Se a destruição do bem for reputada disposição, por que a sua colocação em risco também não seria, principalmente quando as consequências do risco se concretizam? Assim, alguém que toma sol em excesso, é sedentário, mantém péssimos hábitos alimentares estaria dispondo de posições subjetivas do direito à integridade física? Se apreendida a estrutura triádica da posição, não se pode concluir positivamente, pois o mesmo sujeito figura nos dois polos. Levando o argumento ao extremo, soaria demasiado estranho, mesmo absurdo, dizer que o uso e o consumo do bem são atos de disposição, pois a vida, por exemplo, conduz, à medida que é vivida, à morte. É inexorável. Por acaso ocorre a alguém sustentar que viver é um ato de disposição de posições subjetivas de direito fundamental? 62 disposição é intersubjetiva e relacionada ao objeto de uma relação de direito fundamental. 1.3.2 Condição necessária: manifestação autônoma Em segundo lugar, a disposição de posições jurídicas de direito fundamental será sempre autônoma. No primeiro item deste Capítulo, esta foi uma das poucas tendências que os diversos conceitos de disposição permitiram extrair. A disposição de posição subjetiva de direito fundamental advém de comportamento do titular – daquele que ocupa o papel dominante na relação. Destarte, a disposição de posição subjetiva de direito fundamental não poderá ser heterônoma, isto é, efetuada por terceiro e sem encontrar sua justificação em comportamento do titular (ou titulares) da posição. Um exemplo será bem-vindo. X está doente e precisa fazer uma cirurgia. O médico Y solicita a autorização de X para realizar os procedimentos cirúrgicos necessários. X formalmente o autoriza. Houve disposição de uma posição subjetiva de direito fundamental por parte de X, uma vez que seu consentimento modificou a posição inicial. X era titular de um direito estrito à integridade física e Y do dever correlativo de não-interferência. Com o consentimento, Y poderá realizar atos que não poderia caso não houvesse o consentimento. É o comportamento de X que autoriza e justifica a ação de Y. Todavia, se X chegasse inconsciente em uma sala de emergência hospitalar e Y, médico, realizasse uma cirurgia imprescindível, não haveria disposição de posições subjetivas de direito fundamental por parte de X, mas uma interferência heterônoma em seus direitos, ou seja, o ato de Y poderia ser justificado e lícito, mas por motivos distintos da ação autônoma de X, tratando-se, sim, de uma interferência heterônoma. Portanto, a disposição de posições subjetivas de direito fundamental é autônoma. Realiza-se quando há um comportamento do titular da posição em face do outro polo da relação de direito fundamental, envolvendo o objeto desta. Em terceiro lugar, cabe perguntar qual é, exatamente, o comportamento do titular que enseja a disposição de posição jurídica de direito fundamental. A revisão da jurisprudência e da literatura no primeiro item do Capítulo sugeriu que parcela significativa dos estudiosos e da jurisprudência considera que é a manifestação do titular que está na base da disposição. Porém, alguns autores e julgados alargaram essa noção, asseverando haver disposição quando o titular se comporta de uma determinada maneira e coopera para a ablação da posição subjetiva de direito fundamental. É o caso de Diana Meyers, que entende que um direito indisponível é aquele que não pode ser 63 perdido por seu titular, especialmente pela renúncia. Em seu conceito de indisponibilidade, Meyers deixa claro que comportamentos do titular que conduzam à perda ou restrição do direito, mesmo que indiretamente, são também disposição. No seu pensar, um indivíduo que comete um crime e tem seu direito de liberdade atingido pelo sistema penal teria disposto de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental126. Embora não fique bem marcada a postura, o exemplo de Virgílio Afonso da Silva, a respeito do suicídio, também insinua que comportamentos diferentes do consentimento podem ensejar disposição de posições jurídicas de direito fundamental127. Do ponto de vista mais amplo sustentado pelos autores, um elemento continua presente, ainda que em certos momentos de forma muito tênue: a ideia de voluntariedade do comportamento128. Com o fito de verificar qual das posições condiz com um conceito mais adequado e útil, elas serão testadas. O uso corrente é afirmar que “os direitos fundamentais são indisponíveis” ou, pelo menos, “os direitos da personalidade são indisponíveis”. Vejam-se então os resultados que serão obtidos ao se compreender que comportamentos voluntários do titular que contribuam para a perda, extinção ou restrição de um direito são atos de disposição. Se X cometer o crime de homicídio doloso e for condenado, por sentença transitada em julgado, à pena de prisão, terá disposto de diversas posições subjetivas de direito fundamental, dentre elas direitos estritos à liberdade de ir e vir, à privacidade; privilégios, competências, enfim, uma série de posições. Nesse mesmo sentido, se X ofender grosseiramente Y e for por isso condenado a indenizá-lo, terá disposto de posições subjetivas de direito fundamental. Essas são duas ilustrações simples que deixam entrever o quão dilatadas são as consequências de se conceber que qualquer comportamento voluntário do titular dá azo a uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Se empregada, a frase “os direitos fundamentais são indisponíveis” perde completamente seu sentido, e será preciso, como fez Meyers, trabalhar um rol bastante sintético das posições subjetivas de direito fundamental que são indisponíveis. Caso contrário, o conceito de disposição mais uma vez se tornará tão amplo e hábil a abraçar uma gama tão vasta de 126 MEYERS, Diana T. Inalienable rights: a defense. New York: Columbia University Press, 1985, p.9. É exatamente por este motivo que a lista de direitos indisponíveis de Meyers é bastante enxuta (apenas quatro direitos), porém muito forte. 127 SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., p.73. 128 Na realidade, Meyers não atenua muito a ideia de voluntariedade. Mas o exemplo de Virgílio Afonso da Silva implica uma versão bastante leve da ideia de voluntariedade, pois é altamente questionável o quão voluntariamente age alguém que comete suicídio. 64 circunstâncias, que se torna impossível visualizar qual o seu núcleo, qual a sua aplicação e qual a sua utilidade no discurso jurídico-prático. Mas os argumentos ainda não são suficientes para descartar a postura ampla esposada por autores como Meyers, pois sua intenção deve ser bem compreendida, uma vez que, ainda que torne o conceito de disposição amplíssimo, ela visa a evitar a disposição indireta. Ou seja, se o titular é proibido ou não pode (cannot) diretamente abdicar de uma posição subjetiva de direito fundamental, ele o faz indiretamente, cometendo um ilícito que leve à perda, suspensão ou restrição de posições subjetivas de direito fundamental. Isso seria uma disposição mascarada, e de nada valeria o epíteto indisponível de um direito ou de uma posição subjetiva de direito fundamental, se um ato voluntário do titular pudesse conduzir ao resultado proibido pela ordem jurídica. Em hipótese, seria o caso de um sistema jurídico que prevê a pena de morte, mas proíbe contratos cujo objeto seja a permissão dada por X para que Y o mate, bem como a eutanásia e o auxílio ao suicídio. Nesse contexto, se X quisesse obter o resultado morte com auxílio, poderia chegar ao seu intento cometendo um dos crimes para os quais a pena de morte for imputada. Está claro, portanto, que qualquer comportamento voluntário que contribua para a perda, suspensão ou restrição de posições subjetivas de direito fundamental não se encaixa na ideia usual de disposição e torna o conceito muito amplo. Entrementes, possui por base uma razão importante. Deve a noção de comportamento em sentido amplo ser descartada? Pensa-se que sim. Os motivos expostos por Terrance McConnell contra a proposta ampla são bastante convincentes e soam muito mais adequados à formulação de um conceito de disposição de posições subjetivas de direito fundamental. McConnell observa que os comportamentos não permitidos, aos quais se imputa sanção que recai negativamente sobre posições subjetivas de direito fundamental, são bastante diferentes do consentimento do titular. Inicialmente, porque, no primeiro caso, o que justifica a interferência com posições subjetivas de direito fundamental do titular é o ilícito que ele cometeu. No segundo caso, o que justifica a interferência é o consentimento. Consoante o autor, há sólidas razões para se considerar que interferências sejam permitidas e/ou proibidas de forma muito diversa num e noutro caso. Além disso, não se pode imaginar que alguém que comete um ilícito 65 voluntariamente pretende a sanção do mesmo modo que aquele que consente pretende um resultado129. Assumir a diferença entre um comportamento voluntário que leva à perda, suspensão ou restrição de posições subjetivas de direito fundamental e a disposição não significa que um sistema jurídico poderá interferir em certos direitos porque o titular pode deles dispor mediante consentimento. Assim, por exemplo, se X consente em doar um rim, em vida, para seu filho Z, X dispõe de posições subjetivas de direitos fundamentais. O que justifica a cirurgia de retirada de seu órgão e a transplantação é o seu consentimento. Mas isso não quer dizer que um sistema jurídico estaria justificado a instituir como pena a retirada de órgãos dos condenados, em vida ou mesmo post mortem, para doação. Para uma política pública como esta, seria necessária justificação suficiente130. O problema enfrentado foi o de delinear quais comportamentos do titular da posição ensejam a disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Concluiuse que o comportamento que a enseja é o consentimento do titular destinado à modificação da posição em face do outro polo da relação, envolvendo seu objeto. O consentimento, em suas diversas manifestações, é a justificação do comportamento do outro polo, é ele quem oferece as razões para que Y se comporte do modo que não poderia para com X. É importante destacar, como fazem Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, que o consentimento é uma justificação procedimental, não-substantiva, ou seja, não oferece razões para justificar um ato em si, mas fornece a justificação para o comportamento de Y em relação a X131. Há uma terceira conclusão a respeito da disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Somente para lembrar, a primeira foi a de que a disposição de direito fundamental refere-se à posição subjetiva de direito fundamental, realizada entre dois sujeitos de uma relação jusfundamental tendo em vista seu objeto, na qual há 129 McCONNELL, Op.cit., p.13-14. Infra, Capítulos 2 e 3. Frisa-se o que foi mencionado antes. Os exemplos postos neste item são meramente ilustrativos. Daí informar que, embora baseado em argumento de McConnell, o exemplo não é dele. McCONNELL, Op. cit., p.14. 131 Este ponto será pormenorizado adiante. Por ora, apresentam-se as palavras dos autores, válidas para o consentimento em geral, não somente para a disposição: “Consent functions as a procedural justification giving the recipient of the consent (B) a complete answer to the consenting agent (A); no wrong is done to the consenting (authorizing) agent (A) by the recipient agent (B); but it does not follow that the recipient agent (B) does no wrong to third-parties agents (such as C). in the absence of consent, a wrong will be done to agents whose rights are violated even if, all things considered, the wrongdoing can be substantively justified as the lesser of two evils – hence the principle of priority of consent”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.63. 130 66 modificação ou extinção da posição original, ou, ainda, criação de novas posições. A segunda, a de que é ato autônomo, e não heterônomo. A terceira, a de que o comportamento que enseja a disposição é o consentimento (em diversas manifestações). O consentimento é condição necessária para a existência de disposição. Não havendo consentimento, ou um ato complexo que o garanta ou dele dependa, não haverá disposição, mas interferência heterônoma na posição subjetiva de direito fundamental. Mais uma vez, há que se trazer à baila que, nesta etapa da construção teórica, o trabalho restringe-se à depuração conceitual. Por isso, não são apresentados argumentos acerca da qualidade e dos tipos de consentimento que devem ou podem ser admitidos para a disposição de posições subjetivas de direito fundamental em um determinado sistema jurídico num dado momento. Tampouco são objeto de consideração as razões pelas quais a disposição pode ser proibida ou permitida, nem em quais casos certo sistema jurídico o faz. Esta etapa é conceitual. Nos próximos capítulos do estudo esses assuntos virão à superfície. 1.3.3 Enfraquecimento de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental Em quarto lugar, a disposição de posições subjetivas de direito fundamental é normalmente vista como uma desvantagem para quem a realiza. É usual ligar a disposição com a perda de algo precioso pelo titular, como a quebra de um elo que ele possui com algo dotado de grande valor e pelo qual tem estima. Realmente, em muitos casos será assim. Não em todos, porém. Daí ser conveniente investigar o porquê da difusão dessa ideia de que a disposição traduz uma desvantagem, um resultado aparentemente indesejado (ou não-desejável) pelo titular, do ponto de vista conceitual. Pelas conclusões até agora obtidas, sabe-se que a disposição de posições subjetivas de direito fundamental é uma modificação operada autonomamente pelo titular, mediante consentimento, em relação jurídica de direito fundamental, tendo em vista seu objeto. Por que essa modificação é vista como uma perda, como uma desvantagem? Porque a modificação operada na posição subjetiva retira o titular do lado dominante da relação. Significa a troca de uma posição mais forte ou protegida para outra mais fraca ou desprotegida. Isto é, do ponto de vista do titular, um enfraquecimento (variável em graus) de posição subjetiva de direito fundamental. Ao dispor, o titular se autolimita e empodera o outro sujeito da relação, permitindo-lhe agir de forma que não poderia se não houvesse o consentimento, tudo o mais sendo igual. 67 Os exemplos da cirurgia e do transplante de rim podem auxiliar. Quando X consente em fazer uma cirurgia e autoriza o médico Y, X dispõe de posição subjetiva do direito estrito à integridade física, permitindo que Y realize atos que não poderia realizar, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. X, que titularizava um direito estrito em face de Y, libera-o do dever correlativo, deixando-o na posição de privilégio ou mesmo na de titular de um direito estrito, a depender da situação. X, que era titular de um direito estrito, passa a ter um não-direito ou mesmo um novo dever. Aqui se vê que a ideia de perda de algo parece manifestar-se. X não mais está no lado dominante da relação, agora ocupado por Y. Entretanto, X quer realizar a cirurgia e, no exemplo, ela será benéfica para sua saúde. Então, apesar de ocorrer um enfraquecimento nas posições subjetivas de direito fundamental de X, é no seu interesse, em razão do seu querer e para sua vantagem que ele consente na disposição. O mesmo acontece no transplante inter vivos. Se X, pai de Z, decide consentir com a retirada de seu rim para o transplante em seu filho, dispõe de posições subjetivas de direito fundamental e permite aos outros polos das relações agir de modo que não poderiam se não houvesse o consentimento. Novamente, a modificação enfraqueceu posições subjetivas de direito fundamental de X. In casu, o enfraquecimento atinge um grau muito forte. Os dois exemplos mostram, propositalmente, casos de disposição nos quais não há, propriamente, uma desvantagem fática para aquele que dispôs. Esta é uma face da moeda. É preciso não perder de vista a outra face. Em muitas situações a disposição pode redundar em graves desvantagens fáticas e ônus jurídicos para quem a realiza. Por isso, a qualidade do consentimento e as situações nas quais pode ser admitido como condição suficiente para a disposição são relevantíssimas. Do contrário, abre-se uma poderosa senda, pela qual poderão passar incólumes as explorações de circunstâncias adversas – como o estresse, baixas condições econômicas, sociais ou educacionais – ou sérias violações e o menosprezo dos direitos fundamentais, pois que travestidas de disposição. O que estas duas caras da disposição revelam quanto ao seu conceito? Uma revela que um dos componentes do conceito é carente de justificação nas searas normativa e empírica. O consentimento é necessário à disposição. Para que o consentimento exista, haverá condições; para que seja válido, haverá outras condições. A outra revela que a disposição não pode ser vislumbrada apenas à luz do enfraquecimento de uma ou algumas posições subjetivas de direito fundamental específicas. A disposição é ato complexo, uma vez que o consentimento advém justamente do exercício de outras posições jurídicas – que poderão ser posições 68 subjetivas de direito fundamental. Em sendo assim, a disposição implica, por um ângulo, o enfraquecimento de posições subjetivas de direito fundamental. Por outro ângulo, pode ser o exercício de outra (ou outras) posição subjetiva de direito fundamental132. As lapidações conceituais produzidas autorizam a apresentação de um conceito de disposição de direitos fundamentais, pois já há diversos elementos: (a) envolve a dimensão subjetiva do direito fundamental; (b) é intersubjetiva; (c) é quanto ao objeto da relação (comportamento omissivo ou comissivo, ou alternativa de ação); (d) o consentimento é necessário; (e) há autolimitação do titular e empoderamento do outro polo da relação; (f) é ato complexo. Deste modo, dispor de um direito fundamental é enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros – quer seja o Estado, quer sejam particulares –, permitindo-lhes agir de 133 forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento . A chave da ideia está no consentimento do titular hábil a enfraquecer posições jurídicas próprias de direito fundamental. A disposição em face de particulares apenas ocorrerá se eles estiverem vinculados à posição que se pretende dispor. Ou seja, para ser possível enfraquecer uma posição subjetiva de direito fundamental, é indispensável que ela já exista. Em assim sendo, o complexo tema dos assim chamados efeitos horizontais dos direitos fundamentais é pressuposto para o problema da disposição. Primeiro, verifica-se a vinculação do particular; a seguir, discute-se a disposição. Os exemplos que foram dados partiram do pressuposto de que, em cada um deles, os particulares estavam vinculados134. Nesta tese, não é preciso abordar com minúcia o problema dos efeitos 132 Nesse sentido: NOVAIS, Renúncia..., p.299. O estudioso português, ao analisar a renúncia como um ato complexo, afirma que ela é de dupla via, uma vez que “na renúncia se verifi[cam], simultaneamente, um exercício e uma restrição de um direito fundamental”. 133 O conceito é próximo ao de Novais, mas as razões que levaram até ele são diferentes. NOVAIS, Renúncia..., p.267. 134 Apenas para ilustrar, apresenta-se um dos exemplos trabalhados por Daniel Sarmento. O Supremo Tribunal Alemão, em 1972, “considerou inválida a cláusula de acordo de divórcio, pela qual o ex-marido comprometia-se a viver, durante certo período, em cidade diversa do domicílio de sua antiga cônjuge...”. Neste acordo, um dos cônjuges dispôs de posições subjetivas de direitos fundamentais. Em um caso como esse, antes de analisar a disposição em si, é preciso verificar se os particulares estão vinculados a tais posições subjetivas de direitos fundamentais, pois, se não estiverem, não há que se falar em disposição. O autor também menciona outros exemplos e faz a ligação com a renúncia a direitos fundamentais. SARMENTO, A vinculação ..., p.310-311. Acerca da eficácia horizontal, consultar: ALEXY, Teoria de los...; SILVA, Luís Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., passim; ZIPPELIUS, Reinhold. 69 horizontais, pois o núcleo é o direito à vida, o qual, além de ser considerado ubíquo, conta com mediações legislativas, administrativas e jurisprudenciais bastante densas135. A disposição é uma categoria que encampa a renúncia – em suas várias modalidades –, a alienação, a transmissão e a cessão, desde que consentidas, é claro. Os enfraquecimentos de posições jurídicas de direitos fundamentais provindos da incidência de normas jurídicas, mediante sanção, mesmo que para tanto concorra um comportamento omissivo ou comissivo do titular, não estão englobadas no conceito. Logo, a perda, suspensão ou as restrições legislativas, administrativas e judiciais, punitivas ou não, são distintas da disposição de um direito, pois o elemento gerador é a incidência normativa, não o consentimento. E a justificação não se encontra no 136 consentimento, mas em direitos e princípios concorrentes . Do conceito oferecido à disposição compreende-se que ela é intersubjetiva. Destarte, situações de dano a si que não são intersubjetivas estão fora do conceito de disposição. Se uma pessoa comete suicídio, sozinha e sem qualquer auxílio ou instigação por terceiro, não dispõe de posições subjetivas do direito fundamental à vida, porquanto não desobriga qualquer pessoa (nem o Estado) mediante seu consentimento, apenas destrói o bem jurídico protegido. Por outro lado, se uma pessoa permitir, Teoria geral do estado. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p.442-444; CANARIS, ClausWilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Almedina, 2003; CANARIS, ClausWilhelm. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.223-244; CANOTILHO, J.J. Gomes. Dogmática dos direitos fundamentais e direito privado. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.339-357; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, as liberdades e garantias no âmbito das relações entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.271-298; UBILLOS, Juan Maria Bilbao. En qué medida vinculan los particulares los derechos fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.299-338; TRIBE, Laurence H. Constitutional choices. Cambridge: Harvard University Press, 1985, p.246-266; TRIBE, Laurence H. American constitutional law. 3.ed. New York: Foundation Press, 2000, p.1688 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 337 e ss.; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação de particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição concretizada, construindo pontes entre o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.107-163; SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Lumen Juris, 2005; SARMENTO, A vinculação..., passim; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.431 e ss. 135 A expressão direito ubíquo como qualificadora do direito à vida é utilizada por Pontes de Miranda. PONTES DE MIRANDA. Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo VII. 3. ed, reimpressão. Rio de Janeiro, Borsoi, 1971, p.14-29. 136 Ver McCONNELL, Op. cit., p.3-22; NOVAIS, Renúncia..., p.273 e ss.; FEINBERG, Joel. Rights, justice and the bounds of liberty: essays in social philosophy. Princeton: Princeton University, 1980, p. 221 e ss. 70 mediante consentimento, que um terceiro realize o ato de matá-la (e.g., eutanásia), disporá de posições jurídicas do seu direito fundamental à vida, pois o consentimento visou a desobrigar terceiro e a enfraquecer posições subjetivas de direito fundamental. Vertendo para termos estruturais apoiados em operadores modais e deônticos, na disposição de direitos fundamentais, compreendidos como relações triádicas (titular X, destinatário Y, e objeto G), o consentimento do titular X altera posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, permitindo ao destinatário Y agir ou omitir-se de agir de modo que não poderia se não houvesse o consentimento, tudo o mais sendo igual. Vê-se, portanto, que existe uma miríade de hipóteses de disposição. Elas irão variar conforme o direito envolvido, os sujeitos da relação, as posições que serão enfraquecidas, a modalidade de disposição (total, parcial, temporária, definitiva, onerosa, gratuita), a necessidade ou não de reconhecimento institucional de uma competência para efetuá-la, a posição jurídica após o ato de disposição, a interpretação do que é consentir, dentre outros fatores. Para esclarecer, serão formulados três exemplos, cada qual acompanhado da representação por operadores deônticos. Uma primeira hipótese de disposição pode ser assim expressa: Hipótese I Posição Jurídica Inicial: Dxe ¬ G ↔ Direito de X frente a E à omissão de G. Oex ¬ G Dever de E frente a X de omitir G. Posição Jurídica pós-Consentimento: ¬ Dxe ¬ G ↔ Não-direito de X frente a E à omissão de G. PexG (¬ OexG) ¬ Oex¬ G (Pex¬ G) Posição Livre (Lp) Seria o caso de uma pessoa que permite que um policial entre em sua casa sem autorização judicial para efetuar uma busca, não havendo outras circunstâncias justificadoras. Sem o consentimento, ao policial seria proibido entrar no domicílio. O consentimento do morador altera a posição jurídica, tornando permitido ao policial entrar ou não entrar. Porém, desta combinação de permissões não se extrai nenhum direito do policial. Se o morador decidir retirar o seu consentimento poderá fazê-lo a 71 qualquer tempo137. Na hipótese, o destinatário E resta na posição livre (Lp), na qual a ação não está ordenada, mas está permitida. Ela será, no caso, um privilégio, oriundo da combinação de permissões (Pex¬G ^ PexG), não se confundindo com o direito de Y a algo. É necessário notar que nessa hipótese X mantém a possibilidade de retirar seu consentimento a qualquer tempo, sem que com isso E possua qualquer direito em face de X quanto à realização de G, pois a nova posição é meramente um privilégio de E, não um direito estrito. Porém, se não mais se admitisse a revogação do consentimento – por terem sido encontradas provas de crimes – não se trataria de mero privilégio, mas de imunidade e incompetência, criando-se uma nova relação. Outra hipótese de disposição ocorre quando há acordo que altera posições jurídicas: Hipótese II Posição Jurídica Inicial: Dxy ¬ G ↔ Direito de X frente a Y à omissão de G. Oyx ¬ G Dever de Y frente a X de omitir G. Posição Jurídica pós-Consentimentos: DxyG ↔ Direito de X frente a Y à realização de G. OyxG ¬ Pyx¬ G. Dever de Y frente a Y de realizar G Nesta segunda hipótese, pode-se mencionar a realização de uma tatuagem no corpo. Se o titular X decide fazer uma grande tatuagem e contrata a equipe de tatuadores Y para realizá-la, dispõe de posições jurídicas do seu direito fundamental à integridade física e permite que Y atue de forma que não poderia se não houvesse o consentimento. O titular X passa, então, à posição de titular do direito à realização de G, ao passo que Y obriga-se a realizar G. Perceba-se que dessa relação não se infere o direito de Y à realização de G quanto ao sujeito X, caso X retire o seu consentimento. Como no exemplo anterior, X mantém a possibilidade fática e jurídica para retirar o consentimento até que seja feita a tatuagem. Após a realização, existe impossibilidade 137 Este exemplo foi inspirado nos textos de Jorge Reis Novais e de José Carlos Vieira de Andrade. NOVAIS, Renúncia.... ANDRADE, Os direitos fundamentais..., Todavia, adiante será visto que já houve posicionamento juriasprudencial no Brasil no sentido de, uma vez genuinamente consentida, não poderá mais o morador revogar unilateralmente o seu consentimento nessa situação. 72 fática de retorno à situação fática anterior, mas as posições jurídicas de X e de Y retornam à posição original (direito estrito de X à omissão de Y quanto à sua integridade física). Em uma terceira possibilidade, o destinatário Y passa à titularidade de um direito em face de X, em razão da disposição. Na hipótese, X inicia em posição jurídica livre (Lp), na qual está permitido realizar G ou omitir-se de G. Ele possui também o direito a esta alternativa de ação, tratando-se, portanto, de um direito estrito à liberdade. O destinatário Y não poderá opor obstáculos a este direito de liberdade. Se X dispuser de posição subjetiva de direito fundamental em face de Y, sairá da posição livre e ingressará na posição de dever, conferindo a Y um direito estrito: Hipótese III Posição Jurídica Inicial: Dxy(¬ estorva Ax) ↔ Oyx(¬ estorva Ax) Direito de X frente a Y ao não estorvamento de suas alternativas de ação. Dever de Y frente a X de não estorvar suas alternativas de ação. Posição Jurídica pós-Consentimentos: Oxy¬G ↔ Dever de X frente a Y a omitir G. Dyx¬G Direito de Y frente a X. à omissão de G. Suponha-se que X, um médico obstetra, esteja em posição jurídica livre para ingressar (G) ou não (¬ G) em um programa de abortamento legal. Ele também possui um direito estrito a que terceiros não o impeçam. Todavia, uma entidade religiosa Y financia um curso de pós-graduação do médico, exigindo, em contrapartida, que ele se abstenha de ingressar, durante cinco anos, em programas de abortamento legal. O consentimento de X altera as posições jurídicas iniciais e ele passa a ter um dever diante de Y a omitir-se de ingressar em programas de abortamento legal. Y, por sua vez, terá um direito estrito em face de X138. Os exemplos são suficientes para ilustrar a disposição de direitos e para compreender sua estrutura analítica à luz dos enunciados deônticos. Percebe-se que o conceito aqui oferecido está bastante neutralizado, pois deixa de lado valorações sobre se um direito é em si mesmo disponível ou não, assim como não apresenta razões para 138 Esse exemplo foi inspirado na obra de McCONNELL, Op. cit. 73 que se considere um direito disponível ou indisponível. O que se pode asseverar até o momento é que, quando um direito for reputado disponível, o titular contará com a possibilidade de enfraquecer, mediante consentimento, uma ou mais posições jurídicas dele decorrentes perante terceiros. Quando um direito for indisponível, esta possibilidade não se apresentará, ou seja, apenas o consentimento do titular não será hábil a alterar posições jurídicas de direito fundamental, não justificando a interferência de terceiros no direito, nem criando novos deveres ou ações ordenadas de mesmo conteúdo para o titular139. Em um primeiro olhar, tende-se a acreditar que o titular de um direito indisponível goza de mais posições jurídicas do que o titular de um disponível. Todavia, não é o que ocorre. Quer se considere a disponibilidade como uma posição advinda do próprio direito, quer como advinda de um direito de liberdade do titular, ela não se fará presente nos casos de indisponibilidade. Assim, quando se impede alguém de dispor de posições subjetivas do seu direito, há eliminação ou não-reconhecimento de posição jurídica, que pode impactar posições subjetivas de direito fundamental. É exatamente o entendimento de que a indisponibilidade pode possuir efeitos colaterais sobre outras posições subjetivas de direito fundamental que dá azo a muitas teorias que a denegam ou a relativizam. É nesse ambiente que se situam, em boa medida, as discussões teóricas e práticas acerca da disposição de direitos fundamentais. É relevante esclarecer que, ao combinar a concepção de disponibilidade ora apresentada com a estrutura do direito subjetivo, tem-se que a posição jurídica para dispor de um direito não advém, conceitualmente, do próprio direito. Para que se injete a posição de disposição no conceito, adentrar-se-ia no plano das razões para se ter direitos e no das finalidades dos direitos fundamentais, o mesmo valendo para a indisponibilidade. Em sendo assim, um direito fundamental como direito subjetivo não será, estruturalmente, nem disponível nem indisponível140. 139 Terrance McConnell posiciona-se em sentido semelhante, porém mais abrangente: “an inalienable right is such that the possessor’s consent does not justify another in infringing that right and that consent does not bring about any new obligations on the possessor. The possessors of inalienable rights lack the normative authority to effect such changes”. McCONNELL, Op. cit., p.19. 140 É o próprio Alexy quem demonstra isso. Ao explicar duas teorias muito difundidas dos direitos subjetivos, a teoria da vontade (Windscheid) e a do interesse (Jhering), Alexy menciona que elas apresentam as razões para se ter direitos e afirma que a teoria da vontade, ao conceber o direito subjetivo como uma esfera de controle do titular, torna a disponibilidade parte constitutiva do direito subjetivo: “El aspecto de la libre elección puede ser referido no sólo a la demanda, es decir, a la imposición del derecho, sino también a la disposición del derecho. […] Desde luego, cuando este aspecto es considerado como constitutivo de los derechos subjetivos, surgen considerables dificultades en el caso 74 1.4 Distinção de figuras afins Nos tópicos imediatamente anteriores, apresentou-se a estrutura dos direitos fundamentais e uma proposta para o conceito de indisponibilidade dos direitos fundamentais. Seguindo a proposta, é importante remarcar as diferenças de outros institutos jurídicos que dela se aproximam, quais sejam: (a) o não-exercício de um direito fundamental; (b) as ablações heterônomas de um direito fundamental; (c) o dano a si e a autocolocação em risco. 1.4.1 Não-exercício do direito fundamental Uma posição subjetiva de direito fundamental admite, em muitas hipóteses, o não-exercício ou um aparente não-exercício. É o que em geral se passa com as liberdades. Como seu objeto é uma alternativa de ação, o titular pode optar pela face negativa, aparentemente não exercendo a posição subjetiva. As liberdades albergam o chamado direito-antítese141. Deste modo, a liberdade estrita de associação envolve a liberdade estrita de não se associar; a liberdade estrita de cultuar uma divindade envolve a de não cultuar, e assim sucessivamente142. É notório que a opção pelo lado negativo da liberdade não implica uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental, uma vez que elas restam intactas em face de terceiros, ou seja, não há enfraquecimento de posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros fundado no consentimento. A possível confusão entre o não-exercício e a disposição de posições subjetivas de direito fundamental advém dos resultados que um ordenamento jurídico poderá prever para alguns direitos que deixam de ser exercidos pelos seus titulares. Há inúmeras ocasiões nas quais o não-exercício fático (real ou aparente) de um direito fundamental dá azo à impossibilidade de o titular voltar a exercê-lo, à perda do direito, de los derechos inalienables”. ALEXY, Teoria de los..., p.180, nota 22 [sem grifos no original]. Como será examinado nos capítulos seguintes, diversos autores também demonstram que a concepção dos direitos subjetivos como vontade (choice/will conception) carrega em si mesma a disponibilidade dos direitos. McCONNELL, Op. cit., p.25-26; BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.48-49; 85 e ss.; WALDRON, Introduction…, p.9-12. 141 A expressão direito antítese foi empregada pela Corte Europeia de Direitos Humanos em decisão sobre a admissibilidade do suicídio assistido. A CEDH negou que o direito à vida possuísse um “direitoantítese”, o direito de morrer. ECHR. Pretty v. United Kingdom. Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Pretty&sessio nid=9332261&skin=hudoc-en. 142 Muitos dos autores consultados salientam essa dessemelhança e a adotam, embora o conceito de disposição que esposem não seja o mesmo aqui exposto. Por exemplo: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional..., p. 424. MIRANDA, Op. cit., p. 358. 75 dentre outras ablações143. São tais ablações disposição de posição subjetiva de direito fundamental? No mais das vezes não, pois o que justifica a ablação não é o consentimento do titular que enfraquece posições subjetivas de direito fundamental. A justificação encontra-se nas razões do enunciado normativo que prevê consequências para a inação do titular, normalmente em razão de outros princípios e direitos concorrentes de outra titularidade. O comportamento do titular contribui para esse resultado, mas sozinho não o justifica. Trata-se, pois, de ablações heterônomas na posição subjetiva de direito fundamental. Entender que tais casos sempre comportam disposição importa em uma interpretação assaz expansiva de consentimento. Nitidamente, o consentimento possui um cunho marcadamente interpretativo, e poderá assumir diversas formas, dentre elas a de atos comissivos e omissivos, lidos como se consentimento fossem. Nessa linha, há situações bem delimitadas em que o não-exercício de uma posição subjetiva de direito fundamental até admite a leitura de ser um consentimento do titular, interpretado como condição necessária e suficiente para uma ablação por terceiros. São os casos fronteiriços que envolvem a interpretação do consentimento. Porém, é um exagero e um equívoco sustentar que sempre que houver não-exercício (aparente ou real) haverá disposição. Só metaforicamente qualquer ato voluntário pode ser interpretado como consentimento144. O estudo dos casos limítrofes e da qualidade dos atos que podem ser interpretados como consentimento é de relevo. Entretanto, escapa aos objetivos dessa tese, pois seu enfoque está no direito à vida, cuja disposição dificilmente será consequência de uma interpretação expansiva do consentimento, como será examinado em pormenor adiante (Capítulo 3). Há, também, certa indeterminação quanto às posições subjetivas de direito fundamental que são de exercício obrigatório e a indisponibilidade. Advinda de enunciados normativos, a compulsoriedade do exercício de posição subjetiva de direito fundamental pode levar a crer que ela é indisponível. Vieira de Andrade, sem confundir uma figura com a outra, menciona que as posições subjetivas de exercício ordenado guardam “indicações de um princípio de indisponibilidade”, exemplificando com o 143 Um exemplo simples são as prescrições e preclusões. A passagem é inspirada em Feinberg, embora não esteja empregada no mesmo contexto. FEINBERG, Joel. Legal paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987, p.4. 144 76 direito dos pais relativamente aos filhos145. Observe-se que o jurista português não referiu que, por ser de exercício ordenado, a posição subjetiva de direito fundamental será indisponível. Ele tão-somente percebeu um indicativo de indisponibilidade. E está certo. Seria um non sequitur sustentar que se uma posição subjetiva de direito fundamental for de exercício ordenado, será indisponível. A disposição de posição subjetiva de direito fundamental de exercício ordenado poderá ser mais difícil, pois, além de enfraquecer a posição em face de terceiros, o titular haverá de excluir a incidência de enunciado normativo que ordena o exercício da posição. Mas não é impossível, tampouco é logicamente incongruente, sustentar que o consentimento do titular possa afastar a ordenação de exercer o direito, uma vez que ele poderá, inclusive, deixar de titularizá-lo146. 1.4.2 Restrição heterônoma do direito Uma das teorias mais em voga atualmente sobre os direitos fundamentais considera-os princípios constitucionais prima facie, sujeitos à colisão horizontal, que será, via de regra, solucionada pelo método da proporcionalidade. Existem variações quanto ao conceito de princípios e também quanto às formas de aplicação da proporcionalidade147. Todavia, de um modo geral há pontos importantes de compartilhamento. Uma das principais bases da teoria está nos escritos de Robert Alexy. Para estabelecer as diferenças entre restrição e disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais serão empregados conceitos alexyanos. A opção pelos estudos de Alexy ficará mais clara no Capítulo 2, quando do exame do direito geral de liberdade. A indagação que norteia este tópico é: é possível sustentar que um titular que dispõe de posições subjetivas de direito fundamental autorrestringe as posições que 145 ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., p.331-335. Terrance McConnell propõe justamente a indagação inversa, que sugere que um direito indisponível é um direito cujo exercício é ordenado (mandatory right). O autor não concorda com a proposição: “an inalienable right may neither be waived or transferred to another by its possessor; but there is nothing about inalienable rights that requires the possessor to exercise them”. O exemplo que ele utiliza, em face do ordenamento jurídico estadunidense, é o direito ao voto, considerado indisponível, porém de exercício não ordenado. No caso brasileiro, o direito é de exercício ordenado. Joel Feinberg, por sua vez, considera que os direitos de exercício ordenado (mandatory rights) são indisponíveis. FEINBERG, Joel. Voluntary euthanasia and the inalienable right to life. The Tanner Lectures on Human Values, 1997. Disponível em: http://www.tannerlectures.utah.edu/lectures/feinberg80.pdf. O mesmo artigo está reproduzido na já citada obra Rights ,justice and the bounds of liberty, que reúne diversos opúsculos de Feinberg. 147 Há também críticas relevantes sobre esta concepção teórica. Porém, em virtude da sua larga adoção na doutrina e na jurisprudência brasileiras, ela será explanada neste e no próximo Capítulo, muito embora não constitua o único veículo de solução proposto no Capítulo final. 146 77 titulariza? Reflexamente, pergunta-se também se é possível que o titular autoviole o seu direito. É possível que um sujeito, ao consentir na disposição, autorrestrinja e/ou autoviole posições jurídicas subjetivas de direito fundamental? Em face dos conceitos alexyanos, as respostas são limpidamente negativas. Para enfrentar as perguntas, é preciso primeiro compreender os conceitos de restrição, configuração e violação de direitos fundamentais no modelo alexyano. Alexy concebe a restrição de forma ampla: “las restriciones de derechos fundamentales son normas que restringen posiciones jusfundamentales prima facie”148. Porém, em seu entender, ela será sempre normativa, isto é, a ação constritiva do direito não é restrição149. Para que seja restrição, a norma deverá ser formal e materialmente constitucional. Se for inconstitucional, tratar-se-á de uma violação. Ilustrar-se-á com casos hipotéticos. Suponha-se que um indivíduo a, um adulto saudável, decida, por razões frívolas – mera diversão, ou uma desilusão amorosa – contratar b para matá-lo (esta hipótese será referida como AB). Esse indivíduo está dispondo de posições jurídicas subjetivas do direito fundamental à vida. Se o legislador impedisse tal contrato, constringiria posições jurídicas subjetivas de direito fundamental de A e de B. Assumindo-se que os enunciados normativos que proíbem o homicídio consentido são formal e materialmente constitucionais, haverá uma restrição às posições jusfundamentalmente protegidas de A e de B, sem que exista uma violação. É importante perceber, porém, como a situação pode mudar de acordo com o contexto. Se um indivíduo C, acometido por uma doença incurável, sofrendo intensamente e em estágio terminal, optasse pela eutanásia, dispondo de posições jurídicas subjetivas do direito à vida ao desobrigar o médico D, pode-se tornar bastante discutível se a proibição do homicídio consentido é uma restrição ou uma violação (hipótese CD)150. Em segundo lugar, faz-se mister compreender a diferença entre restrição e configuração e frisar a opção alexyana por um conceito largo de restrição e um estreito de configuração. A configuração consiste na regulamentação do exercício dos direitos fundamentais. São normas/enunciados normativos que tocam em âmbitos dos direitos fundamentais sem, no entanto, constringi-los. Todavia, a linha que separa uma configuração de uma constrição pode ser bastante tênue. Muitas configurações poderão 148 ALEXY, Teoria de los…, p.272. Em sentido diferente, Jorge Reis Novais, para quem a restrição envolve dois momentos, um normativo e outro fático, operado quando da efetiva intrusão no direito. NOVAIS, Renúncia..., p.318. 150 Infra, Capítulo 2, 2.2.1. 149 78 ser, simultaneamente, ablações nos direitos fundamentais. Por isso, Alexy concebe a configuração de modo estreito, visando a evitar que, sob o epíteto de configuração, ocorra uma fuga do ônus argumentativo exigido para as restrições, ou mesmo uma violação de direitos fundamentais151. Mais uma vez uma hipótese pode ser de valia. Na realização de cirurgia de mudança de sexo, o indivíduo dispõe de posições jurídicas do direito fundamental à integridade física em face da equipe de saúde. Suponha-se que a legislação exija uma série de requisitos para que se efetue a cirurgia, como períodos de espera, laudos médicos, exames psiquiátricos e psicológicos. Tais medidas podem ser consideradas configurações ao direito, uma vez que visam a assegurar a existência mesma da liberdade no ato de disposição. Todavia, sob este mesmo impulso, poderiam ser feitas exigências tão intensas que impediriam o efetivo exercício do direito. A saída alexyana para apreciar essas situações é submeter ao regime de análise das restrições todas as normas que, por um ângulo qualquer, possam ser tomadas como constritivas dos direitos. Ou seja, no exemplo dado, quaisquer que fossem os requisitos, eles seriam tratados como constritivos e, após a devida análise quanto à constitucionalidade, seriam restrições (portanto admissíveis) ou violações (portanto inadmissíveis). Diante do arcabouço conceitual, pergunta-se: a disposição é restrição? Pode ser violação? Em primeiro lugar, no modelo jurídico dos direitos subjetivos, é uma contradição lógica o indivíduo possuir direitos contra si mesmo, ou mesmo deveres para consigo. Em sendo assim, já se mostra incongruente a proposição de autoviolação ou de autorrestrição de posição jurídica subjetiva de direito fundamental152. O assim chamado dano a si – momentos nos quais o indivíduo ataca por si só seus direitos ou os bens por eles protegidos, como no suicídio, – não envolve qualquer restrição ou limitação de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, conforme os conceitos expostos. Em segundo lugar, quanto à disposição, o raciocínio não é tão singelo, mas ainda assim pode-se, com nitidez, perceber a inadequação do emprego dos conceitos de 151 Para muitos autores, Alexy inclusive, a adoção deste pensar exige a chamada teoria externa dos direitos fundamentais, em detrimento da teoria interna. Para uma discussão desses conceitos, ver: BOROWSKI, Martin. La restrición de los derechos fundamentales. Revista Española de Derecho Constitucional. Madrid: a.20, n.59, mayo/ago, 2000, p.29-59. ALEXY, Teoria de los..., p.321 e ss. PEREIRA, Op. cit., p.195 e ss. SILVA, Virgilio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.125 e ss. 152 Isto se passa, evidentemente, no patamar jurídico em uma tese baseada em direitos. Talvez em uma tese baseada em metas ou em deveres tal ideia fosse possível no plano jurídico. No plano exclusivamente moral, há importantes teses que sustentam a existência de deveres para consigo, como, por exemplo, a doutrina da virtude kantiana. 79 restrição e de violação para o ato de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais. Confira-se a linha de pensamento: dispor de posições subjetivas de direito fundamental significa enfraquecer, mediante consentimento, posições – ou posição – subjetivas de direito fundamental em face de terceiros, sejam particulares, seja o Estado, permitindo-lhes agir ou omitir-se de agir de modo que não poderiam se não houvesse o consentimento. O consentimento é figura chave. O direito indisponível é aquele para o qual o consentimento sozinho não é hábil a justificar procedimentalmente a conduta do sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental (i.e, apenas o consentimento é insuficiente). Por via inversa, disponível é o direito para o qual o consentimento do titular é suficiente a justificar procedimentalmente a conduta do sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental. Então, quando o titular dispõe de uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental opera-se uma restrição (em termos alexyanos)? Sabe-se que haverá um enfraquecimento de posição jurídica de direito fundamental em face de terceiros quando da disposição. Ou, seja, há uma diminuição no alcance do direito. Neste prisma, há muita similitude com o conceito de restrição. Segundo o conceito de restrição forjado por Alexy, a ação constritiva de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental não é restrição. A restrição será sempre normativa. O consentimento do titular, no ato da disposição, pode ser compreendido como normativo, especialmente quando estiver em causa uma competência. Desse modo, o consentimento seria a compressão/ablação normativa da posição jurídica subjetiva de direito fundamental, in abstracto ou in concreto. Todavia, há um ponto crucial aqui. Quando trata do tema das restrições de direitos fundamentais e quando constrói o modelo da ponderação, Alexy tem em vista a normatização estatal, isto é, a compressão do direito provinda de um ato estatal, não de um ato do próprio titular do direito. Se se entender que haverá restrição do direito em virtude da disposição, ter-se-ia que aplicar o modelo alexyano em sua completude, ou seja, o ato de disposição teria que ser apreciado à luz das leis de colisão e de ponderação, desenhadas inicialmente para o apreço de ablações estatais dos direitos fundamentais153. 153 Infra, Capítulo 3. 80 Na disposição, quer em face do Estado, quer em face de particulares154, a relação jurídica que se estabelece é completamente distinta, sendo aplicáveis, a cada uma delas, diferentes limites e controles. Mal comparando, pode-se dizer que tratar o ato de disposição de modo idêntico à restrição seria o mesmo que tratar de modo idêntico as relações de direito fundamental entre Estado e o indivíduo e aquelas que se estabelecem entre particulares. A restrição de direitos fundamentais é, no molde de Alexy, heterônoma. Já a disposição é autônoma. Isso justifica plenamente diferenciá-las. Para relações tão diferentes, métodos diferentes de análise. Exigir de um indivíduo que somente disponha de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental que titulariza se seu ato atender à necessidade, à adequação e à proporcionalidade em sentido estrito significa igualá-lo à figura do Estado, que, de regra, não é titular do direito geral de liberdade e de outros direitos fundamentais do modo como são os particulares. Poder-se-ia exigir do sujeito que seus fins, com a disposição, fossem constitucionalmente determinados? Claro que não. Uma hipótese antes ventilada será útil. Cientes de que a casa é o asilo inviolável do indivíduo, se não houver flagrante delito nem situação de emergência, não poderá um policial adentrar em uma casa. Poderá fazê-lo sob duas condições alternativas: (a) autorização judicial; (b) consentimento do morador. A autorização judicial, nesse caso, é uma restrição de direito fundamental e, para que seja válida, há que seguir uma série de requisitos e padrões, determinados pelo sistema jurídico. Mas se houver consentimento? Poderá haver requisitos, como capacidade, inexistência de coação, ausência de fraude, simulação, conhecimento das consequências, etc.. Mas tais requisitos não serão os mesmos que se empregam para a autorização judicial, pois são relações distintas e também a justificação da interferência no direito é diversa. Além disso, está embutida na própria ideia de restrição a constitucionalidade do ato. Haverá restrição se for constitucional. Haverá violação se for inconstitucional. Estender de tal forma aos atos de particulares a questão da constitucionalidade significaria ruir com os sistemas de controle de constitucionalidade, pois qualquer caso envolvendo direitos fundamentais tornar-se-ia um problema constitucional, como uma lesão corporal ou um homicídio. Ocorre a alguém sustentar que um homicida agiu inconstitucionalmente? Não. 154 Ver, no Capítulo 3, as distinções da disposição nas relações entre particulares e nas relações entre indivíduo e Estado. 81 Pelos motivos expostos, entende-se que, diante da construção teórica hegemônica, convém tratar a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental como figura distinta da restrição de direitos fundamentais. Acredita-se que um termo adequado poderia ser autolimitação de posições jurídicas de direito fundamental155. Mas quais são as diferenças determinantes entre autolimitação, restrição? Bem, a restrição é heterônoma, ou seja, sua justificação não provém de ato do titular das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental atingidas. A autolimitação é autônoma, ou seja, sua justificação reside em ato do próprio titular das posições jurídicas subjetivas de direito fundamental atingidas. Na restrição, a justificação é normalmente substantiva, ou seja, são direitos e/ou princípios colidentes que prevalecem sobre as posições restringidas. Em certas hipóteses, poderá existir combinação de justificação substantiva com procedimental, porém o fundo é efetivamente substantivo. Na autolimitação, a justificação reside no consentimento e é procedimental. É necessário considerar a sério tais diferenças, pois pode ser tentador justificar e apreciar como autolimitação ablações que são, na realidade, heterônomas. É que o se dá, por exemplo, com crianças. É regra corrente que seus pais ou responsáveis legais decidem e consentem quanto à ablação de uma ou algumas posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais que as crianças titularizam. O que se tem aqui? Autolimitação, uma vez que há consentimento? Não. Há heteronomia e provavelmente restrição, haja vista ter origem no consentimento de terceiro e não do titular das posições jurídicas subjetivas. Para que exista autolimitação é fulcral que o consentimento provenha do titular, do exercício de suas próprias posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais. É preciso, pois, que o titular seja um sujeito do consentimento. Incluir na autolimitação consentimentos de terceiros pode significar, muitas vezes, recorrer a ficções156. Diz-se no mais das vezes porque há casos de autolimitação que podem ser oriundos do consentimento de terceiro, mas estas são situações nas quais o titular emitiu um consentimento permitindo que o terceiro assim agisse. Exemplo simples é o caso do mandato. Mais complexos e muito associados à temática da tese, são os testamentos 155 A palavra é usada, de modo parecido, por José Carlos Vieira de Andrade. No entanto, o jurista não adere às categorias alexyanas aqui apresentadas, filiando-se, embora não integralmente, à teoria interna dos direitos fundamentais. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.331-333. 156 Infra, Capítulo 3. 82 vitais e as diretrizes antecipadas, documentos nos quais o titular das posições jurídicas subjetivas permite que terceiro por ele indicado tome decisões, inclusive de autolimitação157. Do exposto se conclui que a disposição de posição jurídica subjetiva de direito fundamental não é sinônimo de restrição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Como será visto adiante (Capítulo 3), a proibição da disposição, por ato estatal, é que deve ser tratada como restrição ou violação de direitos fundamentais. O enunciado normativo estatal que proibir a disposição ou que a regular haverá de ser apreciado segundo o método de exame das restrições. Com isso não se quer dizer, sobremaneira, que todo e qualquer ato de disposição de posições jurídicas de direito fundamental deva ser permitido. Haverá inúmeros casos em que a proibição se mostrará uma restrição e, portanto, acorde à Constituição. Haverá inúmeros casos em que a exigência de condições e requisitos, por vezes bastante fortes, mostrar-se-á uma restrição e, portanto, constitucional. Todavia, haverá também inúmeros casos em que a proibição de dispor poderá ser uma violação de direitos e, portanto, inconstitucional. 1.4.3 O dano a si e a autocolocação em risco A esta altura, a diferença entre a disposição e o dano a si já deve estar clara. A disposição de posições subjetivas de direito fundamental é sempre intersubjetiva. O dano a si não. Ele ocorre quando um indivíduo, sozinho e sem auxilílio de terceiros, comete atos em relação a si que, se realizados por terceiros, seriam considerados dano ou interferências indevidas em seus direitos. É o caso da autoflagelação. Se um indivíduo, sozinho e sem auxílio de terceiros, autoflagelar-se, não terá disposto de posições subjetivas de direitos fundamentais. Do mesmo modo, se uma pessoa comete suicídio, sozinha e sem qualquer auxílio ou instigação por terceiro, não dispõe de posições subjetivas do direito fundamental à vida, porquanto não desobriga qualquer pessoa (nem o Estado) mediante seu consentimento, apenas destrói o bem jurídico protegido. Por outro lado, se uma pessoa permitir, mediante consentimento, que um terceiro realize o ato de matá-la (e.g., eutanásia), disporá de posições jurídicas do seu direito fundamental à vida, pois o consentimento visou a desobrigar terceiro e a enfraquecer posições subjetivas de direito fundamental. 157 Infra, Capítulo 3, item 3.2. Capítulo 4. 83 O mesmo vale para a autocolocação em risco. Situações que envolvem apenas uma parte – o titular da posição jurídica de direito fundamental - sem movimentar com o outro sujeito da relação, não são atos de disposição, constituem autocolocação em risco. É o caso de uma pessoa que, despreparada e sem equipamentos necessários, dedide atravessar uma corredeira, ou nadar em águas muito perigosas. É um caso de autocolocação em risco que não envolve disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Há algumas situações de dano a si e de autocolocação em risco que podem ensejar dúvidas quanto à presença de disposição. São aqueles que envolvem mais de uma parte. Por exemplo, no suicídio assistido genuinamente consentido, há disposição, muito embora quem realize o ato final seja o titular do direito. Mais controversos são os casos em que o titular do direito consente com o risco, como nos esportes radicais. Neste aspecto, é necessária uma análise individualizada do caso, para que se perceba a presença ou não de disposição. 84 2. (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE JUSTIFICAÇÃO Como sempre acontecia nesse horário, Kiríllov estava sentado em seu divã de couro e tomando chá. Não se soergueu ao encontro dos recém-chegados, levantou-se empinado e olhou inquieto para eles. - Você não se enganou – disse Piotr Stiepánovitch –, vim aqui para tratar daquilo. - É hoje? - Não, não, é amanhã... Mais ou menos nesse horário. Sentou-se apressadamente à mesa, observando com certa intranquilidade o inquieto Kiríllov. O outro, aliás, já se acalmara e recobrara o aspecto de sempre. - Veja, esse é um dos que continuam não acreditando. Você não se zanga por eu ter trazido Lipútin? - Hoje não me zango, mas amanhã quero estar sozinho. - Mas não antes da minha chegada, e por isso na minha presença. - Eu queria fazê-lo sem a sua presença. - Você está lembrado de que prometeu escrever e assinar tudo o que eu ditasse? - Para mim é indiferente. Mas agora, vai se demorar? (…). - Isso está me cheirando a misticismo; que espécie de gente são vocês todos só o diabo sabe. - Stavróguin foi embora? Perguntou Kiríllov. - Foi. - Fez bem. Piotr Stiepánovitch esboçou um olhar chamejante, mas se conteve. - Para mim é indiferente o que você pensa, contanto que cada um mantenha a sua palavra. - Eu mantenho a minha palavra. - Aliás, sempre estive certo de que você cumpriria o seu dever como homem independente e progressista. -Já você é ridículo. Que seja, fico muito contente em fazer rir. Fico sempre contente quando posso servir. - Você está querendo muito que eu meta uma bala na cabeça e teme que de repente não o faça? - Quer dizer, veja, você mesmo ligou o seu plano às nossas ações. Contando com o seu plano, nós já fizemos alguma coisa, de maneira que você já não pode desistir de jeito nenhum porque iria nos lograr. - Direito vocês não têm nenhum. - Compreendo, compreendo, a vontade é toda sua e nós não somos nada, contanto apenas que essa sua vontade se cumpra plenamente. - E eu devo assumir todas as suas torpezas? - Escute, Kiríllov, você não estará acovardando? - Não estou acovardado. - É que você está perguntando muito. - Você vai sair logo? - Outra vez perguntando? Kiríllov o examinou com desdém. - Pois veja – continuou Piotr Stiepánovitch, que ia ficando cada vez mais e mais zangado e preocupado e não encontrava o devido tom – você quer que eu vá embora para ficar só, para se concentrar; mas tudo isso são sinais perigosos para você mesmo, para você em primeiro lugar. Quer pensar muito. Acho que melhor não seria pensar, mas tratar de fazer. E, palavra, você me preocupa. - Só uma coisa me enoja; na hora H ter ao meu lado um canalha como vocêDHKA 158 DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os demônios. São Paulo: 34, 2004, p.540-542 [sem grifos no original]. 85 A pesquisa doutrinária e jurisprudencial elaborada no primeiro Capítulo demonstrou que o conceito de indisponibilidade dos direitos fundamentais é multifacetado. O emprego da expressão direitos indisponíveis é bastante variado e as consequências jurídicas dela extraídas são tão díspares que a transformam em um conceito demasiadamente nebuloso, quase vazio. Pôde-se notar que, em certas ocasiões, a indisponibilidade dos direitos fundamentais é pensada em um patamar normativo; noutras, em um patamar descritivo, como um componente conceitual e distintivo dos direitos fundamentais. Apesar dos diferentes conceitos, usos e resultados, foi possível delinear uma leve tendência doutrinário-jurisprudencial no Brasil, no sentido de que a indisponibilidade é um elemento normativo, atribuído a algumas posições subjetivas de direitos, os quais, por isso, não podem ser negativamente impactados por comportamentos do titular. Em razão da fragilidade da tendência, bem como por conta das causas das diferenças teóricas e jurisprudenciais, foi necessário investigar a estrutura dos direitos fundamentais e, a seguir, propor um conceito de indisponibilidade. O exame estrutural dos direitos fundamentais levou à exclusão de diversas hipóteses, esclarecendo pontos básicos, como a necessária presença de sujeito passivo na relação jurídica de direito fundamental, e, portanto, na disposição. Ao final, entendeu-se que a disposição de direitos fundamentais significa enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado, quer sejam particulares, permitindo-lhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. O consentimento é, pois, a chave da disposição e atua como justificação procedimental para o comportamento daquele que era o sujeito passivo da relação jurídica de direito fundamental. Argumentou-se que a disposição de posições subjetivas de direito fundamental é figura jurídica distinta do não-exercício de posição jurídica de direito fundamental, da restrição heterônoma, do dano a si e da autocolocação em risco. Acredita-se que é inegável a utilidade do estudo da estrutura de um direito fundamental para o entendimento do conceito de disposição. Porém, a dimensão estrutural não esgota o fenômeno dos direitos fundamentais, sob pena de admitir-se qualquer conteúdo à relação jurídica de direito fundamental. Ou seja, a dimensão 86 analítico-estrutural carece de um arcabouço axiológico, de um substrato de justificação que ao menos exclua certas hipóteses159. Tomando a literatura como um manancial de ilustrações, veja-se o excerto supratranscrito da obra Os demônios, de Dostoiévski. Kiríllov, uma personagem que nutre ideias que antecipam um niilismo nietzschiano e acredita que um grande homem, o novo homem, apenas surgirá quando a humanidade perder o medo da morte, pretende provar os pensamentos que desenvolveu a partir do próprio suicídio. Porém, alia seus planos a um grupo ideológico, que inclui o suicídio de Kiríllov aos seus itinerários políticos. Na passagem transcrita, o perverso líder do grupo procura cobrar de Kiríllov a promessa feita, ao que Kiríllov responde: “direito vocês não têm nenhum”. Ao dizer isso, a personagem mostra que há certas relações que, ainda que possam ser expressas estruturalmente como direito-dever, não são reconhecidas como direitos, pois para sua existência é preciso algo mais, alguma substância que não se encontra presente no compromisso de matar-se e de assumir as vilanias de outras pessoas. Ao seu olhar (corretamente, acrescente-se), simplesmente não há qualquer direito ou dever nessa relação. Embora a ideia da estrutura de um direito fundamental não tenha sido formulada com o intento de coadunar-se a uma determinada leitura filosófica do direito, ela pode servir ao mais arraigado e estreito positivismo160, que distancia a relação entre o direito 159 Rowan Cruft menciona, com olhar crítico, o fato de a tese hohfeldiana advogar, ou pelo menos aproximar-se com facilidade daquelas que advogam a “value independence of rights”. Por isso, ela seria demasiadamente inclusiva, aceitando como direitos em sentido amplo e estrito relações com conteúdo que teorias contemporâneas não poderiam aceitar, como, por exemplo, o direito estrito de escravizar alguém. Para o autor, direitos devem possuir valor para seus titulares, ou seja, seu conceito deve encampar elementos axiológicos ausentes na tese hohfeldiana. A crítica de Cruft não pode ser estendida de plano aos estudos de Alexy, uma vez que o autor germânico considera o direito como um caso especial da moralidade, e labuta a reaproximação discursiva, que se pode cunhar de pós-positivista, do direito e da moral. Mas é bom lembrar que uma das críticas que Alexy vem enfrentando é justamente seu excessivo formalismo, que permite aberturas na porta corta fogo representada pelos direitos fundamentais. CRUFT, Rowan. Rights: beyond interest theory and will theory? Law and philosophy, The Netherlands: Kluver Academic, n. 23, p.347-397, 2004. Consultar também: ALEXY, Robert. The special case thesis. Ratio Júris, v.12, n.4, p.374-384, Dec. 1999; HABERMAS, Jürgen. A short reply. Ratio Júris, v.12, n.4, p.445-453, Dec. 1999. No Brasil, é imprescindível a leitura, embora não diretamente associada à estrutura dos direitos fundamentais de OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade e jurisdição: a compreensão procedimentalista do direito em Jürgen Habermas. Florianópolis, 2006. Tese (Doutorado em Direito) – CCJ, UFSC. A tese está no banco de teses da CAPES, gentilmente disponibilizada pelo autor em domínio público. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do? select_action=&co_obra=42980. 160 Não é pretensão, aqui, discutir o positivismo jurídico. Entretanto, faz-se necessário referir que não raras vezes o positivismo é apresentado em versões menos sofisticadas, as quais se afastam bastante das teses formuladas por autores como John Austin, Hans Kelsen e H.L.A. Hart. O positivismo e seus expoentes qualificados não merecem uma leitura superficial e nem preconceituosa, tampouco podem ser visualizados somente à sombra de práticas legalistas autodenominadas positivismo jurídico. É por esta 87 objetivo e sua interpretação de maiores e mais profundas conexões com um ambiente moral. É por este motivo que, neste Capítulo, serão exploradas as razões justificatórias da disponibilidade e da indisponibilidade dos direitos fundamentais, desenhando o elo entre o ambiente moral e o direito. Será feito um inventário das teses de justificação da disponibilidade e da indisponibilidade (prima facie ou definitiva) dos direitos fundamentais. Nem todas as teses que serão descritas pertencem à mesma linha teórica, tampouco são entre si compatíveis. À medida que elas forem expostas, as opções teóricas da tese serão argumentadas e bem demarcadas. Na literatura pesquisada, dois autores buscaram elaborar um rol de razões para a disponibilidade e/ou a indisponibilidade dos direitos fundamentais: Terrance McConnell e Jorge Reis Novais161. Com apoio nesses estudos, tanto quanto em outros elementos levantados por esta pesquisadora, serão trabalhadas as seguintes razões: (a) as diferentes concepções de direito subjetivo; (b) a extensão do direito de liberdade; (c) o paternalismo jurídico e o princípio liberal do dano; (d) a dignidade humana. 2.1 Concepções de direito subjetivo: as teorias da vontade e do interesse Os direitos fundamentais possuem duas dimensões, uma subjetiva e uma objetiva. Ficou patente que disposição se refere à dimensão subjetiva, na qual os direitos fundamentais são concebidos como direitos subjetivos em sentido amplo e encampam um feixe de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. A análise da estrutura razão que foi empregado o adjetivo estreito ao mencionar o positivismo, para reconduzir justamente àquelas releituras que se apegam apenas aos defeitos teóricos (por vezes sequer existentes em seus expoentes) ou a práticas históricas revestidas de roupagem positivista. Ver: KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991; KELSEN, Hans. O que é justiça? São Paulo: Martins Fontes, 1998; HART, H.L.A. O conceito de direito. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1994; HART, H.L.A. Law, liberty, and morality. Stanford: Stanford University, 2007. 161 Terrance McConnell apresenta e discute dois grupos de teses, uma no plano conceitual e as demais no plano normativo. A conceitual refere-se à concepção de direito subjetivo. Quanto às normativas, são as seguintes: (a) o paternalismo jurídico; (b) certas visões utilitaristas (utilitarismo de regra); (c) dignidade da pessoa humana ao ensejo de uma determinada leitura kantiana; (d) o contratualismo clássico, inspirador das primeiras Declarações modernas de Direitos; (e) a doutrina volenti non fit injuria; (f) a existência de deveres para consigo. Jorge Reis Novais enuncia e examina as seguintes teses: (a) conceito, titularidade e características dos direitos fundamentais; (b) o paternalismo estatal; (c) a concepção de liberdade; (d) o contratualismo clássico; (e) a dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Desde já é preciso dizer que McConnell procura justificar a indisponibilidade (prima facie) de alguns direitos fundamentais, especialmente do direito à vida, de modo não paternalista. Já Novais parte da premissa de disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. McConnell, Op. cit., p.23-44; NOVAIS, Renúncia..., p. 285-302. 88 do direito subjetivo é formal e não penetra nas razões para se ter direitos fundamentais, nem nas funções que eles exercem. Por isso, ela permite aclarar e lapidar o conceito de disposição de direitos fundamentais, mas, ao seu ensejo, tais direitos não são, em si mesmos (i.e., conceitualmente), nem disponíveis nem indisponíveis. Ocorre que há concepções de direito subjetivo que não tomam como nota básica a sua estrutura, mas as razões para se ter direitos subjetivos fundamentais e as funções que eles exercem em um sistema jurídico. Essas concepções são, basicamente, a teoria da vontade (will conception ou choice conception) e a teoria do interesse (interest conception)162. Como será pontuado, a adoção de uma ou de outra teoria impacta bastante a questão da disponibilidade dos direitos fundamentais, pois uma delas – a teoria da vontade – já contém, no próprio conceito de direito subjetivo, a resposta para o problema da disponibilidade. Embora a discussão seja profunda e séria, o tópico será breve, uma vez que o CF/88 inclina-se, de um lado, para uma das teorias, em virtude de quem reconhece como titulares de direitos fundamentais, além de as opções do restante da tese, também fundadas na CF/88, penderem a uma teoria mista. Informa-se que as teorias serão explicitadas em sua versão ideal (puras), mas esclarece-se que há inúmeras combinações mistas das teorias163. 2.1.1 Direito subjetivo, teoria da vontade e disposição de direitos fundamentais A concepção dos direitos subjetivos como vontade guarda algum elo com teses do direito natural164. Concebe o direito subjetivo como um espaço de proteção da liberdade do titular. O centro da ideia está no controle que o titular exerce sobre os seus direitos e as relações correlatas, “o direito subjetivo como manifestação da postestade de vontade do indivíduo”165, ou, nas palavras de Alexy, “la teoría de la voluntad considera como central el control del titular del derecho sobre la posición que le es conferida por una norma e que se expresa, entre otras cosas, en la autorización para demandar”166. Nesse sentido, os direitos subjetivos representam uma vantagem para 162 Utilizou-se o termo vontade por ser o mais corrente em língua portuguesa e nas línguas latinas para denominar a teoria. Todavia, a denominação usada por McConnell, choice conception, parece mais acurada, o que levaria à teoria da escolha. 163 JELLINEK, Georg. Sistema dei Diritti Pubblici Subbiettivi. Milano: Società Edittrice Libraria, 1912. p.46 e ss. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss, principalmente as notas n.20 e 21. 164 “La prima dottrina si riannoda alla vechia teorica del dirittto naturale, che concepiva il diritto subbiettivo come libertà” JELLINEK, Op. cit., p.46. 165 JELLINEK, Op. cit., p.46. O texto aproxima-se do original, sem ser, propriamente, uma tradução. 166 ALEXY, Terioa de los..., Op. Cit., p.179-180. 89 quem os titulariza, não podendo converter-se em ônus. Quem define o significado de vantagem ou de ônus é o próprio titular. Embora Jellinek refira-se à teoria dos direitos subjetivos como vontade no passado, não são poucos os autores que a ela aderem dos idos de 1970 até os dias atuais. É o caso de H.L.A. Hart, Deryck Beyleveld e Roger Browsword, Dan Brock, Allen Buchanan, Robert Nozick e Baruch Brody167. Na teoria dos direitos subjetivos como vontade, a liberdade ocupa papel central. Destarte, os direitos subjetivos (em sentido amplo) são disponíveis, pois pode o titular enfraquecer as posições subjetivas conforme entenda mais adequado, mediante consentimento genuíno168. Duas preocupações são subjacentes a esta ideia de os direitos subjetivos serem conceitualmente, em virtude das suas funções e razão de ser, disponíveis. A primeira é evitar o paternalismo jurídico e seus institutos afins. Os direitos subjetivos são então vistos como “proteção não-paternalista dos interesses dos indivíduos (…) e proteção não-paternalista contra o paternalismo”169. A segunda é evitar que os direitos subjetivos possam ser convertidos em ônus para os seus titulares, atuando de forma semelhante aos deveres. Portanto, a adoção da teoria dos direitos subjetivos como vontade traz em si a noção de disponibilidade dos direitos fundamentais. McConnell, cujo propósito em seu estudo é justamente sustentar a indisponibilidade das posições subjetivas do direito estrito à vida, assume o ônus da argumentação e trabalha à luz da teoria da vontade. Ele acredita que, se conseguir demonstrar que um direito estrito pode ser indisponível no marco da concepção voluntarista dos direitos subjetivos, a proposição será aceitável, com mais facilidade ainda, por aqueles que aderem à teoria do interesse. Adianta-se que o autor conclui que, mesmo aderindo à teoria da vontade, o princípio liberal do dano – a proteção de terceiros – é a justificação central para a indisponibilidade geral do direito estrito à vida, pese haver exceções170. Embora assumir este ônus argumentativo seja relevante, como fez McConnell, o sistema constitucional brasileiro traz uma barreira à tese pura dos direitos subjetivos 167 Cf. WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9. HART, H.L.A. Are there any natural rights? In: WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford University, 1984. p.77-90. BEYLEVELD; BROWNSWORD. Consent…, p.85 e ss. Sobre os demais autores, ver: McCONNELL, Inalienable..., Op. cit., p.25. 168 Nesse sentido: McCONNELL, Inalienable..., p.24 e ss. ALEXY, Terioa de los..., Op. cit., p.179-180. 169 Buchanan, apud McCONNELL, Inalienable..., p.25. 170 McCONNELL, Inalienable..., p.24 e ss; p.79-94. 90 como vontade. Uma vez compreendidos como uma esfera de proteção da liberdade do titular, como um espaço sob seu controle, a tese voluntarista restringe a titularidade dos direitos subjetivos somente àqueles que possuem as habilidades da agência, excluindo os indivíduos que não apresentam a plenitude da agência171. Nesse aspecto, estariam excluídos da titularidade dos direitos subjetivos os neonatos, as crianças, muitos adolescentes, pessoas com transtornos mentais severos, senis, entre outros indivíduos ou grupos destituídos das habilidades da agência. Não caberia discutir a titularidade de direitos por animais não-humanos, fetos, embriões, indivíduos já falecidos172. A CF/88 claramente confere a titularidade de direitos subjetivos a muitos indivíduos que não possuem a chamada capacidade de exercício. Conta, inclusive, com espaço destinado diretamente às crianças e aos adolescentes. O Código Civil e o ECA seguem a mesma linha173. Desta feita, difícil é aderir unicamente à teoria dos direitos subjetivos como vontade no ordenamento brasileiro. Porém, isso não quer dizer que a adesão estará na teoria do interesse, tampouco que se escapa ao ônus de argumentação exigido pela proposta conceitual da teoria dos direitos subjetivos como vontade. Acredita-se que outros dois caminhos argumentativos seguidos na tese (adiante aclarados) suprem a lacuna exigida aqui: (a) a adoção de um direito geral de liberdade; (b) a aceitação do paternalismo jurídico e seus institutos afins quanto a atos autorreferentes em hipóteses limitadas e justificadas. 2.1.2 Direito subjetivo, teoria do interesse e disposição de direitos fundamentais A segunda concepção sobre os direitos subjetivos, conforme suas funções e razão de ser em um sistema jurídico, entende que eles são a proteção a interesses considerados juridicamente relevantes. Desde já se nota que a titularidade de direitos não se confina àqueles indivíduos que apresentam as habilidades da agência, mas se estende a todos aqueles seres que possuam interesses juridicamente relevantes. Assim, neonatos, crianças, embriões, fetos, animais não-humanos, pessoas com transtornos 171 Sobre a agência, ver infra, Capítulo 3, item 3.2.1. A respeito: WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD. Consent…, p.85 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD. Human dignity…, Op. cit., p.81. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss. 173 No sistema internacional de proteção dos direitos humanos, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword afirmam que a tese adotada é a voluntarista. Para os autores, os recentes documentos conferindo direitos às crianças e a pessoas com transtornos mentais não maculam a linha mestra, a teoria dos direitos subjetivos como vontade. Não se pode confundir, de modo algum, o fato de os adeptos da teoria da vontade não considerarem os indivíduos que não apresentam as habilidades da agência titulares de direitos com descaso a tais sujeitos. Na teoria, eles são vistos como destinatários de proteção. BEYLEVELD; BROWNSWORD. Human dignity…, p.80 e ss. 172 91 mentais severos e indivíduos com agência plena podem titularizar direitos, desde que se reconheça que possuem interesses juridicamente relevantes. A concepção é associada aos escritos de Jeremy Bentham. Mais recentemente, há nomes de relevo que a subscrevem, como Joel Feinberg, Joseph Raz e Neil McCormick174. Em comum com a teoria dos direitos subjetivos como vontade, a teoria do interesse compreende que os direitos subjetivos, especialmente os aqui chamados estritos, lançam uma constrição comportamental (comissiva ou omissiva) nos seus destinatários175. A diferença está em que não há centralidade da liberdade na definição dos direitos subjetivos. São os interesses que compõem os direitos, definidos conforme as peculiaridades de cada sistema jurídico (e, também, com o que se reconhece como direitos morais em um dado sistema). A liberdade normalmente faz parte do complexo de interesses protegidos pelos direitos, assim como elementos de bem-estar176. Nessa concepção, o titular do direito é “beneficiário de um grupo de deveres associados ao direito estrito”177. Segundo Waldron, a teoria do interesse amolda-se mais facilmente ao reconhecimento dos chamados direitos sociais178. À luz da teoria dos direitos subjetivos como interesse, os direitos subjetivos não são conceitualmente disponíveis, pois não significam o controle do titular sobre as posições subjetivas e os constranguimentos comportamentais a elas correlatas. Porém, daí não se retira que os direitos subjetivos sejam conceitualmente indisponíveis179. A disponibilidade ou indisponibilidade de um direito subjetivo e de suas posições, na teoria do interesse, será normativa. Ainda que a adesão esteja na teoria do interesse, contraposta à da vontade, ou nas mistas, parece inegável que o elemento de liberdade presente na teoria da vontade é, atualmente, densamente protegido constitucionalmente como um interesse. Na 174 Cf. WALDRON, Introduction. Op. cit., p.9. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.179 e ss, principalmente as notas n.20 e 21. FEINBERG, Joel. Rights, justice and the bounds of liberty: essays in social philosophy. Princeton: Princeton University, 1980. MAcCORMICK, Neil. Rights in legislation. In: HACKER, P.M.S.; RAZ, Raz (eds.). Law, Morality and Society: Essays in Honour of HLA Hart. Oxford: Clarendon Press, 189 e ss. 175 McCONNELL, Inalienable..., p.28. 176 Jellineck menciona que a vontade seria um meio, não uma finalidade do indivíduo ou do ordenamento jurídico. As finalidades seriam os interesses, para os quais a vontade é meio. JELLINEK, Op. cit., p.49. 177 McCONNELL, Inalienable..., p.28. 178 WALDRON, Introduction. Op. cit., p.11. 179 McCONNELL, Inalienable..., p.28-29. O autor situa as teorias dos direitos subjetivos como vontade e como interesse no argumento conceitual (em contraposição à normativa) sobre a (in)disponibilidade dos direitos fundamentais. Porém, neste ponto, crê-se que a teoria do interesse – conceitual, como ele chama – não traz consigo a construção para a indisponibilidade dos direitos, embora ela pareça mais fácil de construir dentro da teoria do interesse. 92 simplicação de McConnell, “o que quer que conte como um direito na teoria da escolha, contará como tal na teoria do interesse”180. Com será visto adiante, adotar-se-á a posição de que os direitos subjetivos fundamentais encontram seu lastro último na dignidade humana, em especial na vertente autonomista, o que torna a tese mais próxima da teoria dos direitos subjetivos como vontade. Porém, modulações são feitas, exatamente em razão da titularidade dos direitos segundo a CF/88, bem como do caráter do constitucionalismo brasileiro (infra, discussão sobre a dignidade humana e a disposição de direitos fundamentais). 2.2 A extensão do direito de liberdade e seus reflexos sobre a disposição de direitos fundamentais São jusfundamentais apenas algumas liberdades básicas, ou existe um direito (fundamental) geral de liberdade? Esta pergunta vem intrigando pesquisadores e estudiosos do Direito. Não se trata de uma indagação vazia, meramente teórica. Sua resposta possui irradiações importantes na interpretação e na aplicação dos direitos fundamentais, em cujas teorias podem, atualmente, ser identificados, pelo menos, dois polos teóricos no assunto. Um que aceita e defende a noção de que são jusfundamentais apenas algumas liberdades reputadas básicas, negando, por suas consequências, a adoção de um direito geral de liberdade. Outro que, ao contrário, defende um direito geral de liberdade, em razão, especialmente, de deficiências na primeira concepção. Aderir a uma ou outra postura “tiene consecuencias de gran alcance”181. No que interessa ao tema da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, tais consequências são claras e diretas. No Capítulo 1, ficou explícito que a disposição pode possuir um caráter complexo, por representar justamente o exercício de direitos do titular, normalmente direitos de liberdade. Uma vez adotada a tese do direito geral de liberdade, a disposição será sempre um ato complexo, pois o direito geral de liberdade sempre pesará como argumento a seu favor. De outro ângulo, adotada a tese das liberdades básicas, nem todo ato de disposição de direitos fundamentais representará um exercício de direitos fundamentais, seu caráter complexo dependerá justamente da presença de uma liberdade básica. Os pontos de partida para o exame da disposição são distintos em cada tese. Na primeira, as posições subjetivas de direitos fundamentais 180 181 McCONNELL, Inalienable..., p.29. ALEXY, Teoria de los..., p.333. 93 serão consideradas ab initio disponíveis, ao passo que, na segunda, será necessário aferir a presença de uma liberdade básica no ato de disposição. Para desenvolver melhor o assunto, serão utilizados dois autores que possuem posicionamentos diversos sobre a extensão da jusfundamentalidade do direito de liberdade: Robert Alexy e Ronald Dworkin. A escolha se deve à grande difusão dos seus pensamentos no Brasil, a ponto de serem eles, ao lado de John Rawls, os estudiosos mencionados quando o assunto está em pauta182. Serão também referidos os autores nacionais que seguem o caminho de um ou de outro e suas razões para tanto. Depois desse exame, pautado nos termos empregados pelos autores estudados, serão feitos alguns comentários sobre a terminologia direito geral de liberdade e liberdades básicas, para coaduná-los com os acordos semânticos travados no Capítulo 1. 2.2.1 O direito geral de liberdade: direitos fundamentais disponíveis prima facie A existência de um direito geral de liberdade é sustentada por Robert Alexy, com apoio no texto constitucional alemão e na jurisprudência do Tribunal Constitucional. Como ele menciona, aderir à existência de um direito geral de liberdade de significa duas coisas: Por una parte, a cada cual le está permitido prima facie – es decir, en caso que no intervengan restriciones – hacer y omitir lo que quiera (norma permisiva). Por otra, cada cual tiene prima facie, es decir, en la medida que no intervegan restriciones, un derecho frente al Estado a que este no impida sus aciones y omisiones, es decir, no intervenga en ellas (norma de derechos)183. 182 São teorias que almejam completude – a aceitação do direito geral de liberdade ou não é apenas um elemento de cada uma. Em Alexy, o direito geral de liberdade anda lado a lado à adoção da teoria externa dos direitos fundamentais, da compreensão das normas como regras e princípios, bem como da metodologia constitucionalmente adequada para solucionar antinomias e colisões horizontais. Já em Dworkin, a concepção dos direitos como trunfos, a distinção entre princípios e regras – diversa da de Alexy –, a diferenciação entre argumentos de política e argumentos de princípio e a metodologia adequada para a apreciação da concorrência entre direitos estão imbricadas à negação do direito geral de liberdade. Esta pesquisadora fez dois estudos, durante a elaboração da tese, sobre a disponibilidade dos direitos fundamentais em cada um dos autores, que constam como anexos da tese e foram publicados em revistas jurídicas e apresentados em Congressos: MARTEL, Letícia de Campos Velho. São os direitos como trunfos disponíveis? Reflexões à luz da teoria dos direitos de Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Revista de Direito do Estado – RDE, Renovar, v.3, n.10, p.101-124, abril/junho de 2008. A versão resumida foi apresentada no Congresso Anual do CONPEDI de 2007: MARTEL, Letícia de Campos Velho. São os direitos como trunfos disponíveis? Reflexões à luz da teoria dos direitos de Ronald Dworkin. CONPEDI, 2007. Belo Horizonte. Anais do... Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/leticia_de_campos_velho_martel2.pdf. Ver também: MARTEL, Letícia de Campos Velho. São os direitos fundamentais disponíveis? Reflexões à luz da teoria dos direitos de Robert Alexy. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho (Org.). Estudos contemporâneos de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.43-69. 183 ALEXY, Teoria de los..., p.333 e ss. 94 Consequentemente, o suporte fático deste direito é muito amplo. Nele Alexy inclui, ainda, a proteção de situações e de posições jurídicas, pois, quando elas são afetadas, atingem indiretamente a liberdade de ação. Para o autor, aceitar o direito geral de liberdade oferece “mas ventajas que inconvenientes”184. O direito geral de liberdade é formal-material. Por um ângulo, é vazio de conteúdo, por outro, é materialmente determinado por outros princípios materiais em cada caso. Uma das principais consequências do direito geral de liberdade é a exigência de uma razão suficiente para toda a restrição que porventura venha ser lançada sobre ele, por mais ínfima que possa parecer. É muito conhecido o exemplo oferecido por Alexy acerca do direito de alimentar pombos. Para o autor, o direito geral de liberdade encampa, prima facie, a possibilidade de alimentar pombos. Para que o Estado possa restringir esse direito, faz-se necessário arcar com o ônus argumentativo e apresentar razões jurídicas suficientes para justificar sua constrição. É crucial ter em conta que, ao aceitar um direito geral de liberdade, Alexy esposa, correlativamente, um conceito deveras amplo de restrição. O autor argumenta que o direito geral de liberdade é um conceito dotado de alto grau de neutralidade e frisa que aceitá-lo não significa, sobremaneira, conferir primazia ao valor liberdade185. Justamente por esta razão, os tipos de argumentos que podem ser empregados para a restrição do direito geral de liberdade não são apenas outros direitos fundamentais, em um sentido forte (argumentos de princípio, como diria Dworkin), mas outras metas constitucionalmente tuteladas e permissíveis. No Brasil, alguns autores têm sustentado a existência de um direito geral de liberdade, seguindo, com frequência, os passos de Alexy. Esse é o caso, e.g., de Virgílio Afonso da Silva e Jane Reis Gonçalves Pereira186. Segundo Jane Reis, o direito geral de liberdade encontra seu lastro constitucional no art. 5º, caput; no art. 5º, II e no art. 5º, VI. A autora concorda veementemente com os argumentos de Alexy e de Pietro Sanchis acerca da importância de se aceitar um direito geral de liberdade, considerando que ele oferece maior segurança quanto a atos estatais lesivos a direitos fundamentais, por obrigar quem pretende constringi-los a arcar com o ônus argumentativo e também por 184 ALEXY, Teoria de los..., p.335. ALEXY, Teoria de los…, p.366. 186 Luís Roberto Barroso parece aderir à ideia de um direito geral de liberdade, ao referir que a redação do princípio da legalidade na Constituição de 1988 é uma cláusula constitucional genérica de liberdade (art. 5º, II). O constitucionalista, porém, não apoia seus argumentos em Alexy. BARROSO, Luís Roberto. Eficácia e efetividade do direito à liberdade. Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v.2, n.2, p.105, 2001. Disponível em: www.ibdh.org.br/revista_02.asp. 185 95 formar uma redoma protetora em face da exigência de lei em sentido material para restringir direitos fundamentais. Para ela, o direito geral de liberdade é uma “premissa fundamental na solução do problema da restringibilidade dos direitos fundamentais”187. A estudiosa rebate duramente as críticas formuladas ao direito geral de liberdade, a ponto de rotulá-las de inadequadas “aos sistemas constitucionais democráticos”. Aponta, ainda, que propostas como a de Dworkin levariam “à absurda conclusão de que a liberdade sairia sempre perdendo quando contraposta a outros direitos, de modo que equivale a estabelecer uma regra de preferência abstrata em desfavor da liberdade”188. Ademais, a autora sustenta que o direito geral de liberdade não conduz a um individualismo exacerbado, em razão do modo de solução de colisões que o acompanham e do tipo de argumentos que podem ser adotados para restringi-lo. Virgílio Afonso da Silva, por sua vez, entende que o direito geral de liberdade está ligado à noção de regras e de princípios e à concepção ampla do suporte fático dos direitos fundamentais. Para ele, a relação do suporte fático amplo com a restrição atua “como uma ‘construção fundamental na garantia constitucional da liberdade individual contra o poder estatal’”189. A ideia do suporte fático amplo obriga o intérprete a considerar ampliativamente o âmbito de proteção de um direito fundamental, de modo que tudo que possa eventualmente ser a ele reconduzido seja, prima facie, reputado protegido. Assim agindo, o intérprete fica compelido a evitar “exclusões a priori de condutas desse âmbito de proteção” e a arcar com o ônus argumentativo nas hipóteses de constrição de tudo aquilo que recai sob o estendido âmbito de proteção. Com isso, impede-se o deficit de fundamentação e oferece-se “transparência às atividades de intervenção nos direitos fundamentais […]”190. Virgílio Afonso da Silva também recusa, de modo mais temperado que Jane Reis, as teses que contrariam o direito geral de liberdade, sempre com vistas a garantir a inocorrência do deficit de fundamentação191. 187 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op.cit., p.168 e ss. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op.cit., p.172-173, nota n.130. Apesar de, nesta tese, adotar-se a concepção de um direito geral de liberdade e arcar com seu ônus argumentativo, acredita-se que, nesse particular, a crítica da autora em relação à proposta de Ronald Dworkin mostra-se excessiva. 189 SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e a eficácia das normas constitucionais. Rio de Janeiro: Revista de Direito do Estado – RDE, Renovar, v.1, n.4, p.28, out./dez. 2006. 190 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo [...] e a eficácia das normas constitucionais, p.25. 191 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.111-115; 144-161. Enquanto Jane Reis endereça suas críticas a Dworkin, Virgílio Afonso da Silva trabalha com John Rawls, jusfilósofo que não aceita a ideia de um direito geral de liberdade. O professor da USP traz exemplos da jurisprudência brasileira acerca do deficit de fundamentação ocorrido em virtude da consideração de um suporte fático 188 96 Compreendida a noção de um direito geral de liberdade, cumpre indagar qual é o elo entre esse direito e a disponibilidade dos direitos fundamentais. Se, em razão do direito geral de liberdade, o indivíduo possui, prima facie, o direito de não ser impedido de fazer ou de omitir o que quiser, a indisponibilidade de um direito fundamental representa uma constrição no direito geral de liberdade, uma vez que constitui obstáculo à ação de livre disposição por parte do titular, retirando-lhe uma das alternativas. Por mais que a proibição de dispor vise a preservar as posições jurídicas subjetivas de direito fundamental que o titular pretende dispor, não deixa de ser uma constrição no direito geral de liberdade (ou em outros direitos). Nas situações de disposição que envolvem apenas particulares, poderá ser atingida a liberdade geral de ambos os polos, sem prejuízo de haver constrição de outras liberdades especificamente consideradas ou de outros direitos. Virgílio Afonso da Silva é muito claro no tópico, ao tratar da renúncia a direitos fundamentais: [...] é comum que se faça referência à irrenunciabilidade ou à e à inegociabilidade dos direitos fundamentais. Mas por que seriam os direitos fundamentais irrenunciáveis e inegociáveis? Essas características decorrem da estrutura desses direitos? São alguma consequência lógica? São uma convenção? Ou são um mero lugar comum generalizante contra o qual, dada sua consolidação, ninguém se atreve a argumentar? Uma análise um pouco mais profunda poderia, de início, suscitar algumas contradições entre a história e a função primordial dos direitos fundamentais, de um lado, e características como a irrenunciabilidade e a inalienabilidade, de outro. Os direitos fundamentais, junto com a separação de poderes, são conquistas essencialmente liberais e sempre serviram – não somente na sua origem, mas também nos dias atuais – como forma de evitar a ingerência estatal em esferas estritamente individuais. Ora, se os direitos fundamentais são essencialmente direitos de liberdade do cidadão, nada mais coerente que aceitar a liberdade de não exercitá-los, de deles dispor ou de a eles renunciar. Renunciar a direitos fundamentais seria um exercício do direito geral de liberdade, imanente à essência dos direitos fundamentais. Essa é uma posição que, embora aceite algumas ressalvas e limitações e ainda que possa causar desconforto em alguns autores, é perfeitamente restrito para os direitos fundamentais. Além dos exemplos por ele mencionados, pode-se citar a realidade de sua preocupação em diversas decisões tomadas por tribunais brasileiros no tema da liberdade religiosa e a questão dos sabatistas nos concursos públicos e concursos vestibulares. Muitas vezes, os magistrados compreenderam que as regras dos concursos não restringiam qualquer direito dos adeptos das crenças sabatistas, excluindo de plano seus pedidos. A respeito, ver: MARTEL, Letícia de Campos Velho. “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre a liberdade religiosa e a laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira. Brasília: Revista Jurídica, v.9, n.86, ago./set. 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_86/Artigos/LeticiaCampos_Rev86.htm. 97 compatível com fundamentais192. uma teoria liberal acerca dos direitos Em consequência desse pensar, tem-se que os direitos fundamentais são, prima facie, disponíveis, isto é, todo e qualquer ato de disposição de posições jurídicas de direito fundamental representa um exercício de posições jurídicas do direito geral de liberdade (ou de outro direito), sendo sempre um ato complexo. Com o exercício do direito geral de liberdade (ou de outros direitos), há a possibilidade de dispor de posições jurídicas subjetivas dos demais direitos, ou mesmo do direito geral de liberdade193. Quando vislumbrada a tese como um todo – desde a aceitação de um direito geral de liberdade, a divisão das normas constitucionais em regras e princípios, a colisão e a metodologia para solucioná-la – percebe-se que as posições jurídicas de direito fundamental serão prima facie disponíveis no plano normativo e não no conceitual. É nas razões para se exercer direitos que se situam os argumentos que poderão ensejar uma disponibilidade definitiva ou uma indisponibilidade definitiva, uma vez que não se pode confundir a ideia de que os direitos fundamentais são prima facie disponíveis com a impossibilidade de se proibir a disposição. Evidentemente, algumas posições jurídicas subjetivas de direito fundamental poderão ser consideradas indisponíveis. Mas, para isso, impõe-se arcar com o ônus argumentativo e demonstrar que se trata de restrição e não de violação do direito geral de liberdade. Concluiu-se que, em não existindo enunciado normativo constitucional que proíba a disposição de direitos fundamentais, eles serão, por virtude do direito geral de 192 A referência à teoria liberal é feita segundo a classificação de Böckenförde. Virgílio Afonso da Silva não adere plenamente à teoria liberal, mas aceita sua consequência quanto à disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais: “Diante disso, apesar da não-filiação, por razões teóricas e dogmáticas que já ficaram claras ao longo deste trabalho, e serão ainda abordadas no Capítulo seguinte, a uma teoria exclusivamente liberal dos direitos fundamentais, é preciso que se sublinhe, contudo, que um pressuposto de uma das formulações dessa teoria deve ser acatado: direitos fundamentais podem ser, em um grande número de casos e nas condições a serem expostas no Capítulo seguinte, objeto de disposição pela livre vontade de seus titulares”. O marco teórico da tese que ora se apresenta, conforme explicado na introdução, pode ser chamado de liberal; porém, é moderado ou igualitário, de sorte que parece compatível com o que Virgílio Afonso da Silva apresenta como sua opção teórica. Ademais, concorda-se com as razões por ele dadas para não aceitar uma teoria liberal (não a moderada, mas aquela que mais se aproxima do tipo ideal liberal-clássico) no Brasil. SILVA, Virgílio Afonso da, A constitucionalização..., p.163-164 e 167. [itálicos do original. Sem grifos no original]. A expressão tipo ideal é usada por Afonso da Silva e aqui foi aplicada com seu sentido weberiano. 193 É dever ressaltar que Alexy não menciona essa conclusão. Pode-se atribuir isso à expressa menção, na Constituição alemã, à indisponibilidade dos direitos fundamentais. A Constituição brasileira, entretanto, não possui enunciado normativo análogo, o que permite traçar a conclusão da disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais quando do translado das construções teóricas alexyanas. Eis o texto da Constituição alemã: em seu artigo 1º: “1. Com isso, o Povo Alemão declara invioláveis e inalienáveis os direitos da pessoa humana, como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo”. RFA. Lei Fundamental para a República Federal da Alemanha. 23 de maio de 1949. Disponível em: http://www.brasilia.diplo.de/pt/03/Constituicao/art01.html. [sem grifos no original]. 98 liberdade prima facie disponíveis. A indisponibilidade de um direito configurará uma ablação do direito geral de liberdade do titular (ou, em alguns casos, de outros direitos e liberdades) e, dependendo da situação, de direitos de terceiros. Portanto, quando posições jurídicas subjetivas de um direito forem reputadas indisponíveis pelo legislador, pelo executivo, ou pelo órgão judicante, é preciso analisar se essa atuação do Estado significa restrição ou violação de direitos fundamentais. Para tanto, é importante ter em mente a diferença entre restrição e violação formulada por Alexy (e seguida por Jane Reis e Virgílio Afonso da Silva)194. Em suma, a conclusão é singela. Quando for aceita a tese da jusfundamentalidade do direito geral de liberdade em um ordenamento jurídico que não possua enunciado normativo na Constituição estabelecendo a indisponibilidade dos direitos fundamentais, as posições subjetivas de tais direitos serão prima facie disponíveis. A proibição da disposição exigirá do Estado a defesa dos motivos, que deverão ser argumentativamente suficientes para configurar uma restrição a direitos fundamentais. Caso não seja cumprido o ônus argumentativo, a proibição será uma violação e, portanto, inconstitucional. 2.2.2 Liberdades básicas: exercício interpretativo para determinar o ponto de partida Diversamente de Robert Alexy, Ronald Dworkin não aceita a ideia de um direito geral de liberdade. Como é sabido, Dworkin elaborou uma interessante e sofisticada teoria sobre os direitos fundamentais, tratados por ele a partir da metáfora dos “direitos como trunfos”. Segundo o autor, “rights are best understood as trumps over some background justifications for political decisions that states a goal for the community as 195 a whole” . Em linhas gerais, a afirmação significa que uma meta coletiva de uma comunidade (política) não é justificação suficiente para que esta mesma comunidade empregue a coercibilidade estatal para não aplicar ou lesar algum direito-trunfo. O direito-trunfo, quando confrontado com a meta coletiva (argumento de política), vence, 196 via de regra . Quando confrontado com um argumento de princípio, exigirá que, 194 Supra, Capítulo 1, item 1.4.2. DWORKIN, Ronald. Rights as trumps. In: WALDRON, Jeremy. Theories of Rights. Oxford: Oxford University, 1984, p.153. 196 Diz-se via de regra, pois o próprio Dworkin admite que algumas – raras – metas coletivas emergenciais poderão vencer um direito-trunfo, a depender do contexto. É mister salientar essa possibilidade é admitida apenas raramente, em situações nada ordinárias. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.143. DWORKIN, Ronald. O império..., p.231. 195 99 considerados todos os aspectos, se decida qual grupo de argumentos receberá maior 197 peso no caso . Nessa hipótese, haverá um caso difícil, no qual, dentre os direitos abstratos concorrentes, talhar-se-á um direito concreto (de modo não retroativo, segundo Dworkin). Dworkin distingue diversas categorias de direitos. Não é qualquer direito que assume o posto de direito-trunfo. Os direitos legislativos, aqueles criados pelo legislador na formulação de uma determinada política, não possuem este caráter, e poderão ser 198 revistos pelo mesmo legislador . Os direitos-trunfo são aqueles preexistentes, identificados em uma comunidade de princípios – uma comunidade personificada, cujo elo entre as pessoas é a fraternidade e não um mero acidente geográfico ou uma mera convenção. A identificação de tais direitos ocorre com fulcro na ligação substantiva 199 com o seu fundamento, a concepção liberal da igualdade , com exame da distribuição dos direitos (via de regra, os direitos-trunfo não podem ser reconhecidos a um grupo e não a outros), bem como mediante o recurso à tradição, à história institucional e à moralidade comunitária. No caso estadunidense, alguns direitos-trunfo figuram, também, no texto da Constituição. Dworkin não oferece uma lista dos direitos-trunfo, tampouco concebe uma fórmula mecânica que permita a sua identificação. Reconhecer um direito-trunfo é uma tarefa interpretativa, para a qual é imprescindível assumir a 200 comunicação entre a moralidade e o direito . 197 Dworkin distingue os argumentos de política dos argumentos de princípio, informando que, embora eles não esgotem a argumentação política, são seus fundamentos essenciais: “os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo”. Já os argumentos de princípio “justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita o direito de um indivíduo ou de um grupo”. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.131. Em Alexy, essa distinção não aparece. É por isso que se diz que ele adota um conceito amplo de restrição, pois podem justificá-la tanto o que Dworkin denomina argumentos de política, como os argumentos de princípio. Necessário dizer que o conceito de restrição de Alexy não se encontra em Dworkin, cuja proposta para a concorrência entre princípios é diferente. 198 Todavia, é crucial compreender que estes direitos criados por lei devem ser aplicados pelo Poder Judiciário não como uma questão de política, mas como uma questão de princípio, sob pena de ferir-se a igualdade. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.131. DWORKIN, Ronald. O império..., p.266. 199 O igual respeito e consideração é um postulado que Dworkin presume que todos aceitem. É axiomático e dele derivam os direitos particulares: “o governo deve tratar aqueles a quem governa com consideração, isto é, como seres humanos capazes de sofrimento e frustração, e com respeito, isto é, como seres humanos capazes de formar concepções inteligentes sobre o modo como suas vidas devem ser vividas, e de agir de acordo com elas”. A noção de respeito, pela explicação fornecida, possui uma ligação com a liberdade. Porém, não se trata de um direito geral de liberdade, mas de direito a liberdades básicas. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.419-421. Sobre o conceito de axioma, Capítulo 1. 200 Assim como não é tarefa mecânica, a identificação dos direitos-trunfo também não está amparada, segundo Dworkin, em categorias metafísicas: “Os direitos individuais são trunfos políticos que os indivíduos detêm. Os indivíduos têm direitos quando, por alguma razão, um objetivo comum não configura uma justificativa suficiente para negar-lhes aquilo que, enquanto indivíduos, deseja ter ou fazer, 100 De pronto se percebe que um direito-trunfo não se confunde com o conceito de direito fundamental enquanto enunciado normativo positivado ou norma jurídica, como trabalhado por muitos juristas da civil law. Os direitos-trunfo são antes direitos morais, que adentram, pela via interpretativa, no direito, tornando-se vinculantes. Assentam-se na justificação moral, por seu elo com a concepção liberal de igualdade e não se confundem com a positivação. Por esta razão, nesta etapa do trabalho, o recurso à expressão direitos fundamentais confina-se à noção de direitos-trunfo, como concebida em Dworkin, e não se estende a todos os direitos que se encontram positivados como direitos fundamentais, especialmente quando se tem em conta constituições prolixas, como a brasileira. Somente assim torna-se possível discutir a questão da disponibilidade prima facie dos direitos-trunfo sem incorrer em equívocos pelo inadequado emprego terminológico. Tem-se ciência de que Dworkin adotou uma moralidade baseada em direitos e não em metas ou em deveres. O fundamento dos direitos-trunfo é a chamada concepção liberal da igualdade – o igual respeito e consideração – e não a liberdade. O edifício teórico de Dworkin encontra nesse axioma as suas fundações. A titularidade pelos indivíduos de direitos fortes preexistentes – ou seja, que não são produto de uma convenção nem de uma concessão dos poderes instituídos e são resistentes a quaisquer argumentos de metas coletivas e àqueles de princípio que não possuam, tudo considerado, mais força do que eles – derivados do igual respeito e consideração é a pedra fundamental do pensamento de Dworkin. Tais direitos, justamente os trunfos, são as trincheiras protetoras do indivíduo que marcam uma das mais importantes diferenças entre Dworkin e as correntes que ele ataca (formas de convencionalismo e de pragmatismo, o positivismo e o utilitarismo). Destarte, os direitos-trunfo não apenas derivam do igual respeito e consideração, como compõem o seu invólucro protetor. Nas ou quando não há uma justificativa suficiente para lhes impor uma perda ou dano. Sem dúvida, essa caracterização de direito é formal, no sentido de que não indica quais direitos as pessoas têm nem garante de fato que elas tenham algum. Mas não pressupõe nenhuma metafísica especial. Portanto, a teoria defendida nesses ensaios distingue-se das teorias mais antigas que apoiam tal suposição”. E ainda: “Não faz parte de minha teoria afirmar, por exemplo, que existe algum procedimento mecânico para demonstrar quais direitos políticos, preferenciais ou jurídicos um indivíduo possui”. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.XV; XIX. E em passagem de o Império do Direito, afirma: “Na verdade, Hércules vai chegar a essa conclusão a partir da história e prática constitucionais: embora a constituição deixe cada estado livre em questões de política, sujeitos apenas à restrição há pouco descrita, insiste em que cada estado reconheça certos direitos, limitando qualquer justificativa coletiva que venha a utilizar, qualquer ponto de vista que possa ter sobre o interesse geral. A questão interpretativa crucial que se coloca é, então, saber que direitos são esses”. DWORKIN, Ronald. O império..., p.456. 101 palavras de Morrison, “a posse [titularidade] de direitos permite que as pessoas sejam tratadas como iguais”201. Ao estudar a renúncia a direitos fundamentais, Jorge Reis Novais, tomando de empréstimo a categoria direitos-trunfo, procura justificar a disponibilidade prima facie também a partir deste conceito: É que, se a titularidade de um direito fundamental é uma posição jurídica de vantagem do indivíduo em face do Estado, é um “trunfo” nas mãos do indivíduo (DWORKIN), então da própria dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia e da autodeterminação – que integram e moldam de algum modo o cerne de todos e cada um dos direitos fundamentais – decorre o poder de o titular de dispor dessa posição de vantagem, inclusivamente no sentido de a enfraquecer, quando desse enfraquecimento, e no quadro da livre conformação da sua vida, espera retirar benefícios que de outra forma 202 não obteria . A afirmação feita por Jorge Reis Novais sugere que os direitos-trunfo são prima facie disponíveis em função de um direito geral de liberdade, além de outros elementos. Desta feita, todos os direitos fundamentais seriam prima facie disponíveis. A fim de impedir a disposição, deve-se arcar com o ônus argumentativo e, sendo coerente com a teoria dos direitos de Dworkin, os argumentos capazes de receber maior peso que um direito fundamental seriam os de princípio, não os de política. Porém, essas considerações não se coadunam com o pensamento de Dworkin acerca dos direitos de liberdade. 201 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p.517. Acredita-se que a melhor tradução seria a “titularidade de direitos” e não a “posse”. 201 Esse parágrafo situa-se na parte III do artigo, item 1, intitulado “Natureza e fundamentos jurídicos do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. Nesse item e no subsequente, Novais justifica o seu ponto de partida – a disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. Ao invocar os direitos-trunfo, ele está arrazoando o fundamento da disponibilidade, logo após recusar alternativas paternalistas. É muito importante tornar claro que esse excerto relativo aos direitos-trunfo confina-se ao objetivo de demonstrar o fundamento da disponibilidade prima facie e não traduz a globalidade do pensamento do jurista português. O que se discute neste item é apenas o emprego da categoria direitos-trunfo como um dos fundamentos da disponibilidade prima facie e não as demais posições e conclusões de Novais, as quais, aliás, são dignas de nota e apreço, pela profundidade e acuidade com que são tratadas. NOVAIS, Renúncia..., p.287. 202 Esse parágrafo situa-se na parte III do artigo, item 1, intitulado “Natureza e fundamentos jurídicos do poder de disposição individual sobre posições de direitos fundamentais”. Nesse item e no subsequente, Novais justifica o seu ponto de partida – a disponibilidade prima facie dos direitos fundamentais. Ao invocar os direitos-trunfo, ele está arrazoando o fundamento da disponibilidade, logo após recusar alternativas paternalistas. É muito importante tornar claro que esse excerto relativo aos direitos-trunfo confina-se ao objetivo de demonstrar o fundamento da disponibilidade prima facie e não traduz a globalidade do pensamento do jurista português. O que se discute neste item é apenas o emprego da categoria direitos-trunfo como um dos fundamentos da disponibilidade prima facie e não as demais posições e conclusões de Novais, as quais, aliás, são dignas de nota e apreço, pela profundidade e acuidade com que são tratadas. NOVAIS, Renúncia..., p.287. 102 Em diversos pontos da sua obra, Dworkin menciona que não avaliza a noção de um direito geral de liberdade, tampouco acredita que a liberdade seja o fundamento dos demais direitos. Para ele, existem liberdades básicas, cujo fundamento é o princípio do igual respeito e consideração (concepção liberal da igualdade). Seguindo a esteira de John Stuart Mill, Dworkin diferencia a liberdade como licença, “isto é, o grau em que uma pessoa está livre das restrições sociais ou jurídicas para fazer o que tenha vontade”, da liberdade como independência, “isto é, o status de uma pessoa como independente e 203 igual e não como subserviente” . A ideia de liberdade como independência é mais complexa e menos indiscriminada que a de liberdade como licença, já que ela permite distinções de comportamento. Uma vez que alguém ofereça um argumento geral em prol da liberdade como licença, “seu argumento também apoia, pelo menos pro tanto, a 204 liberdade de formar monopólios ou de apedrejar vitrines de lojas” . Dworkin é claro ao refutar um direito geral de liberdade, tornando-se pertinente transcrever alguns trechos do seu desenvolvimento argumentativo: Na verdade, parece-me absurdo supor que homens e mulheres tenham qualquer direito geral à liberdade, pelo menos do modo como a liberdade tem sido concebida por seus defensores. Tenho em mente a definição tradicional da liberdade como a ausência de restrições impostas pelo governo ao que um homem poderia fazer, caso desejasse. No mais famoso ensaio moderno sobre a liberdade, Isaiah Berlin colocou a questão deste modo [transcrição do conceito de Berlin]. Esta concepção da liberdade como licença é neutra quanto às diferentes atividades que um homem pode buscar realizar, os diferentes caminhos que pode querer trilhar. [...] 203 DWORKIN, Ronald. Levando..., p.404. No Brasil, a ideia de liberdades básicas em contraposição a um direito geral de liberdade é sustentada por Daniel Sarmento, cujos argumentos aproximam-se, neste ponto, aos de Dworkin. Contudo, o autor brasileiro não se filia ao direito como integridade. SARMENTO, Daniel. Os princípios constitucionais da autonomia privada e da liberdade. Revista RECAMPI Digital, n.1, p.65, feb. 2006. Disponível em: http://www.cej.justicia.es/pdf/Revista_RECAMPI_N1.pdf. 204 DWORKIN, Ronald. Levando..., p.405. Para o tema em análise, é interessante observar na íntegra o argumento de Dworkin: “A liberdade como licença é um conceito indiscriminado porque não distingue entre formas de comportamento. Toda lei prescritiva diminui uma liberdade como licença, antes disponível para os cidadãos: boas leis, como as que proíbem o homicídio, diminuem essa liberdade da mesma maneira, e possivelmente em um grau maior do que as más leis, como as que proíbem a liberdade de expressão política. A questão levantada por qualquer lei desse tipo não é se ela ataca a liberdade, coisa que o faz, mas se o ataque é justificado por algum valor contrastante, como a igualdade, a segurança ou a comodidade pública. Se um filósofo social atribui um valor muito alto à liberdade como licença, ele pode ser entendido como se estivesse argumentando que esses valores contrastáveis têm um valor relativo mais baixo. Se ele defende a liberdade de expressão, por exemplo, por meio de algum argumento geral em favor da licença, então seu argumento também apoia, pelo menos pro tanto, a liberdade de formar monopólios ou de apedrejar vitrines de lojas”. [sem grifos no original]. 103 Na verdade, só é possível manter essa noção se diluirmos muito a ideia do que é um direito (right). E nesse caso, o direito à liberdade 205 acaba tornando-se algo que não vale muito a pena possuir . Ao ligar a ideia de um direito geral de liberdade à concepção de direitos, Dworkin refere: Para perguntar sensatamente se temos um direito à liberdade nesse sentido neutro, devemos fixar-nos um único sentido da palavra “direito” (right). Não é difícil encontrar um sentido desse termo que nos permita dizer, com alguma confiança, que os homens têm um direito à liberdade. Podemos dizer, por exemplo, que uma pessoa tem um direito à liberdade se for do seu interesse ter liberdade, isto é, se ela quiser tê-la ou se for bom para ela ter esse direito. Neste sentido, eu estaria disposto a admitir que os cidadãos têm um direito à liberdade. Neste mesmo sentido, porém, eu teria igualmente de conceder que eles têm um direito, pelo menos em termos gerais, a sorvete de baunilha. Além disso, essa minha concessão a respeito da liberdade teria muito pouco valor no debate político [...]. Portanto, se cabe ao direito à liberdade desempenhar o papel talhado para ele no debate político, ele precisa ser um direito em um sentido muito mais forte [...]. No sentido forte que descrevi, uma reivindicação bem-sucedida a um direito tem a seguinte consequencia. Se uma pessoa tem um direito a alguma coisa, então é errado que o governo a prive desse direito, mesmo que seja do interesse geral proceder assim206. É nítido que, para Dworkin, conceber a existência de um direito geral de liberdade significa adotar um conceito fraco de direito. O direito fraco é aquele que admite restrição mediante qualquer justificação, quer seja baseada em argumentos de política, quer seja de princípios ou, mais ainda, um direito que não venha acompanhado de um dever de não-intervenção ou de uma não-competência. Os direitos-trunfo não são direitos fracos; pelo contrário, são justamente os direitos fortes, que somente podem ser constritos mediante específica justificação de princípio, desde que ela assuma, tudo considerado, maior peso. Torna-se patente a inadequação da ideia de que os direitostrunfo são prima facie disponíveis. Retomando as hipóteses ilustrativas utilizadas quando do estudo da restrição heterônoma de direitos fundamentais (supra, 1.4.2), tem-se que na hipótese AB o indivíduo A está dispondo de posições jurídicas subjetivas do seu direito fundamental à vida. Se o Estado impedisse esse tipo de contrato, haveria alguma liberdade para triunfar ou concorrer com as razões apresentadas pelo Estado, exigindo-lhe atuar apenas com argumentos de princípio? A pergunta é interpretativa e exige investigar se a 205 206 DWORKIN, Ronald. Levando..., p.411-413. DWORKIN, Ronald. Levando..., p.413-414. 104 coerção estatal atinge uma liberdade básica de A e de B. Assume-se que, no caso, essa liberdade não se faz presente, não há um elemento de liberdade como independência, apenas liberdade como licença207. Desta sorte, não há um direito-trunfo de liberdade a ser oposto ao Estado, e o direito-trunfo à vida pode ser reputado indisponível mediante qualquer justificativa plausível, quer de política, quer de princípio. Fosse o direitotrunfo à vida prima facie disponível em razão de um direito geral de liberdade, somente seriam aceitáveis argumentos concorrentes de princípio, jamais de política208. 207 Evidentemente, a resposta a tal questão interpretativa deve ser oferecida com apoio em profundos elementos concernentes à moralidade política de uma comunidade, à tradição, à história institucional e, especialmente, ao igual respeito e consideração, com o emprego da atitude interpretativa. Aqui, utilizando-se de uma simplificação, assume-se que não há a liberdade. Mas, frisa-se, a negação da existência de uma liberdade básica não é uma tarefa mecânica ou dependente de um intuicionismo moral, ela deve ser fundamentada segundo as diretrizes ofertadas por Dworkin. A atitude interpretativa é uma forma de interpretação criativa, por destinar-se a práticas sociais. Os planos de descrição, compreensão e aplicação não estão separados. Ela compreende três etapas: (a) pré-interpretativa, na qual são identificadas as regras e os padrões que se considera fornecer o conteúdo experimental da prática; (b) interpretativa, na qual se elabora uma justificativa geral para os principais elementos das práticas identificadas na primeira etapa; (c) pós-interpretativa, na qual o intérprete ajusta sua ideia daquilo que a prática realmente requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa. Ele pode propor reformulações e até mesmo sugerir que toda a prática tenha sido um erro à luz daquela justificativa. Entrementes, empregar a atitude interpretativa não significa que o intérprete possa fazer da prática o que bem entender, pois ele é constrangido pela história e pela forma da prática. Essa posição dworkiniana possui raízes na hermenêutica de Gadamer. Além disso, em o Império do direito, Dworkin desenvolve em pormenor essas duas dimensões da integridade (seu método, diga-se assim). Ao longo dos capítulos, diversas vezes ele próprio emprega essas dimensões. Em O domínio da vida, ele elaborou um pequeno resumo dessas duas dimensões, ao mencionar a interpretação constitucional: “Qualquer interpretação da Constituição deve ser testada em duas dimensões amplas e correlacionadas. A primeira delas é a adequação. Uma interpretação constitucional deve ser rejeitada se a prática jurídica real for totalmente incompatível com os princípios jurídicos que tal interpretação recomenda; em outras palavras, deve ter um considerável ponto de apoio ou fundamento na prática jurídica real. A segunda é a dimensão da justiça. Se duas concepções diferentes sobre a melhor interpretação de alguma disposição constitucional passarem no teste da adequação – se cada uma delas puder se alegar uma fundamentação adequada na prática jurídica passada – deveríamos dar preferência àquela cujos princípios nos parecem refletir melhor os direitos e deveres morais das pessoas, uma vez que a Constituição é uma afirmação de ideais morais abstratos que cada geração deve interpretar por si própria”. É relevante assinalar que a dinâmica dessas duas dimensões não é conservadora-descritiva, não adota apenas uma descrição das práticas e mensura se a interpretação ofertada a elas se ajusta. Fosse assim, confundir-se-ia com a moral cotidiana e majoritária de uma comunidade. Pelo contrário, é propositiva, pois visualiza a prática sob sua melhor luz e a seguir a reestrutura. DWORKIN, Ronald. O império..., p.60; 75 e ss.; DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.154; GADAMER, Hans-George. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1997; ARANGO, Rodolfo. ¿Hay respuestas correctas en el derecho? Santafé de Bogotá: Uniandes, 1999. 208 Não é difícil identificar o direito à vida como um direito-trunfo. Em primeiro lugar, ele está intimamente relacionado, inclusive instrumentalmente, à noção de igual consideração e respeito. Em segundo lugar, quanto à distribuição, é um direito que não se pode negar a um grupo e reconhecer a outro, como pode ocorrer com os direitos legislativos. Em terceiro lugar, em regra, não pode ser desconsiderado em função de metas coletivas. Em quarto, é um direito enraizado nas práticas e tradições jurídicas ocidentais. Um exemplo clássico do cunho de trunfo do direito à vida é o do paciente do quarto 306, no qual um paciente jovem pode ser doador de órgãos para outros cinco pacientes, que morrerão caso o transplante não ocorra. Os cinco pacientes não são compatíveis entre si, somente o do quarto 306 pode ser o doador. Poder-se-ia considerar a possibilidade de o paciente do quarto 306 ser compulsoriamente um 105 Porém, a mudança de contexto pode alterar o ponto de partida. É o que poderia acontecer na hipótese CD. In casu, a proibição de tal disposição poderia significar o bloqueio de uma liberdade básica especificamente considerada, a qual somente poderia ser obliterada por fortes razões de princípio concorrentes. Nessa hipótese, a liberdade básica reconhecida triunfa sobre os demais argumentos de política e concorre com argumentos de princípio, que, para justificar a proibição da eutanásia – e, portanto, da disposição de posições subjetivas do direito à vida –, devem ser mais fortes do que a liberdade básica. Não é à toa que Dworkin, em o Domínio da Vida, ancora seu arcabouço argumentativo em prol da permissão da eutanásia (em casos específicos) na liberdade religiosa. Ele liga a concepção acerca da sacralidade da vida ao conteúdo protegido por esta liberdade básica209. Se reputasse o direito-trunfo à vida disponível prima facie, sua estratégia seria incompreensível. Mas, como sua tese exige a existência de uma liberdade básica para triunfar sobre os argumentos de princípio concorrentes – e não um direito geral de liberdade, frágil inclusive diante de argumentos de política – ele parte em busca da liberdade básica para concorrer com força diante da pretensão de coerção estatal. Frisa-se: não é a disponibilidade prima facie do direito-trunfo à vida que concorre com as justificações de coerção estatal, mas a presença de uma liberdade básica no ato de disposição, algo que não se fazia presente no exemplo anterior (AB). Aqui se percebe que a presença de uma liberdade básica no ato de disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental oferece um argumento em prol da disponibilidade de algumas posições subjetivas de direito fundamental, em contextos específicos. Retorna-se ao exemplo da transgenitalização. Nessa hipótese, ao consentir, o titular exerceu uma liberdade básica, contida em seu direito de privacidade. Com esse exercício, autolimitou posições subjetivas do direito fundamental à integridade física. Se a comunidade deliberar e decidir proibir o ato cirúrgico, tornando indisponíveis posições subjetivas do direito à integridade física nessa situação, o titular do direito poderá opor a sua liberdade básica como um trunfo contra a maioria moral que o impede de exercê-la. Somente mediante fortes argumentos de princípio – mais fortes que a liberdade básica – será justificada a coerção estatal nesse caso. Ela não seria doador, para que salve outras cinco vidas, quando se parte de uma moralidade baseada em direitos? Sobre o exemplo, ver: THOMSOM, Op.cit., p.135 e ss.; MORRISON, Op.cit., p.173. 209 DWORKIN, Ronald. Domínio..., p.223-235. 106 justificável mediante argumentos de política, que visassem metas coletivas, pois a liberdade básica triunfaria. Porém, da constatação de que há hipóteses nas quais a presença de uma liberdade básica pode ser um argumento de princípio a favor da disponibilidade de um direito-trunfo não se pode saltar para a conclusão de que os direitos-trunfo são prima facie disponíveis. Em inúmeras circunstâncias não o serão, pois simplesmente não haverá uma liberdade básica no ato de disposição. A única forma de se sustentar, com generalidade, que os direitos-trunfo são prima facie disponíveis é adotar essa expressão em um sentido demasiadamente fraco, com esteio em um direito geral de liberdade muito frágil, negado por Dworkin com firmeza. Como escreve Dworkin em outros contextos, um direito putativo como esse nada acrescentaria ao debate. O exame da possibilidade de disposição de posições jurídicas de direitos fundamentais na teoria dworkiniana não se esgota, evidentemente, na temática da inexistência de um direito geral de liberdade. Por isso, algumas conclusões a respeito serão aqui apresentadas, além daquelas que serão expostas quando do exame do paternalismo jurídico. Em primeiro lugar, conceber os direitos-trunfo como prima facie disponíveis exige aceitar uma ampla esfera de liberdade, mais precisamente, um direito (estrito) geral de liberdade. Para tanto, a fraca liberdade como licença deve ser alçada ao patamar de direito-trunfo, e o que antes poderia sucumbir diante de argumentos de política tornar-se-á a eles resistentes. Ou, pior, os direitos-trunfo serão enfraquecidos, e nas trincheiras que representam abrir-se-ão sendas aos argumentos de política. Para que a tese dos direitos-trunfo possa ser mantida com coerência, é importante compreender que os direitos-trunfo serão disponíveis (prima facie) se for reconhecida uma liberdade básica no ato de disposição de cada um deles. Em segundo lugar, a adoção de um ponto de partida pré-determinado – disponibilidade prima facie – reduz a amplitude interpretativa exigida pela integridade dworkiniana. Ao fazê-lo, pode ensejar uma fuga da coerência, por levar o intérprete a assumir como premissas pontos que nem se ajustam às práticas da comunidade de princípios, nem as justificam. Assim, as questões poderão ser vislumbradas de um horizonte muito distante daquele que representa as práticas à sua melhor luz. Em terceiro lugar, os direitos-trunfo originam-se da concepção liberal de igualdade e formam seu invólucro protetor. A ideia de liberdade é concebida por 107 Dworkin de modo a não conflitar com o igual respeito e consideração. Então, apesar de ser Dworkin um liberal, ele não é um adepto da liberdade máxima, mas da liberdade indispensável à igualdade liberal210. Os casos mais drásticos de disposição de direitostrunfo podem representar a fragilização do invólucro que protege o igual respeito e consideração, flanco que Dworkin não abre facilmente, exigindo que a tarefa interpretativa seja integralmente – do primeiro ao último passo – filtrada pela ideia de igual respeito e consideração. 2.2.3 Síntese conclusiva e tomada de posição Em primeiro lugar, incumbe discutir a terminologia empregada por Dworkin e por Alexy à luz do acordo semântico proposto no Capítulo 1. Conforme estudado, há quatro categorias – o direito em sentido estrito, o privilégio, a imunidade e a competência – às quais correspondem outras quatro categorias – o dever, o não-dever, a incompetência e a sujeição – respectivamente. Anotou-se que, nos escritos hohfeldianos, o privilégio era um conceito fraco, não correspondendo sequer a um dever estrito de não-intervenção. Hohfeld também aliou o privilégio à liberdade. Quando do estudo da terminologia alexyana, voltada aos direitos fundamentais, percebeu-se que Alexy situou o privilégio hohfeldiano na categoria de direitos a algo, ou seja, como direitos em sentido estrito, imunidades ou direitos à instituição de competências. Ao se ter em conta o chamado direito geral de liberdade, entende-se a postura de Alexy. O privilégio hohfeldiano, ao ser transladado por Alexy para o âmbito dos direitos fundamentais, dilui-se e ganha força, pois a ele corresponderá, pelo menos, o dever estrito de não-intervenção, ou uma imunidade ou, ainda, uma competência jusfundamentalmente protegida (que inclui a posição de direito em sentido estrito a uma competência). Isso não significa que a categoria hohfeldiana de privilégio desapareça e seja incompatível com os escritos de Alexy. O que ocorre é que o direito geral de liberdade alexyano não se confunde com o privilégio hohfeldiano e, portanto, com o conceito fraco de liberdade desenvolvido por Hohfeld. Mas existe a possibilidade de, no sistema alexyano, aparecerem privilégios, de modo geral em relações privadas, quando simplesmente se permite que alguém faça ou deixe de fazer algo sem que exista um 210 Essa passagem foi inspirada em DUTRA, Delamar Volpato. Moralidade política e bioética: os fundamentos liberais da legitimidade do controle de constitucionalidade. Veritas, Porto Alegre, v.52, n.1, p.60, mar. 2007, nota n.3. 108 direito estrito. Mas este não é, de maneira alguma, o ponto alto do conceito alexyano de liberdade; muito menos quanto à sua jusfundamentalidade. Em assim sendo, o conceito direito geral de liberdade é mais forte do que o de privilégio e está ligado aos direitos em sentido estrito, ou às imunidades ou ao direito estrito à instituição de uma competência (se jusfundamentalmente protegida). Dessa forma, quando a categoria direito geral de liberdade for empregada nesta tese, deve-se entender um direito subjetivo que possui posições de direito estrito, ou de imunidade ou de direito à competência. Ou seja, é conceito mais forte que o hohfeldiano e inclui, pelo menos, o dever estrito de não-intervenção ou uma imunidade. Ao elevar a posição do direito geral de liberdade e retirá-lo do âmbito do privilégio, Alexy faz com que muito do que seria um mero privilégio na teoria hohfeldiana seja considerado jusfundamentalmente protegido e, portanto, sujeito à teoria das restrições por ele elaborada, merecendo a superação do ônus argumentativo para que seja objeto de ablações. As categorias empregadas por Dworkin, bastante próprias, são mais difíceis de comparar com as hohfeldianas. Na tentativa de fazê-lo, aponta-se que quando denega o chamado direito geral de liberdade, Dworkin menciona que o direito (right – justamente o termo hohfeldiano) tornar-se-ia demasiadamente fraco, aproximando-se, de certo modo, de Hohfeld. Por um lado, haveria um sem-número de liberdades que não são jusfundamentalmente protegidas (que não são trunfos). Tais liberdades, como apedrejar vitrines de lojas ou pintar um quadro em uma avenida movimentada, não seriam direitos em sentido estrito, nem imunidades. Seriam privilégios, no sentido fraco que lhes empresta Hohfeld, aos quais não corresponderia sequer o dever de não-intervenção. Somente algumas liberdades, interpretativamente consideradas à luz da integridade, teriam o status de direitos em sentido estrito, imunidades ou direitos estritos a competências e, então, seriam trunfos. A diferença aparente é que Dworkin não confina a chamada liberdade jurídica ao privilégio, alçando algumas liberdades a outras categorias. Antes de assumir a posição que será adotada nesta tese acerca do direito geral de liberdade e das liberdades básicas, é conveniente trazer à baila alguns exemplos de julgados nacionais, estrangeiros e internacionais na temática. No Brasil, conforme mencionado anteriormente e diante dos exemplos fornecidos por Virgílio Afonso da Silva, não é possível delinear uma tendência clara nos tribunais acerca do emprego das liberdades básicas ou do direito geral de liberdade. Em algumas situações, usa-se o 109 direito geral de liberdade; noutras, liberdades básicas, o que implica desconsiderar algumas alternativas de ação como jusfundamentalmente protegidas211. Exemplo do primeiro tipo é o julgado a respeito da constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei de Arbitragem. No caso, dois Ministros referiram um conceito amplo de liberdade212. Um exemplo do segundo tipo são alguns casos de fiéis de agremiações religiosas sabatistas, que envolviam pedidos para a realização de provas de concursos públicos em horários diferenciados, nos quais sequer foi considerada a presença de uma liberdade por parte dos fiéis, ocorrendo justamente o que Afonso da Silva denomina deficit de fundamentação. Consoante informa Robert Alexy, o Tribunal Constitucional alemão costuma empregar o direito geral de liberdade em seus julgados. Todavia, isso não ocorre com a Suprema Corte dos Estados Unidos, do Canadá, nem com a Corte Europeia de Direitos Humanos. Quando trabalha casos envolvendo liberdades não-enumeradas na Constituição estadunidense, a Suprema Corte de início avalia, justificadamente, se há uma liberdade jusfundamental em liça (ela busca, pois, a existência de uma liberdade básica na questão constitucional em discussão). Em não havendo, ela cessa o exame da constitucionalidade ou aplica um teste bastante fraco da razoabilidade. Se houver, ela prossegue o exame, utilizando, via de regra, o teste forte da razoabilidade, oriundo da aplicação da cláusula do devido processo legal substantivo. Um exemplo é de interesse no tópico. Em Washington v. Gluksberg213, caso que diz respeito ao suicídio assistido por médico, ocorrido em 1997, a Suprema Corte indagou se existiria um interesse de liberdade jusfundamentalmente protegido no caso e, se existisse, qual a posição que ele ocuparia (se preferencial ou não). A maioria da Corte concluiu, motivadamente, que não havia uma liberdade jusfundamental no caso, e salientou que, cada vez que os tribunais reconhecem liberdades não-enumeradas como jusfundamentalmente protegidas, 211 A duplicidade encontra eco, ainda, na adoção da teoria externa ou da teoria interna dos direitos fundamentais. Quanto aos exemplos, ver: SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.144 e ss. 212 BRASIL, STF, AgRSE nº5.260-7 Reino da Espanha, Op. cit. 213 Os casos serão explicitados adiante, Capítulo 4. Para uma discussão dos casos: DWORKIN, Ronald. Domínio..., passim; DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American constitution. Cambridge: Harvard University, 1996, (especialmente os artigos intitulados Roe in danger; Roe was salved e Do we have a right to die?). USA. Washington v. Glucksberg et al. Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl? court=us&navby=title&v1=Glucksberg; USA. Cruzan v. Director, Missouri Department of Health. 497 U.S. 261 (1990). Disponível em: http:// caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1. court=us&vol=497&invol=261; USA. Planned parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey. 112 U.S. 2791 (1992). Disponível em: http://caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1.court= us&vol=492&invol=4900. 110 diminuem o espaço de atuação dos fóruns majoritários de tomada de decisão: o legislativo e o executivo. Desta feita, a Corte aplicou um teste da razoabilidade bastante fraco, procurando apenas uma conexão, ainda que leve, entre meios e fins na legislação proibitiva do suicídio assistido por médicos. O que é importante notar é que o reconhecimento ou não da liberdade como jusfundamentalmente protegida faz toda a diferença para o equacionamento do caso, não exatamente quanto ao seu resultado final, mas quanto ao iter argumentativo que será seguido. No voto de concorrência, uma narrativa exemplar do significado do devido processo legal substantivo no direito constitucional estadunidense, a jusfundamentabilidade da liberdade de optar pela própria morte mediante suicídio assistido para certos grupos de pessoas foi reconhecida, porém, por motivos diversos dos da maioria, o pleito também foi rejeitado214. Em caso análogo, decidido pela Corte Suprema do Canadá, também entrou em cena o debate sobre a existência ou não de uma liberdade jusfundamentalmente protegida de certos grupos de pessoas optarem pelo suicídio assistido por médico215. Uma das questões postas pelos Justices, a respeito da qual concordaram maioria e minoria, foi se a proibição do suicídio assistido por médico para enfermos terminais atingia algum direito de liberdade jusfundamentalmente protegido. Motivadamente, a Corte entendeu que sim, que havia um direito de liberdade, construído a partir da segurança pessoal assegurada pela Carta de Direitos e por linhas inteiras de precedentes da própria Corte. Todavia, na interpretação de todos os elementos presentes no caso, principalmente a leitura constitucional da igualdade e a aplicação do postulado da proporcionalidade, a maioria entendeu pela denegação do pedido de Sue Rodriguez. Na Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH), o caso Pretty também conduziu à discussão sobre a extensão da jusfundamentalidade das liberdades216. Ainda 214 USA. Washington v. Glucksberg et al. Voto concorrente do Justice Souter. O caso será relatado no Capítulo 4. CANADÁ. Canadian Charter of Rights and Freedoms. 1982. Disponível em: http://lois.justice.gc.ca/en/charter/index.html; CANADÁ. Rodriguez v. British Columbia (Attorney General), [1993] 3 S.C.R 519. September, 30, 1993. Disponível em: http://scc.lexum.umontreal.ca/en/1993/ 1993rcs3-519/1993rcs3-519.html. 216 No Reino Unido, a Câmara dos Lordes, exercendo funções jurisdicionais em face do Human Rights Act de 1998, manifestou-se acerca da proibição do suicídio assistido. O caso será detlhadao adiante, Capítulo 4. Ver: UNITED KINGDOM. The Queen on the Application of Mrs. Dianne Pretty (Appellant) v. Director of Public Prosecutions (Respondent) and Secretary of State for the Home Department (Interested Party). 29, november, 2001. Disponível em: http://www.publications. parliament.uk/pa/ld200102/ldjudgmt/ jd011129/pretty-1.htm; ECHR. Pretty v. United Kingdom. Sobre o caso, consultar: WADA, Emily. A Pretty picture: the margin of appreciation and the right to assisted suicide. Loyola International and Comparative Law Review, v. 27, p.275-290, 2006; MILLNS, Susan. Death, dignity and discrimination: the case of Pretty v. United Kingdom. German Law Journal, v.3, n.10, October, 2002. Sobre a CEDH e os padrões decisórios que utiliza, ver: ALSTON, Michael; 215 111 que não ofereça um conceito estreito à proteção das liberdades e da vida privada, CEDH avalia a existência ou não de uma liberdade jusfundamentalmente protegida. Diversamente do argumento do Reino Unido, os juízes entenderam que havia, sim, um direito de autonomia protegido, derivado do art.8º, §1º da Convenção Europeia de Direitos Humanos217. Contudo, não obstante o reconhecimento da liberdade, o pedido não foi concedido. Como se percebe, Cortes estrangeiras e internacionais de referência adotam posturas diferentes quanto à existência ou não de um direito geral de liberdade. Naquelas que não adotam tal premissa, entender uma alternativa de ação como jusfundamentalmente protegida faz parte da discussão e da argumentação do caso, não sendo, portanto, determinada ab initio. Desta sorte, considera-se que a crítica formulada contra a tese das liberdades básicas é excessiva, pois não se pode partir do pressuposto de que ela é antidemocrática e não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, principalmente quando se levam em conta arranjos institucionais e os limites da jurisdição constitucional, pois quanto maior a amplitude do direito de liberdade, menor a margem de atuação do executivo, pela via do poder de polícia, mais intensa se torna a necessidade da atividade legiferante e maior é a possibilidade de controle de constitucionalidade dos atos legislativos constritivos de alternativas de ação. Nesta tese, é necessário assumir uma postura sobre o tema. Como, no Brasil, não há linha clara nos tribunais a respeito e há exemplos de deficit de fundamentação no reconhecimento de direitos de liberdade, parece mais adequado assumir a postura de um direito geral de liberdade, prioritariamente em função da ausência de guias interpretativos nítidos acerca da interpretação das liberdades. Nesse sentido, vale colacionar a advertência de Rodolfo Arango, bem como tecer algumas considerações sobre um sistema de pensamento como o dworkiniano. Quando Dworkin sustenta a tese das liberdades básicas, está se referindo a um sistema jurídico que há mais de duzentos anos constrói e reconstrói, interpretativamente, a proteção das liberdades. Desse modo, há guias de interpretação e grupos inteiros de precedentes que permitem dar vazão à noção de integridade do sistema, ou seja, trata-se de um ambiente amadurecido neste debate, no qual se pode aliar a tradição e a prospecção pela via interpretativa. Segundo STEINER, Henry. International human rights in context: law, politics and morals. 2.ed. Oxford: Oxford University, 2004. 217 Sobre o caso, infra, capítulo 4. ECHR. Pretty v. United Kingdom. Cit. 112 Arango, o fato de Dworkin basear-se num sistema jurídico amadurecido cria dificuldades quando do translado da sua tese para outros países218. Entende-se que o pensamento de Arango fica ainda mais intenso quando são considerados Estados que vivenciaram, há não muito tempo, governos ditatoriais e totalitários, caracterizados exatamente por um descuido quanto às liberdades, e, portanto, ainda sem bases seguras, quer jurisprudenciais, quer legislativas e executivas, para seu trato. Desta feita, o labor inicial com o direito geral de liberdade pode efetivamente mostrar-se mais seguro. Ademais, a tese central aqui proposta é a de que as posições subjetivas do direito à vida são, em linha de princípio, indisponíveis. Em sendo assim, adotar como premissa o direito geral de liberdade faz com que se evite a importante crítica de que a tese das liberdades básicas não arca suficientemente com o ônus argumentativo. Para evitar esse possível deficit, a tese será construída com o ponto de partida no direito geral de liberdade, porquanto sua aceitação exija que toda e qualquer consideração de uma posição jurídica de direito fundamental como indisponível seja acompanhada de motivação suficiente. 2.3 Limites à liberdade: o princípio liberal do dano e o paternalismo jurídico Um forte argumento contra a indisponibilidade geral dos direitos (fundamentais ou não) é a negação do paternalismo estatal ou jurídico. Jorge Reis Novais, e.g., apresenta e denega a tese do paternalismo jurídico, considerando-a incompatível com o Estado Democrático de Direito219. Robert Nozick, em seus escritos libertarianistas, rejeita, por razões diversas das de Novais, a possibilidade de exercício do paternalismo 218 Arango diz que um dos pressupostos fáticos para a aplicação da teoria de Dworkin (o direito como integridade) é ser o sistema um “sistema avançado”. ARANGO, Op.cit., p.56. 219 O jurista português aceita, no Estado Democrático de Direito, algumas versões bem leves de paternalismo (como o que se passa quando se trata de crianças, por exemplo), mas recusa o paternalismo jurídico, como regra, no Estado Democrático de Direito: “Mas, como diz FEINBERG, se a ideia paternalista de consideração dos direitos como direitos obrigatórios quando aplicada às crianças parece admissível, já sua institucionalização, como regra, nas relações entre Estado e cidadão é insustentável. Num Estado não paternalista como é essencialmente o Estado de Direito, que assenta na dignidade da pessoa humana e faz do livre desenvolvimento da personalidade individual um valor fundamental, esta situação de direitos de exercício obrigatório (direitos/deveres) é claramente excepcional. [...] Só o Estado paternalista se arroga a pretensão de proteger sistematicamente o cidadão contra si próprio, numa concepção de liberdade vinculada, cuja matriz se exprime, como diz ISAIAH BERLIN, no lema jacobino ‘nenhum homem é livre para fazer o mal, impedi-lo é libertá-lo’”. NOVAIS, Renúncia..., p.286288 [sem grifos no original]. 113 jurídico, reputando, portanto, os direitos como disponíveis220. A sustentação de que a indisponibilidade dos direitos advém da aplicação do inadmissível paternalismo jurídico foi bem sumariada por McConnell: (i) (ii) (iii) (iv) (v) (vi) (vii) Se o direito R é indisponível, o consentimento do titular não é suficiente para justificar que terceiros o infrinjam. Se o consentimento do titular não é suficiente para justificar que terceiro infrinja seus direitos, então as opções de um indivíduo capaz estão sendo restringidas para o bem da própria pessoa. Se as opções de um indivíduo capaz são restringidas para o seu próprio bem, então aqueles que estão engajados em restringir as suas opções estão comprometidos com o paternalismo. Mas tratar pessoas capazes paternalisticamente é inadmissível. Então, nenhum direito é indisponível. Se nenhum direito é indisponível, então todos os direitos são disponíveis. Então, todos os direitos são disponíveis221. O problema que se extrai do esquema montado por McConnell reside, como ele mesmo aponta, na afirmação (iv). Por que tratar pessoas capazes paternalisticamente é inadmissível? O que é, exatamente, tratar as pessoas paternalisticamente? As discussões acerca do paternalismo jurídico não são novas, embora tenham retomado sua atualidade a partir da década de 1970, especialmente nos Estados Unidos da América. 220 Já no prefácio de Anarquia, estado e utopia, Nozick refere a inaceitabilidade do paternalismo estatal, ao escrever: “Duas implicações dignas de nota são que o Estado não pode usar sua máquina coercitiva para obrigar certos cidadãos a ajudarem a outros ou para proibir atividades a pessoas que desejam realizá-las para seu próprio bem ou proteção.” A noção está diretamente ligada à defesa do Estado mínimo feita pelo autor, que se justifica em face da titularidade de direitos, pois, em razão deles, “[...] há coisas que nenhuma pessoa ou grupo podem fazer com os indivíduos (sem lhes violar direitos)”. Nozick considera que apenas o Estado mínimo é capaz de ser moralmente justificado e rejeita que qualquer estado maior que o mínimo possa sê-lo. Em seu pensar, cada ser humano possui uma inviolabilidade, protegida por direitos individuais bastante fortes. A proteção conferida pelos direitos não permite que o Estado maior que o mínimo os invada e exige que o Estado mínimo proteja-os contra invasões operadas por terceiros, desde que o titular não tenha consentido. Isso vale tanto na esfera dos direitos econômicos (a coisas) como dos direitos pessoais. Nesse rumo, Nozick oferece exemplos como o de alguém que se permite matar e o de alguém que se vende como escravo, não encontrando óbice para tais contratos, que somente poderiam ser obstados mediante atos de paternalismo, que vão muito além do Estado mínimo. NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991, p.9. [sem grifos no original]. Essa interpretação de Nozick também encontra apoio em: McCONNELL, Op. cit., p. 25 e ss. 221 McCONNELL, Op. cit., p. 26-27. No original: “(i) If right R is inalienable, the rights-possessor’s consent is not sufficient to authorize another in infringing R. (ii) If a right-possessor’s consent is not sufficient to justify another in infringing his rights, then a competent individual’s option are being restricted for that person’s own good. (iii) If a competent individual’s options are restricted for his own good, then those who are engaged in restricting his options are engaged in paternalism. (iv) But treating competent individuals paternalistically is unacceptable. (v) So, no right is alienable. (vi) If no right is alienable, then all rights are alienable. (vii) So, all rights are alienable”. 114 De início, é preciso mencionar, com apoio em Feinberg e Gerald Dworkin, que três diferentes posições podem ser tomadas em face do paternalismo jurídico: (a) plena rejeição; (b) plena aceitação; (c) aceitação em circunstâncias delimitadas. Para os autores, as opções (a) e (b) devem ser descartadas, ainda que se considere a grande tradição de rejeitar o paternalismo jurídico, que remonta aos escritos de John Stuart Mill. Segundo Feinberg, o contingente de enunciados normativos vigentes – e aceitáveis – que encontram sua justificação no paternalismo jurídico é muito significativo para que seja possível simplesmente ignorá-lo e não o aceitar. Entretanto, aceitá-lo plenamente é postura que encontra barreiras demasiadamente importantes, como, por exemplo, o caráter ad infinitum do argumento paternalista, de modo que a alternativa (c), aceitação do paternalismo jurídico em situações e formas específicas, mostra-se a mais adequada222. Com o intento de melhor compreender essa afirmação, será estudado o conceito do princípio liberal do dano (2.3.1) e o do paternalismo jurídico (2.3.2), além de outros, relativos a alguns institutos similares; serão também distinguidas formas de paternalismo jurídico, os principais argumentos favoráveis e contrários ao paternalismo jurídico, e, por fim, discutir-se-á sua relação com a (in)disponibilidade dos direitos fundamentais223. 2.3.1 O princípio liberal do dano Uma das primeiras e mais estudadas defesas do chamado princípio liberal do dano encontra-se na obra On Liberty, de John Stuart Mill. No mesmo fragmento em que o enuncia, Mill também expõe e refuta o paternalismo jurídico, verbis: 222 Para Feinberg, a negação absoluta do paternalismo jurídico conduz a problemas não apenas com o senso comum, mas também com enunciados normativos há longa data existentes, aceitos como plausíveis e não questionados, como, por exemplo, a regra geral que proíbe homicídio consentido, a recusa da validade e da execução de contratos de assassinato e de escravidão voluntária, a permissão do uso da força razoável para impedir um suicídio, a proibição de certas modalidades de jogos de azar, entre outras. Ao ensejo do pensamento do autor, é difícil encontrar uma justificação para tais medidas que não seja paternalista. De outro ângulo, um dos maiores entraves à aceitação do paternalismo é justamente o longo alcance do argumento, pois, uma vez utilizado, será difícil parar ou traçar distinções entre casos. A menos que se pretenda, nas palavras de Feinberg, proibir o álcool, o tabaco e até mesmo as frituras, ou, ainda, segundo G. Dworkin, o sedentarismo e certos prazeres ou estilos de vida arriscados, como o alpinismo e a fórmula I. FEINBERG, Legal paternalism..., p.110-129. O mesmo texto de Feinberg encontra-se na coletânea de Sartorius sobre o paternalismo. A menção às páginas que serão feitas referem-se a este: FEINBERG, Joel. Legal paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987, p.3-18; DWORKIN, Gerald. Paternalism. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987, p.19-35; DWORKIN, Gerald. Paternalism: some second thoughts. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987. p.105-112. 223 A palavra princípio, quando empregada aqui, não assume o significado de uma norma jurídica do tipo princípio, em oposição aos termos regras e postulados. Utiliza-se princípio liberal do dano por ser a expressão corrente e não por acreditar que se trata de um princípio jurídico no sentido que lhe conferem muitos autores contemporâneos. 115 A finalidade deste Ensaio é sustentar um princípio bastante simples, capaz de governar absolutamente as relações da sociedade com o indivíduo no que diz respeito à compulsão e ao controle, quer os meios empregados sejam os da força física sob a forma de penalidades legais, quer o da coerção moral da opinião pública. Esse princípio é o de que a autoproteção constitui a única finalidade pela qual se garante a humanidade, individual ou coletivamente, interferir na liberdade de ação de qualquer um. O único propósito de se exercer legitimamente o poder sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a sua vontade, é evitar dano aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é garantia suficiente. Não pode ser legitimamente compelido a fazer ou a deixar de fazer por ser melhor para ele, porque o fará feliz, porque, na opinião dos outros, fazê-lo seria sábio ou mesmo acertado. Essas são boas razões para o advertir, contestar, persuadir, instar, mas não para o compelir ou castigar quando procede de outra forma. Para justificar esse exercício de poder, é preciso mostrar-lhe que a conduta que se pretende impedi-lo de ter produzirá mal a outrem. A única parte da conduta de cada um, pela qual é responsável perante a sociedade, é a que diz respeito aos outros. Na parte que diz respeito apenas a si mesmo, sobre seu corpo e mente, o indivíduo é soberano224. Este pequeno trecho da obra de Mill é alvo de muitas interpretações, e, como bem frisam Feinberg e Gerald Dworkin, o princípio simples se mostra, em sua aplicação, muito prolixo, além de se desdobrar em mais de um princípio225. Em síntese, e de modo simplificado, pode-se dizer que do excerto de Mill, além da rejeição do paternalismo jurídico e/ou social, extrai-se o princípio liberal do dano, ou seja, que haverá justificação para a coerção estatal e/ou social quando a ação ou omissão de uma ou mais pessoas causar dano ou ensejar risco real de dano a outra ou a outras pessoas226. 224 MILL, John Stuart. A liberdade: utilitarismo. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.17-18 [sem grifos no original]. O excerto na língua inglesa pode ser conferido em: MILL, John Stuart. On liberty (1859). Kitchner: Batoche Books, 2001, p.13. 225 FEINBERG, Legal…, p.4; 11-17; DWORKIN, Gerald. Paternalism. p.23-29; FEINBERG, Joel. Harm to others: the moral limits of the criminal law (vol. I). Oxford: Oxford University, 1986, passim. 226 Mill é bem claro quanto à diferença entre a coerção estatal e social e os atos promocionais, educacionais e de incentivo a certas condutas e os que visam a desestimular certos tipos de comportamento. Importa ainda ressaltar que Mill não considera que o princípio do dano sempre será uma justificação válida para a coerção: “Eis as máximas: primeiro, o indivíduo não é responsável perante a sociedade por suas ações, enquanto estas não afetarem os interesses de nenhum outro além dele mesmo. Conselhos, instrução, persuasão e isolamento [social], caso os outros julguem necessário recorrer a este último meio para seu próprio bem, são as únicas medidas pelas quais a sociedade pode com justiça exprimir seu desagrado ou desaprovação quanto à conduta do indivíduo. Segundo, o indivíduo é responsável pelas ações prejudiciais aos interesses dos outros, sujeitando-se então quer à punição social, quer à legal, se a sociedade julgar que uma ou outra seja necessária à sua proteção. Em primeiro lugar, não se deve supor de maneira nenhuma que, se o dano ou a probabilidade do dano justificam por si sós a interferência da sociedade, então sempre a justificam. [Mill explica que no uso das liberdades as pessoas podem constituir obstáculos a interesses alheios] [...] No entanto, em geral se admite que é melhor ao interesse comum da humanidade os homens perseguirem seus objetivos sem que os detenha essa espécie de consequências. Em outras palavras, a sociedade não reconhece aos competidores frustrados nenhum direito legal ou moral a ficar imune a esse tipo de sofrimento, e somente será chamada a interferir quando os meios empregados para alcançar o êxito sejam contrários aos que o 116 À luz do pensamento de Mill, existem atos comissivos ou omissivos que não dizem respeito ao Estado nem à sociedade. Os atos que dizem respeito apenas ao indivíduo, sem envolver terceiros – ou envolvendo-os na medida em que com eles estão de acordo – são denominados autorreferentes. Já aqueles que ensejam dano ou risco de dano a terceiros são atos heterorreferentes. Mill menciona com nitidez, e nisto é seguido por muitos liberais moderados contemporâneos, que simples preferências individuais ou sociais, padrões culturais, morais ou costumeiros bastante compartilhados não constituem, necessariamente, objeto de dano. Ou seja, a discordância com tais padrões não implica necessariamente dano a terceiros; tampouco os atos serão, em si mesmos, heterorreferentes. O dano possui um conceito mais estreito do que a mera ofensa a certos padrões227. Assim, são heterorreferentes aqueles atos que podem impactar negativamente, na forma de dano, terceiros. Existem certas sutilezas na distinção entre atos auto e heterorreferentes, bem trabalhadas por Feinberg. Ao comentar as categorias de Mill, Feinberg demonstra que os atos podem ser: (a) direta e primariamente autorreferentes; (b) heterorreferentes; e (c) remota e indiretamente heterorreferentes (afetam terceiros de modo trivial). O princípio do dano cobre apenas os atos heterorreferentes (b). Se esta distinção for negada, como o é por alguns estudiosos, a linha entre o paternalismo jurídico e o princípio liberal do dano torna-se demasiadamente tênue, de modo que as justificações da coerção poderão ser formuladas pelo princípio do dano em inúmeras ocasiões228. Nas complexas sociedades atuais, a distinção pode ser difícil de formular, mormente em razão da diluição da distinção entre o público e o privado. Mas da interesse geral permitir, a saber: a fraude, ou traição, e a força”. MILL, John Stuart. A liberdade..., p.143-144 [sem grifos no original]. 227 Para a distinção entre dano e ofensa, ver: FEINBERG, Harm to others..., p.12-13; FEINBERG, Joel. Offense to others: the moral limits of the criminal law (Vol. II). Oxford: Oxford University, 1985, passim. 228 FEINBERG, Legal…, p.18, nota n.2. O próprio Mill tentou traçar linhas entre os atos auto e os heterorreferentes, e salientou a recusa de muitos em aceitá-la: “Muitos se recusarão a admitir a distinção aqui assinalada entre a parte da vida da pessoa que diz respeito apenas a ela mesma e a que diz respeito a outras. Perguntarão: como uma parte qualquer da conduta de um membro da sociedade pode ser indiferente a outros? Ninguém é um ser inteiramente isolado; é impossível que um homem provoque dano a si mesmo de modo sério ou permanente, sem que o mal atinja pelo menos algumas de suas relações mais íntimas, e muitas vezes vai além destas. [...] Finalmente, poderiam dizer, se um homem não provoca dano direto a outros por seus vícios e tolices, é contudo ofensivo por seu exemplo e deveria ser compelido a se controlar, pelo bem daqueles a quem a visão ou conhecimento dessa sua conduta poderia corromper ou desencaminhar. [...] Admito plenamente que o dano provocado por uma pessoa sobre si mesma possa afetar seriamente, tanto por suas simpatias como por seus interesses, os que se relacionam a ela de modo próximo e, em menor grau, a sociedade como um todo”. Em que pese esta admissão final, Mill apenas considera que o princípio do dano será aplicável se houver rompimento com obrigações e deveres para com terceiros, ou seja, se os direitos de terceiros forem indevidamente afetados. 117 dificuldade não se pode inferir a impossibilidade. Se assim fosse, seriam vãs as tentativas de proteção do chamado direito de privacidade e de certas liberdades pessoais que protegem modos e estilos de vida diferentes do mainstream, bem como aquelas que dizem respeito ao reconhecimento das minorias. Então, ainda que difícil de delinear em certos casos, pelo aparente entrelaçamento entre aquilo que condiz exclusivamente ao indivíduo e aquilo que afeta, na forma de dano, aos demais, não se pode desistir da tarefa, por mais árdua que seja. Para os efeitos desta pesquisa, não se faz necessário abordar de forma geral este ponto. O princípio liberal do dano justifica, assim, a coerção estatal para proteger terceiros contra danos ou riscos reais de dano produzidos por condutas primárias e diretamente heterorreferentes. Aqui já se percebe outra dificuldade. O que é dano? Para alguns, dano é o bloqueio de interesses relevantes de terceiros. Para outros, é uma interferência injustificada e indevida em direitos de terceiros (wrong)229. E o que é risco real de dano? Certo que não é risco remoto e distante, mas aquele que conta com probabilidade (empírica) de ocorrer. Mas qual é o patamar desta probabilidade? 229 FEINBERG, Harm to others..., p.31-36. Alemany sumaria com muita propriedade a discussão do conceito de dano trabalhado por Feinberg: “El concepto de daño de Joel Feinberg es básico para comprender su respuesta a la pregunta de qué conductas puede el Estado legítimamente criminalizar e, igualmente, es la base de la distinción conceptual entre los diferentes principios limitativos de la libertad. Sostiene Joel Feinberg que el término daño (estado dañado o condición dañada) tiene tres sentidos principales. En primer lugar, se usa “daño” en un sentido derivado o extendido, como cuando se dice que la ventana ha sido dañada o, en general, siempre que se habla de daño a las cosas. En todos estos casos, de una forma elíptica, lo que se quiere expresar es que el dueño de la cosa (o quien pudiera tener interés en ella) ha sido dañado. En este contexto, parece que se usa con mayor propiedad el término ‘daño’ cuando nos referimos al estado o la condición de cosas complejas que desarrollan cierta función y con partes diferenciadas también funcionalmente: por ejemplo, cuando se dice que un motor está dañado. En segundo lugar, en su sentido genuino, daño significa la frustración (setting back) de un interés. En esta definición, el término ‘interés’ se usa en el sentido en que se dice que ‘una persona tiene un interés en una compañía cuando es propietario de algunas de sus acciones’. Quien tiene un interés en algo, entonces apuesta por ese algo. En este sentido, los intereses son un tipo de riesgo. ‘En general, – dice Joel Feinberg – una persona apuesta por X (ya sea X una compañía, una carrera o algún tipo de ‘resultado’o acontecimiento) cuando acepta ganar o perder dependiendo de la naturaleza o condición de X’. Los intereses (en plural) de un sujeto se componen de todas las cosas sobre las que el sujeto tiene una apuesta, mientras que el interés (en singular) de un sujeto reside en avanzar armoniosamente todos sus intereses en plural. Nuestros intereses, o las cosas sobre las que tenemos un interés, son ‘componentes distinguibles del bienestar de una persona’. El Derecho está principalmente dirigido a evitar aquellos daños que son originados por la acción de otros individuos o por el propio sujeto dañado, aunque nuestros intereses puedan ser dañados, y con frecuencia lo son, por la mala suerte, la enfermedad o las catástrofes naturales. En tercer lugar, se usa ‘daño’ en un sentido normativo (el término usado por Joel Feinberg es wrong, que traduciré como ‘agravio’). ‘Una persona agravia a otra – explica Joel Feinberg – cuando su indefendible (injustificable e inexcusable) conducta viola los derechos de otro y, salvo ciertos casos muy especiales, tal conducta invadirá también los intereses de otro y así será dañosa en el sentido ya explicado’. Dado que continua e inevitablemente los individuos se dañan unos a otros, el Derecho debe seleccionar de entre los diferentes intereses aquellos que son dignos de protección jurídica y cuya frustración constituye, en consecuencia, un agravio”. ALEMANY, Macario García. El concepto y la justificación del paternalismo. Tesis (Doctorado em Filosofia del Derecho). Alicante: 2005, p.160161. Disponível em: http://www.cervantesvirtual.com/ FichaObra.html?Ref=14591&ext=pdf&portal=0. 118 Assume-se a posição, aqui, de que a definição de dano é normativa. Como diz Ernesto Garzón Valdés, “o conceito de ‘dano’ é um conceito com carga moral que pressupõe a determinação do que deve ser valioso e digno de proteção”230. Nesta etapa da tese, a definição do dano ficará em aberto, expondo-se apenas a carga moral que possui. Outro elemento importante para o adequado entendimento do princípio liberal do dano, especialmente no que se liga à disponibilidade dos direitos fundamentais, é o brocardo latino volenti non fit injuria. Dada sua relevância tanto para leitura do princípio liberal do dano quanto para o tema da disponibilidade dos direitos fundamentais, ele será estudado em separado, no próximo subitem. 2.3.1.1 Volenti non fit injuria, o princípio liberal do dano e disponibilidade dos direitos Oriundo do antigo Direito Romano, o brocardo volenti non fit injuria significa, em um primeiro olhar, que àquele que consente, nenhuma injúria é cometida231. Resta depurar o que se pretende dizer com a palavra injúria. Os estudiosos apontam duas interpretações possíveis. A primeira sustenta que injúria equivale, na frase, a dano. Ou seja, quando houver o consentimento, não haverá dano. Assim, em uma relação jurídica, se um dos polos consentiu com o comportamento (ativo ou omissivo) alheio, não poderá pleitear o dano sofrido, uma vez que ele simplesmente não ocorre quando houver consentimento. Na segunda linha interpretativa, reputada a mais adequada, o brocardo não se refere ao dano. O dano pode ocorrer mesmo nas relações em que houve consentimento genuíno. O que não haverá, quando existir consentimento, é o wrong232, ou seja, a intrusão indevida no(s) direito(s) do consentente. Embora sejam raros os casos nos quais há wrong sem que haja dano, tais hipóteses existem, mas são normalmente definidas ponderativamente (on balance), ou justamente em razão da presença do consentimento genuíno233. 230 VALDÉS, Ernesto Garzón. ¿És eticamente justificable el paternalismo jurídico? Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.5, 1988, p.171. “El concepto de ‘daño’ es un concepto con carga moral que presupone la determinación previa de lo que debe ser considerado valioso y digno de protección”. 231 FEINBERG, Legal..., p.4 e ss.; McCONNELL, Op. cit., p.31. 232 O termo wrong poderia ser traduzido como injustiça. Porém, o sentido que lhe é conferido é o de intrusão indevida e injustificada nos direitos alheios. Ver: FEINBERG, Harm to others…, p.33-34; MCCONNELL, Op. cit., p.32; ALEMANY, Op. cit., p.166 e ss. 233 FEINBERG, Harm to others…, p.34-35. “One person wrongs another when his indefensible (unjustifiable and inexcusable) conduct violates the other’s right, and in all but in certain very special cases such conduct will also invade the other’s interest and then be harmful in the sense already explained. […] One class of harms (in the sense of set-back interests) must certainly be excluded from 119 Joel Feinberg acredita que a interpretação mais correta do princípio liberal do dano é a que o elabora mediado pelo brocardo volenti non fit injuria no segundo sentido. Em assim sendo, pode haver dano mesmo que exista consentimento, porém, não haverá intrusão indevida no(s) direito(s) daquele que consentiu. O princípio do dano não atua sobre estas situações, de modo que a ausência de wrong afasta a sua incidência: “O princípio do dano não justificará a proibição de atividades consensuais mesmo quando elas tendam a causar dano a interesses das partes que consentiram; seu objetivo é prevenir apenas aqueles danos que são wrongs”234. Estudando detidamente J.S. Mill, conclui-se que a leitura de Feinberg soa bastante condizente com o princípio liberal do dano e com as aplicações feitas por Mill. Por isso, será aceita, nesta tese, a interpretação do princípio do dano mediado pela máxima volenti non fit injuria, sendo injúria a invasão indevida de direitos alheios (wrong). Ressalte-se, então, que o princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria parece dizer muito a respeito da disponibilidade dos direitos. Uma vez que ele não incide nos casos em que houve consentimento dos envolvidos, os direitos seriam, ao seu ensejo, disponíveis, pois não se justificaria uma proibição estatal na relação jurídica em seu nome. Porém, McConnell demonstra com clareza que essa conclusão absoluta acerca do princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria e a disponibilidade dos direitos é apressada. Pode perfeitamente não ocorrer a intrusão indevida (wrong) de direitos entre as partes que consentiram, mas, ao mesmo tempo, a relação pode repercutir em direitos de terceiros, caracterizando uma intrusão indevida (wrong). Ou seja, por vezes, mesmo em relações nas quais há consentimento, pode haver terceiros que tenham seus direitos injustificadamente impactados, abrindo margem para a atuação do princípio do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria. É bem formulada por McConnell a noção de que não há relação necessária e direta entre o mencionado brocardo e a disponibilidade dos direitos, pois pode ser que ao titular do direito nada seja causado, mas a terceiros, sim235. those that are properly called wrongs, namely those to which the victim consented. These include harms voluntarily inflicted by the actor upon himself, or the risk which the actor freely assumed, and harms inflicted upon him by the actions of others to which he has freely consented”. [sem grifos no original]. Apesar de Feinberg mencionar o risco e o dano autoinfligido, cabe recordar que ele considera que o consentimento somente pode ser estendido a tais situações como uma metáfora. FEINBERG, Legal..., p.4. 234 FEINBERG, Harm to others…, p.35-36. “The harm principle will not justify the prohibition of consensual activities even when they are likely to harm the interests of the consenting parties; its aim is to prevent only those harms that are wrongs”. 235 McConnell não está trabalhando de modo direto com o princípio do dano mediado pelo brocardo volenti, mas com o brocardo isoladamente. Porém, suas afirmações e conclusões podem ser transladadas, 120 2.3.2 O paternalismo jurídico Em contraste com o princípio liberal do dano, há o paternalismo jurídico e outros princípios afins limitadores da liberdade. Embora o paternalismo jurídico receba distintos conceitos, é possível encontrar-lhes uma origem comum, bem como importantes pontos de compartilhamento236. Conforme mencionado, a origem mais direta da noção de paternalismo jurídico está em J. S. Mill, no escrito On Liberty. Mill recusa, em grande medida, a possibilidade de a coerção estatal ser empregada com fulcro no paternalismo. Suas razões são importantes e por isso algumas palavras serão ditas a respeito, antes de adentrar na discussão contemporânea acerca do paternalismo jurídico. Gerald Dworkin elaborou um esquema adequado e interessante do argumento antipaternalista de Mill: 1. 2. 3. 4. 5. Uma vez que a constrição é um mal, o ônus da prova incumbe àqueles que propõem a constrição. Uma vez que a conduta considerada é puramente autorreferente, o apelo normal à proteção dos interesses alheios não está disponível. Então, nós teremos que considerar se as razões referentes ao próprio bem, felicidade, bem-estar ou interesses são suficientes para satisfazer o ônus da prova. Ou não há como angariar o interesse do indivíduo por meio da compulsoriedade, ou a tentativa de fazer isso envolve um mal que se sobrepõe ao bem realizado. Assim, a promoção dos próprios interesses dos indivíduos não oferece uma garantia suficiente para o uso da compulsoriedade237. sem maiores problemas teóricos, para o princípio do dano mediado pelo brocardo volenti. McCONNELL, Op. cit., p.31 e ss. 236 Embora J. S. Mill seja a referência mais empregada acerca das origens do paternalismo, é preciso não esquecer que Kant mostrou-se um importante opositor do paternalismo estatal. Na Doutrina do direito, essa postura kantiana é explicitada na máxima que rege o direito “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido ao arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”. Neste rumo, os limites à atuação estatal e jurídica estão na heteronomia (nos atos que envolvem o encontro de dois arbítrios) e não na autonomia (do sujeito para consigo ou do sujeito para com outros enquanto os outros não são arbítrios naquela relação, como ocorre na Doutrina da virtude). Também Humboldt, citado por Mill, adotou uma postura antipaternalista. KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes, passim; MILL, John Stuart. A liberdade..., passim; RAWLS, John. História da filosofia moral. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.165-375; A respeito das origens do paternalismo: ALEMANY, Op. cit., p.11 e ss. 237 DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.24. “1. Since restraint is an evil, the burden of proof is on those who propose such restraint. 2. Since the conduct that is being considered is purely self-regarding, the normal appeal to the protection of interests of others is not available. 3. Therefore, we have to consider whether reasons involving reference to the individual’s own good, happiness, welfare, or interests are sufficient to overcome the burden of justification. 4. Either we cannot advance the interests of the individual by compulsion, or the attempt to do so involves evil that out-weights the good done. 5. Hence, 121 Na afirmação 4, intitulada por Gerald Dworkin de “premissa operativa”, distinguem-se as duas ordens de argumentos usados por Mill para combater o paternalismo. A primeira é utilitarista, e, como tal, está fundada em um cálculo relativo às consequências, no caso, um de dano/benefício. Segundo Mill, a coerção, quando destinada aos atos autorreferentes, é sempre mais danosa do que a preservação da liberdade. A segunda ordem de argumentos, e mais forte, é a preservação do indivíduo como um agente, ou seja, como alguém hábil a empreender escolhas com liberdade e responsabilidade238. Este argumento está presente em todo o texto de On Liberty, com tanta intensidade que as ideias de agência individual e de transparência do sujeito para si mesmo aproximam Mill de uma doutrina moral abrangente liberal239. Nesse sentido, para Mill, o indivíduo é o melhor juiz de si mesmo; assim, o modo próprio de uma pessoa moldar sua existência será o melhor, não por ser o melhor em si mesmo, mas por ser o seu próprio modo240. O uso da coerção estatal, justificada pelo paternalismo, desrespeita essa premissa por não levar em consideração a decisão atual de uma pessoa e é, portanto, inaceitável na maciça parcela dos casos. Entretanto, a rejeição de Mill ao paternalismo jurídico e social não é absoluta como parece. Mill admite situações nas quais o paternalismo pode ser aceito. Uma delas é a ausência da faculdade para fazer escolhas, como acontece com crianças, portadores de transtornos mentais e pessoas em situação temporária de comoção. Mill também menciona o problema da falta de informação necessária na realização de uma conduta, no seu famoso exemplo da ponte. Uma pessoa pretende atravessar uma ponte, mas não sabe que ela está ruindo. Nesta hipótese, outra pessoa que presencia a cena teria de informar ao transeunte acerca do estado da ponte, para que ele possa decidir, por si mesmo, se vai atravessá-la. Caso não houvesse tempo, poderia impedi-la temporariamente de fazê-lo, até pelo exercício da força razoável. Aqui, percebe-se que em condições determinadas, presume-se um comportamento talvez não desejado e the promotion of the individuals own interests does not provide a sufficient warrant for the use of compulsion”. 238 No Capítulo 3, ao tratar da genuinidade do consentimento, será detalhado o que se entende por agente. 239 John Rawls denomina o liberalismo de Mill de “liberalismo abrangente”, uma vez que Mill acredita que as pessoas devem ser educadas para serem livres e assume a liberdade como um modo de vida, de certa forma, superior aos demais. Ver: RAWLS, John. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.221; MILL, John Stuart. A liberdade..., p.86-88; p.166 e ss. 240 MILL, John Stuart. On Liberty, p.63. As expressões usadas aproximam-se do original, mas não são, propriamente, uma tradução: “There is no reason that all human existence should be constructed on some one or some small number of patterns. If a person possesses any tolerable amount of common sense and experience, his own mode of laying out his existence is the best, not because it is the best in itself, but because it is his own mode”. 122 informa-se a pessoa sobre os riscos que corre. A informação, para Mill, não seria paternalismo (nem social, nem jurídico). Todavia, a proibição da conduta, caso, depois de informada do risco, a pessoa persistisse em seu intuito, configuraria paternalismo241. Por fim, Mill transmuda seu argumento quando atinge um caso-limite do paternalismo jurídico: os contratos de autoescravidão. Como diz Feinberg, se Mill seguisse sua premissa antipaternalista de modo absoluto, teria de aceitar tais contratos, mas isso seria “demais para Mill digerir”242. Mill argumenta que tais contratos não devem ser permitidos, pois a premissa forte da denegação do paternalismo é a proteção da liberdade e um contrato de autoescravidão aniquila toda a liberdade futura de uma pessoa. Destarte, a proteção da liberdade futura de uma pessoa escapa à refutação do paternalismo. Entretanto, nota-se que existe uma circularidade no argumento de Mill, que se apresenta como ninguém é livre para não ser livre. Além disso, Feinberg salienta que, levado a cabo para todos os casos, o argumento de Mill impediria até mesmo contratos de trabalho, pois, no período contratado, o empregado não fica livre para fazer o que quiser, tampouco fica o empregador livre para não pagá-lo. Ou seja, o caso-limite parece conduzir Mill à contradição. Então, para Feinberg, deve existir uma gradação neste argumento de Mill, ou deve-se recorrer a outros argumentos, como, e.g., a dignidade humana243. Para sumariar, pode-se dizer que diversas correntes liberais aceitam o princípio liberal do dano como justificação para a coerção estatal; algumas o veem como a única possível, outras, como uma das principais. O princípio liberal do dano, mediado pelo brocardo volenti non fit injuria, determina que poderá ser justificada a coerção estatal quando os atos heterorreferentes causarem ou ensejarem risco real de dano a terceiros, 241 Mill presume que ninguém deseja cair no rio. Por isso, admite o emprego da força se não houver tempo de informar. Segundo Mill: “A despeito disso, quando não existe, não a certeza, mas o perigo do dano, ninguém, além da própria pessoa, pode julgar a suficiência dos motivos que o podem levar a se expor ao risco; nesse caso, portanto (a menos que se trate de uma criança, de um desvairado, ou de alguém que esteja num estado de excitação ou absorção incompatível com o pleno uso da faculdade reflexiva), ela deveria, segundo penso, ser apenas advertida do perigo, e não impedida à força a se expor a isso”. MILL, John Stuart. A liberdade..., p.146-147 [sem grifos no original]. 242 FEINBERG, Joel. Legal..., p.12-13. “Mill’s earlier argument, if I understand it correctly, implies that people should be permitted to mutilate their bodies, take harmful drugs, or commit suicide, provided that the decision to these things is voluntary and no other person will be directly and seriously harmed. But voluntarily acceding to slavery is too much for Mill to stomach”. 243 FEINBERG, Joel. Legal..., p.13-14. O autor sugere os seguintes argumentos alternativos: (a) o padrão da voluntariedade; (b) questões pragmáticas e custos envolvidos na verificação da voluntariedade da conduta, além dos efeitos perversos do erro na verificação; (c) o argumento da exploração, válido em casos extremos; (d) dignidade humana (na fórmula do fim em si); (e) o ônus público (um argumento que é, para Feinberg, apenas um pouco paternalista). 123 entendendo-se dano como a intrusão indevida em direitos alheios (wrong). Sob esta ótica, o princípio liberal do dano poderá ser aplicado em casos de disposição de direitos, desde que o ato de disposição impacte indevidamente direitos de terceiros estranhos à relação de disposição244. Sucintamente entendido o princípio liberal do dano e sua relação contingente com a disposição de direitos, passar-se-á ao estudo mais detalhado do paternalismo jurídico. 2.3.2.1 Paternalismo jurídico: conceito e discussão contemporânea As discussões contemporâneas sobre o paternalismo jurídico serão aqui desenvolvidas apenas naquilo que é necessário para o estudo da disposição de direitos fundamentais. Inicia-se com o conceito de paternalismo jurídico e sua tipologia, seguido dos argumentos esgrimidos a favor e contra a possibilidade do paternalismo jurídico em um Estado Democrático de Direito. 2.3.2.1.1 Conceito e tipologia O conceito de paternalismo jurídico é mais estreito do que o de paternalismo desenvolvido por Mill e por diversos autores atuais, pois se refere à justificação de enunciados normativos jurídicos, sem expandir-se para outros campos das relações sociais. Ou seja, é uma espécie do gênero, pois o paternalismo poderá ser também social, como é, muitas vezes, o que se estabelece nas relações médico-paciente, nas famílias, em associações, entre outros. O que é, então, paternalismo jurídico? Dentre diversos conceitos de paternalismo jurídico, há como delimitar um mínimo denominador comum, nos seguintes elementos: (a) envolve uma ablação jurídica de posições subjetivas do(s) direito(s) de liberdade de um indivíduo ou grupo contra a sua vontade; (b) visa a proteger o próprio indivíduo que tem seu direito de 244 Essa alternativa pode soar, para alguns, demasiadamente egoísta e individualista. Entrementes, adiante se perceberá que tal crítica não pode ser formulada a priori, uma vez que as aplicações do princípio liberal do dano não excluem, de pronto, outros princípios limitadores da liberdade e há, na atualidade, outros eixos que devem ser pensados ao seu lado, como a dignidade humana. Ademais, há outros meios alternativos de promoção do bem alheio, como o incentivo e a educação. Mesmo Mill já chamou atenção para este fato: “Seria um grande equívoco supor que essa doutrina defenda uma indiferença egoísta, pretendendo que os seres humanos não tenham direito de interferir na maneira como os outros se comportam, e que não deveriam se preocupar com a boa-conduta e o bem-estar dos outros, a menos que seu próprio interesse esteja em jogo. Em vez de uma diminuição, há necessidade de maior aumento do esforço desinteressado para promover o bem alheio. Mas a benevolência desinteressada é capaz de encontrar outros meios de persuasão que não a chibata e o açoite, quer em sentido literal ou metafórico. Eu seria a última pessoa a subestimar o valor das virtudes pessoais; somente ficam atrás, se é que ficam, das virtudes sociais. É tarefa da educação cultivá-las igualmente”. MILL, John Stuart. A liberdade..., p.116-117. 124 liberdade constrito, ou seja, o que justifica a ablação é a proteção do indivíduo em relação a seus próprios comportamentos; (c) não se confunde com o princípio liberal do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria, pois os comportamentos que o justificam são autorreferentes ou remota e indiretamente heterorreferentes245. Em primeiro lugar, o paternalismo jurídico está ligado à constrição de poisções subjetivas do(s) direito(s) de liberdade de indivíduos ou grupos. Segundo o estudado anteriormente, a liberdade jurídica é compreendida de formas diferentes, especialmente 245 Confiram-se alguns conceitos de paternalismo. Joel Feinberg define: “The principle of legal paternalism justifies state coercion to protect individuals from self-inflicted harm or, in its extreme version, to guide them, whether they like it or not, toward their own good”. Em Gerald Dworkin há duas definições, sendo a segunda uma revisão da primeira. O autor define tanto o paternalismo jurídico quanto o social: “By paternalism I shall understand roughly the interference with a person’s liberty of action referring exclusively to the welfare, good, happiness, needs, interests, or values of the person being coerced”. Conforme Gerald Dworkin, o paternalismo sempre envolverá limitações nas liberdades de alguns indivíduos em nome de seus próprios interesses, mas pode estender-se às liberdades de partes cujos interesses não estão em questão. É distintivo do paternalismo que, no momento em que ele é aplicado, a pessoa não reconhece a proteção nem o benefício da medida. Em seu primeiro conceito, Gerald Dworkin associou o paternalismo a intervenções coercitivas. Devido às críticas que recebeu, modificou seu posicionamento e passou a aceitar como paternalistas algumas medidas promocionais e de dificultação de acesso a comportamentos ou produtos, bem como a omissão de informações importantes que impedem o conhecimento, pelo sujeito que sofre a medida paternalista, sobre a sua ocorrência. Eis seu segundo conceito: “There must be a violation of a person’s autonomy (which I conceive as a distinct notion from that of liberty) for one to treat another paternalistically. There must be a usurpation of decision-making, either by preventing people from doing what they have decided or by interfering in the way in which they arrive at their decisions”. Ernesto Garzón Valdés liga paternalismo e coerção: “La intervención coactiva en el comportamiento de una persona a fin de evitar que se dañe a sí mesma es generalmente llamada ‘paternalismo’ […] El paternalismo jurídico sostiene que siempre hay una buena razón a favor de una prohibición o de un mandato jurídico, impuesto también en contra de la voluntad del destinatário de esta prohibición o mandato, cuando ello es necesario para evitar un daño (físico, psíquico o económico) a la persona a quien se impone esta medida”. Manuel Atienza define o paternalismo de modo amplo, mas, como será estudado, aceita-o como justificado estreitamente: “Una conducta (o una norma) es paternalista si y sólo si se realiza (o establece): a) con el fin de obtener un bien para una persona o personas afectadas (es decir, de los presuntos beneficiarlos de la realización de la conducta o de la aplicación de la norma”. Paulette Dierlen adere ao conceito de Van de Veer, cujos elementos são o cuidado com alguém (o motivo benevolente ou bem-intencionado) e o controle (a ação contrária à vontade do sujeito). Dan Brock expressa um conceito que considera impreciso, mas que atende aos seus propósitos em um dos seus trabalhos:“Paternalism is action by one person for another’s good, but contrary to their present wishes or desires, and not justified by the other’s past or present consent”. H.L.A. Hart considera que o paternalismo é “the protection of people against themselves”. Ele o aceita em larga medida, revisitando criticamente o pensamento de Mill. Todavia, Hart se opõe ao moralismo legal, que significa o uso da coerção para impedir atos intrinsecamente imorais, à luz da moralidade positiva. Ronald Dworkin trabalha a temática do paternalismo jurídico na obra A virtude soberana. Segundo Ronald Dworkin, o paternalismo não se confunde com o majoritarianismo, pois não tem assento na sobreposição da vontade da maioria sobre a da minoria, mas na ideia de que as pessoas que vivem em uma comunidade política possuem responsabilidade umas com as outras. O emprego coercitivo do direito para a promoção do bem-estar alheio caracteriza o paternalismo. FEINBERG, Joel. Legal..., p.3; DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.20; DWORKIN, Gerald. Paternalism: some…, p.105-106; BROCK, Dan. Paternalism and promoting the good. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987, p.238 e p.258, nota n.5; VALDÉS, Op.cit., p.155-156. ATIENZA, Manuel. Discutamos sobre paternalismo. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.5, p.203, 1988; DIETERLEN, Paulette. Paternalismo y estado de bienestar. Doxa: Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.5, p.185, 1988; HART, Law…, p.31-33; p.25 e ss.; DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.298-299. 125 quanto à amplitude do direito subjetivo à liberdade. A adoção da tese de um direito geral de liberdade ou da tese das liberdades básicas refletir-se-á diretamente quando o assunto for o paternalismo jurídico. Assim, seguida a tese do direito geral de liberdade, qualquer interferência constritiva na liberdade jurídica deverá suprir o ônus argumentativo. Por outro lado, seguida a tese das liberdades básicas, apenas se elas forem atingidas é que se poderá falar, propriamente, em constrição de direito estrito. Se uma liberdade básica não se fizer presente, haverá uma mera configuração de privilégios, os quais, como sabido, não envolvem, necessariamente, um dever correlato de não-intervenção (tampouco será um caso de imunidade ou de não-competência). Em sendo assim, algumas medidas que seriam reputadas de paternalismo jurídico na primeira ótica (direito geral de liberdade) poderiam não sê-lo na segunda, uma vez que seriam configurações triviais de privilégios246. Nesta tese, por razões já elencadas, aderiu-se à noção de um direito geral de liberdade e, por isso, qualquer interferência com a liberdade jurídica carece de argumentação suficiente. Portanto, o desafio será saber se e quando o paternalismo jurídico preenche essa exigência. Em segundo lugar, medidas jurídicas visando a alterar comportamentos autorreferentes podem assumir diversas formas. Há a coercitividade estatal direta, muitas vezes pela prática do jus puniendi; há o não-reconhecimento jurídico de certos atos e a consequente não-abertura do maquinário estatal para protegê-los ou executá-los; há o emprego de meios para afastar as pessoas de certas práticas e produtos, como a tributação, o controle da propaganda comercial, o controle sanitário; há atos de promoção, de dissuasão e de educação. Ao obter o mínimo denominar comum entre vários conceitos de paternalismo jurídico contemporâneos, percebeu-se que ele está na coerção – principalmente nas hipóteses que envolvem o direito penal –, na direta 246 Presuma-se que a obrigatoriedade do uso de cintos de segurança seja uma medida justificada pelo paternalismo jurídico. Para aqueles que adotam a tese do direito geral de liberdade, será necessário demonstrar, argumentativamente, que se trata de um caso justificado de paternalismo jurídico, ou que há outro princípio justificador da medida. Já para quem adota a tese das liberdades básicas, pode-se entender que o uso de um automóvel sem cinto de segurança não é uma liberdade básica, não havendo, pois, necessidade de se discutir o paternalismo jurídico. O exemplo dos cintos de segurança é de Gerald Dworkin. Aliás, a posição dele contribui para tornar o ponto mais claro. Em seu primeiro artigo sobre o paternalismo, G. Dworkin labutou com um conceito amplo de liberdade e enfrentou dificuldades argumentativas importantes. Em artigo posterior, ele reviu seu posicionamento e elaborou uma distinção entre liberdade (privilégio) e autonomia, entendendo que o paternalismo somente se faria presente se houvesse interferência na autonomia, e não na liberdade (no sentido de privilégio). E assim ele descarta diversas hipóteses, por considerá-las interferências triviais na liberdade. Frisa-se, porém, que a diferença feita entre liberdade e autonomia não é idêntica a que existe entre o direito geral de liberdade e as liberdades básicas. Ver: DWORKIN, Gerald, Paternalism, passim; DWORKIN, Gerald, Paternalism: some…, passim. Para a compreensão das nuances sobre autonomia e liberdade em G. Dworkin, ver: ALEMANY, Op. cit., p.111 e ss. 126 proibição e, em menor monta, no não-reconhecimento jurídico de condutas247. Neste rumo, medidas de tributação, de regulação, de dificultação de acesso, de desencorajamento, de promoção e de educação quanto a comportamentos autorreferentes não seriam, propriamente, ablações na liberdade jurídica, e, portanto, não precisariam justificação e não abririam o caminho para o paternalismo jurídico. No entanto, Daniel Wikler chama a atenção para a delicadeza da diferença entre medidas de coerção, proibição, não-reconhecimento jurídico e as demais. Com exemplos, o autor demonstra que muitas medidas de promoção podem também ser vistas como coercitivas, tornando simplesmente semântica uma diferença real. A advertência de Wikler é de se levar a sério, pois a ausência de cuidado com a distinção poderia significar um cheque em branco para certas atividades estatais apresentadas como não coercitivas. A proposta é, pois, um detalhado estudo caso a caso, para que se perceba toda e qualquer ablação do direito de liberdade, mesmo por medidas tarjadas de simplesmente promocionais248. A preocupação de Wikler com o tipo de ablação da liberdade relaciona-se com a amplitude do direito de liberdade, mencionada no parágrafo anterior. Mais uma vez, como a opção desta tese foi a de arcar com o ônus argumentativo à luz de um direito geral de liberdade, em cada situação haverá necessidade de perscrutar se medidas chamadas de não-coercitivas e de não-proibitivas podem efetivamente ser vistas somente deste ângulo, ou se interferem com o direito geral de liberdade ou outras liberdades. Quando do estudo do consentimento, no Capítulo 3, alguns pontos da questão serão retomados. Entende-se, pois, que o paternalismo jurídico envolve ablações no direito de liberdade sob a forma de coerção, proibição, não-reconhecimento jurídico de atos, não- 247 O não-reconhecimento jurídico de algumas condutas pode ensejar a ausência de liberdade jurídica para a sua realização. Isso se dá, muitas vezes, pela negação da competência jurídica para determinados atos. Porém, em situações como essa, a liberdade fática pode ainda ter espaço, mas não contará com o aparato estatal – especialmente o jurisdicional – para o seu apoio. Sobre a ligação entre liberdade jurídica e competência, ver item 1.2.3.2.1.4, no Capítulo 1. A respeito, consultar também: ALEMANY, Op. cit., p.122-124. 248 Nas palavras do autor: “Some of the most difficult problems addressed in the philosophical literature arise in the present context: What is the difference between persuasion and manipulation? Can offers and incentives be coercive, or is coerciveness a property only of threats? And can one party be said to have coerced another even if the latter manages to accomplish that which the first part have tried to prevent?”. Segundo Wikler, medidas de incentivo e de promoção pretendem, ao fundo, modificar comportamentos, e se torna difícil saber até que ponto a movimentação está no campo da informação ou da manipulação. Para ele, porém, é possível investigar, em cada situação, o que está em jogo. WIKLER, Daniel. Persuasion and coercion for health. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987, p.52-53. 127 informação ou manipulação de informação, bem como de atos indiretos, que dificultam excessivamente o acesso a certos comportamentos e produtos, a ponto de torná-los impraticáveis249. Em linha de princípio, a informação, a persuasão, os programas educativos e promocionais não configuram paternalismo jurídico. Porém, cada um deles deverá ser avaliado cautelosamente, para que sejam evitadas proibições travestidas de mera promoção. Em terceiro lugar, o paternalismo jurídico destina-se ao bem da própria pessoa que tem sua liberdade constrita pela medida, tratando-se, ainda, de um bem por ela não aceito e nem reconhecido como tal. As noções de benevolência e de boas-intenções caracterizam o paternalismo, pois ele visa a proteger a pessoa contra si mesma, quer em relação a comportamentos autoinfligidos ou consentidos que afetam negativamente sua condição física, psicológica ou econômica, quer em relação a comportamentos autoinfligidos ou consentidos que diminuem a sua própria felicidade, ou impedem ou dificultam a conquista dos seus próprios interesses. Entrementes, o indivíduo paternalizado não endossa e nem consente, no momento da medida, com o que se considera o melhor para ele. Nota-se, pois, que a medida paternalista pauta-se por aquilo que se reputa, do ponto de vista externo, melhor para um indivíduo ou grupo, quanto ao seu estado físico, psicológico ou econômico, bem como à sua felicidade e aos seus interesses250. 249 Vale salientar que Ronald Dworkin, quando trabalha diretamente com o paternalismo jurídico, está se referindo aos limites morais do direito penal. Portanto, suas definições, seus argumentos e suas conclusões estão ligadas à coercitividade estatal em sua mais forte manifestação. Também Feinberg, em muitas ocasiões, está interessado no exame do direito penal. Gerald Dworkin, por sua vez, amplia a análise e não se atém prioritariamente no direito penal. Ver: FEINBERG, Joel. Harm to others..., p.3; DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.290-291; DWORKIN, Gerald, Paternalism: some..., passim. 250 Optou-se por não empregar a palavra bem-estar no contexto do paternalismo, uma vez que ela pode ser objeto de incompreensões e ambiguidades. Muito do atual cunho pejorativo da expressão paternalismo jurídico advém de críticas feitas por aqueles que Valdés denominou de neoconservadores, que se opõem ao Estado de Bem-Estar Social e também aos direitos sociais, por considerá-los frutos de injustificáveis medidas paternalistas. Nesta tese, que versa prioritariamente sobre direitos individuais, não cabe penetrar no intrincado debate acerca da justificação dos direitos sociais, da extensão de sua jusfundamentalidade, tampouco de sua justiciabilidade. Mas é de extrema relevância desnudar alguns elementos quanto ao paternalismo e os direitos sociais. Em primeiro plano, as medidas de proteção aos direitos sociais não são desenhadas para proteger um grupo contra si mesmo contra a sua vontade. Em geral, são medidas endossadas pelo grupo que tem o seu bem-estar protegido, representando conquistas históricas de tais grupos em face de outros. Nesse particular, a história dos direitos sociais é muito diferente daquela dos direitos individuais, e a interpretação deve atentar também a esses elementos históricos. Além disso, como bem anota Gerald Dworkin, a estratégia de grupo é muitas vezes necessária para que se possa angariar o que se pretende. E isso seria uma característica dos chamados direitos sociais (o autor usa a ideia dos contratos de Ulisses, nos quais o próprio indivíduo ou grupo pretende sua autocontenção). Paulette Dieterlen crê ser necessário manter a atenção à diferença entre políticas paternalistas e políticas de justiça distributiva, tanto quanto entre integração cultural e desenvolvimento social. Ver: DWORKIN, 128 Em quarto lugar, o paternalismo jurídico serviria como justificação a constrições de posições subjetivas do direito geral de liberdade em sentido estrito em casos nos quais o princípio liberal do dano, mediado pelo brocardo volenti non fit injuria, não incidir. Fica marcado, então, que não há justificação na proteção de intrusões injustificadas em direitos de terceiros (ou risco de intrusão). Se essa justificação existir, não se está diante do paternalismo jurídico, mesmo que se trate de condutas autorreferentes. Examinados os componentes conceituais, tem-se que o paternalismo jurídico apresenta-se como um argumento que justificaria a constrição posições subjetivas de um direito de liberdade (geral ou específico), autorizando o emprego da coerção, da proibição, do não-reconhecimento jurídico de atos ou de mecanismos análogos, para a proteção do indivíduo ou grupo contra comportamentos próprios autoinfligidos ou consentidos, sem contar com o endosso atual dos que são destinatários da medida251. É preciso, agora, compreender as discussões e os argumentos sobre a admissibilidade do paternalismo jurídico. Nos debates acerca da admissibilidade do paternalismo jurídico, uma das alternativas foi a construção de uma tipologia. A depender do tipo, ele poderia, sem maiores dúvidas, ser aceito em um Estado Democrático de Direito. Dentre os principais tipos, estão os seguintes: (a) Paternalismo forte e fraco: o paternalismo fraco é aquele aplicado em indivíduos ou grupos em que há sólidas razões para acreditar que a capacidade para tomar decisões não seja plena, como crianças, adolescentes e portadores de transtornos mentais severos. Já o paternalismo forte é Gerald, Paternalism: some…, p.109-111; DIETERLEN, Paulette. Paternalismo..., passim; VALDÉS, Op. cit., p.155-156. Em sentido oposto: NOZICK, Op. cit., passim. 251 É muito controversa a questão do endosso ou do consentimento a posteriori. Na tentativa de justificar o paternalismo jurídico, poder-se-ia recorrer à ideia de um consentimento ou endosso hipotético ou posterior da pessoa ou do grupo sobre quem o paternalismo é empregado. A via é bastante tortuosa, pois parte do pressuposto de que o indivíduo não compreende o bem que lhe é feito, mas compreenderá no futuro. Tal premissa é, em si mesma, frágil, pois desconsidera a habilidade de compreensão e de escolha de indivíduos ou grupos. Além disso, pode ser que tal consentimento ou endosso jamais se apresente, ou ainda que seja manipulado pela eliminação de alternativas. Aqui, Ronald Dworkin, com propriedade, afirma que devem existir restrições ao endosso, senão o paternalismo poderia se justificar até mesmo por lavagem cerebral ou por processos químicos. Afirma o jusfilósofo: “Não melhoraríamos a vida de ninguém, mesmo que a pessoa endossasse a mudança que realizamos, se os mecanismos empregados diminuíssem sua capacidade de analisar os méritos críticos da mudança de modo reflexivo”. Porém, em situações bem específicas, e por curto intervalo, seria uma hipótese aceitável – paternalismo cirúrgico (e.g., casos de drogadição). Ver DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.299 e ss. (especialmente os Capítulos 5 e 6, intitulados A comunidade liberal e A igualdade e a vida boa, respectivamente). Sobre o tema, Infra, Capítulo 3, item 3.2.2.3. 129 aplicado a indivíduos ou grupos que, uma vez informados, são considerados hábeis a tomar decisões252. (b) Paternalismo duro e débil: o paternalismo débil refere-se à interferência com os meios disponíveis para que um indivíduo atinja seus fins, se for provável que certos meios distanciem-no de seus fins. Já o paternalismo duro movimenta os fins selecionados pelos indivíduos, entendendo que eles podem estar confusos ou enganados quanto a seus próprios fins253. (c) Paternalismo puro e impuro: O paternalismo puro ocorre quando o indivíduo ou grupo que tem sua liberdade constrita é o mesmo cujo bem é pretendido. Já no paternalismo impuro, os indivíduos ou grupos que têm sua liberdade constrita não se identificam exatamente com aqueles cujo bem se promove pela medida – os protegidos podem incluir o grupo, mas não constituem sua totalidade254. Essa tipologia conduziu a um consenso bastante significativo no que toca à aceitação do paternalismo fraco, dada a sua aplicação a indivíduos cuja habilidade para tomar decisões – as habilidades da agência -, é (ou está), por razões plausíveis, diminuída ou até ausente. Entretanto, o paternalismo forte já não encontra aceitação, salvo em casos excepcionais, como será visto nos tópicos que seguem. Quanto ao paternalismo débil e duro, há debates acerca da sua possibilidade quando se leva em conta erros de fato cometidos pelos indivíduos (e.g., acreditar que o tabaco não faz mal à saúde por conhecer alguns fumantes longevos). Da mesma forma, debate-se sua impraticabilidade quando se consideram questões valorativas (e.g., conhecer os malefícios causados pelo tabaco, mas adotar uma atitude hedonista por convicção)255. Desta feita, a distinção entre tipos de paternalismo jurídico auxilia na compreensão da sua aceitabilidade e, como referido, conduziu a um consenso 252 Essa classificação é atribuída a Joel Feinberg. FEINBERG, Legal..., p.17. Ver também: DWORKIN, Gerald, Paternalism: some..., p.107-108. 253 No caso do paternalismo débil, verifica-se o que um indivíduo prefere. Se ele efetivamente prefere a segurança à conveniência, pode ser compelido a usar o cinto de segurança, pois o cinto é o meio mais adequado para angariar o fim realmente pretendido. Porém, se um indivíduo prefere a sensação de liberdade proporcionada por usar uma motocicleta sem capacete à segurança, e mesmo assim é obrigado a usar, tratar-se-ia de paternalismo duro. Gerald Dworkin menciona que existe uma diferença entre o que denomina um erro de fato e um erro quanto a valores, oferecendo o exemplo nozickiano de uma pessoa que decide pular de uma janela. Se ela o faz porque pensa que assim irá voar, há um erro de fato. Se ela o faz por convicção (e.g., por um ideal), há valores em jogo. DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.30-31. 254 Um exemplo de paternalismo impuro seria a proibição de produção, venda e comercialização de tabaco. DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.22. Tasmbém no contexto da morte com intervenção ele pode se apresentar nas duas formas, caso a proibição da limitação consentida de tratamento, da eutanásia e do suicídio assistido seja justificada somente em argumentos paternalistas. Aos pacientes, seria o paternalismo puro. Aos médicos e demais profissinais da saúde, impuro. 255 No número da Revista Doxa dedicado ao paternalismo, Ernesto Garzón Valdés, um fumante, considerava um inaceitável ato de paternalismo a proibição do tabaco, ao passo que os outros estudiosos assumiram uma opção mais cautelosa a respeito, mencionando, inclusive, que a posição de Valdés deviase ao fato de ser ele um fumante convicto. 130 importante acerca da aceitação do paternalismo fraco. Expostos os tipos de paternalismo, passa-se à descrição dos argumentos contrários e favoráveis à aceitação do paternalismo forte, débil, duro, puro e impuro. 2.3.2.1.2 Os argumentos O paternalismo jurídico apresenta-se como um princípio alternativo ao princípio liberal do dano mediado pelo brocardo volenti non fit injuria para justificar constrições ao direito geral de liberdade, ou a outros direitos, dependendo da hipótese. Uma vez que sua aceitabilidade é controversa, serão descritos, com brevidade, os principais argumentos favoráveis e contrários à prática do paternalismo jurídico: (a) Argumentos favoráveis à aceitação do paternalismo jurídico: (a.1) sua não-adoção implica o descaso com os concidadãos, representando a quebra de vínculos que deveriam unir as pessoas em uma sociedade política; (a.2) é possível identificar um caráter objetivo de bem, seja ele físico, econômico ou psicológico, ou, ainda, quanto àquilo que pode tornar as pessoas mais felizes e auxiliá-las a obter seus interesses. Isso torna não apenas viável que a sociedade política busque a proteção dos indivíduos ou grupos, mas também determina uma de suas funções; (a.3) o paternalismo jurídico, na medida em que busca o bem dos indivíduos, incrementa a utilidade (prazer, felicidade, ausência de dor, bemestar...), ou seja, atende a pressupostos utilitários; (a.4) existem inúmeras medidas jurídicas paternalistas nas sociedades políticas atuais, cuja plausibilidade é aceita; (a.5) a recusa do paternalismo jurídico tem por base uma concepção de indivíduo oriunda de psicologia milliana oitocentista, que sustenta que o sujeito é mais transparente para si e mais opaco para os demais. (b) Argumentos contrários à aceitação do paternalismo jurídico: (b.1) o paternalismo jurídico desconsidera ou oferece pouca importância à liberdade individual; (b.2) o paternalismo jurídico não se coaduna com o fato do pluralismo; (b.3) o argumento paternalista possui um caráter ad infinutum que o torna demasiadamente arriscado; (b.3) não há possibilidade de se definir objetivamente um bem e, por vezes, quando há, sua imposição pode levar a uma domesticação de corpos e mentes; (b.4) o paternalismo jurídico é demasiadamente aberto ao desvio e ao mau uso; (b.5) o paternalismo jurídico impede que os indivíduos sejam tratados como sujeitos morais iguais. Para evitar equívocos, é necessário firmar a diferença que existe entre o paternalismo jurídico e as propostas comunitaristas. Como se sabe, na filosofia 131 constitucional contemporânea há um intenso debate entre os chamados liberais e os comunitaristas256. O paternalismo jurídico situa-se no arco liberal, não no comunitarista, pois a “unidade de agência”, no paternalismo jurídico, está com os indivíduos, ao passo que no comunitarismo essa “unidade de agência” se dilui e passa a ser a comunidade. O comunitarismo parte de outro pressuposto de sujeito moral, que torna supérfluos muitos debates acerca do paternalismo jurídico257. A distinção é relevante do ponto de vista teórico, dadas as concepções de sujeito que lhe são subjacentes e as construções argumentativas de cada uma. Porém, do ponto de vista prático, do resultado a que chegam, elas podem confundir-se. Apesar da adesão à concepção do indivíduo como unidade de agência, alguns argumentos de aceitação do paternalismo jurídico preocupam-se justamente com o excessivo isolamento do indivíduo, o que revelaria uma impossibilidade de criação ou uma quebra de laços que deveriam existir em uma sociedade política. Alia-se a esse raciocínio a crítica à intitulada psicologia oitocentista de Mill, que veria um indivíduo totipotente quanto aos seus planos de vida, cuja identidade constituir-se-ia sem amarras ao grupo social ou político no qual se insere258. Sob esta visão, a recusa ao paternalismo jurídico configuraria uma sociedade política que não se preocupa com os destinos daqueles que nela vivem, que não previne os prejuízos autocausados e origina um clima de egoísmo259. 256 Na filosofia constitucional contemporânea, são identificáveis diversos marcos teóricos relevantes, entre eles, o libertarianismo, situado em um extremo do espectro liberal, os liberais, os liberais igualitários (que podem figurar no outro extremo do espectro liberal), as teses do reconhecimento (que podem ser conciliáveis com o marco liberal ou não), o utilitarismo, o republicanismo cívico, a democracia radical e o comunitarismo, o qual, assim como o marco liberal, também possui variações, podendo ser mais ou menos intenso. Existem os marcos discursivos, em diversas ocasiões conciliáveis com algumas versões liberais moderadas e com teses de reconhecimento. Há também as teses feministas e a chamada ética da virtude. Muitos desses marcos deitam raízes em fontes filosóficas não novas, relidas e remoldadas, como o pensar kantiano, o aristotélico-tomista, o benthaminiano e o hegeliano. Para uma visão panorâmica sobre o assunto: KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 257 A diferenciação entre níveis de integração comunitária, unidade de agência, regra da maioria, paternalismo jurídico, republicanismo cívico e comunitarismo está muito bem explicitada em: DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.292 e ss. 258 Na sua famosa contenda com Lord Devlin, Hart critica a psicologia milliana, qualificando-a de ultrapassada. Esse entendimento leva-o a aceitar o paternalismo jurídico – por ele concebido como a “proteção das pessoas contra si mesmas” – como uma “perfectly coherent public policy”. Porém, o conceito de Hart confina-se a questões físicas (e.g., saúde), econômicas (e.g., questões redistributivas) ou mesmo psicológicas (e.g., uso de entorpecentes), passíveis de comprovação. Hart diferencia o paternalismo jurídico do moralismo jurídico, que seria imposição da moralidade como tal, isto é, o emprego do aparato estatal para combater a imoralidade em si, com apoio na moralidade positiva (em detrimento da moralidade crítica). Em sendo assim, não haveria justificação para o moralismo jurídico, ao passo que haveria para o paternalismo jurídico. HART, Law..., p.25-34. 259 Ver, por exemplo: FEINBERG, Legal..., p.13; DWORKIN, Ronald, A virtude…, p.332-333 132 A crítica do isolamento egoísta é incrementada quando se acreditar que é possível identificar um caráter objetivo no bem (ou, pelo menos, quanto a algumas de suas parcelas). Ora, se a sociedade política conhece os malefícios de certos comportamentos, ainda que autorreferentes ou remota e indiretamente heterorreferentes, consentidos ou autoinfligidos, por que não proteger os indivíduos, ainda que coercitivamente? Se for possível auxiliar os indivíduos a serem mais felizes ou a atingirem os seus reais interesses, por que não empregar o aparato jurídico coercitivo para tanto? Não seria exatamente uma ação ordenada para sociedade política agir no sentido de criar laços de solidariedade entre os indivíduos? Em um patamar menos elevado, a pergunta também poderá ser a seguinte: Por que permitir que certas pessoas se comportem de forma a causar ônus futuros para os demais? Parece que isso exigiria que, quando o ônus efetivamente surgisse, os demais teriam que optar pela indiferença, no sentido da expressão: “ele fez a sua própria cama”.260 Outra maneira de defender o paternalismo jurídico é o emprego de um marco teórico utilitarista. A depender do que for entendido como o critério de utilidade (bemestar, felicidade, prazer) a sua maximização justificaria a adoção do paternalismo jurídico, a despeito dos direitos dos indivíduos paternalizados261. Permanece, ademais, a reflexão sobre um contingente importante de enunciados normativos de cunho paternalista que são aceitos, disseminados e considerados razoáveis. Esse argumento, embora pareça assumir uma justificação a partir de fatos, podendo incorrer em uma falácia naturalista, não deixa de possuir sua relevância, uma vez que os enunciados são também avaliados de um ponto de vista normativo e, deste ponto de vista, considerados plausíveis. Outrossim, cabe apontar considerações de relevo contra a admissibilidade do paternalismo jurídico. Inicialmente, levanta-se a questão da liberdade individual. O 260 FEINBERG, Legal..., p.13. Ao comparar esse argumento com aquele forjado por Mill, vê-se que, atualmente, a admissibilidade do paternalismo é que é sustentada por utilitaristas. Dan Brock manifesta com clareza que, quanto ao paternalismo, uma vez que questões de fato são postas à parte, “we encounter old familiar antagonists: on the one side, those who appeal to a cost/benefit, or general consequentialist calculus in support of the interference, and, on the other, those who resist the interference with an appeal to a general right to liberty, self-determination or autonomy. And this in turn suggests that the dispute can be finally settled only by settling the adequacy of a general consequentialist moral theory in comparison with theories that hold that persons have basic moral rights that consequentialist considerations do not, at least sometimes, justify infringing”. As palavras de Brock podem parecer confusas, pois um dos argumentos de Mill contra o paternalismo era justamente o utilitarismo. Entretanto, os estudiosos mais recentes do tema do paternalismo convergem bastante quanto ao equívoco do pensar milliano neste aspecto, ou seja, os cálculos de utilidade podem se mostrar favoráveis ao paternalismo jurídico. Ver: BROCK, Paternalism..., p.237. Sobre o argumento utilitarista de Mill, ver: VALDÉS, Op.cit., p.158-159. 261 133 paternalismo jurídico, embora formulado por razões benevolentes, desconsidera a habilidade dos indivíduos de assumirem o seu próprio destino e de fazerem as suas escolhas de vida, de sorte que impede ou dificulta, sob o marco da coercibilidade jurídica, o exercício de poisções subjetivas de direitos em nome da proteção dos próprios titulares. A tutela jurídica das liberdades (seja o direito geral ou outros direitos específicos de liberdade) possui, é fato, como premissa a unidade de agência individual. Mas isso não significa, segundo muitos argumentos antipaternalistas fundados na liberdade, que a sociedade política não possa, por outros meios, prevenir determinados comportamentos autorreferentes. Ou seja, não se presume um descaso nem a quebra de laços de solidariedade que podem unir os indivíduos, tampouco o marco liberal é incapaz de admitir que os indivíduos sejam “todos, evidente e profundamente, criações da comunidade”262. Destarte, o argumento não precisa ir tão longe a ponto de sustentar o descaso para com os demais membros de uma sociedade política. Ele apenas nega que o direito geral de liberdade (ou outros direitos específicos de liberdade) possam ser constritos coercitivamente em nome do paternalismo jurídico. Aliada a esta linha de pensar, tem-se a noção de que indivíduos tutelados paternalisticamente aderem a determinados comportamentos por ausência de alternativa ou por temor à sanção, o que os tornaria menos preparados para o exercício da liberdade e da moralidade crítica263. Em trilha paralela, está o argumento do fato do pluralismo. Muitas medidas paternalistas são tomadas tendo em conta certos padrões, comportamentais ou culturais, ou conhecimentos científicos. Porém, muitos indivíduos ou grupos, nas sociedades atuais, preferem, por escolha informada, não aderir a tais padrões ou não compactuar com alguns fatos comprováveis cientificamente, isto é, apreciam tais conhecimentos de um prisma normativo e não os aceitam (exercício de moralidade crítica)264. Nesse 262 Dworkin, Ronald, A virtude..., p.305. Também John Rawls, que concebe o sujeito como capaz de fazer as suas próprias escolhas de bem, admitiu sua inserção na sociedade e na comunidade. RAWLS, Justiça como..., p.26 e ss. 263 Feinberg desenvolve este argumento. A terminologia “moralidade positive” e “moralidade crítica” foi tomada de empréstimo de H.L.A. Hart: “To make this point clear, I would revive the terminology much favoured by the Utilitarians of the last century, which distinguished ‘positive morality’, the morality actually accepted and shared by a given social group, from the general moral principles used in the criticism of actual social institutions including positive morality. We may call such general principles ‘critical morality’ […]”. HART, Law..., p.20. 264 Gerald Dworkin discute a temática do conhecimento científico e da autonomia. Para alguns estudiosos, se existir comprovação científica de um fato ou grupo de fatos (nas ciências ditas duras), não haveria espaço para o exercício da moralidade a seu respeito. Gerald Dworkin enfrenta com seriedade essa premissa, apresentando razões deveras convincentes sobre suas falhas. Muitas comprovações científicas são valoradas pelas pessoas, que refletem e agem moralmente quanto a elas. Em um exemplo extremo (que não é do autor), pode-se dizer que o estado da arte científico comprova a impossibilidade de ressurreição, mas milhões de cristãos seguem crendo que ela ocorreu. Ver: DWORKIN, Gerald. The 134 sentido, o paternalismo jurídico poderia conduzir à padronização, à domesticação de corpos e de mentes, convertendo políticas estatais em doutrinas morais abrangentes, que se irradiariam a todos os espaços da vida do indivíduo ou grupo e minariam o pluralismo, além de impactar estilos de vida minoritários265. Ademais, os críticos do paternalismo jurídico põem em xeque a possibilidade de se determinar o que seria objetivamente bom para a vida dos indivíduos ou grupos. Sobre essa questão, pode-se apontar três indagações: (a) é efetivamente possível estabelecer de modo objetivo o que é melhor para a vida dos indivíduos? (b) se for possível, será eficaz fazê-lo? (c) se for eficaz, será adequado, mesmo a despeito do endosso ou do consentimento? Quanto à primeira, haveria a possibilidade de se fazer uma divisão entre os interesses dos indivíduos, e tarjar alguns como objetivamente bons e desejáveis por todos indistintamente, em geral pela sua instrumentalidade. Seria o caso, e.g., da vida e da saúde. Outro grupo seria composto a partir da identificação dos interesses escolhidos pelos indivíduos, ou seja, aqueles que os conduzem a seus ideais de vida. E haveria os ideais de vida, os quais não poderiam ser objetivamente determinados, segundo os críticos do paternalismo. Porém, os outros dois grupos poderiam ser alvos de determinação externa aos indivíduos. Na segunda indagação, questiona-se a eficácia da medida coercitiva para atingir um bem objetivo estabelecido. Por exemplo, pode-se considerar que fazer exercícios físicos é um bem objetivo, pois aprimora a saúde dos indivíduos. Todavia, poderia ocorrer que, muitos indivíduos, ao serem obrigados a realizar exercícios físicos, se theory and practice of autonomy. Cambridge: Cambridge University, 2001, p.48 e ss. (capítulo intitulado Autonomy, science and morality). 265 Poderia acontecer, então, não apenas um controle dos modos de pensar, mas também um controle do corpo, especialmente em um período de grande expansão e influência das ciências médicas, tão intenso que recebeu o título de medicalização da vida. Não é apenas o marco liberal, adotado nesta tese, que discute essas questões. Muitos estudos calcados em Michel Foucault labutam com a noção de biopolítica e de biopoder e buscam compreender a nova ortopedia social, construída a partir do corpo e da saúde. Sobre o tema, consultar: ORTEGA, F. Biopolíticas da saúde: reflexões a partir de Michel Foucault, Agnes Heller e Hannah Arendt. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.8, n.14, p.9-20, set.2003fev.2004; SCHRAMM, Fermin Roland. A saúde é um direito ou um dever? Autocrítica da saúde pública. Revista brasileira de bioética, v.2, n.2, p.187-200, 2006. A expressão medicalização da vida, hoje muito referida, foi cunhado na década de 1970, por ILLICH, Ivan. The medicalization of life. Journal of medical ethics. 1975, I, 73-77. Disponível em: http://www.pubmedcentral.nih.gov/picrender. fcgi?artid=1154458&blobtype=pdf. 135 sentissem livres para adotar outras condutas que não adotariam caso se mantivessem sedentários, como alterar, para pior, seus hábitos alimentares266. Quanto à terceira, a questão é se é possível melhorar, coercitivamente, a vida dos indivíduos sem obter-lhes o endosso. Há indivíduos que escolhem, por valoração, estilos de vida que põem em risco ou afetam os mais variados interesses (próprios) – sejam eles instrumentais ou não. E tais estilos são variados. Alguns são sedentários e glutões; outros são adeptos de esportes radicais; outros aderem à vida noturna e ao hedonismo; outros trabalham excessivamente, descuidando da alimentação e dos esportes; outros mantêm uma vida sexual arriscada; outros aderem a teorias políticas estranhas, a religiões diferentes, a profissões perigosas e insalubres; enfim, nos mais diversos campos da existência humana há escolhas que, do ponto de vista externo, podem ser valoradas como negativas e lesivas para o próprio indivíduo. E aqui se abrem dois novos problemas. Primeiro, haverá, em regra, uma valoração de moralidade substantiva quanto aos estilos que serão considerados aceitáveis e os que não serão. Pode-se indagar por que os esportes de luta são louváveis, ao passo que o arremesso de pessoas não é. Ou qual é a diferença entre uma mulher, independente e informada, que deseja marcar as iniciais do marido no próprio corpo a ferro quente e de uma que decide tatuar as mesmas iniciais? Ou ainda, por que se pode proibir que o trabalho de um indivíduo seja o de ser arremessado, ao mesmo tempo em que se vangloria o trabalho em minas de carvão?267 Segundo, se proibidas as atividades que os indivíduos escolheram, suas vidas serão realmente melhores ainda que nunca venham a endossar o novo estilo que adotaram?268 266 O exemplo é de Gerald Dworkin. As comparações foram formuladas com apoio em casos reais e em exemplos utilizados por diversos autores, que serão trabalhados nos itens e capítulos que se seguem. 268 A concepção de endosso é elaborada por Ronald Dworkin, para quem a ideia de uma vida boa pode ser trabalhada a partir de dois prismas, o cumulativo e o constitutivo. No primeiro, existem alguns elementos que tornam uma vida boa. Uma vez que possua tais componentes, a vida será boa, quer a pessoa considere-a boa ou não. Se considerar (criticamente), tanto melhor. Então, o endosso do indivíduo sobre o caráter da sua vida é, nesse modelo, “o glacê do bolo”. No modelo constitutivo, não há componente que possa contribuir para uma vida boa se o indivíduo não endossar. O endosso não é qualquer aceitação, mas uma aceitação crítica, fundada na análise dos méritos críticos e de modo reflexivo. Com isso, Dworkin não quer dizer que a perspectiva constitutiva seja “a cética, de que a vida de alguém só é boa ou ruim no sentido crítico quando e porque essa pessoa acha que é boa ou ruim. A perspectiva constitutiva nega apenas que algum evento possa tornar melhor a vida de uma pessoa contra sua própria opinião contrária”. Essa concepção foi mais tarde ligada, por Dworkin, ao conceito de dignidade humana, na abertura de sua obra Is democracy possible here?. A dignidade ganhou conotação do sentido constitutivo. Aproxima-se, de certa, ao que nesta tese se denomina dignidade como autonomia (Infra, neste Capítulo). DWORKIN, Ronald, A virtude..., p.301; p.348. DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here? Princeton e Oxford: Princeton University Press. 2006, p.9 e ss. 267 136 Além disso, Feinberg lembra que ninguém é integralmente racional o tempo todo e em todos os campos da vida. Isso traz à baila o problema ad infinitum do argumento em prol do paternalismo jurídico. Seu efeito cascata é muito provável, pois, uma vez que sejam proibidas certas atividades e produtos, o uso do álcool (na medida em que se mostra autorreferente) e do tabaco, por exemplo, por que não proibir o fast food, as frituras, os refrigerantes, o banho de sol em horários nocivos e muitos esportes radicais?269 O efeito dominó traz em si o problema do desvio e da possibilidade de abuso do argumento paternalista como justificação para a ablação de direitos, tanto quanto a possibilidade de seu emprego ser discriminatório. Por fim, há o argumento de igualdade. Na exata medida em que outros podem impor a um indivíduo o que ele pode ou não fazer e também o que ele deve ou não fazer, estabelece-se uma relação de subordinação. Além de posicionar o indivíduo paternalizado em um patamar inferior, cuja igualdade é negada, medidas paternalistas afetam a responsabilidade moral, de modo que o indivíduo deixa de ser tratado como alguém moralmente igual, pois suas escolhas são reputadas erros, esquisitices, tolices ou simplesmente más por terceiros que não as cometeriam270. 2.3.2.1.3 Paternalismo jurídico justificado A análise dos argumentos favoráveis e contrários ao paternalismo jurídico leva ao ponto mais instigante do seu estudo. Tanto de um lado quanto de outro, as razões apresentadas parecem plausíveis, e as consequências apontadas por cada um dos antagônicos polos geram uma reflexão quase paradoxal. Aceitar o paternalismo jurídico pode ensejar violação de direitos, abusos de poder e disseminação de preconceitos. Negá-lo pode ensejar posturas libertarianistas e até mesmo o egoísmo e o descaso sociais, inclusive na esfera econômica, quando a justiça distributiva é tratada como ou confundida com o paternalismo jurídico. As duas premissas são arriscadas. Como proceder, então? No início do exame do paternalismo jurídico, adiantouse que os liberais moderados trabalham com a ideia de paternalismo jurídico justificado. Ou seja, em linha de princípio, resistem ao paternalismo, mas, em hipóteses bem definidas, aceitam-no como justificado. Delinear quando e como o paternalismo jurídico será justificado significa enfrentar casos difíceis e argumentar de modo coerente em cada um deles, não ao sabor de um casuísmo desenfreado, mas segundo as 269 270 FEINBERG, Legal…, p.3-4; DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.19-35. Sobre o argumento da igualdade: VALDÉS, Op. cit., p.161 e ss. 137 premissas argumentativas adotadas para a sua justificação. Existem propostas diversas para a justificação do paternalismo jurídico entre os liberais moderados, muitas delas ancoradas em elementos comuns271. Já foi mencionado que um importante ponto de partida é a aceitação do paternalismo fraco. Como os sujeitos que são protegidos por medidas de paternalismo fraco são ou estão com sua capacidade cognitiva ou reflexiva diminuída ou ausente, a medida protetiva ganha sua justificação, pois os mais fortes argumentos contra a sua aplicação dissipam-se. Em assim sendo, medidas paternalistas destinadas a crianças, em certos casos adolescentes, pessoas com transtornos mentais graves, pessoas em estado comatoso, pessoas senis, populações excessivamente vulneráveis (a ponto de terem sua liberdade decisória questionada) encontram-se justificadas. Em face desta constatação, Joel Feinberg propôs o “padrão de voluntariedade” como baliza para a identificação dos casos de paternalismo jurídico justificado. Trata-se 271 Para esclarecer, algumas proposições serão sumariadas. Gerald Dworkin entende que o paternalismo jurídico será justificado em dois grupos de condições: (a) condições cujo foco é o agente: (a.1) quando estiverem ausentes as habilidades cognitivas ou emocionais exigidas para fazer uma escolha racional (e.g., crianças); (a.2) exame da genuinidade do consentimento quando se tratar de indivíduos hábeis a fazer escolhas (existe aqui certa semelhança ao padrão de voluntariedade de Feinberg); (a.3) os contratos de Ulisses, nos quais as pessoas pretendem autolimitar-se para seu próprio bem e para atingir seus próprios objetivos; (a.4) ausência ou deficiência de informação; (a.5) sopesamento errôneo de fatos, não extensível ao sopesamento errôneo de valores; (b) condições cujo foco é o caráter da decisão: devem ser ponderados a reversibilidade da decisão, seu impacto futuro e a natureza e duração da privação da liberdade. Nessa ponderação, o ônus deve ser forte e incumbe a quem pretende impor a medida paternalista. Além disso, o ônus é bifurcado; atua sobre os meios que podem ser usados e exige a escolha do meio menos lesivo. Em seu texto de reformulação, Gerald Dworkin não trabalha com uma ideia ampla de liberdade, mas com a autonomia, o que reduz os casos que precisam de justificação. Sua solução é uma espécie de balancing of interests para que se encontre a justificação do paternalismo nos três grupos de casos que expõe (casos de segurança; casos de decisão coletiva e casos de escravidão). Ernesto Garzón Valdés, por seu turno, considera que, uma vez que as medidas paternalistas envolvem uma desigualdade, elas somente se justificam se atuarem para diminuir tal desigualdade. Após aderir à distinção de Gerald Dworkin entre o sopesamento de fatos e o sopesamento de valores, Valdés segue a proposta de Wickler, segundo a qual há competências básicas (Cb), para vida cotidiana, e competências específicas (Cr), para atos especiais e mais complexos. A ausência ou a deficiência em Cb justificam o paternalismo jurídico pelo menos nos casos seguintes: (a) quando os elementos relevantes da situação são ignorados ou desconhecidos; (b) quando a força de vontade está tão afetada que oblitera a habilidade para decidir (e.g. drogadição); (c) quando as faculdades mentais estão reduzidas por alguma razão; (d) quando se está sob coação ou ameaça; e) quando se estima um determinado bem, não se deseja colocá-lo em perigo, mas se nega os meios para isso. Nessas hipóteses, o indivíduo estaria em situação de incompetência básica (Ib), o que o coloca numa igualdade negativa, que pode ser temporária ou permanente, setorial ou total. Para que se determine uma Ib deve existir um fundamento objetivo, calcado em relações causais seguras. Além da existência de uma Ib, o paternalismo somente será justificado se o intuito for benevolente e destinado a superá-la, na medida do possível. Há, pois, duas premissas, uma empírica – determinação da Ib – e outra normativa, o caráter benevolente. Ver: DWORKIN, Gerald, Paternalism, p.28 e ss.; DWORKIN, Gerald, Paternalism: some..., p.107 e ss.; VALDÉS, Op. cit., passim. Dan Brock, em que pese adotar, de modo geral, uma teoria moral baseada em direitos, entende que o paternalismo jurídico justificado pode ser guiado por premissas consequencialistas, sem que se plante uma contradição. BROCK, Paternalism..., p.238 e ss. Para Manuel Atienza, o paternalismo jurídico será justificado se e somente se: a) existir uma incompetência básica; b) a medida buscar um benefício; c) for racional presumir que o indivíduo consentirá com a medida quando estiver em condições de fazê-lo. ATIENZA, Op. cit., p.203. 138 da verificação da capacidade de “deliberação” (agência) de um indivíduo ou grupo quando escolhem condutas autorreferentes que, aprioristicamente, seriam autolesivas. Não se trata de um julgamento valorativo da decisão tomada nem dos meios escolhidos para persegui-la, mas de um exame não circular de aferição da habilidade de agência – compreensão do que está a fazer e das consequências desses comportamentos – e da maturidade da escolha272. A ideia não é nova. Em diversos sistemas jurídicos, decisões e negócios jurídicos reputados relevantes são precedidos de formalidades que visam a assegurar a decisão das partes (casamento, testamentos, adoção). A diferença, aqui, é que além de formalidade legais – tipicamente cartoriais – podem inserir-se exames médicos e sociais e fornecimento de informações (ainda que não preconceituosas e nem com cunho de aconselhamento)273. Um exemplo atual desse padrão de voluntariedade é o da transgenitalização. Para que possa ocorrer, no Brasil, é necessário que exista diagnóstico médico e persistência na decisão e no desconforto com o próprio sexo por período superior a dois anos, além da subscrição do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido274. Na concepção feinbergeriana, certos comportamentos são presumidos como autolesivos. Isso exige que se tomem certos padrões em conta, sem significar, todavia, que eles sejam determinantes ou autoevidentes. Por isso, a presunção é refutável justamente diante da voluntariedade da conduta: Quanto maior a presunção a ser derrubada, mais elaborada e detalhada deve ser a parafernália legal requerida e mais estreitos os padrões de prova. [...] O objetivo do procedimento não será o de valorar a sabedoria ou o valor da escolha da pessoa, mas o de determinar se a escolha é efetivamente sua275. O padrão de voluntariedade proposto por Feinberg conduz, como ele aponta, a uma forma fraca e inócua de paternalismo jurídico, aceitável até mesmo por Mill. Diante do padrão, o Estado pode evitar a conduta lesiva autorreferente somente quando 272 Para Feinberg, a voluntariedade não é uma mera escolha. A plena voluntariedade refletirá os valores do indivíduo; trata-se de deliberação. O autor explicita que a voluntariedade é uma questão de grau, variável entre a plena voluntariedade a plena involuntariedade. Grande parte das decisões situa-se, segundo Feinberg, em uma zona cinzenta entre um e outro extremo. FEINBERG, Legal..., p.7. 273 Como tese de aplicação, Infra, Capítulo 3, item 3.2.1, acerca do consentimento e o abortamento na experiência constitucional estadunidense. 274 É que o dispõe a Resolução CFM nº1.652/2002. BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002. Op.cit. 275 FEINBERG, Legal…, p.9. No original: “The greater the presumption to be overridden, the more elaborate and fastidious should be the legal paraphernalia required, and the stricter the standards of evidence. […] The point of the procedure would not be the wisdom or worthiness of a person’s choice, but rather to determine whether the choice really is his”. 139 ela for substancialmente involuntária ou quando a intervenção temporária for necessária para que se possa estabelecer se ela é voluntária ou não276. Uma proposta bastante elaborada e sofisticada acerca do paternalismo justificado foi forjada por Ronald Dworkin. Buscando conciliar a ideia liberal com a possibilidade de uma vida boa fomentada pelo Estado, Dworkin diferencia tipos de interesses (volitivos e críticos) e de paternalismo (cirúrgico, volitivo e crítico) e constrói uma concepção de endosso que é mais forte do que o consentimento. Apesar da importância e também da proximidade, em muitos aspectos, com a argumentação de Feinberg, há um problema em adotar nesta tese a proposta dworkiniana sobre a justificação do paternalismo, pois na base de seu edifício teórico está a noção de liberdades básicas e não a do direito geral de liberdade. O esquema argumentativo de Ronald Dworkin no ponto perde muito de sua substância – chegando até mesmo à incongruência – quando se adota a tese do direito geral de liberdade. Como a opção, nesta tese, foi a de arcar com o ônus argumentativo em face de um direito geral de liberdade, não se pode, tão somente, buscar âncora nas hipóteses de justificação do paternalismo dworkinianas. Em conclusão, pode-se afirmar que um dos pontos cruciais para a aceitação do paternalismo jurídico pelos liberais moderados está ligado à aferição da habilidade – cognitiva ou reflexiva – de fazer escolhas (agência), por parte de um indivíduo ou de um grupo. Existe uma partilhada preocupação com a possibilidade de que tal exame venha a refletir uma valoração moral da escolha ou dos meios adotados. Espera-se que isso não ocorra; ou seja, que exista o máximo de objetividade possível nessa aferição da habilidade. Assim, tratando-se de um indivíduo hábil a fazer escolhas e possuidor das informações necessárias, dificilmente estará justificado o paternalismo jurídico (a menos que exista consentimento genuíno e atual, o que, por si só, já descaracteriza o paternalismo jurídico). Além disso, a medida paternalista deverá ser sempre pautada na ideia de promover o bem para a própria pessoa. Outro ponto relevante é a curta duração das medidas e a probabilidade de que emancipem genuinamente o indivíduo ou o grupo, sempre que viável, em vez de mantê-lo dependente da medida. 276 FEINBERG, Legal..., p.9-10. Ao longo do seu texto, Feinberg discute diversas dificuldades que podem aparecer na aplicação do padrão de voluntariedade, que ele intitula hard cases. Além do padrão de voluntariedade, Feinberg adota outros pontos que justificariam medidas paternalistas. Ressalta-se que Feinberg suavizou sua concepção do padrão de voluntariedade. No seu primeiro artigo sobre o paternalismo jurídico, o padrão era demasiadamente forte e exigente. Nas obras seguintes, o padrão sofreu atenuações. 140 2.3.2.2 Paternalismo jurídico e institutos afins Existem alguns princípios limitadores da liberdade que são bastante semelhantes ao paternalismo jurídico. Muitos são, inclusive, defendidos ou rechaçados com os mesmos argumentos endereçados ao paternalismo. Para melhor delimitar as discussões dos capítulos seguintes, expor-se-ão tais princípios, consoante definidos por Joel Feinberg277. Além de definir o princípio do dano e o paternalismo jurídico278, Feinberg elenca os seguintes princípios limitadores da liberdade: (a) O princípio da ofensa: justifica uma proibição estatal que é provavelmente necessária para prevenir ofensas sérias a terceiros e tal proibição mostrar-se-ia provavelmente efetiva para o fim que pretende angariar279. (b) O moralismo jurídico: (b.1) em sentido estrito: pode ser justificado para o Estado proibir uma conduta por ser ela inerentemente imoral, mesmo que não cause nem dano nem ofensa a terceiros; (b.2) em sentido amplo: pode ser justificado para o Estado proibir condutas que causem mal aos outros, sem que causem dano ou ofensa. (c) O princípio do benefício aos demais: é justificado ao Estado proibir certas condutas quando a proibição for provavelmente necessária para a produção de algum benefício a terceiros. (d) Perfeccionismo: é justificado ao Estado proibir condutas que sejam provavelmente necessárias para o aprimoramento do caráter dos indivíduos (para que eles se tornem moralmente mais elevados). As definições parecem tornar suficientemente nítidos os lindes de cada figura. Porém, o caso concreto nem sempre pode ser perfeitamente enquadrado em uma delas, exigindo, por vezes, justificação combinada. Como ilustração, tome-se a eutanásia. Muitos entendem que sua proibição justifica-se em razão do princípio do dano. Outros, que sua proibição somente pode estar ancorada no paternalismo jurídico (impuro) – ou seja, que a proibição protege o sujeito de si mesmo. Há ainda quem entenda que a proibição da eutanásia seria justificada pelo moralismo jurídico, pois o ato de causar a morte alheia é inerentemente imoral. E, também, há quem busque a justificação no perfeccionismo, pois seria uma baixeza de caráter querer a própria morte. A proibição da prostituição por indivíduos adultos também pode ser justificada em vieses distintos, 277 FEINBERG, Harm to others..., p.26-27. Feinberg diferencia o paternalismo jurídico (legal paternalism) do paternalismo que confere benefício à pessoa paternalizada (benefit-conferring paternalism). Nesta tese, os dois conceitos de Feinberg são tratados apenas como paternalismo jurídico (seja para evitar o dano, seja para promover um benefício). 279 Para o autor, o princípio do dano, mediado pela máxima volenti, e o princípio da ofensa, devidamente qualificado e detalhado, constituem a justificação liberal para o emprego da coercibilidade pela via do Direito Penal. FEINBERG, Harm to others..., p.26. 278 141 pelo paternalismo, para evitar o dano consentido – quer físico, psicológico ou econômico; pelo moralismo jurídico – a prostituição seria um ato imoral em si; ou pelo perfeccionismo – prostituir-se ou contratar com alguém que se prostitui demonstraria um caráter moralmente não elevado. Panoramicamente, pode-se dizer que os liberais moderados recusam as justificações calcadas no moralismo e no perfeccionismo, por razões análogas às apresentadas ao paternalismo e também por outras mais fortes, pois o conceito de dano é aceitável, mas a ideia de elevação do caráter moral alheio e a classificação de atos como inerentemente imorais são muito mais fortes do que o paternalismo. Então, diversamente do paternalismo, os liberais moderados em geral não procuram eixos para o moralismo e o perfeccionismo jurídicos justificados. Em artigo recente, Gerald Dworkin acrescentou mais um princípio limitador da liberdade, intitulado moralismo jurídico paternalista. O princípio refere-se à manutenção de um ambiente moral em uma sociedade política, ou seja, que uma sociedade, mesmo liberal, deve preservar a ideia de um mundo moralmente melhor. Em distinção ao perfeccionismo, segundo esse princípio, não é um indivíduo que se tornará moralmente melhor, mas o ambiente no qual se vive, isto é, o perfeccionismo é pessoal, o moralismo jurídico paternalista é impessoal. Ainda que as razões para se recusar este princípio não sejam fáceis de ser encontradas, Gerald Dworkin segue em sua premissa afirmando que, sem endosso (categoria de Ronald Dworkin que ele discute), não se pode considerar provado que é possível obter um ambiente moral melhor pela coercitividade280. Na discussão da dignidade humana e na parte aplicativa desta tese, serão demonstrados os argumentos a respeito do moralismo jurídico paternalista. 2.3.3 Paternalismo jurídico e indisponibilidade dos direitos fundamentais Até este ponto, o elo entre o paternalismo jurídico e a disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais já deve ter ficado claro. Em um amplíssimo feixe de situações, a disposição de posições subjetivas de direito fundamental traduz uma aparente perda para o sujeito que as dispõe. Além disso, circunstâncias de disposição são, muitas vezes, nada ordinárias e revelam escolhas não ortodoxas, que podem ensejar risco, dano (consentido), obliteração de algum grupo de interesses físicos, econômicos, psicológicos ou morais. Nesse rumo, o argumento do paternalismo jurídico pode se mostrar potente para impedir a disposição e, contrario 280 DWORKIN, Gerald. Moral paternalism. Law and philosophy, v.24, p.305-319, 2005. 142 sensu, a rejeição do paternalismo tem o condão de levar à aceitabilidade da disposição em muitos casos. Poder-se-ia arrazoar que o apoio no paternalismo jurídico é ultrapassado, que tal noção não mais estaria na ordem dia para os debates acerca dos direitos fundamentais. Porém, há dois motivos para excluir esse modo de pensar. Primeiro, no campo da bioética, inúmeras discussões versam justamente sobre os limites do paternalismo médico e jurídico. Segundo, quando são levantados argumentos jurídicos em questões delicadas de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, como a eutanásia, o suicídio assistido e a ortotanásia, o argumento paternalista costuma aparecer281. No Brasil, um exemplar claríssimo do uso do paternalismo jurídico para evitar a disposição de posições subjetivas de direito fundamental encontra-se na Petição Inicial da ACP nº2007.34.00.014809-3, que se opõe à Resolução do CFM que permitiu, diante de requisitos determinados, a ortotanásia no país. Ao tratar do consentimento do ofendido, o Procurador signatário da ACP indaga sobre a disponibilidade do direito à vida, e conclui que ele é indisponível. O núcleo do seu argumento é o paternalismo jurídico, com toques de moralismo e de perfeccionismo jurídicos. Vale transcrever seus termos, ainda que longa a citação: Seria válida a manifestação de vontade do doente dizendo que não mais quer o tratamento e quer morrer em paz? Responder-se-á esta pergunta. Antes, outra pergunta: Quem é livre? O que é liberdade? O que é ser livre para manifestar validamente a vontade e escolher também validamente? Alguém escolhe drogar-se. Esse alguém é livre? Alguém escolhe praticar sexo desenfreado e promiscuamente. Este alguém é livre? Outro alguém escolhe continuar ingerindo bebida alcoólica, ou continuar fumando, ou continuar drogando-se. Esse alguém é livre? E aquele que, viciado, quer parar de beber, de fumar, de drogar-se, de promiscuir-se e não consegue. Este alguém, no primeiro momento, exerceu uma vontade livre, mas agora não pode mais livrar-se? ‘Uai, sô, mais o caboco num era livre?’ Mesmo que não fosse, ele teve ou tem outra chance após a fracassada escolha. 281 A distinção entre as categorias eutanásia, suicídio assistido e ortotanásia encontram-se no Capítulo 4. 143 E o cônjuge que resolve trair o outro. É livre? Após consumada a traição tem como voltar atrás? [...] Será que um doente em situação de terminalidade de vida tem condições de manifestar validamente a vontade? Mesmo depois de chegar o médico, aquele cara que sabe tudo e tá ali para salvar, dizer que não tem mais jeito? Que a medicina, para o caso dele, lava as mãos? Que agora, só milagre? Será que o doente pode livremente, validamente, escolher que se suspenda o tratamento ou que se desliguem os aparelhos para morrer em paz? E os parentes? A esposa, o marido, a mãe, o pai, a filha, o filho, vendo o ente querido suportar as mais terríveis dores, os mais atrozes sofrimentos, após o médico dizer que para a medicina não tem mais jeito, será que alguém seria livre, poderia manifestar livre e validamente a vontade de autorizar a que se suspendam os tratamentos e deixe morrer em paz, ou em casa? [...] Respondo peremptoriamente que NÃO. [...] Cito de memória um trecho, de quando estudava bioética na Universidade Católica Dom Bosco, de Campo Grande, Mato Grosso do Sul: Somente é livre aquele que escolhe o bem, pois o que não o escolhe, o bem, está antes dominado por paixões vícios, depressão ou influído por algo que lhe turve a visão do que é liberdade. Não há liberdade quando não se escolhe algo que não seja o bem. Não eram livres os que escolheram se drogar pela primeira vez e viciaram-se, os que resolveram fumar pela primeira vez e viciaram-se; os que resolveram beber pela primeira vez e não conseguiram mais parar. Todos esses viram sua pseudoliberdade transmudar-se em uma prisão, pelas paixões, pelos vícios. MAS TIVERAM UMA SEGUNDA CHANCE, uma possibilidade de reconhecer que a escolha foi errônea, pois não-livre? E os demais? Não eram livres os pais testemunhas de Jeová. Eram dominados por um sentimento religioso errôneo, que coloca o bem maior, a vida, a serviço de interpretações outras da bíblia. Era livre a garota canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a liberdade turvada, da mesma forma, por um entendimento errôneo do que poderia ser o próprio corpo, sagrado. JAMAIS serão livres os pacientes, sob as torturas de dores lancinantes, sofrimentos atrozes, depressões, pânicos. É mais fácil, muito mais fácil, fugir. Optar por morrer. JAMAIS serão livres os parentes dessas pessoas doentes, vendo os entes queridos padecerem as mais terríveis dores, ou ligados a aparelhos pelo resto de suas vidas. Incentivados pelos médicos, sem dúvida, irão pelo caminho mais fácil: LIVRAR-SE DO PARENTEPROBLEMA, pois é isto que o ente querido se torna. [...] NÃO HÁ LIBERDADE QUANDO NÃO SE ESCOLHE O BEM. 144 E quem escolhe morrer jamais escolherá o bem282. Na extensa peça exordial, o Procurador finaliza sustentando a incapacidade do doente terminal para tomar decisões, bem como de seus familiares. Assinala que se faz necessária a chancela do Ministério Público e do Poder Judiciário para que decisões de final de vida possam ser tomadas, ou seja, é preciso tutelar o doente terminal e sua família para seu próprio bem. A linha-mestra do argumento está no lema jacobino de que a liberdade consiste em escolher o bem. O problema, como já foi exposto, está na definição do bem e na desconsideração da liberdade individual, do pluralismo e da igualdade. No trecho narrado, há valorações substantivas acerca de escolhas de estilos de vida e paira a crença de que é viável ao Estado, pela via coercitiva, impedir que esses caminhos sejam trilhados. O Procurador considera límpido que impedir os indivíduos de escolher o mal (heteronomamente definido) pela coercitividade estatal liberta-os, ou seja, autentica medidas estatais paternalistas, com vistas ao bem do próprio indivíduo coagido, pressupondo, para tanto, que existe incapacidade (no sentido civilista brasileiro) quando a escolha não é a acertada. É prioritário perceber que não se trata de uma avaliação da habilidade decisória, mas do pedido de incapacidade pelo resultado da escolha que os indivíduos fazem, isto é, não se está diante de algo similar ao padrão de voluntariedade de Feinberg. É perceptível que a ideia de liberdade foi totalmente confinada à de bem; que ser livre significa, exclusivamente, optar pelo bem, e que esse bem possui um caráter determinável objetivamente e de modo externo ao indivíduo que decide. Em assim sendo, o uso do álcool, do tabaco, de drogas, o exercício de uma vida sexual desregrada e da traição conjugal são comportamentos não-livres, pois não traduzem a escolha do bem. Quem os escolhe, está sob o influxo de visões turvadas. E o argumento segue, sustentando, inclusive, que há pessoas que possuem concepções incorretas sobre seu próprio corpo e sobre a interpretação de textos religiosos, como a Bíblia. Nesta etapa, clara é a confluência do argumento paternalista com o moralismo jurídico, já que alguns comportamentos são tarjados, a priori, como inerentemente imorais. Os exemplos dados na peça também mostram uma das críticas ao paternalismo jurídico – seu cunho ad infintum. É incrível a facilidade com que se menciona o tabaco, o álcool, a vida sexual, a traição conjugal, a percepção do próprio corpo e a leitura equivocada da Bíblia como 282 BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ACP nº2007.34.00.014809-3. Petição Inicial (Wellington Divino Marques de Oliveira – Procurador Regional dos Direitos do Cidadão/1ª Região). Disponível em: http://noticias.pgr.mpf.gov.br/noticias-do-site/pdfs/ACP%20Ortotanasia.pdf. Os textos em caixa alta são do original. Os grifos não constam do original. 145 atividades condenáveis. E o salto de um para o outro é natural, a narrativa simplesmente prossegue entre um e outro caso como se fossem análogos e indenes à controvérsia. A pergunta que fica é: se há uma leitura equivocada da Bíblia, que o Estado pode (e sabe) determinar, não haverá uma leitura equivocada de textos políticos? O que é uma vida sexual desregrada – a prostituição, o sadomasoquismo, a homossexualidade? Por que a traição conjugal representa um ato de não-liberdade ou de pseudoliberdade?283 Além disso, é interessante perceber a concepção de dano subjacente às motivações alinhavadas no contexto da terminalidade da vida. Não obstante admita francamente que os pacientes terminais podem sofrer “torturas de dores lancinantes, sofrimentos atrozes, depressões, pânicos”, “as mais terríveis dores” ou permanecer “ligados a aparelhos pelo resto de suas vidas”, o Procurador, sem maiores reflexões, afirma que a morte é que será um dano. Acaso não seria dano manter uma pessoa nessas condições contra a sua vontade e, quiçá, contra as suas convicções mais íntimas? A concepção unilateral de dano – somente visualizado na morte, não no sofrimento – dá a entender, ainda, um toque de perfeccionismo no argumento, para além do paternalismo e do moralismo jurídicos. É perfeccionismo por sugerir que a dor e o sofrimento enobrecem o caráter e devem ser enfrentados, ao passo que a opção pela morte seria uma fuga. Apesar de não tão explícito na petição inicial, o perfeccionismo jurídico foi esposado pelo mesmo Procurador na Recomendação nº01/2006, que antecedeu a propositura da ação, na seguinte passagem: A modernização legislativa pretendida também contraria mandamento religioso e o art.5º, caput, da CF, conforme acima mencionado. Bento de Faria, apoiando-se nos ensinamentos de Nelson Hungria, escreveu em sua obra que o sofrimento é o preço da perfeição moral, é o tributo de pesagem na peregrinação do homem pelo mundo284. Vê-se, pois, que o paternalismo, o moralismo e o perfeccionismo jurídicos continuam a ser ampla e acriteriosamente empregados como justificação para o emprego da coercitividade estatal, muito especialmente em situações de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Nesta pesquisa, a tese central é a de que o 283 Não se está a sustentar, em hipótese alguma, que todos esses comportamentos sejam ideais e desejáveis do ponto de vista exclusivamente moral. Sabidamente, muitas teorias morais, como a deontologia kantiana, a ética da virtude, o utilitarismo, não aceitariam tais comportamentos – quer pelo ato em si, quer pelo agente, quer por suas consequências. O que se está a indagar é o uso da coercitividade – em sentido amplo – para desencorajá-los e proibi-los em sociedades democráticas e pluralistas. 284 BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Recomendação nº01/2006 – WD – PRDC. (Wellington Divino Marques de Oliveira – Procurador Regional dos Direitos do Cidadão/1ª Região). Disponível em: http://prdc.prdf.mpf.gov.br/legis/docs/exfile.2006-11-21.7242563592/attach/REC%20012006%20CFM.pdf. 146 direito à vida é, em linha de princípio, indisponível. Para fazer essa sustentação, porém, serão evitados os argumentos paternalistas, moralistas e perfeccionistas. Na vertente de McConnell, serão tecidos argumentos em prol da indisponibilidade – em linha de princípio – combinados ao direito geral de liberdade. Se, por ventura, o argumento paternalista for inescapável, sua adoção se dará mediante criterioso exame de sua admissibilidade no marco teórico adotado – o liberalismo moderado. 2.4 A dignidade humana: a tensão entre as versões autônoma e heterônoma A expressão dignidade humana tornou-se, desde o final da Segunda Guerra Mundial, um grande consenso. É mencionada em incontáveis documentos internacionais, em Constituições, leis e decisões judiciais285. São inúmeros os estudiosos que a ela se referem como o substrato axiológico dos direitos fundamentais e como a razão de ser dos sistemas locais, regionais e globais de proteção aos direitos humanos. É tão forte a adesão à ideia de dignidade humana que os autores que ousam questionar a utilidade da expressão no discurso jurídico-moral são alvo de virulento ataque. Porém, há que se ter cuidado com conceitos demasiadamente abstratos que ensejam tamanha adesão. Claro é que dificilmente alguém que trabalha com seriedade a temática dos direitos fundamentais denegaria a dignidade humana. Mas a questão que se põe imediatamente é: O que significa dignidade humana? Não raro, encontram-se posicionamentos absolutamente distintos, até diametralmente opostos, em temas delicados, com fulcro na dignidade humana. Em que pesem os lautos esforços doutrinários, filosóficos e jurisprudenciais, a expressão mantém-se recheada de paradoxos e de indeterminações. É um conceito ainda intensamente polissêmico286. Não 285 Para uma revisão profunda do tema, inclusive quanto a documentos anteriores à Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, consultar: McCRUDDEN, Christopher. Human dignity and judicial interpretation of human rights. The European Journal of International Law, v.19, n.4, p.664-671, 2008. O autor destaca que, em documentos mais atuais, não apenas a expressão dignidade humana passou a figurar nos preâmbulos dos documentos internacionais de Direitos Humanos, como também foi introduzida na parte substantiva dos textos. Outrossim aponta que, nos documentos regionais, a expressão figura nos preâmbulos dos principais instrumentos inter-americanos, árabes, africanos e alguns europeus. O autor afirma: “[…] thus appearing to demonstrate a remarkable degree of convergence on dignity as a central organizing principle”. 286 Ver: SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.16 e SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos 147 se espera, nem se deseja, que ela seja um dia reduzida a um conceito fechado e plenamente determinado, mas assume-se que em muitas órbitas “é em seu nome que alguns reivindicam hoje a legitimidade de comportamentos que outros recusam devido à intangível dignidade”287. Assim, por exemplo, no contexto da morte com intervenção, especialmente na eutanásia, a abstração do conceito leva-o a ser empregado pelos dois lados da contenda: tanto por aqueles que creem que a legalização fere a dignidade quanto por aqueles que advogam que a proibição maltrata a dignidade. Nas palavras de Suzan Millns: Mais particularmente, parece que a elasticidade do discurso da dignidade, com a sua capacidade de conduzir a diversas direções, significa que ele pode ser invocado por todos os protagonistas (os idosos e dependentes, suas famílias, a equipe médica, o Estado) para justificar todos os resultados (preservar a vida ou buscar a morte). Sua natureza dúplice, por consequência, quando combinada aos argumentos e contra-argumentos que impregnam o discurso dos direitos, parece, em última análise, minar a causa daqueles que tentam usá-la para assegurar seu direito de morrer com dignidade288. No assunto da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, do qual a eutanásia é justamente um exemplo, Jorge Reis Novais detectou o mesmo problema, mencionando que o recurso à dignidade humana pode conduzir a argumentos circulares, tornando-se de difícil emprego289. Ao assumir que a dignidade humana pode se apresentar como um rótulo discursivo, determinada semanticamente dos mais diversos modos, não se quer negligenciar o conceito, tanto menos seu valor jurídico, nem sua qualidade normativa. Tampouco se trabalha “nos limites da oitava”290, considerando que a dignidade humana é um vácuo ou um vazio, a ser preenchido subjetivamente. Reconhecem-se, apenas, as dificuldades que devem ser enfrentadas ao se trabalhar com o conceito, para que não fundamentais na Constituição Federal de 1988. 6.ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p.27. 287 MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do direito e direito constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.6162. 288 MILLNS, Op.cit.: “More particularly, it appears that the elasticity of dignity discourse with its capacity to pull in many directions means it can be invoked by all protagonists (the elderly and infirm, their families, the medical team, the state) to justify all outcomes (preserving life and seeking death). Its duplicitous nature, therefore, when combined with the claims and counter-claims which infuse rights discourse, appears ultimately to undermine the cause of those who try to use it to assert their right to die with dignity”. 289 NOVAIS, Renúncia..., p.327-328. 290 MAURER, Op. cit., p.62. 148 seja um mero axioma que oblitera debates, sem que se possa perscrutar quais os conteúdos que a ele são conferidos. Alguns autores pátrios admitem, no próprio conceito de dignidade, diferentes “dimensões”291 e “componentes”292. É interessante notar que tais dimensões ou componentes de um único conceito podem se tornar competidores em face de um assunto, como é o caso da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Fica em aberto, então, como lidar com os componentes e dimensões, seja no patamar de justificação, seja no aplicativo. Agrava o problema, no Brasil, o “atual uso indiscriminado”293 da expressão dignidade humana, tanto na doutrina, quanto na prática jurídica cotidiana. A fim de melhor compreender a relação entre a dignidade humana e a disposição de posições jurídicas de direito fundamental, serão mapeadas as principais densificações semânticas da expressão, a saber: (a) dignidade como autonomia; (b) dignidade como heteronomia. Serão também estudados, com breveza, a negação da utilidade do conceito no discurso jurídico-moral, bem como o reconhecimento de uma dimensão material da dignidade humana, que pode ser combinada a diferentes eixos e que, de modo geral, com eles não concorre. Breves notas serão expostas sobre a dignidade humana como virtude294. 2.4.1 A dignidade humana como conceito inútil Quanto à negação da utilidade do conceito, a renomada bioeticista Ruth Macklin plantou uma interessante discussão, com a publicação de um Editorial no British Medical Journal, em 2003, intitulado Dignity is a useless concept. No texto, a autora denuncia o uso ambivalente da locução, bem como a sua indefinição quando aplicada a 291 A expressão refere-se à contribuição de Ingo Sarlet, para quem a dignidade possui dimensões: (a) ontológica; (b) relacional e comunicativa; (c) de limite e de tarefa; (d) histórico-cultural. SARLET, As dimensões..., p.13-43. 292 A expressão refere-se à contribuição de Maria Celina Bodin de Moraes, para quem a dignidade envolve quatro elementos: (a) a liberdade; (b) a integridade psico-física; (c) a igualdade; (d) a solidariedade. MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.105-147. 293 MORAES, Maria Celina Bodin de. Op. cit., p.109. Virgílio Afonso da Silva refere a “banalização do uso da garantia da dignidade da pessoa humana”. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.254. Roberto Andorno menciona que há denúncias de um uso inflacionário e meramente retórico da expressão dignidade humana, especialmente quanto às práticas biomédicas. ANDORNO, Roberto. The paradoxical notion of human dignity. Persona – Revista Electrónica de Derechos Existenciales, n.9, set. 2002. Disponível em: http://www.revistapersona.com.ar/Persona09/9Andorno.htm. 294 A principal base teórica adotada foi a obra BEYLEVELD, Deryck; BROWNSWORD, Roger. Human dignity in bioethics and biolaw. Oxford: Oxford University Press, 2004. 149 problemas práticos que envolvem a bioética, como a morte com intervenção e a reprodução assistida295. Da indefinição, tem-se o apelo à expressão como um mero slogan, o que, aos olhos da autora, retira a objetividade do debate e pouco acrescenta à solução de desacordos e dilemas morais. Além disso, Macklin sugere que a expressão foi inserida em documentos internacionais e legais por influência religiosa, especialmente católica, sem qualquer explicação de como um conceito de cunho religioso foi transladado para o discurso secular296. Ademais, em seu entendimento, quando o conceito de dignidade é densificado semanticamente, ele não ultrapassa os conceitos, bem mais determinados e conhecidos, de respeito pelas pessoas e de autonomia. Em assim sendo, mais adequado seria recorrer diretamente à autonomia e ao respeito pelas pessoas, sendo desnecessário o discurso da dignidade em complexas questões de bioética297. Por um prisma, parece difícil negar que Macklin tenha razão. O conceito possui, efetivamente, uma intensa pluralidade semântica e é, no mais das vezes, empregado no discurso como se seu conteúdo fosse autoevidente. Além disso, há, atualmente, certo abuso em seu emprego. Haveria, portanto, maior objetividade se a locução fosse um último recurso, após o esgotamento de argumentos mais densos semanticamente. Entretanto, os críticos de Macklin – e não foram poucos – contra-argumentaram 295 Ao fazer um mapeamento histórico do conceito de dignidade humana, Rieke Van der Graaf e Johannes J. M. Van Delden demonstram que uma das acepções atuais é justamente a denegação da utilidade do conceito, citando, além dos de Macklin, os estudos de Helga Kuhse. Ver: GRAAF, Rieke Van Der; DELDEN, Johannes J. M. Van. Clarifying appeals to dignity in medical ethics from an historical perspective. Bioethics, v. 23, n.3, p.151-160, Mar.2009. 296 Também informam a origem religiosa do conceito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.10. 297 Ver: MACKLIN, Ruth. Dignity is a useless concept. British Medical Journal, v.327, p.1419-1420, 2003. Na mesma linha, a autora expressou seu pensar na obra sobre o duplo padrão na pesquisa biomédica: “Who could be opposed to respect of dignity? No one is likely to content that human beings should not be treated with respect for their dignity. However, the concept is so vague it is nearly devoid of meaning without further elucidation. That makes appeals to human dignity specially problematic in the context of understanding and applying claims that invoke human dignity as a basis for actions or policies of various sorts. Neither scholars nor drafters of national, regional or international guidelines or declarations appear to have analyzed the concept of human dignity in a way that yields clear criteria for its application. Yet much discourse from the United Nations organization and European bodies relies on the vague and imprecise notion of human dignity in formulating guidelines and declarations. ‘Respect for human dignity’ has in some contexts become a mere slogan, as in the case that cloning is ‘contrary to human dignity and even ‘a violation of the dignity of the human species’ […]. When challenged to explain precisely how producing a child by means of nuclear transplantation constitutes a violation of human dignity, those who make use of this claim turn on the challengers and accuse them of some sort of moral blindness in failing to recognize the dignity inherent in all human beings”. MACKLIN, Ruth. Double standards in medical research in developing countries. Cambridge: Cambridge, 2004, p.196-197. É imperioso salientar que a autora não nega a ideia de que se deve respeitar os seres humanos e a sua autonomia. Tudo que ela questiona é a ambivalência, as origens religiosas e o uso tão indiscriminado e acriterioso da expressão dignidade humana, de um modo que conduziu o conceito à inutilidade. 150 salientando que da dificuldade de determinar um conceito não se pode extrair a impossibilidade. Além disso, sustentaram que a locução dignidade humana possui um apelo sentimental que poucas outras expressões possuem. O apelo é relevante e não deve ser descartado por seu cunho sentimental, pois é justamente ele que poderia conduzir a um sério diálogo a partir da ideia de dignidade, ainda que vaga298. Por fim, cabe destacar que Macklin parece referir-se a um contexto aplicativo e não a um de justificação. Ou seja, seu descarte da dignidade como um conceito inútil é o do seu uso como critério de solução de conflitos e não como elemento de justificação. Embora sem aderir à posição de Macklin – no sentido de ser a expressão dignidade humana supérflua e substituível por conceitos mais determinados – levar-se-á em conta sua advertência sobre a necessidade de maior densificação semântica da locução quando do seu uso. Acredita-se que, mesmo em um contexto de justificação, não se pode adotar posições distanciadas do ordenamento e do sistema jurídico no qual se está inserido. E, nesse sentido, no Brasil, a locução dignidade humana não apenas está expressa na Constituição Federal, como é intenso objeto de estudos na doutrina e de aplicação na jurisprudência. Por isso, incumbe explicitar quais os conteúdos que vêm sendo oferecidos à expressão e discutir cada um deles no tema da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Todavia, antes de penetrar nessa seara, serão expostas algumas notas sobre a noção da dimensão material da dignidade humana, compatível, em muitas órbitas, com outras determinações do conceito. 2.4.2 A dimensão material da dignidade humana Quanto ao reconhecimento de uma dimensão material na dignidade humana, é preciso dizer, de pronto, que ela pode ser combinada com diferentes eixos e que, de modo geral, com eles não concorre. A assim chamada dimensão material da dignidade corresponde à compreensão de que existem alguns requisitos materiais necessários à existência humana, como a alimentação, o acesso ao trabalho, à promoção, à proteção e à recuperação da saúde, à moradia, a sistemas de seguridade social, dentre outros 298 Vários textos buscaram discutir, relativizar ou negar a posição de Macklin, dentre eles, ANDORNO, Roberto. La notion de dignité humaine est-elle superflue en bioéthique ? Contrepoint Philosophique. Mars 2005. Disponível em : www.contrepointphilosophique.ch; ANDORNO, Roberto. Dignity of the person in the light of international biomedical law. Medicina e Morale. Rivista Internazionale bimestrale di Bioetica, Deontologia e Morale Medica, v.1, p.91-104, 2005. ASHCROFT, Richard E. Making sense of dignity. Journal of Medical Ethics, v.31, p. 679-682, 2005. ANJOS, Márcio Fabri dos. Dignidade humana em debate. Bioética, Brasília: Conselho Federal de Medicina. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/revista/bio12v1/seccoes/seccao04.pdf. 151 elementos. Seu reconhecimento varia em extensão e em relação a seus fundamentos – se instrumental ao exercício de outros direitos ou se jusfundamental por si. O mínimo denominador comum parece estar nas teses que advogam a correlação entre a dignidade humana e o mínimo existencial, isto é, as condições materiais mínimas à existência humana. O mínimo existencial representa um importante consenso, seja porque alguns o consideram justificado por razões independentes, seja por considerarem-no instrumental à liberdade299. Há, claro, em um dos extremos dos marcos filosófico-constitucionais, teses que denegam até mesmo o mínimo existencial. Todavia, elas estão fora do marco teórico escolhido para esta tese e, além disso, dificilmente se mostrariam compatíveis com a Constituição hoje vigente. Desse modo, ainda que de interesse para o campo de discussão filosófica, não cabe aqui apreciar a inexistência de justificação para o mínimo existencial. Então, nesta tese, aceita-se que a dignidade humana encampa uma dimensão material que corresponde, pelo menos, ao mínimo existencial. Assumir essa postura, i.e., aceitar o mínimo existencial e associá-lo à dimensão material da dignidade humana, não significa, sobremaneira, que as aplicações que adiante serão feitas partem do pressuposto de que o mínimo existencial foi preenchido. 299 A respeito do aspecto material da dignidade humana e seu elo com o mínimo existencial, consultar, sobre todos: TORRES, Ricardo Lobo. O mínimo existencial e os direitos fundamentais. RDA, n.177, 1989, p.20 e ss.; TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na Era dos Direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.239 e ss.; BARCELLOS, A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997. Ingo Sarlet, com justificação diferente daquela de Ricardo Lobo Torres e assumindo concepção mais ampla da dimensão material, liga a dignidade ao mínimo existencial, pois implica: “[…] um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”. SARLET, Dignidade da pessoa humana e direitos..., p.63 [sem grifos no original]. Luís Roberto Barroso também alia a dignidade humana ao mínimo existencial: “Dignidade da pessoa humana expressa um conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio da humanidade. O conteúdo jurídico do princípio vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos”. BARROSO, Fundamentos teóricos..., Em uma intensa pesquisa sobre o conteúdo da expressão dignidade humana em decisões de cortes internacionais e estrangeiras, Christopher McCrudden identifica e discute criticamente a existência de consenso justaposto no uso da locução. Um dos elementos muito frequentes é exatamente a associação entre dignidade e as condições materiais mínimas à existência humana. McCRUDDEN, Op. cit., p. 692 e ss. 152 Em uma tese sobre disposição de direitos fundamentais, pressupor a concretização do mínimo existencial seria tomar uma via muito fácil e enganosa, semelhante à construção de castelos na areia. Isto se dá porque, em um país como o Brasil, marcado que é pelas intensas desigualdades sociais, culturais, econômicas e educacionais, tratar a disponibilidade sem levar tais diferenças em consideração conduziria à negligência de aspectos importantes da genuinidade do consentimento, que são essenciais e devem sempre ser pensados, como será mais bem detalhado no Capítulo 3. 2.4.3 Dignidade humana como virtude Talvez a mais antiga concepção de dignidade seja a dignidade como virtude. Entendia-se que a dignidade (diversa da moderna dignidade humana) dependia do status, do pertencimento a certos estratos sociais (rank) ou da ocupação de cargos ou ofícios, em um escalonamento hierárquico que trazia consigo ideais de honra, nobreza, merecimento e de comportamento digno. Assim vista, a dignidade era nitidamente de natureza relativa, tanto a questões contextuais quanto ao comportamento, existindo não apenas diferenciação dos seres humanos (como mais ou menos dignos), mas também possibilidade de perda ou diminuição da dignidade segundo o comportamento ou o merecimento. É a esta visão de dignidade que, desde tempos medievais, houve oposição, na tentativa de universalizar o conceito, tornando-o dignidade humana, bem como de impedir a possibilidade de perda ou diminuição da dignidade de um ser humano em razão de seus atos ou omissões. Isto é, toma-se como um dos ganhos da modernidade a ruptura com a estratificação dos indivíduos e a disjunção entre dignidade e status, ofício, classe e merecimento300. Porém, há outra compreensão possível da dignidade como virtude, fundada no marco da ética da virtude301. Nesse sentido, a dignidade compreenderia o desenvolvimento de atributos de caráter do agente moral, além da valoração das razões 300 Ver: McCRUDDEN, Op. cit., p.656-659; ULLRICH, Dierk. Concurring visions: human dignity in the Canadian Charter of Rights and Freedoms and the Basic Law of the Federal Republic of Germany. Global Jurist Frontiers, v.3, n.1, p.4-6, 2003; WALDRON, Jeremy. Dignity and rank. European Journal of Sociology, v.48, n,2, p.201-237, Aug. 2007; MIGUEL, Carlos Ruiz. Human dignity: history of an idea. In: HABERLE, Peter (Org). Jahrbuch des öffentlichen Rechts der Gegenwart. Mohr Siebeck, v.50, p.281-299, 2002 (artigo posteriormente disponibilizado na rede mundial de computadores, na página pessoal do autor: MIGUEL, Carlos Ruiz. Human dignity: history of an Idea, p.2-4. Disponível em: http://web.usc.es/~ruizmi/pdf/dignity.pdf); BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.51 e ss. 301 Para uma primeira abordagem da ética da virtude, ver: PELLEGRINO, Edmund. Hacia uma ética normativa para las profesiones sanitárias basada en la virtud. Kennedy Institute of Ethics Journal, v.5, n.3, p.253-277. 153 da sua ação ou da sua omissão. De maneira simplificada, haveria modelos de caráter a serem seguidos, de indivíduos que marcaram sua existência pelo agir moral virtuoso, como Sócrates, Cristo, Gandhi, Mandela, Buda. Cada sociedade ou cultura, segundo os seus valores compartilhados, expressa os traços de caráter a serem desenvolvidos e cultivados, para que a dignidade possa florescer. Neste ponto, aparecem os problemas práticos de conceber a dignidade como virtude. Quanto menos densos forem os valores compartilhados de uma sociedade, ou quanto mais plurais, mais indeterminado será o conceito de dignidade. Além disso, há duas constatações de monta: (a) nas sociedades plurais e livres, a imposição de modelos de caráter ao agente moral de modo generalizado pode ter uma conotação perfeccionista e mostrar-se inaceitável diante do pluralismo; (b) ao seguir um ideal de sujeito moral, a dignidade pode mostrar-se um atributo para poucos, ou ainda um atributo que pode ser perdido302. Feitas essas breves anotações sobre a possível inutilidade da expressão dignidade humana, bem como sobre sua dimensão material, e da dignidade como virtude, passa-se ao estudo dos demais conteúdos oferecidos à expressão. Eles serão elaborados com fulcro no profundo estudo de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, intitulado Human dignity in bioethics and biolaw. Nele, os autores analisaram diversos instrumentos internacionais de direitos humanos, julgados proferidos em variados sistemas jurídicos e, também, estudos jurídicos e filosóficos. Nesta tese, não será adotada a posição dos autores no tema, mas serão utilizadas as suas identificações e distinções sobre os conteúdos hoje ofertados à expressão dignidade humana, bem como serão expressas as críticas formuladas a cada um303. 2.4.4 A dignidade humana como autonomia O primeiro conteúdo identificado com a dignidade humana pelos estudiosos mencionados é o de empoderamento (empowerment), que aqui será chamado de dignidade humana como autonomia. Segundo os autores, essa é a concepção subjacente aos grandes documentos de direitos humanos do século XX, bem como a de muitas Constituições e decisões judiciais posteriores à Segunda Grande Guerra304. 302 Deryck Beyleveld e Roger Brownsword esboçam esta concepção de dignidade humana aliada à ética da virtude. Todavia, a discussão que fazem da dignidade como virtude dá-se em outros termos: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.58-64. 303 Eles expressam uma complexa compreensão da dignidade humana, partindo dos estudos de A. Gerwith, cotejados com os labores kantianos. Embora não seja a tese aqui seguida, vale conferi-la na obra Human dignityin bioethics and biolaw (BEYLEVELD; BROWNSWORD). 304 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.10 e ss. 154 A compreensão da dignidade humana como autonomia está aliada à ideia da dignidade como fundamento e justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Ou seja: os direitos fundamentais e os direitos humanos existem e são protegidos e promovidos em função da e para a dignidade humana, que acaba por conferir-lhes unidade. Observam-se quatro elementos relevantes para o conceito de dignidade como autonomia: (a) a capacidade de autodeterminação; (b) as condições e as circunstâncias para florescimento da capacidade de autodeterminação; (c) a universalidade; (d) a inerência da dignidade ao ser humano. Quanto ao primeiro elemento, a dignidade como autonomia envolve a capacidade humana de decidir os seus rumos de vida; considera a habilidade para desenvolver livremente a sua personalidade, realizando escolhas morais relevantes e por elas assumindo a responsabilidade. Detrás disso, há um sujeito capaz de, por si mesmo, empreender escolhas morais. Um sujeito moral capaz de se autodeterminar, traçar planos de vida e realizá-los. Inseparável do primeiro elemento estão as “condições” e “circunstâncias” para o florescimento da autonomia (e, por conseguinte, da dignidade), ou seja, a dignidade como autonomia não se limita apenas ao respeito pela habilidade humana de empreender escolhas, mas abrange as condições para que tal habilidade possa desenvolver-se em plenitude. Grosso modo, o que antes foi denominado aspecto material da dignidade está embutido no conceito de dignidade como autonomia305. Também ligada à dignidade como autonomia, está a universalidade. Uma vez que a dignidade como autonomia exsurge renovada no discurso jurídico-moral como fundamento e justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos no período pós-Segunda Guerra Mundial, ela está atrelada ao marco universalista de tais documentos306. A dignidade seria, então, o substrato para o respeito aos direitos fundamentais e aos direitos humanos em diversos espaços e também em diferentes épocas. Ademais, quando a dignidade é conferida a todos os seres humanos, independentemente da sua condição cultural, social, econômica, religiosa, étnica, ela se faz acompanhar da sustentação de que é inerente ao ser humano, de que é um traço ontológico. Logo, a dignidade passa a não depender do comportamento, isto é, por mais 305 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.14-15. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.14-15. No mesmo sentido: PIOVESAN, Flávia. Declaração Universal de Direitos Humanos: desafios e perspectivas. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho (Org.). Estudos contemporâneos de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.339; GRAAF; DELDEN, Op. cit., s/p. 306 155 que um indivíduo fira a dignidade ou os direitos alheios, seguirá portador da sua dignidade, que deverá ser respeitada. Percebe-se, pois, que o terceiro e o quarto elementos funcionam juntos, a universalidade está umbilicalmente ligada à inerência da dignidade. A contingência espaço-temporal e a contingência na estratificação entre pessoas (como mais ou menos dignas) representam uma afronta para tal construção de dignidade humana, pois os direitos humanos são vistos inicialmente dentro de um esquema universalista, que entende todos os seres humanos como portadores de igual e incondicional dignidade, dado o seu pertencimento à família humana307. Segundo Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, a construção da dignidade como autonomia compõe-se de um aspecto substantivo e de um aspecto formal308. O aspecto formal da dignidade é “articulado como um direito geral, tido por cada ser humano, ao respeito (à sua dignidade) pelos outros seres humanos. Esse direito (de ser tratado como alguém que possui valor)” pode ser esquematizado: (a) um direito de ser respeitado como alguém que pertence à classe dos seres humanos, isto é, como alguém que possui as capacidades distintivas de ser humano; (b) um direito (negativo) contra intervenções alheias indesejadas que são danosas às condições ou às circunstâncias que são essenciais para que alguém floresça como um humano; e (c) um direito (positivo) a auxílio e assistência para assegurar as circunstâncias e as condições para que alguém floresça como um humano309. O aspecto substantivo mencionado pelos autores será tratado adiante, pois é ao seu sabor que eles traçam críticas e demonstram inconsistências teóricas e práticas na concepção de dignidade como autonomia. Por ora, serão revisitados estudos nacionais e 307 A expressão dignidade humana incondicionada é utilizada no estudo de corte histórico de Rieke Van Der Graaf e Johannes J. M. Van Delden, significando que a “dignity is embedded in the nature of all human beings, regardless of their achievements or the condition they are in”. GRAAF; DELDEN, Op. cit., p.5. A expressão família humana foi empregada na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, verbis: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo [...]”. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. 308 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.15. 309 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.15. No original: “[…] is articulated as the general right, held by each human being, to respect (for one’s dignity) by other humans. This right (not to be treated as one who has no worth ) may then be cashed more specifically as: (a) a right to be respected as one who belongs to the class of human beings, that is, as one who has the distinctive capacities of being human; (b) a (negative) right against unwilled interventions by others that are damaging to the circumstances or conditions that are essential if one is to flourish as a human; and (c) a (positive) right to support and assistance to secure circumstances or conditions that are essential if one is to flourish as a human”. Utilizou-se o itálico para a expressão ser humano na alínea (a) porque os autores não empregam a expressão human being, mas being human. 156 decisões judiciais, nacionais e estrangeiras, que se coadunam com a perspectiva de dignidade como autonomia descrita por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword. Acima, foi apresentada a concepção material da dignidade humana, cujo mínimo denominador comum encontra-se no reconhecimento do mínimo existencial (muitas vezes como posições subjetivas jusfundamentalmente protegidas), quer por razões instrumentais, quer por razões próprias. O que se vê, de pronto, é que tal concepção é plenamente compatível com o que Deryck Beyleveld e Roger Brownsword identificaram como as condições e as circunstâncias para o florescimento da dignidade humana como autonomia. Como os autores, entende-se que a dignidade humana como autonomia carece de um arcabouço de condições para que possa ser realizada. Para que um ser humano possa traçar e seguir seus planos de vida, por eles assumindo responsabilidade, é necessário que tenha protegidas e garantidas as mínimas condições econômicas, educacionais e psicofísicas exigidas para o seu exercício. Em sendo assim, seria a concepção material, pelo menos, instrumental à autonomia, característico central da dignidade humana. Os demais elementos expostos por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword são velhos conhecidos na doutrina brasileira acerca da dignidade humana. É corriqueira a referência à dignidade humana como o fundamento, como a justificação e até mesmo como o substrato axiológico dos direitos fundamentais, humanos e da personalidade. Certo é que há desacordo em considerar a dignidade humana como um direito, mas são incontáveis as referências à dignidade humana como o catalisador dos direitos, como sua razão de ser. O mesmo se passa com a referência de que os direitos fundamentais, humanos e da personalidade são, em maior ou menor medida, decorrentes ou reconduzíveis à dignidade humana310. Na jurisprudência nacional, há referências à 310 Na doutrina pátria, Flávia Piovesan afirma: “O valor da dignidade humana, incorporado pela Declaração Universal de 1948, constitui o norte e o lastro ético dos demais instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos”. PIOVESAN, Op. cit., p.342. Daniel Sarmento considerou que “Só no regime democrático ganha concretude o princípio da dignidade da pessoa – epicentro axiológico de qualquer ordenamento constitucional humanitário [...]”. SARMENTO, Daniel. Direito adquirido, emenda constitucional, democracia e justiça social. Mundo Jurídico, Disponível em: http://www.mundojuridico. adv.br. Sobre a relação entre a dignidade humana e os direitos da personalidade, diz Luís Roberto Barroso: “A doutrina civilista contemporânea inclui a proteção da imagem das pessoas na categoria dos direitos da personalidade – expressão da dignidade da pessoa humana – que podem ser qualificados, de maneira sumária, como a projeção dos direitos fundamentais na esfera das relações privadas”. BARROSO, O direito individual..., p.3. Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk afirmam: “A tutela e a promoção da dignidade da pessoa humana são fundamentos de toda a ordem jurídica – não só do Direito Público – sendo, pois, deveres atribuídos a todos, não apenas ao Estado”. FACHIN, Luís Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Direitos fundamentais, dignidade da pessoa humana e o novo Código Civil: uma análise crítica. In: SARLET, Ingo Wolfganfg (Org.). Constituição, direitos 157 dignidade humana como fundamento e justificação dos direitos fundamentais, seja diretamente nestes termos, seja mediante manifestações análogas e de efeito demasiadamente similar. O cunho ontológico da dignidade humana, ou seja, o seu caráter de qualificador inerente e intrínseco de todo ser humano é muito propalado dentre os juristas, quer estrangeiros, quer pátrios311. Também é assim com a noção de universalidade da fundamentais e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.98-99. Ingo Sarlet também reconhece um dos papéis da dignidade é conferir unidade e legitimidade a uma ordem constitucional, buscando em Jorge Miranda a noção de que os direitos, sua unidade e legitimidade repousam sobre a dignidade: “Que uma das funções exercidas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana reside justamente no fato de ser, simultaneamente, elemento que confere unidade de sentido e legitimidade a uma determinada ordem constitucional, constituindo-se [...] no ‘ponto de Arquimedes do estado constitucional’, embora amplamente reconhecido, há de ser exaustivamente enfatizado. Como bem o lembrou Jorge Miranda, representando expressiva parcela da doutrina constitucional contemporânea, a Constituição, a despeito de seu caráter compromissário, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais, que, por sua vez, repousa na dignidade da pessoa humana, isto é, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado, razão pela qual se chegou a afirmar que o princípio da dignidade humana atua como uma espécie de ‘alfa e ômega’ do sistema dos direitos fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e “novos” direitos na Constituição Federal de 1988: algumas aproximações. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Estudos contemporâneos de direitos fundamentais (vol. II). Rio de Janeiro/Criciúma: Lumen Juris/UNESC, 2009, p.103. Atenta aos enunciados constitucionais brasileiros, Ana Paula de Barcellos menciona que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Para a autora, “parte do crescimento dos temas materialmente constitucionais” – aí incluída a dignidade da pessoa humana – “pode ser debitado à conta da migração dos antigos pressupostos axiológicos para o texto positivo [...]”. E, mais adiante, a jurista apresenta o elo direto da dignidade como base dos direitos fundamentais: “Isto é: terá respeitada a sua dignidade o indivíduo cujos direitos fundamentais forem observados e realizados, ainda que a dignidade não se esgote neles”. BARCELLOS, A eficácia jurídica..., p.128. Maria Celina Bodin de Moraes reconhece na dignidade humana o fundamento do Estado Brasileiro e admite que ela é o substrato de alguns direitos fundamentais, porém não de todos: “Uma vez que a noção é ampliada pelas infinitas conotações que enseja, corre-se o risco de generalização absoluta, indicando-a como ratio jurídica de todo e qualquer direito fundamental”. A expressão da autora torna claro que muitos estudiosos consideram a dignidade a razão de ser de todos os direitos fundamentais, apesar de esta não ser a sua posição. MORAES, Maria Celina Bodin de. Op.cit., p.116-117. Na doutrina portuguesa, Jorge Miranda considera que a dignidade da pessoa humana é a base de todos os direitos fundamentais: “Quanto fica dito demonstra que a Constituição, a despeito do seu caráter compromissório, confere uma unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais. E ela repousa na dignidade da pessoa humana, proclamada no art.1º, ou seja, na concepção que faz da pessoa fundamento e fim da sociedade e do Estado. Pelo menos, de modo direto e evidente, os direitos, as liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos sociais e culturais comuns têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa, de todas as pessoas”. MIRANDA, Op.cit., p.180-181. Também José Carlos Vieira de Andrade: “Neste contexto se deve entender o princípio da dignidade da pessoa humana – consagrado o artigo 1º como o primeiro princípio fundamental da Constituição – como princípio de valor que está na base do estatuto jurídico dos indivíduos e confere unidade de sentido enquanto ordem que manifesta o respeito pela unidade existencial do sentido que cada homem é para além de seus actos e atributos”. [...] Realmente, o princípio da dignidade da pessoa humana está na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos dos trabalhadores e dos direitos a prestações sociais. [...] Pode ser diferente o grau de vinculação dos direitos àquele princípio. Assim, alguns direitos constituem explicitações de primeiro grau da ideia de dignidade, que modela o conteúdo deles [...]. Outros direitos decorrem desse conjunto de direitos fundamentalíssimos [...]”. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.101-102. 311 Roberto Andorno intitula de Standard Attitude (atitude-padrão) a aceitação da universalidade da dignidade humana, bem como de sua função de justificação e de fundação dos direitos fundamentais e dos 158 dignidade humana, embora muitos estudiosos, em que pese manterem-se universalistas, venham admitindo alguns temperamentos312. Menos pacífica, porém, é a identificação do conteúdo da dignidade humana com a liberdade/autonomia. Não são poucos os textos e as decisões judiciais que associam a dignidade humana à liberdade/autonomia. Contudo, são mais escassas as defesas da dignidade humana como significando, prioritária ou exclusivamente, a habilidade humana de autodeterminação. Como exemplos dessa posição, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, ao trabalhar o tema da disposição dos direitos da personalidade, considera que o texto constitucional brasileiro é o que “mais liberdade dá às pessoas e que mais garante a disponibilidade dos direitos da personalidade, uma vez que apenas a própria pessoa, em situações concretas da vida, poderá determinar o conteúdo e o direitos humanos. ANDORNO, The paradoxical..., s/p. Exemplos da aceitação do cunho ontológico: “[...] sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Isto porque todo o ser humano tem uma dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer outro critério, senão ser humano”. PIOVESAN, Op. cit., p.342. Em sentido semelhante, embora utilizando o termo pessoa, Luís Roberto Barroso afirma: “O princípio da dignidade da pessoa identifica um espaço moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo”. BARROSO, Fundamentos teóricos e filosóficos..., p.26. Ana Paula de Barcellos reconhece o viés ontológico da dignidade humana ao explicar: “A saber: as pessoas têm uma dignidade ontológica e devem ter condições de existência compatíveis com essa dignidade [...]”. Nota-se que a autora também emprega o termo pessoa e não ser humano. Entretanto, não fica nítido em sua obra se ela faz uma diferenciação relevante entre um e outro conceito, uma vez que, páginas depois, ela refere: “É importante observar que, filosoficamente, a dignidade é uma característica inerente ao homem que a norma não concede, mas apenas reconhece; [...] A importância dessa observação está em que o indivíduo continua sendo digno nada obstante a violação das normas que pretendem assegurar condições de dignidade. Nessas hipóteses, a pessoa estará sendo submetida à uma situação indigna e incompatível com sua dignidade essencial”. BARCELLOS, A eficácia jurídica..., p.126, nota n.213. Ingo Sarlet, embora aponte alguns problemas e contestações sobre a inerência da dignidade ao ser humano, reafirma que a dignidade humana possui uma dimensão ontológica, empregando expressões como “qualidade intrínseca da pessoa humana”, “qualidade integrante e irrenunciável da própria condição humana”, “existe [...] em cada ser humano como algo que lhe inerente” e “inerente a toda e qualquer pessoa humana” ao adjetivar a dignidade. SARLET, As dimensões..., p.19-20. José Carlos Viera de Andrade também se aproxima da vertente que reputa a dignidade como ontológica ao ser humano, ao escrever que a dignidade faz com que a ordem constitucional respeite a “unidade existencial do sentido que cada homem é para além de seus actos e atributos”. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.101-102. 312 Nesse sentido, Flávia Piovesan, referindo-se à Declaração Universal de Direitos Humanos aponta: “Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana”. No entender da autora, “[p]ara os universalistas, os direitos humanos decorrem da dignidade humana, enquanto valor intrínseco à condição humana”. É mister destacar que, atualmente, Flávia Piovesan adere a um universalismo de confluência, calcado em um diálogo intercultural. PIOVESAN, Op. cit., p.346 e ss. Sobre a universalidade e uma perspectiva do cosmopolitismo kantiana, ver também: MARTINS-COSTA, Judith. Bioética e dignidade da pessoa humana: rumo à construção do biodireito. Bioética y Bioderecho, Rosário, v.5, p.40, 2000. 159 significado da própria dignidade”313. Ela sustenta com ênfase o caráter primacialmente autonomista da dignidade humana: O valor da pessoa humana, portanto, sua dignidade, é o limite para a intervenção do Estado ou da sociedade na esfera individual e seus componentes. [...] Portanto, o verdadeiro papel da dignidade humana em nosso ordenamento jurídico é: garantir a emancipação do homem, através do respeito por suas diferenças, do respeito por suas características, por sua consciência e sua faculdade de se autodeterminar conforme seu próprio sentimento de dignidade”314. Quando aborda a patrimonialização do corpo, Alexandre dos Santos Cunha, apreciando o famoso julgado francês sobre o arremesso de anões à luz dos escritos kantianos, conclui que a leitura mais adequada dos direitos da personalidade é aquela que os concebe a partir da noção de dignidade como autonomia, como a habilidade humana para empreender escolhas de modo livre e consciente, desde que sejam preservados direitos de terceiros315. Apesar de tais posicionamentos, na doutrina brasileira o mais comum não é a afirmação de que a dignidade humana significa, ao lado das condições materiais mínimas de existência, exclusivamente a preservação da liberdade/autonomia humana. Parcela relevante dos autores associa a dignidade à liberdade/autonomia, mas acrescentam outros elementos caracteristicamente heterônomos em seus conceitos. Na jurisprudência estrangeira, contam-se algumas manifestações paradigmáticas que veicularam a noção de dignidade como autonomia. Dentre elas está o caso Rodriguez, no qual a Suprema Corte do Canadá adotou um conceito de dignidade humana que tem seu foco “na habilidade individual de fazer escolhas autônomas”. Tal conceito de dignidade já fora empregado pela mesma Corte em julgado sobre o aborto316. Na Suprema Corte dos Estados Unidos da América, a expressão dignidade humana foi utilizada com o sentido de dignidade como autonomia nos casos Casey e Lawrence v. Texas, nos votos vencedores317. Também a Corte Constitucional da 313 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direitos da personalidade e autonomia privada. 2. ed. rev. São Paulo: Saraiva: 2007, p.135. 314 BORGES, Direitos..., p.146-147 [sem grifos no original]. 315 CUNHA, A normatividade..., passim. 316 Sobre o assunto, ver: BROWN, David M. ‘Human dignity’: human rights and the end of life: the north wind blowing from Canada. Ver ainda: CANADÁ. Rodriguez v. British Columbia (Attorney General)... Op.cit. 317 Em Casey, foi discutida a constitucionalidade de uma lei da Pensilvânia que regulamentava intensamente a realização de aborto. USA. Planned Parenthood of Southeastern Pennsylvania v. Casey, Op.cit. Já em Lawrence, tratava-se de rediscutir uma decisão da década de 1980, na qual foi considerada constitucional lei que criminalizava as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo. O caso 160 Colômbia adotou um conceito de dignidade como autonomia quando decidiu pela inconstitucionalidade da proibição da eutanásia, em termos tão expressivos que merecem transcrição: En Colombia, a la luz de la Constitución de 1991, es preciso resolver esta cuestión desde una perspectiva secular y pluralista, que respete la autonomía moral del individuo y las libertades y derechos que inspiran nuestro ordenamiento superior. La decisión, entonces, no puede darse al margen de los postulados superiores. El artículo 1 de la Constitución, por ejemplo, establece que el Estado colombiano está fundado en el respeto a la dignidad de la persona humana; esto significa que, como valor supremo, la dignidad irradia el conjunto de derechos fundamentales reconocidos, los cuales encuentran en el libre desarrollo de la personalidad su máxima expresión. […]. Este principio atiende necesariamente a la superación de la persona, respetando en todo momento su autonomía e identidad318. No cenário da bioética, que será relevante na parte aplicativa da tese, o paradigma hegemônico é ancorado no consentimento livre e esclarecido dos pacientes e dos sujeitos de pesquisa. É fácil perceber que este modelo ajusta-se ao conceito de dignidade como autonomia, pois a ênfase está em promover e proteger a habilidade decisória dos pacientes e sujeitos de pesquisa, bem como em respeitar, sob o manto do pluralismo e com a menor interferência possível de valores heterônomos, as escolhas feitas319. Em síntese, tem-se que um dos conteúdos atribuídos à expressão dignidade humana é a dignidade como autonomia, que, além de ser apresentado como o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, é composto dos seguintes elementos: (a) a capacidade de autodeterminação; (b) as Lawrence reverteu a decisão anterior. USA. Lawrence v. Texas. 000 U.S. 02-102 (2003). Embora as menções à dignidade humana não sejam tão frequentes nas manifestações da Suprema Corte dos Estados Unidos, há outros casos nos quais ela se fez presente no sentido de dignidade como autonomia: (a) Thornburgh v. American College of Obstetricians and Gynecologists. 476 U.S. 747. (1986), na discussão sobre o aborto, no voto do Justice Blackmun; (b) Roper v. Simons, a respeito da proibição da pena de morte para pessoas com menos de dezoito anos. Ver: McCrudden, Op. cit., p.688 e 695. 318 É preciso salientar que tal foi o posicionamento majoritário da Corte. Nos votos de dissidência a proposta de entender a dignidade humana como autonomia foi muito criticada. Ao defender a posição majoritária, foram mencionados julgados anteriores da Corte, nos quais a dignidade como autonomia foi a concepção prevalente. COLOMBIA. Sentencia C-239/97. Demanda de Inconstitucionalid contra el artículo 326 del decreto 100 de 1980 – Código Penal. Magistrado Ponente: dr. Carlos Gaiviria Diaz. 20 de mayo de 1997. Disponível em: http://www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/jsp/frames/index.jsp? idsitio=6&ruta=../jurisprudencia/consulta.jsp. 319 “Modern bioethics has its origins in the Code of Nuremberg of 1947 and gathers pace with the Declaration of Helsinki in 1964. Central to these development is the idea that human beings should not be subjected to scientific and medical research without their free and informed consent. To the extent that human dignity has a role to play in such thinking, it is as the foundation for human rights, specifically the right of human beings to decide whether or not they will be subject themselves to medical trials or treatments”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Roger. Human dignity..., p.29. 161 condições e as circunstâncias para florescimento da capacidade de autodeterminação; (c) a universalidade; (d) a inerência da dignidade ao ser humano. Como salientado, tais elementos permeiam o discurso jurídico sobre a dignidade humana também no Brasil. Porém, apesar de a dignidade ser tomada como universal (por vezes com temperamentos), inerente, como o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, como possuidora de um aspecto material, a ligação direta do conceito exclusivamente com a autonomia/liberdade não traduz o pensamento dominante na doutrina e na jurisprudência nacionais. Muitos são os que associam a dignidade à autonomia/liberdade, todavia, poucos são os que confinam o conceito a este característico. Ainda que não seja a vertente única na cena jurídica brasileira, é conveniente apreciar dois pontos sobre a dignidade como autonomia. Em primeiro lugar, sabe-se que um dos mais importantes marcos filosóficos acerca da dignidade humana encontra-se nos escritos de Immanuel Kant. São frequentes, no Brasil e alhures, as reconduções à obra kantiana, inclusive no discurso jurídico320. Então, acredita-se que sua obra e as releituras merecem apreço em função do conceito de dignidade como autonomia. Em segundo lugar, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, além de descortinarem a articulação teórico-prática da dignidade como autonomia, demonstraram as inconsistências, tanto no âmbito epistemológico quanto no prático, do conceito. Compreender tais inconsistências muito auxilia a tomada de posição sobre o assunto. Por isso, a elas será concedido um breve espaço. 2.4.4.1 Algumas palavras sobre dignidade como autonomia e a proposta kantiana O trabalho de Immanuel Kant sobre a dignidade humana é referência constante nos estudos contemporâneos. As leituras dos escritos do filósofo de Köninsberg são variadas. Por vezes, trata-se de empregar argumentos de Kant e, noutras, de reler os argumentos kantianos e reconstruí-los consoante os problemas atuais. Aqui, não há qualquer pretensão de sustentar uma posição acerca das possíveis interpretações da obra de Kant quanto à dignidade humana. Isso exigiria uma tese específica. O que se 320 Conforme Sarlet: “É justamente no pensamento de Kant que a doutrina jurídica mais expressiva – nacional e alienígena – ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade da pessoa humana”. SARLET, Dignidade da pessoa..., p.34. Christopher McCrudden menciona que a concepção kantiana de dignidade é a mais citada dentre as nãoreligiosas, a ponto de ser o autor cognominado de “o pai do conceito moderno de dignidade”. McCRUDDEN, Op. cit., p.659. 162 pretende, modestamente, é apresentar como é possível enlaçar argumentos kantianos e/ou argumentos de Kant com a noção de dignidade como autonomia. Para tanto, serão fonte de estudo dois textos de Kant, a Metafísica dos Costumes e a Fundamentação da Metafísica dos Costumes, além das obras de alguns comentadores, em especial Otfried Höffe321. Para expor a possível associação dos argumentos kantianos com a dignidade como autonomia, serão abordados os seguintes aspectos: (a) a compreensão do caráter inato do direito de liberdade; (b) a relação entre as máximas do direito e da moralidade; e (c) a fórmula do fim em si mesmo (segunda formulação do Imperativo Categórico). Na Metafísica dos Costumes, Kant tem por objeto de estudo os conjuntos de normas não naturais que regem a conduta humana, em sentido amplo, ou seja, tanto normas jurídicas como morais que “disciplinam a ação do homem livre”. Os costumes dividem-se em dois grandes grupos, a legalidade e a moralidade (eticidade) 322. Na obra, Kant busca demonstrar que há somente um direito pré-existente, inato, a liberdade, compreendida em um sentido bastante amplo, envolvendo direitos dos quais acaba por depender, como a integridade física323. Uma vez que a liberdade é o direito inato, a máxima kantiana para a doutrina do direito será justamente aquela que permite que as liberdades coexistam. Essa seria a única maneira de conciliar liberdade e coerção sem contradição. A máxima do direito é, pois, “o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido ao arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”324. A máxima do direito é aplicável para as relações intersubjetivas, que se 321 KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Edipro, 2003 (Série Clássicos EDIPRO); KANT. Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: 70, 2007; HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 322 KANT, A metafísica..., p.63; BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 4.ed. Brasília: UNB, 1997, p.50. 323 Kant assim define: “A liberdade (a independência de ser constrangido pela escolha alheia), na medida em que pode coexistir com a liberdade de todos os outros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude da humanidade destes.” A liberdade implica a igualdade inata. Kant atinge essa constatação partindo de um procedimento que ele denomina puramente racional, ou seja, formulações pragmáticas, empíricas ou utilitaristas não fazem parte do caminho que trilhou para concluir que a liberdade é o único direito inato. A liberdade inata é a chamada liberdade externa, que não é ilimitada e que pode ser, segundo Höffe, “entendida como independência do arbítrio coercitivo dos outros […]”. Já a liberdade interna, típica da doutrina da virtude, requer “duas coisas: ser o seu próprio senhor num dado caso (animus sui compos) e regrar a si mesmo (imperium in semetipsum), ou seja, submeter os próprios afetos e governar as próprias paixões”. KANT, A metafísica..., p.250; 8384; HÖFFE, Op. cit., p.239. 324 Consoante Höffe: “entendida como independência do arbítrio coercitivo dos outros, a liberdade externa em comunidade só é possível sem contradição se ela se restringe às condições da sua concordância estritamente universal com a liberdade externa de todos os demais. Por conseguinte, o 163 estabelecem entre dois arbítrios. Trata-se da regulação externa de ações intersubjetivas que devem estar em conformidade, independentemente do móbile da ação, às regras heteronomamente postas. Por outro lado, a máxima da moralidade é diversa e rege a relação de um sujeito para consigo. Trata-se de uma autolegislação. A ação é empreendida pelo dever em si, isto é, o móbile da ação é determinante. A máxima da moralidade e também princípio supremo da doutrina dos costumes tem o seguinte enunciado: “Age com base em uma máxima que também possa ter validade universal” (primeira formulação do Imperativo Categórico – FMC)325. Então, Kant enuncia uma máxima para a moralidade e outra máxima para o direito. Disso, pode-se extrair que moralidade e legalidade são dois campos distintos dos costumes, não sendo possível transladar os preceitos de um para outro sem que se caia em contradição. Assim, por exemplo, é famosa a posição de Kant sobre a criminalização do suicídio. Apesar de considerar o suicídio como contrário à máxima da moralidade, uma vez que não universalizável como conduta, Kant defendeu a inadequação da condenação jurídica do suicídio em relação à máxima do direito. O que se poderia sustentar, a partir disso, é que, no âmbito jurídico, tudo o que extrapolar a restrita esfera do uso da coercitividade para permitir a livre convivência entre dois arbítrios não seria adequado em face da máxima do direito. Nestes termos, a tarefa do direito seria tão-somente a regulação da convivência da liberdade externa, não constituindo empreendimento legítimo usar da coercitividade (ou mesmo da promoção) para angariar fins outros que não a preservação da liberdade externa. Para fortalecer essa ideia, entraria em cena a noção de que Kant não formulou uma teoria da preponderância do bem sobre o justo, mas uma teoria na qual o justo (ou os direitos) prepondera sobre o bem. Para tanto, explicitou o procedimento para que cada ser dotado de razão possa chegar, por si mesmo, às leis que regem sua ação. O procedimento é realizado com base nas três formulações do Imperativo Categórico. É nesse ponto que reside a autonomia: a capacidade de dar leis a si mesmo segundo o Direito é, conforme seu conceito racional, ‘o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser reunido ao arbítrio do outro segundo uma lei universal da liberdade”. HÖFFE, Op. cit., p.239. 325 O enunciado corresponde ao primeiro Imperativo Categórico kantiano. Por Imperativo Categórico entende-se, conforme Edson Bini, “imperativo no qual o comando é incondicional”. KANT, Immanuel. A metafísica..., p.67-68; KANT, A fundamentação..., p.48 (BA 38); BINI, Edson, Glossário. In: KANT, A metafísica..., p.32. Sobre o Imperativo Categórico conferir ainda: RAWLS, História..., p.209 e ss.; HÖFFE, Op. cit., p.185 e ss. 164 procedimento do Imperativo Categórico. A imposição externa – qualquer que seja sua fonte, comunitária, divina, cultural – de uma concepção pré-fixada de bem é um ato de heteronomia326. Desta feita, se a dignidade for juridicamente compreendida como heteronomia, ao sujeito estariam sendo impostas concepções externas do que seria o bem, contrariando a sua habilidade racional de autolegislação e, portanto, contrariando sua dignidade. A constatação não permite concluir que a dignidade humana em Kant signifique dignidade como autonomia, mas oferece quatro instigantes premissas. Primeira, a liberdade (externa) é reconhecida como o único direito inato. Segunda, o conceito de universalidade está tanto na máxima do direito quanto na máxima da moralidade (primeira formulação do Imperativo Categórico). Terceira, a relação entre o direito e a dignidade humana somente poderia ser estabelecida se a concepção fosse de dignidade como autonomia, ou seja, como um mecanismo para a promoção e a preservação da liberdade externa humana. Quarto, Kant não elaborou uma teoria da prevalência do bem, mas da prevalência do justo (ou dos direitos) sobre o bem. Então, se concebida a dignidade como heteronomia, o direito não poderia ser utilizado para impô-la, e ela ficaria restrita ao ambiente da moralidade, ao ambiente da relação do sujeito para consigo e não da sua relação com terceiros. Um conceito de dignidade que muito se consagrou no direito contemporâneo foi a fórmula do fim em si mesmo, que corresponde à segunda formulação do Imperativo Categórico kantiano: “Age de tal maneira que uses a humanidade, na tua pessoa como na de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio”. No que denominou reino dos fins, Kant distinguiu dois tipos de seres: aqueles dotados de dignidade, que são justamente os que são um fim em si mesmos e, portanto, não têm preço; e os seres que não são fins em si mesmos e aos quais pode-se atribuir um preço327. Uma das interpretações possíveis dessa fórmula é a que advoga que o ser humano não pode ser instrumentalizado; i.e., não pode servir unicamente como um objeto para fins alheios aos seus. Nesse viés, a não-instrumentalização consistiria no respeito pela capacidade de autodeterminação de cada indivíduo, no respeito à sua 326 Assim, por exemplo, Kant considera indigno ajoelhar-se diante de uma imagem de divindade, pois representa um servilismo. KANT, A metafísica..., p.278. Sobre o tema, ver também: RAWLS, História..., p.213 e ss. 327 KANT, A fundamentação..., p.67-69 (BA 65, 66, 67). 165 liberdade enquanto ausência de constrangimentos externos. Tratar um indivíduo de modo diverso ao que ele elege para obtenção de fins que são alheios torná-lo-ia um instrumento e feriria a sua dignidade. Cada indivíduo, à luz da sua capacidade de participar do mundo moral, por sua habilidade de empreender escolhas e por elas assumir responsabilidade, teria na preservação da habilidade de dar leis a si mesmo e atuar segundo tais leis a preservação da sua dignidade328. Em tal leitura, o conteúdo principal da dignidade humana em Kant seria a autonomia/liberdade do indivíduo. A liberdade, aqui, pode ser interpretada de duas maneiras: (a) como a possibilidade de fazer ou deixar de fazer o que se quer, em um sentido semelhante ao que Alexy confere à liberdade jurídica ou ao que Isaiah Berlim define como liberdade, isto é, a liberdade como a ausência de constrangimentos externos; (b) como a possibilidade de cada ser racional empreender, por si mesmo, o procedimento do Imperativo Categórico, sendo livre aquele que o faz. No segundo sentido, aparentemente mais próximo daquele de Kant, é que a filósofa e bioeticista Florência Luna visualiza a segunda formulação do Imperativo Categórico (a fórmula do fim em si mesmo)329. Susan M. Shell afirma que a interpretação mais usual dos escritos kantianos sobre a dignidade é a autonomista, especialmente no âmbito dos marcos teóricos hegemônicos da bioética330. McCrudden 328 “Assim, também constitui uma contradição para mim fazer da perfeição de outrem o meu fim e julgarme na obrigação de promover isso, pois a perfeição de outro ser humano, como pessoa, consiste simplesmente nisto: que ele – ele próprio – é capaz de estabelecer seu fim de acordo com seus próprios conceitos de dever; e é contraditório exigir que eu faça (tome meu dever fazer) alguma coisa que somente o outro possa ele mesmo fazer”. KANT, A metafísica..., p.230. 329 “Esta formulación puede ser interpretada como un nuevo criterio para determinar la moralidad de las acciones. En este caso, Kant no enfatiza el carácter universalizable de las máximas que deben regir nuestra conducta sino la obligación de respetar a las personas. El respeto por las personas debe entenderse en función de la noción kantiana de dignidad, propia de todo ser racional, e implica fundamentalmente un reconocimiento de la autonomía del individuo. En la medida en que el Imperativo Categórico emana de la razón, las personas son capaces de darse su propia ley, es decir, de autolegislarse en materia moral. Las personas pueden tomar decisiones racionales por sí mismas, que las conducen a actuar de forma moralmente correcta. En este sentido, son autónomas y poseedoras de dignidad, lo cual exige un absoluto respeto. Con esta formulación del Imperativo Categórico Kant señala, entonces, la incorrección de utilizar a las personas meramente como medios para un fin ajeno a ellas, lo cual equivaldría a tratarlas como una cosa y no como un agente autónomo, capaz de autolegislarse”. LUNA, Florencia; RIGHETTI, Natalia. Clase I. Bioética Clínica. Argentina: FLACSO, 2008. O texto base encontra-se em: SALLES, Arleen L.F. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates clásicos. México D.F: Fondo de Cultura Económica, 2008. 330 Necessário se faz destacar que o artigo da autora destina-se justamente a oferecer outra interpretação da dignidade humana em Kant, próxima da ideia de dignidade como heteronomia. SHELL, Susan M. Kant’s concept of human dignity as a resource for bioethics. In: Human dignity and bioethics: essays commissioned by the president’s council on bioethics. Washington: Mar.2008. Disponível em: http://www.bioethics.gov/reports/human_dignity/chapter13.html, p.336. Nas palavras da autora: “The most clear-cut cases of Kantian ‘respect’ for humanity involve not using others in ways whose ends they cannot formally share – i.e., by not acting on them without their own consent. The moral 166 também menciona que as formulações kantianas são, correta ou incorretamente, tratadas como mais próximas da dignidade como autonomia, “isto é, a ideia de que tratar as pessoas com dignidade é tratá-las como indivíduos autônomos aptos a escolher seus destinos”331. Apoia a exegese da proposta kantiana de dignidade como autonomia sua afirmação concernente a não assumir gradações na dignidade. Ou seja, a dignidade não se perde pelo comportamento do sujeito, tampouco em virtude de características que possua, sejam elas naturais (e.g. etnia), sejam artificiais (e.g., nacionalidade ou condição econômico-social). Em assim sendo, Kant atribuiria um sentido incondicional à dignidade, como fazem hoje os que defendem a dignidade como autonomia332. O cunho universalista da proposta kantiana é outro reforço à noção de dignidade como autonomia. A moralidade kantiana é composta de um procedimento universalista, o que retiraria da dignidade a contingência temporal, espacial e cultural, consoante um dos elementos do conceito de dignidade como autonomia. Ademais, muitos estudiosos encontram em Kant a raiz de um dos elementos que compõem o conceito de dignidade como autonomia, qual seja, a de que todos os seres humanos, por serem humanos, possuem dignidade. Mesmo que a afirmação seja discutível, pois há sérios estudos demonstrando que Kant não atribui a dignidade a todos os seres humanos, mas somente àqueles que são dotados de razão – excluindo, impermissibility of false promising (along with “assaults on the freedom and property of others”) follows directly and unproblematically, in Kant’s view, from this formula. It is easy to see the attractiveness of Kant, from a liberal political perspective, given the congruence between his moral thought and traditional liberal insistence on the right to life, liberty, and the pursuit of property and/or happiness. The peculiar force and influence of Kantian principles in contemporary arguments for patient choice and informed consent is especially apparent” [sem grifos no original]. Em outra passagem: “As this brief and inadequate sketch suggests, Kant’s moral anthropology, broadly construed, is well positioned to support a regime of individual rights, or of ‘equal recognition,’ as Hegel will later call it. And this, indeed, is the use to which Kant is most often put, as we have seen, in today’s bioethical debates”. 331 McCRUDDEN, Op. cit., p.659-660. “[…] whether rightly or wrongly, the conception of dignity most closely associeted with Kant is the idea of dignity as autonomy; that is, the idea that to treat people with dignity is to treat them as autonomous individuals able to choose their destiny”. 332 Nesse passo, pode-se exemplificar com o direito penal defendido por Kant. Vale lembrar que suas ideias acerca do direito penal são, hodiernamente, consideradas arcaicas e mesmo atentatórias à dignidade humana. O filósofo considerou indignas as funções de ressocialização e a educação por meio do direito penal, pois elas desconsideram o sujeito como um fim em si mesmo e instrumentalizam-no. Por isso, acreditou que as penas deveriam ser aplicadas por retribuição, modo no qual o sujeito é responsabilizado pelo seu ato e, portanto, não tem sua dignidade lesada nem perdida. Entrementes, não é uníssona a interpretação da dignidade como indene a graus e a condições na obra de Kant. Carlos Ruiz Miguel mostra que, inicialmente, na Fundamentação da metafísica dos costumes, a proposta kantiana era justamente a de que a dignidade não admitiria graus nem poderia ser perdida, mas, no escrito posterior, A metafísica dos costumes, a noção se tornou contraditória, pois, mais do que a fórmula do fim em si mesmo, a dignidade significaria uma elevação ético-política ou moral, existindo a possibilidade de um ser humano tornar-se, pelo seu comportamento, sem valor (unworthy). KANT, A metafísica..., p.174-175; MIGUEL, Human dignity..., p.281-299. 167 portanto, crianças, portadores de transtornos mentais severos, indivíduos senis, enfim, grupos nos quais a razão é latente ou foi perdida333 –, é fato que se disseminou a noção de que a dignidade em sentido kantiano é um atributo ontológico do ser humano. O objetivo deste tópico foi de mostrar como é possível relacionar a proposta kantiana de dignidade humana com o conceito de dignidade como autonomia, partindo da separação dos costumes em dois ramos, o da moralidade e o do direito, e assumindo uma leitura específica da segunda formulação do Imperativo Categórico, a qual exige, por seu turno, releituras da ideia de liberdade/autonomia em Kant. É também viável encontrar na obra de Kant outros elementos do conceito de dignidade como autonomia, a exemplo de ser ela um atributo ontológico e universal do ser humano, bem como pelo fato de Kant não assumir uma teoria da preponderância do bem sobre o justo (ou os direitos). Mais à frente, ver-se-á que a correlação entre o pensamento kantiano e a dignidade como autonomia é uma possibilidade plausível, sem ser a única. Os argumentos de Kant e os argumentos kantianos também se mostram compossíveis à concepção de dignidade como heteronomia. Adianta-se, todavia, que serão explicitadas, também, as críticas que podem ser feitas à associação da proposta kantiana com a dignidade como autonomia. 2.4.4.2 Inconsistências e críticas à dignidade como autonomia Até o momento, mostrou-se que uma das concepções de dignidade humana que podem ser mapeadas no discurso jurídico-moral é a de dignidade como autonomia. O conceito é bastante trabalhado e entende-se que está subjacente às Grandes Declarações Internacionais de Direitos Humanos do século XX, além de fazer-se presente em muitas Constituições e permear decisões judiciais de monta. Não obstante a relevância do discurso da dignidade como autonomia, existem problemas teóricos e práticos importantes na adoção dessa postura. Como problemas teóricos, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword apontam: (a) a contingência epistemológica; (b) a contingência contextual. Como problemas práticos, denuncia-se a excessiva atomização e individualização que o conceito pode ensejar, além da possibilidade de ocorrer uma banalização da humanidade e da vida humana advinda da inexistência e/ou impossibilidade de imposição de valores externos aos sujeitos – diferentes da preservação da liberdade de terceiros – que possam conter a sua liberdade. É por esta 333 BEYLEVELD; BROWNSWORD,Human dignity..., p.87 e ss. 168 questão prática que diversos autores mencionam que, diante da biotecnologia, adotar a postura exclusivamente autonomista da dignidade oferece muito pouco, pois as barreiras protetoras ficariam demasiadamente aquém do necessário. No que respeita à contingência, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword esboçam com clareza o raciocínio. O conceito de dignidade como autonomia possui como seus elementos a universalidade e também o fato de ser apresentado como o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Para reconstruir o pensamento de ser a dignidade o fundamento e a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos assume-se, como primeira premissa, que todos os seres humanos, pelo fato de sua humanidade, possuem valor intrínseco, ligado à dignidade, que deve ser protegido, respeitado e promovido. No entanto, nem todos os seres humanos – ou instituições sociais e políticas às quais pertencem – agem ou se omitem de agir respeitando o valor intrínseco de outros seres humanos (segunda premissa). Os direitos fundamentais e os direitos humanos entram em cena neste ponto: é por meio deles que se consegue promover, respeitar e proteger o valor intrínseco de cada ser humano qua humano (conclusão)334. O passo de uma premissa à outra e à conclusão não oferece maiores obstáculos, mas a questão que remanesce é: por que os seres humanos possuem valor intrínseco? Qual é a característica ou propriedade que os distingue dos demais seres, especialmente os animais não-humanos? A resposta dos autores é que não há, na argumentação da dignidade como autonomia, uma justificação para a primeira premissa. Sua função é axiomática, que se presume aceita335. Desse modo, é epistemologicamente contingente, depende da aceitação e da manutenção de uma cultura que a defenda336. 334 “Hence, human beings are vulnerable and a regime of human rights goes someway towards shielding them against one another (particularly against over-bearing State-organized governance). Human dignity, thus, justifies a protective regime of human rights in a very straightforward way.” BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.22. 335 Ronald Dworkin é um autor que parece não dar grande importância à contingência epistemológica quando expõe o direito como integridade. Toda a estrutura de pensamento está baseada na ideia de igual respeito e consideração, que o jusfilósofo estadunidense expressa como um axioma que pressupõe que todos aceitem. DWORKIN, Ronald, Levando..., p.419-421. Cumpre notar que atualmente o status moral dos animais não-humanos tem sido objeto de estudos e a visão da dignidade como típica da humanidade pela sua humanidade são, via de conseqüência, criticada por incorrer no especismo. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.22. 336 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.22. Os autores trazem à tona o pensamento de Joel Feinberg: “In attributing human worth to everyone, we may be ascribing no property or set of properties, but rather expressing an attitude – the attitude of respect – toward the humanity in each man’s person. That attitude follows naturally from regarding everyone from ‘the human point of view’, but it is not grounded in anything more ultimate than itself, and is not ultimately justifiable”. 169 As notas históricas que acompanham a sedimentação da dignidade humana como justificação e fundamento dos direitos fundamentais e dos direitos humanos, a saber, a barbárie nazi-fascista e as ditaduras do século XX, não funcionam como justificação teórica, mas apenas como apresentação dos fatos que levaram à ampla aceitação desse papel da dignidade humana337. Em sendo assim, a dignidade como fundamento e justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos só é capaz de se manter enquanto for aceita e não entrar em competição com novos (ou velhos) axiomas. A percepção da contingência epistemológica contida no discurso da dignidade como autonomia é bastante grave, pois atinge o seu núcleo teórico, vertendo-a em um conceito que carece de justificação e que depende da aceitação ou da convenção338. Em uma versão mais leve da dignidade como autonomia, a dignidade estaria assentada em alguma propriedade exclusiva dos seres humanos, que poderia ser justamente a sua capacidade de valorar a própria existência ou a capacidade de ação autônoma. Contudo, essa tentativa não elide a contingência epistemológica, pois haveria 337 São incontáveis os textos jurídicos que frisam o cunho ontológico da dignidade e apresentam-na como o fundamento ou a justificação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos sem que seja especificado o fundamento ou a justificação da dignidade. É frequente, também, a junção dessas afirmações a questões históricas, normalmente quanto ao holocausto e às ditaduras que se alastraram durante o século XX. A âncora da dignidade acaba sendo, portanto, as lições históricas que deveriam ser sempre lembradas e praticadas. Embora boa parte dos autores que tomam esse caminho situe-se no marco do pós-positivismo, parecem, nesse ponto, adotar ou (a) uma postura positivista – a dignidade está positivada e, portanto, cabe condensá-la semanticamente e efetivá-la, sem necessidade de maiores justificações; ou (b) aceitar como suficiente e não-contingente a afirmação de que o ser humano é digno por ser humano, ou seja, fundar suas construções teóricas em um axioma. A primeira alternativa parece ser produto de um texto de Norberto Bobbio que exerceu enorme influência no início da década de 1990 nas produções acadêmicas e doutrinárias sobre direitos fundamentais e direitos humanos. Segundo o jurista italiano, os direitos humanos não mais precisariam ser fundamentados, mas efetivados. Entretanto, o discurso dos direitos, por variadas razões, vem sofrendo ataques e, cada vez mais, juristas e filósofos são confrontados com a premência de oferecer uma justificação epistemológica aos direitos fundamentais e aos direitos humanos e, como consequência, à própria dignidade humana. 338 Pedro Serna, mesmo adotando a dignidade humana como um dos três elementos que formam a estrutura genética dos direitos fundamentais, é muito claro a respeito das consequências da crítica quanto à contingência epistêmica da dignidade humana, pois algo tão forte como os direitos fundamentais não poderia estar nem fundado nem justificado em um conceito contingente: “En rigor, de un fundamento así solo se puede obtener la superioridad del hombre sobre otras especies animales y sobre el resto de los seres que publean el universo físico, pero ello no basta para justificar seriamente un respeto incondicionado como el que parecen postular los derechos. Por el contrario, se requiere algo distinto de las determinaciones particulares, del modo de ser propio del hombre, para justificar precisamente el respeto incondicionado a ese modo de ser y sus despliegues dinámicos. Eso es precisamente la dignidad del ser humano. Por todo lo dicho, puede concluir-se que los derechos se fundan en la dignidad, o carecen por completo de fundamento alguno, debiendo entonces ser reconocidos exclusivamente como banderas de una lucha política marcada por el signo de la arbitrariedad. Ello equivale a decir que la suerte de los derechos, desde el punto de vista ético-axiológico, correrá paralela a la suerte de la dignidad. Si ésta pude fundamentar-se, se habrá logrado una justificación para la obligatoriedad de los derechos; si, por el contrario, no caber encontrar fundamento sólido para a la dignidad, los derechos sólo podrán reivindicar-se por motivos precisamente no universalizables”. SERNA, Pedro. La dignidad de la persona como principio del derecho público. Derechos e Libertades: Revista del Instituto Bartolmé de Las Casas, Madrid, n.10, p.294-295. 170 que se justificar por que tais atributos confeririam dignidade. Além disso, o atrelamento da dignidade a uma propriedade exclusiva dos seres humanos traria consigo outro tipo de contingência incompatível com um dos elementos da dignidade como autonomia, qual seja, a não-inclusão de alguns seres humanos no espectro de titularidade da dignidade, pois qualquer ser humano que não possuísse o atributo, a autonomia, por exemplo, não seria digno em si mesmo, mas apenas destinatário de proteção por aqueles portadores do atributo339. Não é apenas a contingência epistemológica que traz dúvidas ao conceito de dignidade como autonomia; há também a contingência contextual. Um dos eixos da dignidade como autonomia é o seu caráter de universalidade. Cotidianamente, a universalidade se mostra fragilizada, pois o que se considera digno em uma época, em uma cultura, em uma comunidade ou determinado local pode ser considerado largamente indigno em outros. Nos dias de hoje, esse debate é intenso e envolve um amplo arco, que tem, em um de seus extremos, posturas altamente relativistas e, de outro, posturas intensamente universalistas. Mas há, também, posturas intermediárias, que mostram a possibilidade de conciliação entre o pleito de universalidade e o respeito pela diferença. Nessa trilha, ainda que seja de se apontar a contingência, ela não é tão problemática ao conceito de dignidade como autonomia quanto é a contingência epistemológica340. Apesar das críticas sobre a contingência, sustentar que a dignidade humana é o arcabouço axiológico dos direitos fundamentais e dos direitos humanos e manter seu caráter intrínseco e universal é argumento dotado de muita força política e tem o condão de, pelo menos, inverter o ônus argumentativo quanto àqueles que porventura pretendam sustentar que há seres humanos que perdem a dignidade, que não a possuem, ou, então, que a dignidade pode ser atribuída em graus. Dessa maneira, a contingência epistemológica representa um obstáculo do ponto de vista filosófico que não é, por ora, tão intenso do ponto de vista jurídico-político341. 339 Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.23. Ver também: VILHENA, Oscar Vieira. Direitos fundamentais: uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Malheiros, 2006, p.66-67. 340 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.24-25. Ver também: PIOVESAN, Op. cit., p.346; KYMLICKA, Will. Multiculturalismo liberal. In: SARMENTO, Daniel; PIOVESAN, Flávia; IKAWA, Daniela (Orgs). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, passim. 341 Nas palavras de Leon Kass: “The first-and perhaps best-ground remains practical and political, not theoretical and ontological. If you or your government (or my doctor or health maintenance 171 A outra indagação relativa à dignidade como autonomia é prática. Uma vez que se tenha a escolha individual como guia da ideia de dignidade, há inúmeros pontos favoráveis, como a manutenção do pluralismo e da democracia e a proteção da liberdade individual. Mas há um outro lado. No contexto atual – no qual existe um ceticismo significativo sobre valores compartilhados, universais e, em especial, sobre aqueles que se pretendem incondicionais – oferecer prioridade à liberdade contra desafios morais e políticos que podem impactar o convívio social e a própria humanidade, principalmente no campo do desenvolvimento das biotecnologias, pode representar uma barreira insuficiente. Vista a dignidade como autonomia, qual seria a raiz dos possíveis obstáculos a serem postos nas hipóteses de indivíduos que voluntariamente adentram situações, posições ou relações consideradas indignas (pelos demais) ou fazem escolhas que se reputam, externamente, indignas, ainda que autorreferentes? Essas indagações conduzem ao exame do conceito de dignidade como heteronomia. 2.4.5 A dignidade humana como heteronomia O segundo sentido identificado à ideia de dignidade humana é o de dignidade como heteronomia. De modo geral, a dignidade como heteronomia significa uma visão compartilhada da dignidade que ultrapassa o indivíduo e não é dirigida pela escolha individual. Sob este ângulo, a dignidade é associada a elementos externos aos indivíduos, como valores compartilhados por uma comunidade ou grupo, à ordem pública, ao interesse público, à moral pública, dentre outros. Via de regra, esses elementos não são, propriamente considerados, direitos subjetivos alheios, mas concepções valorativas mais amplas sobre o que pode ser aceitável em uma sociedade organization) wants to claim that I am, for reasons of race or ethnicity or disability or dementia, subhuman, or at least not your equal in humanity, and, further, if you mean to justify harming or neglecting me on the basis of that claim, the assertion of universal human dignity exists to get in your way. The burden of proof shifts to you, to show why I am not humanly speaking your equal: you must prove why you are entitled to put a saddle and bridle on me and ride me like a horse, or to deny me the bread that I have earned with the sweat of my brow, or to dispatch me from this world because I lead a subhuman existence. You will, in fact, face an impossible task: you will be unable to prove that you possess God-like knowledge of the worth of individual souls or carry the proper scale of human worth for finding me insufficiently ‘weighty’ to deserve to continue to breathe the air. In this approach to grounding basic human dignity, I offer not a metaphysically based proof but a rhetorically effective demonstration-shown precisely by my asserting my equal dignity-that I, like you, am a somebody, like you born of woman and destined to die, like you a member of the human species each of whose members knows from the inside the goodness of his own life and liberty”. KASS, Leon R. Defending human dignity. In: Human dignity and bioethics: essays commissioned by the president’s Council on Bioethics. Washington: mar.2008. Disponível em: http://www.bioethics.gov/reports/human_ dignity/chapter12.html. [sem grifos no original]. 172 ou comunidade segundo seus padrões civilizatórios ou seus ideais de vida boa. Assim, o conceito funciona muito mais como uma constrição externa à liberdade individual (entendida como ausência de constrangimentos externos) do que como um meio de promovê-la342. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword esclarecem que enquanto a dignidade como autonomia situa-se em teorias baseadas em direitos, a dignidade como heteronomia situa-se naquelas baseadas em deveres. Nas primeiras, a interferência com condutas autorreferentes somente se motiva se estiverem em cena direitos de terceiros. Já nas segundas, as interferências com tais comportamentos poderiam ser motivadas em três tipos de deveres: (a) deveres para com os demais; (b) deveres para consigo; (c) deveres para com a comunidade343. Se a dignidade como heteronomia fosse ligada apenas ao primeiro tipo, ela seria muito semelhante a um conceito forjado em uma teoria baseada em direitos. A questão está justamente nos dois outros tipos de deveres. Quando os deveres para consigo são aceitos e enlaçados à dignidade, o indivíduo pode ser impedido não apenas de fazer escolhas que impactem negativamente a dignidade e os direitos alheios, mas também quando põe em risco a sua própria dignidade e seus direitos. O terceiro tipo de deveres substitui o titular de um direito por um grupo que compartilha uma visão de dignidade e, portanto, uma visão de mundo que pode ser imposta como dever ao indivíduo que queira fazer ou faça parte do grupo344. A dignidade como heteronomia significa, pois, a existência de determinados valores societários compartilhados que se sobrepõem à liberdade individual, podendo, assim, trazer consigo a noção de que há indignidade mesmo quando o sujeito não considera que suas escolhas ou os resultados delas sejam indignos. Normalmente, a dignidade como heteronomia é veiculada lado a lado a conceitos indeterminados, como a ordem pública, a moralidade pública, os valores de uma comunidade, o interesse público, dentre outros: Em outras palavras, se nós pensarmos o respeito pela dignidade humana como um dos valores constitutivos de nossas sociedades (seja como um elemento do interesse público, ou da ordre public, ou como um dos valores fundamentais da nossa comunidade), então aquelas 342 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.29. A palavra deveres não está sendo tomada no exato sentido que lhe foi conferido no Capítulo 1, como ficará nítido ao longo da exposição. 344 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.37. 343 173 preferências e escolhas individuais que discrepam no que respeita à dignidade humana estão simplesmente fora dos limites345. De modo resumido, pode-se dizer que os objetivos que amparam o conceito de dignidade como heteronomia são similares aos do paternalismo, aos do moralismo jurídico e aos do perfeccionismo, embora o ponto mais intrigante da dignidade como heteronomia seja o que Gerald Dworkin intitulou de moralismo jurídico paternalista. Relevante ao conceito de dignidade como heteronomia é a contingência. Tanto a contingência epistemológica como a contextual são entraves à concepção de dignidade como autonomia; entretanto, elas são bem-vindas ou, pelo menos, não causam impacto na concepção de dignidade como heteronomia. A dignidade como heteronomia não tem em si a marca da universalidade – certo grau de universalidade pode, sem dúvida, se fazer presente, mas não é um elemento necessário ao conceito. O que se tem como primordial é que cada sociedade política forma as suas concepções de dignidade, compostas de valores e decisões compartilhadas que podem ser diferentes das encontradas em outras sociedades. Com a dignidade como heteronomia, cada grupo político constrói a cultura e os valores que pretende fomentar e preservar. Isso não significa que ela se confunda com a regra de maioria. Pode ser mais profundo que isso, uma vez que a unidade de agência, nessa concepção, pode deslocar-se do indivíduo para um ente coletivo, o que demonstra, também, que a contingência epistemológica não é um fardo para a dignidade como heteronomia346. Existem algumas decisões judiciais que são consideradas marcos da compreensão da dignidade como heteronomia. Uma delas, por variados fatores, tornouse muito conhecida em diversos países e foi alvo das mais variadas análises. Trata-se do famoso caso do arremesso de pessoas afetadas pelo nanismo347. Uma vez proibida a 345 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.29. O pensamento levaria a associar a dignidade humana como heteronomia às propostas comunitaristas, e a dignidade como autonomia às propostas liberais. Mas, em linha de princípio, não se pode tomar uma noção comunitarista como excludente da dignidade como autonomia, uma vez que o valor comunitário pode ser justamente a autonomia/liberdade. Nesse sentido, ter-se-ia uma espécie de doutrina moral abrangente liberal, ao estilo de J.S. Mill. Ver: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.6366. 347 O caso do anão ocorreu na França. Trata-se de uma decisão da Câmara de Contencioso Administrativo de Estado, na qual foi mantida a proibição da “apresentação de um novo tipo de diversão pública, que se constituía em um jogo no qual o público era convidado a atirar, utilizando-se de um canhão de pressão, um anão à distância. Aquele que conseguisse arremessá-lo a distância maior ganhava o jogo”. CUNHA, Dignidade..., p.249. Este acórdão gerou inúmeras discussões, tanto entre aplicadores do direto, quanto no meio acadêmico. Ainda, as soluções que se encontram para o caso são muitas vezes divergentes daquela adotada na França. Convém reportar que este jogo não se apresentou apenas na França. A situação ocorreu também em Portugal, e vem se mostrando nos Estados Unidos da América. Conferir: KUFLIK, Arthur. The inalienability of autonomy. Philosophy and public affairs, v.13, n.4, p.271-298, Autumm, 346 174 brincadeira de arremessar pessoas afetadas pelo nanismo, Sr. Wackenheim (a pessoa afetada pelo nanismo envolvida no caso) e a produtora do divertimento buscaram reverter a proibição. A Câmara de Contencioso Administrativo francesa considerou que o arremesso de anões feria a dignidade do próprio Sr. Wackenheim, ainda que ele assim não percebesse e consentisse com a prática. A liberdade de trabalho e a liberdade empresarial não foram consideradas obstáculos à proibição, justamente em nome da defesa da dignidade humana. O que se nota, de pronto, é que a dignidade não foi entendida como a possibilidade de livre escolha do indivíduo, mas como conceito que encampa o respeito à ordem pública e é capaz de limitar liberdades348. É um exemplar claríssimo da dignidade como heteronomia. Ainda insatisfeito, o Sr. Wackenheim peticionou ao Comitê de Direitos Humanos, que indeferiu o seu pedido, tendo em conta especialmente a inexistência de uma discriminação injustificada349. São também consideradas paradigmáticas da ideia de dignidade como heteronomia as decisões sobre relações sexuais sadomasoquistas consentidas350. A 1984; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.333, n.111; BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.25 e ss. Utiliza-se aqui a expressão pessoas afetadas pelo nanismo por ter a palavra anão sido tarjada de politicamente incorreta: QUEIROZ, Antônio Carlos. Politicamente correto & direitos humanos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2004, p.77. 348 Confira-se: “*2*. Cons. qu'il appartient à l'autorité investie du pouvoir de police municipale de prendre toute mesure pour prévenir une atteinte à l'ordre public; que le respect de la dignité de la personne humaine est une des composantes de l'ordre public; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale peut, même en l'absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte au respect de la dignité de la personne humaine; *3*. Cons. que l'attraction de « lancer de nain » consistant à faire lancer un nain par des spectateurs conduit à utiliser comme un projectile une personne affectée d'un handicap physique et présentée comme telle; que, par son objet même, une telle attraction porte atteinte à la dignité de la personne humaine ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale pouvait, dès lors, l'interdire même en l'absence de circonstances locales particulières et alors même que des mesures de protection avaient été prises pour assurer la sécurité de la personne en cause et que celle-ci se prêtait librement à cette exhibition, contre rémunération; (…) *6*. Cons. que le respect du principe de la liberté du travail et de celui de la liberté du commerce et de l'industrie ne fait pas obstacle à ce que l'autorité investie du pouvoir de police municipale interdise une activité même licite si une telle mesure est seule de nature à prévenir ou faire cesser un trouble à l'ordre public; que tel est le cas en l'espèce, eu égard à la nature de l'attraction en cause”. FRANCE. C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune de Morsang-sur-Orge. (Assemblée. – Req. Nº136727 – Mille Laigneau, rapp.; M. Frydman, c. du g.; Mes Baraduc-Bénabent, bertrand, av.). 349 Human Rights Committee. Wackenheim v. France. Communication nº854/1999. 15 July 2002. CCPR/C/75/D/854/1999. Nas razões do Estado francês, fica patente a compreensão da dignidade como heteronomia. Porém, a decisão do Comitê não tomou por motivação este conceito. O caso foi examinado à luz da proibição da discriminação. 350 O fato ocorreu no Reino Unido. Casualmente, foram encontrados diversos vídeos que continham filmagens de relações sexuais grupais homossexuais com fortes notas sadomasoquistas. Apesar de as relações serem consentidas e sujeitas a regras estritas obedecidas pelos participantes (esterilização do material, palavras de ordem para cessar a atividade, etc.), alguns envolvidos foram condenados criminalmente, pois os Lordes consideraram que o consentimento, ainda que livre, não elidia a sanção penal para atos de lesão corporal, tampouco era capaz de justificar o tipo de relação, por sua violência. Na Câmara dos Lordes, foi dito, mais de uma vez, que o fato de se tratar de relações homossexuais não alterara em nada o rumo decisório. É necessário mencionar que, em um dos episódios, havia um jovem com menos de 21 anos, portanto com idade inferior à permitida para o consentimento quanto a relações 175 Câmara dos Lordes, por maioria, entendeu que o consentimento não poderia funcionar como defesa em situações de violência física, ainda que consentida por todos os participantes. Embora a expressão dignidade humana não tenha sido diretamente empregada, a compreensão esposada é plenamente conciliável com dignidade como heteronomia351. As palavras dos Lordes que compuseram a maioria lembram, em muitos aspectos, a contenda entre Lord Devlin e H.L.A. Hart, porquanto a maioria considerou que a sociedade está autorizada a recorrer ao direito penal para coibir comportamentos autorreferentes que possam causar impacto no grupo social, ao passo que a minoria deliberou no sentido de preservar a privacidade e a liberdade das pessoas quanto a atos autorreferentes352. Levado o caso à Corte Europeia de Direitos Humanos, a maioria ancorou-se na margem de apreciação, mantendo a decisão proferida no Reino Unido. Porém, a ênfase esteve na proteção da saúde e não da moral pública353. Apenas o voto sexuais homossexuais naquela latitude. É relevante também o fato de as atividades serem conhecidas apenas pelos participantes, pois os vídeos não se destinavam nem à venda, nem à distribuição a nãoparticipantes. Outro elemento que conduz à análise foi a grande exposição na mídia e a perda dos empregos pelos réus. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v. Brown. [1993] All ER 75. Disponível em: http://www.parliament.the-stationery-office.com/pa/ld199798/ldjudgmt/jd970724/brown01.htm. 351 Pode-se entrever a motivação nos termos do voto do Lord Coleridge (maioria): “Society is entitled and bound to protect itself against a cult of violence. Pleasure derived from the infliction of pain is an evil thing. Cruelty is uncivilised. I would answer the certified question in the negative and dismiss the appeals of the appellants against conviction”. Ainda que os advogados dos réus sustentassem que as condutas realizavam-se em espaços privados, por adultos consententes, que não houvera nenhuma necessidade de recursos médicos e, especialmente, que cada pessoa pode realizar com o seu corpo o que quiser e escolher os tipos de relações sexuais que lhe são prazerosas, Lord Coleridge expressou: “I do not consider that this slogan provides a sufficient guide to the policy decision which must now be made. It is an offence for a person to abuse his own body and mind by taking drugs. Although the law is often broken, the criminal law restrains a practice which is regarded as dangerous and injurious to individuals and which if allowed and extended is harmful to society generally. In any event the appellants in this case did not mutilate their own bodies. They inflicted bodily harm on willing victims. […] The assertion was made on behalf of the appellants that the sexual appetites of sadists and masochists can only be satisfied by the infliction of bodily harm and that the law should not punish the consensual achievement of sexual satisfaction. There was no evidence to support the assertion that sado-masochist activities are essential to the happiness of the appellants or any other participants but the argument would be acceptable if sadomasochism were only concerned with sex as the appellants contend. In my opinion sado-masochism is not only concerned with sex. Sado-masochism is also concerned with violence. The evidence discloses that the practices of the appellants were unpredictably dangerous and degrading to body and mind and were developed with increasing barbarity and taught to persons whose consents were dubious or worthless”. Além de considerar a violência das relações sadomasoquistas inerentemente imorais e perigosas à sociedade como um todo, os Lordes também levaram em conta: a) a genuinidade do consentimento, que presumiram fragilizado, muito embora nenhum dos participantes tenha se retratado ou reclamado a posteriori; b) o uso de álcool e drogas durante os rituais sadomasoquistas; c) o risco à saúde dos participantes, principalmente quanto ao HIV/AIDS. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v. Brown..., Op.cit. 352 Lord Mustill e Lord Slynn of Hadley dissentiram. UNITED KINGDOM. House of Lords. R. v. Brown..., Op.cit. 353 CEDH. Laskey, Jaggard and Brown v. United Kingdom. 1997. Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=1&portal=hbkm&action=html&highlight=Laskey%2C 176 do Justice Pettit tocou diretamente no ponto da proteção da moral pública, relacionando-a com a dignidade humana: Os perigos da permissividade excessiva, que pode conduzir à indulgência, à pedofilia [...] ou à tortura de terceiros, foram destacadas na Conferência Mundial de Estocolmo. A proteção da vida privada significa a proteção da intimidade e da dignidade de uma pessoa, não a proteção da sua desonra ou a promoção da imoralidade criminosa354. De modo análogo ao caso inglês, a Corte Europeia de Direitos Humanos confirmou uma decisão belga, que condenou um juiz e um médico em virtude da participação em clubes de sadomasoquismo355. Na decisão belga, asseverou-se que o consentimento, o direito de dispor de si mesmo e os direitos sexuais não tornavam atos de violência extrema acordes à dignidade humana356. A Corte Europeia de Direitos Humanos manteve a decisão, mas pautou-se principalmente na proteção dos direitos e liberdades de terceiros357. Outro caso típico de consideração da dignidade como heteronomia refere-se aos chamados peep shows358. O Tribunal Federal Administrativo alemão considerou atentatório à dignidade humana a realização deste tipo de apresentação, uma vez que %20|%20Jaggard%20|%20Brown%20|%20v.%20|%20United%20|%20Kingdom.&sessionid=26846875& skin=hudoc-en . 354 CEDH. Laskey, Jaggard and Brown v. United Kingdom. Op.cit. Voto do Justice Petit. 355 Há que se ter atenção aos fatos deste caso, que são bastante diferentes daqueles de R. v. Brown. Na hipótese belga, um casal, o juiz K.A. e sua esposa, e um amigo médico (A.D.) iniciaram práticas sodomasoquistas. No começo, eram encontros mais privados e menos violentos. No entanto, eles começaram a participar de um clube de sadomasoquismo. K.A. e A.D. utilizavam alguns instrumentos que não eram permitidos pelas regras do clube. As filmagens também mostravam que nem sempre as palavras de ordem utilizadas pela vítima para fazer cessar a violência eram respeitadas. Ademais, a esposa de K.A. era levada aos clubes e funcionava como uma espécie de escrava sexual. Em alguns episódios, as sevícias eram nela realizadas por terceiros mediante pagamento. Além da condenação, K.A. foi definitivamente afastado de seu cargo. 356 Segundo o relato da CEDH, a Corte de Apelação belga assim se posicionou: “S’interrogeant ensuite sur le caractère punissable des faits, au regard notamment de l’article 8 de la Convention, la cour d’appel émit d’abord des doutes, mais sans y répondre, sur le point de savoir si les faits commis en dehors du domicile conjugal (phases 2 à 4) pouvaient être considérés comme relevant de la « vie privée » au sens de cette disposition. Quoi qu’il en soit, elle considéra que la morale publique et le respect de la dignité de la personne humaine imposaient des limites qui ne sauraient être franchies en se prévalant du « droit à disposer de soi » ou de la « sexualité consensuelle ». Même à une époque caractérisée par l’hyper-individualisme et une tolérance morale accrue, y compris dans le domaine sexuel, les pratiques qui s’étaient déroulées lors de la phase 4 étaient tellement graves, choquantes, violentes et cruelles qu’elles portaient atteinte à la dignité humaine et ne sauraient en aucun cas être acceptées par la société. Le fait que les prévenus continuaient de soutenir qu’il n’y avait ici qu’une forme d’expérience sexuelle dans le cadre du rituel du jeu sadomasochiste entre personnes majeures consentantes et dans un lieu fermé, n’y changeait rien”. CEDH. Affaire K.A. et A.D. c. Belgique. (Requêtes nºs 42758/98 et 45558/99). 2005, Disponível em: http://cmiskp.echr.coe.int/tkp197/view.asp?item=18 &portal=hbkm&action=html&highlight=Affaire%20|%20K.A.%20|%20et%20|%20A.D.&sessionid=268 46875&skin=hudoc-en. [sem grifos no original]. 357 CEDH. Affaire K.A... Op.cit.. 358 Peep shows são apresentações nas quais mulheres aparecem engaioladas e sujeitam-se às vontades dos espectadores, que podem dirigir seus movimentos e suas performances. De regra, não podem tocá-las. 177 uma pessoa submete-se, como objeto, à vontade de outra: “Aqui, a dignidade humana, porque o seu significado vai além do indivíduo, deve ser protegida mesmo contra os desejos da mulher envolvida cujas próprias ideias subjetivas desviam-se do valor objetivo da dignidade humana”359. E ainda: “essa violação da dignidade humana não é removida nem justificada pelo fato de que a mulher que atua em um peep show age voluntariamente. A dignidade do homem é um valor objetivo, inalienável... o seu respeito não pode ser renunciado pelo indivíduo”360. Dos excertos, percebe-se que a dignidade humana foi tomada como um valor objetivo, que ultrapassa a esfera individual e pode ser violado mesmo que o indivíduo não pense que viola a sua dignidade. Nessa medida, “onde a dignidade humana assim concebida estiver em jogo, a livre escolha é irrelevante”361. Em um estudo no qual catalogou e analisou diversas decisões judiciais que tiveram como fulcro a dignidade humana, McCrudeen observou que há, dentre outras, uma visão comunitarista e também uma visão rights-constraing (como antagônicas à visão individualista e rights-supporting, respectivamente), ambas bastante semelhantes ao que aqui se chama dignidade como heteronomia. Nesta perspectiva, as Cortes aceitaram limitações ou impuseram limites em nome da dignidade humana à liberdade de expressão, visando a evitar a proliferação da pornografia e da indecência, e também dos chamados discursos do ódio362. Paralelamente, também há diversos julgados nos quais se considera que existem limites para que uma pessoa possa dispor de sua própria dignidade, de modo que a dignidade torna-se uma concepção heterônoma. Percebendo as diferenças nas concepções de dignidade humana nos documentos de Direitos Humanos e na sua interpretação, McCrudden asseverou: “o que emerge dessas diferenças é que algumas jurisdições usam a dignidade como a base para (ou como outro modo de expressar) um ponto de vista moral abrangente, que parece significativamente diferente de região para região”363. 359 BVerwGE 64 (1981) 274 apud BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34. Cf. ULLRICH, Concurring visions..., p.83. 361 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34. 362 Sobre a proibição dos discursos do ódio para a proteção da dignidade humana são citadas decisões da Corte de Israel, da Comissão Europeia de Direitos Humanos, do Canadá e também da África do Sul e da Hungria. McCRUDDEN, Op. cit., p.684-685. No Brasil, um dos fundamentos utilizados pelo STF para a proibição dos discursos do ódio foi justamente a dignidade humana. BRASIL. STF. HC nº 82.424/RS. Rel. Min. Moreira Alves. 19/03/2004. Cabe lembrar que a CF/88 possui enunciado normativo específico sobre o crime de racismo. 363 McCRUDDEN, Op. cit., p.675. “What emerges from these differences is that some jurisdictions use dignity as the basis for (or another way of expressing) a comprehensive moral viewpoint, ‘a whole moral world view’, which seems distinctly different from region to region. In this sense, to speak of human 360 178 Ao examinar detidamente alguns documentos europeus e internacionais sobre bioética, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword concluem que está surgindo uma nova bioética europeia, na qual a dignidade humana assume um posto muito alto. E o sentido mais acentuado da expressão é o de dignidade como heteronomia. Segundo os autores, o termo dignidade humana na Convenção Europeia de Direitos Humanos e Biomedicina e na Declaração Universal do Genoma Humano e Direitos Humanos, da UNESCO, trata mais de limitar a liberdade em nome de valores compartilhados, ou seja, tende à dignidade como heteronomia364. No Brasil, existem autores que aliam o conceito de dignidade humana à dignidade como heteronomia. Todavia, assim como ocorre com o conceito de dignidade como autonomia, poucos são os que aderem exclusivamente à dignidade como heteronomia. Este parece ser o caso de Oscar Vilhena Vieira que, após explicitar a visão autonomista da dignidade, explora o pensamento kantiano e demonstra que, apesar de nela residir uma versão autonomista, há também espaço para a heteronomista: O princípio da dignidade, expresso no Imperativo Categórico, referese substantivamente à esfera de proteção da pessoa enquanto fim em si, e não como meio para a realização de objetivos de terceiros. A dignidade afasta os seres humanos da condição de objetos à disposição de interesses alheios. Nesse sentido, embora a dignidade esteja intimamente associada à ideia de autonomia, da livre escolha, ela não se confunde com a liberdade no sentido mais usual da palavra – qual seja, o da ausência de constrangimentos. A dignidade humana impõe constrangimentos a todas as ações que não tomem a pessoa como fim. Esta a razão pela qual, do ponto de vista da liberdade, não há grande dificuldade em se aceitar um contrato de prestação de serviços degradantes. Se o anão decidiu, à margem de qualquer coerção, submeter-se a um tratamento humilhante em troca de remuneração, qual o problema? De fato, da perspectiva da dignity is a shorthand way of summing up how a complex, multi-faceted set of relationships involving Man is, or should be, governed: relationships between man and man, man and God, man and animals, man and the natural environment, man and the universe”. 364 Todavia, os autores reconhecem também elementos, ainda que menos fortes, da dignidade como autonomia. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.34; 29-33; p.38-44. Conferir os documentos e seus relatórios: CONSELHO DA EUROPA. Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina. (04/04/1997). Disponível em: http://www.gddc.pt/direitos-humanos/textos-internacionais-dh/tidhregionais/convbiologia NOVO.html; COUNCIL OF EUROPE. Convention for the protection of human rights and dignity of the human being with regard to the application of biology and medicine: convention on human rights and biomedicine: explanatory report (17/12/1996). Disponível em: http://conventions.coe.int/treaty/en/ Reports/Html/164.htm; UNESCO. Universal declaration on the human genome and human rights. (11/11/1997). Disponível em: http://portal.unesco.org/en/ev.phpURL_ID=13177&URL_DO=DO_TOPIC &URL_SECTION=201.html. Importa conferir ainda a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, da UNESCO. O texto é posterior aos demais e parece ligar a dignidade humana à autonomia com mais intensidade. UNESCO. Universal declaration on bioethics and human rights. (19/10/2005). Disponível em : http://portal.unesco.org/en/ev.phpURL_ID=13177&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html. 179 liberdade não há problema algum. A questão é se podemos, em nome de nossa liberdade, colocar em risco nossa dignidade. Colocada em termos clássicos, seria válido o contrato em que permito a minha escravidão? Da perspectiva da dignidade, certamente não365. Então, para o autor, a dignidade é justamente o freio à liberdade. Veja-se o que ele assevera sobre o caso de arremesso de pessoas acometidas de nanismo – é a dignidade que obsta a escolha, há um elemento externo ao sujeito, que o ultrapassa e que é hábil a limitar sua liberdade. A liberdade não é o componente central da dignidade, mas é a dignidade que molda a liberdade. Para isso, duas posições básicas são possíveis. A primeira constrói o conceito de liberdade/autonomia a partir do de dignidade, ou seja, a liberdade possui um conteúdo substantivo que impede que ela exista quando a escolha ou seu resultado sejam indignos. A segunda entende a liberdade como a ausência de obstáculos exteriores e, portanto, haveria restrições à liberdade justificadas pela dignidade humana, associada, normalmente, a valores ou objetivos externos ao sujeito que não representem a proteção de direitos de terceiros. Na petição inicial da ACP da ortotanásia, mencionada no tópico sobre o paternalismo, está subjacente a compreensão da dignidade como heteronomia. O simples fato de o Procurador sustentar que todos os pacientes terminais e seus familiares estão destituídos de capacidade civil para tomar decisões referentes aos tratamentos médicos que serão ou não realizados, torna claro que a dignidade como autonomia não se faz presente em seu raciocínio. Aprioristicamente, as pessoas são destituídas de sua autonomia, sem qualquer exame das particularidades do caso, sem qualquer análise profissional individualizada sobre a habilidade para tomar decisões. E por quê? Porque os pacientes terminais ou seus responsáveis legais poderiam optar pela limitação consentida de tratamento, que é considerada, na peça exordial, como uma fuga, uma facilidade. Indigno seria não enfrentar o sofrimento e não lutar contra a morte, ou seja, a escolha da morte é um mal em si ou é uma escolha que pode ser reputada errônea por uma sociedade política. Como a dignidade pode limitar a liberdade, são os pacientes e seus responsáveis considerados civilmente incapazes. É uma compreensão heterônoma do que é ou não digno para o ser humano em seu leito de morte366. Em síntese, pode-se dizer que a dignidade como heteronomia traduz uma ou algumas concepções de mundo e do ser humano que não dependem, necessariamente, 365 VILHENA, Op. cit., p.67. BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, ACP nº2007.34.00.014809-3, Op.cit.; BRASIL, MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, Recomendação nº01/2006 – WD – PRDC, Op. cit. 366 180 da liberdade individual. No mais das vezes, ela atua exatamente como um limite à liberdade individual em nome de valores e concepções de vida compartilhados, muito mais centrada em teorias deontológicas. Por isso, a dignidade como heteronomia é justificada na busca do bem para o sujeito, para a preservação da sociedade ou comunidade, para o aprimoramento moral do ser humano, dentre outros objetivos. Ademais, diversamente da dignidade como autonomia, a dignidade como heteronomia aceita a contingência, tanto a epistemológica quanto a contextual. 2.4.5.1 Algumas palavras sobre a dignidade como heteronomia e a proposta kantiana Acima, demonstrou-se que muitos estudiosos leem em Kant a dignidade como autonomia. Outros, todavia, vislumbram na proposta kantiana a dignidade como heteronomia. Para que esta leitura seja possível, existem alguns caminhos: (a) fortalecer a teoria kantiana como deontológica; (b) despregar o pensamento kantiano do dualismo que lhe é atribuído, seja o dualismo que aparta a doutrina do direito da doutrina da virtude, seja o rígido dualismo que separa o homem como fenômeno do homem em si mesmo, aquele independente do mundo fenomênico (homem phenomenon e homem nomenun)367; (c) compreender a liberdade/autonomia em Kant de forma bastante diversa daquela associada à dignidade como autonomia. Quanto ao aspecto deontológico da teoria kantiana, há que se dizer que é uma construção teórica que valoriza o ato moral em si, em detrimento da valorização do agente que o realiza e das consequências do ato. Assim, distancia-se da ideia de virtude fundada no caráter do agente que empreende escolhas morais e também de propostas utilitaristas e consequencialistas. O valor da ação moral está no ato em conformidade com o dever. Em Kant, para que este valor se faça presente, não basta apenas a conformidade externa com o dever, é imperioso que o ato seja realizado somente pelo dever em si, à luz do Imperativo Categórico, sem que outros móbiles conduzam o comportamento368. Nesse sentido, a teoria kantiana aproximar-se-ia muito mais daquelas baseadas em deveres do que das baseadas em direitos. Aqui estaria o primeiro ponto de aproximação da dignidade kantiana com a dignidade como heteronomia: haveria deveres para consigo e deveres para com os demais que devem ser cumpridos. 367 Sobre o dualismo entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude, ver: KANT, A metafísica..., p.239-241. Sobre o dualismo do ser humano, ver: SHELL, Op. cit. 368 Ver: RAWLS, História..., p.216. 181 Quanto aos deveres para consigo, Kant distingue os que tangem à animalidade humana e os que se referem ao ser humano somente como ser moral. Os últimos consistem: [...] no que é formal na harmonia das máximas de sua vontade com a dignidade da humanidade em sua pessoa. Consiste, portanto, numa proibição de despojar a si mesmo da prerrogativa de um ser moral, a de agir de acordo com princípios, isto é, liberdade interior e, assim, fazer de si mesmo um joguete de meras inclinações e, por conseguinte, uma coisa369. Percebe-se que Kant é enfático quanto à impossibilidade de indivíduo despojarse do seu ser moral, da sua capacidade de julgamento moral, portanto da humanidade que traz em si mesmo, da sua dignidade. Some-se a isso o fato de Kant situar, nos deveres para com os outros, o dever de respeito370. Ao traçar o que é o dever de respeito, Kant reescreve a segunda fórmula do Imperativo Categórico e menciona, mais de uma vez, que a omissão quanto ao dever de respeito atinge o direito de outrem e infringe “a pretensão legal de cada um”371. Em sendo assim, mesmo que um indivíduo consinta ou deseje ser tratado com desrespeito, não se pode compactuar com esse comportamento372. Enquanto a interpretação da dignidade humana em Kant como autonomia tende a realçar o dualismo entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude, os que leem os escritos kantianos como favoráveis à dignidade como heteronomia relativizam-no, enfraquecendo a diferença entre os deveres de direito e os deveres de virtude. Uma vez que os costumes sejam vistos como um conjunto de dois aspectos que se comunicam – o direito e a moralidade –, a construção que seria exclusivamente moral ganha passagem 369 Kant reconhece a existência de deveres para consigo e de deveres para com os outros. Embora Kant perceba que existe uma contradição na ideia de deveres para consigo, pois aquele que deve é o mesmo a quem é devido e, portanto, poderia o indivíduo liberar-se do dever, Kant demonstra que os deveres para consigo não envolvem o mesmo sujeito, há o ser humano e a humanidade na própria pessoa. Os deveres para consigo seriam os deveres de um ser humano para com a humanidade na sua própria pessoa. Há deveres para consigo que se referem ao ser humano enquanto animal: “a) a preservação do indivíduo humano; b) a preservação da espécie; c) a preservação da capacidade do indivíduo humano de desfrutar a vida, a despeito de ainda apenas ao nível animal”. KANT, A metafísica..., p.259-262. 370 “O respeito que tenho pelos outros ou que o outro pode exigir de mim (observantia aliis prestanda) é, portanto, o reconhecimento de uma dignidade (dignitas) em outros seres humanos, isto é, de um valor que não tem preço, nenhum equivalente pelo qual o objeto avaliado (aestimii) poderia ser permutado. Julgar alguma coisa como sendo destituída de valor é desprezo”. KANT, A metafísica..., p.306. 371 “Todo o ser humano tem um direito legítimo ao respeito de seus semelhantes e está, por sua vez, obrigado a respeitar todos os demais. A humanidade ela mesma é uma dignidade, pois o ser humano não pode ser usado meramente como um meio por qualquer ser humano (quer por outros, quer, inclusive, por si mesmo), mas deve ser sempre ao mesmo tempo utilizado como um fim. É precisamente nisso que sua dignidade (personalidade) consiste, pelo que ele se eleva acima de todos os outros seres do mundo que não são humanos e, no entanto, podem ser usados, e, assim, sobre todas as coisas”. Os vícios que violam o dever de respeito são a soberba, a detração e o escárnio. KANT, A metafísica..., p.306-308. 372 Ver: McCONNELL, Op. cit., p.40. 182 para o campo do direito. Ainda que essas não pareçam ser as palavras literais de Kant, a interpretação é possível, mediante apropriação e releitura de conceitos abstratos, obtidos aprioristicamente, e sua aplicação a um âmbito originariamente não pensado por Kant. Isso se dá em função das transformações ocorridas no próprio Direito, cujo papel foi largamente ampliado desde a concepção liberal que norteava os estudos kantianos e desde que houve uma reaproximação do direito com a moral373. Tratar-se-ia, pois, de uma atualização do pensar kantiano a novas realidades e exigências sociais e teóricas. Ao estabelecer a comunicação entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude, alguns deveres que seriam do sujeito para consigo passam a importar também ao Direito e podem ser impostos, ou, pelo menos, não promovidos e não chancelados pela normatização jurídica. Então, os deveres de virtude, para consigo e para com os demais, adentram o Direito, o que permite que enunciados e normas jurídicas sejam construídas sob essa luz. Evidentemente, o Direito não seria capaz de penetrar no íntimo dos indivíduos e impregnar-lhes de boa-vontade (praticar o dever pelo simples dever, conferindo valor moral à ação). Mas poderia, pelo menos, conduzir os indivíduos a atuarem conforme o dever. Um argumento favorável a este ponto de vista é exatamente a posição de Kant sobre os contratos de autoescravidão. Ao buscar uma saída não-paternalista para explicitar sua posição, Kant recorre à fórmula do fim em si mesmo, e sustenta que um contrato de autoescravidão trata o sujeito apenas como um meio374. Procurando demonstrar que a obra kantiana também se presta à interpretação heteronomista da dignidade, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword indagam qual seria a resposta de Kant para o caso francês do arremesso de portadores de nanismo e para o caso dos peep shows e não hesitam em dizer que a resposta seria a mesma dada por aqueles que os decidiram. Em ambos os casos, sujeitos estão sendo utilizados como meios e não como, simultaneamente, fins em si mesmos; em ambos foi atribuído um preço a seres dotados de dignidade, o que seria impermissível375. 373 A própria inscrição da dignidade humana em textos constitucionais e em documentos jurídicos manifestaria essa reaproximação e atuaria como uma autorização ao translado do pensamento da doutrina da virtude para o ambiente jurídico. E não se trata apenas disso, porquanto há trechos da doutrina da virtude, especialmente quando Kant se refere ao dever de respeito, que ele menciona que há o direito legal de exigir o cumprimento de tal dever, descrito, inicialmente, como um dever de virtude. KANT, A metafísica..., p.307-308. 374 McCONNELL, Op. cit., p.40-41. 375 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity..., p.55. Ver ainda: SHELL, Op. cit., p.336. 183 No trecho já citado de Oscar Vieira Vilhena, sobre a dignidade como heteronomia ao sabor do pensamento kantiano, o autor entende que a liberdade, quando relativa à dignidade, não é a liberdade em face de obstáculos externos, mas o limite àquilo que se pode ou não fazer, qual seja, qualquer comportamento que deixe de tomar os indivíduos simultaneamente como fins em si mesmos. Ele deixa claro que, da perspectiva da liberdade, esses comportamentos seriam aceitáveis, porém, recusa-os em função da dignidade. Ainda que a dignidade contenha um elemento de liberdade, tratase de uma liberdade diferente, de uma liberdade moldada pelo seguir do Imperativo Categórico. Usar da liberdade não seria dar a si mesmo qualquer lei, mas estar constrangido pela moralidade, ou seja, dar a si mesmo leis segundo o procedimento do Imperativo Categórico376. Susan M. Shell, em sua proposta de uma interpretação da dignidade em Kant que não a usual – a dignidade como autonomia –, centra-se no conceito de humanidade, presente na segunda formulação do Imperativo Categórico, e propõe uma relativização do dualismo entre o homem phenomenon e homem nomenun. Para a autora, o ser humano kantiano seria também um ser corporificado, que precisa não apenas ater-se ao seu aspecto moral, mas também ao corpóreo. A humanidade seria um fim objetivo, que funcionaria como “um limite absoluto que restringe nossos outros fins e máximas [...]”. A humanidade vai além do indivíduo e impõe limites à sua liberdade: Mas “humanidade”, eu estou sustentando, significa mais para Kant do que a liberdade recíproca de adultos consententes (ou daqueles que poderiam se tornar ou teriam sido em algum momento); ela também impõe limites nos usos a que alguém pode destinar suas próprias capacidades”377. A humanidade de cada indivíduo seria um fim objetivo, um fim que é um dever, porquanto deve ser escolhido e limita a ação do indivíduo tanto para consigo como para com os demais seres humanos. Sua observância é absoluta. O elo entre dignidade e humanidade no traçado da segunda formulação do Imperativo Categórico tem o condão de limitar comportamentos, impedindo que o indivíduo sujeite a sua humanidade ou deprecie a alheia. A dignidade passa a ser, então, o contraponto da liberdade (no sentido da ausência de obstáculos externos) e atende a valores objetivos e obrigatórios. 376 VILHENA, Op. cit., p.67. Ver ainda: SHELL, Op. cit., p.336. SHELL, Op. cit., p.335; 339. “But ‘humanity’, I am claiming, means more for Kant than the reciprocal freedom of consenting adults (or those who might become or might once have been so); it also imposes limits on the uses to which one may put one’s own capacities”. 377 184 Ao se buscar, aqui, mostrar que o clássico texto – tal qual tantos clássicos – enseja outras possibilidades interpretativas, apontou-se a possibilidade de visualizar a dignidade humana em Kant como dignidade como heteronomia. Partindo da noção de que a teoria kantiana é uma teoria deontológica, ressaltam-se os deveres dos indivíduos para consigo e para com os demais, fazendo uma ponte entre o que estaria na doutrina do direito e o que estaria na doutrina da virtude. A dignidade implicaria tanto alguns deveres para consigo quanto alguns deveres para com os outros, especialmente o respeito pela humanidade na própria pessoa e na alheia. Nessa trilha, a dignidade limita absolutamente o comportamento. Livre é a ação ou omissão que segue o procedimento do Imperativo Categórico e atende ao fim objetivo da humanidade, não constituindo a liberdade apenas o fazer ou deixar de fazer o que se quer. É no fim objetivo humanidade que se compreende a dignidade como um limite ao indivíduo, como o que aqui se denomina dignidade como heteronomia. Plausível é, pois, empregar argumentos kantianos para sustentar algumas formas de dignidade como heteronomia. 2.4.5.2 Críticas à dignidade como heteronomia A dignidade como heteronomia apresenta-se como uma compreensão bastante atraente. Por um prisma, foge do individualismo e de uma liberalização excessiva e eventualmente egoística, demonstrando preocupação com sujeitos inseridos em uma comunidade ou sociedade política que preza por alguns valores compartilhados, permitindo o aprimoramento dos laços de união política. Há um destino comum, compartilhado; não é apenas um somatório de destinos individuais, guiado pela livre escolha. Por outro lado, o conceito é mais aberto a variações socioculturais, uma vez que a universalidade não é um componente seu, mas não precisa ser descartada. Desta sorte, sociedades e comunidades distintas podem expressar seus próprios códigos jurídico-morais e preservar suas características, abrindo as portas ao multiculturalismo, cuja força pode ser variável e até mesmo conciliável com valores universais. Entretanto, assim como a dignidade como autonomia, a dignidade como heteronomia também possui inconsistências teóricas e práticas, sendo, portanto, alvo de críticas. Como críticas principais, citam-se: (a) o emprego da expressão como um rótulo justificador de políticas paternalistas, jurídico-moralistas e perfeccionistas; (b) o enfraquecimento dos direitos fundamentais mediante o discurso da dignidade, especialmente em sociedades democrático-pluralistas; (c) a perda da força jurídicopolítica da locução dignidade humana; (d) problemas jurídicos quanto à aceitação de 185 deveres para consigo, em si mesmos e na sua extensão; (e) problemas práticos e institucionais na definição dos valores compartilhados por uma comunidade ou sociedade política. Quanto ao paternalismo, o moralismo jurídico e o perfeccionismo, já foram examinados argumentos e contra-argumentos. Se a locução dignidade humana for utilizada para substituir esses institutos (nominalismo), entra em cena a necessidade de demonstrar que se trata de uma situação de paternalismo, moralismo ou perfeccionismo justificados. Assim, não há maiores problemas. A indagação que remanesce é o emprego da dignidade humana para rotular o que Gerald Dworkin denominou moralismo jurídico paternalista. Outra crítica à dignidade humana como heteronomia é o potencial enfraquecimento dos direitos fundamentais que ela pode acarretar. A invocação da dignidade humana para traduzir conceitos indeterminados como a ordem e a moralidade públicas, o interesse público, os valores compartilhados de uma comunidade, dentre outros, em geral funciona para limitar direitos fundamentais de longa data reconhecidos, principalmente os de liberdade, privacidade e inviolabilidade corporal, sem que a limitação seja argumentada de forma clara e precisa. Em sociedades pluralistas, esse recurso pode significar um risco, pois lança à frente do indivíduo e de alguns grupos concepções morais abrangentes que nem sempre são compartilhadas, minando direitos individuais e de grupos, muitas vezes nos casos mais delicados e difíceis. Embora exista, nas sociedades ocidentais, um consenso sobre alguns temas paradigmáticos – e.g., a escravidão e a tortura –, são inúmeros os assuntos que parecem irreconciliáveis, tais quais o aborto, a eutanásia, alguns aspectos da sexualidade e da vida íntima, muitas crenças, sentimentos e cultos religiosos. A crítica ora em comento faz-se acompanhar de dois elementos. O primeiro diz respeito ao modo como são estabelecidos e identificados os valores compartilhados que poderão ser impostos, mesmo que com cerceamento de liberdades, em uma sociedade política. Poder-se-ia dizer que se trata de um consenso societário, mas, quanto a questões morais complexas, em sociedades que prezam o pluralismo, é efetivamente árduo conceituar e determinar quais são os valores efetivamente compartilhados. O segundo diz respeito a um utilitarismo de direitos. Na medida em que alguns valores societários podem concorrer com direitos fundamentais e legitimar suas limitações, abre-se a possibilidade a que certas metas coletivas, que não 186 são, tecnicamente falando, direitos, sobreponham-se aos direitos fundamentais, quebrando a barreira corta-fogo que eles deveriam representar378. Uma das soluções apontadas à crítica em exame é a concepção dialógica da dignidade, que pode, inclusive, se apresentar como uma alternativa entre a dignidade como autonomia e a dignidade como heteronomia. Segundo a concepção dialógica da dignidade, o conteúdo da dignidade humana seria conferido a partir do diálogo entre atores morais. A ideia do diálogo possui como pano de fundo a autonomia, ou seja, os partícipes do plano discursivo exercitam sua autonomia e, mediante um procedimento que a proteja em diversos aspectos, angariam resultados substantivos que, ao longo do procedimento discursivo, podem ser até mesmo universalizáveis. Vista desse ângulo, a concepção dialógica da dignidade mostrar-se-ia aceitável para aqueles que se filiam à dignidade como autonomia, pois é de forma autônoma que os atores do discurso chegam a resultados substantivos. Porém, apesar da proteção da autonomia no procedimento discursivo, os resultados substantivos obtidos podem ser identificados à heteronomia, pois se tornam obrigatórios. A proposta é bastante interessante e, acreditase, não deve ser descartada de plano, muito embora existam críticas de cunho prático. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword assumem que, em patamar teórico, a proposta parece conciliar a dignidade como autonomia e a dignidade como heteronomia. Lembram, porém, com rigor, que as situações ideais de diálogo e as exigências teóricas formuladas para o plano discursivo são muito difíceis de serem postas em prática nas sociedades atuais nos moldes previstos379. A existência de óbices e pressões demasiadamente fortes não pode ser negligenciada quando a teoria é posta em andamento no mundo real. Demais disso, é preciso definir quais são os fóruns dialógicos legítimos, se apenas o Legislativo, se o Judiciário e o Executivo e quais os limites de cada um. Outra crítica lançada à dignidade como heteronomia é a perda de duas das forças retóricas e políticas da expressão dignidade humana. Tanto o elemento ontológico da dignidade quanto a universalidade podem ser muito enfraquecidos. Nenhum deles é 378 A expressão barreira corta-fogos foi tomada de empréstimo do texto de Habermas, aplicada a contexto diverso. HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Sobre el derecho y el estado democrático de derecho em términos de teoria del discurso. Madrid: Trotta, 1998, p.327. Ver, no tema: RAO, Neomi. On the use and abuse of dignity in constitutional law. Columbia Law Journal of European Law, v.14, n.2, p.201-256, Spring 2008, (George Mason Law & Economics Research Paper nº08-34). 379 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.45. A proposta dialógica é identificada pelos autores como uma forma de dignidade como heteronomia. 187 necessário ao conceito; se estiverem presentes, serão meras contingências, assumidamente. Ora, uma das maiores forças políticas do discurso da dignidade – ainda que o termo seja acusado de amorfo – é fornecer a poderosa e pervasiva noção de que todos os seres humanos são dotados de igual e intrínseca dignidade, carregando em si mesma a noção de igualdade. Esse elemento pode ser corroído quando se assume a contingência da dignidade como heteronomia380. Além da força política, a dignidade como autonomia, ainda que frágil sob certos aspectos filosóficos de justificação, é dotada também de força jurídico-moral ao traçar a igualdade dos seres humanos. Por fim, a dignidade como heteronomia conduz ao problema dos deveres para consigo. Ainda que do ponto de vista estritamente moral seja possível argumentar a favor dos deveres para consigo, no plano dos direitos jurídicos apresenta-se um problema lógico, pois os deveres se estabelecem no âmbito das relações intersubjetivas. Há contradição lógica em sustentar que um indivíduo é titular de um dever jurídico para consigo, pois a execução de tal dever caberia exclusivamente ao próprio sujeito. A ideia apenas ganha concretude ao se entender que pode haver deveres sem direitos correspondentes, ou se for assumido que o dever não é para consigo, mas para com uma sociedade política que substitui o titular de um direito (não seria uma ação ordenada, mas efetivamente um dever, relativo a um direito da comunidade). O modo como a dignidade como heteronomia se apresenta é justamente o segundo, ou seja, há uma unidade de agência coletiva que tem interesses e também direitos. Nesse rumo, recai-se em um modelo comunitário: uma unidade de agência coletiva que pode requerer do indivíduo que dela participa certos padrões de comportamento, como se titularizasse um direito381. Expostas as críticas à dignidade como heteronomia, passa-se à tomada de posição no tema. 2.4.6 Dignidade humana e disposição de direitos fundamentais: assumindo uma posição Quando se tem em conta as duas versões da dignidade apresentadas, especialmente sobre os seus efeitos na prática jurídica, percebe-se que há uma tensão entre elas; são conceitos que facilmente se tornam competidores. A dignidade como 380 A expressão amorfa para designar a locução dignidade humana foi empregada por PRITCHARD, Michael S. Human dignity and justice. Ethics, v. 82, n,4, jul. p.299, 1972. 381 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.64 e ss. 188 autonomia traduz as demandas pela manutenção e pela ampliação da liberdade humana – desde que respeitados os direitos de terceiros e presentes as circunstâncias e as condições da liberdade. A dignidade como heteronomia, por sua vez, preocupa-se com o bem do próprio indivíduo ou com a promoção de certos valores societários. Quando se dá prevalência à primeira, a liberdade, o consentimento, as escolhas de vida e a pluralidade recebem amplo espaço. Quando se dá prevalência à segunda, o paternalismo e seus institutos afins e os valores compartilhados por uma sociedade mostram-se hábeis a limitar a liberdade e as escolhas individuais ou de grupos, mesmo que elas não interfiram com direitos propriamente ditos de terceiros382. No contexto da disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais, a primeira tendência é associar a dignidade como autonomia à possibilidade de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais. É evidente que, diante dos elementos do conceito, haverá pré-condições e critérios para o ato de disposição, como a inexistência de exploração em razão da falta de condições materiais mínimas para o exercício da liberdade, a efetiva capacidade do titular para o ato (maturidade, ausência de defeitos no consentimento, etc.) e a proteção de direitos de terceiros. Já a dignidade como heteronomia mostra-se mais amoldável justamente à proibição da disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais, seja por razões paternalistas, jurídico-moralistas, perfeccionistas, seja pela proteção de valores compartilhados, da ordem, do interesse e da moralidade públicos383. Em assim sendo, além das hipóteses de impedimento da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais aceitas à luz da dignidade como autonomia, poderiam ser acrescidos os objetivos e os conceitos considerados compatíveis à dignidade como heteronomia. 382 Nas palavras de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword: “[…] we will find that the tension between the two conceptions of human dignity mirrors a familiar tension between the claims of autonomy (human dignity as empowerment) and the claims of other social values (human dignity as constraint). Where the tension is most acute, individual choice is either given free rein (the preferences of others notwithstanding), or is restricted (paternalistically, in the interest of the individual, or defensively for the sake of collective values). So far as bioethics is concerned, these tensions translate in a striking fashion. Where human dignity as empowerment holds court, and autonomy is prioritized, bioethics is organized largely around the notion of informed consent. On the other hand, where human dignity as constraint rules, and either paternalism or social defence prevails, consent (now matter how free or informed) is no longer decisive”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity…, p.11. 383 Porém, consoante dito anteriormente, existe possibilidade teórica de a dignidade como heteronomia representar uma doutrina liberal abrangente, caso em que sua relação com a disposição seria diversa. Esse viés não será trabalhado aqui, pois o emprego da dignidade como heteronomia no contexto jurídico não está assumindo essa roupagem atualmente. 189 Para que se possa manifestar a posição que será assumida nesta tese a respeito da tensão entre as duas versões da dignidade humana e a disposição de posições jurídicosubjetivas de direitos fundamentais, é necessário, primeiro, verificar como a doutrina e a jurisprudência brasileiras estão tratando o assunto. A seguir, serão tecidos argumentos no marco teórico da tese – o liberalismo igualitário – e indicados os passos que serão seguidos no próximo Capítulo. Conforme já examinado, são poucos os estudiosos brasileiros que se filiam nitidamente a uma ou a outra versão da dignidade humana. No mais das vezes, encontram-se elementos de um conceito combinados aos de outro. Tomar-se-á como norte dois autores pátrios que possuem textos seminais em matéria de dignidade humana, a fim de demonstrar o caráter multifacetário que conferem a essa importante questão. Em seus trabalhos, Ingo Sarlet assumiu que a dignidade humana possui dimensões, bem expressas no conceito que elaborou: Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos384. O conceito sugerido por Ingo Sarlet possui elementos da dignidade como autonomia, como a manifestação da sua inerência a todo ser humano, o asseguramento de condições de existência saudável e a liberdade quanto à determinação do seu destino. Mas é evidente que a conceituação do jurista encampa elementos que estão distantes da dignidade como autonomia, pois a autonomia que ele apresenta não parece residir somente em um sujeito que se autodetermina e constrói seu destino liberto da imposição de obstáculos valorativos externos, heterônomos. Ao contrário, Ingo Sarlet, embora reconheça a liberdade/autonomia na dignidade, oferece significativo peso a valores societários e comunitários, que podem, até mesmo, funcionar para moldar a liberdade/autonomia, em nome da dignidade, de modo heterônomo. É fato que Ingo 384 SARLET, Dignidade da pessoa..., p.63 [itálicos do original]. 190 Sarlet não deixou de notar a tensão que pode se estabelecer entre o que ele denomina as dimensões da dignidade. Já para Maria Celina Bodin de Moraes, além de ser um atributo ontológico do ser humano, a dignidade humana possui componentes, a saber, a liberdade, a integridade psicofísica, a solidariedade e a igualdade. Associando o pensamento da autora aos conceitos de dignidade como autonomia e de dignidade como heteronomia, tem-se que, afora a liberdade, os três outros componentes podem mostrar-se mais ou menos próximos de cada uma das vertentes, a depender da leitura que lhes seja dada. E ela percebe com nitidez que é plenamente possível que os componentes da dignidade concorram entre si. Apesar de não mencionar diretamente a tensão, a autora deixa entrever o problema ao indagar sobre o consentimento dos sujeitos em pesquisas envolvendo seres humanos385. Vê-se, portanto, que ambos os autores – Ingo Sarlet e Maria Celina Bodin de Moraes – admitem que o conceito de dignidade humana é composto de dimensões ou de componentes, o que lhe confere um caráter não unívoco. Partindo deste ponto, a questão está em como equacionar, em face de casos difíceis, tais dimensões e componentes. Maria Celina acredita que a correta ponderação entre os componentes conduz à dignidade, sem referir, no entanto, o procedimento de tal ponderação. Ingo Sarlet, por seu turno, parece adotar uma postura mais casuísta (no sentido de pesarem os elementos de cada caso, havendo linha de princípio entre eles), sempre atento à prática jurídica nacional e comparada. A par das soluções dos autores, propor-se-á um modelo de exame para a tensão entre a dignidade como autonomia e como heteronomia, sempre no marco teórico adotado na tese. De pronto, é necessário enunciar que se entende que não se pode, em face do marco teórico adotado e do sistema jurídico brasileiro, optar, de forma excludente, por um ou outro viés de compreensão da dignidade humana. É nítido que, diante do marco teórico do liberalismo igualitário, a dignidade como autonomia mostra-se muito mais adaptável. Pode-se até afirmar que as premissas do liberalismo igualitário são, em grande medida, as que subjazem ao conceito de dignidade como autonomia. Porém, há 385 MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.105-147. 191 três pontos que precisam ser destacados. Primeiro, o marco teórico adotado não se confunde com o libertarianismo, nem com uma doutrina moral abrangente liberal, de sorte que não é, em si mesmo e aprioristicamente, refratário à possibilidade de restrição da liberdade em virtude de certos padrões morais compartilhados. Isto é, a preferência e o ponto de partida estão com a liberdade tal como é compreendida na dignidade como autonomia, mas, excepcionalmente, certos traços da dignidade como heteronomia podem se fazer presentes e obter espaço. Então, no marco liberal igualitário, há precedência para a dignidade como autonomia, sem exclusão total da dignidade como heteronomia386. Segundo, nesta tese, por razões já elencadas, optou-se por argumentar à luz de um direito geral de liberdade e não dos direitos de liberdade (ou liberdades básicas). Ao adotar o direito geral de liberdade, diminui-se, prima facie, a margem de atuação da dignidade como heteronomia. Todavia, a diminuição é apenas prima facie, pois, argumentativamente, os valores que ela representa podem sobrepor-se ao direito geral de liberdade, ou seja, o ônus argumentativo fica com quem pretende implementar a dignidade como heteronomia. Terceiro, não soa adequado optar teoricamente por um dos conceitos de dignidade humana e buscar encaixá-lo ao ordenamento jurídico brasileiro e às decisões judiciais aqui proferidas. Certo é que a clareza nos conceitos permite uma percepção mais acurada e crítica tanto dos enunciados normativos vigentes quanto dos julgados, mas os conceitos não estão postos em um vácuo ou em um espaço unicamente teórico. Pelo contrário, os conceitos precisam ser interpretativamente ligados ao ordenamento jurídico e às decisões judiciais. Portanto, a proposta é a de retomar os diferentes conceitos de dignidade humana e reconstruí-los sob a sua melhor luz, isto é, buscar o fio de integridade, a teia inconsútil, dos enunciados normativos e das decisões judiciais, 386 No marco do liberalismo igualitário, pode-se exemplificar com Ronald Dworkin, pois, ao discutir o tema do aborto, o autor reconhece a existência da tradição de proteção da liberdade individual, mas visualiza, simultaneamente, a tradição de proteção de um espaço moral público, responsável pela preservação de certos valores (in casu, o valor intrínseco da vida humana). Embora o jusfilósofo não trabalhe com os conceitos ora em exame, é possível conciliar seu pensamento à tensão que entre eles se apresenta: “Assim, se nos termos da melhor compreensão dos dispositivos abstratos da Constituição os estados norte-americanos carecem de poder de proibir o aborto, isso provavelmente se deve a algo de específico sobre o aborto ou a reprodução e não ao fato de que os estados não possam legislar para proteger os valores intrínsecos. […] Assim descrita, a questão fica na convergência de duas tradições às vezes antagônicas, ambas fazendo parte da herança política norte-americana. A primeira é a tradição da liberdade pessoal. A segunda atribui ao governo a responsabilidade de proteger o espaço moral público em que vivem todos os cidadãos. Boa parte do direito constitucional consiste em conciliar essas duas ideias. Qual é o equilíbrio apropriado no caso do aborto?”. DWORKIN, Ronald, Domínio..., p.209. 192 para trazer à tona tradição jurídica que se forma no Brasil sobre a dignidade humana e também a sua leitura crítica387. A reconstrução assim feita possibilitará verificar a existência de pontos que, entrelaçados, formem um mínimo consenso sobreposto acerca do conceito de dignidade humana, hábil a auxiliar na solução de problemas práticos. Então, ao invés de partir de um conceito teoricamente acabado de dignidade, a metodologia será inversa: tomar-se-ão os conceitos competidores da dignidade, sem exclusão inicial de qualquer deles da prática jurídica brasileira, e tratá-los à luz das possibilidades interpretativas reconstrutivamente388. Inicia-se pela Constituição vigente, lembrando que ela é um documento de ruptura com o modelo ditatorial, que marca um novo começo rumo à reconstrução democrática do direito no Brasil e se torna um baluarte da (re)descoberta das liberdades pessoais389. Qual é o caráter do texto constitucional? Qual é o sujeito por detrás da Constituição? Qual é o conceito de dignidade, dentre os dantes expostos, que a ela se coaduna? Embora exista quem a considere um documento de índole comunitarista, essas vozes soam insulares. Não sem razão. A Constituição brasileira traz em seu bojo um 387 Fica exposto aqui o método dworkiniano da integridade. Quando explica o que é o direito, Dworkin demonstra que o direito é interpretativo. Em assim sendo, para compreender e atuar em um sistema jurídico é necessário adotar a atitude interpretativa. Segundo o autor, há quatro virtudes políticas: (a) a integridade; (b) a imparcialidade; (c) o devido processo e (d) a justiça. A integridade é o elemento primordial, que nunca se pode perder de vista. Significa a leitura do sistema jurídico de uma forma coerente, ou seja, incumbe ao intérprete reconstruir interpretativamente o sistema buscando o fio de coerência, o fio de integridade, que se apresenta como uma teia, da qual podem ser extraídos os princípios e as notas basilares do sistema. A integridade leva em consideração a coerência do sistema como um todo, desde sua Constituição, leis, decisões judiciais até atos administrativos. Envolve um método complexo que não apenas reproduz a tradição, mas, a partir dela, permite a proposição. Em síntese, o método da integridade compõe-se de dois elementos, avaliação da adequação às práticas jurídicas de uma comunidade e da sua justificação. Na primeira, lida-se com o ajustamento de uma interpretação e dos princípios jurídicos a ela subjacentes às práticas jurídicas e sociais de uma comunidade de princípios. Na segunda, põe-se em questão se tal interpretação honra as práticas, quando vistas sob sua melhor luz, isto é, sob uma coerência de princípios, que leva em conta decisões passadas e imprime importância aos princípios adotados, assumindo-os como relevantes para desafios futuros que se apresentem ao sistema. DWORKIN, Ronald, O império..., passim. ARANGO, Op. cit., passim. OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de, Moralidade..., p.231 e ss. 388 Martha Nussbaum, por exemplo, emprega as ideias de “consenso justaposto” e de “equilíbrio reflexivo” de John Rawls como métodos para traçar o seu conceito de dignidade humana e de angariar conclusões sobre as políticas públicas (sem prejuízo da adoção de conceitos estoicos e aristotélicos). NUSSBAUM, Martha. Human Dignity and political entitlements. In: Human dignity and bioethics: essays commissioned by the president’s council on bioethics. Washington: Mar. 2008. Disponível em: http://www.bioethics.gov/reports/human_dignity/chapter14.html, p.358 e 360. Christopher McCrudden, ao avaliar, comparativamente, diversos sistemas judiciais e suas compreensões da dignidade humana, utiliza-se da noção de consenso justaposto quando procura um núcleo mínimo comum sobre a dignidade humana. McCRUDDEN, Op. cit., p.675. 389 A expressão novo começo (new beginning) é de Bruce Ackerman e designa a Constituição que emerge “as a symbolic marker of a great transition in the political life of a nation”. Já a ideia de reconstrução democrática do direito remete ao título da obra organizada por Luís Roberto Barroso. ACKERMAN, Bruce. The rise of world constitucionalism. Yale Law School occasional papers. Second series, n.3, 1997. BARROSO, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. 193 extenso rol de direitos individuais, no qual figuram diversas liberdades pessoais e garantias procedimentais, além de sedimentar direitos sociais, demonstrando sua preocupação com a justiça distributiva e social, não recaindo, portanto, nem no libertarianismo, nem no organicismo, tampouco no liberalismo390. Mas seria um texto comunitarista? Se for, amplo será o espectro de atuação da dignidade como heteronomia, seja pela aceitação do paternalismo e seus institutos afins, seja pela promoção de interesses e valores coletivos que transpõem o indivíduo. Nos enunciados constitucionais, é tão extensa a lista de liberdades pessoais, que parece difícil manter viva a noção de que se trata de um documento de linha comunitarista. Mas existem, é fato, algumas aberturas. O texto enuncia, com limpidez, que constitui objetivo da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos”. A expressão ofereceria factibilidade a uma leitura de índole mais comunitária. Porém, a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços. Na mesma frase, o objetivo de promover o bem está atrelado à não-discriminação, obnubilando muito a leitura de que um ideal compartilhado de bem pode ser sobreposto às escolhas individuais e aos modos de vida das minorias. A dignidade como heteronomia move-se também ao sabor de conceitos indeterminados como a moral pública, os bons costumes, o interesse público e a ordem pública. Na Constituição, não há referência nem à moral pública, nem aos bons costumes, embora haja algumas invocações do estilo na legislação infraconstitucional e na jurisprudência. Mas é inadequado, do ponto de vista interpretativo, ler a Constituição como se essas expressões nela figurassem. O fato é que lá não conquistaram espaço, ao contrário do que ocorrera nos textos antecessores391. Já as locuções interesse público e ordem pública são mencionadas no texto para hipóteses bem contadas e de aplicação 390 A respeito, ver: SARMENTO, Daniel. Interesses públicos v. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional. In: SARMENTO, Daniel (Org.) Interesses públicos versus interesses privados: desconstruindo o princípio de supremacia do interesse público. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p.29-79. 391 Na Constituição de 1967, as locuções bons costumes e ordem pública foram utilizadas uma vez para autorizar expressamente a restrição da liberdade de culto (art.150, §5º). Na Constituição de 1946, há dispositivo análogo ao mencionado, e, duas vezes, a ordem pública é o autorizador expresso para restrição de direitos, a reunião pacífica e a permanência de estrangeiro no território nacional (art.141, §7º e § 11 respectivamente). A Constituição de 1937, por seu turno, foi mais pródiga na utilização dos termos moral pública, moralidade pública, bons costumes e ordem pública, para autorizar a restrição expressa de direitos, como: (a) liberdade de manifestação do pensamento (art.15, b); (b) a liberdade de culto (art.122, 4º); (c) o direito de manifestação dos parlamentares (art.43) e d) como justificadores da instituição, por lei, da censura prévia (art.15, a) e da condução dos rumos da educação (art.132). Do exposto, percebe-se que a Constituição de 1988 efetivamente consagrou o não-uso de tais conceitos indeterminados (ou similares) para autorizar expressamente a restrição de Direitos Fundamentais. 194 específica. Na tábua formal de direitos, em momento algum tais locuções são utilizadas como hipóteses de restrição de Direitos Fundamentais expressamente previstas392. A palavra moral, ao ser enunciada na Constituição, junge-se mais ao indivíduo do que apresenta elo com ideais coletivos ou comunitários393. As diferenças de configuração textual da Constituição, comparada às anteriores, demarcam a quebra com ideários de uma moralidade social integrada pela via do direito público, os quais, na história nacional, representaram válvulas para a arbitrariedade e a opressão das liberdades pessoais. Com isso não se quer dizer, e nem seria viável, que a Constituição tenha descambado para um individualismo egoísta, para um primado caótico de vontades individuais unidas apenas pelo acidente geográfico. O compromisso com a justiça social, a solidariedade, a fraternidade e o reconhecimento da importância de expressões coletivas do eu – a família, os partidos políticos, os sindicatos –, ao lado de consensos substantivos relevantes já amalgamados no texto394, permitem entrever a 392 A expressão ordem pública é utilizada nos artigos referentes à segurança pública e às Forças Armadas (arts.142 e 144) e também no sistema constitucional das crises (art. 34; 136). Imperioso notar que a ameaça à ordem pública, nas hipóteses do Estado de Defesa ou do Estado de Sítio, há de ser institucional. A locução interesse público é associada à colaboração entre agremiações religiosas e o poder público (art.19); aos motivos do veto de ato legislativo pelo Executivo (art.66, §1º); à convocação extraordinária do Congresso Nacional (art.57, § 6º, II); à contratação excepcional e temporária pela administração pública (art.37, IX); à autorização expressa de restrição de garantias de servidores públicos e agentes públicos inseridos em relações especiais de poder (arts. 93, VIII e IX; art.95, II; art.128, b). A hipótese de emprego do interesse público para restrição de direitos encontra-se expressa apenas no art.114, §3º, quanto à greve em atividades essenciais. BRASIL, Constituição ..., Op. cit. 393 Exemplificativamente, o dano moral e o uso da locução idoneidade moral para a ocupação de certos cargos públicos. Não há referência à moral em sentido coletivo, como houve nos Atos Institucionais nº1 e nº5, de 1964 e de 1968, respectivamente: “CONSIDERANDO que a Revolução Brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria”. BRASIL. Ato Institucional nº5, de 13 de dezembro de 1968. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm. [sem grifos no original]. Note-se que a dignidade humana foi mencionada em contexto muito próximo da manutenção das tradições do nosso povo, o que lhe confere uma larga tendência heterônoma. 394 A Constituição de 1988 possui diversos elementos substantivos deste naipe, como a proibição absoluta da escravidão, dos trabalhos forçados, das penas cruéis, de morte (ressalva feita à guerra), perpétuas, da tortura e da imposição de tratamento desumano ou degradante, bem como a proibição da comercialização de órgãos e tecidos do corpo humano e a proibição do racismo. Cf. BRASIL, Constituição..., art. 5º, III e XLVII. 195 formação de uma comunidade política de princípios, cuja unidade de agência segue sendo o indivíduo, porquanto mantenha laços morais em comunidade395. Daniel Sarmento bem situou a Constituição brasileira em algum ponto entre o liberalismo igualitário e o comunitarismo. O constitucionalista oferta generosos argumentos contra ser o perfeccionismo moral abalizado pelo sistema constitucional brasileiro, ao mesmo tempo em que mantém firmemente que o sistema abraça a justiça social e a solidariedade396. Em sulco análogo, não foi à toa que Luís Roberto Barroso afirmou que, em face da Constituição vigente, a existência de desacordo moral razoável em casos jurídico-morais difíceis deve ser conduzida pela manutenção da liberdade pessoal e não pela determinação estatal de condutas, característico do perfeccionismo397. Todo o dito leva a crer que é o conceito de dignidade como autonomia o que melhor se acomoda ao texto constitucional, com poucas exceções, muitas já firmadas pelo próprio constituinte, e, no caso de serem construídos consensos mínimos ali não expressos, há permeabilidade à dignidade como heteronomia, desde que se mostre argumentativamente superior à dignidade como autonomia. E, nos dizeres de Daniel Sarmento, o delineamento da fina sintonia entre um e outro há de ficar com os fóruns públicos de tomada de decisão, em especial o Legislativo e o Judiciário398. Portanto, para reconstruir o conteúdo da dignidade humana, não basta apenas o texto constitucional e as opções do constituinte originário. É tarefa perscrutar o sistema como 395 As expressões acidente geográfico, comunidade de princípios e unidade de agência foram tomadas de empréstimo de Ronald Dworkin e assumem aqui conteúdo análogo ao que contam nas obras do jusfilósofo. DWORKIN, Ronald, O império..., passim. 396 Sobre o assunto, é relevante consultar na íntegra o artigo Interesses públicos v. interesses privados na perspectiva da teoria e da filosofia constitucional, no qual Sarmento define a Constituição como personalista, “[…] que continua vendo na pessoa humana e não no Estado a ‘medida de todas as coisas’ […]”. SARMENTO, Interesses públicos..., p.72-79. Acredita-se que a expressão perfeccionismo moral usada por Sarmento assume a conotação do aqui se denominou paternalismo jurídico, perfeccionismo e moralismo jurídico. 397 Escreveu Luís Roberto Barroso sobre as uniões homoafetivas no Brasil: “Ocorre, porém, que o nãoreconhecimento das uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo não promove nenhum bem jurídico que mereça proteção em um ambiente republicano. Ao contrário, atende apenas a uma determinada concepção moral, que pode até contar com muitos adeptos, mas que não se impõe como juridicamente vinculante em uma sociedade democrática e pluralista, regida por uma Constituição que condena toda e qualquer forma de preconceito. Esta seria uma forma de perfeccionismo ou autoritarismo moral, próprio dos regimes totalitários, que não se limitam a organizar e promover a convivência pacífica, tendo a pretensão de moldar indivíduos adequados. Em suma, o que se perde em liberdade não reverte em favor de qualquer outro princípio constitucionalmente protegido”. BARROSO, Luís Roberto. Diferentes, mas iguais: o reconhecimento das relações homoafetivas no Brasil. RDE. Rio de Janeiro: Renovar, v.5, 2007. Para ter claro o pensamento do autor sobre o tema, conferir também: BARROSO, Luís Roberto. A defesa da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias. Observatório da Jurisdição Constitucional, Brasília: ano 1, maio 2008. Disponível em: http://www.idp.org.br/index.php?op= stub&id=9&sc_1=60. 398 Cf. SARMENTO, Interesses públicos..., p.73-79 O posicionamento mostra-se conforme, também, ao conceito dialógico da dignidade. 196 um todo, tanto os enunciados infraconstitucionais vigentes e válidos, quanto as decisões judiciais, máxime as do Supremo Tribunal Federal. No STF, contam-se decisões diversas evocando a dignidade humana. No mais das vezes, ela não é o único ou o principal móbil decisório, uma vez que associada a direitos fundamentais específicos, como a liberdade de locomoção, de expressão, as garantias constitucionais do processo – mormente o penal –, a integridade física e moral dos indivíduos, a proteção e a promoção da saúde, e assim sucessivamente. Há julgados paradigmáticos, dentre os quais muitos se aproximam do conceito de dignidade como autonomia e poucos da dignidade como heteronomia, dando a conhecer uma propensão ao primeiro399. Da análise dos votos, há como entrever sobreposições quanto ao conceito de dignidade, que podem ser assim sumariadas: (a) correlação da fórmula do homem objeto, ou da não-instrumentalização dos seres humanos, à liberdade humana e às garantias constitucionais da liberdade400; (b) manutenção da integridade física e moral 399 Quanto à dignidade como autonomia, especialmente: (a) a discussão sobre a recepção de artigos da Lei de Imprensa na ordem constitucional pós-88. Nos votos, demarcado está o cunho pluralista e protetor das liberdades. A correlação direta com a dignidade está no voto do Min. Relator e, indiretamente, perpassa todo o decisum; (b) a discussão da constitucionalidade da proibição de progressão de regime nos crimes hediondos. Note-se, todavia, que há insinuação de um elemento da dignidade como heteronomia em alguns votos desse acórdão, dado o modo de compreender a ressocialização dos condenados criminalmente. Porém, impera a vertente autonomista, como atesta longo trecho da lavra do Min. Cezar Peluso sobre a assimetria entre o direito e a moralidade, o crime e o pecado. A laicidade e a pluralidade são consideradas limites ao jus puniendi, o que está de todo associado à dignidade como autonomia; (c) o elo entre dignidade e as condições mínimas de vida. Quanto à dignidade como heteronomia, o caso paradigmático é, sem dúvida, o chamado caso Ellwanger, acerca dos discursos do ódio. Entretanto, é bom trazer à tona que a CF/88 contém dispositivo específico sobre o crime de racismo (art. 5º, XLII). BRASIL. STF. ADPF nº130-7/DF – MC. Rel. Min. Carlos Britto. 07/11/2008. Disponível em: www.stf.jus.br. BRASIL. STF. HC nº82.959-7/SP. Rel. Min. Marco Aurélio. 01/09/2006. Disponível em: www.stf.jus.br. BRASIL, STF. HC nº82.424/RS, Op.cit. 400 A fórmula do homem-objeto, oriunda do direito germânico, tem por base os trabalhos de Dürig, que, por sua vez, partiu de premissas kantianas. Como exemplo, vários julgados tornaram cediço que o indivíduo não pode, a pretexto de manutenção da ordem e da segurança públicas: (a) ter sua liberdade cerceada no curso do processo penal por tempo indeterminado ou maior do que os prazos permitidos, se não deu causa à mora processual, ou se, ressalvados outros fatos muito relevantes, exauriu-se a justificativa para mantê-lo preso; (b) ser conduzido ou mantido preso no curso do processo apenas em razão da gravidade ou da repercussão do crime, ainda que hediondo, tampouco por fundamentos decisórios genéricos; (c) ter o seu silêncio, na persecução penal, interpretado em seu desfavor; (d) não ser devidamente citado em processo penal. Na linha de casos, a motivação é a de que o indivíduo não pode ser mais uma engrenagem do processo penal, ou seja, não pode ser instrumentalizado para o efetivo funcionamento da máquina persecutória estatal, impondo-se sua dignidade a proteger as liberdades e as garantias constitucionais da liberdade. Ademais, por insistência do Min. Gilmar Mendes, a prisão instrumental à extradição está sendo revisitada, pois, como entende o Ministro, o extraditando torna-se um instrumento ante objetivos estatais. A ideia kantiana de fim-em-si foi utilizada em acórdão que discutiu a competência para o julgamento de crimes de redução de pessoas à condição análoga à de escravo. Embora o conteúdo da dignidade seja passível de leitura como heteronomia, pois a escravidão é considerada um mal em si, o seu conteúdo é fortemente relacionado à preservação da liberdade humana e de suas pré-condições. Cf. BRASIL. STF. HC nº92.604-5/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 197 dos indivíduos401; (c) proibição da tortura, da imposição de tratamento desumano ou degradante e da crueldade402. Portanto, o texto constitucional tende à dignidade como autonomia. Na esteira decisória do Supremo Tribunal Federal, não obstante o uso meramente ornamental da expressão dignidade humana em alguns acórdãos, bem como a adoção da dignidade como heteronomia em um ou outro julgado, houve como identificar um sutil consenso justaposto403. Ele reside justamente na compreensão de ser a dignidade humana o baluarte protetor da inviolabilidade do indivíduo – especialmente no que tange aos seus direitos existenciais, dentre eles, a liberdade em variadas manifestações –, e à manutenção da altivez e da autoestima pessoais mediante proteção da integridade psicofísica e mediante repúdio à imposição de crueldade ou de tratamento desumano ou degradante404. 25/04/2008; BRASIL. STF. HC nº88.548-9/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 26/09/2008; BRASIL. STF. HC nº91.657-1/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes; DJ de 28/03/2008. BRASIL. STF. HC nº91.4144/BA. Rel. Min. Gilmar Mendes; DJ de 25/04/2008. BRASIL. STF. HC nº91.121-8/MS. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 28/03/2008; BRASIL. STF. HC nº91.524-8/BA. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 25/04/2008; BRASIL. STF. HC nº91.662/PR. Rel. Min. Celso de Melo. DJ de 04/04/2008 (neste acórdão, o ponto principal da motivação é o due processo f law); BRASIL. STF. HC nº92.842/MT. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ de 25/04/2008; BRASIL. STF. RE 398.041-6/PA. Rel. Min. Joaquim Barbosa. DJ de 19/12/2008. 401 O leading case quanto à integridade física parece ser o que versou sobre a possibilidade de realização compulsória de exame de DNA para fins de comprovação de paternidade. Mesmo que deveras relevante o interesse do outro polo da relação processual, o STF considerou que a realização forçada de exames invade a privacidade, a intimidade e a integridade física individuais, protegidas pela dignidade. Mais recente foi a discussão sobre o uso de algemas, que culminou, inclusive, na edição da Súmula Vinculante nº11. O uso acriterioso de algemas e a divulgação abusiva de imagens de indivíduos nessa condição foram considerados tratamentos humilhantes e desonrosos. BRASIL. STF. HC nº71.373-4/RS. 22/11/1996. Disponível em: www.stf.jus.br; BRASIL. STF. HC nº89.429-1/RO. 02/02/2007. Disponível em: www.stf.jus.br. 402 É importante referir os acórdãos e a Súmula sobre o uso de algemas, bem como a decisão acerca do crime de tortura perpetrado contra crianças e adolescentes. BRASIL. STF. HC nº70.389-5/SP. 10/08/2001. Disponível em: www.stf.jus.br. Na doutrina estrangeira, é interessantíssima a produção de Waldron sobre o tema: WALDRON, Jeremy. Inhuman and degrading treatment: a non-realist view. NYU Public Law Colloquium, April, 23 (second draft). 403 Consenso sobreposto é uma expressão cunhada por John Rawls. Ao elaborar sua célebre teoria da justiça, tomou ele como pressuposto o fato do pluralismo, assumindo que é um traço permanente da cultura política de uma democracia a convivência de diversas crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais. Para que seja possível a construção de uma sociedade política, faz-se necessária a adesão razoável de todos a princípios básicos de justiça. A partir dessa adesão primeira, formam-se, mediante emprego do procedimento da razão pública, outros pontos de consenso político, justamente aqueles que podem ser razoavelmente aceitos por indivíduos ou grupos que não compartilham as mesmas crenças. Tais pontos são o chamado consenso justaposto. RAWLS. Justiça como..., Op. cit.,p.44-53. 404 Coaduna-se esse consenso com o identificado por McCrudden no direito comparado e internacional, muito embora o autor advirta sobre o caráter fluído de um núcleo comum do conceito de dignidade: McCRUDDEN, Op. cit., p.679. No mesmo ensejo, decisões das Cortes Constitucionais alemã e canadense exibem consenso mínimo muito semelhante ao do STF nos pontos ressaltados. Cf. ULLRICH, Op. cit. 198 Aduza-se a isso a longa linha de precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre o dano moral, que considera a dor, o sofrimento e a humilhação elementos caracterizadores da referida modalidade de dano, cuja ocorrência avilta também a dignidade humana405. É certo que aí não fica estipulado se se trata de dignidade como autonomia ou de dignidade como heteronomia, o que permite dizer que a imposição de dor, sofrimento e humilhação afronta a dignidade, seja o conceito entendido quer como autonomia quer como heteronomia. No entrelaçamento da bioética com o direito, a versão autonomista da dignidade prevalece nitidamente. O modelo adotado em diversas leis e regulações é centrado no consentimento do paciente, de seus responsáveis, dos sujeitos de pesquisa ou de outros envolvidos406. Até mesmo no campo da morte com intervenção encontram-se enunciados normativos fundados no consentimento para as hipóteses de ortotanásia, cuidado paliativo, internação domiciliar e escolha do local da morte, como será estudado no Capítulo 4. Observado o sistema jurídico brasileiro à luz do fio da integridade, pode-se afirmar que existe uma tendência à dignidade como autonomia, permeada por elementos 405 É longa a linha de precedentes. Como ilustração, destacam-se: BRASIL. STJ. REsp.910.794/RJ. Rel. Min. Denise Arruda. 04/12/2008. Disponível em: http://www.stj.gov.br; BRASIL. STJ. REsp.802.435/PE. Rel. Min. Luiz Fux. 30/10/2006. http://www.stj.gov.br/. Do último, vale destacar um trecho: “10. Deveras, a dignidade humana retrata-se, na visão Kantiana, na autodeterminação; na vontade livre daqueles que usufruem de uma vivência sadia. É de se indagar, qual a aptidão de um cidadão para o exercício de sua dignidade se tanto quanto experimentou foi uma 'morte em vida', que se caracterizou pela supressão ilegítima de sua liberdade, de sua integridade moral e física e de sua inteireza humana?”. 406 A confirmar a assertiva: (a) a legislação vigente sobre transplantes de órgãos inter vivos e post mortem, fulcrada no consentimento. Tanta é a relevância do consentimento que o sistema de doação presumida inicialmente instituído foi alvo de intensa polêmica, o que gerou alteração no texto legal. A nova forma, que deixa ao encargo do consentimento dos familiares, também causa dissenso, havendo sustentações bastante razoáveis no sentido de que a decisão do provável doador, se formulada, deveria prevalecer sobre a da família; (b) a Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, cujo paradigma de proteção dos sujeitos de pesquisa está centrado no consentimento livre e esclarecido; (c) a regulamentação das técnicas de reprodução assistida adota por princípio o consentimento informado de pacientes e doadores; (d) a regulamentação da gestação por substituição (hipótese de reprodução assistida) determina que, uma vez seguidos certos padrões, há de prevalecer o consentimento da gestante por substituição e dos pais biológicos; (e) a regulamentação da cirurgia de transgenitalização é orientada pela manifestação do desejo expresso; (f) a necessidade de consentimento dos genitores para uso de células tronco embrionárias em pesquisa ou processo terapêutico, prevista pela Lei de Biossegurança e reafirmada pelo STF. Conferir: BRASIL. Lei nº11.105/2005. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11105.htm; BRASIL. Lei nº9.434/1997. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9434.htm; BRASIL. Lei nº10.211/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10211.htm; BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CNS. Resolução 196/1996. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/comissao/conep/resolucao.html; BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002. Op.cit., BRASIL. CFM. Resolução nº1.358/1992. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1992/1358_1992.htm . 199 dialógicos da dignidade e, de modo menos intenso, pela dignidade como heteronomia. A conclusão, porém, não oferece a resposta para a suficiência do consentimento para a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, pois será preciso perceber, em cada caso, peculiaridades acerca da dignidade como autonomia e se haverá espaço para a dignidade como heteronomia. Assim, embora exista tendência à dignidade como autonomia, havendo tendência à possibilidade de disposição, a própria dignidade como autonomia exige certos padrões e limites, pois é bom lembrar que a dignidade como autonomia não é sinônimo de liberdade desenfreada, nem de uma liberdade esvaziada. Ela apenas se mostra em sua inteireza quando estiverem presentes as circunstâncias e as condições da liberdade. A questão é nuclear para o assunto em pauta. É preciso que existam condições materiais para a tomada de decisão, e, como a disposição pode envolver decisões de marcantes impactos fáticos e jurídicos, as precauções com o consentimento são relevantes. Assegurar a genuinidade do consentimento é tarefa imperiosa para a manutenção da dignidade como autonomia. 200 3 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UM INVENTÁRIO DAS TESES DE APLICAÇÃO “- A última vez em que estive num centro civilizado – continuou o Prof. Calamar – assisti a uma partida de boxe. Havia uma multidão de milhares de pessoas a aplaudir os lutadores... Um deles sangrava pela boca e pelo nariz. O público gritava de gozo. O senhor compreende. Eram homens civilizados, a luta se realizava sob proteção da polícia, tinha sido anunciada e recomendada pelos mesmos jornais que discutem a cultura e noticiam os últimos descobrimentos no domínio da ciência...” 407 “EM BUSCA DA BELEZA Soam vãos, dolorido epicurista, Os versos teus, que a minha dor despreza; Já tive a alma sem descrença presa Desse teu sonho, que perturba a vista. Da Perfeição segui em vã conquista, Mas vi depressa, já sem a alma acesa, Que a própria ideia em nós dessa beleza Um infinito de nós mesmos dista. Nem à nossa alma definir podemos A Perfeição em cuja estrada a vida, Achando-a intérmina, a chorar perdemos. O mar tem fim, o céu talvez o tenha, Mas não a ânsia da Coisa indefinida Que o ser indefinida faz tamanha”408. 407 408 VERÍSSIMO, Erico. Viagem à aurora do mundo. 16. ed. São Paulo: Globo, 1996. PESSOA, Fernando. O cancioneiro. Ciberperfil Literatura Digital, p.60. 201 No Capítulo anterior, foram inventariadas as razões acerca da admissibilidade da disposição de posições subjetivas de direito fundamental; teses que lidam com o consentimento ou que refletem a sua suficiência. Seguindo os conceitos talhados no Capítulo 1, apresentaram-se as teses acerca (a) das concepções de direito subjetivo; (b) da extensão do direito de liberdade; (c) do paternalismo jurídico e seus institutos afins; (d) da dignidade humana. Cada uma foi relacionada à (in)disponibilidade das posições subjetivas de direitos fundamentais. Percebeu-se que as teses tratam das razões para que se permita ou proíba a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Por vezes, um mesmo argumento pode servir aos dois propósitos, a depender do conteúdo e do viés teórico atribuído. Por isso, foram examinadas as compatibilidades das propostas com o marco teórico adotado nesta tese, o que levou à exclusão de alguns argumentos, como a aceitação plena do paternalismo jurídico e seus institutos afins como justificadores da proibição da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Também foi excluída a concepção dos direitos subjetivos como vontade, por duas ordens de razões: (a) provável incompatibilidade com o sistema jurídico brasileiro; (b) necessidade de assumir amplamente o ônus argumentativo diante da premissa que ancora a tese, qual seja, a de que as posições jurídicas subjetivas do direito à vida são, em linha de princípio, indisponíveis. A última razão foi determinante para a opção por trabalhar com o direito geral de liberdade e não com liberdades básicas. É preciso enfrentar o ônus argumentativo. No que toca à dignidade humana, anotou-se sua plasticidade no discurso de justificação. A depender da compreensão, ela pode ser empregada tanto para proibir quanto para permitir a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. É a tensão entre a dignidade como autonomia e a dignidade como heteronomia. No impasse, embora, à primeira vista, a dignidade como autonomia aproxime-se mais do marco teórico da tese, a opção foi a de aliar o plano de justificação ao de aplicação para buscar uma saída adequada. Com esta partida, avaliou-se o papel da dignidade no sistema jurídico brasileiro à luz da integridade, chegando-se à conclusão de que existe certo predomínio da dignidade como autonomia, com espaços para a dignidade como heteronomia, desde que constitucionalmente assentada ou desde que seja suprido o ônus argumentativo para sua prevalência sobre a dignidade como autonomia. Concluiu-se, também, que a dignidade como virtude e a versão dialógica da dignidade não podem ser 202 descartadas de plano, merecendo espaço e atenção, especialmente no que diz respeito à dialogicidade. Uma vez relatadas as teses de justificação, torna-se necessário inventariar as teses de aplicação utilizadas na temática de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. A simples existência de teses de aplicação já demonstra que, para além do debate acerca da admissibilidade, discutem-se os padrões a serem adotados. Ou seja, existe um pressuposto: a possibilidade de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Evidentemente, há gradações oriundas da justificação que causam impacto nos padrões aplicativos, pois há um arco bastante amplo entre a completa admissão da disponibilidade e a admissão relativa, também variável em graus. Muitos doutrinadores apresentam padrões para o exame da possibilidade de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Alguns centram-se em um único critério, outros preferem uma conjugação. Jorge Reis Novais empreendeu um minucioso estudo do assunto e propôs um conjunto de pressupostos, requisitos e critérios. O caminho traçado pelo jurista português é fonte de inspiração dos que serão aqui adotados. Todavia, é de bom alvitre mencionar que não houve adesão integral às classificações e subdivisões realizadas por Novais, tampouco às suas conclusões. Foram, também, acrescidas reflexões apoiadas no ensinamento de outros autores, bem como na jurisprudência nacional. Na sequência, serão descritas e estudadas as seguintes propostas: (a) as modalidades de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais; (b) a genuinidade do consentimento; (c) os sujeitos da relação de disposição; (d) os postulados normativos aplicativos; (e) o núcleo mínimo dos direitos fundamentais. 3.1 As modalidades de disposição de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais Muitos esforços doutrinários e jurisprudenciais foram despendidos para fortalecer as modalidades de disposição de direitos fundamentais como o critério determinante para o seu exame. Isso implica distinguir tipos e modalidades de disposição. De modo geral, o critério é assim apresentando: quando a disposição for parcial, temporária e ao exercício do direito, será admissível. Ao contrário, quando for total, definitiva e à titularidade do direito, será inadmissível409. Como variação, há 409 Como exemplo, o Enunciado 4 da Jornada STJ, apresentado no Capítulo 1. 203 também a proposta de que a disposição seja admissível quando se tratar do objeto do direito e inadmissível quando se tratar do direito em si410. De início, é preciso compreender o critério e enlaçá-lo ao conceito de disposição anteriormente formulado. A tarefa é necessária porquanto o critério diz respeito ou a diferentes conceitos de disposição ou, no mais das vezes, a conceitos nebulosos de disposição. Partindo de um conceito dúbio, o critério será também dúbio. Esclarecer é preciso. No Capítulo 1, concluiu-se que dispor de um direito fundamental é enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado quer sejam particulares, permitindolhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. A disposição refere-se a posições subjetivas do direito fundamental, o que leva à exclusão de elementos da dimensão objetiva, tornando difícil a disposição do direito fundamental como um todo. Além disso, a disposição é intersubjetiva, podendo referir-se a um ou a vários sujeitos específicos ou à generalidade dos sujeitos passivos da relação original. A disposição pode assumir variadas formas e modalidades. Pode dar-se a título gratuito ou oneroso. Pode referir-se a direitos pessoais ou reais. Quanto à forma, poderá ser cessão, transferência, alienação, renúncia de posições subjetivas de direitos fundamentais. Nesta tese, cuja parte aplicativa aprecia o direito fundamental à vida no contexto da morte com intervenção, far-se-á um recorte: serão examinadas apenas as hipóteses não onerosas de disposição, trabalhando-se mais proximamente à figura da renúncia. Muito do que será dito pode valer também para outras formas, desde que se mantenha atenção às peculiaridades de cada instituto. Ao apreciar o critério, percebe-se que a preocupação nodal é a extensão da disposição quanto (a) ao objeto e (b) à duração, assim como ao impacto sobre (c) a titularidade do direito subjetivo ou da posição subjetiva de direito fundamental. Crê-se importante, seguindo McConnell, inserir mais um elemento: a extensão quanto (d) à relação jurídica de direito fundamental e seus sujeitos411. 410 No âmbito do direito penal, os autores trabalham, em geral, com os chamados bens disponíveis e bens indisponíveis, apresentando, portanto, outro critério. Ver: PIERANGELI, Op.cit., p.107 e ss. 411 McCONNELL, Op. cit., p.10. 204 A delimitação quanto ao objeto da disposição conduz à distinção entre a parcial e a total. A disposição parcial refere-se a uma ou a algumas posições jurídicas subjetivas de um direito fundamental. A total refere-se ao feixe de posições jurídicas subjetivas de um direito fundamental. Aqui já se firma um ponto. Se o conceito de disposição total confundir-se com direito fundamental como um todo, de regra será inadmissível a disposição. Lembra-se, todavia, ser não apenas difícil, mas rara a possibilidade de disposição do direito fundamental como um todo, em virtude de facetas da dimensão objetiva. Assim, o critério torna-se de pouca utilidade prática. Mas, se compreendida como a disposição de todo o feixe de posições subjetivas de um direito fundamental, talvez seja a classificação mais útil à verificação da admissibilidade da disposição. A delimitação temporal da disposição conduz à distinção entre a temporária e a definitiva. A disposição temporária seria aquela limitada no tempo, enquanto a definitiva propagar-se-ia ilimitadamente. Porém, de maior relevo parece ser a questão relativa à revogabilidade da disposição. Assim, revogável é aquela que admite a revogação a qualquer tempo, distinguindo-se duas alternativas: (a) a revogação é possível a qualquer tempo, sem que disso resultem consequências jurídicas negativas para quem revoga; (b) a revogação é possível a qualquer tempo, mas disso resultam consequências jurídicas negativas para quem revoga. A irrevogável é aquela que não admite a revogação412. A delimitação quanto à titularidade distingue se o titular dispõe do exercício ou da titularidade de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. No Capítulo 1, formulou-se a diferença entre não exercer posições jurídicas subjetivas de direito fundamental e delas dispor. A par da distinção, evita-se a confusão entre o não-exercício e a disposição. Esclarece-se, outrossim, que a disposição pode envolver o comprometimento de não exercer e também o de não invocar posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais. Assim, dispor do exercício significa comprometerse a não exercer e/ou a não invocar uma ou algumas posições subjetivas de direito fundamental. Dispor da titularidade significa que uma ou mais posições jurídicas subjetivas de direito fundamental deixam de pertencer à esfera jurídica do sujeito em razão do seu consentimento. Por fim, a delimitação quanto à relação de direito fundamental e de seus sujeitos conduz a duas modalidades básicas, a geral e a específica. Sabendo que a disposição é 412 Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.221 e ss. 205 intersubjetiva, ela será geral quando atingir todos os sujeitos passivos da posição jurídica subjetiva. Será específica quando se destinar a um ou a alguns sujeitos passivos determinados, sem englobar sua totalidade413. O mote do critério é, pois, admitir a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, desde que não seja de todo o feixe de posições subjetivas do direito, que seja temporária e revogável, e que não atinja a titularidade das posições. A pergunta é: o critério é seguro e generalizável? Em que medida é útil? É preciso testar. Um exemplo já referido de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais é a chamada doação de órgão inter vivos. Suponha-se que A decida doar um rim para seu filho, para fins de transplante, consoante os enunciados normativos vigentes no direito brasileiro. O titular do direito à integridade física dispõe em face de uma equipe de saúde e para finalidade específica de posição jurídica subjetiva do direito. Nítido é que não dispõe de todo o feixe de posições e, mesmo no que é disposto, a disposição é apenas parcial, uma vez que o faz para finalidade específica. Não poderia a equipe de saúde, por exemplo, extrair-lhe outro órgão ou realizar atos médicos não consentidos ou não necessários à extração do rim. Imagine-se que A tenha consentido com o procedimento, mas, horas antes de sua realização, desista. A revogação do consentimento, nessa situação, seria aceita. O que se tem, então, é uma disposição parcial, revogável, que não afeta a titularidade do direito nem da posição jurídica subjetiva. Admissível, portanto, segundo o critério das modalidades de disposição. Mas resta uma sombra. Uma vez realizada a cirurgia – a extração e o transplante do órgão – , do ponto de vista fático não há mais possibilidade de retorno ao status quo ante. Em termos jurídicos, poder-se-ia dizer que a posição jurídica subjetiva de direito fundamental fica novamente intacta. Porém, faticamente consuma-se uma situação sem volta414. São análogos os casos de doação de sangue e de uma cirurgia de transgenitalização415. 413 McCONNELL, Op. cit., p.10. A doação de órgãos inter vivos é regida, no Brasil, pela Lei nº9.434/1997, com as alterações introduzidas pela Lei nº10.211/2001, que estipula critérios para a doação e prevê a revogabilidade expressamente: “§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização”. BRASIL, Lei nº9.434/1997, com as alterações introduzidas pela Lei nº10.211/2001, Op. cit. 415 Sobre a transgenitalização, ver: BRASIL. CFM. Resolução nº1.652/2002, Op. cit. Sobre a doação de sangue, ver: BRASIL. Lei nº10.205/2001. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/leis_2001/l10205.htm. A Lei institui o SINASAN, órgão responsável também pela regulação da coleta e estímulo à doação de sangue. 414 206 Suponha-se, agora, que um indivíduo A consinta genuinamente que policiais efetuem uma busca e apreensão em seu domicílio sem a devida autorização judicial. Inicialmente, parece ser uma disposição parcial, revogável, temporária, específica e que não afeta a titularidade do direito. Mas, se forem encontrados armamentos e drogas ilícitos na residência? Poderá o morador revogar o consentimento? O problema aparece com clareza. A disposição somente seria parcial por restar ao morador a possibilidade de exercer uma posição, a de retirar a autorização para que os policiais permaneçam em seu domicílio. Ao serem encontradas provas, não poderá mais o morador revogar seu consentimento; disso se extrai que se tratou de disposição total, irrevogável, temporária e específica, que afetou, além do direito à inviolabilidade do domicílio, garantias processuais416. Em sentido similar, se um indivíduo, em uma ação de investigação de paternidade, consente genuinamente em realizar um exame de DNA, dispõe de posições subjetivas do direito fundamental à integridade física, à privacidade e, também, de posições relativas a garantias processuais. Feito o exame e confirmada a paternidade, não poderia mais o indivíduo revogar seu consentimento, nem evitar o uso da prova em juízo. Os exemplos apontam algumas disfunções no critério, que dificultam muito a sua aplicação. Em primeiro lugar, porque é deveras complicado discernir exatamente em qual modalidade uma dada disposição recai. A tarefa exige separar não somente os direitos fundamentais envolvidos, como também uma a uma todas as posições jurídicas subjetivas de cada direito. Além disso, há que se combinar as modalidades, que deverão compor simultaneamente disposição parcial, temporária, revogável e do exercício da posição subjetiva de direito fundamental. Em certas situações, será relevante verificar se 416 Há julgados do STJ sobre a matéria. Se houve consentimento genuíno, o Tribunal não considera as provas obtidas por meios ilícitos, tampouco considera que haveria invasão de domicílio: “I. Não há ilegalidade na entrada em domicílio, ainda que sem mandado, se evidenciado o efetivo consentimento da moradora do imóvel”. BRASIL. STJ. RHC nº12.280/RJ. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 04/12/2000. Conferir também: BRASIL. STJ. RHC nº43-737/SP. Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. DJ de 03/10/2005; BRASIL. STJ. RHC nº4.225-7/MS. Rel. Min. Assis Toledo. DJ de 06/03/1995; BRASIL. STJ. RHC nº12.674/SP. Rel. Min. Gilson Dipp. DJ de 05/08/2002. Trabalhando com exemplo semelhante, Jorge Reis Novais menciona: “Diferente seria, todavia, a situação em caso de renúncia à própria titularidade do direito, caso em que – caso se considerasse admissível – a renúncia produziria também a perda definitiva ou temporária do direito, consoante o sentido temporal da renúncia, o que inibiria, igualmente, a possibilidade de sua revogação a qualquer momento por parte do titular do direito. Assim, quando um indivíduo consente, sem estar obrigado, que a polícia proceda a uma busca em seu domicílio, deve entender-se que, antes de esta ser iniciada, pode revogar a decisão de consentimento; mas, pela própria razão de ser do instituto, quando iniciada a busca, não poderá o cidadão fazê-la cessar a seu bel-prazer, por exemplo, quando estivesse iminente a descoberta de objectos comprometedores; deve aí entender-se que, iniciada a busca, ele perde, pelo menos temporariamente, a titularidade da garantia da inviolabilidade de domicílio, não sendo então admitida a possibilidade de revogar a declaração de renúncia (consentimento). NOVAIS, Renúncia..., p.277, nota nº22 [sem grifos no original]. 207 é uma disposição geral ou específica, o que pode ensejar dúvidas sobre a parcialidade, pois em uma relação específica poderia haver disposição total, mas o titular manteria nas mãos as posições quanto aos demais sujeitos que não pertencem à relação de disposição. Eis o problema: está-se diante de uma disposição total ou parcial? Da titularidade ou do exercício? O que exatamente deve ser levado em consideração? A relação específica de disposição ou a totalidade de relações para que seja formulada a classificação? Então, em segundo lugar, percebe-se que as modalidades não são tão límpidas quanto parecem. O ato de dispor parcial, específica, temporária e revogavelmente do exercício de posições jurídicas de direitos fundamentais pode ser muito semelhante ao de dispor da titularidade da posição na relação específica de disposição, principalmente se decorrerem consequências negativas da revogação. Veja-se que Reis Novais chegou até a mencionar que o consentimento para entrada de policiais para efetuar uma busca em um domicílio configura disposição da titularidade da posição jurídica subjetiva. A conclusão do autor lança os problemas à mesa. O sujeito dispôs da titularidade da posição ao consentir? Se levada em consideração a relação específica, poder-se-ia sustentar que sim, pois os policiais passaram a ter imunidade (ou direito estrito, a depender da interpretação) quanto à permanência no domicílio417. Mas e se outro indivíduo – um vizinho curioso – pretendesse adentrar no domicílio, o morador poderia não consentir, ou, quanto a esta pessoa, retirar o consentimento a qualquer tempo, o que demonstra que, não obstante o consentimento dado aos policiais, A ainda titulariza uma posição, do contrário não poderia invocá-la. Destarte, é preciso saber se a classificação se formula para a relação específica ou não. Ou se poderia existir uma disposição temporária de titularidade. Em terceiro lugar, é necessário saber em que momento será feita a classificação. Viu-se, nos exemplos, que uma disposição aparentemente parcial, temporária, revogável e ao exercício de posição subjetiva de um direito fundamental pode ter efeitos jurídicos de uma disposição irrevogável e total, cujos desdobramentos se prolongam no tempo e atingem posições subjetivas de outros direitos fundamentais. Em assim sendo, torna-se 417 Ou seja, que a extinção da nova relação criada pelo ato de disposição ocorra sem a necessidade de concorrência do consentimento dos demais sujeitos da relação. Na hipótese o que se tem é direito estrito do morador a que a polícia não entre em seu domicílio (DaE¬G). Quando consente, o morador cria uma nova relação, que, a depender do sistema, poderá ser DEaG ou SaEG. 208 premente saber se a classificação é formulada em vista de todos os possíveis impactos jurídicos futuros. Até o momento, há três questões de relevo: (a) se a classificação é efetuada quanto ao direito subjetivo ou quanto a posições subjetivas em relações determinadas; (b) a diferença efetiva entre titularidade e comprometimento de não-exercício se a classificação for efetuada quanto a posições em relação específica; (c) a forma de mensuração de outros efeitos jurídicos se a classificação ocorrer quanto a posições em relação específica. Parcela significativa da doutrina não diferencia se as categorias devem ser atribuídas à posição jurídica subjetiva de direito fundamental em uma relação ou ao direito subjetivo, mencionando apenas o direito. Todavia, ao compreender que um direito subjetivo é composto por um feixe de posições jurídicas subjetivas, claro é que a categorização deve ser realizada quanto à posição em uma relação específica. Do contrário, dificilmente uma disposição seria total e da titularidade, pois isto exigiria que fosse perene e geral, saindo o direito subjetivo integralmente da esfera jurídica do titular. A disposição precisa ser averiguada levando-se em conta posição por posição, relação por relação418. A distinção entre a disposição da titularidade e o comprometimento de nãoexercício e/ou não-invocação de posições subjetivas de direito fundamental já foi acusada de mero sofisma. Se o titular de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental ficar sob o compromisso, ainda que temporário, de não exercê-lo em face de alguns ou de todos os sujeitos passivos, o “resultado material” será excessivamente parecido com a disposição da titularidade, pois haverá “um direito sem conteúdo”419, principalmente se da revogação decorrerem consequências negativas420. Se for irrevogável, mais atenuada fica a diferença. Segundo o estudado no Capítulo 1, a movimentação com a titularidade ocorreria nas hipóteses de criação de nova relação jurídica com extinção da original, sem possibilidade de reversão pela vontade unilateral do consentente. Aqui a distinção entre a titularidade de um direito e o comprometimento em não exercê-lo se mostra. Quando a titularidade é atingida, há irrevogabilidade (sem prejuízo de desconstituir-se a nova relação por um novo consentimento). Quando o 418 Supra, Capítulo 1, item 1.2.4. Cf. NOVAIS, Renúncia..., p.279. 420 Reis Novais ilustra indagando de que vale titularizar posições jurídicas subjetivas do direito de greve se houver (em um sistema jurídico que aceite a situação) um contrato no qual o titular se compromete a não exercer as posições por um período específico. Cf. NOVAIS, Renúncia...,. 419 209 sujeito mantém a titularidade, em princípio haverá revogabilidade, ainda que dela decorram consequências negativas421. Nesse tema, Jorge Reis Novais prima pela clareza. Do ponto de vista material, pode ser que a diferença não apareça. Mas, do ponto de vista analítico das posições jurídicas de direito fundamental, a diferença existe. Intuitivamente, indaga-se a pertinência e a utilidade da distinção quanto a aspectos substantivos e funcionais dos direitos fundamentais. Isto é, qual é a valia em pautar um critério em uma diferença dogmático-estrutural que não repercute em diferenças significativas no que toca à substância e à função das posições subjetivas de direitos fundamentais? Voltar-se-á ao ponto adiante. Por fim, a terceira questão refere-se à mensuração de outros efeitos jurídicos oriundos da disposição de posição jurídica de direito fundamental. Ao dispor de uma posição subjetiva de direito fundamental, o titular poderá atingir negativamente posições subjetivas de outros direitos. É que ocorre tanto no consentimento para que a polícia efetue uma busca e apreensão no domicílio quanto no consentimento para a realização de um exame de DNA, pois o consentimento impacta também posições de garantias processuais fundamentais, de modo irrevogável. Assim, embora a análise da disposição de posição de um direito resulte em um ato parcial, temporário, revogável e do exercício da posição, seus desdobramentos jurídicos podem conduzir a disposições outras que não tenham as mesmas características. Se o critério deve ser levado a sério, é preciso que sejam antevistas as consequências quanto a outras posições e que elas sejam combinadas à disposição primária. Há ainda outro elemento a ser considerado. O critério é jurídico-formal. A análise das modalidades não diz muito a respeito dos resultados fáticos da disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. A vigorosa separação entre o patamar estritamente jurídico-formal e o fenomênico pode desnortear o intérprete, fazendo-o tratar como semelhantes situações que guardam entre si diferenças substantivas de alta monta. Ora, mesmo que formalmente detenham a mesma hierarquia, é inegável que há uma assimetria substantiva e funcional entre os diversos direitos fundamentais e as inúmeras posições subjetivas que eles contêm. É notoriamente 421 Embora a conclusão deste tópico conduza à revisão do critério como um todo, a revogabilidade sem consequências negativas é muito importante quando se tem em mente posições subjetivas de direito fundamental indisponíveis. A revogabilidade se faz presente quando o consentimento enseja uma modificação da posição gerando um privilégio. Ver supra, Capítulo 1, item 1.3.3. Ver infra, item 3.2.2.3. 210 diverso lidar com a disposição de posições subjetivas do direito à vida e do direito à liberdade de expressão. Ou do direito à liberdade de expressão e do direito à privacidade. É notória a diferença entre a realização de uma pequena tatuagem no corpo e a doação de órgãos inter vivos, embora essa diferença não se mostre se os olhos estiverem voltados apenas às modalidades de disposição das posições jurídicas subjetivas em cada caso. Todo o dito no parágrafo anterior dá a conhecer que o critério é insensível aos elementos de justificação, como aqueles trabalhados no Capítulo 2. Sua formalidade cria um obstáculo à comunicação entre a forma e a substância. Aparta problemas fáticos, substantivos e funcionais que são componentes importantes da própria ideia de jusfundamentalidade. Torna formalmente semelhante o que é substantivamente inassimilável. Um critério de generalização difícil em tempos de pós-positivismo. Um critério capaz de ensejar imensa incoerência principiológica em um sistema jurídico. Ademais, os exemplos fornecidos, já pautados no ordenamento jurídico brasileiro, indicam que o critério não é uma baliza segura. Perceba-se que a disposição relativa à arbitragem, à busca e apreensão em domicílio e ao exame de DNA são permitidas e aceitas, muito embora não aglutinem as características necessárias segundo o critério das modalidades de disposição. Tais constatações, contudo, não relegam a averiguação das modalidades de disposição à inutilidade. Indicam tão-somente que elas não podem atuar sozinhas, como único ou principal critério. Aliadas a outros critérios, elas podem ser muito úteis para apreciar uma disposição, pois servem para delimitar formalmente sua extensão quanto ao objeto, aos sujeitos, à duração, bem como para determinar se há possibilidade de revogação e como ela se processa. Fornecem, pois, a precisão analítica inicial para o exame da disposição: Ora, se a natureza objectiva de certos bens ou as circunstâncias concretas em que a renúncia se verifica tornam supérfluas algumas destas distinções (assim, renunciar à vida envolve tendencialmente a renúncia definitiva à própria titularidade do direito como um todo), já na maior parte dos casos uma distinção analítica no plano da natureza do bem e da delimitação quantitativa do objecto da renúncia é um prius indispensável da decisão fundamental acerca da sua eventual admissibilidade concreta. De facto, na ponderação dos valores em causa nessa decisão, há que graduar em função de se saber se se renuncia ao direito fundamental como um todo ou apenas a algumas posições jurídicas subjetivas individuais que o integram; se se renuncia, relativamente a estas últimas, à respectiva titularidade ou apenas ao exercício das faculdades que delas decorrem; se, 211 finalmente, a renúncia a este exercício é temporária e qual sua extensão422. Portanto, o escrutínio das modalidades de disposição funciona como um primeiro passo no exame de uma disposição de posições subjetivas de direito fundamental, munindo o intérprete com clareza analítica a respeito da disposição, permitindo-lhe delimitar seu alcance e visualizar impactos jurídicos e fáticos. A falha está em tratar uma combinação de modalidades como um critério determinante e generalizável, pois seu cunho eminentemente formal não abraça elementos substantivos, fáticos e funcionais que precisam se fazer presentes, tampouco dá conta da coerência interna de um sistema jurídico. Pesem embora as deficiências do critério, o exame das modalidades é relevante para a percepção da extensão de enfraquecimento de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Sendo assim, esse exame, aliado a outros critérios, há de ser o início do processo. 3.2 Qualidade do consentimento O núcleo da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais está no consentimento do titular. Sabe-se que o consentimento é necessário à disposição, embora não seja necessário para a restrição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Sabe-se também que as teses de justificação da disposição lidam com a suficiência do consentimento. Quando houver disponibilidade, o consentimento será necessário e suficiente para atuar como justificação procedimental do ato comissivo ou omissivo que seria vedado se não houvesse o consentimento. Daí sua relevância única para o tema da disposição. Logo, o exame do consentimento é um critério de singular importância. Para que a disposição seja válida ou, em certos casos, existente, é pré-condição que o consentimento seja do titular e possa ser adjetivado de livre e informado. O terreno aqui é arenoso, pois existem faces do consentimento que são muito árduas de perscrutar, especialmente quando se trata de disposição. No direito civil, de longa data há institutos que tratam da existência e da validade do consentimento, especialmente no âmbito do negócio jurídico. Discutem-se questões relativas à capacidade civil e aos defeitos, como o erro ou a ignorância, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão, e também a simulação. No direito penal, mesmo com a propagada ideia de que o consentimento da 422 NOVAIS, Renúncia..., p. 284-285. 212 vítima de regra não possui valor jurídico, há estudos e práticas sobre o consentimento, suas características e seu alcance423. Porém, apesar de tais institutos, é preciso deter a atenção em um ponto: a análise que ora se faz da disposição dá-se ao ensejo do direito constitucional, fundado em uma tese baseada em direitos, possuindo como pano de fundo o liberalismo igualitário – com os temperamentos exigidos pelo atual constitucionalismo brasileiro – e o póspositivismo424. Juntam-se a essas premissas as conclusões e opções argumentativas formuladas no Capítulo 2, quais sejam: (a) a necessidade de justificação para o emprego do argumento do paternalismo e seus institutos afins; (b) a aceitação de um direito geral de liberdade com vistas a suprir deficit de argumentação nas ablações das liberdades; (c) a prevalência (prima facie) da dignidade como autonomia. Tudo isso conduz à especial importância do consentimento. Ele não é apenas uma aceitação ou uma recusa. É um mecanismo de exercício de posições jurídicas subjetivas de direitos fundamentais. É um meio de modificação, criação e extinção de relações jurídicas de direito fundamental. Ele está em conexão direta com a ideia de dignidade – quer como autonomia, para a qual é uma de suas formas de externalização –, quer como heteronomia – conceito no qual encontra um de seus limites. É central à versão dialógica da dignidade. Dada sua relevância, é preciso que o consentimento seja levado a sério. É necessário que os institutos de longa data passem pelo crivo do direito constitucional, principalmente na lente dos direitos fundamentais. O cuidado há de ser ainda maior quando se trata de disposição de posições subjetivas de direitos de cunho marcadamente pessoal, como é o direito à vida. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword manifestam a questão com muita limpidez: […] não obstante sua familiaridade, há muito a compreender sobre a ideia do consentimento. Sem essa compreensão, é muito fácil para o 423 Aliás, há que se reconhecer que a propagação da ideia de o consentimento do ofendido ser irrelevante para efeitos penais é um mito, pois o próprio Código Penal, com os tipos que institui, faz uso do consentimento, expressa ou implicitamente. Por exemplo, o crime de estupro está intimamente relacionado ao consentimento, assim como a invasão do domicílio. É o consentimento que faz toda a diferença entre ser o ato lícito ou não. Também no abortamento, há diferente trato para a sua realização com ou sem o consentimento da gestante. Diversos crimes supõem a inexistência de consentimento, ou seja, o dissenso, como o furto, a violação de direitos autorais, a apropriação indébita, o dano, a usurpação, a violação de correspondência, a violação dos segredos, dentre outros. Sobre o tema: PIERANGELI, Op. cit., p.107 e ss. GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: RT, 2004 (Ciência do direito penal contemporâneo; v.7), p.90 e ss. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº2.848, de 7 de dezembro. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/DecretoLei/Del2848.htm 424 Em uma análise estritamente positivista, seriam vistos apenas os enunciados normativos vigentes sobre consentimento. No marco desta tese, a análise é diferente. Trata-se de diretrizes do consentimento. 213 direito endossar o abuso sistemático ou a má-compreensão do consentimento na prática (seja por hiper ou por hipo dependência), e é muito fácil criticar o direito por tomar posições aparentemente arbitrárias (por exemplo, em relação à exigência de que o consentimento deve ser livre e esclarecido), ou por adotar doutrinas que são hiper ou hipo protetoras das partes “consententes”. Modernas comunidades de direitos, que são ao mesmo tempo comunidades do consentimento, merecem algo melhor do que isso. […] O consentimento, em princípio, é uma justificação procedimental distintiva e elegante, todavia, a própria familiaridade com o consentimento na prática, e particularmente com o consentimento no direito, engendra confusão e desdém, bagunça e trapalhada425. A ideia é dar vazão prática à importância do consentimento, mormente na disposição, situação na qual ele é condição necessária e suficiente à modificação, criação e extinção de relações jurídicas de direitos fundamentais, possuindo a capacidade de retirar um sujeito do polo dominante da relação e exercendo o papel de justificação procedimental. Em assim sendo, a grande questão sobre o consentimento é tratá-lo em conexão com os direitos fundamentais e com a própria noção de dignidade humana. Em suma, o consentimento precisa trazer à tona a ligação com as teses de justificação apresentadas no Capítulo anterior. Para tanto, o primeiro passo reside na realidade do consentimento, evitando-se ao máximo a utilização de expedientes que funcionam como se fossem consentimento e substituem-no como justificação procedimental. Desta sorte, as ficções jurídicas formuladas para atuar como consentimento e as situações de consentimento hipotético precisam de avaliação rigorosa. O segundo passo é deter extremada atenção aos casos substantivamente controversos e discutíveis (e.g., sadomasoquismo, arremesso de 425 O projeto desta tese foi apresentando em 2005, para ingresso no doutoramento em 2006. A seguir, foram iniciados os estudos sobre o consentimento. No curso das pesquisas, no início de 2008, esta pesquisadora teve acesso à obra de Beyleveld e Brownsword sobre o consentimento. Muito do caminho que já havia sido trilhado aqui constava na obra dos autores, em uma convergência espontânea. O mesmo ocorreu quanto a alguns casos estudados. Neste trecho do capítulo, a influência da obra é direta e constante. Os autores tornaram-se a principal fonte de referência. Cabe ressaltar, todavia, que muitos casos já haviam sido estudados e mesmo citados em publicações anteriores desta doutoranda. A inserção do pensamento dos autores no Capítulo 1 aconteceu apenas na revisão do Capítulo. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.333 “At the outset, we remarked that, notwithstanding its familiarity, there is a great deal to understand about the idea of consent, without such an understanding, it is too easy for the law to endorse the systematic abuse or misuse of consent in practice (whether by over – or under-reliance), and it is too easy to criticise the law for taking up seemingly arbitrary positions (for example, in relation to the requirement that consent should be free and informed) or for adopting doctrines that are over – or under-protective of the ‘consenting’ parties. Modern communities of rights, which at the same time are communities of consent, deserve better than this. Having sharpened our appreciation of consent, we better placed to cut our way through a range of abusive, opportunistic, or misguided practices that variously undervalue or overvalue consent, that fictionalise it or that are fixate by it, and that treat it to causally or too cautiously. Consent, in principle, is a distinctive and elegant procedural justification; however, the very familiarity of consent in practice, and particularly consent in the law, engenders confusion and contempt, mess and muddle”. 214 pessoas, eutanásia, suicídio assistido, relações homoafetivas...), para não rejeitá-los de plano em nome do consentimento; isto é, ao invés de discutir a substância dos assuntos, lançar dúvidas e recusar a própria possibilidade do consentimento: Se quisermos manter a integridade do consentimento, a lição é esta: quando somos favoráveis a uma transação, é tentador afirmar que ela é autorizada pelo consentimento, mas quando somos contrários a uma transação, é igualmente tentador negar que ela é autorizada pelo consentimento. Em ambos os casos, há um elemento de insinceridade que deve ser desencorajado426. O terceiro passo é entender que consentimento é consentimento e recusa é recusa. A afirmação soa óbvia, deveria ser óbvia, mas não é. Existem situações em que o consentimento é tão rotineiro, é tão comum que as pessoas consintam em determinada prática, que há dificuldades em compreender, interpretar e aceitar uma negação (em uma ilustração extrema, a recusa de terapia transfusional por fiéis religiosos). Se todo o exposto faz crer que o consentimento deve ser levado a sério, evidentemente também faz crer que a recusa deve ser levada a sério, ainda que idiossincrática. Com isto não se está a dizer que a recusa deve ser sempre admissível em um sistema jurídico. Afirmação desse gênero não é feita nem quanto ao consentimento, nem quanto à recusa. A aceitação depende de fatores de justificação. O que não pode ocorrer é a rejeição apriorística da recusa ou o descaso para com ela por ser o consentimento habitual ou tradicional em determinadas conjunturas427. 426 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.136. “If we are to maintain the integrity of consent, the lesson is this: where we are in favour of a transaction, it is tempting to assert that it is authorised by consent, but where we are opposed to a transaction, it is equally tempting to deny that it is authorised by consent. In both cases, there is an element of disingenuousness that should be discouraged”. 427 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.225-226. Um exemplo típico de recusa que causa estranheza refere-se a tratamentos médicos, especialmente quando eles são capazes de curar e de reverter o quadro clínico do enfermo. É o que acontece com os membros de denominações religiosas que não aceitam certas terapias, como a transfusão sanguínea, a doação de órgãos inter vivos ou post mortem e, em certos casos, a hemodiálise. É corriqueiro, no Brasil e mesmo alhures, dizer-se que a escolha é equivocada, que a leitura religiosa é errônea e que haveria um modo correto de se comportar em situações como essa. A petição inicial da ACP da ortotanásia é enfática, empregando, inclusive, situações extremas, envolvendo crianças e adolescentes: “Era livre a garota canadense quando afirmou sentir-se violada como se fosse um estupro ao receber transfusão de sangue decretada pela Suprema Corte Canadense? Respondo peremptoriamente que NÃO. NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO .NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.Nà O.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.N ÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO. NÃO.NÃO.NÃO.NÃO.NÃO. Não eram livres os pais testemunhas de Jeová. Eram dominados por um sentimento religioso errôneo, que coloca o bem maior, a vida, a serviço de interpretações outras da bíblia. Era livre a garota canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a liberdade turvada, da mesma forma, por um entendimento errôneo do que poderia ser o próprio corpo, o sagrado. Era livre a garota canadense? Não! Definitivamente não! Tinha a liberdade turvada, da mesma forma, por um entendimento errôneo do que poderia ser o próprio corpo, o sagrado. [...] 215 Ademais, não são apenas as questões referentes à existência e à validade do consentimento que se destacam. A interpretação do consentimento é muito valorosa. Como um mecanismo de comunicação humana, o consentimento está sujeito a leituras diversas, especialmente pelos envolvidos, pois há a decisão daquele que consente e a expectativa daquele que recebe o consentimento. Então, além do exame da existência e da validade do consentimento, importa muito haver diretrizes claras sobre a sua interpretação, tanto em nome da segurança jurídica quanto dos interesses dos dois lados que se apresentam nessas situações: (a) fidelidade à vontade do consentente; (b) as expectativas justificadas do outro polo da relação428. O exame do consentimento, necessário e suficiente para a disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, não acontece tão-somente por preocupação com o consentente. Estão englobados, em igual medida, os destinatários do consentimento e, em especial, terceiros cujos direitos podem ser atingidos pelo consentimento alheio. A malha juridicamente formada acerca do consentimento fita três elementos: (a) os envolvidos e atingidos pelo consentimento; (b) o como consentir; (c) o com o que consentir. No primeiro, estão o consentente, o destinatário do consentimento e terceiros. No segundo, a validade, a manifestação, as formas e a interpretação do consentimento. No terceiro, a eficácia do consentimento, que, em tema de disposição, pode se confundir com a suficiência do consentimento, atrelada à justificação. Considerações iniciais formuladas, passa-se ao estudo pormenorizado do consentimento. Rememora-se que este é um estudo constitucional do consentimento. Não será formulada uma ampla análise do assunto nos âmbitos civilista, consumerista, penalista e administrativista; serão expostas apenas diretrizes constitucionais, tangenciando, quando necessário, questões afetas diretamente a outros ramos do direito. Além disso, os elementos já serão pincelados com vistas à discussão nuclear da tese – a (in)disponibilidade de posições subjetivas de direito fundamental de cunho marcadamente pessoais, especialmente no âmbito das relações em saúde, a fim de facilitar a análise do direito à vida no próximo Capítulo. REPITO: NÃO HÁ LIBERDADE QUANDO NÃO SE ESCOLHE O BEM”. BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. ACP nº2007.34.00.014809-3. Op.cit. 428 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.187 e ss. 216 3.2.1 Os sujeitos do consentimento Todos os titulares de direitos fundamentais estão aptos para dispor? A resposta é certamente negativa. No Capítulo 1 mostrou-se a diferença entre a autolimitação e a restrição; a primeira autônoma, a segunda heterônoma. Assim, a disposição de posições subjetivas de direito fundamental depende do consentimento do titular. No Capítulo 2, concluiu-se que um dos obstáculos à concepção dos direitos subjetivos como vontade, no Brasil, é o reconhecimento, pela Constituição, da titularidade de direitos por indivíduos não detentores de autonomia plena, como bebês, crianças, pessoas com transtornos mentais severos, em estado comatoso, vegetativo persistente e assim por diante. Tais indivíduos, embora titulares de direitos, não estão juridicamente habilitados a exercer diversas (ou muitas) posições subjetivas de direitos fundamentais. Um dos requisitos que lhes falta é justamente o de emitir um consentimento juridicamente qualificado. Em face da existência de titulares inábeis a consentir, percebe-se que há uma diferença entre ser titular de direitos fundamentais e ser apto a dispor de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental. Para dispor, é preciso a capacidade para consentir, ou seja, além da titularidade é preciso ser um sujeito do consentimento429. À primeira vista, os sujeitos do consentimento para efeitos de disposição seriam os civilmente capazes. Logo, a capacidade civil seria necessária à disposição. No direito brasileiro, as regras de capacidade são, pelo menos aparentemente, bastante herméticas e estanques. Contudo, não é a capacidade civil que conta em todos os casos de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Veja-se a hipótese do consentimento para relações sexuais. Há disposição de posições jurídicas de direitos fundamentais, porém não se exige a capacidade civil plena para que o titular seja considerado um sujeito do consentimento430. 429 A locução “sujeito do consentimento” é de BEYLEVELD e BROWNSWORD, Consent..., p.93 e ss. Art. 213 c/c 224 do CP. Cf. BRASIL. Código Penal. Op.cit. Ver, ainda, decisão do STF que reconheceu em menina de 12 anos a habilidade (jurídica) para consentir com relações sexuais, afastando, portanto, a presunção de violência no estupro: BRASIL. STF. HC nº73.662-9/MG. Segunda Turma. Rel. Min. Marco Aurélio. DJ de 20/09/2006. Em sentido oposto: BRASIL. STJ. REsp.nº332.138/MG. Rel. Min. Felix Fisher. DJ de 11/04/2005. Perceba-se que não se está a defender, nesta tese, que adolescentes com menos de 14 anos são aptas a consentir com relações sexuais, nem se aprecia criticamente a decisão do STF na matéria. Tão-somente constata-se que a idade do consentimento é inferior àquela prevista para a capacidade civil plena. Para exame crítico da decisão do STF: OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade..., p.293 e ss. 430 217 Desse modo, tem-se que o sujeito do consentimento não se confunde com o civilmente capaz. O que é, então, um sujeito do consentimento? Quem é um sujeito do consentimento? Deryck Beyleveld e Roger Brownsword definiram com precisão um sujeito do consentimento: Se as condições para um consentimento autêntico são que ele seja emitido livremente e com uma base informada (como quer que essas condições sejam interpretadas), então a lógica é a de que a especificação de um “sujeito do consentimento”– isto é, possuir a capacidade (ou competência) relevante para consentir – refletirá tais condições. Isso significa, primeiro, que a pessoa com capacidade para consentir será hábil a formar seus próprios julgamentos e formar suas próprias decisões livre da influência ou opinião de outras; e, segundo, que tal pessoa será apta a entender e aplicar a informação que é substantiva para sua decisão431. Apoiados nessa ideia inicial, os autores formulam um tipo-ideal de sujeito do consentimento, que será de muita valia neste estudo. De início, apontam três características de um sujeito do consentimento: (a) habilidade desenvolvida para formular julgamentos e emiti-los; (b) habilidade para agir de modo livre e com intencionalidade, baseado em conhecimento e informações relevantes; (c) presença das habilidades no momento relevante para o consentimento432. A primeira habilidade exige que os sujeitos do consentimento possam não apenas formar um julgamento de modo desenvolvido, mas também que sejam aptos a comunicá-lo. Com isso, excluem-se alguns sujeitos a respeito dos quais paira a dúvida sobre se conseguem ou não formar um julgamento de modo desenvolvido, mas não são aptos a externá-lo, como é o caso dos fetos, embriões, pessoas com síndrome de encarceramento, dentre outros. A segunda refere-se à liberdade e à intencionalidade da conduta. Para tanto, é essencial que o sujeito seja alguém que compreenda “a natureza e o significado do consentimento”, além de ter ciência de que consentir é opcional. Assim, o sujeito do consentimento compreende o que é consentir, com o que consente e por que escolhe consentir433. Já o terceiro elemento exige que as habilidades estejam 431 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.13-14. No original: “If the conditions for an authentic consent are that it is given freely and on an informed basis (however these conditions are interpreted), then the logic is that the specification of a ‘subject of consent’ – that is, one having the relevant capacity (or competence) to consent – will reflect these conditions. This means, first, that a person with capacity to consent will be capable of forming own judgments and making their own decisions free from the influence or opinion of others; and secondly, that such a person will be able to understand and apply the information that is material to their decision”. 432 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.98-101. 433 Notadamente, o segundo elemento já levanta questões acerca da validade do consentimento – como o acesso às informações necessárias para a tomada de decisão e a ausência de pressões fáticas e jurídicas relevantes. Infra, item 3.2.2.1 e 3.2.2.2. 218 presentes no momento relevante para o consentimento. Com isso, evita-se considerar que sujeitos em estados psíquicos alterados sejam reputados sujeitos ideais do consentimento, como acontece com adictos, alcoolistas, portadores de transtornos mentais, pessoas sob efeito de anestésicos, inconscientes, etc. As características dos sujeitos do consentimento possuem, como um de seus efeitos, o de restringir o espaço da justificação procedimental pelo consentimento, compelindo o sistema jurídico e os intérpretes a buscarem justificações substantivas, não fundadas em consentimentos que são, na realidade, hipotéticos. Ao mesmo tempo, ao levar o consentimento a sério, por entender que ele reflete o exercício de direitos fundamentais, há que se ter cautela na exclusão de indivíduos da categoria sujeitos do consentimento434. Em assim sendo, nos casos duvidosos, a precaução é vital, pois a exclusão a priori de indivíduos da categoria sujeito do consentimento pode representar menosprezo acerca dos direitos albergados no consentimento e uma abertura indevida para o paternalismo e seus institutos afins435. Noutro ângulo, a inclusão de todos os casos duvidosos na categoria sujeito do consentimento não apenas é inviável, em muitas situações, como também pode ensejar a possibilidade de fuga da justificação necessária para a ablação de direitos, pois se utiliza do consentimento do titular como a 434 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent...,. No direito civil brasileiro há uma situação que demonstra o aspecto com clareza ímpar. Ao tratar do casamento, o Código Civil estipula que o regime de bens a ser adotado quando um dos nubentes contar com mais de 60 anos há de ser o da separação de bens. Ora, por que uma pessoa com 60 anos é tratada como inapta para escolher o regime de bens que adotará em seu casamento? As justificações apresentadas para o enunciado são, usualmente: (a) evitar que pessoas com mais de 60 anos sejam vítimas do popular golpe do baú; (b) proteger o patrimônio conquistado para os herdeiros já existentes. A primeira é nitidamente paternalista e parte do pressuposto de que uma pessoa com mais de 60 anos deve ser protegida contra suas próprias escolhas. A segunda retira do indivíduo o uso, gozo, fruição e disposição de seus bens materiais, que ainda não são dos herdeiros, se é que eles existem. É, sem dúvida, uma violação da liberdade dos indivíduos, por supô-los incapazes de serem sujeitos do consentimento. Além disso, a proibição não guarda qualquer coerência com o ordenamento brasileiro como um todo, pois pessoas com 60 anos podem ocupar os mais diversos cargos, até mesmo a Presidência da República. Por que alguém que é capaz para tanto não o é para escolher o regime de bens do seu casamento? Ainda antes do novo Código Civil, já havia decisões judiciais considerando não recepcionados pela CF/88 dispositivo análogo do Código de 1916: “CASAMENTO. Regime de bens. Separação legal obrigatória. Nubente sexagenário. Doação à consorte. Validez. Inaplicabilidade do art. 258, § Único, II do Código Civil, que não foi recepcionado pela ordem jurídica atual. Norma jurídica incompatível com os arts. 1°, III, e 5°, I, X e LIV, da CF em vigor. Improvimentos aos recursos. É válida toda doação feita do outro pelo cônjuge que se casou sexagenário, porque, senão incompatível com as cláusulas constitucionais de tutela da dignidade da pessoa humana, da igualdade jurídica e da intimidade, bem como com a garantia do justo processo da lei, tomado na acepção substantiva (substantive due process of law), já não vige a restrição constante do art. 258, § Único, II, do Código Civil”. SÃO PAULO. TJSP. Apelação Cível nº007.512-42. Rel. Des. Cézar Peluso. 18/08/1998. 435 219 justificação procedimental. Existe, portanto, uma tensão a reclamar princípios norteadores que indiquem como proceder diante dos casos de penumbra. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword sugerem, em primeiro lugar, a adoção de um princípio de precaução que auxilie a identificar a presença das habilidades que caracterizam a agência436. A partir daí, buscam definir quem é ou não um sujeito idealtípico do consentimento, bem como apresentam estratégias para lidar com quem não é um sujeito do consentimento ideal-típico. Para que alguém se qualifique como um sujeito do consentimento ideal-típico, é preciso que seja um agente ostensivo: isto é, que marcadamente apresente todas as qualidades da agência e possua a habilidade de comunicar-se no momento relevante do consentimento. Haverá agentes de várias categorias. A depender da categoria, há maior ou menor proximidade com o tipo-ideal de sujeito do consentimento. Quando não há dúvida acerca da inexistência da agência, não haverá, por evidente, que se falar em sujeito do consentimento. Porém, disso não se extrai que se esteja diante de um sujeito do consentimento toda vez que houver agência ostensiva, pois pode acontecer que um agente ostensivo esteja temporariamente impedido de comunicar-se (e.g., sob efeito de anestesia geral). Porém, há uma zona de penumbra, composta por casos nos quais ou a agência não se mostra plenamente presente, ou não há meios de determinar se ela efetivamente existe ou, ainda, ela é meramente potencial. Nesta tese, não serão trabalhadas todas as categorias. Restringir-se-á a descrição às que interessam diretamente à discussão do Capítulo 4, que são: (a) agentes intermitentes; (b) agentes ostensivos pretéritos; (c) agentes ostensivos futuros. Por agentes intermitentes, entendem-se aqueles que ora apresentam as qualidades da agência, ora não, como pessoas em recuperação, portadoras de alguns transtornos mentais, adolescentes, etc. Por agentes ostensivos pretéritos, entendem-se aqueles que já apresentaram as qualidades da agência e que, por alguma razão, perderam-na, como ocorre com pessoas em estado vegetativo persistente e com 436 Resumida e superficialmente, pode-se dizer que a agência traduz-se nas habilidades de: (a) formular julgamentos desenvolvidos e emiti-los; (b) agir de modo livre e com intencionalidade. No tema, a precaução assim se manifesta: “Se não há modo de saber se X possui ou não a qualidade P, então, tanto quanto possível, deve-se presumir que X tem a qualidade P, se as consequências do erro na presunção de que X não possui a qualidade P forem piores do que aquelas advindas do erro na presunção de que X possui P (e deve-se presumir que X não possui P se as consequências do erro na presunção de que X possui P forem piores do que aquelas advindas da presunção de que X não possui P)”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human dignity… p.122. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.101 e ss. 220 as falecidas. Por agentes ostensivos futuros, entendem-se aqueles cuja linha de desenvolvimento geralmente leva-os à agência ostensiva437. Em atenção ao exposto, percebe-se que há indivíduos que se desqualificam como sujeitos do consentimento, enquanto outros estão muito próximos do tipo-ideal. Além desses, existem os que, embora possam ser reputados sujeitos do consentimento, distanciam-se significativamente do tipo-ideal. Para levar o consentimento a sério como justificação procedimental, uma importante questão é saber como tratar os primeiros e os últimos desses casos438. Diversos sistemas jurídicos desenvolveram estratégias semelhantes para lidar com as hipóteses duvidosas e com aquelas nas quais nitidamente não se está diante de sujeitos do consentimento. São basicamente três estratégias: (a) julgamento por substituição; (b) melhores interesses; (c) mandatários e representantes. 3.2.1.1 O julgamento por substituição No julgamento de substituição, procura-se identificar, com a maior acurácia possível, como o indivíduo decidiria se estivesse na posição de sujeito ideal-típico do consentimento. Essa avaliação ocorre, muitas vezes, mediante atividade jurisdicional. Embora o instrumento seja interessante, pois busca compreender qual seria a posição de um indivíduo em uma situação específica, substituindo-o na decisão de consentir ou recusar, ele apresenta pelo menos três problemas graves: (a) não separa os agentes ostensivos pretéritos daqueles que nunca foram agentes ostensivos; (b) quando a substituição se dá pela via jurisdicional ou por comitês instituídos, há um distanciamento entre quem julga e quem deveria consentir ou recusar; (c) o consentimento pode ser uma mera ficção439. A primeira crítica pode ser explanada mediante comparação de três famosas decisões judiciais estrangeiras. Nos casos Cruzan440 e Bland441, a Suprema Corte dos 437 A respeito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.99-114. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent.... 439 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114 e ss. GARNER, Bryan A. (editor in Chief). Black’s Law Dictionary. Eighth Edition, Thomson West, 2004. Vocábulo substituted judgement. 440 Nancy Cruzan sofreu um acidente automobilístico e, como consequência, ficou em estado vegetativo persistente. Ela assim permaneceu sete anos sem reflexos motores e sem função cognitiva, mas viva, pois seu organismo mantinha a respiração e a circulação autonomamente. Ela era alimentada e hidratada artificialmente. Consoante pareceres médicos, não havia chance de reversibilidade de seu quadro, mas, se fossem mantidas a hidratação e a nutrição artificiais, ela poderia viver por mais trinta anos. Os pais de Nancy solicitaram aos médicos e funcionários do hospital a suspensão da nutrição e da hidratação artificiais. Como Nancy faleceria, os funcionários e médicos se recusaram a suspender o suporte, a menos que houvesse uma ordem judicial autorizando. Os pais recorreram ao Judiciário. A Suprema Corte 438 221 EUA e a Câmara dos Lordes do Reino Unido, respectivamente, empregaram o julgamento por substituição, procurando reconstruir o estilo de vida, os valores e as preferências de agentes ostensivos pretéritos, a fim de tomar a decisão sobre a retirada de sistemas de suporte vital. No caso Cruzan, exigiu-se um rigoroso padrão de prova sobre as suas preferências e manifestações pretéritas. Já em Bland, a reconstrução do seu perfil pautou-se em elementos menos exigentes. Nos dois casos, era viável a tentativa de moldar o caráter dos enfermos e pressupor qual decisão tomariam. Porém, em um terceiro caso, Strunk Case, o julgamento por substituição mostrou sua potencialidade para desvios, pois decidiu-se que Jerry Strunk consentiria, se estivesse apto a fazê-lo. Mas não havia, no caso, elementos para a reconstrução da personalidade, preferências e valores de Jerry Strunk, uma vez que ele jamais apresentara um nível de desenvolvimento intelectual e psíquico suficiente para ser caracterizado como um agente ostensivo, dirá como um sujeito do consentimento442. O ponto traz à tona a segunda e a terceira críticas, uma vez que, sem apoio nas características de um agente ostensivo pretérito, decide-se não como certa pessoa estadual não concedeu a autorização, pois não entendeu que o casal houvesse suprido a prova exigida pela lei do Missouri. A lei, intitulada Living Will Statute, exigia, para a situação, uma prova clara e convincente da manifestação de vontade da pessoa, quando capaz, de não ser mantida viva em determinadas condições. USA. Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, Op. cit. Sobre o tema, ver também: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.115. MARTEL, Devido processo..., p.284-287. 441 Anthony Bland estava em estado vegetativo persistente em virtude de um desastre em um estádio de futebol, quando ele tinha apenas dezessete anos. Após três anos nessas condições, seus pais e os médicos responsáveis decidiram que o melhor seria suspender a oferta de nutrição e de hidratação artificiais. Inseguro quanto à legalidade da decisão, o estabelecimento de saúde buscou a tutela jurisdicional preventivamente. Em razão da juventude de Bland à época do desastre e de sua inconsciência durante todo o tratamento, sua vontade não era conhecida. Em assim sendo, a limitação de tratamento deixaria de ser uma conduta de respeito à autonomia do paciente, tornando nebulosa a sua intencionalidade. Para os casos em que não pode haver consentimento, em razão da ausência de capacidade ou de impossibilidade fática de fornecê-lo, como em Bland, a Câmara dos Lordes considerou viável a suspensão dos sistemas de nutrição e de hidratação, desde que seguidos certos princípios, dentre eles a avaliação dos melhores interesses do paciente, bem como com a reconstrução daquilo que ele haveria decidido. UNITED KINGDOM. Airedale N.H.S. Trust v. Bland. House of Lords. 4 february, 1993. Disponível em: http://www.swarb.co.uk/c/hl/1993airedale_bland.html. Ver também: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.115. MARTEL, Limitação de tratamento... 442 A indicação do caso está em BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent.... Jerry Strunk era portador de um transtorno que afetava muito sua capacidade intelectiva. Seu irmão, mentalmente saudável, precisava de um transplante renal para permanecer vivo. Vários parentes foram testados, porém, a compatibilidade efetiva apenas ocorria se fosse transplantado um dos rins de Jerry. Os pais de Jerry entenderam que o melhor seria autorizar a doação. A instituição na qual Jerry se encontrava internado foi da mesma opinião, em razão dos seus melhores interesses. Inicialmente, o caso foi decidido tendo em vista os melhores interesses de Jerry, que residiriam na manutenção do seu convívio com o irmão, por quem Jerry possuía afeição. Todavia, a Corte de Apelação inseriu a noção de julgamento por substituição na decisão final, invocando precedentes. Strunk Case. 445 S W 2d 145. Court of Appeals of Kentucky. Jerry STRUNK, An Incompetent by and through Morris E. Burton His Guardian Ad Litem, Appellant, v. Ava STRUNK, Committee for Jerry Strunk, Incompetent, et al., Appellees. Sept. 26, 1969. Disponível em: http://faculty.law.miami.edu/mcoombs/documents/strunk.doc 222 decidiria, mas com base em um padrão, algo semelhante à noção de homem médio ou pessoa razoável. E aí está a ficção do consentimento. Ora, como alguém que nunca possuiu as características comumente atribuídas a essas figuras decidiria do mesmo modo que elas? É uma ficção sustentar que há consentimento do titular e, mais grave, que ele seja a justificação procedimental de atos como a doação de um órgão em vida. Nesse caso, necessária seria outra justificação, de cunho substantivo, ou até procedimental, sustentada em consentimento alheio443. Segundo Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, o caso Strunk torna manifestos os limites do julgamento por substituição no que toca à justificação procedimental por consentimento do titular. O primeiro limite está na impossibilidade de seu uso para indivíduos que nunca foram sujeitos do consentimento, pois não há uma biografia a ser levantada para que se possa delinear plausivelmente seu rumo de decisão. Desta sorte, embriões, fetos, crianças pequenas e indivíduos que, mesmo adultos, nunca deixaram de ser absolutamente incapazes, estão excluídos da técnica. É preciso também que a reconstrução da biografia e do modo de decidir refira-se àquele indivíduo cujo consentimento pretende-se suprir, sem recursos a padrões externos sobre como a maioria das pessoas decidiria ou como um homem médio ou um sujeito razoável fariam. Ressalte-se, ainda, ser indispensável a existência de elementos suficientes para que a tarefa de reconstrução não seja muito especulativa444. 3.2.1.2 Os melhores interesses Os melhores interesses representam o critério aplicado em uma grande variedade de casos duvidosos e naqueles em que não se está diante de sujeitos do consentimento, por exemplo, em decisões relativas a crianças e adolescentes, tratamentos médicos de incapazes ou de pessoas incapacitadas para expressar-se, dentre outras445. Tal qual o critério anterior, a decisão pode ser formulada pela via jurisdicional, mas admite também a sua determinação por comitês específicos, instituições ou pessoas. Quando a decisão é tomada com vistas aos melhores interesses, a preocupação central reside no que se considera o mais acertado para aprimorar o bem-estar e obter o benefício de 443 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114-117. No caso Strunk, os autores acreditam que o direito à vida do irmão poderia ser uma linha de motivação adequada. 444 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.116-117. 445 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.117. Sobre esse tema, no direito pátrio, é impreterível consultar: PEREIRA, Tânia da Silva (Coord.). O melhor interesse da criança: um debate interdisciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 223 quem deveria consentir, assumindo-se tanto o bem-estar quanto o benefício em sentido amplo, conglobando aspectos físicos, econômicos, sociais e psíquicos. A maior barreira ao critério é, justamente, a determinação do que é melhor para outra pessoa, principalmente em sociedades pluralistas. Não é difícil, ainda, que ocorram abusos na determinação dos melhores interesses, pela interferência de interesses de terceiros que eventualmente sejam levados em demasiada consideração446. Outrossim, faz diferença o fato de se tratar de um agente ostensivo pretérito, de um agente ostensivo futuro ou de alguém que nunca apresentou as características da agência. Na primeira hipótese (agentes ostensivos pretéritos), o julgamento por substituição seria uma opção mais adequada. Na sua impossibilidade, ou quando há sério conflito entre a manifestação pretérita e os interesses atuais ou futuros, pode-se lançar mão dos melhores interesses. O assunto é delicado e merece alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, um agente ostensivo pretérito pode se encontrar em uma situação na qual não é possível determinar se possui ou não interesses. A discussão aconteceu em Bland, quando se indagou se um indivíduo em estado vegetativo persistente possuía ou não interesses. E, se possuísse, qual seria o melhor interesse de Bland? A manutenção ou a retirada do suporte vital? Todavia, em Bland, era possível reconstruir sua personalidade e optar pelo julgamento de substituição. Se não fosse viável, ter-se-ia que adotar os melhores interesses, com todas as imprecisões que apresentaria no caso447. Incrementando a dificuldade, basta pensar na hipótese de uma mulher adulta com diagnóstico de Alzheimer. Suponha-se que, quando saudável, ela decidira não ser mantida em condições adversas como as que enfrentaria, porém, quando enferma e já 446 Se o caso Strunk for analisado sob a ótica dos melhores interesses, é realmente duvidoso que os melhores interesses de Jerry estivessem em fazer a doação de um rim em vida para seu irmão. Para um indivíduo absolutamente incapaz, internado, seria efetivamente em seu melhor interesse submeter-se à cirurgia de extração do órgão? Certamente, como informam os pareceres do caso, ele sentiria a falta do irmão, com quem mantinha uma relação de admiração e afeto, mas não conseguiria associar a causa da morte do irmão à não-doação do órgão. A manutenção do convívio com o irmão foi entendida como os melhores interesses de Jerry, inclusive para seu tratamento. É de se indagar, como foi feito no voto minoritário, se o interesse efetivamente levado em conta foi o de Jerry ou de seu irmão e parentes. Cf. Strunk Case. Cit. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.114-117. 447 Da leitura do julgado, percebe-se que a personalidade de Anthony Bland foi tomada em consideração, mas vê-se também a referência aos melhores interesses. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword expõem o caso como um exemplo de julgamento por substituição. Ronald Dworkin, por seu turno, comenta que a maioria dos votos tendia aos melhores interesses, e não ao resgate da autonomia pretérita. Na opinião do jusfilósofo estadunidense, mesmo em estado vegetativo persistente, Bland possuía interesses, e o modo de decidir deveria pautar-se na sua agência pretérita. DWORKIN, Ronald, O domínio..., p.294-296. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.115 e 118. UNITED KINGDOM. Airedale N.H.S. Trust v. Bland…, Op.cit. 224 sem o status de sujeito do consentimento, ela parecia bem. A questão é saber se o consentimento pretérito, emitido quando ela era um sujeito ideal-típico do consentimento, assume relevância ou se é mais adequado adotar a técnica dos melhores interesses atuais, aparentemente diversos dos que manifestara. O julgamento por substituição conduziria, por evidente, ao respeito do consentimento pretérito. Já os melhores interesses poderiam conduzir ao resultado oposto. É perceptível que os critérios podem levar a resultados conflitantes, tanto mais quando for necessário definir os melhores interesses em um espaço temporal que envolve presente, passado e futuro, uma vez que o passado assume importância significativa para aqueles que deixaram de ser agentes ostensivos448. Na segunda e na terceira hipótese (agentes ostensivos futuros e aqueles que nunca foram agentes ostensivos) uma opção é o critério dos melhores interesses, pois não há elementos suficientes para reconstruir a decisão que seria tomada por determinado indivíduo nas circunstâncias que se apresentam. Ao ter em consideração os agentes futuros (crianças e adolescentes), sabe-se que o porvir é tão relevante quanto o presente, e circunstâncias relativas ao desenvolvimento assumem bastante peso. Normalmente, os sistemas jurídicos incumbem aos pais ou responsáveis legais as decisões sobre os melhores interesses. Se houver questionamentos sobre a escolha por eles feita, o mecanismo é a indicação de um curador especial, que defenderá os melhores interesses da criança ou do adolescente na via jurisdicional449. A decisão judicial trará os melhores interesses. Para o tema em apreço nesta tese, é importante compreender se os melhores interesses atuam como se consentimento fossem, ou seja, se funcionam como justificação procedimental por consentimento do titular. A resposta é negativa. Em relação ao titular do direito, a decisão foi tomada sem o seu consentimento e sem elementos que permitam reconduzir ao modo como ele possivelmente decidiria. Foram terceiros que decidiram e consentiram em vista do que consideraram seus melhores interesses. Em assim sendo, quem atua com base no consentimento dos pais ou 448 A respeito, ver: DWORKIN, Ronald, Domínio..., p.310 e ss. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.118. 449 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.118. Note-se que este é o exato sistema adotado pelo ECA, no art.142 e pelo CC, art.5º. Ver: BRASIL, ECA, Op.cit., e BRASIL, Código Civil, Op.cit. Impreterível consultar a obra organizada por Tânia da Silva Pereira, na qual são expostos mecanismos mais acurados de definição dos melhores interesses de crianças e adolescentes, mediante atuação de equipes inter e multidisciplinares, com a participação de psicólogos, assistentes sociais, psiquiatras, etc. PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor..., passim. 225 responsáveis tem, no consentimento, uma justificação procedimental. Todavia, este consentimento não se identifica com o do titular e nem o substitui. É outro consentimento, hábil a justificar procedimentalmente condutas de terceiros, porque formulado por quem de direito e nos melhores interesses do titular. O consentimento do titular e o consentimento ou a decisão com apoio nos melhores interesses são, portanto, justificações distintas450. Na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, é necessário que o consentimento seja do titular, ou quando muito, seja efetivamente reconduzível ao titular. O consentimento de terceiros com base nos melhores interesses não configura disposição, mas, se impactar negativamente posições subjetivas de direitos fundamentais, será ablação heterônoma. 3.2.1.3 A representação O terceiro mecanismo é a atuação de representantes, autorizados por lei ou indicados pelo interessado (representante convencional)451.Os representantes legalmente instituídos tem dois modos básicos de atuação: (a) agem nos melhores interesses ou no interesse do representado452; (b) agem segundo agiria o representado. Na primeira, retoma-se a decisão por melhores interesses, ou em sendo apenas no interesse, o recurso a padrões externos, como o do homem médio, terá mais espaço. Na segunda, embora não seja exatamente um julgamento por substituição, o princípio subjacente é análogo, porém admite alguns alargamentos no que se refere a padrões externos, tal qual o homem médio ou o sujeito razoável. Para efeito de justificação procedimental por consentimento do titular, como a que ocorre na disposição de posições jurídicas de direito fundamental, a atuação dos representantes legais somente a ela se equipara se for de fato reconduzível ao consentimento do titular, ou seja, quando for muito próxima do julgamento por substituição, em seus estreitos limites anteriormente referidos. Destarte, eventual consentimento do representante legal que implique ablações em posições jurídicas de direito fundamental do titular, sem a recondução ao consentimento do titular, configuram heterolimitação, até mesmo hábil a justificar procedimentalmente 450 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.118. Interpreta-se que Jorge Reis Novais subscreve este modo de pensar quanto à disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, pois considera que ela somente ocorre quando houver consentimento do titular. NOVAIS, Renúncia..., p.267. 451 No Brasil, a figura é genericamente tratada no Código Civil, nos Arts.115 a 120. BRASIL, Código Civil, Op.cit. 452 A diferença entre os melhores interesses e os interesses é que o primeiro refere-se a uma pessoa determinada em situação específica, com escasso recurso a padrões externos, ao passo que, no segundo, a referência é justamente o padrão médio de conduta, mais usual quando em jogo questões patrimoniais. 226 atos de terceiros, mas sem ser justificação procedimental por consentimento do titular autolimitação. Os representantes instituídos pelos interessados podem agir segundo determinações específicas formuladas por aqueles a quem representam de modo mais ou menos vinculado, atingindo até a discricionariedade. Podem também ser escolhidos para agir no que entendam ser os melhores interesses ou os interesses do representado, com sua autorização, sem a presença de diretrizes ou regras de atuação e sem a necessidade de decidir como decidiria o representado. Quando agem nos interesses, existe possibilidade de recurso a padrões externos (e.g., sujeito razoável). Aqui parece uma diferença em relação aos representantes legais, pois o consentimento exarado pelo representante instituído pelo representado é reconduzível ao consentimento do representado, independentemente da técnica que seja empregada pelo representante, desde que ela se situe nos limites da representação. Portanto, poderá haver disposição de posições jurídicas de direitos fundamentais nessas ocasiões, procedimentalmente justificada por consentimento do titular. A representação, em que pese ser bastante comum, é alvo de críticas relevantes. Primeiro, o representante legal pode ser um indivíduo distante do representado. Segundo, pode haver conflitos de interesses entre representante e representado, ou entre o representante legal e outros indivíduos – próximos ao representado ou com algum grau de responsabilidade perante ele – podendo, tais conflitos, ser os objetos do consentimento do representante453. Terceiro, de modo geral, os sistemas jurídicos não indicam como devem decidir os representantes legais, mormente quando se está diante de agentes ostensivos pretéritos. É corrente estipular ou inferir que será nos melhores interesses ou no interesse do representado, mas, quando se trata de agentes ostensivos pretéritos, essas opções deixam de considerar a construção identitária e valorativa do representado. Alguns exemplos auxiliam na compreensão de cada uma das circunstâncias já apresentadas. Suponha-se que José esteja enfermo, em estágio terminal, num hospital da rede pública de saúde no Brasil. Ele é adulto, capaz, está plenamente consciente, no uso de suas faculdades mentais e foi devidamente informado pela equipe de saúde. Caso ele decida não receber tratamento médico, recusará por si mesmo, assinando um Termo de 453 Adiante, o tema será explorado no caso Terri Schiavo. 227 Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Embora doente, ele é um sujeito idealtípico do consentimento454. Imagine-se agora que José não mais está consciente. De pronto, abrem-se duas possibilidades: (a) José indicou um representante; (b) José não indicou um representante. Ao indicar um representante, José teria duas alternativas: (a.1) expor, com bastante detalhamento, a condução do seu tratamento médico, de forma que os atos do representante ficam vinculados à manifestação prévia de José; (a.2) apenas indicar o representante, oferecendo-lhe uma ampla margem para decidir. Em ambos, o consentimento do representante é facilmente reconduzível ao de José. Se José não indicou um representante, será representado por quem a legislação determina. Como ele já foi um agente ostensivo e também um sujeito do consentimento, as seguintes possibilidades se manifestam: (b.1) José documentou, previamente e enquanto sujeito do consentimento, suas preferências e como decidiria na situação; (b.2) José não indicou como decidiria, mas sua biografia permite concluir como faria; (b.3) não há elementos para reconstituir o rumo decisório que José teria na situação, o que conduz à adoção dos melhores interesses. Nas duas primeiras possibilidades, há recondução ao consentimento de José; na terceira, não. E se José fosse uma criança de três anos de idade? Claro é que restaria tão só a representação e a decisão pelos melhores interesses, ocasionalmente com presença de curador especial. Idêntico raciocínio se aplicaria se José fosse adulto, mas sempre absolutamente incapaz. E se José fosse um adolescente de 16 anos? Conforme as regras vigentes no direito pátrio, José poderia discutir o tratamento, as decisões, mas incumbiria aos seus assistentes legais suprir seu consentimento. Nas três ilustrações, não há justificação procedimental por consentimento do titular, mas por consentimento de terceiro, fundado nos melhores interesses. Se houvesse ablação de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, seria heterônoma. Entretanto, poderia advir, ainda, um elemento novo. Se José estivesse com 16 anos, enfermo, em estágio terminal, mas plenamente consciente, e sua decisão fosse diversa daquela dos representantes? Ou se, antes de ficar inconsciente, houvesse manifestado nitidamente, escorado em informações adequadas, como gostaria de ser tratado? Com adolescentes, as soluções se tornam mais complexas e são muito 454 Nesta etapa do trabalho, não se discute a aceitação da conduta no direito brasileiro; apenas exemplifica-se o conceito de sujeito do consentimento. 228 debatidas nos dias de hoje, principalmente no que toca a tratamentos de saúde. Acirra-se a discussão porque a legislação usualmente opta por padrões gerais quanto à idade necessária para que alguém se torne um sujeito do consentimento ideal-típico455. Ademais, os limites de idade podem variar, segundo a atividade. No sistema jurídico brasileiro, um adolescente pode votar aos 16 anos, bem como consentir quanto a relações sexuais. Por que, então, não poderia tomar decisões quanto aos seus tratamentos médicos? Entende-se que, se o adolescente se mostrar maduro, isto é, apresentar qualidades da agência ostensiva e habilidade para comunicar-se no momento relevante para o consentimento, ele pode ser hábil a decidir sobre o curso de seus tratamentos médicos, desde que existam precauções em um método caso-a-caso456. Não se trata apenas de ouvi-lo e permitir que ele participe das decisões tomadas por terceiros, mas que ele decida. Se assim for, pode-se falar em disposição de posições jurídicas subjetivas de direito fundamental, pois o consentimento será emitido pelo titular457. 455 Páginas atrás, viu-se que a capacidade civil nem sempre é determinante para que alguém seja considerado um sujeito do consentimento. Efetivamente, a depender das circunstâncias, do ramo do direito, e até mesmo de cada indivíduo, a idade para que alguém seja um sujeito do consentimento pode variar em decisões autorreferentes. Tal é comum com os agentes intermitentes, como são os adolescentes. Eles não serão sujeitos ideais-típicos do consentimento, mas poderão situar-se em uma área muito próxima do tipo-ideal, sendo não somente cabível reconhecer-lhes como sujeitos do consentimento, mas também recomendável, para que não se excluam indivíduos injustificadamente do exercício dos direitos atrelados ao ato de consentir ou de recusar. O melhor seria a aferição das habilidades necessárias a um sujeito do consentimento caso a caso, a partir do momento em que se percebe haver maturidade para cada ato da vida. Contudo, a individuação pessoal e para atos apresenta uma série de inconvenientes que acabam por justificar a adoção de idades-padrão sem que isso configure, a priori, uma violação de direitos. A respeito: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.111-114. 456 Diversos sistemas jurídicos acatam esta tese, intitulada menor maduro. Dada a conotação negativa que o termo menor assumiu no direito nacional, utilizar-se-á a tese do adolescente maduro. Embora ela não encontre ampla guarida jurídica no Brasil, pode ser adotada, uma vez que a CF/88 reconhece que crianças e adolescentes são titulares de direitos, inclusive de liberdade e de dignidade. Se, em um caso concreto, relativo a intervenções médicas, um adolescente maduro, que apresenta as características de um sujeito do consentimento, não puder aceitar ou recusar o tratamento, poderá haver violação de seus direitos fundamentais. Ainda que não se aceite essa posição, é, pelo menos, preciso adotá-la com moderações, para que a criança ou o adolescente possam manifestar seus pensamentos e os tenham valorados pelos representantes ou na determinação dos seus melhores interesses. No tema: BRUSSA, M. “Igual podría no estar aquí contándolo” - Percepción del proceso de información de adolescentes con câncer. Madrid: Tesis doctoral. (Departamento de Medicina Preventiva, Salud Pública e Historia de la Ciencia) , Universidad Complutense de Madrid, 2005. COHEN, D. Quién decide? El adolescente como agente moral. Perspectivas Bioéticas, n.8, p.55-67, 2003. GRACIA, D.; JARABO,Y.; MARTÍN E.N.; RÍOS, J. Toma de decisones en el paciente menor de edad. Medicina Clinica, n.117, p.179-190, 2001. SOCIETY FOR ADOLESCENT MEDICINE. Guidelines paper of the society for Adolescent Medicine. A position paper of the society for Adolescent Medicine. Journal of Adolescent Medicine Health, n.33, p.396409, 2001. 457 Recentemente, um caso do Reino Unido trouxe a questão dos adolescentes maduros à baila. Aos cinco anos de idade, Hannah foi diagnosticada com uma forma rara de leucemia, e, desde então, sua vida passou a envolver frequentes internações hospitalares. O tratamento para sua doença acabou causando fortes danos ao seu coração. Sua única chance seria, então, um transplante cardíaco, que oferecia vários riscos, em razão do estado de saúde de Hannah. Mas a menina de treze anos recusou o tratamento, afirmando que 229 Por fim, no tema da representação, é importante destinar alguns parágrafos a um dos casos mais rumorosos dos últimos anos: Terri Schiavo. A simples menção do nome já traz à memória as circunstâncias básicas, em vista da imensa projeção midiática. A Sra. Theresa Marie Schindler-Schiavo entrou em estado vegetativo persistente no início de 1990, após um processo de ressuscitação. O seu marido, Michael Schiavo, foi indicado seu representante, por ordem judicial, em junho de 1990. À época, ninguém se opôs. A seguir, os médicos que atenderam Terri foram condenados por erro médico, com dever de indenizar Michael Schiavo e também de formar um fundo para os cuidados da enferma458. Pouco depois, o Sr. Schiavo queixou-se de que os pais de Terri (os Schindlers) reclamavam parcela do fundo. Em 1993, os Schindlers ajuizaram uma ação tentando destituir Michael da representação. No curso do processo, foi nomeado um curador ad litem, que se posicionou favoravelmente a Michael, parecer que correspondeu à decisão proferida. Em maio de 1998, os problemas começaram, pois Michael solicitou, judicialmente, autorização para a retirada dos sistemas de hidratação e de nutrição artificiais que mantinham Terri. Novo curador ad litem foi apontado, que, mais uma vez, posicionou-se como Michael. O juízo ordenou a retirada dos sistemas, o que foi feito459. Dias após, os sistemas foram reinseridos, pois os Schindlers obtiveram êxito em um de seus pleitos, no qual alegaram que Michael havia mentido acerca da personalidade e da linha provável de ação que Terri tomaria se pudesse decidir por si mesma. Os fatos ocorreram em abril de 2001. Desta data até março de 2005, contam-se já sofrera traumas demais e não queria passar por nova cirurgia – preferia morrer com dignidade, em sua casa. Inicialmente, seus pais discordaram da sua decisão, mas, ao perceber que Hannah compreendia as consequências da decisão, e que havia se pautado em importantes elementos para tomá-la, aceitaram-na. A equipe médica, percebendo a maturidade de Hannah, também aceitou sua decisão. Todavia, o hospital buscou o Judiciário, que decidiu que Hannah era madura o suficiente para fazer sua escolha. Posteriormente, Hannah reviu sua decisão e aceitou o transplante. No direito estrangeiro, há julgados determinantes no ponto: (a) Gillick v West Norfolk and Wisbech Area Health Authority and another (House of Lords,1986), no Reino Unido; (b) A.C. v. Manitoba (Director of Child and Family Services), decidido pela Suprema Corte do Canadá em 2009; (c) Secretary, Department of Health and Community Services v. J.W.B. (Marion’s Case), na Austrália, em 1992; (d) nos Estados Unidos da América, a linha decisória não é tão firme na adoção da tese quanto no Canadá, no Reino Unido e na Austrália, mas há precedentes importantes, dentre os quais: Planned Parenthood of Central Missouri v. Danforth, de 1976, e Bellotti v. Baird, de 1979. PERCIVAL, Jenny. Teenager who won right to die: 'I have had too much trauma', Guardian.co.uk Disponível em: http://www.guardian.co.uk/society/2008/nov/11/childprotection-health-hannah-jones. 458 O fundo possuía o valor de US$750.000,00 e a indenização do esposo foi de US$300.000,00. Cf. BARIE, Philip S. The arrogance of power unchecked: the terrible, grotesque tragedy of the case of Terri Schiavo. Surgical Onfections, v.6, n.1, p.01-05, 2005. 459 A Suprema Corte dos EUA não se manifestou no pleito, havendo apenas a decisão do Associate Justice Anthony Kennedy. Posteriormente, a Corte recusou-se a decidir o pleito final para evitar a retirada dos sistemas, o que é compreensível à luz do precedente Cruzan, no qual a Corte deixara expresso que a Constituição assegura “a competent person a constitionally protected right to refuse life-saving hydratation and nutrition”, bem como afirmara que incumbe aos estados traçar os padrões para o exercício deste direito em nome de incapazes. Cf. BARIE, Op. cit., p.04. 230 dezenas de ações e recursos judiciais, uma lei estadual destinada ao caso (Terri’s Law), manifestações do Senado e atuações dos executivos estadual e federal. Nesta saga, há vários elementos de relevo: (a) alegação de que a vontade pretérita de Terri não seria respeitada, especialmente após o posicionamento da Igreja Católica, religião praticada pela enferma; (b) acusações de maus-tratos pelo curador; (c) tentativa – sem sucesso – de obtenção de um divórcio, pelos pais de Terri, pois Michael seria adúltero; (d) indicação de três curadores ad litem; (e) declaração de inconstitucionalidade da Terri’s Law; (f) atuação do Governador da Flórida e do Presidente dos EUA para impedir a retirada dos sistemas de suporte vital; (g) atuação do Senado, que chegou a convocar Terri a lá comparecer quando fora exarada, pela terceira vez, uma ordem judicial de retirada dos sistemas; (h) três retiradas dos sistemas e duas resinserções, todas por decisão estatal; (i) necessidade de aparato policial no ambiente hospitalar; (j) participação dos movimentos pró-vida e pró-escolha; (l) diversos médicos, alguns sem qualquer acesso à doente, opinaram publicamente sobre seu estado, inclusive com demonstrações de curas milagrosas; (m) alegações de que Terri sofreria de fome e de sede, embora os profissionais da saúde afirmassem que ela estava cercada de cuidados e que, em seu estado, não era capaz de ter essas sensações. Ao final, depois de mais de sete anos de contenda judicial e quinze de enfermidade, a decisão autorizando a retirada dos sistemas foi cumprida e Terri faleceu460. A inteira trama iniciou-se, como agora admitido pelos litigantes, por dinheiro. A personalidade pretérita de Terri e os seus melhores interesses foram o campo de batalha entre seus pais e seu marido. Como pano de fundo, o intenso conflito de interesses entre os pais e seu representante, inflamado por dois antagonistas da política estadunidense, os grupos pró-vida e pró-escolha461. O caso traz à superfície todas as críticas e problemas ligados à representação de um agente ostensivo pretérito, ao julgamento por substituição, e à definição dos melhores interesses, além, é claro, da intensa politização e exposição midiática do assunto morte com intervenção, dois elementos que serão tratados à frente, no Capítulo 4. 3.2.1.4 Notas conclusivas sobre os sujeitos do consentimento O estudo realizado permite algumas notas conclusivas. Em primeiro lugar, nem todo o titular está apto para dispor de posições jurídicas subjetivas de direitos 460 461 Cf. BARIE, Op. cit., passim. Cf. BARIE, Op. cit., passim. 231 fundamentais. Para que esteja, é preciso que seja um sujeito do consentimento, isto é, que apresente as características da agência ostensiva no momento relevante para o consentimento. Há uma miríade de casos duvidosos, para os quais os sistemas jurídicos estipulam estratégias para que o consentimento seja suprido ou verificado. Dentre as estratégias, somente funcionarão como justificação procedimental pelo consentimento do titular aquelas que forem efetivamente reconduzíveis ao consentimento do titular. É o que acontece no julgamento por substituição, se bem demarcados seus limites, e na representação segundo as instruções do representado. Nas outras estratégias, o que se tem é justificação pelo consentimento de terceiros ou justificação substantiva, modalidades estranhas à disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais462. 3.2.2 Genuinidade do consentimento No tópico anterior conclui-se que, para dispor de posições subjetivas de direitos fundamentais, é preciso que o titular seja reconhecido como um sujeito do consentimento, ou, pelo menos, que esteja em um ponto do espectro no qual seja viável considerá-lo um sujeito do consentimento, embora não ideal-típico. A disposição também pode ocorrer quando existe recondução ao consentimento do titular, principalmente quando ele é um agente ostensivo pretérito. Contudo, não basta que o titular seja um sujeito do consentimento para que seu consentimento seja considerado válido. Em torno do consentimento orbitam condições deveras relevantes, que atuam na sua validade. Para que o consentimento seja genuíno e, portanto, válido, deve atender a alguns princípios básicos. A ordenação dos princípios admite gradações, ao ensejo das circunstâncias de fato e de direito, tal qual acontece, por exemplo, nas diferenças no trato do consentimento pelo direito civil e pelo direito do consumidor. A fim de aferir se o consentimento é genuíno, deve-se, em primeiro lugar, verificar se foi emitido por um sujeito do consentimento. Em segundo lugar, analisa-se se foi proferido livremente, sem o concurso de força, de pressão ou de influências indevidas463, 464 . Em terceiro lugar, deve-se analisar se o consentimento é produto de 462 Acredita-se que em situações exclusivamente patrimoniais, poder-se-ia indagar se as estratégias funcionam como o consentimento do titular. Esta é a inclinação do Código Civil brasileiro. Entretanto, a discussão escapa do tema da tese, que lida com a feição pessoal dos direitos. 463 A referência aqui é, genericamente, à coação, ao estado de perigo e à lesão, tratados pelo Código Civil por defeitos do negócio jurídico, nos arts.121 a 157. Convém lembrar que, para esta tese, interessam os princípios norteadores do consentimento, pois podem ocorrer diferenças no modo como são tratadas as condições do consentimento em num e noutro ramo do direito. Desnecessário referir que a coação é tratada em vários diplomas legais, o Código penal inclusive. BRASIL, Código Civil, Op.cit. 232 uma decisão informada, isto é, se o consentente conhecia adequadamente o alcance e os efeitos do seu ato; é preciso certificar-se de que seu consentimento não tenha sido baseado em erro ou ignorância, e também que não tenha sido dolosamente induzido465. Logo, além do requisito sujeito do consentimento, há duas diretrizes nucleares para um consentimento genuíno, sobre as quais se edificam os demais requisitos, a liberdade de escolha e a escolha informada. Antes de adentrar no exame das diretrizes, informa-se que as condições do consentimento refletem a sua validade e são diferentes da interpretação, do alcance e da eficácia jurídica do instituto466. Imaginando um arco, inspirado em Ruth Faden e Tom Beauchamp, situa-se em uma ponta a completa informação e a completa liberdade de escolha467. Na outra, a ausência total de informação e nenhuma liberdade de escolha. Para um consentimento ser juridicamente válido, não se pode exigir as características da ponta ideal do arco, pois há um amplo espaço para gradação da liberdade e da informação. A validade do consentimento dependerá da maior ou menor proximidade do extremo ideal, e poderá variar à luz das circunstâncias de fato e de direito. Para uma doação de sangue ou para a realização de uma tatuagem, é plausível que um sistema jurídico aceite um consentimento mais distante do ideal, mas, para uma cirurgia de transgenitalização ou para uma doação de órgãos inter vivos, a proximidade do ideal há de ser maior. Note-se que não é o consentimento em si que admite gradações, mas a intensidade das diretrizes liberdade e informação em cada caso. Ainda assim, para que seja válido, será livre e informado. Quais os fatores que influenciam na invalidade do consentimento? Intuitivamente, sabe-se que serão os que obliteram a escolha livre e informada. Portanto, uma escolha forçada e/ou desinformada. Passa-se à sua análise. 464 A força, a pressão ou a influência podem ser ilegítimas ou legítimas. Neste estudo, opta-se por empregar a palavra indevida para caracterizar a força ou pressão externa, sem a análise da sua legitimidade, pois a última pode dar ensejo ao entendimento de que, se legítima a força ou pressão, válido o consentimento. Contudo, é deveras discutível a afirmação, pois pode haver invalidade do consentimento por força ou pressão externas quando é apropriado considerá-las legitimadas, como a que ocorre quando alguém tenta reaver um bem ou equacionar uma relação anterior por meio da força ou da pressão. O ato é justificável e até legítimo, mas o consentimento daí surgido não o será. Para maiores esclarecimentos: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.132 e ss. 465 O Código Civil também lida com a questão, nas hipóteses de erro ou ignorância e dolo. Há, ainda, a simulação, que pode afetar o consentimento. BRASIL. Código Civil. Op.cit. 466 No direito brasileiro, ver, sobre todos: AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, passim. 467 Ruth Faden e Tom Beauchamp denominam a linha de espectro de autonomia. FADEN, Ruth. BEAUCHAMP, Tom L. A history and theory of informed consent. Oxford: Oxford University, 1986. Comentam e empregam a posição dos autores, BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.129 e ss. 233 3.2.2.1 A liberdade de escolha O que caracteriza uma escolha forçada? Sugere-se que uma escolha será forçada na presença de duas condições: (a) a intervenção de um agente tentando impactar os interesses do pretenso consentente, que apreende a tentativa; (b) a força ou a pressão exercidas são determinantes para o consentimento468. A força ou a pressão para o consentimento ocorrem de formas diversas, de modo direto ou indireto. Para que a escolha seja forçada, a origem da pressão ou da força é externa ao sujeito. Caso seja interna (e.g., um transtorno mental severo) estar-se-á no patamar da caracterização de um sujeito do consentimento. Além de externa, enseja impacto negativo nos interesses do consentente, atacando sua habilidade de agência. Por isso, a força e a pressão externas que causam uma escolha forçada são usualmente negativas, ou seja, retratam uma ameaça atual ou iminente, física, psicológica ou econômica, que diminui o âmbito de escolha. A ameaça deve ser vista de que ângulo? De quem a impõe ou de quem a recebe? Por vezes, um indivíduo que efetua uma ameaça não a percebe como tal. O alvo da ameaça pode também não a distinguir. É por esta razão que Deryck Beyleveld e Roger Brownsword defendem que a força ou a pressão externas são mais bem avaliadas se levados em consideração os dois ângulos. Serão caracterizadas como força ou pressão externas se houver a tentativa de sua imposição combinada à apreensão pelo indivíduo que é alvo469. Na escolha forçada, é relevante a existência de nexo causal entre a força ou pressão externa e a decisão tomada. Ausente o nexo, ausente a escolha forçada470. 468 As condições são inspiradas nas expostas por Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, sem refleti-las em sua integralidade. Para eles, as condições são três. A terceira é a legitimidade da relação de base. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.138; 127. 469 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.137. Nitidamente, há variações no sujeito alvo da pressão ou força externas que influem na sua caracterização, como a idade, o sexo, as circunstâncias, principalmente a hipossuficiência e a vulnerabilidade em suas diversas manifestações. No Brasil, essas variações são levadas em consideração em muitos ramos do direito. Por exemplo, no Código Civil: “Art. 152. No apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela”. BRASIL, Código Civil, Op.cit. 470 Ilustrativamente, o nexo de causalidade pode ser quebrado pelo que se denomina alvo robusto, um indivíduo que resiste à força ou pressão externa com maior facilidade que os demais. Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.136-138. Terrance McConnell narra um caso que, embora não seja exatamente força ou pressão indevidas, tendendo à influência indevida, caracteriza bem o alvo robusto. Um enfermo necessitava de um transplante inter vivos. Vários membros de sua família foram testados. Os exames preliminares indicaram que somente um dos seus primos era compatível. O primo, adulto e capaz, recusou-se a prosseguir com os testes e a ser doador. A família tentou convencê-lo. Não conseguindo, buscou suprir seu consentimento judicialmente, sem êxito. Na decisão, considerou-se que ninguém 234 É de se indagar se a pressão ou a força externas positivas caracterizam a escolha forçada. Serão positivas se ampliarem o âmbito de escolha do indivíduo, mediante ofertas. É usual não vislumbrá-las como elementos que invalidam o consentimento, exatamente em virtude da ampliação do ambiente de escolha. Porém, há ofertas que podem atuar sobre a habilidade de agência do consentente. Muitas vezes é o que ocorre quando a relação de base é assimétrica ou ilegítima, abrindo margem para a exploração das vulnerabilidades e da hipossuficiência471. Como diz Cass Sunstein, nem sempre uma maior gama de escolha significa maior liberdade472. A título exemplificativo, têm-se as atuais discussões sobre o comércio de órgãos, tecidos e partes do corpo humano, tanto mais nos casos para transplantação inter vivos. Certo é que a oferta de compra de um órgão de um indivíduo saudável, mas que está, junto à sua família, em situação de miserabilidade, é uma alternativa a mais. Porém, a relação ex ante é de assimetria, bem como é de se duvidar, autenticamente, que pessoas que não estejam em condições de adversidade econômica ou educacional consintam livremente em vender órgãos473. No Brasil, um debate acerca da liberdade de escolha e das ofertas surgiu na aprovação da transação penal, pois argumentou-se que ela traria consigo um consentimento inválido, em função do peso da possibilidade de alguém, mesmo inocente de fato, tornar-se réu em um processo penal. Também no Brasil, ganhou as manchetes uma pesquisa científica multicêntrica e com financiamento estrangeiro, na qual os sujeitos de pesquisa recebiam uma pequena quantia em dinheiro para permitirem ser picados pelo mosquito transmissor da malária. Os sujeitos pertenciam a populações ribeirinhas muito vulneráveis econômica e socialmente, além de não contarem com amplo acesso à proteção e promoção da saúde. Embora se tratasse de uma oferta facilmente recusável, a pequena quantia, para os indivíduos em pauta, era bastante significativa, assim como o contágio da malária não lhes causava espécie, uma poderia ser compelido a ser um doador em vida, ainda que os riscos não fossem de morte para o doador, mas fossem para o receptor. McCONNELL, Op. cit., p.79 e ss. 471 Nestes termos, não se adere à proposta de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword. Para os autores, a força ou pressão externas positivas estão, de regra, excluídas da escolha forçada. Com isso não querem dizer que toda e qualquer oferta conduzirá a um consentimento válido, mas que, aprioristicamente, a oferta não caracteriza a escolha forçada do mesmo modo que a ameaça, submetendo-se a regimes menos estreitos de exame. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.137 e ss. 472 SUNSTEIN, Cass R. One case at a time: judicial minimalism on the Supreme Court. Massachusetts: Harvard University, 1999. 473 Já se mencionou que o comércio de órgãos e tecidos no Brasil é constitucionalmente vedado. Porém, a discussão é acirrada em muitos países, tanto naqueles cuja população costuma ser compradora, quanto naqueles cuja população usualmente situa-se no outro polo. Para uma interessante leitura, que não traduz o ponto de vista desta doutoranda, ver: RADCLIFFE-RICHARDS, J. et al. The case for allowing kidney sales. The Lancelot, n.352, p.1950-1952, 1998 (Apresentado no International Forum for Transplant Ethics). E também: MCCONNELL, Op. cit., p.117-134. 235 vez que era bastante ordinária na região474. Na mesma senda, tem-se as ofertas destinadas a pessoas portadoras do HIV sem acesso à proteção e recuperação da saúde para serem sujeitos de pesquisa em novos fármacos para a doença475. Acredita-se que todos os casos são bastante discutíveis. Por conseguinte, a liberdade de escolha, em razão da oferta, precisa ser cuidadosamente verificada à luz dos elementos de cada um. Por isso, nesta tese, entende-se que as ofertas podem, sim, ser elementos que invalidam o consentimento, por enquadrarem-se na escolha forçada. Em primeiro lugar, porque há situações nas quais é difícil distinguir uma ameaça de uma oferta. Feinberg oferece alguns exemplos. Para o autor, uma oferta não ameaça dano diferente do que ocorreria e isso a diferencia das ameaças, que trazem novas possibilidades de dano. Mas ele sustenta que há ofertas coercitivas, como no caso de um homem que oferece pagar o tratamento caríssimo de uma criança muito enferma, desde que a mãe, que não tem meios de arcar com o tratamento, mantenha relações sexuais com ele por um determinado período, ou que se case com ele. É uma oferta que explora o poder de alguém e a necessidade desesperada da vítima476. Um exemplo real é bem vindo. Na década de 1970, a Suprema Corte dos EUA deparou-se com uma interessante indagação a respeito da matéria. O Sr. Alford foi acusado por homicídio qualificado, crime cuja pena era a de morte. As provas contra o Sr. Alford eram fortes, mas ele insistia em declarar-se inocente. A promotoria ofereceu-lhe a possibilidade de declararse culpado e desqualificar o crime, para homicídio simples, cuja pena variava entre 2 e 30 anos de prisão. O Sr. Alford, com advogado indicado pelo Estado, aceitou a 474 Cf. WOLTMANN, Angelita. Comitês de ética em pesquisa no âmbito latino-americano (BrasilArgentina): transdisciplinaridade em prol da dignidade. Santa Maria, 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) – UFSM. FIGUEIREDO, Talita. Malária. Fiocruz vê falha em tradução. Pesquisa omitiu o uso de “iscas humanas”. Folha de São Paulo, 22 de dezembro de 2005, Cotidiano. 475 O assunto é objeto de intensa contenta entre os estudiosos da bioética e veio à tona em virtude de uma pesquisa realizada com gestantes da Tailândia e de países da África, regiões de endemia de HIV, que não ofereciam às enfermas fármacos para a prevenção da transmissão vertical do vírus. A pesquisa separou as gestantes em dois grupos: um recebeu placebo e o outro, o antiretroviral mais eficaz conhecido. No grupo que recebeu o placebo, o índice de transmissão foi previsivelmente alto. Ora, sem qualquer acesso à proteção da sua saúde e dos fetos, as gestantes arriscaram a sorte ao consentir participar da pesquisa. Porém, é nítido que o fizeram por causa da vulnerabilidade. Dificilmente uma gestante com pleno acesso à saúde consentiria. Ainda que consentisse validamente, o cuidado com o feto poderia impedir a pesquisa, atacando a sua eticidade. Ou seja, a própria pesquisa seria inviável nos países chamados desenvolvidos. A justificação da pesquisa ocorreu em padrões utilitaristas, sob a alegação de que, sem ela, todas as gestantes ficariam sem a medicação e o índice total de transmissão seria muito mais alto. Sobre o tema, ver: MACKLIN, Double Standards... . Com argumentos favoráveis à realização da pesquisa: LACKEY, Douglas P. Clinical research in developing countries: recent moral arguments (Pesquisa clínica nos países em desenvolvimento: argumentos morais recentes). Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, n.18, v.5 p.1455, set./out., 2002. 476 FEINBERG, Joel. Noncoercitive Exploitation. In: SARTORIUS, Rolf (Ed.). Paternalism. Minnesota: Minnesota University, 1987. p.207-208. 236 transação, dispondo de posições subjetivas de direito fundamental, dentre elas o julgamento pelo júri e seu pleito de inocência. Declarou-se culpado e foi condenado a trinta anos de prisão. Após a condenação, ele interpôs vários recursos, alegando que seu consentimento fora viciado, um produto do medo da pena de morte, o que equivaleria a uma coação. Uma das Cortes de Apelação não considerou livre o consentimento de Alford, uma vez que seu móbile fora o temor da pena de morte. A Suprema Corte, no entanto, reverteu essa decisão, pois uma “escolha voluntária e inteligente entre as alternativas disponíveis ao acusado, especialmente um representado por advogado competente, não é coagida à luz do significado da Quinta Emenda porque foi feita para evitar a possibilidade da pena de morte”477. Nos votos de dissidência, a oferta foi denominada ameaça, pois pesava sobre o acusado uma eventual condenação à morte478. Em segundo lugar, as ofertas podem mostrar-se coativas quando a relação ex ante é de assimetria, marcada pela hipossuficiência e pela vulnerabilidade. As hipóteses acima relatadas das pesquisas com sujeitos pertencentes a populações ribeirinhas e com gestantes portadoras do HIV sem acesso a serviços de saúde adequados demonstram o ponto. As relações anteriores ao consentimento eram demasiadamente assimétricas. O pequeno valor em dinheiro oferecido para que as pessoas se submetessem ao risco de contrair malária ganhava uma conotação inteiramente diferenciada para a população ribeirinha, muito carente de recursos. Em sentido semelhante, arriscar a chance de 50% de receber medicamentos para sua doença e para evitar que um feto a contraia é melhor do que nada. Soa nítido que a assimetria da relação ex ante influencia exageradamente a liberdade de escolha, impactando negativamente os interesses dos agentes. Está-se diante de situações de exploração da assimetria, da evitável vulnerabilidade alheia. Em tópico posterior da tese abordar-se-á a questão da assimetria nas relações. Em terceiro lugar, deve-se considerar que excluir a priori a oferta como um dos elementos que tem o condão de caracterizar a escolha forçada pode gerar muito espaço para justificar procedimentalmente pelo consentimento algumas condutas, quando, na realidade, o consentimento é fruto de escolha forçada por condições adversas. A 477 USA. North Carolina v. Alford, 400 U.S. 25 (1970). Disponível em: http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=US&vol=400&invol=25 . O julgado é comentado e discutido por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.140-142. 478 USA, North Carolina v. Alford, Op. cit. Voto dissidente dos Justices Brennan, Douglas e Marshall. Necessário referir que o esquema legislativo do estado já havia sido discutido na Suprema Corte, sob a alegação de que utilizava a pena de morte como elemento para angariar transações. Um dos Justices que concorreu com o resultado em Alford mencionou expressamente que discordava da linha decisória adotada no caso anterior. 237 margem para o emprego do consentimento como justificação procedimental não pode ser excessivamente ampla, pois poderá dar azo à justificação de inúmeras relações a situações de ou análogas à exploração não-coercitiva 479. Outro ponto que requer algum esclarecimento é a ideia de vontade e de consentimento válido. No direito brasileiro, é comum a referência à manifestação e à declaração de vontade. A palavra vontade, primordialmente, se unida às chamadas teorias subjetivistas do negócio jurídico, assume uma conotação de querer, desejar. No dizer de Antônio Junqueira de Azevedo, psicologismo. Ou seja, o uso de vontade pode levar o intérprete à procura do que o consentente efetivamente quereria, desejaria, circunscrevendo a validade do consentimento, e com ela a liberdade de escolha, a esse sentimento. Tal ideia não merece prosperar sem maiores reflexões. A liberdade de escolha nem sempre será obliterada ou atingida negativamente porque não manifesta o querer subjetivo de quem consente. Imagine-se um indivíduo que sofreu um acidente e se vê diante da alternativa de morrer ou de ter uma perna inteira amputada. Não se afirma que a amputação corresponda ao seu desejo, ao seu querer, à sua vontade. Mas é legítimo afirmar que seu consentimento não é forçado (se atendidas as demais condições, claro), dado que houve liberdade de escolha. Em assim sendo, o uso do termo vontade não se circunscreve ao desejo ou à intenção psicologizada e altamente subjetiva. Com isso, atinge-se outro assunto de muito préstimo. A liberdade de escolha não precisa, para ser atendida, que as alternativas sejam ideais ou, em linguagem comum, 479 A expressão é de Joel Feinberg. O autor publicou um estudo sobre a exploração não-coercitiva, conceituando-a e apreciando-a no ambiente moral e jurídico. No segundo, Feinberg é cauteloso sobre o papel do direito na exploração não-coercitiva não coberta princípio dano (validamente consentida), pois sua justificação é, muitas das vezes, paternalista ou jurídico-moralista. Porém, conclui que o direito, o penal em muito menor intensidade, deve evitar a exploração não-coercitiva, mesmo a validamente consentida, se e quando houver ganho indevido, semelhante ao enriquecimento sem causa, oriundo da exploração das fraquezas – de caráter (virtudes ou defeitos) –, das vulnerabilidades socioeconômicas e educacionais, da credulidade, do desespero e das tragédias alheias. Cabe explicitar um pouco mais o pensamento de Feinberg: A exploração acontece quando um indivíduo tira vantagem de outro, manipulando (play on) as características ou situações enfrentadas. O conceito é composto por três elementos: (a) o ganho e a perda; (b) circunstâncias ou características (e.g., miséria e credulidade); (c) a distribuição de ganhos e perdas. Ao avaliar a exploração e a coação, Feinberg elabora um esquema de quatro combinações: (a) exploração e coerção, como no caso do homem que propõe pagar o tratamento da criança doente, desde que a mãe mantenha com ele relações sexuais; (b) exploração e não-coerção, como no caso da venda de um produto não reconhecido para a cura de uma doença fatal; (c) não-exploração e coerção, como no caso de um policial que rende, em flagrante, um indivíduo que proferiu dois tiros em outro (esta é uma situação de coerção legítima); (d) não-exploração e não-coerção, como acontece em diversos casos nos quais uma pessoa tira vantagem de outra no campo do negócio jurídico. Como menciona o autor, é preciso ter atenção a isso, pois, em sociedades capitalistas, é comum e lícito muitos tipos de vantagens desse porte. FEINBERG, Noncoercitive..., passim. 238 boas. Há momentos nos quais as alternativas são drásticas, mas ainda são alternativas e permitem a liberdade de escolha. Normalmente, o que as diferencia de uma oferta apta a invalidar o consentimento é a ausência de componentes típicos da escolha forçada, ou a atenuação da assimetria da relação ex ante, ou ainda, o fato de as alternativas serem derivadas de algo inevitável, diversamente do que ocorre quando se está diante de vulnerabilidades econômicas, sociais e culturais. Além da força e da pressão indevidas, a influência indevida também pode caracterizar a escolha forçada. Paradigmaticamente, ela acontece quando há uma relação diferenciada, normalmente afetiva, entre os sujeitos, de modo que o consentente pode ser conduzido emocionalmente, sem a calma necessária, a tomar uma decisão480. A situação do possível doador descrita antes seria um exemplo, não fosse a presença de um alvo robusto. Suponha-se que o doador, sob intensa influência da família, resolva consentir, seguindo os conselhos familiares e sem independência. Ainda que na prática seja difícil separar, a influência será indevida se e somente se o indivíduo consentir refletindo o conselho de alguém com quem mantém uma relação diferenciada e seu consentimento não for independente. Se for independente dos aconselhamentos e influências, não haverá influência indevida. Parafraseando Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, há situações de influência indevida que ocorrem em contextos menos carregados emocionalmente, nas quais a relação é permeada por um laço especial de confiança, ou, pelo menos, presumese juridicamente a confiança (médico-paciente, líder religioso-fiel, professor-estudante). Ancorado na confiança, o consentente pode ser mais facilmente induzido. Novamente, definir a influência indevida e o julgamento independente é muito árduo481. Ainda assim, não se pode ignorar a influência indevida, pois pode significar um consentimento inválido. Ela ocorrerá quando o lado dominante da relação abusa da confiança recebida, impedindo ou dificultando a independência do consentente. Para auxiliar na distinção, duas atitudes iniciais são interessantes: (a) separar as ambientes das relações (comercial, de saúde, de educação...); (b) inverter o ônus da prova, lançando-o sobre o polo dominante, solução empregada em muitos contratos consumeristas no Brasil482. Para 480 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.165. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.167-170. A posição dos autores é mais estreita do que a adotada nesta tese. 482 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.167-168. O CDC elenca a possibilidade de inversão do ônus da prova como um direito básico do consumidor, em seu art.6º, VIII. BRASIL. Código de 481 239 exemplificar, suponha-se que em uma clínica de ginecologia e obstetrícia conveniada ao SUS, uma médica depare-se com uma adolescente de 17 anos, cuja gestação era comprovadamente oriunda de violência sexual. Após prestar todas as informações técnicas e legais pertinentes, conforme a boa técnica, a médica, adepta do espiritismo, percebe que a mãe e a filha tendem a decidir pelo abortamento legal. Então, sozinha com a adolescente, a médica menciona que havia vida desde a concepção, que talvez fosse missão da adolescente cuidar do espírito, enfim, instrui-a conforme a sua crença privada. Nesse sentido, exerce influência indevida. De tudo se conclui que, para ser válido o consentimento, há de ser livre, isto é, produto de escolha não-forçada, que se caracteriza pela ausência de pressão ou força externas indevidas – sejam ameaças ou ofertas coercitivas e, em menor medida, ofertas não-coercitivas, bem como pela ausência de influência indevida. Como dito, para adjetivar a pressão, força ou influência de indevidas, haverá de se ter em consideração uma gama de fatores, tais quais as circunstâncias, a (as)simetria da relação de base, os sujeitos envolvidos, o tipo de relação jurídica, as posições jurídicas subjetivas de direito fundamental em jogo, os impactos fáticos e jurídicos na relação de consentimento e nos direitos de terceiros. É, portanto, uma tarefa interpretativa, que, embora não seja rígida e hermética, exige do intérprete e do sistema jurídico delineamentos que ofereçam aos sujeitos das diferentes relações ambientes de segurança jurídica, para que possam exercer os direitos aliados ao consentimento e também apoiar-se na justificação procedimental dele advinda sem assumir riscos desnecessários, produtos de falhas ou dissensos excessivos do sistema jurídico. Repisa-se que o consentimento, mormente na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, é central. Ele põe em movimento relações jurídicas de direito fundamental, modificando-as, criando-as e extinguindo-as. Deve ser levado a sério, assim como a recusa. Então, tanto quanto a inclusão ou exclusão de indivíduos da categoria sujeitos do consentimento, os requisitos da liberdade de escolha, elemento de validade do consentimento, não podem ser demasiadamente frouxos, nem demasiadamente estreitos. Se muito frouxos, a justificação procedimental pelo consentimento amplia-se, com uma abertura para a fragilização de direitos fundamentais em nome do consentimento. Se muito estreitos, fecham-se as portas a muitas relações Defesa do Consumidor. Lei n.8.078, http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm. . 240 de 11/09/1990. Disponível em: que representariam exercício de posições subjetivas de direitos fundamentais. Em ambos, o que ocorre, muitas vezes, é a fuga da justificação substantiva, seja pela aceitação excessiva da procedimental, seja pela sua exagerada inadmissão483. 3.2.2.2 A escolha informada Apenas a escolha livre não é suficiente para um consentimento válido. É necessário que a escolha seja livre e informada. Uma escolha desinformada vicia o consentimento. Tanto quanto a liberdade da escolha, os níveis dos elementos que compõem a informação podem variar, segundo o ramo do direito, a relação de base, os direitos em jogo, etc., ficando mais próximos ou mais distantes do ponto ideal – a completa informação. Passa-se ao exame das diretrizes de uma escolha informada. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword estabelecem dois eixos para o estudo da informação: (a) o conhecimento e (b) a compreensão. Cientes de que cada sujeito do consentimento possui um campo de informação distinto (alguns são especializados em certas áreas, outros têm um amplo e profundo conhecimento, outros, ainda, apresentam significativo deficit de informação, etc.), os autores utilizam os conceitos de conhecimento e de compreensão para compor a informação. Por compreensão, entendem “o significado anexado aos dados no campo de informação do sujeito”. Por conhecimento, “as crenças formadas por um agente com referência aos dados no seu campo de informação e a compreensão que possui de tais dados”. Em assim sendo, a informação carrega consigo as variáveis campo de informação, interpretação de dados e as crenças de sujeitos do consentimento484. Ao pensar na informação, entra-se em uma parte das relações humanas bastante complexa de lidar, a comunicação, que envolve pelo menos dois polos. Um deles pode ser responsável pela desinformação do outro, ou um dos polos pode representar a realidade de um modo muito particular, distorcendo-a sozinho485. Existe ainda o hábito de pensar em situações de assimetria, no qual uma das partes possui uma lacuna informativa e a outra é bem mais inteirada do assunto. Porém, esse hábito não deve 483 Basta lembrar os casos estudados no Capítulo anterior, como o arremesso de pessoas portadoras de nanismo, os adeptos do sadomasoquismo, bem como os dos fiéis religiosos que recusam tratamentos médicos ordinários e, até mesmo, o caso do canibalismo ocorrido na Alemanha. 484 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.145-146. “If this is our model, we will conceive of an agent’s ‘understanding’ as ‘the meaning attached by an agent to data within its informational field’; and we will conceive of an agent’s ‘knowledge’ as ‘the beliefs formed by an agent by reference to the data within its informational field and the understanding that it has of such data’”. 485 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.146. 241 impedir a relevante distinção entre as hipóteses básicas de simetria e de assimetria informativa486. Com atenção a tais premissas, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword apresentam situações, na qual A é o consentente, B recebe o consentimento e C é um terceiro e não há assimetria significativa entre eles: (i) A emite um consentimento (para B) que não satisfaz os requisitos relevantes de conhecimento e compreensão; mas a falta de conhecimento e de compreensão de A não pode ser atribuída a qualquer ação ou omissão indevidas de B nem de C; (ii) em razão de dolo ou de ocultação, ou algo análogo da parte de B, A emite um consentimento (para B) que não satisfaz os requisitos relevantes de conhecimento e compreensão;487. Segundo os autores, em (i), a questão consentimento informado aparece em sua forma pura, mostrando os pré-requisitos para um consentimento válido naquele tipo de relação jurídica, o que conduz ao problema dos níveis de conhecimento e de compreensão, assim como a elementos subjetivos do consentente. Consoante os autores, esse pode se tornar o mais difícil dos casos, se as duas partes houverem agido com cautela e razoabilidade. Ou seja, nem quem recebeu o consentimento, nem quem o emitiu, nem terceiros agiram indevidamente. Pois se A houvesse decidido sem qualquer cautela, sem assumir qualquer responsabilidade por sua linha de escolha, ou fosse negligente com seu campo de informação, não poderia simplesmente arrepender-se, pois nem B, que agiu devidamente, tampouco terceiros de boa-fé poderão suportar o ônus da escolha desinformada de A. O hard case se apresenta quando todos agiram com cautela e razoabilidade, mas, ainda assim, a informação foi insuficiente. Há tensão entre os princípios da fidelidade à vontade do consentente e a segurança jurídica. Para os autores, a solução ideal seria admitir que o consentimento de A não foi produto de uma escolha informada, mas B, que recebeu o consentimento de boa-fé (ou C, se de boa-fé) está em situação desculpável. O que interessa, efetivamente, de tal conclusão é: o consentimento foi inválido e não funciona como justificação procedimental para os atos 486 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.146. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.147. Os autores apresentam três situações. Aqui serão trabalhadas apenas as duas primeiras. No original: “(i) A gives a consent (to B) that does not satisfy the requirements of relevant knowledge and understanding; but A’s lack of knowledge and understanding is not atributable to any blameworthy act or omission by B or C; (ii) because of fraud or non-disclousure, or the like by B, A gives a consent (to B) that does not satisfy the requirement of relevant knowledge and understanding”. 487 242 omissivos ou comissivos de B ou C, mas B ou C não serão responsabilizados, em nome de outras justificações, de cunho substantivo488. Em (ii), não houve a desoneração do dever de informar. Assume-se que quem recebe o consentimento não se desonera do dever de informar, seja porque oculta informações, seja porque não as presta de modo adequado, seja porque o faz de modo tendencioso e equivocado, ou simplesmente não informa. Atualmente, a demarcação e a caracterização do dever de informar são aspectos fundamentais, que merecem muito zelo. Diante da massificação, das relações humanas dia a dia mais impessoais e complexas, da explosão das novas tecnologias e técnicas em ramos diversos, da grande especialização dos saberes, da sociedade do conhecimento e do risco, a assimetria informativa incrementa-se, o ambiente de confiança se dissipa e, mesmo para os mais diligentes, a responsabilidade pelo seu campo de informação torna-se difícil e até excessiva. Cada vez mais, a informação é vislumbrada como um processo dialógico, que culmina com o consentimento ou recusa, e muito menos como uma mera formalidade, um ponto facultativo nas relações489. Por isso, tem-se destinado muitos estudos ao processo de informação, ocorrendo, inclusive, em certos âmbitos, a transferência da responsabilidade de informar àquele que recebe o consentimento. Dessa forma, o dever de informar ganha proeminência. É intuitivo que a natureza e a extensão do dever de informar irão variar de contexto para contexto, de relação jurídica para relação jurídica. Em alguns casos, o dever será simplesmente o de não ocultar determinados fatos; noutros, será um dever de munir a outra parte com dados claros, completos, verídicos, compreensíveis. Poderá o dever ser negativo ou positivo, geral ou específico. Será um dever negativo quando se tratar somente de não se omitir em prestar informações relevantes. Positivo, quando houver necessidade de 488 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150-152. Apesar de sugerirem essa solução, eles lembram que, em casos difíceis, é sempre bom manter o espírito do livre pensamento aberto e não ter certeza demasiada de que se está com a razão. Modo geral, o Código Civil adotou essa linha quanto ao erro ou à ignorância: “Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”. BRASIL, Código Civil, Op.cit. [sem grifos no original]. 489 Nesse sentido, observe-se decisão da Primeira Câmara Cível do TJRJ, quanto a contratos de consumo: “Na verdade, o consentimento é um processo e não uma forma, razão pela qual tem que ser obtido ao final de um indispensável diálogo, através do qual as partes trocam informações e se interrogam reciprocamente, culminando com a formalização da aderência aos termos e condições pelo fornecedor propostas. O consentimento informado, ou consentimento esclarecido, não pode ser visto, pois, como uma simples formalidade. É, sem maiores digressões, o resultado de um diálogo em que fornecedor e consumidor que, imbuídos da mais estrita boa-fé, buscam esclarecer dúvidas, e que não se encerra com o simples lançamento da assinatura do aderente no espaço pelo fornecedor no contrato reservado”. RIO DE JANEIRO. TJRJ. Apelação Cível nº13.481/2009. Primeira Turma. Des. Maldonado de Carvalho. 06/07/2009. 243 informar sobre diversos elementos, com clareza, veracidade, objetividade, adequação e até completude. Geral, quando a relação de base não for embebida por elementos diferenciais. Específico, quando a relação de base contiver especificidades que exijam que a informação verse exatamente sobre elas, como se dá na relação médico-paciente. Na determinação da natureza e da extensão do dever de informar, entram no palco as seguintes variáveis: (a) a boa-fé, principalmente na fase pré-contratual490; (b) o tipo de relação jurídica; (c) os direitos envolvidos e o objeto do consentimento; (d) a vulnerabilidade e a hipossuficiência; (e) o nível de especialização das informações relevantes. Todas as variáveis carecem ser temperadas e equilibradas pela impossibilidade de exigir-se ônus excessivos para aquele que deve informar. Nesse sentido, o dever de informar será mais tênue em relações empresariais, entre partes em situação de simetria e especializadas em seu campo de atuação, ao passo que em relações de consumo será mais intenso491. No Brasil, as questões referentes ao dever de informar vieram à tona com mais intensidade com a vigência do Código de Defesa do Consumidor, no início da década de 1990, logo após a promulgação da Constituição de 1988. O diploma legal permeou não apenas as relações consumeristas. Seu espírito espalhou-se para outras relações, levando os intérpretes a preocuparem-se e revisitarem ângulos tradicionais sobre o consentimento, permitindo sua rediscussão constitucionalizada, o que conduziu a modificações importantes quanto ao dever de informar, sua natureza e sua extensão, 490 A cláusula geral da boa-fé passou por um redimensionamento no direito brasileiro nos últimos anos. Trata-se agora não apenas da boa fé subjetiva, mas também da objetiva, a permear as relações contratuais do início ao final, incluindo a denominada fase pré-contratual. Para compreensão de seus contornos, as palavras de Judith Martins-Costa: “Muito embora ambas as expressões encontrem unidade no princípio geral da confiança que domina todo o ordenamento, cada um desempenha, dogmaticamente, distintos papéis. A boa-fé subjetiva traduz a ideia naturalista de boa-fé, aquela que por antinomia, é conotada á má-fé. Diz-se subjetiva a boa-fé compreendida como estado psicológico, estado de consciência caracterizado pela ignorância de se estar a lesar direitos ou interesses alheios, tendo forte atuação nos direitos reais, notadamente no direito possessório, o que vai justificar, por exemplo, uma das formas de usucapião. Diferentemente, a expressão boa-fé objetiva designa seja um critério de interpretação dos negócios jurídicos, seja uma norma de conduta que impõe aos participantes da relação obrigacional um agir pautado pela lealdade, pela colaboração intersubjetiva no tráfico negocial, pela consideração dos legítimos interesses da contraparte. Nas relações contratuais, o que se exige é uma atitude positiva de cooperação, e, assim sendo, o princípio é a fonte normativa impositiva de comportamentos que se devem pautar por um específico standard ou arquétipo, qual seja, a conduta segundo a boa fé”. MARTINSCOSTA, Mercado e ..., p.612. 491 O ponto merece a busca de equilíbrio, exigindo-se que as diferentes intensidades sejam justificáveis. Se o ônus recair excessivamente sobre uma das partes apenas, impondo-lhe deveres dos quais é muito difícil desonerar-se ou comprovar que o fez, pode-se simplesmente impedir relações, prioritariamente aquelas sobre as quais pairam, em realidade, debates de fundo substantivo. 244 adotando-se, até mesmo, a inversão do ônus da prova em relações especiais e assimétricas492. É relevante, todavia, que o dever de informar seja bem delineado. A segurança jurídica o exige. Mencionou-se antes que a atmosfera do consentimento, precipuamente quando ele é a justificação procedimental para a criação, extinção ou modificação de posições jurídicas subjetivas, atende a dois lados, a vontade do consentente e as expectativas e segurança de quem age ou se omite em função do consentimento. Portanto, é de antemão que os lindes dos deveres de informação devem estar presentes, o que impõe aos sistemas jurídicos a necessidade de traçar as diretrizes e regrar as diferentes relações com uma dose de sofisticação e precisão. Do contrário, arrisca-se a estabelecer um panorama de insegurança para o polo que recebe o consentimento, fazendo-o arcar com ônus demasiados, além de obliterar as relações lastreadas no consentimento, diminuindo a sua importância e, por efeito colateral, impactando os direitos traduzidos no consentimento. Uma vez estabelecida a natureza e a extensão do dever de informar conforme o contexto e o tipo de relação, identificar-se-á a sua quebra, como exposto supra, em (ii). Um exemplar de (ii) é a situação de uma mulher contaminada com o vírus HIV e, apesar de saber, não conta ao seu cônjuge, que segue mantendo com ela relações sexuais desprotegidas. Soa nítido que o consentimento para as relações sexuais desprotegidas aconteceu na ausência de informação relevante que deveria ser prestada pela esposa. Houve quebra do dever de informar493. Resta uma pergunta, todavia. Reconhecida a quebra do dever de informar, o consentimento será necessariamente inválido por desinformado? A resposta é negativa. A quebra do dever de informar gera uma presunção de invalidade do consentimento, mas, de per si, não o invalida. Há outros elementos que se agregam e merecem ser 492 A respeito da discussão constitucionalizada do direito privado e da chamada constitucionalização do direito, impreterível consultar: MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil. Revista Brasileira de Direito Comparado, Rio de Janeiro, v.17, n.17, p. 79-89, 1999. Sobre a importância da leitura constitucionalizada do direito privado após o advento do novo Código Civil: TEPEDINO, Gustavo. Normas constitucionais e direito civil na construção unitária do ordenamento. In: SARMENTO, Daniel; SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Coords.) A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p.309-320. BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). In: SARMENTO, Daniel. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de (Coords.) A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p.203-249. 493 O exemplo é empregado por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150-152; e também por GRECO, Op. cit., p.125. As conclusões da autora são diversas das aqui sugeridas. 245 perscrutados. O primeiro é a substancialidade da informação para a escolha. O segundo, a responsabilidade do consentente por seu próprio campo de informação. O terceiro, a distinção entre fatos e valores. Sustenta-se que unicamente a quebra do dever de informar não enseja a invalidade, porque é espinhoso saber como o consentente teria decidido se recebesse a informação. Prefigurar sobre como teria decidido o marido da mulher contaminada com o vírus HIV se soubesse não é fácil. Seguiria ele mantendo relações sexuais desprotegidas, consentindo em autocolocar-se em risco? Manteria relações sexuais protegidas? Não mais manteria relações sexuais com a esposa?494 Por conseguinte, além da quebra do dever de informar, avalia-se o quão substancial seria a informação para a escolha. Três possibilidades se mostram: (a) fraca, os dados apenas teriam levantado indagações e reflexões que o consentente preferiria ter levantado, mas ainda assim manteria sua escolha; (b) forte, os dados reverteriam a escolha; (c) intermediária, o consentimento ainda existiria, em outros termos e com reservas. Em um tipo-ideal, o nível fraco já pode conduzir à substancialidade, pois é preciso lembrar que o consentente gostaria de ter levado elementos em consideração495. A lacuna informativa advinda da quebra do dever precisa contribuir materialmente para a escolha feita496. 494 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.150 e ss. O elemento de subjetivismo é considerável. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.149-150. “Nevertheless, we suggest that the ideal-typical case here treats materiality in the weakest sense as sufficient. In other words (and now the strong subjectivism becomes apparent), in the ideal-typical case, a consenting agent acts without relevant knowledge or understanding if that agent would judge (sincerely) to be material in the sense that it at least raises a consideration that it would have wished to consider before making a decision as to consent”. A diretriz geral do Código Civil, bem como da jurisprudência brasileira, ou seja, o erro há de ser substancial e escusável, e aceita-se uma margem de subjetividade quando há quebra do dever de informar. 496 Da jurisprudência pátria, colhem-se alguns julgados muito pertinentes aos temas que agora se analisam. No STJ, foi reconhecido um “erro essencial na manifestação de vontade” de uma servidora pública municipal que requereu sua exoneração, apontando expressamente o motivo, sua nomeação, já formalizada, para o serviço público estadual, uma vez que aprovada em certame. Ocorre que a nomeação foi depois tornada sem efeito. Ela requereu seu retorno ao serviço público municipal, alegando o erro substancial. O TJRS negou seu pedido, empregando fundamentalmente conceitos atinentes ao ato administrativo e à sua validade, além de ter considerado que sua escolha fora livre e informada. O STJ reverteu, julgando que se tratava de erro substancial, causa determinante do pedido de exoneração e hábil a viciar sua manifestação de vontade. Aqui se nota a dificuldade de estabelecer a substancialidade da falta de informação. No TJRS, o ato foi considerado válido, nos seguintes termos: “É que tais vícios devem ser concomitantes à manifestação de vontade do agente, de modo que não conduzem à anulabilidade do ato jurídico a coação, o dolo ou o erro resultantes de atos posteriores àquele emanado de vontade livre e consciente, como foi, no caso, o requerimento de exoneração da demandante. Vale dizer, a propósito: se fatos ou circunstâncias posteriores à manifestação da vontade do agente ocasionarem um descompasso com a vontade livremente manifestada em momento antecedente, tal não configura erro, sob o prisma do direito civil. O erro, para conduzir a invalidação do ato praticado sob sua influência, há de resultar de uma falsa representação da realidade pelo agente, que, se a conhecesse, não praticaria o ato jurídico. Ora, no momento em que a autora formalizou o seu requerimento de exoneração do cargo de magistério municipal que ocupava, o ato de nomeação para o cargo similar estadual havia sido publicado no Diário 495 246 Ademais, se o dever de informar varia em profundidade e extensão, o consentente detém, correlativamente, responsabilidade sobre seu campo de informação e pela diligência nas suas escolhas. Ainda que haja quebra do dever de informar, não desaparecem a responsabilidade e a necessária diligência do consentente. Assim, a quebra do dever de informar não será a causa do consentimento quando o consentente agir com negligência, impulsividade, representando a realidade a seu próprio modo, fazendo a contraparte supor que ele possuía conhecimentos e dados que na realidade não detinha. Também não o será quando quem consente estiver em um tipo de relação que exija background informativo especializado ou, ainda, se estiver assessorado – levando aquele que deveria informar a desonerar-se de certos pontos – , mas não seguir o assessoramento, escolhendo precipitadamente. Desonerar completamente o consentente de responsabilidades – salvo exceções especialíssimas, nas quais estão em causa direitos bastante sensíveis ou assimetrias intensas – significa uma clareira ao simples arrependimento, ao desejo de voltar atrás497. Além disso, a quebra do dever de informar se manifesta também pela incompletude dos dados. Imagine-se que uma médica tenha informado apenas alguns riscos e contra-indicações de um procedimento estético. Não se desonerou do dever de informar inteiramente. Porém, dentre as poucas informações prestadas, foi enfática, clara e honesta acerca da impossibilidade de a paciente estar ou ficar grávida durante o tratamento, indicando os riscos em detalhe e oferecendo-se a esclarecer sobre contracepção, dados que a paciente afirma possuir. A paciente consente e, durante o tratamento, engravida e não avisa a médica. Sofrendo os efeitos, alega invalidade do consentimento por falta de informação. Nitidamente, a brecha informativa não foi substancial, tampouco a consentente agiu com diligência, pois afirmara possuir Oficial, existia e produzia efeitos jurídicos. O ato do Governador do Estado que tornou sem efeito a nomeação da autora para o segundo cargo de magistério a que se habilitara não tem o condão de viciar manifestação de vontade realizada anteriormente.” As diretrizes trabalhadas nesta tese levam a concordar com a decisão final, uma vez que a ausência de dados (ainda que por atos administrativos posteriores e de terceiros) era forte, ou seja, a servidora não pediria a sua exoneração se soubesse que não seria nomeada para o serviço público estadual. Seu erro foi substancial e ela atuou com tanta diligência que apontou em seu pedido de exoneração, inclusive, o ato administrativo que a nomeava para o serviço público estadual. Todavia, e.g, se a servidora municipal houvesse solicitado sua exoneração apenas ao ser aprovada em outro concurso público, sua margem jurídica para voltar atrás por invalidade do consentimento seria nitidamente ínfima, pois o ato que tornou sem efeito sua nomeação não teria sido substancial para sua escolha de exonerar-se. BRASIL. STJ. Resp. nº840.841/RS. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura. DJ de 25/05/2009. 497 Em tópico posterior será examinada a hipótese de consentimento revogável, assaz relevante na disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho marcadamente pessoal. Desde já anota-se que a invalidade do consentimento é diferente do consentimento revogável. Infra, item 3.2.2.3. 247 conhecimentos sobre contracepção e negligenciou exatamente a informação que recebera498. Por fim, separar fatos e crenças é determinante. No Capítulo anterior, ao tratar do paternalismo jurídico e seus institutos afins, mostrou-se que trabalhar com fatos e crenças ou valores é distinto. Por vezes, aquele que recebe a informação interpreta-a em conformidade com seus próprios valores ou crenças, não segundo fatos. O dever de informar, habitualmente, cinge-se a fatos, a componentes fenomênicos sujeitos à comprovação. Se, apesar de haver quebra do dever de informar, o consentente aglutinar crenças e valores para guiar a sua escolha, a situação jurídica é a mesma daquele que age com negligência e descuido (frisa-se, jurídica, pois na realidade assumir crenças e segui-las não é negligência). Imagine-se que uma mulher, contaminada com o vírus HIV, procure a ajuda de um padre e de um pastor, que aceitam doações para orar e rezar, sem fazer, expressamente, promessas de cura e sem oferecer informações sobre a enfermidade e os tratamentos cientificamente aceitos. Ela já havia consultado profissionais da saúde, fora informada sobre a doença e os tratamentos, porém de forma lacunosa. Servidora pública, com curso superior, ela faz doações substanciais ao padre e ao pastor e desiste do tratamento médico. Ainda que se entenda que haveria um dever por parte dos religiosos de recomendar a continuidade do tratamento médico, ainda que as informações recebidas pelos profissionais da saúde não tenham sido completas, ela escolheu conforme valores, não quanto a fatos499. Ao mencionar os valores e crenças e o dever de informação, não são apenas as crenças do consentente que importam. Normalmente, o dever de informação será lançado naqueles que detêm domínio e conhecimento sobre dados e fatos, restringindose o dever de informar a essa fronteira. É salutar que assim seja. No dever de informar, as percepções, crenças, valores pessoais de quem dele se incumbe hão de estar excluídas, para que se obtenha a clareza e a objetividade necessárias, além de evitar-se a influência indevida. Resgatando o caso do aborto legal, citado páginas atrás, pensa-se 498 O caso apresenta também a ocultação por parte da paciente, que faltou com a verdade ao não revelar que estava grávida, havendo concorrência de culpas, ou culpa exclusiva da vítima, a depender da interpretação. 499 A ideia foi inspirada em um julgado do TJRS, que considerou válida uma doação feita por portadora do vírus, uma vez que não houve prova de promessa de cura e ela possuía boa condição econômica, social e educacional. Veja-se que, se houvesse promessa de cura e recomendação de abandonar a medicina alopática, a decisão poderia ser diversa, haja vista a exploração não-coercitiva, diante do desespero da mulher, à época, com 39 anos e com diagnóstico positivo para o HIV. RIO GRANDE DO SUL. TJRS. Apelação Cível nº70000993303. 15ª Câmara Cível. Rel. Des. Otávio Augusto de Freitas Barcellos. Disponível em: http://www.tjrs.jus.br. 248 que a médica desonerou-se de seu dever de informar, pois emitiu todas as informações técnicas necessárias. Mas ela foi além, embutindo na informação elementos nãocomprováveis, frutos do seu credo. Seu agir não maculou apenas a liberdade de escolha por influência indevida, mas também seu dever de informar, uma vez que houve contrainformações que, como vetores, poderiam anular a força da informação técnica. Portanto, não é suficiente estipular quem arca com o dever de informar, se de forma geral ou específica, se mediante dever positivo ou negativo. O conteúdo da informação é significativo. Não por outro motivo, os Tribunais costumam mencionar que o dever de informar deve ser “como corolário do princípio da boa-fé objetiva, traduzido na cooperação, na lealdade, na transparência, na correção, na probidade e na confiança. A informação deve ser completa, verdadeira e adequada, pois somente esta permite o consentimento informado”500. Aliás, os olhos não devem voltar-se apenas a quem informa, mas também às diretrizes institucionais e políticas públicas. O caminho percorrido pela Suprema Corte dos EUA a respeito do aborto e do consentimento informado auxiliam no esclarecimento. Após a decisão de Roe v. Wade, alguns estados, cujas legislaturas mostravam-se avessas à legalização do aborto, instituíram regras e roteiros acerca das informações que deveriam ser prestadas pelos profissionais da saúde. Foram impressos panfletos, inclusive. Ao avaliar as regras, a Corte denominou-as a antítese do consentimento informado, uma vez que seu conteúdo era alarmista, tendencioso e não primava pela técnica. Ou seja, o conteúdo da informação visava a dificultar a escolha pelo abortamento, mediante informações valorativas e imprecisas501. Raciocínio análogo perpassa as diretrizes institucionais. Imagine-se que um hospital brasileiro, confessional, desvinculado do SUS, instrua seus profissionais da saúde a ocultar informações sobre o abortamento legal, as técnicas, os recursos disponíveis, os riscos, etc. Ou, diversamente, que os instrua a incutir os valores da confissão religiosa em pacientes que façam jus ao abortamento legal, ou a enfatizar os riscos físicos e psicológicos. A liberdade religiosa, a diretriz institucional e o fato de a paciente ter procurado exatamente a instituição confessional não eximem os profissionais da 500 RIO DE JANEIRO. TJRJ. Apelação Cível nº53.284/2009. 13ª Câmara Cível. Rel. Des. Sergio Cavalieri Filho. DE de 06/11/2009 [sem grifos no original]. 501 USA.Akron v. Akron Center for Reproductive Health. 462 U.S. 416. (1983). Disponível em: http://case law.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1.court=us&vol=462&invol=416. USA. Thornburgh v. American College of Obstetricians and Gynecologists. 476 U.S. 747. (1986). Disponível em: http://caselaw.1p.findlaw.com/scripts/getcase.p1. court=us&vol=428&invol=52. Conferir, ainda: MARTEL, Devido processo..., p.265 e ss. 249 informação objetiva, clara e correta. O dever de informar é aquele condizente com a relação médico-paciente, segundo a boa-técnica, não o da confissão religiosa. O que pode ocorrer é a recusa da Instituição ou dos profissionais em realizar o abortamento ou até o atendimento, encaminhando a paciente para outro serviço de saúde502. Por fim, há que se referir hipóteses nas quais o consentimento é inválido e não funciona como justificação procedimental em virtude da quebra do dever de informar, havendo, porém, justificação substantiva para a ação ou omissão. Esses casos são importantíssimos, uma vez que neles não se utiliza um consentimento hipotético, ou uma interpretação muito expandida do consentimento como justificação, ou seja, não se enfraquece o consentimento e seu potencial de justificação procedimental. Um julgado do TJRS tratou de tópico semelhante com propriedade. Uma adolescente foi submetida a uma cirurgia para a extração de uma hérnia inguinal esquerda, mediante consentimento de sua mãe e representante legal. No momento da intervenção, o médico percebeu outra hérnia, do lado direito, maior e mais grave. Por critérios técnicos, decidiu extrair a hérnia direita. A responsável não fora informada sobre esse risco. Alegou que não consentira com o procedimento de extração da hérnia direita e que não fora devidamente informada. No acórdão, foi reconhecida a falha na informação, mas ponderou-se que a intervenção não fora realizada sob dissenso da genitora. O argumento 502 Nos EUA, os casos de Helga Wanglie e Paul Brophy introduziram algumas luzes no assunto, no que toca à morte com intervenção, embora não digam respeito ao dever de informar. Helga Wanglie, uma senhora octogenária, entrou em estado vegetativo persistente em razão de complicações oriundas de uma fratura do quadril. Após meses de uso de sistemas de suporte vital, a equipe de saúde considerou que seu tratamento era fútil e informou o representante sobre a retirada do suporte vital. Seu marido e representante recusou, alegando que Helga gostaria de ser mantida até o fim. A Instituição hospitalar ajuizou uma ação tentando substituir o representante, pois não havia certeza de que aquele seria mesmo o desejo de Helga e, no entendimento médico, o mais adequado seria a suspensão do suporte vital. Não havia questões econômicas envolvidas, pois Wanglie possuía um plano de saúde que cobria seus gastos. A decisão judicial não viu motivos para substituir o representante e o suporte vital foi mantido, a despeito da compreensão técnica da equipe de saúde. Na situação descrita, percebe-se que os profissionais foram compelidos a dar continuidade a um tratamento com o qual não concordavam, respeitando a recusa do representante de Helga. A discussão sobre a liberdade de consciência não foi o mote do caso e não houve maiores debates a respeito, pois Helga faleceu poucos dias após a decisão. Já no caso de Paul Brophy, a decisão judicial tentou equacionar os direitos do paciente e os dos profissionais da saúde. A esposa de Paul, sabendo que ele manifestara em família que não gostaria de ser mantido em estado vegetativo persistente e com sistemas de suporte vital, solicitou a suspensão do tratamento. Foi uma decisão difícil para ela, católica, mas ela respeitou a autonomia pretérita do marido. A Instituição hospitalar, no entanto, recusou-se a retirar o sistema de suporte vital, considerando a conduta antiética. No Judiciário, decidiu-se que o suporte vital deveria ser retirado, mas que o paciente poderia ser transferido para outro local, a fim de não violar a liberdade de consciência dos profissionais. Observe-se, portanto, que a divergência entre os representantes e as instituições e equipes de saúde não foram produto da falta ou da lacuna informativa. Ainda que discordem da escolha feita, cabe aos profissionais da saúde prestar as informações adequadas e corretas, demonstrando as alternativas. Rememora-se que nos EUA é reconhecido o direito dos pacientes de recusar tratamentos médicos, ainda que sejam de manutenção de vida. Cf. McCONNELL, Op. cit., p.59-61. 250 final é o que realmente interessa, qual seja, a gravidade da hérnia extraída, ainda que mediante um consentimento inválido ou ausência de autorização, justifica a decisão e o método cirúrgico. Trata-se de uma justificação substantiva503. O que se conclui é que o dever de informar é amoldável em sua natureza e extensão. Seguindo variáveis, um sistema jurídico precisa oferecer segurança nesse aspecto, delineando os contornos do dever, a fim de preservar os direitos albergados no consentimento e a sua seriedade como justificação procedimental. A tarefa é árdua e complexa, sem ser impossível504. Como linhas gerais, extrai-se que: (a) se o consentimento for desinformado sem que tenha havido qualquer quebra do dever de informar nem qualquer negligência ou falta de zelo por parte do consentente, ele não será justificação procedimental, mas, nas circunstâncias, poderá haver outras justificações para os atos daqueles que atuaram com fulcro no consentimento; (b) quando houver quebra do dever de informar, de regra não haverá justificação procedimental pelo consentimento, a menos que, alternativa ou conjugadamente: (b.1) a falta de informação não tenha sido substancial para a escolha do consentente; (b.2) o consentente tenha agido com negligência, falta de diligência (ou mesmo com má-fé) ou escolhido com base em suas próprias representações, sem que elas sejam reconduzíveis à falta de informação. Existe, ainda, a possibilidade de haver lacuna informativa, não haver justificação procedimental pelo consentimento, mas existir uma justificação substantiva aplicável. Na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, a informação, critério de validade do consentimento, segue as mesmas orientações. Em inúmeras ocasiões, a disposição envolverá elementos bastante delicados, de modo que atenção especial precisa ser endereçada ao processo de informação, com exigência de condutas que visem a maximizar seus resultados e a assegurar que seja lastreado na veracidade, na integridade e na boa-fé, mediante informações relevantes, claras, precisas, adequadas e completas. Mesmo em relações de disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho marcadamente pessoal, as variáveis acima mencionadas entram em cena, influindo na extensão e na natureza do dever de informar, sem demérito, todavia, da relevância da conduta não-negligente e cuidadosa do consentente, isto é, sua responsabilidade por seu campo de informação e por sua escolha. 503 RIO GRANDE DO SUL. TJRS. Apelação Cível nº70024182974. 9ª Câmara Cível. Rel. Des. Tasso Caubi Soares Delabary. DE de 24/09/2008. 504 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.182-183. 251 3.2.2.3 A manifestação e a interpretação do consentimento Os assuntos manifestação e interpretação do consentimento oferecem margem para uma tese específica. Neste estudo, serão sucintamente abordados aspectos elementares sobre a interpretação do consentimento, atendendo ao que se considera relevante sob o viés constitucional, tomando por base os dois princípios vetores aplicados à disposição de posições subjetivas de direito fundamental marcadamente pessoais, quais sejam, a fidelidade à vontade do consentente e as expectativas legítimas daquele que recebe o consentimento. Serão vistos: (a) a manifestação do consentimento; (b) a revogabilidade do consentimento; (c) a interpretação do consentimento. 3.2.2.3.1 A manifestação do consentimento: interpretação e características A expressão do consentimento é parte necessária e inicial à sua interpretação. Retoma-se a já repetida ideia de que o consentimento precisa ser externado direta ou indiretamente, sendo relevante evitar a mera hipótese ou a mera presunção de que o sujeito consentiria505. A afirmação fica tanto mais forte quanto mais intenso for o papel do consentimento como justificação procedimental, atingindo seu clímax em situações nas quais o consentimento é a única justificação para a criação, extinção ou modificações de posições subjetivas, especialmente as de direito fundamental de cunho pessoal, como ocorre na disposição506. No que toca à disposição, a interpretação da expressão do consentimento alia-se às considerações formuladas no primeiro item deste Capítulo, fazendo concluir que a extensão, o alcance e os impactos fáticos e jurídicos da disposição correlacionam-se à 505 Não se está a negar que a expressão do consentimento seja em si mesma interpretativa, isto é, há comportamentos que significam consentimento e existe o consentimento tácito. Porém, o consentimento hipotético, aquele que se presume que um sujeito razoável emitiria ou emitirá, se estivesse ou quando estiver em condições, não se confunde com tais figuras, aproximando-se muito mais de ficções jurídicas. 506 “Consent (as the basis for a procedural justification) assumes significance in the context of a transaction between agents. In such context, by consenting, agent A essentially signals one of two things: either a willingness in the part of A to modify its position in relation to the particular background scheme of rights and duties, permissions and immunities, and the like, that regulates the relationship between A and fellow agent B (the recipient of consent); or a willingness on the part of A to put in place a new relationship with B, this might be by virtue of some simple dynamic (such as the giving of a promise or agreement to extend of goods) or it might be by virtue of more complex institutional set (as is the case, for example, if A invokes the law of contract or the law of marriage) or regulated scheme (such as those licensing assisted-conception) or physician assisted suicide). Where A thus signals consent, and where that consent satisfies the criteria of validity, thus A is precluded from asserting that B may not justifiable rely on, or hold A to, the agreed change of position on the terms of the new relationship. None of this, however gets to the first base unless A has actually signaled consent”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189 [sem grifos no original]. 252 expressão do consentimento. Quanto mais fortes os primeiros, mais salvaguardas à manifestação do consentimento507. Uma vez externado e válido o consentimento, como se interpreta a manifestação? Sabendo-se que o consentimento, quando justificação procedimental para a criação, modificação ou extinção de posições jurídicas, envolve dois pólos – quem consente e quem recebe o consentimento –, percebe-se que há uma tensão potencial a reger a interpretação. De um lado, as visões subjetivas, as intenções, de quem exterioriza o consentimento. De outro, as visões subjetivas de quem recebe o consentimento. Se as diretrizes interpretativas voltarem-se ao primeiro lado, ter-se-á um modelo subjetivo, que prioriza a vontade psicologizada do consentente. Se voltadas ao outro lado, ter-se-á um modelo objetivo, que prioriza os aspectos exteriores da manifestação e a leitura feita por quem a recebe. São as conhecidas teses subjetiva e objetiva, em molde puro, do consentimento508. Cada uma é one-sided, e nisso residem basicamente as suas falhas. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword demonstram, de modo convincente, que o direito lesionará princípios de monta se for conduzido pelo subjetivismo ou pelo objetivismo puros. Os princípios atingidos pelas formas puras de interpretar o consentimento são traduzidos na fidelidade à vontade do consentente, onde jaz sua liberdade, e na consideração das expectativas justificadas daquele que recebe o consentimento, onde jazem a confiança e a segurança jurídicas, bem como a tutela dos terceiros de boa-fé. Assim, considerando que A seja o consentente e B seja quem recebe o consentimento, os autores afirmam que a tese subjetiva falha por descartar: (a) a aferição da conduta de A, fator crítico para identificar onde está a raiz de interpretações divergentes do consentimento; (b) a aferição da expectativa justificada de B. Já a tese objetiva peca por descartar: (a) os elementos subjetivos que permeiam o consentimento 507 Em realidade, os sistemas jurídicos adotam técnicas deste tipo em uma plêiade de relações permeadas pelo consentimento. Basta ver que para o casamento, os testamentos, a doação de órgãos inter vivos, os padrão exigidos para a manifestação do consentimento são reconhecidamente fortes, assim como o são naqueles países que aceitam a ortotanásia. Já para relações menos impactantes, como a compra e venda de alimentos, o transporte de pessoas, os padrões são nítida (e adequadamente) bem menos exigentes. Mais à frente tratar-se-á do tópico. Tangenciando o assunto: FEINBERG, Joel. Legal..., p.9 e ss. Supra, Capítulo 2, item 2.3.2.1.3. 508 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.187-196. No Brasil, são conhecidas as teses voluntaristas (pela gênese) e as objetivas (pela função) do negócio jurídico. Ambas são alvo de críticas. Cf. AZEVEDO, Op. cit., p.4-15. 253 de A; (b) os elementos subjetivos da conduta de B, fator crítico para solucionar divergências interpretativas509. Por isso, os autores partem de um tipo-ideal de interpretação da manifestação do consentimento: O agente A, subjetivamente pretendendo consentir com X, de forma pessoal, distintiva e definitiva, e inequívoca, expressa ex ante (i.e., prior) consentimento com X; e, mesmo havendo uma demora entre o consentimento de A quanto a X e a realização de X, A subjetivamente mantém a intenção de consentir com X.510. O tipo-ideal pende para a tese subjetiva, ou seja, à intenção do consentente, sem desconsiderar elementos da tese objetiva. A tendência à tese subjetiva é motivada na necessidade de evitar riscos de empregar-se a manifestação do consentente como uma máscara que impede a visualização da sua intenção (subjetiva), o que ampliaria demasiadamente o consentimento como justificação procedimental. Isto é, caso o ponto de partida fosse a tese objetiva, os espaços para o mau uso do consentimento como justificação procedimental abrir-se-iam muito511. Porém, como dito, não se negligenciam pontos da tese objetiva, em nome da confiança e da segurança jurídicas, além da proteção dos interesses da contraparte e de terceiros de boa-fé. Assumindo que A subjetivamente não tenha tido a intenção de consentir, o tipo-ideal de interpretação leva a crer que A não consentiu. Mas quais as possibilidades e consequências para B dessa leitura do consentimento? Para equilibrar a tensão potencial, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword formulam combinações básicas de comportamento para A e B, anotando as prováveis soluções. Quanto ao agente B: B(i): B não acredita honestamente que A expressou o consentimento; B(ii): B acredita honestamente que A expressou o consentimento; B(iii): B não acredita razoavelmente que A expressou o consentimento; B(iv): B acredita razoavelmente que A expressou o consentimento; B(v): B não acredita honesta e razoavelmente que A expressou o consentimento; 509 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189. No original : “Agent A, subjectively intending to consent to X, personally, distinctly and definitely, and unequivocally, signals ex ante (ie prior) consent to X; and, where there is a delay between A consenting to X and X being done, then A subjectively maintains the intention to consent to X”. 511 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.189-191. 510 254 B(vi): B acredita honesta e razoavelmente que A expressou o consentimento512. Quanto ao agente A: A(i): A pretende que os demais pensem (incorretamente) que ele pretende consentir; ou A é negligente, no sentido de ser indiferente sobre se os demais formam a impressão correta ou incorreta a respeito; A(ii): A falha em tomar o cuidado razoável para impedir que outros agentes formem a impressão incorreta sobre a sua intenção de consentir; e A(iii) A toma o cuidado razoável para impedir que outros agentes formem a impressão incorreta sobre a sua intenção de consentir513. Em B(i) e em B(v) não há razões que justifiquem o afastamento do tipo-ideal tendente à tese subjetiva, pois quem recebe o consentimento acredita com honestidade ou com honestidade e razoabilidade que A não pretendia consentir. Ciente disso, o consentimento de A não será justificação procedimental para comportamentos de B514. À primeira vista, B(ii) e B(iv) seriam casos fáceis. Mas não são. Se eles justificarem sozinhos o afastamento do tipo-ideal, acontecerá sua inversão e será adotada a percepção de B sobre o consentimento. Desta forma, há duas considerações relevantes. Primeira, a honestidade de B, sozinha, não produz a modificação do tipo-ideal. É uma condição necessária para um eventual afastamento do tipo-ideal, sem ser suficiente. Raciocínio semelhante aplica-se a B(iv), pois B pode acreditar razoavelmente que A consentiu, sem que creia nisso honestamente. Por exemplo, um tatuador é amigo de uma moça, que pretende fazer uma tatuagem muito pequena e discreta. Ele sabe disso. Porém, o desenho que ela escolhe, a forma como expressa seu consentimento e o preço que aceita para a tatuagem indicariam razoavelmente, a terceiros, que ela consentiu em fazer uma tatuagem grande e nada discreta. O tatuador poderia razoavelmente acreditar que ela consentiu, sem que acreditasse, honestamente, que ela pretendia consentir com aquela tatuagem. Assim, percebe-se que a razoabilidade e a honestidade sozinhas não 512 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.190. No original: “B(i): B does not honestly believes that A has signalled consent; B(ii): honestly believe that A has signalled consent; B(iii): B does not reasonably believes that A has signalled consent; B(iv): B reasonably believes that A has signalled consent; B(v): B does not honestly and reasonably believes that A has signalled consent; B(vi): B honestly and reasonably believes that A has signalled consent”. 513 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.193-194. No original: “A(i): A intends that others should think (incorrectly) that he intends to consent; or A is reckless in the sense that he is indifferent whether other agents form the correct or incorrect impression; A(ii) A fails to take reasonable care to avoid other agents forming the incorrect impression as to his intention to consent; and A(iii) A takes reasonable care to avoid other agents forming the incorrect impression as to his intention to consent”. 514 Ilustração singela é a de um médico que trata um paciente acreditando, honesta e razoavelmente, que o paciente não pretendia consentir. Seu ato até pode ser justificado, mas a justificação não estará no consentimento do paciente. Cf. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.191. 255 são hábeis a afastar o tipo-ideal. Cada característica é necessária para o afastamento, mas isoladas são insuficientes, chegando-se a B(vi), que precisa ser combinado ao comportamento de A. O afastamento do tipo-ideal justifica-se quando B(vi) combinar-se com A(i) ou com A(ii), bem como quando ocorrer a combinação entre B(ii) e A(i). Nas demais combinações, o tipo-ideal segue regendo o raciocínio, embora se reconheça que B poderá alegar seu equívoco, buscando outras justificações para sua ação ou omissão. Conforme Deryck Beyleveld e Roger Brownsword, o hard case clássico é a junção de A(iii) com B(vi). Nele, recomendam que a diretriz do tipo-ideal conduza o raciocínio, com atenção aos fatos e consequências jurídicas de cada caso515. Padrão análogo se aplica se A pretendesse consentir e B assumisse os comportamentos descritos de B(i) a B(vi)516. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword pretendem que o tipo-ideal seja adotado nas mais diversas relações em que há consentimento. Não há motivos para discutir aqui se é o adequado aderir ao padrão de modo amplo e generalizante. Mas há razões para adotar o tipo-ideal tendente à tese subjetiva na disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho pessoal, porque são relações delicadas, nas quais o titular sai do polo dominante de uma relação jusfundamental. Aceitar a tese oposta ou uma mais suave fragilizaria a proteção dos direitos fundamentais, além de expor direitos dos não-consententes e de terceiros. Num modelo ideal, o consentimento seria pessoal, expresso, anterior, inequívoco e definitivo. Por óbvio, o modelo não é viável em forma pura no mundo real, tampouco é recomendável, na miríade de relações permeadas pelo consentimento, pautar-se apenas e aprioristicamente nesse modelo, sob pena de simplesmente impedir relações ou retirar-lhes a espontaneidade. Algumas notas breves sobre cada um dos elementos, sempre com vistas à disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho pessoal. 515 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.189-195. Com as inversões lógicas, claro. Por exemplo, se uma paciente pretende fazer dois procedimentos cirúrgicos estéticos de uma vez (não havendo contra-indicações) e o médico compreende honesta e razoavelmente que deveria realizar um procedimento por vez, haveria a necessidade de duas intervenções cirúrgicas. Para que o intérprete se aparte do tipo-ideal, seria preciso a combinação de B(v) ou B(i)com A(i) ou A(ii). BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.195. 516 256 O ideal é o consentimento pessoal. Na disposição, é condição necessária que seja pessoal ou, pelo menos, reconduzível claramente ao titular, mediante representação convencional ou mediante linhas bem definidas de julgamento por substituição. Não sendo assim, a justificação não será procedimental por consentimento do titular, de sorte que ou não haverá justificação, ou ela será substantiva ou procedimental por consentimento alheio, descaracterizando a disposição. Ao que foi escrito acerca da recondução ao consentimento do titular, acrescenta-se que acontecem situações problemáticas de manifestação, dentre as quais se destacam: (a) quando o representante é aparente, ou seja, quem recebe o consentimento acredita honesta e razoavelmente que se trata de um representante convencional de A, sem que isso seja a realidade; (b) quando B é induzido, dolosa ou culposamente, pelo representante convencional, a apoiar-se no consentimento. Em ambas, a conduta de B poderá ser procedimentalmente justificada pelo consentimento. Em outras situações de representação convencional ou de julgamento por substituição, emprega-se a mesma linha de interpretação suprarreferida, fundada no tipo-ideal517. O ideal é o consentimento manifestado, isto é, positivamente indicado, de forma escrita ou verbal, por sinais, por meio eletrônico ou por comportamentos, de modo tácito ou expresso. A indicação positiva ingressa ou em um esquema formal e estruturado ou em um esquema informal e menos estruturado. De fato, a forma e o modo de indicação positiva não são tão relevantes ao tipo-ideal de consentimento amplamente considerado (i.e., aplicável a múltiplas situações de consentimento)518, embora ganhem relevância em certos casos de disposição de posições subjetivas de direito fundamental. À partida, parece concebível asseverar que a disposição de posições subjetivas de direito fundamental deveria pautar-se por um consentimento expresso, formal, com o alcance e os lindes espaço-temporais bastante delineados. Todavia, basta lembrar um caso de disposição para que se note que tal proposição é disparatada519. Uma relação 517 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.198-199. No Código Civil brasileiro, a regra geral é: “Art. 118. O representante é obrigado a provar às pessoas, com quem tratar em nome do representado, a sua qualidade e a extensão de seus poderes, sob pena de, não o fazendo, responder pelos atos que a estes excederem. Art. 119. É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem com aquele tratou”. 518 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.199-200. 519 Durante o doutoramento, fiz a disciplina de civil-constitucional, sob supervisão da Profª. Maria Celina Bodin de Moraes. No artigo de conclusão, posteriormente publicado, sustentei a necessidade de um consentimento formal para a disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Após o estudo da estrutura das posições, percebi o equívoco, pois os exemplos de disposição tornaram-se mais claros. 257 sexual é um momento em que há disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Seria exigível um consentimento expresso e formal? Desnecessário responder. Entretanto, padrões para a manifestação do consentimento no contexto da disposição merecem consideração, pois enlaçam nitidamente a justificação e a aplicação. No Capítulo anterior, ao tratar do paternalismo e seus institutos afins, mencionou-se o padrão de voluntariedade sugerido por Feinberg como uma das formas de lidar com atos autorreferentes que seriam presumivelmente lesivos ao próprio sujeito. A proposta reside no estabelecimento de padrões formais para o consentimento, que atuam como auxiliares na aferição da intenção do consentente e, por consequência, aumentam a segurança nas hipóteses mais intensas de disposição, bem como nas menos comuns. Quando do estudo da dignidade humana, anotou-se que a dignidade como autonomia pressupõe circunstâncias e condições. Nas condições, a salvaguarda do consentimento por exigências formais para sua manifestação é um elemento relevante, conquanto potencializa a dignidade como autonomia, protegendo seu próprio núcleo. Ademais, a exigência de formalidades para a manifestação do consentimento liga-se ao dever estatal de proteção e à dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Ao compreender o consentimento como um instrumento para a modificação, criação e extinção de posições subjetivas de direito fundamental, necessário é regular sua forma de manifestação, para impedir que em seu nome relações jurídicas de direito fundamental se desfaçam ou se atenuem indevidamente, isto é, incumbe ao Estado proteger os não-consententes e terceiros cujos direitos possam ser negativamente impactados. Um dos mecanismos para tanto é o desenho de padrões formais para o consentimento, mediante os quais o Estado cria uma teia protetiva dos direitos fundamentais. Com isto, recai-se nas competências estudadas no Capítulo 1. Para que a modificação, criação ou extinção de posições subjetivas de direito fundamental sejam juridicamente reconhecidas, poderá ser necessária a competência, cuja instituição está estreitamente conectada à liberdade e, como asseverado antes, sujeita à exigência de sua MARTEL, Letícia de Campos Velho. Sujeitos de pesquisa no ordenamento jurídico brasileiro: um exame civil-constitucional da autolimitração de direitos fundamentais. In: CUSTÓDIO, André Viana. CAMARGO, Monica Ovinski de (orgs.). Estudos contemporâneos de direitos fundamentais (v.1, visões interdisciplinares). Curitiba/Criciúma: Mutideia/UNESC, 2008, p.229-230. 258 instituição – quando jusfundamentalmente protegida – e ao controle de eventuais excessos que se manifestem como violações de direitos520. Diante disso, uma das propostas que se faz a respeito é unir o critério formal da modalidade de disposição às exigências quanto à manifestação do consentimento, sempre com o olhar voltado ao tipo de relação e suas características fáticas e jurídicas, além das circunstâncias e da posição subjetiva e dos sujeitos das relações especificamente considerados. Ainda sobre a manifestação do consentimento, serão feitas algumas notas sobre o silêncio nos esquemas jurídicos de dissenso, a adesão e a continuidade de uma primeira manifestação. Via de regra, os sistemas jurídicos são avessos a aceitar o silêncio e a inação como consentimento. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword entendem que quando a justificação procedimental repousa sobre a inação interpretada como consentimento, há risco claro e atual de que uma ficção conveniente esteja em tela521. Um dos modelos empregado para que o silêncio seja interpretado como justificação procedimental pelo consentimento são os esquemas jurídicos de dissenso, nos quais se entende que se o sujeito não manifestar seu dissenso terá consentido. Foi o que aconteceu no Brasil com a lei de transplantes, que inicialmente considerou a todos como potenciais doadores, a menos que os sujeitos formalmente expressassem o dissenso. Fora do universo dos contratos tipicamente patrimoniais, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword alertam para o abuso potencial da justificação procedimental pelo consentimento nos esquemas jurídicos de dissenso, uma vez que ele significa uma fuga da justificação substantiva, especialmente quando o Estado é a contraparte522. Também merecem cautela a adesão e os consentimentos que se presumem continuar a partir de uma primeira manifestação. No direito brasileiro, são muito nítidas as regulações e linhas interpretativas dos contratos de adesão no âmbito consumerista. Em muitas relações de disposição de posições subjetivas de direito fundamental de 520 Supra, Capítulo 1, item 1.2.3.2.1.3. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200. 522 Para os autores, ao Estado não deveria ser permitido utilizar o consentimento como justificação nos esquemas de dissenso. A distância do tipo-ideal de consentimento é muito grande, e o Estado deve enfrentar o ônus argumentativo por outros caminhos, mormente substantivos. Salientam que tais esquemas acontecem para a doação de órgãos post mortem, doações de sangue e também para o serviço militar. Em cada caso, justificações substantivas existem e são mais adequadas do que um consentimento ficto. Para aprofundar a discussão: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200-205. OLIVEIRA, Nuno Manoel de. O direito geral de personalidade e a ‘solução do dissentimento’: ensaio sobre um caso de ‘constitucionalização’ do direito civil. Coimbra: Coimbra, 2002. 521 259 cunho pessoal, há termos de adesão. É o que se dá, por exemplo, na internação hospitalar, momento em que o enfermo ou seus familiares assinam termos pré-prontos de consentimento. Frequentemente, os termos são lacunosos, genéricos e autorizam um sem número de procedimentos. Também nos termos de consentimento hospitalares, é comum considerar o primeiro consentimento justificação procedimental para toda a extensão do internamento. Em assim sendo, um consentimento inicial de adesão é perpetuado e estendido, justificando comportamentos futuros e distintos. Nesses moldes, a recusa se torna mais difícil, surgindo notas de semelhança aos esquemas de dissenso. O melhor seria, além de evitar termos genéricos, renovar o consentimento quanto a atos hospitalares não corriqueiros, evitando-se, assim, consentimentos e justificações procedimentais fictas e genéricas523. O ideal é que o consentimento seja inequívoco. A pergunta central sobre esta característica é: há comportamentos que sinalizam consentimento? Sim, há diversos comportamentos que são compreendidos como consentimento. Para o tema da disposição de posições subjetivas de direito fundamental pessoais, o consentimento por comportamentos apresenta algumas sutilezas que sugerem recomendação de cautela. Mais uma vez, a ideia é não fragilizar o consentimento como justificação procedimental. Por isso, relaciona-se a aceitação do consentimento por comportamentos a outros elementos, em especial ao ser ele a única justificação para a ablação de posições subjetivas de direito fundamental. Primeiro, consideram-se a modalidade e a intensidade da disposição. Quanto mais intensas e impactantes, mais estreito o espaço para comportamentos que sinalizem consentimento, sem menosprezar as circunstâncias. Segundo, os padrões quanto à informação. Ora, se, para ser válido, o consentimento há de ser informado, tanto menor há de ser a possibilidade de consentimento por comportamentos nas relações em que há assimetria informativa e dever de informar. Terceiro, para atender aos princípios da fidelidade à vontade do consentente e à segurança de quem recebe o consentimento, o consentimento por comportamentos precisa contar com traços seguros de interpretação; ou seja, ao sistema jurídico incumbe sofisticar-se para deixar patentes como e quando alguns comportamentos são reputados consentimento. Quarto, em relações em que o Estado é o polo que recebe o 523 No consentimento em relações contínuas e sujeitas a alterações fáticas, a informação e o dever de informar ganham corpo. O ponto é importantíssimo para as conclusões do Capítulo 4. Interessante discussão jurídica no tema da continuidade de um primeiro consentimento está nas chamadas relações especiais de poder ou de sujeição. Sobre o assunto: PEREIRA, Jane Reis. Op. cit., p.385-430. ANDRADE, Os direitos fundamentais ..., p.303 e ss. NOVAIS, As restrições..., p.510 e ss. 260 consentimento, os comportamentos hão de ser inequívocos, além de não ser recomendável que o Estado escore-se apenas nessa justificação procedimental, sendo mais adequado fazê-lo arcar com ônus substantivos de argumentação para a interferência nas posições subjetivas de direito fundamental524. A expressão do consentimento ocorre em momento anterior, concomitante ou posterior ao comportamento do outro polo da relação. O ideal é que o consentimento seja anterior. Apesar disso, Deryck Beyleveld e Roger Brownsword aceitam um distanciamento do tipo-ideal se estiverem presentes a pessoalidade e a sinalização positiva e inequívoca do consentimento posteriormente manifestado, em um contexto amplo (i.e., aplicável a múltiplas situações de consentimento). Para os autores, se o sujeito emitir seu consentimento a posteriori, tal não quer dizer, por si só, que não seja admissível a justificação procedimental pelo consentimento. No particular, salienta-se que há diferenças de monta entre um consentimento ex ante e um ex post. O posicionamento dos autores é no sentido de que exclusivamente o momento não é fator para negligenciar como manifestado o consentimento525. Efetivamente, apreciado em um contexto amplo, se o sujeito consentir depois, não haveria maiores problemas, prioritariamente em assuntos patrimoniais. Porém, na seara da disposição de posições subjetivas de direito fundamental de cunho pessoal, a matéria é intrincada. Em primeiro lugar, porque o consentimento ex post pode ser uma forte ficção, que dá passagem a intrusões em posições subjetivas de direito fundamental na expectativa de que o sujeito consentirá ou consentiria, quando ou se estiver em condições. Nas reflexões sobre o paternalismo jurídico e seus institutos afins, o problema foi apontado526. Em segundo lugar, muitas disposições de posições subjetivas de direito fundamental pessoais são, do ponto de vista fático e/ou jurídico, irreversíveis (e.g., doação de órgãos e tecidos, doação de sangue, realização de tatuagens, cirurgias 524 A revelia é uma ilustração. O não-comparecimento do réu pode significar um consentimento que justifica procedimentalmente fragilizações em posições subjetivas do devido processo legal? Em diversos sistemas jurídicos, sim. Ainda que seja essa a justificação, há diferenças significativas nos efeitos da revelia ao ensejo dos direitos em questão e também do tipo de processo – se penal ou não. É o que se vê no processo civil brasileiro, que estipula que os efeitos da revelia não se produzem quando os direitos em causa forem indisponíveis, assim como há substancial diferença no trato da revelia pelo processo penal. Mesmo que se entenda que o comportamento atua como consentimento, é importante perceber que não é a única justificação, uma vez que ao seu lado estão os direitos do outro litigante e o dever estatal de fornecer a prestação jurisdicional, pontos substantivos que se agregam ao não-comparecimento do réu. Ademais, é bastante assentado e nítido o comportamento omissivo que dá ensanchas à revelia. No tema: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.200-205. 525 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.207 e ss. 526 Supra, Capítulo 2, item 2.3.2.1.1. 261 curativas ou estéticas...), de modo que o consentimento ex post é muito inseguro, tanto no que concerne à fidelidade à vontade do consentente, quanto às expectativas de quem o recebe. As lições sobre o consentimento ex post na disposição de posições subjetivas de cunho pessoal são quatro: (a) elo com a modalidade de disposição, seus efeitos fáticos e jurídicos, assim como os direitos em jogo e as circunstâncias; (b) análise da reversibilidade da situação; (c) atenção ao paternalismo e institutos afins injustificados; (d) atenção à ficção sobre a fidelidade à vontade do consentente e às expectativas justificadas da contraparte. Não obstante o tipo-ideal ser o consentimento anterior, a característica mostra-se igualmente problemática quando há um intervalo significativo entre a manifestação do consentimento e a realização do comportamento. O intervalo pode ser simplesmente por decurso de prazo, ou por condições suspensivas, e traz consigo duas reflexões527: (a) até que ponto mantém-se a fidelidade à vontade do consentente após o termo ou a implementação das condições?; (b) até que ponto é prudente àquele que recebe o consentimento fiar-se nele após o termo ou a implementação das condições? A dificuldade de responder será ainda maior se as circunstâncias fáticas alterarem-se muito528. Na disposição de posições subjetivas de direito fundamental marcadamente pessoais, a polêmica tem se apresentado quanto aos testamentos vitais e às diretrizes antecipadas529. A manifestação de consentimento, de recusa, ou a indicação de um 527 Sobre as condições e termos, arts.121 e ss. do Código Civil Brasileiro. BRASIL, Código Civil, Op.cit. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss. Consoante os autores, os filósofos já agonizaram nessa questão, tratando do agente que não quer ser libertado da sua vontade anterior, independentemente da sua vontade atual. Entende-se que se trata dos contratos de Ulisses, que põem os sistemas jurídicos em face da embaraçosa decisão de respeitar uma vontade pretérita ou uma vontade atual. Deixando de lado o debate de filosofia política e constitucional a que o tema conduz, os autores sugerem que os sistemas jurídicos responderam ao problema melhor do que os filósofos, ao mostrarem-se muito resistentes a tais contratos ou termos, ressalvando parcas exceções. ELSTER, John. Ulysses unbound – studies in rationality, precommitment, and constrains. Cambridge: Cambridge University, 2000, p.especialmente o Capítulo 1, p.1-87. 529 Por diretrizes antecipadas, compreende-se o documento jurídico pessoal, formal, em que um sujeito do consentimento expressa a quais tratamentos, intervenções médicas e situações pretende ou não ser submetido na assistência e, eventualmente, na pesquisa em saúde, para o caso de inconsciência ou de incapacidade futura. Isto é, enquanto sujeito do consentimento ele expressa seu consentimento, para a eventualidade de perder o status. Quando empregadas em situações cujo prognóstico é de irreversibilidade, usa-se intitulá-las testamento vital. As diretrizes antecipadas podem ser também o documento jurídico-formal no qual o sujeito do consentimento indica uma ou mais pessoas como responsáveis para tomar decisões acerca da assistência médica, para o caso de inconsciência ou incapacidade futura, ou seja, institui um representante convencional, oferecendo-lhe linhas de atuação mais ou menos delimitadas, ou simplesmente deixando em suas mãos as decisões. Na definição estadunidense: “advance directive. 1. a document that takes effect upon one’s incompetence and designates a surrogate decision-maker for healthcare matters (…). 2. a legal document explaining one’s 528 262 representante convencional são feitas para o futuro, sujeitas a condições resolutivas. Dois problemas há: (a) o alcance e a interpretação dos testamentos vitais e das diretrizes; (b) o quanto de confiança se pode depositar nos instrumentos, pois é discutível até que ponto eles ainda traduzem a vontade do consentente, um agente ostensivo pretérito. Se houver prognóstico de terminalidade ou o indivíduo estiver em estado vegetativo persistente, o conflito parece diminuir, mas, se a questão girar em torno de adversidades como a dependência física sem possibilidade de comunicação ou sem integridade psíquica, a síndrome do encarceramento, as doenças mentais degenerativas, o percurso fica mais íngreme. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword demonstram que os ordenamentos jurídicos são tensos a respeito. Por um lado, se não admitirem os testamentos vitais e as diretrizes antecipadas, negarão competências tidas por jusfundamentalmente protegidas em diversos países (quais sejam, as decisões sobre os tratamentos médicos, mesmo os de prolongamento ou de manutenção de vida) dos agentes enquanto ostensivos (i.e., sujeitos do consentimento). Por outro lado, ao aceitar os institutos, adentram no desconhecido, uma vez que não se sabe, ao certo, se há ou qual é a vontade atual do agente pretérito, após o advento das condições530. Anteriormente, referiu-se que Ronald Dworkin opta pelo respeito à autonomia pretérita como o princípio regente531. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword seguem rumo semelhante, advertindo que, neste ponto, a tarefa regulatória estatal é de suma wishes about medical treatment if one becomes incompetent or unable to communicate (…). 3. DO-NOTRESUSCITATE ORDER”. Living will: An instrument, signed with the formalities of statutory required for a will, by which a person directs that his or her life not be artificially prolonged by extraordinary measures when there is no reasonable expectation of recovery from extreme physical or mental disability”. GARNER, Op.cit., vocábulos advance directive e living will. Conferir também: BUCHANAN, Allen. Advance directives and the personal identity problem. Philosophy and public affairs, v.17, n.4, p.277-302, Autumn, 1988; BROCK, Dan. Life and death: philosophical essays in biomedical ethics. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. 154-155. O mais usual, no Brasil, é entender que “os testamentos vitais são utilizados para dispor sobre a assistência médica a ser prestada ao paciente terminal, enquanto as diretivas antecipadas são usadas para dispor sobre tratamentos médicos em geral, dos quais o paciente pode se recuperar ou não. Há, portanto, inteira continência entre os dois institutos, não se justificando um esforço teórico para distingui-los. Temos unificado a terminologia para evitar dúvidas e assegurar a construção nominal do instituto em Língua Portuguesa, mantendo a cognação com o original em inglês: advance directives”. RIBEIRO, Diaulas Costa. Um novo testamento: testamentos vitais e diretivas avançadas antecipadas. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Família e dignidade humana. São Paulo: IOB Thompson, 2006. Discutindo o instituto do testamento vital para os casos de terminalidade e sua validade no Brasil: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. PENALVA, Luciana Dadauto. Terminalidade e autonomia: uma abordagem do testamento vital no direito brasileiro. In: PEREIRA, Tânia da Silva et al. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p.5782. Ver também a importante diferença acerca dos testamentos vitais (ato inter vivos) e do regime jurídico dos testamentos (mortis causa) no Brasil: NEVARES, Ana Luiza Maia. Apontamentos sobre o direito de testar. In: PEREIRA, Tânia da Silva et al. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010. p.83-99. 530 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss. 531 DWORKIN, Ronald. Domínio..., p.295 e ss. 263 proeminência. Para equilibrar o problema, o mais adequado seria um marco regulatório estreito, que permitisse a segurança na elaboração dos testamentos vitais e das diretrizes antecipadas e na sua aplicação futura, com limites e orientações interpretativas532. Os autores sugerem, também, que os sistemas jurídicos criem prazos para a revalidação desses instrumentos, de modo a ampliar a margem de segurança e manter a atualidade de seus termos533. O pano de fundo dos marcos regulatórios são os elementos de justificação, atrelados aos demais critérios de aplicação empregados na disposição de posições subjetivas de cunho pessoal, bem como aos vetores fidelidade à vontade do consentente e segurança de quem recebe o consentimento e de terceiros de boa-fé534. 532 Os termos, assim como os contratos, arriscam a apresentar ambiguidades, dúvidas de interpretação, lacunas, etc. Daí a importância de um marco regulatório e de orientações seguras quanto às formas de interpretação que serão empregadas. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss. 533 Embora o problema pareça singelo, principalmente quando exposto pelos defensores mais enfáticos da adoção das diretrizes antecipadas e dos testamentos vitais nos sistemas que não os admitem formalmente, ele é muito denso e dele afloram indagações profundas. Como o assunto é importante para o Capítulo 4, toma-se a liberdade de fazer uma extensa citação: “Understandably, legal regimes often display some nervousness about recognising and enforcing advance directives. In some cases, this might result in a legal paralysis, leaving the effect of particular advance directives to be determined informally by particular doctors in each particular case. Or, the case-by-case approach might be slightly more structured with it being recognised that, where there is an advance directive, doctors rightly give it some weight in forming a judgment as to what is the patients best interests or for the purposes of making a substituted judgment as to what the patient would have willed in the circumstances. For agents seeking clarity and calculability, however, these legal positions are unhelpful. Such agents are deprived of the opportunity to exercise control over their futures – or, at any rate, the state of legal uncertainty means that such agents cannot be confident that they have their future under control. Of course, if the legal regime repairs the uncertainty by declaring that advanced directives shall be of no legal effect in any circumstances, agents know where they stand but those agents who would wish to assert their will by giving an advanced directive are now altogether deprived of this option. It follows that such agents will not be assisted unless the legal regime repairs the uncertainty by putting in place a scheme under which advance directives will be recognized. [where an advance directive is fully recognized, those who act in accordance with the directive will be exempt from claims for private (and public) wrongdoing, and those who act against the terms of the directive will be open to claims for private wrong]. Where an agent invokes such a scheme, the process should be seen as analogous to invoking the law of sucession to write a will. In both cases, the agents who give the directives understand that their directives will be acted upon when the time comes unless they have withdrawn the directives in the meantime; they know that they cannot be sure when precisely (if ever, in the case of an advance directive) the directives will become operative; and they know that they are at risk that, at the operative time, the directive might not accurately reflect their last subjective will. So be it; this is the risk involved in this particular option; and the initial consent invoking the option must bear the justificatory weight of applying an institutional set in which the risk of the original signal becoming unreliable over time rests with the agent whose decision is to invoke the set in the first place. If this seems to be too casual about possible changes of will, a legal regime might fine-tune its schemes so that long-term directives have to be renewed periodically. Given that periodical renewal might make more sense for some directives than others, as for some agents more than others, a sophisticated legal regime might be able to offer agents the option of entering their directives in a scheme that requires regular renewal of their directives”. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.210-211 (texto de nota de rodapé incluído). Ver também: BUCHANAN, Op. cit., p.277-302. 534 Para um debate aprofundado sobre os princípios morais e jurídicos atendidos pelas diretrizes antecipadas, ver: BUCHANAN, Op. cit., p.277-302. 264 3.2.2.3.1.1 Manifestação do consentimento e revogabilidade Ao momento de manifestação do consentimento alia-se à possibilidade de revogação. O ideal é que o consentimento seja definitivo, isto é, que o consentente não possa voltar atrás unilateralmente. Nos contratos cuja esfera patrimonial é mais saliente, tal é a regra geral e é apropriado que assim seja, pois a instituição dos contratos tem como uma de suas razões de ser a formação de prova contra mudanças na vontade dos consententes, segundo seus interesses ou as circunstâncias535. Contudo, há casos nos quais se admite que o consentente possa voltar atrás e revogar unilateralmente o seu consentimento. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword procuraram um padrão sobre a revogabilidade do consentimento e concluíram pela necessidade de distinguir dois tipos de relação: (a) retirada do consentimento e modificação de posições subjetivas perfazendo um privilégio; (b) retirada do consentimento e criação de novas posições subjetivas, sem que elas sejam privilégio. Para exemplificar, os autores mencionam um sujeito (A) que permitiu que outro (B) usasse sua vaga de garagem, sem qualquer contrapartida e sem acordar prazos ou condições. Trata-se de um consentimento que altera posições e coloca B em posição de privilégio536. Em se tratando de privilégio, A modificou posições sem extingui-las nem transferi-las. Destarte, pode voltar atrás sem justificação e sem avisar previamente. Entretanto, quando houver criação de uma nova relação, formando direitos em sentido estrito ou imunidades e seus correlatos, os estudiosos sugerem que a linha mestra seja a irrevogabilidade (unilateral) do consentimento, com exceções: (a) cláusula expressa a respeito da revogação; (b) estipulação de prazo para arrependimento; (c) previsão normativa expressa em sentido diverso para conjuntos fáticos específicos537. Ao pensamento dos autores, acrescenta-se que os conjuntos normativos que preveem a revogação unilateral usualmente referem-se a situações notadamente existenciais. Notório é que a revogação unilateral, mesmo quando prevista, encontrará barreiras fáticas, pois haverá situações em que será impossível voltar atrás. 535 Se o pêndulo estivesse apenas ao lado da fidelidade à vontade do consentente, sempre haveria possibilidade de revogação. Estar-se-ia diante da ruína do direito contratual e do consentimento como justificação procedimental. É o outro vetor que recebe peso, do contrário não haveria segurança negocial, tampouco seria razoável que um sujeito pautasse seus atos no consentimento alheio. Ressalvam-se, apenas, as cláusulas expressas a respeito da revogação unilateral sem consequências negativas para quem retira o consentimento, ou a constituição de uma nova relação que desfaz a primeira, mediante acordo entre as partes. BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.208 e ss. 536 O exemplo é semelhante ao utilizado por Rainbolt e citado no Capítulo 1, subitem 1.2.3.2.1. 537 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent…, p.209-212; 221-225. 265 Do direito brasileiro, extraem-se duas ilustrações. Em ambas há disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Na doação de órgãos inter vivos, é expressa a legislação acerca da revogação do consentimento a qualquer momento antes da retirada do órgão. Na mesma senda, é nítida a Resolução CNS 196/96 sobre a possibilidade de os sujeitos de pesquisa retirarem seu consentimento a qualquer tempo538. 3.2.2.3.2 As diretrizes interpretativas do consentimento Por fim, as questões interpretativas. Após externado o consentimento, ainda que seja escrito e formal, muitas divergências podem surgir. Os sistemas jurídicos costumam empregar métodos literais e teleológicos (funcionais) de interpretação. Cada um possui vantagens e desvantagens, de forma que é necessário pender mais a um ou a outro segundo as características da relação, o ramo do direito, dentre outras variáveis. Atualmente, a interpretação do consentimento está permeada por cláusulas gerais, especialmente a boa-fé, a dignidade humana e, mais recente, a solidariedade. A ponte com o ambiente constitucional acontece com intensidade nesta etapa539. As cláusulas gerais fazem respirar o sistema de interpretação, bem como traçam o elo com os princípios constitucionais. Todavia, repete-se que nem a boa-fé, nem a dignidade, menos ainda a solidariedade são meros slogans. Seu emprego depende de densificações semânticas e construção de integridade sistêmica. Do contrário, trazem o caos para a interpretação do consentimento, ao invés de oxigená-la. O mais importante é que um sistema jurídico dote-se de linhas nítidas de interpretação do consentimento, que ofereçam segurança jurídica, não surpreendam os 538 Na Lei de transplantes, art.9º, §5º, supracitado. Na Resolução 196/96: “IV.1. Exige-se que o esclarecimento dos sujeitos se faça em linguagem acessível e que inclua necessariamente os seguintes aspectos: […] f) a liberdade do sujeito se recusar a participar ou retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado”. Cf. BRASIL, Lei nº9.434/1997, Op.cit.; BRASIL, Lei nº10.211/2001, Op.cit.; BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. CNS. Resolução 196/1996, Op.cit. Sobre os sujeitos de pesquisa, discute-se se após o fechamento da coleta dos dados poderia o sujeito dissentir e impedir a utilização dos seus resultados. A princípio, seria adequado. Porém, finda a coleta, se um dissenso prejudicar toda a pesquisa, causará impacto nos demais sujeitos de pesquisa, uma vez que suas participações teriam sido inúteis. Nas pesquisas envolvendo seres humanos, algumas retiradas de consentimento poderão ser monitoradas, em função de efeitos colaterais que a saída da pesquisa acarreta ao sujeito. 539 No direito brasileiro, há diversos estudos de relevo. Dentre eles: MARTINS-COSTA, A reconstrução...; MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000; ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé. São Paulo: Saraiva, 2005; TARTUCE, Flávio. A função social dos contratos: do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método, 2005; TEPEDINO, Temas... ; SALEH, Sheila Martignago. A dignidade da pessoa humana e contratos inter-privados: mudança de eixo interpretativo, a partir de uma formulação civil-constitucional. Revista da ESMESC, Florianópolis, v.13, n.19, jan./dez. 2006. 266 envolvidos e mantenham a integridade do sistema540. Os vetores fidelidade à vontade e às expectativas justificáveis dos polos necessitam prévio balanceamento e equilíbrio, conforme as características relevantes de cada grupo de situações ou de casos particulares, mediante atos legislativos, regulações e precedentes judiciais construídos com o fio da integridade, sempre à luz dos princípios e das cláusulas gerais541. Outro elemento que participa da interpretação é a relação de base, especialmente quanto aos sujeitos e à simetria. Os sujeitos da relação de base são importantes não apenas na interpretação, mas no próprio engendramento jurídico da disposição de posições subjetivas de direito fundamental. Por isso, será analisado em tópico próprio. 3.3 Os sujeitos da relação jurídica de direito fundamental Na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, o consentimento do titular permite que terceiros atuem de modo que lhes seria vedado caso não houvesse o consentimento. Para a avaliação da disposição, é necessário identificar a relação que se estabelece entre o titular e aquele a quem o consentimento se destina. É de muita valia analisar os sujeitos da relação de base, para apoiar o exame da validade do consentimento, suas formas de manifestação e interpretação, para construir as pautas da disposição, bem como para apreciar sua admissibilidade em face do sistema jurídico. Entende-se que os sujeitos da relação de base são um critério de aplicação da (in)disponibilidade de posições subjetivas de direito fundamental a ser conjugado aos demais. Há três tipos de relação de base de disposição quanto aos sujeitos: (a) entre o Estado e o indivíduo; (b) entre indivíduos em posição de simetria; (c) entre indivíduos em posição de assimetria. Vieira de Andrade tratou deste assunto em termos que vale transcrever: […] devem considerar-se as diferentes situações relacionais em que se pode produzir a autolimitação. A diferença mais relevante é a que atende à existência, ou não, de uma relação de sujeição ou de dependência do titular do direito 540 A palavra integridade é empregada no sentido dworkiniano, explicitado no Capítulo 2, item 2.3.2. Evidentemente, não se está a defender um ideal de segurança jurídica ao estilo do positivismo jurídico, como o elemento mais relevante. Não é disso que se trata. Diz-se apenas que as cláusulas gerais não são uma panaceia universal, a serem empregadas no ambiente jurisdicional em simples menosprezo das diretrizes legais, nem de modo desvinculado dos precedentes e sem conteúdo, como joguetes. As notas seguras de interpretação advêm da aplicação de princípios e de cláusulas gerais, sempre enlaçadas com os constitucionais princípios da segurança jurídica, da democracia e da tripartição de poderes, além dos direitos em jogo. 541 267 autolimitado perante outrem, que pretende, acorda ou beneficia da limitação. Assim, como vimos já, não estarão sujeitos às mesmas condições e limites a renúncia, o acordo ou o consentimento de uma pessoa perante uma autoridade dotada de poderes públicos, perante uma entidade privada ou indivíduo que detenha um poder jurídico ou de facto, ou numa relação entre iguais542. Os estudiosos do tema da disposição divergem acerca da possibilidade de se adotar critérios similares de exame para as relações do primeiro e paras as do segundo e do terceiro tipo543. Nesta tese, compreende-se que, se a relação for entre o Estado e o indivíduo, haverá diferenças de relevo quanto àquelas entre particulares, uma vez que a relação entre o Estado e o indivíduo apresenta nuances próprias. De pronto, atenta-se para o fato de o Estado não ser, via de regra, titular de direitos fundamentais (especialmente as liberdades), mas seu destinatário. Isto faz com que muitas vezes não esteja no exercício de posições subjetivas de direitos fundamentais ao adentrar numa relação de disposição544. Além disso, a relação será necessariamente permeada pela incidência direta de enunciados normativos e normas de direitos fundamentais. Quando a relação se estabelece entre particulares, há de se pôr em relevo que ambos estão exercendo seus direitos fundamentais, e a incidência dos enunciados normativos de direitos fundamentais, como limites à atuação, recai no complexo tema da eficácia horizontal545. Nesta perspectiva, admite-se que a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais em favor do Estado seja alvo de limites mais severos do que na relação entre particulares, dada a virtual inexistência de uma ablação de direitos em um dos polos, bem como da necessidade de o Estado arcar devidamente com o ônus argumentativo. No item anterior, em vários momentos fez-se referência à necessidade de se estabelecer padrões mais restritivos para que o Estado empregue o consentimento como justificação procedimental, especialmente nas hipóteses em que ele ocupa o lado dominante da relação, e o consentimento é a única justificação. Tal restrição tem a finalidade de não alargar demasiadamente a justificação procedimental 542 ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.335. Os padrões desenvolvidos por Novais foram formulados para uma relação do primeiro tipo. Ele comenta que muitos deles podem ser aplicados também nas demais, com sutis distinções. Já José Carlos Vieira de Andrade considera que haverá uma diferença significativa no exame de uma ou de outra relação. Em essência, a dissonância está na aplicação do postulado da proporcionalidade, pois o autor entende que ele não se coaduna integralmente quando a relação é entre particulares. A respeito, comparar: ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.335-336 e NOVAIS, Renúncia..., p.266. 544 Não se nega que o Estado participe de relações de disposição como o titular de posições subjetivas de direito fundamental, nem que poderá delas dispor em favor do indivíduo. Todavia, trabalha-se com as hipóteses mais comuns, a disposição, pelo particular, em favor do Estado, de posições subjetivas de direito fundamental. 545 Sobre a chamada eficácia horizontal, supra, item 1.3.3. 543 268 por consentimento do titular para a intrusão estatal em posições subjetivas de direitos fundamentais, estabelecendo padrões mais exigentes e contínua pressão por justificações substantivas. No entanto, a cautela é necessária, para que a disposição em favor do Estado não seja simplesmente inviabilizada, porquanto haverá situações em que a única justificação será efetivamente a procedimental por consentimento do titular, e sua proibição acriteriosa ensejaria violação de direitos fundamentais. Outra diferença de monta consiste na liberdade de atuação. Entre particulares, a liberdade é a regra, ao passo que, para o Estado, a constitucionalidade e a legalidade (juridicidade) o são546. Desta sorte, na ausência de limitações, os indivíduos poderão agir, exercer sua liberdade para perseguir suas metas e planos existenciais, da forma que lhes parecer conveniente. O Estado, ao contrário, somente atuará na consecução de objetivos constitucionalmente legítimos, na medida de prévia disposição legal, jurisdicional ou constitucional. Aqui parece instaurar-se um paradoxo. Por um lado, para que o Estado – em especial a administração pública – possa invadir posições subjetivas de direito fundamental alheias, deve respeitar os trâmites jurídicos préordenados, como a reserva legislativa ou as decisões judiciais. Por outro lado, para que o particular disponha, não depende de prévio enunciado normativo, uma vez que está ancorado em seus direitos fundamentais, mais ainda ao se reconhecer um direito geral de liberdade547. Enfrentando o paradoxo, há três ordens de razões justificadoras da exigência de enunciado normativo ou norma prévia para a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais diante do Estado, além do princípio da legalidade. Primeira, a presumida assimetria da relação. Segunda, o princípio constitucional da igualdade. Terceira, a necessidade de o Estado enfrentar o ônus argumentativo para interferir com posições subjetivas de direitos fundamentais. Diante do poder estatal, o indivíduo ordinariamente situa-se em uma posição inferior de barganha, o que se torna mais tenso na disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais em favor do Estado. A valoração desse elemento indica a necessidade de maiores proteções àqueles que dispõem, o que pode se dar por regulação legal em sentido amplo. É determinante, também, o dever estatal de destinar igual tratamento a todos os que estão sob sua jurisdição. O trato igualitário será garantido 546 O termo juridicidade é de Gustavo Binenbojm. BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 547 Sobre o assunto, NOVAIS, Renúncia..., p.310-320. 269 adequadamente se a possibilidade de disposição de direitos for previamente estipulada em enunciado normativo de caráter geral. A presumida assimetria e o princípio da igualdade constituem, então, razões para a exigência de enunciado normativo geral e abstrato para a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais em face do Estado548. Soma-se a isso o dever de o Estado arcar com o ônus argumentativo para desobrigar-se quanto a posições subjetivas de direitos fundamentais. Ao exigir enunciado ou norma anteriores à intrusão, compele-se o Estado a formular com transparência os motivos que o conduzem a admitir ou a restringir a disposição em seu favor, tornando mais controlável sua atuação, assim como mais nítidos os padrões de justificação e de aplicação. Entrementes, a necessidade de normatização prévia nem mesmo nesse âmbito relacional é indene a modulações. Não apenas a existência de enunciado normativo anterior pode ser desnecessária, mas, prioritariamente, a densidade normativa pode ser variável, segundo os demais fatores envoltos na disposição. Para sumariar, citam-se as palavras de Novais: De tudo se concluirá que a reserva de lei, em caso de existência de uma verdadeira restrição heterônoma [se o Estado efetivamente operar uma intrusão na esfera do direito fundamental consentida pelo titular] de direitos fundamentais, só pode ser dispensada quando não cumpra a sua vocação originária de proteção individual – pelo facto de existir a concordância do interessado –, nem devam as restantes funções democrática e de racionalização da actividade administrativa, que justificam a existência do princípio num Estado de Direito dos nossos dias, sobrelevar, no caso concreto, as razões que decorrem do princípio de que, tanto quanto possível, deve o Estado deixar ao indivíduo a livre persecução de seus interesses549. Ao aceitar o direito geral de liberdade, o indivíduo está a princípio jusfundamentalmente protegido quando dispõe de posições subjetivas de direitos fundamentais. Tal proteção pode inclusive se manifestar mediante direito à instituição de competências em face do Estado. Demonstrou-se que há importantes razões a justificar a exigência de enunciado normativo prévio para a disposição em prol do Estado. Todavia, as razões somente se mantêm vivas na medida em que servirem à sua 548 É dispensável referir que o enunciado normativo ora mencionado é aquele geral, abstrato e adequado à Constituição Federal. 549 É necessário explicitar que o autor divide em dois momentos o que denomina renúncia a posições subjetivas de direitos fundamentais quando se está diante dos poderes públicos. O momento em que o sujeito consente e dispõe da posição e o momento em que os poderes públicos, em razão do consentimento, efetivamente operam a intrusão no âmbito da posição subjetiva de direito fundamental. É por isso que ele menciona verdadeira restrição heterônoma, por se referir ao segundo momento. NOVAIS, Renúncia..., p.318. [sem grifos no original]. 270 razão de ser. Se não as atenderem, ou no grau em que forem enfraquecendo, desaparece ou diminui a exigência de enunciado normativo autorizador e regulador. Portanto, em um tipo-ideal, trabalha-se com a necessidade de enunciado normativo prévio; mas haverá hipóteses nas quais tal enunciado será a posteriori, ou a densidade normativa (enunciado ou norma em sentido amplo e material) será menor, ou, ainda, que o enunciado será desnecessário. O exemplo tantas vezes referido da inviolabilidade do domicílio dá o tom da questão. A própria Constituição Federal determina que o consentimento do morador é uma das condições para o enfraquecimento da posição subjetiva de direito fundamental. No Brasil, há decisões judiciais aceitando o consentimento para buscas e apreensões, desde que efetivo o consentimento. Mesmo na ausência de enunciados legais específicos regulando a matéria, o STJ mostrou-se propenso a aceitar a autolimitação na hipótese, mas adotou cautelas extras quanto ao consentimento. Diz-se cautelas extras porque sequer se cogitariam critérios semelhantes caso se tratasse de uma relação entre particulares (e.g., dois vizinhos). Para a primeira, entre Estado-indivíduo, critérios mais rígidos e até discussão sobre a admissibilidade550. Na segunda, um consentimento bastante informal e simples, que poucos debates enseja. A ilustração marca com nitidez as diferenças entre a disposição em favor do Estado e em favor de particulares. Nas relações entre particulares, a disponibilidade é o ponto de partida. O caminho que leva a esta consideração foi percorrido no Capítulo 2, ao justificar-se a adesão ao direito geral de liberdade. Deste modo, em linha de princípio, aos particulares é permitido dispor de posições subjetivas de direito fundamental e, em algumas hipóteses, a permissão é acompanhada pelo direito à instituição de uma competência. Logo, a exigência de enunciado normativo prévio perde muitos de seus argumentos de justificação, embora alguns se mantenham e novos se agreguem, em especial a necessidade de proteção de direitos de terceiros e, até mesmo, as proteções justificadas dos titulares contra seus próprios atos551. 550 É efetivamente discutível a aceitação do consentimento na situação. Teria o morador sido adequadamente informado? Como garantir que o foi? Saberia o morador das consequências jurídicas do consentimento? Foi efetivamente livre ao consentir? As indagações são levantadas pelos problemas típicos do consentimento, além da margem de abuso por parte dos agentes do Estado e, até mesmo, da segurança das provas obtidas. Repisa-se o ponto: quanto ao Estado, o tipo-ideal recomenda a existência de enunciado normativo e prefere justificações de outro molde (que aqui estariam na motivação de ordem judicial). 551 No artigo publicado por esta doutoranda, acerca dos sujeitos de pesquisa no ordenamento jurídico brasileiro, o ponto de partida foi a indisponibilidade a priori de posições subjetivas de direito 271 No palco das relações privadas, há a relação simétrica e aquela que se processa entre pessoas em posição de assimetria. Como pincelado antes, a assimetria há de guardar conexão e relevância para a disposição especificamente considerada, isto é, ao se falar em simetria, em sociedades capitalistas e plurais, o que se tem em mente não é uma absoluta e linear simetria, uma identidade paritária, mas a ausência de assimetrias com significado para o ato de disposição que se analisa. No primeiro caso, as restrições postas à disposição de direitos fundamentais devem ser mais tênues, em função da posição simétrica que assumem os envolvidos na relação. No segundo, a existência de uma assimetria, seja qual for sua origem, requer maiores proteções dos sujeitos que dispõem. Destarte, em relações permeadas pela hierarquia, pela menor condição econômica ou cultural de uma das partes, pela adesão a condições já estatuídas, ou, ainda, em relações nas quais estejam envolvidos grupos especialmente vulneráveis – comunidades indígenas, quilombolas, povos isolados, crianças, idosos, enfermos, etc. –, a margem de disponibilidade de posições subjetivas de direitos fundamentais há de ser traçada com salvaguardas direcionadas para a manutenção da igualdade e, principalmente, da qualidade do consentimento. Destaca-se que a vulnerabilidade e a hipossuficiência são razões para maiores salvaguardas, sem que signifiquem necessariamente o motivo para a proibição da disposição. O ponto é relevante e merece atenção. Muitas vezes, tende-se a superproteger os vulneráveis e hipossuficientes, simplesmente proibindo-os de adentrar em relações aparentemente perigosas aos seus direitos. É preciso lembrar o caráter de dupla via da disposição; isto é, ao mesmo tempo em que há autolimitação de posições subjetivas de direitos fundamentais, há exercício posições subjetivas de direitos fundamentais. Além disso, já foi estudado que há situações em que a disposição representa uma perda do ponto de vista conceitual e estrutural para o titular da posição, sem ser uma perda ou desvantagem do ponto de vista fático ou jurídico, tudo considerado. A vulnerabilidade e a hipossuficiência trazem a advertência da cautela e do cuidado, mas não podem representar de per se a justificação para reduzir direitos daqueles que se encaixam nesses conceitos, sob pena de extrair-lhes ainda mais direitos e torná-los ainda menos sujeitos em nome da sua proteção, recaindo-se em modalidades fundamental, em respeito ao art.11 do Código Civil Brasileiro. Aqui, a adesão ao direito geral de liberdade impede que este seja o ponto de partida nas relações entre particulares. No Capítulo 4, será comentada a questão à luz do direito fundamental estudado na tese, o direito à vida. Conferir: MARTEL, Sujeitos de pesquisa..., p.222-227. 272 de paternalismo e institutos afins injustificados, ou lesando a dignidade como autonomia dos sujeitos para protegê-los de si mesmos. É preciso, portanto, ajustar a fina sintonia entre proteção dos hipossuficientes e a sua condição de agentes e de sujeitos do consentimento. Assim, apresenta-se o terceiro critério para o apreço da disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais: o tipo de relação intersubjetiva. Dependendo do tipo de relação – entre o Estado e o indivíduo, entre indivíduos em posição de simetria ou de assimetria –, variarão os graus de verificação da disposição. Para a relação Estado-indivíduo, o tipo-ideal reclama a existência de enunciado normativo ou norma autorizativa, cuja densidade variará conforme o peso que assumam os princípios da legalidade (e da reserva legal quanto aos direitos fundamentais) e da igualdade, bem como a proteção dos hipossuficientes. Frisa-se que a disponibilidade segue sendo o ponto de partida e não se descuida da existência do direito à instituição de competências. O que ocorre, apenas, é a importância que assumem outros princípios limitadores da atividade estatal na intrusão em posições subjetivas de direitos fundamentais alheias, o que recomenda a existência de regulação específica, mediante enunciados normativos de densidades variáveis. Já nas relações entre particulares, a regulação é muitas vezes relevante, mas a exigência de enunciado normativo prévio perde muito de sua força, tornando-se uma nota diferencial das relações Estadoindivíduo e indivíduo-indivíduo. Se as relações entre particulares forem marcadas pela assimetria, é importante a adoção de salvaguardas específicas, que visem a assegurar especialmente a liberdade de atuação e a não-exploração dos que se encontram sob circunstâncias adversas. Tais regulações e salvaguardas precisam ser bem dosadas, porquanto de um lado visam a reduzir formal e artificialmente a condição de assimetria, garantindo a qualidade da justificação procedimental pelo consentimento e, de outro lado, não podem ser excessivas a ponto de tornar a vulnerabiliade e a hipossuficiência razões para uma maior privação de direitos. Estão presentes os cuidados com o paternalismo e institutos afins, tanto quanto a dignidade como autonomia. As variações referidas, logicamente, aglutinam-se aos demais critérios apresentados, os quais não atuam insulados. No tópico sobre o consentimento, em diversos exemplos quanto à liberdade de escolha e à informação, seja no plano da validade, seja na interpretação e na manifestação do consentimento, mostrou-se como a diferença na relação de base atua. A depender do tipo e da intensidade da assimetria, ela enseja a ampliação do dever de informar, a inversão do ônus da prova, a interpretação 273 restritiva e a priori tendente a um dos polos, a estipulação de critérios formais mais refinados para a validade do consentimento (e por consequência da disposição) e também afeta o desenho das possibilidades de disposição, prioritariamente quando há possibilidade de pressão ou influência indevidas ou de exploração não-coercitiva. Somente para lembrar, observem-se ilustrações empregadas no item anterior. Nas pesquisas envolvendo seres humanos, gestantes portadoras do HIV foram submetidas ao uso do placebo quando já havia uma intervenção efetiva eficaz conhecida (IEE). É altamente sugestivo o fato de as gestantes não terem acesso à IEE. A diminuição da assimetria poderia ocorrer mediante oferta da IEE a um dos grupos de sujeitos de pesquisa e de um novo fármaco ao outro grupo. Assim, poder-se-ia comparar os níveis de eficácia de diferentes fármacos, obtendo-se resultados provavelmente úteis e que não seriam produto da exploração de condições adversas alteráveis, como a insuficiência econômica, o baixo padrão educacional e a dificuldade de acesso à proteção e à promoção da saúde. Modificando-se o desenho da pesquisa, ela se tornaria viável, exatamente por retirar o significado da assimetria da relação de base. Em situações de assimetria informativa, como a relação dos profissionais da saúde (principalmente médicos) e pacientes, a quebra da assimetria ocorre pelo fortalecimento do dever de informar, recaindo sobre quem detém o conhecimento especializado o dever jurídico de transmitir informações claras, precisas, completas, verazes, objetivas e compreensíveis. No mesmo ensejo, observem-se os termos de consentimento hospitalares amplos e assinados por adesão. Ora, quem busca atendimento hospitalar está muitas vezes enfermo e vulnerável. Diante da necessidade, adere. A assimetria não significa proibição da disposição quanto a procedimentos hospitalares, mas aponta para a necessidade de serem formulados termos mais específicos, dialogados e constantemente renováveis, segundo o fluxo da relação entre os profissionais da saúde e os pacientes552. Antes de passar ao próximo item, uma última anotação. As assimetrias são muitas vezes evitáveis ou contornáveis, quer por serem artificiais (educacionais, sociais, culturais), quer por existirem possibilidades reais de modificá-las e impulsionar níveis de simetria, mediante aparatos sociais e/ou jurídicos. Noutros casos, a assimetria tem raízes em condições adversas imodificáveis (e.g., uma doença terminal), para as quais a gama de escolha do sujeito não se dá entre alternativas, na linguagem ordinária, boas, 552 Supra, itens 3.2.2.1; 3.2.2.3; 3.2.2.3. 274 mas entre opções drásticas. Sendo fenomenicamente inevitável a condição, incumbe aos sistemas jurídicos traçar anteparos específicos para a proteção dos vulneráveis, tendo sempre em mente que a vulnerabilidade não é em si uma razão para ablações ainda maiores de direitos e que, infelizmente, o curso da vida pode confrontar os sujeitos com opções duras, não evitáveis pela mão do ser humano. 3.4 Os postulados normativos Ao adotar o direito geral de liberdade, adere-se à concepção ampla do âmbito de proteção dos direitos fundamentais. Trabalha-se com o suporte fático amplo553 e com a teoria externa dos direitos fundamentais554. Correlativamente, o conceito de restrição 553 Para conceituar suporte fático, entende-se, com apoio no escólio de Virgílio Afonso da Silva, que são necessárias respostas a quatro questões: “(1) O que é protegido? (2) Contra o quê? (3) Qual a consequência jurídica que poderá ocorrer? (4) O que é necessário ocorrer para que a consequência possa também ocorrer?” A resposta inclui não apenas o âmbito de proteção (primeira pergunta), mas também um “segundo elemento – e aqui entra parte contra-intuitiva: a intervenção estatal. Tanto aquilo que é protegido (âmbito de proteção), como aquilo contra o qual é protegido (intervenção, em geral estatal) fazem parte do suporte fático dos direitos fundamentais. Isso porque a consequência jurídica – em geral a exigência de cessação de uma intervenção – somente pode ocorrer se houver uma intervenção nesse âmbito.” A opção terminológica por suporte fático está em consonância com o já tradicional no direito brasileiro, que, como bem lembra Virgílio Afonso da Silva, foi consagrada nos escritos de Pontes de Miranda, em sua minuciosa explanação do processo de juridicização. Virgílio Afonso da Silva entende que o suporte fático dos direitos fundamentais deve ser assim expresso: APx e não-FC(IEx) então CJx. onde, AP refere-se ao âmbito de proteção, x à ação, FC à fundamentação constitucional para a intervenção e IE a intervenção estatal. Borowski apresenta formulação distinta, embora os resultados práticos da diferença não sejam deveras significativos: se (APx e IEx) e não-FC, então CJx. É necessário atentar para as diferenças quanto aos direitos a prestações, que não serão aqui trabalhadas. Sobre o tema, ver: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.132-215; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.85-92; BOROWSKI, Op. cit., p.29-59. 554 A lógica faz pensar que o suporte fático amplo combina-se à teoria externa dos Direitos Fundamentais. Nesta tese, trabalha-se com a teoria externa por dois motivos: (a) a necessidade de arcar com o ônus argumentativo para a exclusão de comportamentos do âmbito de proteção e do suporte fático dos direitos fundamentais, especialmente em um país de recente tradição na defesa, promoção e proteção dos direitos fundamentais; (b) em virtude do que Judith Jarvis Thomson denomina resíduo moral, que pode ser convertido para resíduo jurídico. Feinberg trouxe a questão à tona em seu famoso exemplo da cabana. Um alpinista se vê em forte risco em uma nevasca. Temendo perecer, invade uma cabana nas montanhas, quebrando a janela. No período que ali permanece, utiliza a lenha e os alimentos enlatados que encontra. Ao final, é resgatado em segurança. Se empregada a teoria interna, dir-se-ia que o direito de propriedade não abarca a situação, tutelada pelos direitos do alpinista. Se empregada a teoria externa, dir-se-ia que as posições subjetivas do direito de propriedade incidem, mas cedem, pois sua ablação é justificada por outras posições concorrentes, como as do direito à vida e à integridade do alpinista. É no momento em que o alpinista retorna em segurança que os resíduos aparecem. Não deveria ele indenizar o proprietário? Restituir-lhe os valores correspondentes à lenha, aos alimentos, à janela? Em inúmeros sistemas jurídicos (o brasileiro inclusive) a resposta é afirmativa. Pois bem, se as posições subjetivas do direito de propriedade não incidem na situação, como sustenta a teoria interna, qual a explicação para o resíduo indenizatório? Ele advém exatamente de posições do direito de propriedade, que incidiu; apenas cedeu em momento específico, enquanto em risco outras posições que obtiveram maior peso. Passado o perigo, os mesmos fatos são protegidos pelo direito de propriedade, de modo que se torna difícil asseverar que o direito de propriedade não incide. Ele incide, mas é justificadamente infringido até um ponto determinado. A combinação dos artigos 188 e 929 do Código Civil conduz a esta interpretação. Também em prol da teoria externa há o argumento de McConnell. Para o autor, a teoria interna torna mais difícil conhecer os contornos de um direito, gerando insegurança, enquanto a teoria externa, com o tempo, vai oferecendo linhas mais certeiras sobre quais direitos precedem e em quais situações. Sobre o tema, ver: 275 será também amplo, conglobando o de configuração do direito, segundo indicado no Capítulo 1 (item 1.4.2). Nesta trilha, as posições subjetivas de direito fundamental são prima facie disponíveis, de modo que a sua proibição ou o estabelecimento de regulações, critérios e salvaguardas caracterizam intervenções, que poderão ser conformes à Constituição (restrições) ou não (violações). Ao ampliar o âmbito de proteção e o suporte fático, ficam também mais extensas, a priori, as posições subjetivas para a instituição de competências, quando elas forem necessárias à disposição. Em assim sendo, as proibições, configurações e mesmo a permissão ampla ou o silêncio sobre a disposição por ações ou omissões estatais carecem de metodologia de análise. Os conceitos adotados conduzem ao emprego dos postulados normativos aplicativos, sobretudo o da proporcionalidade (devido processo legal substantivo)555. Em apertada síntese, os postulados normativos aplicativos são metodologias decisórias constitucionais que guiam as decisões legislativas, administrativas e judiciais. Hoje possuem espaço assegurado no constitucionalismo brasileiro. Consoante o postulado da proporcionalidade, são avaliados os interesses e direitos em jogo, quando há ablação de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.132-215. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.163-240. FEINBERG, Joel. Voluntary euthanasia and the inalienable right to life. In: FEIBERG, Joel. Rights, justice and the bounds of liberty. (Essays in Social Philosophy). New Jersey: Princenton, 1980, p.229-231. THOMSON, Op. cit.; McCONNELL, Op. cit., p.7. BRASIL, Código Civil, Op. cit., arts.188; 929; 930. 555 Emprega-se a terminologia de Humberto Ávila. Para o autor, postulados normativos “são deveres estruturantes da aplicação de outras normas”, isto é, “funcionam como estrutura para a aplicação de outras normas”. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p.80 e ss. É farta a literatura nacional e estrangeira sobre o assunto. Como feito no Capítulo 2, item 2.2.4, a principal base teórica serão os estudos de Robert Alexy, com algumas alterações em função de releituras de outros autores. Sobre o tema, dentre diversos outros, consultar: DANTAS, Op.cit., p. 21-31; CASTRO, Op. cit.; BARROSO, Interpretação..., p.303 e ss.; GUERRA FILHO, Princípio da proporcionalidade..., p.255-269; SARMENTO, Ponderação de interesses ...; MARTEL, Devido processo legal ..., passim; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., passim; BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005; ALEXY, Robert. Constitutional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, v.16, n.2, p.131-140, jun. 2003; ALEXY, Robert. On balancing and subsumption: a structural comparison. Ratio Juris, v. 16, n.4, p.433-449, Dec. 2003; ALEXY, Teoria de los...; ALEXY, Robert. Colisão de direitos fundamentais e a realização de direitos fundamentais no Estado Democrático. Revista de Direito Administrativo, n.217, p.67-79,1999; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo essencial..., p.49-78; Silva, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais, v. 798, p. 23-50, 2002. BOROWSKI, Op. cit., p.29-59. ÁVILA, A distinção...; ÁVILA, Teoria dos princípios...; PULIDO, Carlos Bernal. The rationality of balancing. Archives fuer Rechts-und Sozialpholosphie. v.92, n.2, p.195-208, April, 2006. TSAKYRAKIS, Stavros. The balance method on the balance: human rights limitations in the ECHR. (apresentado no Global Fellow Forum, Activities of the Jean Monnet for International and Regional Economic Law and Justice, Fall, 2007). Disponível em: http://centers.law.nyu.edu/jeanmonnet/fellowsforum/forumtsakyrakis0708.html. ALEINIKOFF, Thomas Alexander. Constitutional Law in the Age of Balancing, Yale Law Journal, v.96, 1987, p.943-1005; SANDULLI, Aldo. Eccesso di potere e controllo di proporzionalità. Profili comparati. Rivista trimmestrale di diritto pubblico, n.2, p. 329-370,1992; NOVAIS, As restrições.... 276 direitos fundamentais, seja por colisão de direitos entre si, seja por colisão de direitos e finalidades públicas constitucionalmente legítimas556. Na disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, há um duplo modo de aplicar o postulado normativo aplicativo da proporcionalidade. Um deles refere-se à averiguação da constitucionalidade de leis e de atos normativos que impeçam ou regulamentem a disposição – uma vez que significam ablações em posições subjetivas do direito geral de liberdade ou de outros direitos. O outro se refere a enunciados normativos que permitam ou incentivem a disposição, pois podem fazê-lo de modo exacerbado. Na hipótese, está-se diante da insuficiência da proteção. Na mesma senda, a não-instituição de uma competência pode mostrar-se proteção insuficiente. Para melhor compreensão, observem-se, a seguir, breves notas sobre cada um deles, ilustradas com exemplos de disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. No assunto em tela, pergunta-se qual o método adequado para averiguar se uma proibição de dispor de posições jurídicas subjetivas de um direito fundamental (ou estipulação de requisitos, critérios e salvaguardas formais para tanto) é uma restrição ou uma violação. É muito difundida a metodologia de exame sustentada por Alexy. A partir da distinção entre regras e princípios, das leis de ponderação e da lei de colisão, aplica-se a ponderação, estabelecendo-se a precedência condicionada entre os princípios em colisão, tomando o cuidado para utilizá-la em conformidade com as reformulações e refinamentos propostos por Alexy em resposta às críticas que recebeu. A ponderação é regida por três leis: (a) a lei de colisão: “Las condiciones bajo las cuales un principio precede a otro constituen el supuesto de hecho de una regla que 556 No Capítulo 2, mencionou-se que a proposta alexyana é objeto de importantes críticas, muitas endereçadas à proporcionalidade. Delas, destacam-se: (a) a diminuição do espaço dos fóruns majoritários de tomada de decisão, especialmente do legislativo, afetando negativamente o princípio democrático; (b) o intuicionismo moral ensejado pela ponderação; (c) a ausência de racionalidade no método; (d) a fragilização dos Direitos Fundamentais, que passariam a competir com metas coletivas, havendo quebra da barreira corta-fogos que eles deveriam representar; (e) o caráter exclusivamente formal do método; (f) a excessiva margem de atuação do Poder Judiciário. Apesar das críticas, há que se ter em conta que o método é muito utilizado no Brasil e alhures, em Cortes estrangeiras e internacionais, obtendo um espaço quase hegemônico. É este o móbile que leva a trabalhar a metodologia no inventário das teses de justificação. É importante trazer à tona, também, que alguns elementos objeto de crítica não fazem parte de sua concepção teórica, mas são produto de empregos exagerados, acriteriosos e, até mesmo, de banalização e mau uso do postulado. Sobre as críticas: CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição constitucional democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade..., p.185-224. Sobre o uso excessivo, ver principalmente: SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: os dois lados da moeda. Mímeo. Texto posteriormente publicado na Revista de Direito do Estado, n.2. 277 expresa las consecuencia juridica del principio precedente”; (b) as duas leis da ponderação: (b.1.) primeira lei da ponderação (substantiva): “Cuanto mayor es el grado de la no satisfación o de afectación de uno de los princípios, tanto mayor debe ser la importancia de la satisfación del otro”; (b.2.) segunda lei da ponderação (epistêmica): “the more heavily an interference with a constitutional right weights, the greater must be the certainty of its underlying premisses”557. O que se faz, portanto, é identificar quais princípios estão em colisão horizontal de um e de outro lado, certificando-se da existência efetiva de uma colisão. Identificada a colisão (P1 versus P2), estabelecer-se-á a precedência entre P1 e P2 nas condições que se apresentam, sendo por isso denominada precedência condicionada. Cada um dos princípios é concebido com um âmbito de proteção amplo prima facie e com um peso abstrato (W). Alexy assevera que, embora os princípios constitucionais sejam de mesma hierarquia, admitem diferentes pesos abstratos. Com a ponderação, será obtida uma regra, cujo suporte fático expressa as consequências do princípio que recebeu a precedência condicionada. Ao final do procedimento, ter-se-á o peso concreto (C) e o âmbito de incidência definitivo de cada um dos princípios colidentes. Para tanto, lançase mão da proporcionalidade. Em essência, com a proporcionalidade verifica-se a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito da medida que atinge direitos fundamentais, ou, na versão estadunidense, a legitimidade do fim, a idoneidade do meio, a inexistência de meio menos gravoso e a correlação estrita entre fins e meios. A adequação […] exige que toda a restrição aos direitos fundamentais seja idônea para o atendimento de um fim constitucionalmente legítimo. É imperioso, assim, que a restrição ao direito atenda a dois requisitos: em primeiro lugar, que vise a atingir um fim constitucionalmente legítimo; e, em segundo lugar, que consubstancie um meio instrumentalmente adequado à obtenção desse fim558. 557 Cf. ALEXY, Teoria de los..., p.94 e 161. ALEXY, On balancing…, p.433-449. ALEXY, Robert. Constitutional rights, balancing and rationality. Ratio Juris, v.16, n.2, p.131-140, June 2003; ALEXY, Robert. Epílogo a la teoria de los derechos fundamentales. Revista Española de Derechos Fundamentales, Madrid, n.66, p.13-64, 2002. 558 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.324-325. A autora sumaria o pensamento de vários estudiosos sobre a extensão do exame, tanto da legitimidade constitucional dos fins quanto da adequação qualitativa e quantitativa do meio para angariar o fim a que se propõe. Ela afirma que a maior parte da doutrina adere a uma concepção negativa da legitimidade dos fins (i.e, confere aos poderes públicos, muito especialmente ao legislador, uma margem de conformação dentro do constitucionalmente não vedado, ao invés de dentro do constitucionalmente exigido ou determinado) e a uma concepção débil do exame do meio. A discussão é muito relevante, pois há momentos em que um fim é constitucionalmente possível, como a proteção dos idosos ou a promoção da dignidade humana, mas é de se indagar se não se trata de uma proteção paternalista injustificada ou de uma versão inadmissível da dignidade humana. 278 Feita a análise da adequação, passa-se à necessidade, que […] tem por conteúdo a noção de que, dentre várias medidas restritivas de direitos fundamentais igualmente aptas para atingir o fim perseguido, a Constituição impõe que o legislador opte por aquela menos lesiva para os direitos […] impondo uma análise comparativa entre os diversos meios que podem auxiliar no atendimento à finalidade, a fim de que se eleja aquele que for menos gravoso para o direito afetado559. Após o exame da adequação e da necessidade, permanecendo o enunciado ou ato normativo restritivo, efetua-se a proporcionalidade em sentido estrito, que […] expressa a estrutura lógica do raciocínio ponderativo, representando o esquema de pensamento que deve comandar a parte final do processo de solução de antinomias entre princípios constitucionais. Segundo o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, uma restrição a direitos fundamentais é constitucional se pode ser justificada pela relevância da satisfação do princípio cuja implementação é buscada por meio da intervenção. Assim, a proporcionalidade em sentido estrito pressupõe efetivar uma comparação entre o grau de afetação do direito fundamental e a importância da realização do princípio que a ele antagoniza e que serve de fundamento à restrição560. Mencionou-se que Alexy refinou a proporcionalidade, especialmente nesta última etapa, vastamente acusada de irracional. O refinando está na chamada escala triádica, pela qual se estabelecem o grau de intrusão em um dos princípios e o grau de promoção do outro. Assim, a ablação poderá ser leve, moderada ou intensa. E a promoção também poderá ser leve, moderada ou intensa. Quando a disputa for entre os mesmos graus (leve/leve; moderado/moderado, intenso/intenso), haverá um empate, situação em que se respeita a margem de conformação legislativa. Se a ablação for em grau menor do que o da promoção, a medida será proporcional (leve/moderada; leve/intensa; moderada/intensa), e haverá restrição de posição subjetiva de direito fundamental. Se a ablação for de grau maior do que o da promoção (moderada/leve; intensa/leve; intensa/moderada), a medida será desproporcional, e haverá violação de posições subjetivas de direitos fundamentais561. Nesta tese, adota-se a versão débil da adequação, mas, como fazem alguns autores, externa e paralelamente à proporcionalidade, avaliam-se alguns elementos substantivos. Ou seja, à proporcionalidade reserva-se um papel mais formal, costeada por questões substantivas. Para uma explanação do debate, com excelente coleta bibliográfica, ver: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.324-336 e, também, ÁVILA, Teoria dos princípios.... 559 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.337. 560 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.346. 561 Conforme Alexy: “If one considers the possible permutations in the triadic model, there are three circumstances in which the interference with Pi is more intensive than that with Pj: (1) Ii: s, Ij: l; (2) Ii: s, Ij: m; (3) Ii: m, Ij: l. In these cases Pi precedes Pj. These three cases of the precedence of Pi are matched 279 No Capítulo 2 (item 2.2.2), foram trabalhados os exemplos AB e CD, acerca da proibição do homicídio consentido, ou seja, do estabelecimento geral da indisponibilidade do direito à vida, mediante enunciado normativo criminalizador do homicídio. Empregando a ponderação e a proporcionalidade aos casos, em AB seria preciso verificar a existência de uma colisão entre princípios, para então estabelecer a precedência condicionada. O que primeiro deve ser verificado é se há dois ou mais princípios em rota de colisão horizontal (P1, P2, Pn...). No caso, pode-se perceber a colisão entre posições subjetivas do direito geral de liberdade (P1) e os princípios que se tenta promover com a proibição do homicídio consentido, como o direito subjetivo à vida e, também, a dimensão objetiva do mesmo direito (P2 e P3). A partir da identificação do cerceamento de P1 em função da promoção de P2 e P3, analisa-se o cumprimento das exigências da adequação e da necessidade. Nitidamente, a criminalização do homicídio consentido atende a princípios e a metas constitucionalmente legítimas, inclusive ordenadas, como a preservação e a promoção do direito à vida (P2 e P3), existindo nexo de causalidade entre a proibição e a tipificação do ato de matar e a promoção dos princípios (P2 e P3)562. O meio também se mostra necessário, pois de um lado está o delicado direito à vida, a exigir zelo intenso, que é atendido pela proibição do ato de matar e de consentir em ser morto por motivos banais, ou seja, pela ablação de posições subjetivas do direito geral de liberdade (P1). A proporcionalidade em sentido estrito leva a considerar intensa a promoção de P2 e P3 e leve ou, quando muito, moderada a ablação em P1. Há que se ter em mente que o peso abstrato do direito à vida é mais elevado, isto é, ab initio pesa mais na escala e por isso exige que os princípios que com ele concorrem horizontalmente assumam, by three cases of the precedence of Pj: (4) Ii: l, Ij: s (5) Ii: m, Ij: s (6) Ii: l, Ij: m. In addition to these six cases, which can be decided on the base of the triadic scale, there are three stalemate situations: (7) Ii: l, Ij: l; (8) Ii: m, Ij: m; (9) Ii: s, Ij: s. In case of a stalemate balancing does not determine a result. This is a case of discretion in balancing that is of the greatest importance for the delimitation of the competences of that part of the judiciary that executes constitutional review on the one hand, and those of the legislator on the other hand. But this cannot be discussed here”. A fórmula completa do peso leva em consideração o peso abstrato de cada princípio (W), a intervenção (I) e seus graus (na promoção de um princípio e na ablação do outro), e a intensidade epistêmica (R): Wi,j = Wi.Ii.Ri/Wj.Ij.Rj. Se o peso abstrato for o mesmo, não é necessário utilizá-lo, simplicando-se a fórmula para: Wi,j =.Ii.Ri/Ij.Rj. Caso a margem epistêmica também seja a mesma, a fórmula mais simples, e mais empregada, será: Wi,j = Ii /Ij. Com tais fórmulas, obtém-se o peso definitivo e concreto (C). ALEXY, On balancing..., p.443-447. Para maiores explanações e leitura crítica, em vernáculo, voltada ao direito brasileiro e com apoio na melhor literatura, ver: OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Moralidade..., p.197 e ss. 562 A análise aqui feita é meramente exemplificativa e bastante simplificada. No próximo Capítulo será elaborada a proporcionalidade a respeito da indisponibilidade de posições subjetivas do direito à vida na terminalidade da vida. 280 efetivamente, um alto peso concreto. Assim, a medida mostra-se constitucional e há uma restrição de posições subjetivas de direito fundamental563. Lembrando o exemplo CD, referido antes, percebe-se que a mudança nas condições fáticas (concretas) altera toda a aplicação, pois há novos princípios em jogo, como a privacidade, a liberdade de consciência, a proibição de tratamento desumano ou degradante, mais fortes no caso CD do que no caso AB (se é que nele estão presentes). Então, o resultado da ponderação pode se mostrar assaz diverso em cada uma das situações. Adiante, o ponto será tratado em pormenor. Com o postulado da proporcionalidade, o que se analisa é se há uma justificação para o Estado restringir o direito geral de liberdade (e/ou outros princípios que eventualmente se façam presentes) e proibir, dificultar e regulamentar a disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Muitas vezes, essa tarefa será efetuada tendo em vista o dever estatal ou as ações ordenadas de proteção (ligados à dimensão objetiva dos direitos fundamentais). No exemplo AB, é bastante claro que o dever estatal e as ações ordenadas de proteção do direito à vida entram em cena e assumem papel de destaque na ponderação, uma vez que a permissão ampla do homicídio consentido tornaria deveras dificultosa a prova em casos de homicídio, pois os acusados passariam a alegar que a vítima consentira564. Fica patente que é a extensão da atuação restritiva por parte do Estado que entra em questão. Nessa medida é que se define se a posição subjetiva de direito fundamental é reputada disponível ou indisponível. É do mesmo modo que, mediante a ponderação, verifica-se a justa medida acerca dos requisitos postos por enunciados normativos quanto aos atos de disposição de posições jurídicas subjetivas de Direitos Fundamentais. O último ponto merece uma ilustração. Ao tratar do consentimento, viu-se que uma das discussões travadas para a validade do consentimento em casos de aborto nos EUA deu-se justamente pelo estabelecimento de requisitos desligados da tutela da liberdade de escolha e da informação. Alguns estados criaram sistemas de espera, registros não inteiramente confidenciais, estabeleceram processos de informação permeados de ideologias pró-vida e chegaram até a tornar obrigatórias certas técnicas médicas para o procedimento, que não eram as mais indicadas nem as ideais. A regulamentação do consentimento e do ato cirúrgico em si não mais visavam à 563 Alexy expressamente assume que o direito subjetivo à vida possui um peso abstrato (W) mais elevado. ALEXY, On balancing…, passim. ALEXY, Constitutional rights…, passim. 564 O raciocínio é inspirado em Terrance McConnell. McCONNELL, Op. cit. 281 qualidade do consentimento, tampouco à segurança das gestantes. No fundo, tentavam dissuadir e dificultar a decisão pelo abortamento. Aplicando o devido processo legal substantivo, a Suprema Corte dos EUA considerou que tais requisitos eram violações às posições subjetivas de direitos fundamentais das gestantes, declarando-os inconstitucionais, principalmente por não haver nexo de causalidade entre o meio empregado e o fim perseguido565. Nota-se que não havia proibição direta, mas um engendramento de condições que dificultava excessivamente o exercício de posições subjetivas de direitos fundamentais reputadas constitucionalmente protegidas naquele país, violando-as566. Além de aplicar o postulado da proporcionalidade ao ensejo das reformulações acerca da escala triádica (ou ainda da dupla escala triádica) e da fórmula do peso, atenção especial deve ser conferida às chamadas margens de atuação estrutural e epistêmica ou cognitiva, ligadas ao princípio formal democrático. Das críticas à ponderação, uma das mais relevantes refere-se ao excesso de poderes conferidos ao órgão judicante e à correlativa diminuição das margens de atuação do legislador e mesmo do executivo, o que impacta em demasia o princípio democrático. Ao responder aos seus críticos, Alexy buscou demonstrar que o modelo da ponderação mantém uma margem de ação estrutural significativa para o legislador. Em primeiro lugar, porque se concebe a Constituição em um modelo formal-material, no qual há uma moldura composta pelo que está ordenado ou proibido. O interior da moldura é a margem de ação estrutural do legislador, que poderá delinear fins a serem perseguidos, selecionar entre meios para angariá-los e engendrar políticas públicas. Em segundo lugar, porque nos casos de empate na escala triádica, mantém-se a orientação do legislador, que estará em sua margem estrutural de atuação567. 565 Ver supra, item 3.2.2.2. Consultar: USA, Akron v. Akron Center for Reproductive Health, Op.cit.; USA.Thornburgh v. American College of Obstetricians and Gynecologists Op.cit., e MARTEL, Devido processo legal ..., p.265 e ss. 566 Esclarece-se que, como outros atos cirúrgicos, o abortamento envolve disposição de posições subjetivas de direito fundamental por parte da gestante. Todavia, nesta tese, não se discute se há direitos do embrião ou feto envolvidos. Para aqueles que entendem que há direitos do embrião e do feto, quanto a eles o abortamento é uma ablação heterônoma, que não afeta a existência de uma disposição por parte da gestante quanto ao ato cirúrgico, cuja justificação está, exatamente, em seu consentimento. 567 O modelo material-procedimental de Constituição leva em consideração tanto os princípios substantivos quanto os formais, como a tripartição de poderes e o princípio democrático. Os outros dois modelos são: (a) Modelo puramente material: acepção na qual se compreende que a atividade dos poderes constituídos consiste estritamente em dar vazão ao que está ordenado no texto constitucional e atender às suas proibições. A margem de atuação do legislador é muito reduzida, pois se compreende que a Constituição carrega em si respostas e projetos que precisam ser executados. Uma crítica ao modelo o esclarece: a Constituição seria um “ovo jurídico originário”. (b) Modelo puramente procedimental: a 282 A margem de ação epistêmica ou cognitiva é um limite importantíssimo ao controle jurisdicional das medidas ablativas de posições subjetivas de direito fundamental. A margem de ação epistêmica será empírica ou normativa. Empírica, se versar sobre fatos que não foram comprovados nem testados, sobre os quais pairam dúvidas razoáveis acerca da eficácia dos meios, da própria existência de um fenômeno, ou de comparação entre abordagens diversas. Em suma, não há dados comprováveis suficientes para orientar a decisão mais acertada. Normativa, se versar sobre pontos morais altamente controversos, sobre os quais não há margem de consenso moral razoável, não há diretriz constitucional determinante, tampouco existe possibilidade (pelo menos em época determinada) de comprovação do tipo empírico. Como exemplo, Alexy menciona o caso Cannabis, no qual foi mantida a proibição do uso recreativo da maconha, pois a Corte entendeu serem insuficientes os dados sobre as consequências da permissão da maconha quanto à proteção da saúde pública568. No Brasil, recentemente o STF enfrentou a constitucionalidade de um artigo da Lei de Biossegurança, versando sobre as células-tronco embrionárias e seu emprego em pesquisas científicas. À luz da teoria alexyana, o julgado recairia na margem de atuação epistêmica, tanto empírica quanto normativa, pois havia dois elementos de incerteza: (a) a incerteza empírica sobre tais células, ou seja, sobre quando, científica e biologicamente, a vida humana tem seu início; (b) a forte incerteza sobre o status moral e jurídico de células embrionárias nãoimplantadas569. As margens estrutural e cognitiva conferem os limites à atuação jurisdicional na ponderação. Evidentemente, a redação do enunciado normativo constitucional muito influirá na proporcionalidade. Será muito diferente avaliar, e.g., enunciados normativos que proíbem a disposição de posições subjetivas do direito à vida daqueles que regulam a disposição de posições subjetivas do direito à inviolabilidade do domicílio. No segundo caso, a própria Constituição Federal já oferece linhas de solução para o problema, margem de atuação do legislador é deveras ampla, pois a Constituição conteria poucas proibições substantivas. A preocupação estaria direcionada aos vieses procedimentais de tomada de decisão e aos elementos substantivos que a ele se conectam diretamente. ALEXY, Epílogo..., p.13-64. 568 ALEXY, On balancing…, p.447-448. 569 A linha decisória do STF não foi esta, mas o resultado – a manutenção do enunciado normativo – coaduna-se com a metodologia das margens de atuação epistêmica. Sobre o tema: BRASIL. ADI nº3.510/DF. Rel. Min. Carlos Ayres de Britto. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal /processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=2299631; BARROSO, A defesa da constitucionalidade...; OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. “Direito como integridade” e “ativismo judicial”: algumas considerações a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Estudos contemporâneos de direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.237-266. 283 prevendo expressamente a autolimitação. Recorde-se o julgado do STF acerca da Lei de arbitragem. A dicção do enunciado normativo e sua história assumiram papéis importantes no deslinde da questão constitucional. Em muitos países, é acirrada a discussão sobre o comércio de órgãos e de tecidos humanos. No Brasil, há vedação constitucional expressa a respeito, de modo que sequer é ventilada a aplicação de postulados normativos aplicativos em eventuais proibições (ou permissões) infraconstitucionais570. Até o momento, tem-se que as posições subjetivas de direitos fundamentais são prima facie disponíveis, em função da aceitação do direito geral de liberdade, do suporte fático amplo e da concepção ampla de restrição. Neste rumo, quando uma posição subjetiva de direito fundamental for reputada indisponível – quer diretamente, mediante enunciados normativos proibitivos, quer indiretamente, mediante regulações do ato de disposição –, haverá interferência com posições subjetivas do direito geral de liberdade (ou outros de direitos, conforme o caso), e somente após suprido o ônus argumentativo será possível identificar a questão como sendo uma restrição ou uma violação. Para verificar se o ônus argumentativo foi suprido, emprega-se a ponderação e a proporcionalide. No mesmo giro, se forem estabelecidos critérios e regulações que dificultem ou sobrecarreguem o exercício de posições subjetivas para dispor, empregarse-á a proporcionalidade. Paralela e conjuntamente à proporcionalidade, põe-se em andamento os demais critérios de aplicação apresentados neste Capítulo, principalmente os atinentes ao consentimento. Ademais, os elementos de justificação – em especial o paternalismo e seus institutos afins e a dignidade humana – correm ao lado da proporcionalidade, por ocasiões adentrando em sua construção argumentativa. O outro cenário de aplicação da proporcionalidade acontece quando não há proteção estatal para o ato de disposição ou há uma proteção excessivamente débil. Acontece, também, quando não há instituição de competências para dispor, ou, ainda, se elas forem jusfundamentalmente protegidas e configurarem direitos estritos à instituição de competências. Nessas situações, está-se diante da proteção insuficiente ou deficiente, situações nas quais a proporcionalidade ganha contornos diferenciados de aplicação. Carlos Bernal Pulido define com precisão a proibição da proteção deficiente: 570 Supra, item 2.1.2 e 3.4.6. 284 Nesta variável, o princípio da proporcionalidade supõe também interpretar os direitos fundamentais de proteção como princípios e aceitar que deles se deriva a pretensão prima facie de que o legislador os garanta na maior medida possível, tendo em vista as possibilidades jurídicas e fáticas. Isso quer dizer que esses direitos impõem prima facie ao legislador o desenvolvimento de todas as ações (não redundantes) que favoreçam a proteção de seu objeto normativo, e que não impliquem a vulneração [Esta vulneração se produz quando as medidas de proteção representam intervenções desproporcionais nos princípios que atuam em sentido contrário] de outros direitos e princípios que atuem em sentido contrário. O caráter prima facie destes direitos implica que as intervenções do legislador de que sejam objeto somente possam ser constitucionalmente admissíveis e válidas de maneira definitiva se observarem as exigências do princípio da proporcionalidade571. Assim como na proporcionalidade pela intrusão indevida em posições subjetivas de direitos fundamentais, a proibição da proteção deficiente também se processa em três etapas, no exame da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito572. Considera-se de relevo destacar que a proibição da proteção deficiente não significa que ao Estado esteja ordenado criminalizar condutas, em uma linha penal maximalista, típica dos movimentos de lei e ordem. Em primeiro lugar, porque há outros mecanismos de proteção e promoção tão ou mais eficazes do que o direito penal. Em segundo lugar, porque a tipificação de condutas atende ao princípio da legalidade estrita, indicando uma ampla margem de atuação do legislador para definir se a criminalização é o instrumento mais acertado. Em terceiro lugar, porque, apesar de o direito penal apresentar-se, em seu discurso simbólico, como um instrumento de proteção dos direitos fundamentais, ele é usualmente bastante agressivo a outras posições subjetivas de direitos fundamentais, o que recomenda seu emprego parcimonioso. Em quarto lugar, porque o direito penal é, no sistema brasileiro, reconhecidamente a ultima ratio573. 571 PULIDO, Carlos Bernal. O princípio da proporcionalidade da legislação penal. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, p.826-827. Consultar também: SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais e Proporcionalidade: notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal. Revista da Ajuris, v. 109, p. 139-162, 2008. SARLET, Ingo. Direitos Fundamentais e Direito Penal: breves notas a respeito dos limites e possibilidades da aplicação das categorias da proibição de excesso e de insuficiência em matéria criminal – necessária e permanente busca da superação dos 'fundamentalismos' hermenêuticos. Revista da ESMESC, v. 15, p. 37-74, 2009. 572 A respeito, ver: PULIDO, O princípio da..., p.827-828. 573 São as seguintes as linhas de política criminal: (a) Movimento de Lei e Ordem: Identificado com os movimentos Law and Order estadunidenses, propõe como resposta ao problema criminal o aumento e o enrijecimento das penas privativas de liberdade, resultando na maximização do Sistema Penal. Para tanto, é favorável às medidas de limitação e flexibilização dos direitos fundamentais das pessoas acusadas e condenadas criminalmente; incremento da inflação legislativa penal; legalização da pena de morte e de 285 Na Colômbia, há um caso paradigmático a respeito, versando sobre a eutanásia. Um cidadão colombiano ajuizou uma ação visando à declaração abstrata de inconstitucionalidade do enunciado normativo penal que criminalizava o homicídio piedoso. Seu objetivo não era o de permitir o homicídio piedoso; ao contrário, ele sustentava que o abrandamento da pena nesses casos não estava em conformidade com a Constituição colombiana. No seu rumo de raciocínio, o homicídio piedoso constituiria um ataque ao direito à vida com efeitos idênticos aos do homicídio simples. Desse modo, o abrandamento da pena não seria justificável. Em seu entender, o Estado colombiano despendia proteção deficiente ao direito à vida ao tratar com menos rigor o homicídio piedoso, conceito que pode abarcar o homicídio consentido ou a pedido (disposição de posições subjetivas do direito à vida)574. Se a situação não fosse tão séria, dir-se-ia que, por ironia, o resultado obtido pela Corte Constitucional colombiana foi exatamente o oposto, uma desproporção por violação de posições subjetivas de direitos prisão perpétua. Uma das características principais desse movimento é a demonização do criminoso, visto como um inimigo da sociedade, que deve ser aniquilado ou neutralizado. (b) Minimalismo Penal ou Direito Penal Mínimo: O Direito Penal Mínimo parte da constatação dos efeitos custosos e prejudiciais do Sistema Penal e da ineficiência das penas privativas de liberdade para cumprir suas funções declaradas. Por isso, este movimento pretende a minimização do alcance desse Sistema, a partir de uma ampla descriminalização das condutas atualmente puníveis, permanecendo como crime apenas as condutas altamente lesivas a bens jurídicos fundamentais. Além dessa medida, o Minimalismo prevê a maximização dos direitos humanos e fundamentais das pessoas acusadas e condenadas, o que serve como limite ao poder de persecução penal do Estado. (c) Abolicionismo Penal: É um movimento alternativo de política criminal, de viés crítico, que apresenta as disfunções e irracionalidades do Sistema Penal, apontando sua ilegitimidade. Propõe a abolição do Sistema e a adoção de outros modelos para compreender o conflito criminal e para construir respostas mais participativas e comunitárias para esse conflito, com a colaboração da vítima e do transgressor. Entre as medidas de caráter abolicionista, cita-se: compensação financeira para a vítima, de caráter indenizatório ou compensatório, seja por parte do transgressor ou do Estado; a mediação; a conciliação; a arbitragem; a terapia; a educação; a aplicação de medidas de outros ramos jurídicos, como o administrativo ou o cível. O movimento abolicionista não compactua com a criação de penas alternativas ou substitutos penais, porque acredita que estes reforçam e procuram legitimar a estrutura violenta do Sistema Penal. PULIDO, O princípio da..., p.827-829. FELDENS, Luciano. A conformação constitucional do direito penal: realidades e perspectivas. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel (Coords.). A constitucionalização do direito. Fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007. p.831-855. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 3.ed. Tradução e prefácio Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. 574 O enunciado do Código Penal possuía a seguinte redação: “Homicídio por piedad. El que matare a otro por piedad, para poner fin a intensos sufrimientos provenientes de lesión corporal o enfermedad grave o incurable, incurrirá en prisión de seis meses a tres años.” Cf. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op. cit. No Brasil, o Código Penal não prevê especificamente a figura do homicídio piedoso, mas a doutrina entende que o ato de matar alguém que está em intenso sofrimento, ainda que exclusivamente por piedade, conforma-se com homicídio privilegiado, ou seja, encaixa-se em um caso especial de diminuição de pena: “Art 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de pena. § 1o Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. BRASIL, Código Penal, Op. cit. 286 fundamentais pela criminalização da eutanásia. Ou seja, a Corte descartou os argumentos do peticionário, com fulcro em princípios constitucionais e em teorias da pena e do delito, lançando mão da proporcionalidade. A maioria, contudo, foi mais além. Operou uma interpretação conforme a Constituição, impedindo a aplicação do enunciado normativo em casos de eutanásia voluntária (ativa e devidamente consentida), em pacientes terminais capazes, realizada por médico. A descriminalização da eutanásia deu-se, pois, por decisão judicial, que considerou excessiva a ablação de posições subjetivas de direitos fundamentais por medidas proibidoras da disposição de posições subjetivas do direito à vida por indivíduos em situação irrecuperável, irreversível, em sofrida terminalidade da vida575. A proibição da proteção deficiente encampa também a eventual não-instituição de competências para a disposição de posições subjetivas de direito fundamental, quando jusfundamentalmente protegidas. A omissão estatal retira o reconhecimento jurídico da disposição, enseja ablação em posições subjetivas de direitos fundamentais, criando um ambiente de insegurança jurídica, primordialmente ao se entender as posições subjetivas de direito fundamental como prima facie disponíveis. O julgado colombiano sobre a eutanásia pode ser inspiração para demonstrar o ponto. Além de permitir a eutanásia, faz-se necessário instituir as formas jurídicas para a validade do ato de disposição, ou seja, as circunstâncias de admissibilidade, as salvaguardas do consentimento, os instrumentos jurídicos adequados (TCLE, testamentos vitais, diretrizes avançadas, etc.)576. A Suprema Corte do Canadá, ao manifestar-se sobre a constitucionalidade dos enunciados normativos criminalizadores do suicídio assistido, manteve a proibição por apertada maioria de 5 a 4. No voto condutor da minoria, além de aceitação da constitucionalidade do suicídio assistido em hipóteses específicas, foram delineadas as salvaguardas ao consentimento, os mecanismos jurídicos para sua manifestação e para a realização do ato, em clara preocupação com a instituição de competências e com as salvaguardas ao consentimento577. No Brasil, é exemplo a cirurgia de transgenitalização. Há pouco mais de uma década, não havia instrumento jurídico viável e seguro para a realização da cirurgia, de modo que os indivíduos não conseguiam realizá-la, às vezes sequer mediante pleito judicial578. Atualmente, 575 A decisão será objeto de exame no Capítulo 4. COLOMBIA, Sentencia C-239/97, Op. cit. 577 CANADÁ, Rodriguez v. British Columbia (Attorney General), Op.cit. 578 O não-reconhecimento da competência trazia consigo dúvidas sobre a qualidade criminosa da cirurgia, já que, em não havendo instrumento jurídico seguro a garantir as partes, especialmente os profissionais da 576 287 reconhece-se a competência para a disposição, com critérios prévios e bem delineados a respeito579. Finalizando o tópico sobre o postulado da proporcionalidade e a disposição de posições subjetivas de direito fundamental, assumem-se algumas posturas. Entende-se que a proporcionalidade é um critério a ser utilizado em conjugação aos demais. Todavia, crê-se que se trata de um método de exame residual e não exclusivo. Embora ele signifique uma ligação entre aplicação e justificação, acredita-se que os elementos de justificação analisados no Capítulo anterior não se esgotam na aplicação da proporcionalidade, uma vez que o postulado é dotado de características eminentemente formais, que podem deixar escapar importantes questões substantivas, primacialmente quanto ao paternalismo e seus institutos afins, à dignidade humana e também a alguns elementos aplicativos sobre o consentimento. Por isso, lado a lado à proporcionalidade, no Capítulo subsequente serão levantadas tais questões substantivas. Ademais, quando da investigação da dignidade humana, aventou-se a importância do método dworkiniano da integridade. A integridade é construtivista e concebe enunciados normativos e decisões judiciais como fios que compõem uma teia que une presente, passado e futuro, a tradição e a prospecção, permitindo uma leitura principiológica e coerente de um sistema jurídico. Assim, pensa-se que é viável aliar esse elemento da integridade ao método da ponderação (embora se tenha ciência de que Ronald Dworkin não a utiliza e defende outra metodologia de exame). Com isso evita-se mais uma das críticas relativas à proporcionalidade, o decisionismo e o intuicionismo, pois é preciso construir e reconstruir as decisões à luz dos precedentes e do sistema em sua inteireza, vistos sob sua melhor luz580. saúde, corriam eles o risco não só da anulação do ato, mas de recair em comportamento civil e criminalmente ilícito. A respeito, ver o relato de Pierangeli sobre a condenação pelo juízo singular, e posterior absolvição por maioria, de um médico que realizou a cirurgia, com consentimento do paciente, no início da década de 1970. Na mesma década, a cirurgia foi considerada mutiladora pelos profissionais ligados à medicina forense. Apenas em 1997 o CFM reconheceu a cirurgia como pesquisa e estabeleceu seus requisitos e critérios. PIERANGELI, Op. cit., p.255-260. BRASIL, CFM, Resolução nº1.482/1997, Op.cit. Em 2002, a cirurgia passou ao plano da assistência em saúde, deixando de ser considerada pesquisa. BRASIL, CFM, Resolução nº1.652/2002, Op. cit. 579 Além da Resolução do CFM na matéria, há decisões judiciais favoráveis. Já se reconheceu, inclusive, o direito a realizar a cirurgia pelo SUS. BRASIL. TRF4. Apelação Cível nº2001.71.00.026279-9/RS. Rel. Juiz Federal Roger Raupp Rios. Terceira Turma. DE de 22/08/2007. 580 A opção não exclui de plano o emprego do método dworkiniano. Como esclarecimento, ver: MARTEL, São os direitos como trunfos..., passim. 288 3.5 O conteúdo essencial dos direitos fundamentais e disposição: o limite dos limites? Outra tese de aplicação sugerida para o exame da disposição de posições subjetivas de direito fundamental é a atenção ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais581. A orientação seria a de que o conteúdo essencial dos direitos fundamentais é o limite último e intransponível à disposição, de sorte que é dever ou ação ordenada do Estado impedir atos de disposição que afetem o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Desde já salienta-se que a proibição de afetação do conteúdo essencial dos direitos fundamentais não é a única barreira, mas a derradeira. Portanto, é perfeitamente admissível a proibição de disposições que não afetem o conteúdo essencial, desde que se mostrem condizentes ao postulado da proporcionalidade582. Para explicitar o critério, são necessárias algumas palavras sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. A Constituição brasileira vigente não adotou expressamente a proteção do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, como fizeram as constituições alemã, portuguesa, espanhola e italiana583. Ainda assim, muitos 581 SARMENTO, A vinculação dos particulares..., Op. cit. É muito importante manter a clareza nesta questão. Reis Novais explicita bem o tópico, pois, se o conteúdo essencial for confundido com a única proibição de interferência, ele acaba por diminuir a proteção aos direitos fundamentais, uma vez que tudo o que não compuser o conteúdo essencial será restringível (ou autolimitável): “Nas decisões de não-provimento de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional faz ou uma utilização retórica da garantia do conteúdo essencial (mesmo que se tratasse de limitação não constitucionalmente consentida não haveria inconstitucionalidade porque não há violação do conteúdo essencial) ou, e já com consequências nefastas, uma utilização marcadamente relativizadora da garantia proporcionada pela norma de direito fundamental (como não afectou o conteúdo essencial, não há verdadeira restrição ou, a existir, ela não será inconstitucional, como se só esse núcleo beneficiasse da proteção reforçada que, todavia, é conferida a todo o âmbito de protecção do direito fundamental através do valor formalmente constitucional da norma que o garante), ao mesmo tempo que se sugere uma adesão indiferenciada à teoria absoluta ou à relativa.”. NOVAIS, As restrições..., p.796797. 583 Na Constituição alemã: “Artículo 19. [Restricción de los derechos fundamentales]. (1) Cuando de acuerdo con la presente Ley Fundamental un derecho fundamental pueda ser restringido por ley o en virtud de una ley, ésta deberá tener carácter general y no estar limitada al caso individual. Además, la ley deberá mencionar el derecho fundamental indicando el artículo correspondiente. (2) En ningún caso un derecho fundamental podrá ser afectado en su contenido esencial. (3) Los derechos fundamentales rigen también para las personas jurídicas con sede en el país, en tanto por su propia naturaleza sean aplicables a las mismas. (4) Toda persona cuyos derechos sean vulnerados por el poder público, podrá recurrir a la vía judicial. Si no hubiese otra jurisdicción competente para conocer el recurso, la vía será la de los tribunales ordinarios. No queda afectado el artículo 10, apartado 2, segunda frase”. Na portuguesa, “Artigo 18.º Força jurídica. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. 3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”. Na espanhola: “Artículo 53. 1. Los derechos y libertades reconocidos en el Capítulo segundo del presente Título vinculan a todos los poderes públicos. Sólo por ley, que en todo caso deberá respetar su contenido esencial, podrá regularse el ejercicio de 582 289 doutrinadores brasileiros adotam o conteúdo essencial como o limite dos limites às interferências com os direitos jurisprudenciais a respeito 584 fundamentais e há algumas manifestações . Apesar da adoção da ideia “pelas jurisprudências constitucionais nas mais diferentes latitudes”585, existe muita controvérsia sobre seu significado, alcance e até mesmo utilidade. Nas palavras de Novais: A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, enquanto limite aos limites, apesar de ser uma criação especificamente alemã, encontrou, a partir de sua consagração na Grundgesetz, um eco generalizado na doutrina e jurisprudência nacionais de vários outros países, incluindo mesmo uma recepção constitucional expressa, como aconteceu, entre nós (art. 18º, nº3) ou na Constituição espanhola de 1978 (art.53º, nº1). Há, porém, como veremos, um defasamento notório entre o enorme sucesso que a fórmula encontrou e o reduzido sentido jurídico útil e autônomo – se é que algum existe – que, decorrido meio século sobre sua primeira consagração positiva, é possível atribuir a esta garantia constitucional do conteúdo essencial. Nota-se que o jurista português, mesmo lidando com um texto constitucional que expressa a garantia do conteúdo essencial, questiona sua utilidade. Após a exposição breve dos principais debates sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tomar-se-á uma posição no assunto, já ligada à disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais. Genericamente, pode-se afirmar que o conteúdo essencial é compreendido como uma parte nuclear do direito fundamental imune a afetações. Os direitos fundamentais seriam então compostos por duas partes, uma nuclear e outra periférica. A periférica poderia ser objeto de ablações – quer restrições, quer autolimitação –, desde que atendidos pressupostos, como, no primeiro caso, a proporcionalidade. Já a nuclear não admitiria qualquer afetação, resistindo sempre. É usual os autores invocarem a imagem de círculos concêntricos para caracterizar o conteúdo essencial. A parte aureolar seria a que admite interferências e a nuclear a que não admite586. tales derechos y libertades, que se tutelarán de acuerdo con lo previsto en el artículo 161.1 a”. PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa. Disponível em: http://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. ALEMANHA, Lei Fundamental..., Op. cit. Para comentários sobre as diferenças textuais e interpretativas entre a versão portuguesa e a espanhola, ver NOVAIS, As restrições..., p.790, nota nº1437. 584 No tema: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.366 e ss. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e ss. Os autores referem julgados nacionais no assunto. 585 NOVAIS, As restrições..., p.782. 586 A tese do conteúdo essencial relaciona-se mais facilmente à teoria externa dos direitos fundamentais. Como exposto, é a teoria externa que se está a empregar na tese. Cf. ALEXY, Teoria de los..., p.287 e SS; NOVAIS, As restrições..., p.782; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.303 e ss; 290 Porém, são diversos os problemas trazidos pela tese do conteúdo essencial. Entre eles, destacam-se: (a) a dificuldade em determinar o que, exatamente, ele protege, em dois sentidos: (a.1) definir se ele se reporta à dimensão subjetiva ou se à dimensão objetiva dos direitos fundamentais; (a.2) definir qual é o conteúdo que efetivamente o compõe e quais os critérios empregados para tanto; (b) a dificuldade de lançar a tese em prática, uma vez que a dinâmica dos direitos fundamentais deixa perceber, sob certas circunstâncias, diversas interferências na inteireza de alguns direitos fundamentais587. Em virtude dos problemas e críticas, formaram-se quatro leituras básicas sobre o conteúdo essencial dos direitos fundamentais, as quais comportam diferentes combinações, originando as teorias mistas588. As quatro bases são: (a) teoria objetiva; (b) teoria subjetiva; (c) teoria absoluta; (d) teoria relativa. Conforme Virgílio Afonso da Silva, as teorias objetivas e subjetivas são assim expressas: A definição de um conteúdo essencial para os direitos fundamentais pode ser abordada, inicialmente, a partir de dois enfoques distintos: o objetivo e o subjetivo. No primeiro caso, trata-se de uma análise acerca do direito fundamental como um todo, a partir de sua dimensão como direito objetivo; no segundo, o que importa é investigar se há um direito subjetivo dos indivíduos a uma proteção ao conteúdo essencial de seus direitos fundamentais589. Na leitura objetiva, a proteção ao conteúdo essencial refere-se à função e à eficácia de um direito fundamental em um dado ordenamento jurídico, de modo que protegê-lo significa que “o conteúdo essencial de um direito fundamental implica em proibir restrições à eficácia desse direito que o tornem sem significado para todos os indivíduos ou para uma boa parte deles”590. Além do óbvio problema de identificar qual seria esse patamar de ineficácia ou perda de função e quais e quantos indivíduos ou grupos teriam que ser atingidos pelas medidas, a leitura objetiva parece não oferecer maiores proteções aos direitos fundamentais, pois só entraria em ação em hipóteses bastante drásticas de esvaziamento de direitos fundamentais. Virgílio Afonso da Silva PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.366 e ss; SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e ss. 587 Para aprofundamento: ALEXY, Teoria de los..., p.287 e ss; NOVAIS, As restrições..., p.782; ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.303 e ss; PEREIRA Jane Reis Gonçalves, Op.cit., p.366 e ss, SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e ss. 588 Escreveu Jane Reis: “De tais divergências resultaram, fundamentalmente, quatro formulações teóricas principais, denominadas teoria objetiva, teoria subjetiva, teoria absoluta e teoria relativa. Tais teorias são também objeto de distintas combinações entre si, das quais resultam as variantes mistas”. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.368. Ver também: SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.241 e ss. NOVAIS, As restrições..., p.782 e ss. 589 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.243. 590 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.244. 291 entende que essa proteção já está incluída, na Constituição brasileira, na proteção expressa dos direitos e garantias individuais contra propostas de Emendas tendentes a aboli-los, ou seja, as cláusulas pétreas591. Já a leitura subjetiva refere-se à proteção da face subjetiva de um direito fundamental. O conteúdo essencial encontrar-se-ia em cada direito subjetivo, e sua violação poderia ocorrer em relações subjetivas particularizadas, não apenas quando fosse esvaziado o significado ou a função do direito como um todo em um dado ordenamento. Nesse sentido, o conteúdo essencial mostra-se mais protetor das relações jurídicas de direitos fundamentais, e, por conseguinte, dos direitos fundamentais. Assim como ocorre com a tese objetiva, à tese subjetiva também são endereçadas críticas. A principal delas é de cunho prático, no sentido de que em “diversos casos concretos é possível que nada reste de um direito fundamental, sem que isso deva ser considerado como algo a ser rechaçado”592, exatamente por adoção da teoria externa e do postulado da proporcionalidade. Além das teses objetivas e subjetivas, há as teses absolutas e relativas. Vieira de Andrade bem definiu as teses absolutas: Para as teorias absolutas, o “conteúdo essencial” consistiria em um núcleo fundamental, determinável em abstracto, próprio de cada direito e que seria, por isso, intocável. Referir-se-ia a um espaço de maior intensidade valorativa (o “coração do direito”) que não poderia ser afectado sob pena de o direito deixar de existir593. Nos ditames da tese absoluta, o conteúdo essencial de um direito fundamental seria definido a priori, de modo autônomo e externo ao emprego do postulado da proporcionalidade e consistiria no núcleo de intangibilidade de cada direito 591 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.244. Paulo Ricardo Schier defende a proposta de a proteção ao conteúdo essencial encontrar seu fundamento na sistemática das cláusulas pétreas, aderindo a uma postura objetiva. Jane Reis é contundente na exposição das críticas à teoria objetiva, pois a tese retiraria do conteúdo essencial sua utilidade, “porquanto impede que esta opere como garantia da finalidade basilar dos direitos fundamentais, que é precisamente proteger as pessoas especificamente consideradas”. SCHIER, Paulo Ricardo. Fundamentação da preservação do núcleo essencial na Constituição de 1988. CONPEDI, 2007. Belo Horizonte. Anais do CONPEDI, p.7077-7090. Disponível em: http://conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/paulo_ricardo_schier.pdf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves, Op. cit., p.369. 592 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.245. Dos diversos autores consultados sobre a proposta de conteúdo essencial, não restou de todo claro, ao combinar a posição teórica aos exemplos oferecidos, se a tese subjetiva refere-se à proteção de um núcleo de todo o feixe de posições subjetivas de um direito fundamental, ou se a cada uma das posições analisadas individualmente atribuir-se-ia um conteúdo essencial. Pensa-se, então, que a lógica está em lidar com as posições individualmente consideradas, tal qual foi proposto para o exame da modalidade de disposição (item 3.1), pois, a se considerar todo o feixe de posições subjetivas, a garantia do conteúdo essencial perde muito de substância, tornando-se aplicável somente a algumas ablações mais seletas e mais drásticas. 593 ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.304. 292 fundamental, ou seja, adota-se uma “perspectiva ontológico-substancialista”594. Virgílio Afonso da Silva aponta que as teses absolutas podem ser (a) estática ou (b) dinâmica. Será estática quando conceber “o conteúdo essencial dos direitos fundamentais não apenas como absolutos em sentido espacial, mas também como absoluto em sentido material-temporal […], ou seja, não é somente intangível […] mas também imutável”595. Será dinâmica quando o conteúdo essencial for concebido como modificável “com a passagem do tempo”596. Entre os que aderem à tese absoluta, são diversos os critérios adotados e os conteúdos dados ao conteúdo essencial, e haverá também variações conforme seja ela aliada à tese subjetiva ou à objetiva. É daí que surgem as críticas às teses absolutas: afinal, como se determina o conteúdo absoluto de cada direito fundamental? E persiste ainda o forte argumento dos relativistas, qual seja, como explicar que, em algumas condições, nada ou muito pouco restará de um direito fundamental quando a ele forem apostas restrições597. Com enfoque na disposição de posições subjetivas de direito fundamental, formula-se um exemplo da teoria absoluta e da última crítica mencionada. Suponha-se que seja proibida a recusa de tratamentos médicos quando dela decorrem riscos à vida do enfermo e, concomitantemente, sua justificação encontra-se na preservação de posições subjetivas do direito à vida (justificação substantiva). Suponha-se, agora, que um paciente, fiel religioso, recuse genuinamente uma terapia transfusional hábil a salvar-lhe a vida. A recusa implica uma não-disposição de posições subjetivas de direito fundamental, uma vez que o enfermo não desobriga terceiros, mediante consentimento, quanto a posições subjetivas de seus direitos à inviolabilidade corporal (integridade física) e à privacidade. Ao fazê-lo, está exercendo posições subjetivas de seu direito à liberdade religiosa. Ao proibir a recusa, tornando o tratamento compulsório, o Estado atinge, na inteireza, a posição subjetiva do direito à liberdade religiosa, bem como as posições relativas à integridade física e à privacidade. À luz de teorias absolutas e subjetivas do conteúdo essencial, a proibição seria excessiva, pois as posições seriam integralmente atingidas. Porém, se permitida a recusa, poder-se-ia contra-argumentar 594 NOVAIS, As restrições..., p.782. SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.248. 596 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.248. 597 Alguns autores encontram o conteúdo essencial na dignidade humana; outros defendem que cada direito deve ser analisado individualmente e, dessa forma, apresentará notas distintivas essenciais que constituirão seu conteúdo essencial. Para exemplos, ver: NOVAIS, As restrições..., p.789 e SILVA, Virgílio Afonso da. O conteúdo..., p.249-259. José Carlos Vieira de Andrade, por sua vez, assume uma posição mista (absoluta-objetiva), que entende estar o conteúdo essencial na dignidade humana. ANDRADE, Os direitos fundamentais..., p.307. 595 293 que, se o prognóstico for a morte do paciente, o exercício de posições subjetivas da liberdade religiosa conduzirá a um enfraquecimento muito intenso do direito à vida, pois o perecimento do bem protegido reflete-se em todo o feixe de posições subjetivas do direito à vida, de modo a também atingir-lhe o conteúdo essencial. Nítido é que a tese absoluta-subjetiva pouco auxilia no deslinde do caso, pois qualquer que seja o posicionamento estatal, deixará de proteger o conteúdo essencial de um ou de alguns direitos (por excesso ou deficiência)598. Tendo em conta teses objetivas, nem a permissão, nem a proibição parecem revelar um esvaziamento dos direitos em causa para o sistema como um todo. Sobre as teses relativas, escreveu Virgílio Afonso da Silva: Embora a própria ideia de um conteúdo essencial leve intuitivamente à crença de que ele só pode ser absoluto e com contornos bem definidos, a ideia oposta, ainda que contra-intuitiva, conta também com não poucos adeptos. O ponto central de toda a teoria relativa consiste na rejeição de um conteúdo essencial como um âmbito de contornos fixos e definíveis a priori para cada direito fundamental. Segundo os adeptos do conteúdo essencial relativo, a definição do que é essencial e, portanto, a ser protegido, depende das condições fáticas e das colisões entre diversos direitos e interesses no caso concreto. Isso significa, sobretudo, que o conteúdo essencial de um direito não é sempre o mesmo e poderá variar de situação para situação, dependendo dos direitos envolvidos em cada caso. A partir dessa ideia comum, a definição do conteúdo essencial, em uma perspectiva relativista, pode ser levada de diversas formas. Algumas mais simples, outras mais complexas599. Assim, as teses relativas admitem que não há um conteúdo essencial pré-fixado, muito menos imutável. É à luz de algumas condicionantes que será definido o conteúdo essencial. Certo é que não se formou consenso sobre quais critérios adotar para o estabelecimento de tal conteúdo. Vários autores adotam a proporcionalidade como o mecanismo para aferir o conteúdo essencial. Virgílio Afonso da Silva afirma, inclusive, que este modo de conceber o conteúdo essencial é o que condiz com toda a formulação que acompanha a proporcionalidade, ou seja, com a distinção entre princípios e regras, a adoção da teoria externa e do suporte fático amplo dos direitos fundamentais600. Duas importantes críticas às teorias relativas residem nesses pontos: a ausência ou insuficiência de critérios, ou a identificação do conteúdo essencial com o resultado da 598 Poder-se-ia argumentar que a permissão seria o ideal, pois caberia ao indivíduo escolher pelo risco às posições subjetivas do direito à vida. Mas se esse for o argumento, não está em questão o conteúdo essencial (na versão absoluta e subjetiva) dos direitos fundamentais como limite dos limites à disposição. 599 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.258. 600 SILVA, Virgílio Afonso da, O conteúdo..., p.259 e ss. 294 proporcionalidade, o que tornaria o conteúdo essencial uma garantia vazia e redundante601. Cumpre esclarecer que, entre aqueles que não identificam o método de densificação do conteúdo essencial com a proporcionalidade, existem indicações de um postulado autônomo para o exame das situações. Trata-se do postulado da proibição do excesso, que visa a impedir que “a aplicação de uma regra ou de um princípio restrinja de tal forma um direito fundamental que termine lhe retirando seu mínimo de eficácia”602, ultrapassando a esfera amoldável do direito. De partida, esse entendimento parece coadunar-se melhor às teorias absolutas, embora seja possível ajustar o postulado da proibição do excesso a teorias relativas, desde que se adote critério diferente da proporcionalidade603. Tanto as críticas às teses absolutas quanto aquelas destinadas às teses relativas são importantes e não são superadas pelas teorias mistas604. Então, o questionamento de Reis Novais transcrito no início deste tópico sobre a utilidade da adoção do conteúdo essencial como um critério autônomo para a avaliação das intervenções em posições subjetivas de direitos fundamentais (sejam interferências estatais, sejam autolimitação) é de muito relevo. Para os juristas europeus aqui citados, justificar a pouca utilidade do conteúdo essencial, apesar de todas as críticas, é muito difícil, pois os textos constitucionais que interpretam expressam a garantia. Diversamente, no Brasil, o constituinte silenciou a respeito, o que torna mais premente a indagação: por que adotar o critério? Acredita-se que em face do silêncio da Constituição, não haveria motivos relevantes para transladar tal critério para o direito brasileiro. Todavia, tanto a doutrina quanto a jurisprudência estão dele se aproximando, de forma que se opta por adotar uma postura semelhante às de Reis Novais, Virgílio Afonso da Silva, Jane Reis e Robert 601 A respeito, ver: NOVAIS, As restrições..., p.782 e ss; PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.373. 602 ÁVILA, Teoria dos princípios..., p.80; 120. Em artigo publicado sobre o tema da tese, adotei a linha de pensamento de Humberto Ávila, pois à época entendi ser possível determinar de pronto se algumas interferências são ou não excessivas, por atingirem a integralidade de posições subjetivas de direito fundamental. Após o estudo da obra de Virgílio Afonso da Silva e releitura dos textos de Alexy, conclui que o caminho percorrido é efetivamente inseguro, por serem abertos demais os critérios para determinar o excesso, bem como por existirem contra-exemplos relevantes. MARTEL, Limitação.... 603 Há também a possibilidade de inserir a proibição do excesso no exame da proporcionalidade, situação em que o primeiro postulado parece diluir-se no segundo. A respeito, ver: NOVAIS, As restrições..., p.781 e SILVA, Virgílio Afonso da, Conteúdo..., p.259 e ss. 604 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.373. 295 Alexy605. Esses autores aderem a uma concepção primariamente subjetiva, complementada pela objetiva, e relativa, sendo o critério de definição do conteúdo essencial a proporcionalidade. O conteúdo essencial guarda uma função no discurso sobre as restrições de posições subjetivas de direitos fundamentais, qual seja, a de rememorar ao intérprete a cautela e o rigor exigidos pelos direitos fundamentais, especialmente quando as interferências são intensas. Em sendo assim, o conteúdo essencial não se afigura como sendo uma barreira autônoma e externa à proporcionalidade, mas atua discursivamente, reforçando a necessidade de suprir o ônus argumentativo com mais intensidade quando as interferências com os direitos fundamentais forem intensas. Em tema de disposição, a ideia do conteúdo essencial seria análoga, ou seja, a recomendação de um escrutínio mais rigoroso, seja da proibição (excesso), seja da permissão ou da omissão estatal em proteger (deficiência), quando seus impactos sobre posições subjetivas de direitos fundamentais forem muito significativas. Portanto, o conteúdo essencial não é compreendido como autônomo. Ademais, tem-se que seu papel discursivo incrementa e é facilitado pelo critério exposto no item 3.1, o exame da da modalidade de disposição para aferição dos seus impactos fáticos e jurídicos, além de ser aliado ao exame da proporcionalidade. Lembra-se, porém, que o posicionamento adotado não impede nem que posições subjetivas de um direito sejam integralmente restritas, nem que sejam integralmente objeto de autolimitação. 605 As posições não são idênticas entre si, mas em substância. Assim, no que aqui se tem por relevante para o tema da disposição, elas podem ser aglutinadas. 296 4 (IN)DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: O DIREITO À VIDA NO CONTEXTO DA MORTE COM INTERVENÇÃO “Os últimos dias606 de outros virem depois, de todos sermos irmãos, no ódio, no amor, na incompreensão e no sublime cotidiano, tudo, mas tudo é nosso irmão. Que a terra há de comer. Mas não coma já. O tempo de despedir-me e contar Ainda se mova, Para o ofício e a posse. que não espero outra luz além daquela que nos envolveu dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio pequena ampola fulgurante, facho lanterna, faísca, estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar, mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo é boa medida, irmãos, vivamos o tempo. E veja alguns sítios, Antigos, outros inéditos. Sinta frio, calor, cansaço, Pare um momento: continue. Descubra em seu movimento Forças não sabidas, contatos. O prazer de estender-se: o de enrolar-se, ficar inerte. A doença não me intimide, que ela não possa Chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica. Uma parte de mim sofre, outra pede amor. outra viaja, outra discute, uma última trabalha. Sou todas as comunicações, como posso ser triste? (...) Prazer de balanço, prazer de vôo. Prazer de ouvir música; sobre o papel deixar que a mão deslize. Irredutível prazer dos olhos; Certas cores: como se desfazem, como aderem; Certos objetos, diferentes a uma luz nova. Que ainda sinta o cheiro da fruta, da terra na chuva, que pegue, que imagine e grave, que lembre. O tempo de conhecer mais algumas pessoas. de aprender como vivem, de ajudá-las. (....) E cada cada instante é diferente, e cada homem é diferente e todos somos iguais. No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra o silêncio global, mas não seja logo.(...) E a tristeza de deixar os irmãos me faça desejar partida menos imediata. Ah, podes rir também. não da dissolução, mas do fato de alguém resistirlhe, 606 ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia Poética. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p.27-30. 297 E que a hora esperada não seja vil, manchada de medo submissão ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor rói sua base. Será rígida, sinistra, deserta, mas não a quero negando todas as outras horas nem as palavras ditas antes com voz firme, firme os pensamentos pensamentos maduramente pensados, os atos que atrás de si deixaram situações. Que o riso sem boca não a aterrorize E a sombra da cama calcária não a encha de súplicas, dedos torcidos, lívido Suor de remorso. E a matéria se veja acabar: adeus, composição Que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade. Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas, Meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro, sinal no meu rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal, ideia de justiça, revolta e sono, adeus, adeus, vida aos outros legada. 298 Nos Capítulos antecedentes, investigou-se o conceito, as teses de justificação e as teses de aplicação da (in)disponibilidade dos direitos fundamentais. Diante de concepções variadas sobre o conceito, objeto, natureza e alcance da disposição, propôsse um conceito, entendendo-se que dispor de um direito fundamental é enfraquecer, por força do consentimento do titular, uma ou mais posições subjetivas de direito fundamental perante terceiros, quer seja o Estado, quer sejam particulares, permitindolhes agir de forma que não poderiam, tudo o mais sendo igual, se não houvesse o consentimento. Quando um direito for indisponível, esta possibilidade não se apresentará, ou seja, apenas o consentimento do titular não será hábil a alterar posições subjetivas de direito fundamental, não justificando a interferência de terceiros no direito, nem criando novos deveres ou ações ordenadas de mesmo conteúdo para o titular. Uma vez proposto o conceito, traçaram-se distinções em relação a outras figuras jurídicas, como o não-exercício de posições subjetivas de direito fundamental, a interferência heterônoma com posições subjetivas de direito fundamental, o dano a si e a autocolocação em risco. Sustentou-se que os direitos fundamentais não são, estruturalmente, nem disponíveis, nem indisponíveis, de modo a situar a indisponibilidade em um patamar normativo e não ontológico. É nas razões para se ter e exercer direitos, bem como nas funções que eles exercem que se situa a justificação para a (in)disponibilidade. Neste esteio, o Capítulo 2 foi destinado ao exame das principais teses de justificação da (in)disponibilidade dos direitos fundamentais: (a) as concepções de direito subjetivo; (b) a extensão do direito de liberdade; (c) o paternalismo jurídico e seus institutos afins; (d) a dignidade humana. Em apertada síntese, concluiu-se que a concepção dos direitos subjetivos como vontade traz em si mesma a aceitação da disponibilidade dos direitos fundamentais, pois insere em cada um deles a posição para dispor, ao passo que a concepção dos direitos subjetivos como interesse não situa no conceito de direito subjetivo a disponibilidade, compreendendo-a normativa. A discussão, embora relevante do ponto de vista estritamente teórico, não foi levada adiante em atenção à Constituição e ao ordenamento jurídico brasileiros, que adotam posições irreconciliáveis com a concepção dos direitos fundamentais como vontade. Quanto à extensão do direito de liberdade, vieram à tona duas teses, a que afirma a importância em se aceitar um direito geral de liberdade, acompanhada de interpretações sólidas do texto constitucional brasileiro, e a que afirma a importância de os intérpretes trabalharem com liberdades básicas. Cada uma delas possui relevantes argumentos a 299 favor. Todavia, optou-se por trabalhar com o direito geral de liberdade, precipuamente em função da necessidade de arcar com o ônus de argumentação. A opção revela uma importante premissa operativa: a ideia de que as posições subjetivas de direito fundamental são prima facie disponíveis. No que toca ao paternalismo jurídico e seus institutos afins, foram apontadas as dificuldades e até paradoxos por eles acarretados em sociedades políticas pluralistas e que têm como ideário a inviolabilidade do indivíduo. Em assim sendo, entendeu-se que o princípio liberal do dano, mediado pela máxima volenti non fit injuria, segue sendo o eixo das justificações de constrições nas liberdades quanto a comportamentos autorreferentes, embora se admita a existência de paternalismo jurídico justificado, como o paternalismo fraco e hipóteses bem contadas de paternalismo forte. Ainda no ambiente de justificação, tratou-se da dignidade humana. Percebeu-se que há duas versões competidoras, a dignidade como autonomia e a dignidade como heteronomia. Procurou-se ressaltar que o sistema jurídico pátrio tende mais à dignidade como autonomia, sem ser refratário à dignidade como heteronomia. No terceiro Capítulo, analisaram-se as teses de aplicação da (in)disponibilidade dos direitos fundamentais, as quais, pela própria existência, desafiam o tão repetido axioma de que os direitos fundamentais são indisponíveis. Do estudo, sugeriu-se conciliar diversos critérios de aplicação. Portanto, analisou-se a modalidade de disposição, com o fito de aferir a extensão, a duração, os impactos fáticos e jurídicos de uma disposição. Feito isso, ganha espaço um ponto chave na disposição: o consentimento. Defendeu-se que o consentimento e a recusa têm um forte elo com os direitos fundamentais, expressando-os. Exsurgem elementos demasiadamente importantes a partir dessa noção. Primeiro, a categoria sujeitos do consentimento, da qual os indivíduos não podem ser excluídos aprioristicamente, muito menos pelo exclusivo teor da escolha que fazem, por mais idiossincrática e até irracional possa parecer aos olhos de terceiros. É então que se revela com mais intensidade a união entre as teses de aplicação e de justificação, primordialmente o paternalismo jurídico e seus institutos afins e a dignidade humana. Segundo, as salvaguardas para um consentimento genuíno. Na medida em que o consentimento é uma justificação procedimental para comportamentos que seriam vedados em função de posições subjetivas de direito fundamental ou outras justificações de monta, a categoria não pode ser demasiadamente ampla, nem demasiadamente estreita, porquanto qualquer dos rumos impacta negativamente direitos fundamentais. Uma estratégia relevante e muitas vezes adequada 300 à premissa operativa da disponibilidade prima facie das posições subjetivas de direitos fundamentais, à negação do paternalismo e de seus institutos afins injustificados e à prevalência da dignidade como autonomia, é a preocupação com a genuinidade do consentimento, levada a cabo por engenhos jurídicos relativos à liberdade de escolha e à escolha informada, cujos desenhos refletem a modalidade de disposição, os sujeitos da relação de disposição, o ramo do direito e as posições subjetivas especificamente consideradas. Ainda no terceiro Capítulo, adotou-se a ponderação e a proporcionalidade (por excesso e por deficiência) como critérios que, conjugados aos demais, auxiliam na aferição da proibição, permissão e da estipulação de requisitos à disposição. Foi aceita a noção de conteúdo essencial dos direitos fundamentais, de modo bastante leve, como um reforço argumentativo na ponderação. O projeto deste último capítulo é discutir a (in)disponibilidade de posições subjetivas do direito à vida ao ensejo de tudo o que foi exposto, diante do atual debate sobre o final da vida humana. Foi por esta razão que, no intróito da tese, demarcou-se que não se trata de uma pesquisa sobre a terminalidade da vida nem sobre a eutanásia. O direito à vida funciona aqui como um teste para a conjugação do esforço teórico até o momento empreendido. E também como um alerta. Ao longo da tese, em incontáveis momentos repetiu-se que, sendo a (in)disponibilidade normativa, seu exame ocorre ao ensejo das posições subjetivas especificamente consideradas, da modalidade de disposição e de seus impactos, do ramo do direito, dos sujeitos da relação de disposição, aglutinados, é claro, com os temas de justificação. Portanto, ela é construída, considerando-se situação a situação, direito a direito, sempre à luz da integridade do sistema jurídico. Avaliar a (in)disponibilidade do direito à vida é diverso de apreciar a (in)disponibilidade de muitas liberdades, dos direitos sociais, especialmente os de cunho trabalhista, dos direitos marcadamente patrimoniais. As diretrizes, acredita-se, são as mesmas. Mas são dinâmicas. Cada direito fundamental ou grupo de direitos fundamentais tem sua história, sua razão de ser, sua dicção constitucional e sua teia de princípios, enunciados normativos e decisões judiciais subjacentes. O que será feito neste capítulo é pôr em andamento o complexo teórico sustentado nos demais capítulos quanto ao direito fundamental à vida. Para outros direitos, nova análise. Para cumprir a tarefa a que se propõe, o Capítulo inicia com um sucinto exame do direito fundamental à vida, com especial enfoque para suas posições subjetivas. A seguir, defender-se-á que há ordens de razões suficientes para que as posições subjetivas do direito à vida sejam reputadas indisponíveis, sem que se recorra a argumentos 301 paternalistas fortes ou a seus institutos afins. Neste ponto, sustentar-se-á que a dignidade como heteronomia ganha espaço quando se trata do direito à vida. Então, o Capítulo terá, assumidamente, certa circularidade. Primeiro, a argumentação de que as posições subjetivas do direito fundamental à vida são (normativamente) indisponíveis, ou seja, que o consentimento genuíno do titular sozinho não é suficiente para enfraquecer as posições perante terceiros e nem para gerar obrigações de mesmo conteúdo para o titular. Cumprida esta tarefa, passar-se-á à análise de algumas circunstâncias específicas, cognominadas morte com intervenção, para as quais se questionam se as razões da indisponibilidade das posições subjetivas do direito à vida seguem com a mesma intensidade. No cenário da morte com intervenção, existem problemas relacionados à disponibilidade de posições subjetivas do direito à vida, principalmente quando estão em pauta a eutanásia e o suicídio assistido. Como será estudado, as próprias intervenções médicas, esteja ou não a vida em risco, carecem de justificação procedimental pelo consentimento como regra geral, ou seja, as intervenções médicas justificam-se mediante disposição de posições subjetivas de direitos fundamentais, ressalvados apenas as situações de emergência (em estreito conceito médico, que não se confunde com o risco de vida) nas quais se desconhece a manifestação do paciente; o chamado privilégio terapêutico; e as situações que possam ensejar dano a terceiros não-consententes. Debates sobre a terminalidade da vida e as intervenções médicas estão na pauta do dia em diversos países ocidentais. No Brasil, a agenda política está na admissibilidade de práticas de ortotanásia, mais especificamente a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos, que tomou impulso após a publicação da Resolução 1.805/06/CFM e da propositura de uma Ação Civil Pública no tema. Em diversos países ocidentais, especialmente na América do Norte e na Europa, são largamente reconhecidas as práticas de ortotanásia, e a agenda política está hoje em regulamentá-la e também no debate sobre o suicídio assistido e a eutanásia. Nesta etapa do Capítulo, embora sejam estudadas posições estrangeiras e internacionais no assunto morte com intervenção, não serão desenvolvidas reflexões mais aprofundadas sobre a eutanásia e o suicídio assistido no Brasil. O enfoque estará na legislação vigente, vista à luz dos princípios e regras constitucionais, e a disposição de posições subjetivas do direito fundamental à vida em situações de ortotanásia, fundamentalmente a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos. Para tanto, investe-se um esforço na 302 análise e na uniformização da terminologia utilizada em relação à morte com intervenção. Na seqüência, busca-se uma releitura dos enunciados normativos vigentes sobre a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos, seguidos pela proposição de alguns pontos no tema. O diálogo aqui travado não será bicolor, pois não visualiza a morte com intervenção, especialmente a eutanásia e o suicídio assistido, como condutas que são ou devem ser aprioristicamente proibidas ou permitidas. Ao contrário, o enfoque está no longo e sofrido processo de morrer, potencializado pela medicalização da vida, e as possibilidades que o ordenamento jurídico brasileiro pode oferecer para tornar o processo moralmente mais humano. Faz-se mister referir que há uma clivagem quanto às hipóteses. Analisa-se a morte com intervenção, com a atenção voltada tão-só aos casos de pacientes terminais, portadores de doenças reputadas incuráveis segundo o estado da arte em saúde e que causem sofrimentos psicofísicos intensos ou pacientes em estado vegetativo persistente e a limitação consentida de tratamento e os cuidados paliativos. 4.1 O direito fundamental à vida: um velho (des)conhecido Neste tópico, serão examinados elementos relevantes sobre o direito fundamental à vida, expondo a sua importância intrínseca e instrumental no conjunto dos direitos fundamentais e discutindo as afirmações de que se trata de um direito hierarquicamente superior e de que suas posições subjetivas são absolutas, no sentido de não admitirem qualquer interferência, quer autônoma, quer heterônoma. Logo após, serão mapeadas as posições subjetivas básicas do direito, discutindo sua titularidade e extensão. Procurar-se-á debater e aderir a uma postura sobre se o direito à vida alberga um direito-antítese – o direito de morrer – e também se este merece ser defendido como um direito autônomo. Em seguida, ordenar-se-ão as razões pelas quais se justifica a indisponibilidade das posições subjetivas do direito à vida. 4.1.1 O direito à vida: apontamentos iniciais O direito à vida, um dos componentes da tríade lockeana, figurou já nas primeiras Cartas e Declarações de Direitos modernas, como a Declaração de Direitos da Virgínia, a Declaração de Direitos da Constituição dos Estados Unidos da América e em 303 muitas mais607. Em virtude da sua época e modos de afirmação, o direito é exposto, pela doutrina, como de primeira geração ou de primeira dimensão, ao lado das liberdades, da segurança individual e da propriedade608. Nas décadas que se seguiram às chamadas declarações e constituições burguesas, houve sérios trabalhos sobre o direito à vida, especialmente, de início, acerca da pena de morte e da punição civil e criminal do suicídio, na pessoa do suicida (se tentado) ou de seus familiares609. Nas constituições vigentes e nas declarações e pactos internacionais contemporâneos, típicos do período posterior à Segunda Grande Guerra, o direito à vida foi notadamente expresso e ganhou fortalecimento jurídico-moral após os nefastos acontecimentos que permearam o século XX, como o holocausto, a construção de 607 The Virginia Declaration of Rights. 1776. The Virginia Declaration of Rights. 1776. Disponível em: http://www.archives.gov/national-archives-experience/charters/virginia_declaration_of_rights.html USA. The Bill of Rights. 1791. Disponível em: www.nara.gov COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, passim. SCHWARTZ, Bernard. Os grandes direitos da humanidade: the Bill of Rights. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1979, passim. Nem todos os estudiodos concordam com esta perspectiva. Para os que discordam, o direito à vida ganhou alçada constitucional relevante apenas após a Segunda Guerra Mundial, muito em função da permissão da pena de morte. Todavia, entende-se inegável que as primeiras declarações de direitos da modernidade, cuja origem remota está na Magna Carta inglesa de 1215, já traziam o direito à vida, assim como a teoria de base, os jusnaturalistas do século XVIII, valoravam-no e assumiam a sua importância, daí a famosa tríade lockeana, vida, propriedade e liberdade. Nas Constituições brasileiras, as de 1824 e de 1891 não enunciaram expressamente o direito à vida, embora a última tenha abolido a pena de morte em tempos de paz. No mesmo sentido da Constituição de 1891, a de 1934. A Carta de 1937 também não previu expressamente o direito e alargou hipóteses de instituição de pena de morte em tempos de paz (art.122, 13). A Constituição de 1946 foi a primeira a positivar o direito à vida, no caput do art.141: “Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes […]”, dicção que foi reproduzida na Carta de 1967 e se assemelha ao caput do art.5º da Constituição vigente. Cf. CHUECA, Ricardo Rodríguez. El marco constitucional del final de la própria vida. Revista Española de Derecho Constitucional, n.85, p.99-123, enero-abril 2009.. BRASIL. Constituição Política do Império do Brasil (de 25 de março de 1824). BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1891). BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1937). BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1946). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (complementada com Atos Institucionais e Emendas). BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (de 05 de outubro de 1988). Os textos constitucionais, com exceção do de 1988, foram pesquisados em: Constituições brasileiras. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001 (Coleção, Constituições Brasileiras, vols. 1 a 7, incluindo 6a). PACHECO, Cláudio. Tratado das Constituições brasileiras. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1958-1965. 608 MARSHALL, T.H. Classe, cidadania e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. SARLET, A eficácia..., p.38 e ss. Ao mencionar que o direito é exposto como de primeira dimensão, não se afirma que seja exclusivamente um direito de defesa ou negativo, tampouco adere-se à ideia de que os direitos de primeira dimensão são os que demandam exclusivamente uma omissão estatal. A noção de primeira dimensão aqui expressa refere-se muito mais ao momento de reconhecimento jurídico e às necessidades às quais tal reconhecimento pretendeu atender inicialmente. Nesse sentido, tem-se em mente a releitura de HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R. The Cost of Rights: why liberty depends on taxes. New York: W.W. Nortton & Company, 2000, p.1348. 609 Sobre o tema: DOWBIGGIN, Ian Robert. A concise history of euthanasia: life, death, god and medicine. Lanham: Rowman & Littlefield, 2005, p.30 e ss. 304 conceitos heterônomos de vidas indignas de serem vividas e a emergência dos totalitarismos e das ditaduras610. A proteção e a valorização da vida humana tornaram-se ainda mais proeminentes, levando o direito à vida (em sentido amplo) a assumir uma relevância ímpar nas sociedades políticas ocidentais. Tanto é que se defende o princípio jurídico-moral da sacralidade da vida, reputada um bem de valor intrínseco, ou seja, ontologicamente valioso. A noção, por evidente, translada-se para o ambiente jurídico, traduzindo-se na intensa proteção, defesa e promoção do direito à vida como um todo, tanto em seus feixes de posições subjetivas, como em sua dimensão objetiva611. Adiante, ao tratar da dignidade humana, no tema da morte com intervenção, sustentarse-á que uma das manifestações da dignidade como heteronomia é exatamente a valorização da vida humana e do direito à vida como algo valioso em si mesmo. Para além do valor intrínseco, o bem vida e o direito à vida como um todo possuem um caráter instrumental sui generis. A própria titularidade dos direitos fundamentais e também da dignidade humana depende do bem vida e do direito à vida. Ao perecer ou não estar presente a vida, ausente estará a titularidade dos demais direitos612. Nesse mesmo sentido, o enfraquecimento de posições subjetivas e também 610 Como exemplo, o Art. III da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. E o art.6º do Pacto dos Direitos Civis e Políticos: “Art.6º. 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deve ser protegido pela lei: ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida”. Anote-se que o Pacto repudia a pena de morte, sem proibi-la. ONU, Declaração Universal dos Direitos Humanos, Op.cit. UN, Eveyone’s United Nations: a handbook on the work of United Nations, Op. cit. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p.154 e ss; p.356-372. 611 Sobre o valor intrínseco da vida humana, mesmo a par da dificuldade em sustentar que algo possui valor intrínseco nas sociedades atuais, DWORKIN, Ronald. O domínio..., p.95-140. Segundo Dworkin, a sacralidade da vida manifesta-se em pelo menos dois prismas: (a) um bastante amplo, relativo à experiência humana no planeta, ou seja, ao milagre da existência do ser humano (problema que envolve a justiça entre gerações); (b) a vida humana individualizada e subjetivamente valorada por cada ser humano (valor pessoal). Também mencionam a sacralidade da vida, de modo diverso de Dworkin e referindo que o direito à vida é o mais fundamental dentre os fundamentais, BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.285. Referências à sacralidade da vida podem ser encontradas nos casos Bland, Diane Pretty, Sue Rodriguez e Glucksberg. Noutro enfoque, Hannah Arendt explicita a importância que assumiu a vida humana no sentido que aqui se emprega o termo, resgatando as origens deste pensar e fazendo uma leitura diferenciada: ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p.326-333. 612 Traduzem esse pensar, no Brasil, a dicção dos enunciados constitucionais e também do Código Civil. A Constituição da República assim se refere ao tratar dos titulares dos direitos fundamentais: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]”. É de lembrar que a Constituição, em seu art.12, considera brasileiros os nascidos e fixa, por inferência, a necessidade de nascimento para a naturalização. O art.2º do Código Civil reconhece que a personalidade civil inicia-se a partir do nascimento com vida, protegendo os direitos do nascituro desde a concepção. O ponto sobre o início da vida humana, de sua proteção jurídica e a titularidade de direitos antes do nascimento com vida é intrincado e dá azo a discussões extremamente relevantes. Porém, como dito, o debate não entra em pauta em uma tese sobre disposição de posições subjetivas do direito fundamental, pois, ainda que se reconheça que embriões – implantados ou não – , 305 da dimensão objetiva do direito à vida ocasiona densos reflexos em todas as posições subjetivas de direitos fundamentais, levando-as, não raras vezes, à extinção613. Pelo exposto, sequer é preciso discutir a jusfundamentalidade material e formal do direito à vida. Trata-se, à evidência, de um direito fundamental. E de um direito fundamental especialíssimo e muito delicado. Ademais, é direito fundamental ubíquo, que já permeia intensamente os mais diversos ramos do direito e, também por este motivo, vincula particulares. Tamanha é a importância a ele conferida, que não é difícil encontrar referência sobre ser ele o primeiro, o mais importante dos direitos fundamentais, o direito fundamental que, por si só, já assume um peso abstrato mais elevado em casos de ponderação, ou expressões no sentido de que “no right is more fundamental than the right to life”614. Essas pertinentes afirmações estão por ocasiões atreladas, na doutrina e até na jurisprudência brasileiras, à conferência de um cunho absoluto às posições subjetivas do direito e à sua dimensão objetiva, bem como à categorização do direito como de maior hierarquia em relação a todos os demais direitos fundamentais e princípios constitucionais. Os posicionamentos são muito fortes e merecem esclarecimentos e tomada de posição. Tome-se, em primeiro lugar, a afirmação de que o direito à vida é absoluto. Ela significa que se trata de um direito imune a qualquer interferência, que não admite conceptos e fetos sejam titulares de posições subjetivas do direito à vida na mesma medida em que são os nascidos com vida, seguramente eles não se enquadram na categoria sujeitos do consentimento, por não ostentarem as características da agência necessárias ao conceito. Em assim sendo, são inaptos para dispor. Se reconhecida a titularidade de posições subjetivas do direito à vida aos referidos entes, eventuais interferências serão heterônomas. BRASIL, Constituição da república Federativa do Brasil de 1988. Op.cit.; BRASIL, Código Civil, Op.cit. Importante consultar também a já referida ADI sobre a constitucionalidade do art.5º da Lei de Biossegurança e seus comentadores. 613 Também é o Código Civil que determina que cessa com a morte a existência da pessoa natural, cessando, assim, a titularidade de direitos. Não cabe discutir nesta tese se os mortos seguem titulares de direitos ou de dignidade, tampouco as razões pelas quais são instituídos enunciados normativos no tocante aos já falecidos. BRASIL, Código Civil, Op.cit. 614 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.285. No caso Pretty, a CEDH foi muito clara sobre a proeminência do direito à vida: “The Court's case-law accords pre-eminence to Article 2 as one of the most fundamental provisions of the Convention (see McCann and Others v. the United Kingdom, judgment of 27 September 1995, Series A no. 324, pp. 45-46, §§ 146-47). It safeguards the right to life, without which enjoyment of any of the other rights and freedoms in the Convention is rendered nugatory. It sets out the limited circumstances when deprivation of life may be justified and the Court has applied a strict scrutiny when those exceptions have been relied on by the respondent States (ibid., p. 46, §§ 14950)”. Na doutrina brasileira, Uadi Lammêgo Bulos refere: “O direito à vida é o mais importante dos direitos”. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. 4ª ed. ref. atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p.442. Também o Ministro Marco Aurélio, em voto proferido na década de 1990, acerca da competência em atos considerados genocídio de populações indígenas: “Não há, no dispositivo, qualquer restrição a estes últimos, a envolver, sem dúvida alguma, o bem maior, que é a própria vida”. BRASIL. STF. RE no.179.485/AM. Segunda Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Mello. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=224535&tipo=AC&descricao=Inteiro%20Teor %20RE%20/%20179485. 306 restrições e que não há ponderação hábil a justificar interferências. Levada em consideração ao ensejo da teoria interna dos direitos fundamentais, a afirmação guarda sentido e razão de ser. Entretanto, ao adotar a teoria externa combinada ao suporte fático amplo dos direitos fundamentais, a afirmação contradiz um ponto básico da teoria: os direitos fundamentais, como princípios, são prima facie restringíveis. Teoricamente, portanto, todos, ou pelo menos quase todos, os direitos fundamentais são restringíveis. No Brasil, há inúmeras manifestações em votos de Ministros dos Tribunais Superiores, do STF inclusive, em decisões judiciais, além de menções doutrinárias, afirmando que a Constituição de 1988 não alberga direitos absolutos615. De outro lado, é possível encontrar, aqui e acolá, algumas referências judiciais acerca do caráter absoluto do direito à vida616. Seria então o direito à vida um dos raros direitos absolutos? É preciso verificar o sistema jurídico nacional nos moldes da integridade e da coerência para responder a pergunta. O texto constitucional brasileiro menciona expressamente ao menos uma possibilidade de restrição ao direito à vida, ao permitir a instituição da pena de morte 615 Nesse sentido, asseveram Mendes, Coelho e Branco: “Tornou-se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. Prieto Sanchis noticia que a afirmação de que ‘não existem direitos ilimitados se converteu quase em uma cláusula de estilo na jurisprudência de todos os tribunais competentes em matéria de direitos humanos”. MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de direito constitucional. 2. ed. São Paulo/Brasília: Saraiva/IDP, 2008, p.240. No Supremo Tribunal Federal, a título exemplificativo: Na ementa de um Mandado de Segurança, decidido pelo Tribunal Pleno no final da década de 1990, lê-se: “OS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS NÃO TÊM CARÁTER ABSOLUTO. Não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição. O estatuto constitucional das liberdades públicas, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa – permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros”. BRASIL. STF. MS no.23.452/RJ. Rel. Min. Celso de Mello. 16/09/1999. Em decisão mais recente, as afirmações dos Ministros Peluso e Celso de Mello, respectivamente: “Todos os direitos o são, essa é a verdade. Não há nenhum de caráter absoluto”. “É certo que o direito de crítica não asssume caráter absoluto, eis que inexistem, em nosso sistema constitucional, como reiteradamente proclamado por esta Suprema Corte (RTJ 173/805-810 807-808, v.g), direitos e garantias revestidos de natureza absoluta”. BRASIL, STF, ADPF nº130-7/DF/MC, Op.cit. Especificamente sobre não ser o direito à vida absoluto, ver: BRASIL, STJ. HC nº56.572/SP. Rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima. Quinta Turma. DJ 15/05/2006. 616 Porém, muitas referências soam como simples dicta, um reforço argumentativo que convive com manifestações, dos mesmos Tribunais, Turmas e até julgadores, de que não há direitos absolutos. Ilustrativamente: RIO GRANDE DO SUL. TJRS. ADI nº70010129690. Rel. Des. Araken de Assis. 18/04/2005. Disponível em: www.tj.rs.gov.br.; RIO GRANDE DO SUL. TJRS. AgI nº70000411686. Primeira Câmara Cível. Rel. Fabianne Breton Baisch. Julgado em 07/08/2000; BRASIL. STJ. REsp. nº 937.310/SP. Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Data do Julgamento 09/12/2008. DJe 19/02/2009. 307 em caso de guerra declarada617. E também em enunciados normativos infraconstitucionais encontra-se a moderada admissão de intervenções com o direito à vida, em suas posições subjetivas, dada a aceitação da legítima defesa e do estado de necessidade. São exemplos de intervenções não expressamente autorizadas pela Constituição, mas reputadas plausíveis e cuja constitucionalidade ou recepção não foi alvo de contendas. Poder-se-ia objetar dizendo que tanto na legítima defesa quanto no estado de necessidade estariam em causa posições subjetivas do direito à vida. Ora, ainda que sejam as mesmas posições, do argumento não se deduz que o direito à vida seja absoluto; ao contrário, ele demonstra que, em concorrendo as mesmas posições subjetivas do direito à vida de diferentes titulares, o legislador ponderou e conferiu maior peso a uma delas, tornando permissível a interferência com a outra. Acresça-se que a legítima defesa e o estado de necessidade não se aplicam apenas aos casos em que estão em liça posições subjetivas do direito à vida. Suponha-se que uma mulher, ao ser estuprada e agredida, sem ser ameaçada de morte e sob a promessa de que não será morta, reaja e acabe por matar o agressor. É perfeitamente possível que o ato de matar tenha acontecido em legítima defesa (desde que presentes seus requisitos) e constitua comportamento escusável. Aqui, tem-se uma ponderação legislativa e/ou judicial que torna permissível uma agressão a posições subjetivas do direito à vida em nome de posições subjetivas de outros direitos618. Os singelos exemplos já são suficientes para indicar que as posições subjetivas do direito à vida não são absolutas. Admite-se, portanto, que elas estejam sujeitas a restrições. Porém, ressalta-se que admiti-las não significa igualar de plano as posições subjetivas do direito à vida às de todo e qualquer direito fundamental. O direito à vida é especial. O bem por ele protegido é diferenciado. O direito à vida precisa de muito zelo 617 É a interpretação combinada dos arts.5º, XLVII, a e 84, XIX, ambos da Constituição Federal. BRASIL, Constituição da República..., Op.cit. 618 Sobre a questão, Reis Novais afirma: “Mesmo o direito à vida – tão frequente quanto inadequadamente invocado como paradigma de valor constitucional supremo e, por isso, insusceptível de qualquer restrição ou ponderação – não escapa a idênticas dificuldades inviabilizadoras de uma aplicação eventualmente esquemática e independente das circunstâncias da sua concretização. Desde logo porque pode haver colisão entre o mesmo direito à vida de diferentes titulares. Mas também porque o contexto em que o conflito deva ser resolvido pode ser tão imprevisto quanto decisivamente marcado pelas aflorações concretas dos direitos em questão”. Como faz o autor, cabe lembrar os polêmicos casos sobre a separação cirúrgica de gêmeos coligados, quando há alto risco ou até certeza de que um deles irá perecer. Para um debate sobre os casos, ver: BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.298 e ss. e BEYLEVELD; BROWNSWORD, Human Dignity…, p.254 e ss. E ainda o número especial da Medical Law Review destinado unicamente ao assunto: MEDICAL LAW REVIEW, n.9, Autumm, 2001, p.201-298. Acerca das discussões sobre o caráter absoluto do direito à vida, é importante consultar os experimentos mentais de J.J. Thomson, um deles o já mencionado caso do paciente do quarto 306. THOMSON, The realm..., p.135 e ss. e NOVAIS, As restrições..., p.715 e ss. 308 e de muita cautela quando se trata de discutir o enfraquecimento da sua força jurídica e moral. Qualquer ablação, heterônoma ou autônoma, é delicada. Qualquer desprezo pela vida humana e pelo direito que a protege, mesmo nas circunstâncias mais adversas, é suspeito e, como será argumentado adiante, o direito liga-se peculiarmente à dignidade humana. Mas isso não é sinônimo de entender que o direito à vida seja absoluto, tampouco que não existam outros direitos que a ele se sobreponham sob certas condicionantes, muito menos que a dignidade humana comporte exclusivamente a proteção e a promoção do direito à vida. Retomando a integridade do sistema jurídico brasileiro, percebem-se outros elementos que indicam que tais sustentações não são compossíveis. Fosse absoluto o direito à vida, prevalecesse sempre, não haveria justificação para a política brasileira de transplantes de órgãos, pois ela situa a escolha do indivíduo e de sua família acima do direito à vida daqueles que carecem de órgãos619. Fosse absoluto o direito à vida, seria ação estatal ordenada ordenar salvamentos, mesmo em circunstâncias que demandassem heroísmo e comportamentos superrogatórios da generalidade dos indivíduos, usualmente negados pelos e aos sistemas jurídicos620. Em segundo lugar, atente-se para a afirmação de que o direito à vida conta com hierarquia normativa superior em relação aos demais enunciados normativos constitucionais, quer de direitos fundamentais, quer de metas coletivas. Sugerir um posto hierárquico cimeiro para o direito à vida é distinto de asseverar que ele conta com um peso abstrato maior, ou com uma posição preferencial. Tanto a noção de um peso abstrato maior quanto a doutrina da posição preferencial são ajustáveis à ponderação e levam à admissão de restrições ao direito, desde que existam argumentos muito 619 O argumento será mais desenvolvido adiante, quando do estudo da estrutura e das posições subjetivas do direito à vida. No Brasil, adota-se um modelo de “consentimento explícito universal restringido” para os transplantes post mortem. Caso fosse absoluto o direito à vida, dever-se-ia adotar um modelo obrigatório ou, pelo menos, um modelo de “consentimento tácito universal absoluto” (esquema jurídico de dissenso). Na legislação nacional, chegou a viger um modelo de dissentimento, mas a polêmica foi tão intensa que o modelo foi revogado em prol do consentimento expresso. A simples existência do debate público demonstra a importância oferecida ao consentimento no tema, ainda que em jogo o direito à vida. Já os transplantes inter vivos seguem regras estritas, baseadas no consentimento genuíno do doador. Fosse absoluto o direito à vida, ter-se-ia que discutir seriamente os limites do dever de salvar a vida alheia, podendo-se, então, cogitar a doação e a transplantação compulsórias de órgãos, nos casos em que os riscos para o doador não fossem de vida. Sobre o tema, ver: LÓPEZ, Eduardo Rivera. Ética y trasplantes de órganos. México: UNAM/FCE, 2001; BRASIL, Lei nº9.434/1997, Op.cit.; BRASIL. Lei nº10.211/2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10211.htm. A respeito do dever de salvar e a extensão do direito à vida, ver: McCONNELL, Op.cit., p.79 e ss. 620 Por superrogatórios: “Supererogation is the technical term for the class of actions that go “beyond the call of duty.” Roughly speaking, supererogatory acts are morally good although not (strictly) required”. Para uma discussão inicial sobre a categoria: SUPEREROGATION. In: STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/supererogation/ . 309 cogentes, com peso suficiente a justificar a ablação, diante de um escrutínio mais rigoroso621. Ou seja, nem o maior peso abstrato, nem a posição preferencial significam, tecnicamente, maior hierarquia. A maior hierarquia é estanque, quer dizer, qualquer enunciado ou norma que se contraponha a outro de superior hierarquia sucumbe. A hierarquização “uno de los métodos a que se recurre – especialmente en la doctrina – para resolver conflictos entre derechos – consiste en establecer entre ellos jerarquías o categorias previas y rígidas”622. Assim, os direitos de maior hierarquia sempre prevalecem sobre os de menor. A tese, se amplamente adotada, não se coaduna à ponderação e à aplicação do postulado da proporcionalidade, remetendo a um método de subsunção. E apresenta outros problemas de relevo. O primeiro deles é como estabelecer, à partida, quais direitos ocupam a maior hierarquia. O segundo, é que se trata de um método desatento às circunstâncias concretas, provendo respostas préconcebidas para a mais variada gama de situações. O terceiro, é que não oferece mecanismos para solver eventuais colisões entre posições de mesma hierarquia. O quarto, é que o método insinua a existência de hierarquia entre as próprias normas constitucionais originárias. Se o direito à vida possui maior hierarquia, como conciliá-lo à previsão de pena de morte em caso de guerra declarada?623 O quinto, é que o método desdiz o reconhecido cânone de unidade da Constituição, pois há hierarquias préfixadas, que, diga-se, não foram estipuladas pelo Constituinte, mas o são pelos intérpretes e, pior, mediante critérios dissonantes624. O sexto, já alinhavado, é que a hierarquização não se amolda e até nega a proporcionalidade, que conta com ampla 621 Sobre os pesos abstratos diferenciados, ver Capítulo 3, item 3.4. Sobre a posição preferencial: PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Op. cit., p.234 e ss.; SCHREIBER, Simone. Publicidade opressiva de julgamentos criminais. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.69 e ss.; MARTEL, Letícia de Campos Velho. Hierarquização de direitos fundamentais: a doutrina da posição preferencial na jurisprudência da Suprema Corte norte-americana. Sequência, Florianópolis, v. 48, n. XXV, p. 91-117, 2004. 622 SERNA, Pedro; TOLLER, Fernando. La interpretación constitucional de los derechos fundamentales: una alternativa a los conflictos de derechos. Buenos Aires: La Ley, 2000, p.7. Convém aclarar que os autores não adotam a ponderação e a proporcionalidade. 623 Diz-se insinua, porque é possível construir o método sem que ele implique a aceitação de enunciados normativos constitucionais originários inconstitucionais. Cabe lembrar que o STF adequadamente rechaçou a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de enunciados normativos constitucionais originários. BRASIL. STF. ADI no.815-3/DF. Rel. Min. Moreira Alves. DJ 10/05/1996. A respeito, ver também: SARMENTO, Daniel. A ponderação..., p.37 e ss. Com posicionamento distinto, ver: PEREIRA, Jane Reis. Op. cit., p.246. Sobre as normas constitucionais inconstitucionais, ver: BACHOFF, Otto Von. Normas constitucionais inconstitucionais? Coimbra: Almedina, 1994 e BARROSO, Interpretação..., p.304-209. Ressalta-se que a autora desta tese não subscreve a pena de morte, nem em caso de guerra declarada, mas compreende que, no sistema constitucional brasileiro, a plena abolição da pena de morte depende da aprovação de uma (bem-vinda) Emenda ao texto constitucional. 624 Para explicitação e discussão da unidade da Constituição, conferir: BARROSO, Interpretação..., p.196-218; BERCOVICCI, Gilberto. O princípio da unidade da constituição. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a.37, n.145, p.95-99, jan./abr. 2000. 310 aceitação jurisprudencial e doutrinária no Brasil, como apontado na parte final do Capítulo 3. Pelo aqui explanado e em razão das opções aplicativas formuladas no Capítulo anterior, afigura-se equívoco reputar o direito à vida como sendo absoluto e hierarquicamente superior aos demais. Porém, mantém-se o posicionamento de que, na cultura de direitos das sociedades políticas ocidentais contemporâneas, é razoável sustentar que o direito à vida possui um peso abstrato maior ou que ocupa uma posição preferencial. Para melhor aclarar a afirmação e melhor compreender o direito à vida, crê-se necessário examiná-lo em sua estrutura, assunto a que se destina o próximo subitem. 4.1.2 A estrutura básica do direito à vida No primeiro Capítulo da tese, concluiu-se que os direitos fundamentais são compostos por duas dimensões, a subjetiva e a objetiva. Com o direito à vida não é diferente. O objetivo deste tópico é pôr às claras o feixe básico de posições subjetivas do direito à vida e discuti-las, tarefa que se considera inicial ao exame da (in)disponibilidade de posições subjetivas de direito fundamental. Antes de apresentar as posições subjetivas básicas, alerta-se que se está a seguir a advertência de Joel Feinberg a respeito do direito à vida: Exatamente que tipo de direito é “o direito à vida”? Numerosas distinções podem ser feitas, é claro, entre os vários tipos e categorias de direitos. Porquanto é impossível aqui trabalhar completamente à nossa maneira nesse labirinto conceitual, será útil esclarecer o direito à vida situando-o em relação às mais importantes dessas distinções. Isso será em parte uma questão de estipulação, pois o direito à vida é interpretado de maneiras diferentes por diferentes autores, e onde há desacordo ou confusão, eu posso apenas tentar fazer sugestões persuasivas de que uma ou outra interpretação é mais padrão, útil ou importante. Eu proponho, antes de tudo, interpretar “o direito à vida” de um modo relativamente estreito, de modo que ele se refere ao “direito de não ser morto” e ao “direito de ser salvo da morte iminente”, e não a uma concepção mais ampla, favorecida por muitos autores de manifesto, de um “direito a viver decentemente”. Certamente, como Hugo Bedau expõe, “a vida que nós agora consideramos que os homens são titulares como direito não é [meramente] um direito no menor nível suficiente para evitar uma morte prematura; pelo contrário, é uma vida adequada para o autorrespeito, o alívio da labuta desnecessária, e a oportunidade de liberar energia produtiva”. Todavia, nós podemos referir separadamente os componentes de um direito a viver decentemente: 311 um direito a condições de trabalho decentes, um direito à alimentação, ao vestuário, à moradia, à educação e assim por diante625. Assim, para apreciar a estrutura do direito à vida, ele será isolado dos demais direitos. Não se nega outros direitos ao adotar esta linha de raciocínio. O direito à vida é instrumental e está associado, de modo mais ou menos direto, a todos os direitos fundamentais. Ampliar o direito à vida concebendo-o como direito à vida digna, ou à qualidade de vida ou ainda à vida decente, retira a clareza e pouco acrescenta ao debate, especialmente no Brasil, cuja Constituição analítica expressa uma plêiade de direitos sociais, econômicos e culturais, além de trazer em seu bojo menção à dignidade humana626. Compreender a estrutura do direito à vida em separado não leva à afirmação de que sua atuação e interpretação são insulares. Por evidente, em muitas situações, outros direitos também estarão em cena. Mas são outros direitos. Corroboram com esta linha de pensar dois cânones de interpretação da Constituição, a noção de que o constituinte não emprega palavras de modo inútil (o que aconteceria se o direito à vida encampasse outros direitos e princípios expressos, como a saúde, a dignidade e as condições de trabalho) e também a impossibilidade de se interpretar o texto de modo desintegrado e hiperintegrado627. 625 FEINBERG, Voluntary euthanasia…, p.224. “Just what kind of right is “the right to life”? Numerous distinctions can be made, of course, among the many types and categories of rights. While it is impossible here to work our way completely through the conceptual maze, it will be useful to clarify the right to life by placing it in relation to some of the more important of these distinctions. This will be in part a matter of stipulation, for the right to life is interpreted in different ways by different writers, and where there is disagreement or confusion, I can only try to make persuasive suggestions that one or another interpretation is more standard, useful, or important. I propose, first of all, to interpret “the right to life” in a relatively narrow way, so that it refers to “the right not to be killed” and “the right to be rescued from impending death,” but not to the broader conception, favored by many manifesto writers, of a “right to live decently.” To be sure, as Hugo Bedau put it “(...)the life to which we now think men are entitled as of right is not [merely] a right at the barest level sufficient to stave off an untimely death; rather it is a life sufficient for self-respect, relief from needless drudgery, and opportunity for the release of productive energy. However, we can refer separately to the components of a right to live decently: a right to decent working conditions, a right to food, to clothing, to housing, to education, and so on”. 626 Frisa-se que o direito à vida, como os demais direitos fundamentais, tem a marca da historicidade e, como princípio, da plasticidade. É por isso que se usou a palavra básicas para designar as posições subjetivas que agora estão sendo trabalhadas. Para o tema em debate aqui, as posições básicas são suficientes. Porém, não estão excluídas novas posições, que sejam acrescidas para responder a novos problemas ou concepções, elemento comum na interpretação e aplicação dos direitos fundamentais. Por exemplo, em questões envolvendo o desenvolvimento científico sobre manipulação genética, diagnósticos embrionários, clonagem, outras posições poderão ser aventadas e aceitas, inclusive sob um enfoque menos individual. Sobre a historicidade, ver: BOBBIO, A era... . Sobre a plasticidade, CANOTILHO, Direito..., p.1087. 627 As formulações desintegrada e hiperintegrada são empregadas por Tribe para cognominar dois modos de não ler uma Constituição, já que aquela conduz à impressão de um sentido unívoco e imutável da Constituição e esta conduz à ampliação exacerbada de um princípio, subsumindo todo o texto constitucional a ele. TRIBE, Laurence H.; DORF, Michael C. On reading the Constitution. Cambridge: Harvard University, 1991, p.19 e ss. 312 Quais posições subjetivas possui o direito à vida? Terrance McConnell indica que há pelo menos duas interpretações competidoras sobre as posições subjetivas do direito à vida, uma que ele denomina interpretação negativa e a outra, interpretação positiva. Na primeira, inclui-se no direito à vida apenas as posições subjetivas que impõem o dever de não matar (correlato ao direito estrito de não ser morto). Na segunda, além das posições reconhecidas pela primeira, posições que impõem deveres de salvar os titulares da morte e de não abandoná-los à morte (correlatos ao direito estrito de ser salvo de morte iminente)628. Feinberg é enfático ao afirmar que se trata de um direito estrito (claim-right), com, no mínimo, duas posições, a de não ser morto e a de não ser abandonado à morte629. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword estruturam as posições subjetivas do direito à vida também como direitos estritos, esmiuçando-as adequadamente: DV(a): um direito estrito negativo de que outros indivíduos não se comportem de formas direcionadas a pôr fim à vida de alguém (i.e., o direito básico, possivelmente estendido para cobrir condutas negligentes e imprudentes)630; DV(b): um direito estrito negativo de que outros indivíduos não tomem medidas para assistir a outros a pôr fim à vida de alguém ou a assistir alguém a pôr fim à própria vida; DV(c): um direito estrito positivo de que outros indivíduos comportem-se segundo formas designadas a salvar ou manter a vida de alguém; DV(d): um direito estrito positivo de que outros indivíduos comportem-se de tal forma que auxiliem no salvamento ou na manutenção da vida de alguém631. 628 McCONNELL, Op.cit., p.79-80. FEINBERG, Voluntary euthanasia…, p.224-225. Robert Alexy situa como posição subjetiva do direito à vida, a de não ser morto arbitrariamente. Anota-se que esta é a redação do Pacto de Direitos Civis e Políticos, supratranscrita. Aristóteles Atheniense narra que os Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes afirmaram “ser o direito à vida inerente à pessoa humana, devendo ser protegido por lei e que ninguém poderá ser arbitrariamente privado dele. ‘Enfatizando-se: ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Em consequência, havendo justo motivo ou razões fundadas, não há como deixar de afastar a tipicidade material do fato (por se trará de resultado jurídico não desvalioso). Essa conclusão nos parece válida, seja para a ortotanásia, seja para a morte assistida, seja, enfim, para o aborto anencefálico. Em todas essas situações, desde que presentes algumas sérias, razoáveis e comprovadas condições, não se dá uma morte arbitrária ou abusiva ou homicida (isto é, criminosa)’”. ATHENIENSE, Aristóteles. Enfoque jurídico da ortotanásia. In: PEREIRA, Tânia da Silva; MENEZES, Rachel Aisengart; BARBOZA, Heloísa Helena. Vida, morte e dignidade humana. Rio de Janeiro: GZ, 2010, p.114. ALEXY, Teoria de los..., Op. cit., p.187-188. 630 Neste ponto acrescenta-se a noção do direito estrito à não-eliminação da situação jurídica de estar vivo por parte do Estado. Ver supra, Capítulo 2, item 2.2.3.2. 631 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.274. “RL(a): a negative claim-right that other agents do not act in ways that are intended to terminate one’s life (ie the basic right, possibly extended to cover reckless and careless conduct); RL(b): a negative claim-right that others agents do not take steps to assist others to terminate one’s life or to assist one to terminate one’s life; RL(c): a positive claim-right that other agents act in ways that are designed to save or sustain one’s life; RL(d): a positive claim-right that other agents act in such a way as to assist in saving or sustaining one’s life”. 629 313 Acertadamente os autores mostram que a cada posição corresponde um dever (em sentido estrito), seja o de não realizar o ato de matar ou de abster-se de auxiliar alguém a morrer, seja o de salvar ou de auxiliar no salvamento de alguém. Nas posições mencionadas, o sujeito passivo poderá ser tanto o Estado (em sentido amplo), quanto os particulares. Tomado em sua estrutura de direito fundamental, o direito à vida traz consigo ainda outras posições subjetivas endereçadas somente ao Estado, a saber: (a) DV(e): direito à não-eliminação das posições jurídicas do direito à vida, que se manifesta como imunidade com a correlata não-competência; (b) DV(f) direito estrito a ações positivas fáticas; (c) DV(g) direito estrito a ações positivas normativas632. Afirmou-se que a titularidade de tais posições subjetivas é, ao menos, de todos os seres humanos nascidos vivos, havendo espaço para discutir quais outros entes são titulares, como embriões, fetos, animais não-humanos. Em uma tese sobre disposição de direitos fundamentais, não é pertinente penetrar no debate, pois da titularidade não se segue necessariamente a habilidade jurídica para dispor633. Frisa-se, porém, que a qualidade da vida ou a dignidade da vida dos seres humanos, vistas aos olhos de terceiros (i.e., heteronomamente), são absolutamente desimportantes tanto para a titularidade das posições, quanto para a não-interferência externa. Ou seja, condições altamente adversas de vida humana não são menos protegidas pelas posições subjetivas do direito à vida. Indivíduos muito enfermos, terminais, portadores de doenças degenerativas gravíssimas, de transtornos mentais acentuados, de deficiências físicas significativas, de moléstias transmissíveis, em estado comatoso ou vegetativo persistente e tantos mais são tão titulares das posições subjetivas do direito à vida e abarcados pela sua dimensão objetiva quanto indivíduos plenamente saudáveis e produtivos. As condições adversas não são, sobremaneira, razões para a interferência heterônoma com o direito à vida, nem em dimensão subjetiva, nem objetiva. Ao contrário, indivíduos em condições adversas de vida normalmente compõem grupos especialmente vulneráveis e invisibilizados, gerando assimetria nas relações que com eles são travadas. 632 Supra, Capítulo 1, item 1.2.3.2.1. As duas últimas posições estão intimamente relacionadas à deficiência da proteção, supra, Capítulo 3 item 3.4. 633 No mesmo rumo: McCONNELL, Op.cit., p.79. 314 4.1.2.1 Anotações inconclusas sobre o direito estrito de ser salvo: intensidade e extensão dos deveres correlatos Afirmou-se também que as posições subjetivas do direito à vida são bastante delicadas, porém não são absolutas. Ou seja, há possibilidade, muito estreita, de restrições. Nas posições que se endereçam aos particulares e ao Estado (DV(a), DV(b), DV(c) e DV(d)), interessa aprofundar um pouco se elas apresentam a mesma densidade jurídico-moral (o mesmo peso abstrato) e a mesma extensão. As duas primeiras posições referem-se caracteristicamente aos deveres de não matar e ao de não contribuir ativamente para a morte de outrem, que serão denominados genericamente não matar. As duas últimas referem-se aos deveres de salvamento. A pergunta é: os deveres de não matar possuem a mesma densidade jurídico-moral e a mesma extensão dos de salvamento? Obter uma resposta em abstrato é praticamente impossível, a não ser que se adote uma relação prévia e estática de densidade jurídico-moral. Portanto, serão arrolados argumentos à luz do sistema jurídico brasileiro, bem como em situações diversas, sem a pretensão de trazer uma proposta única e definitiva no tema634. Começa-se pelo mais simples, a extensão. Certamente os deveres de não matar alcançam todos os demais indivíduos, particulares e aqueles que agem em nome do Estado. Parcos casos, como a legítima defesa e o estado de necessidade, são hábeis a quebrantar os deveres. Com os deveres de salvamento parece ser diverso. São todos os demais indivíduos alcançados por ele? Em que medida? Em linha de princípio, pode-se considerar que à generalidade dos indivíduos destinam-se os deveres de salvamento, principalmente naqueles países que, como o Brasil, adotam as chamadas leis dos bons samaritanos, mais comuns na Europa Continental e na América Latina do que nos países de tradição jurídica anglo-americana635. Porém, os comportamentos que se exigem para a desoneração do dever de salvamento são bem mais leves do que os que se referem ao dever de não matar. Deveres de salvamento mais fortes ou com sacrifícios a direitos pessoais próprios são deveres especiais, normalmente instituídos para pessoas 634 Para um aprofundamento, ver:THOMSON, The realm..., especialmente os Capítulos 6 e 7, p.149-202, e FEINBERG, Harm to others..., p.126-186. 635 A informação e a denominação são empregadas por FEINBERG,. Harm to others..., p.126 e ss. No Brasil, um exemplo claro é a tipificação da omissão de socorro: “Omissão de socorro. Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte”. BRASIL, Código Penal, Op.cit. 315 ou grupos que adentram em relações ou situações especiais, como bombeiros, policiais e profissionais da saúde. Alguns exemplos auxiliarão no desenvolvimento argumentativo. Imagine-se que A esteja muito enfermo e precise de um transplante de rim para salvar-lhe a vida. Ele está na fila dos transplantes e sua situação agrava-se dia-a-dia. Sem doadores em vida compatíveis, precisa aguardar a morte de alguém. Por uma coincidência, ele conhece um jovem saudável e com ele compatível para fins de transplantação. O jovem não tem qualquer pretensão de ser um doador em vida, nem guarda laços de amizades ou parentesco com A. Considerar-se-ia justificável que A matasse o jovem para obter-lhe o órgão? A poderia argumentar que a morte do jovem salvaria outras pessoas ainda, pois haveria múltiplos órgãos a transplantar. Os sistemas jurídicos são (acertadamente, diga-se) refratários a aceitar essa conduta e de regra não consideram que a quebra do dever de não matar esteja albergada pela licitude, nem mesmo em face da necessidade premente. Provavelmente, com sua conduta, A sequer receberia o órgão, mesmo que fosse o próximo da fila. E se A solicitasse à equipe médica que matasse o jovem para salvá-lo? Obteria uma recusa. Cabe perguntar: não estão os profissionais da saúde sob um dever diferenciado, especial, de salvar A? Estão. Supondo-se que não tenham qualquer relação com o jovem, o dever de não matá-lo é o dever geral. Percebe-se que ainda que exista um dever especial de salvamento, ele não se antepõe ao dever geral de não matar. Suponha-se agora que A solicite ao jovem a doação do rim inter vivos, e o jovem recuse plenamente. Seria o jovem compelido a ser o doador e a salvar a vida de A? Nos ditames da legislação vigente no Brasil, não. Nem sequer se o jovem morresse sem a interferência de A, a doação seria compulsória. Seria preciso o consentimento pretérito do jovem, enquanto sujeito do consentimento, ou de sua família, após o óbito. Como escreve McConnell, exercícios de pensamento como esses podem soar irreais. Ele encontrou, todavia, dois julgados nos Estados Unidos que trataram do ponto. Em um deles, um primo recusou-se a ser doador de medula óssea, recusa que culminou na morte de seu parente. A família tentou obter a autorização judicial para a transplantação compulsória. O juiz rechaçou o pleito, salientando, segundo McConnell, que “ainda que a recusa em doar seja moralmente indefensável, não há dever legal de agir para salvar a vida alheia, e certamente nenhum dever de ser um doador de medula 316 óssea para outra pessoa”636. O segundo caso envolvia crianças, irmãos por parte de pai. A mãe dos possíveis doadores recusou a doação da medula óssea para o outro irmão, que não era seu filho. O pai buscou suprir o consentimento judicialmente, sem sucesso. A Corte decidiu favoravelmente à mãe, cuja recusa seria desconsiderada apenas se não atendesse aos melhores interesses dos seus filhos637. Se visualizado o ordenamento jurídico brasileiro sob o viés da integridade, perceber-se-á que o dever de salvamento é tratado com menor extensão do que o dever de não matar. Já foi referida a legislação sobre transplantes, cujo núcleo está no consentimento. Sem consentimento, não há doação, nem mesmo post mortem. A tentativa de instituir a chamada doação presumida post mortem causou furor, e sua inconstitucionalidade chegou a ser aventada, em nome da proteção das liberdades e da integridade psicofísica do falecido e de seus familiares. Veja-se que o dever de salvar a vida alheia não conseguiu ser imposto sequer quanto à doação de órgãos de indivíduos já falecidos638. No crime de homicídio, se ausente o dever especial e a posição de garante, não se configurará sua hipótese imprópria, ou seja, o homicídio por omissão, que só terá como sujeitos ativos aqueles que estiverem sob o dever previamente instituído de salvar e assumirem a posição de garante. Nota-se que os deveres de salvamento são menos extensos do que os deveres de não matar e também menos intensos, na medida em que o ordenamento jurídico não exige sacrifícios e comportamentos tão fortes para o cumprimento dos primeiros. Isso indicaria a menor densidade jurídico-moral dos deveres de salvamento, de modo que se poderia representar graficamente as posições subjetivas do direito à vida por círculos concêntricos, à semelhança, mas sem identidade de significado, do que fazem alguns para expor o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Na parte aureolar do direito à vida estariam as posições de ser salvo de morte iminente, com os correlatos deveres de 636 McCONNELL, Op.cit., p.80-81. Comentando McFall v. Shimp, nº78-17711 In Equity (C.P. Allegheny County, Pennsylvania, July, 26, 1978). No original: “Judge Flaherty said that although Shimp’s refusal to donate was morally indefensible, nevertheless, there is no legal duty to take action to save another’s life and certainly no duty to serve as a bone marrow donor for another”. 637 McCONNELL, Op.cit., p.80-81. Comentando Curran v. Bosze, 41 Illinois 2nd 473, 153 III., Dec. 213, 566 N.E. 2nd 1319 (1990). 638 Esta tese não é o local apropriado para debater a política brasileira de transplantes. Porém, não há como furtar-se à indagação a respeito da fácil admissão dos denominados aventureiros morais, ou seja, aqueles grupos que querem para si as benesses do comportamento moral alheio, mas se recusam a assumir e a viver os ônus de tais comportamentos. Ou seja, a legislação brasileira favorece tais aventureiros, na medida em que quem se declara não doador, é receptor. A expressão aventureiros morais é usada por LÓPEZ, Ética…, e LÓPEZ, Eduardo Rivera. Classe. Estudios Superiores en Bioética. Argentina: FLACSO, 2009. 317 salvamento. Na parte mais central, estariam as posições subjetivas de não ser morto e os correlatos deveres de não matar639. Como asseverado, todas as posições teriam muito peso abstrato, porém a parte central teria ainda mais. Todavia, a conclusão sobre a intensidade parece apressada e não generalizável. Seria a omissão em salvar uma vida sempre e a priori menos intensa do que a ação de matar alguém? Observe-se, inicialmente, que, a abstenção em salvar, quando em jogo a vida humana, implica o mesmo resultado que o ato de matar. E do ponto de vista jurídico, surte os mesmos reflexos nas posições subjetivas do direito à vida, haja vista o perecimento do bem protegido. Na discussão, é usual empregar-se o exemplo da criança que se afoga. Suponha-se que o responsável legal deseje a morte da criança, pois com ela será beneficiário de uma herança. Será diferente afogar a criança em uma banheira ou vê-la afogar-se sem nada fazer? Será diferente a conduta de um médico que suspende sistemas de suporte vital de um paciente terminal daquela de um médico que ministra doses letais de um medicamento em um paciente terminal? Tanto o responsável legal quanto o médico estão sob um dever específico de salvamento, o que sugeriria que, quanto a eles, o dever de salvamento é tão denso quanto o de não matar. Mas e se fosse um terceiro, alguém alheio ao paciente, que retirasse o suporte vital?640 639 No Brasil, há uma importante discussão que se atrela a esta quanto às políticas públicas de saúde. Não apenas o direito à vida é instrumental. Outros direitos, como promoção, recuperação e proteção da saúde, podem ser instrumentais ao direito à vida, normalmente na perspectiva dos deveres de salvamento. O debate que atualmente se instaura sobre o papel do Poder Judiciário na concessão de medicamentos, tratamentos e intervenções de saúde tem como pano de fundo a extensão e a intensidade do dever estatal de salvamento de vidas especificamente consideradas em um quadro de escassez de recursos e de necessidade de universalização de acesso ao sistema de saúde. Muitos se manifestam sobre a questão, demonstrando o quão relevante e problemática é a definição da extensão e da intensidade dos deveres de salvamento quando a figura do Estado está em causa. No tema, um ponto é certo: os custos jamais justificam matar alguém. Porém discute-se se a distribuição, alocação e planejamento de recursos podem justificar não tratar alguém, ou seja, não arcar com o dever de salvamento em relação específica. A última conclusão foi muito bem exposta por Baruch Brody, para quem os deveres de salvamento são menos densos jurídica e moralmente do que os deveres de não matar, especialmente na assistência em saúde. BRODY, Baruch. Withdrawal of treatment versus killing of patients. In: BEAUCHAMP, Tom L. (ed.) Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996, p.90-103. Na mesma obra, ver ainda: DANIELS, Norman, In permitting death in order to conserve resources, p.208-215 e GILLON, Raanan, Intending or permitting death in order to conserve resources, p.199-207. É farta a literatura e a jurisprudência no tema. Para uma análise atual e com bom referencial teórico-jurisprudencial e legal-regulatório, ver: BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. In: MARTEL, Letícia de Campos Velho. Estudos Contemporâneos de Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p.309-335. 640 Sobre os exemplos e sua discussão, ver: RACHELS, James. Active and passive euthanasia. New England Journal of Medicine. Jan., 1975, n.292(2), p.78-80. E ainda diversos capítulos da coletânea: BEAUCHAMP, Tom L. (Ed.). Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996, especialmente os textos de Tom L. Beauchamp, Allen Buchanan, Ruth Macklin, Baruch Brody, Judith Jarvis Thomson, Dan W. Brock. 318 As indagações conduzem a um ponto crucial, muito bem lembrado por Judith Jarvis Thomson. O resultado fenomênico final será o mesmo: a morte de um ser humano. Todavia, o complexo fático, as circunstâncias, fazem muita diferença. Considerar isoladamente a reprovação moral ou jurídica de um comportamento é muito diferente de apreciá-lo dinamicamente, tomando em conta as circunstâncias, o contexto, as alternativas, as decisões, os sujeitos, as intenções, as causas, entre outras variáveis relevantes. A discussão não está no vácuo. Está embebida em condicionantes. Então, pode-se afirmar, em forte linha de princípio, que matar alguém é um ato moral e juridicamente muito condenável; deixar de salvar a vida de alguém também o é. A intensidade dos deveres de não matar e de abster-se em salvar a vida de alguém é muito forte. Como premissa, os primeiros mais ainda que os segundos. Mas a premissa sujeita-se a variações em função de uma série de condicionantes, que precisam ser detalhadas, contexto a contexto, caso a caso, sem que se perca de vista a relevância única do direito à vida641. Nos países que aceitam a recusa de intervenções médicas, mesmo aquelas hábeis a salvar ou a prolongar a vida dos pacientes, a discussão sobre a intensidade e a extensão dos deveres jurídicos de salvamento diminuiu significativamente em anos recentes642. Para intervenções médicas, é preciso a justificação procedimental pelo consentimento, ressalvadas algumas situações específicas, substantivamente justificadas. Não é o caso do sistema jurídico brasileiro. Embora a doutrina esteja valorizando cada vez mais o consentimento, é ampla a abertura para a justificação substantiva segundo enunciados normativos infraconstitucionais quando em jogo a vida 641 THOMSON, The realm…, p.135 e ss. THOMSON, Killing and letting die: some comments. In: BEAUCHAMP, Tom L. (ed.) Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996, p.104-108. 642 Por todos, McConnell: “Cases like these [casos de recusa em ser doador] present some difficulties for defenders of the positive interpretation of the right to life. It appears that this account implies a duty (moral or legal) the existence of which most people would deny. In reply, it seems that defenders of the positive account must argue for one of two claims: either there is after all a (moral) duty to serve as a donor in cases like this, or contrary to appearances the positive interpretation does not entail such duties. What is common to the positive and negative interpretations of the right to life is that such a right imposes a duty on others not to kill the possessor. That provides one reason for restricting ourselves to the negative account when we ask whether the right to life is alienable; for it endorses only what is common to both. But there is a second reason. It is well established that competent individuals have the legal and moral right to refuse medical treatment, including life-saving interventions. This is an extension of the right to self determination, and the consensus is that this is both a moral and a legal right. This right imposes obligations on others: any medical intervention must be withheld or withdrawn if the individual for whom the intervention is intended is competent and so requests”. Ver também: BEAUCHAMP, Tom L. (ed.) Introduction. In: Intending death: the ethics of assisted suicide and euthanasia. New Jersey: Prentice Hall, 1996, p.1-22. 319 do enfermo643. É exatamente neste particular que se pretende traçar a principal rota da tese, o que será formulado nos próximos tópicos. 4.1.2.2 O direito de morrer: um argumento às avessas Aos problemas atinentes à morte com intervenção, especialmente os sofrimentos ensejados pelo aprimoramento da técnica e da tecnologia em saúde, alguns estudiosos e ativistas lançaram a hipótese de um direito de morrer, por vezes como um direito autônomo, por vezes como uma posição do próprio direito à vida, que comportaria um direito-antítese, do mesmo modo que muitas liberdades (crer/não crer; manifestar/calar; consentir/recusar e assim sucessivamente)644. Para aqueles que adotam a teoria dos direitos subjetivos como vontade, seria efetivamente mais acertado situar o direito de morrer como posição do direito à vida. No caso Pretty, um dos argumentos dos aplicantes favoráveis à permissão do suicídio assistido foi exatamente a existência de um direito de morrer, que estaria assegurado no próprio direito à vida645. Os julgadores rejeitaram de pronto a noção de um direito de morrer, tanto no patamar doméstico como no sistema regional europeu de proteção dos Direitos Humanos. Entende-se que há razões subjacentes de muito relevo para a postura da Câmara dos Lordes e da Corte Europeia. Para analisar o assim chamado direito de morrer e debater sua existência, o exercício será, em primeiro lugar, supor quais seriam as suas posições subjetivas. Deryck Beyleveld e Roger Brownsword estruturaram a hipótese: DM(a): um direito estrito positivo de que outros indivíduos ajam de formas direcionadas a pôr fim à vida de alguém (i.e., o direito básico, possivelmente estendido para cobrir condutas negligentes e imprudentes ameaçadoras da vida); DM(b): um direito estrito positivo de que outros indivíduos tomem medidas para auxiliar a outros ou a si mesmos a pôr fim à vida; 643 Segundo diversos enunciados normativos infraconstitucionais, quando há risco de vida para o paciente, é ordenado aos médicos intervir, mesmo sem o consentimento. Infra, item 4.4. 644 A expressão não é empregada apenas pelos ativistas, em situações não-técnicas. Filósofos do quilate de Hans Jonas sustentam um direito de morrer. Como exemplo, JONAS, Hans. The right to die. The hasting Center Report, v.8, n.4, p.31-36, Aug. 1978. Na literatura jurídica nacional, conferir: SÁ, Maria de Fátima Freire de; PONTES, Maíla Mello Campolina. Autonomia Privada e Biodireito: Podemos, legitimamente, pensar em um direito de morrer? Revista Jurídica UNIJUS, v. 11, p. 177-192, 2008; SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Também Débora Diniz menciona um direito de morrer. Todavia, não se conseguiu precisar se a autora, antropóloga, emprega a expressão em um sentido técnico-jurídico, com as consequências que isso acarreta. Dentre vários outros textos da autora, DINIZ, Débora. Quando a morte é um ato de cuidado: obstinação terapêutica em crianças. Cadernos de Saúde Pública, v.22, n.8, p.1741-1748, ago. 2006. 645 Sobre o caso, supra, Capítulo 2, item 2.2.3; infra, item 4.3.1.2.4. 320 DM(c): um direito estrito negativo de que outros indivíduos não ajam segundo as formas designadas para salvar ou manter a vida de alguém (incluindo um direito estrito a que outros não interfiram com a tentativa de suicídio de alguém); DM(d) um direito estrito negativo de que outros indivíduos não ajam de forma a auxiliar ou manter a vida de alguém646. Até o momento, nenhum problema. É possível desenhar a estrutura do direito de morrer e estabelecer os deveres que lhe são correlatos: os deveres de matar e os deveres de não salvar outros seres humanos de uma morte iminente. Nenhum problema? Quem titulariza as posições subjetivas do direito? A quem são destinados esses deveres? Aparentemente, tal qual o direito à vida, a todos os seres humanos vivos. Qual é o bem jurídico tutelado? A morte. Aqui entra em cena o que foi escrito no Capítulo 1 e no início do Capítulo 2. A estrutura dos direitos, principalmente dos direitos fundamentais, carece de anima, de substância. Trabalhar apenas no patamar estrutural-analítico permite aceitar qualquer posição jurídica. E os direitos, tanto mais os fundamentais, não são meras estruturas relacionais. Traduzem valores de uma sociedade política, estão abraçados por um inegável substrato axiológico. Ao supor a estrutura de um direito de morrer, torna-se nítido o quão estranho é, de um ponto de vista substantivo, defender a sua existência. Em primeiro lugar, como sustentar que cada ser humano é titular do direito de morrer? Todos os seres humanos irão morrer. A morte é o inexorável destino humano. É o fenômeno que desafia a humanidade há séculos, quiçá milênios, e que, em larga escala, não está sob o controle humano. Haveria direito estrito a um fenômeno natural, inevitável e ainda largamente imprevisível? Poder-se-ia argumentar que a vida, assim como a saúde, também é um fenômeno, um desafio... A diferença é que é viável juridicamente e em caráter geral promover e proteger a vida e a saúde em relação a comportamentos que contra elas atentem. Quanto à morte, um contingente demasiadamente significativo de casos fica absolutamente fora da possibilidade jurídica de proteção. Os direitos resguardam o bem. Protegem-no. É de fato possível resguardar a morte, protegê-la, promovê-la de modo geral, como se faz com os demais bens? Se a resposta for afirmativa, novas indagações647. Que sociedade é essa? 646 BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277. Uma das maneiras de responder afirmativamente é asseverar que o direito de morrer não é diametralmente oposto ao direito à vida, tampouco seu direito-antítese. O substrato da afirmação está em considerar que a morte é um evento, ao passo que morrer é um processo. Enquanto a morte e a vida não coexistem, a vida e o processo de morrer coexistem. Assim, o direito de morrer seria o direito ao processo de morrer, e não o direito à morte, sendo possível afirmar a sua existência simultânea ao direito à vida. 647 321 Então, em segundo lugar, o direito de morrer teria espaço se as sociedades contemporâneas fossem “clubes de suicidas” ou de “gladiadores”648. Perceba-se que as posições subjetivas do suposto direito contradizem valores arraigados nas sociedades ocidentais contemporâneas que prezam pelos direitos fundamentais. Elas lançam sobre os indivíduos não apenas o direito estrito de ser morto e de não ser salvo da morte, mas especialmente introduzem a ideia de um dever (em sentido estrito) de matar outros seres humanos ou de nada fazer para salvá-los649. O evento morte, sempre lamentável, deixaria de sê-lo? Como situar as políticas públicas de prevenção ao suicídio? Como manter o rechaço da guerra, da violência, do homicídio? Por que traçar políticas públicas para aprimorar a expectativa de vida de uma sociedade que reclama para si o direito de ser morto e de impor sobre os demais o dever de matar? Vale perguntar novamente: Que sociedade é essa?650 As afirmações e questões podem parecer exageradas. Desmedidas, até. Talvez o importante não seja o que o direito de morrer denota, mas o que ele conota. O direito de morrer não é reclamado com uma intenção generalizante; ao contrário, ele visa a um grupo específico de seres humanos, cuja morte é obstada mediante muito sofrimento. Quem defende um direito de morrer o faz porque, na tentativa de curar a morte, de estender a vida e de afastar o tanto quanto possível a finitude típica do humano, as técnicas e a tecnologia em saúde, apesar dos grandes avanços e benesses, acarretam, no atual estado da arte, um intenso padecimento para um Contra essa posição, dois elementos básicos: (a) o resultado, qualquer que sejam as palavras, é a morte, embora o bem protegido não seja a morte, mas o processo de morrer; (b) uma vez que se compreenda o morrer como um processo, existe uma dificuldade em traçar a linha demarcatória que define quem está nesse processo e quem não está. Uma indagação é: uma vez vivos, não estão todos os seres humanos em um contínuo processo de morrer? A respeito, consultar: COGGON, John. Could the right to die with dignity represent a new right to die in English law? Medical Law Review, n.14, p.223-226, Summer 2006. 648 As expressões são empregadas por BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277, verbis: “First, while such a rights regime (or some part of this regime) might make some sense for members of a suicide club, or for gladiators, or the like, it makes little or no sense for members of societies of the kind that we are presupposing”. 649 Conforme Leon Kass: “Taken literally, a right to die would denote merely a right to the inevitable; the certainty of death for all lives is the touchstone of fated inevitability. Why claim a right to what is not only unavoidable, but is even, generally speaking, an evil? Is death in danger of losing its inevitability? Are we in danger of bodily immortality? Has death, for us, become a good to be claimed rather than an evil to be shunned or conquered?”. KASS, Leon R. Is there a right to die? The Hastings Center Report, v.23, [s/p], Jan./Feb. 1993. 650 Nas palavras de Deryck Beyleveld e Roger Brownsword: “Taking stock, we suggest that an axiomatic right to die is not the obverse of an axiomatic right to die. Even with a will theory of rights, a community that is orientated towards the former is a very different community to one orientated to the latter; and no community can be sensibly orientated towards both axiomatic rights at the same time”. BEYLEVELD;BROWNSWORD, Consent..., p.279. 322 extrato de pessoas cujo prognóstico é nefasto. A afirmação de um direito de morrer está em um contexto determinado e representa dizer não à imposição de um específico modelo biomédico em face da morte. Situa-se no ambiente da assistência em saúde, da clínica médica651. É característico do discurso dos direitos o reconhecimento e a incorporação de novos direitos à medida do surgimento de novos desafios. É característica das Constituições e das Declarações de Direitos a capacidade de abrigar novos direitos, sua abertura e seu caráter de living instruments652. É tão denso o discurso dos direitos nas sociedades políticas ocidentais, que quem se recusa a aceitar um molde pré-concebido e correto do morrer e a imposição de um modelo de assistência em saúde, apropria-se da linguagem dos direitos para ter ouvidas e atendidas suas demandas. É interessante perceber que o direito de morrer é reclamado em estatura constitucional e até fundamental, dadas as consequências que se pretende dele extrair diante dos sistemas jurídicos653. Ocorre que a linguagem dos direitos, principalmente dentro de teorias baseadas em direitos, é poderosa e de longo alcance. A denotação e a conotação andam juntas. Os direitos fundamentais não saem do vazio, são antes direitos morais incrustados em sistemas jurídicos nos quais se busca a integridade, num arcabouço principiológico que tem por último piso ideias como a dignidade humana e o igual respeito e consideração. Apropriar-se dessa linguagem é muito sério, exige despir-se da ingenuidade e acobertarse na história, nas funções e na linhagem dos direitos fundamentais654. Daí mais indagações. O direito de morrer possui lastro de integridade com o sistema jurídico? Quais são o alcance e o significado jurídicos de um direito de morrer? 651 Cf. KASS, Is there a right…, [s/p]. Os argumentos são usuais em muitas linhas da teoria constitucional, dos direitos fundamentais e dos direitos humanos. Na Constituição brasileira, o reconhecimento de novos direitos encontra sustentáculo na chamada cláusula de abertura, presente em todas as Constituições republicanas do país, cuja origem remota está na Nona Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América. No tópico do direito de morrer, articularam e comentam tais argumentos, sem que a conclusão necessária seja reconhecer um direito de morrer, a Corte Europeia de Direitos Humanos, no caso Pretty, e COGGON, Could the right…, passim. KEOWN, John. European Court of Human Rights: Death in Strasburg – assisted suicide, the Pretty case, and the European Convention on Human Rights. International Journal of Constitutional Law, n.1, 2003, p.724. A denominação cláusula de abertura é de HÄBERLE, Peter. La liberdad fundamental en el Estado constitucional. Peru: Fondo Editorial de la Pontifícia Universidad Católica del Perú, 1997, p.127-128. 653 Não apenas constitucional, mas também internacional, como demonstra o caso Pretty. 654 De modo geral, os argumentos da ladeira escorregadia são frágeis e não tão difíceis de rebater. Porém, quando se emprega o discurso dos direitos para defender um direito de morrer, há riscos sérios, que precisam ser bem dosados sem qualquer ingenuidade. Leon Kass expôs que a conquista de um direito de morrer pode mascarar pautas político-morais que não seriam sequer verbalizadas diretamente, como conceitos de vidas inúteis. Para o desenvolvimento argumentativo, KASS, Is there a right..., [s/p]. 652 323 Continua-se, então, o exercício para pôr em prática as posições subjetivas do direito de morrer. Se há dever de matar e de não salvar, em atenção ao direito de morrer e de não ser salvo, invertem-se premissas habituais do raciocínio jurídico e há conclusões de longo alcance. De pronto, percebe-se que o ônus argumentativo para a restrição de posições subjetivas de direitos fundamentais está com quem pretende restringi-lo. Um direito de morrer põe o ônus argumentativo naqueles que pretendem viver, salvar ou manter vivos os demais seres humanos. Um direito de morrer, se jusfundamental ou constitucional, retira do Estado a necessidade de arcar com o ônus argumentativo de não prestar assistência àqueles cuja vida está em risco, de matar alguém, ou, para suavizar o argumento, retira do Estado a necessidade de justificar (o que nesta tese já se considerou injustificável) o ato de matar seres humanos para conter custos ou alocar “melhor” recursos em saúde. Um direito de morrer fragiliza imunidades diante do Estado, ou seja, ameniza a não-competência estatal quanto à nãoeliminação de situações e de posições jurídicas subjetivas. Pode afetar a engrenagem da dimensão objetiva do direito à vida e do direito à saúde. E mais, como ele se amolda à noção de suporte fático amplo? Supondo que se reconheça um direito de morrer de estatura constitucional, haverá que se justificar porque há indivíduos que não o titularizam, ou se titularizarem, porque seu exercício não será conferido a todos. Terá que se justificar porque seu suporte fático é tão restrito. Seguindo na hipótese de pensamento, haverá incumbências probatórias de causar espécie. Se houver direito de morrer, os titulares terão que sinalizar que querem viver, ou seja, nos termos desta tese, dispor continuamente das posições subjetivas, liberando os demais dos deveres correlatos655. Caberá provar que se pretendia viver e não ser morto. Então, em terceiro lugar, é um direito cuja operacionalização inverte premissas básicas das teorias dos direitos fundamentais e do Estado Constitucional de Direito. Qual é fio de integridade do direito de morrer com o sistema jurídico brasileiro? Crê-se desnecessária a busca. As anotações sobre a sacralidade da vida, as exigências de proteção, promoção, e defesa do direito à vida e à saúde dão o tom de que um direito de morrer nem se ajusta às práticas jurídicas, nem se justifica656. É bastante razoável e 655 Nesse sentido argumentam BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.277. Entende-se que Ronald Dworkin não abaliza um direito de morrer, mesmo que conclua favoravelmente à legalização de muitas práticas de morte com intervenção. Para o jusfilósofo, está em 656 324 conforme ao sistema jurídico brasileiro e de outras democracias ocidentais afirmar que “nós todos concordamos que é geralmente injusto matar pessoas. Ainda que possamos divergir sobre exceções, e sobre quais seres qualificam-se como pessoas, o julgamento de que é injusto, tudo o mais sendo igual, matar intencionalmente pessoas paradigmáticas representa um substrato moral comum”657. Como será estudado adiante, é razoável levantar a tese de que uma das faces da dignidade humana como heteronomia é justamente a proteção, a promoção e a defesa da vida humana. Todo o exposto pode dar a entender que pleitos para a recusa de intervenções médicas de prolongamento e de manutenção da vida, para o consentimento destinado à retirada ou suspensão de suporte vital, ou até para o suicídio assistido e a eutanásia são inadmissíveis, uma vez que recaem no ora atacado direito de morrer. Compreender assim é um non sequitur. Negar o direito de morrer não é sinônimo de negar outros direitos fundamentais enraizados, como a privacidade, a liberdade de consciência, a proibição de imposição de tratamentos desumanos e degradantes. Negar o direito de morrer não é sinônimo de negar a necessidade de justificar atos de paternalismo e de perfeccionismo jurídicos. Negar o direito de morrer significa, somente, indicar sua inutilidade e seus riscos no mundo dos direitos fundamentais. Significa dizer que a linguagem dos direitos é vigorosa e pervasiva, e o modo como são estruturados os argumentos faz toda a diferença. Para proteger indivíduos contra as mazelas advindas do progresso científico, para humanizar a morte e o processo de morrer, não é preciso ir tão longe a ponto de reclamar um perigoso e escorregadio direito de morrer658. Sugerir o direito de morrer é cruzar o Rubicão sem um exército, pois há uma enorme diferença argumentativa e técnico-jurídica que não pode passar despercebida. Afirmar que há direito estrito de morrer e de não ser salvo, com seus deveres correlatos, é absolutamente diferente de afirmar que em bem demarcadas ocasiões há um privilégio de não salvar ou até de matar alguém, e que a imunidade está com o titular do direito à vida e dos demais direitos em causa. Portanto, nas bem demarcadas hipóteses forma-se uma não-competência estatal para proibir ou impedir que o titular modifique posições subjetivas do direito à vida, saindo do binômio direito estrito/dever e adentrando no binômio privilégio/não direito, ou até no binômio invertido de direito estrito/dever. causa o direito à vida e uma liberdade básica, que ele reputa congênere à liberdade religiosa e traduz o modo como a santidade da vida deve ser respeitada. DWORKIN, Ronald. O domínio..., p.255 e ss. 657 DeGRAZIA, David. Identity, killing and the boundaries of our existence. Philosophy and Public Affairs, v.31, n.4, p.413, 2003. 658 Em conclusão semelhante, porém em outras linhas argumentativas: KASS, Is there a right…, [s/p] e BEYLEVELD; BROWNSWORD, Consent..., p.274 e ss. 325 4.2 Da indisponibilidade do direito à vida Nos Capítulos iniciais da tese, sustentou-se que a indisponibilidade das posições subjetivas de direitos fundamentais é normativa, isto é, não integra, ontologicamente, a estrutura das posições. É na justificação para se ter e exercer direitos que se encontra a raiz da disponibilidade ou indisponibilidade. Além disso, optou-se por trabalhar com a noção de um direito geral de liberdade. Uma das consequências da opção é exatamente a consideração das posições subjetivas de direito fundamental como prima facie disponíveis, cabendo, àqueles que pretendem sustentar a sua indisponibilidade, arcar com o ônus argumentativo. É usual trajar as posições subjetivas do direito à vida como indisponíveis. Como diz McConnell, “sempre que se compõem listas de supostos direitos indisponíveis, o direito à vida normalmente está no topo”659. Há dois modos básicos de sustentar a indisponibilidade do direito à vida. No primeiro, afirma-se a indisponibilidade direta e substantivamente660. No segundo, apresentam-se critérios de aplicação para tratar a disponibilidade nos quais as posições subjetivas do direito à vida não se encaixam, em função das peculiaridades do bem protegido661. Neste tópico, sustentar-se-á que é justificável que um sistema jurídico repute as posições subjetivas do direito à vida indisponíveis como linha de princípio, ou seja, que entenda insuficiente o consentimento do titular para enfraquecer as posições subjetivas do direito e para criar novas obrigações de mesmo conteúdo para o titular. No Capítulo 2, informou-se que serão evitados argumentos de paternalismo, perfeccionismo e o moralismo jurídico, exceção feita ao paternalismo fraco. Então, para elaborar a 659 McCONNELL, Inalienable…, Op. cit., p.79. “Whenever lists of putative inalienable rights are composed, the right to life usually is at the top”. 660 É o caso de Diana T. Meyers. Para a autora, que adota um conceito amplo de indisponibilidade, para que um direito seja indisponív