® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Aspectos introdutórios da Teoria Geral do Processo João Fernando Vieira da Silva* Contudo, a natureza humana não é de índole pacífica. A idéia hobbesiana de que “o homem é mau” reflete todos os egoísmos que norteiam o agir humano. Frear estes excessos e regrar o convívio social é fundamental. Daí a necessidade de estabelecimento de regras que disciplinem o convívio entre os homens. O homem não existe exclusivamente para satisfazer seus próprios impulsos e instintos. Neste diapasão é que ganha força o axioma “onde existe o homem, existe a sociedade; onde existe a sociedade, existe o Direito”. 1- O Direito como instrumento regulatório da sociedade O homem é um ser social e gregário. O homem não é tal qual a estória de Robinson Crusoé, que vivia isolado em uma ilha. O homem estabelece relações com outros homens, precisa do convívio social para sua sobrevivência. Certo esmero na designação de nomenclatura é fundamental para o bom entendimento da matéria. Neste sentido, Marcus Orione dá a seguinte lição: “Deve-se ter em mente, de início, que a noção de conflito não se confunde com a de lide. Esta, no sentir de Carnelutti, seria o conflito de interesses deduzido em juízo. Portanto, tal noção somente estaria presente quando o conflito passasse à apreciação do Estado- Jurisdição. Logo, o conflito em si, seria um dado sociológico, que antecede à lide. Essa constatação é importante, na medida em que nem todo o conflito é deduzido em juízo. Portanto, o sistema de solução de conflitos em geral não se cinge apenas à análise da atuação jurisdicional, mas também de alternativas extrajudiciais”. Os mais notáveis estudiosos de processo convergem na idéia de que há basicamente quatro formas de resolução de conflitos, quais sejam a autotutela, a autocomposição, o processo e a heterocomposição. Nos primórdios da civilização, os conflitos eram solucionados pelos próprios envolvidos. Era comum a solução extremamente parcial, típica da autotutela, de forma que o titular de um direito fazia com que “seu direito” valesse pela força. A “justiça pelas próprias mãos” era a tônica da resolução de litígios. Por óbvio, esta modalidade de resolução de litígios não pode sempre ser reputada como satisfatória. Quem garante que a autotutela sempre estará correlata às decisões mais justas? A vontade do mais forte ou do mais astuto é sempre a mais correta? A autotutela praticamente deixou de existir quando a decisão de conflitos de interesses passou a ser atividade quase exclusiva do Estado. O Estado passou a ter o monopólio da jurisdição. Há quem defenda que a autotutela ainda persiste em alguns casos nos quais o particular, previamente autorizado pela lei, pode, com seus próprios esforços, resolver conflitos. Seriam exemplos de autotutela a legítima defesa no processo penal e o desforço imediato para defesa da posse no processo civil. Também de existência desde os tempos mais remotos da civilização humana existe a autocomposição, isto é, os próprios sujeitos do conflito põe fim à controvérsia mediante certos ajustes nos quais uma das partes acaba cedendo. Pode ocorrer de quem apresenta uma pretensão renunciar a seus direitos, bem como aquele que resistia à pretensão reconhecer os direitos do pretendente e concede-los voluntariamente. Há também a possibilidade dos pólos do conflito fazerem renúncias parciais recíprocas, ou seja, transações, aquilo que comumente é chamado de “acordo”. A autocomposição, ao contrário da autotutela, não é condenada pelo ordenamento jurídico e revela-se até hoje de bastante eficiência na solução de conflitos, sendo certo que cada vez mais o Estado tem estimulado esta técnica com o objetivo de desafogar o Judiciário, tão assoberbado de ações judiciais. A autocomposição pode ocorrer tanto judicialmente , com um processo já instaurado, quanto extrajudicialmente. O processo constitui a forma de solução de conflitos na qual o Estado, exercendo o monopólio da jurisdição, toma para si a responsabilidade de dirimir conflitos. Esta forma de solução de conflitos, muito embora seja a mais usual, tem apresentado contratempos, tendo em vista o número elevado de demandas levadas ao Estado, o que torna tal proposta muitas vezes lamentavelmente morosa e cara. Daí, conforme narrado no parágrafo anterior, o estímulo cada vez maior à autocomposição. Contudo, uma salutar advertência feita por Marcus Orione não pode ser ignorada : “ Ainda quanto à conciliação como alternativa de solução de conflitos, há que se exaltar as próprias conciliações judiciais- desde que as técnicas utilizadas para a obtenção destas não sejam deturpadas, como por exemplo no caso de conciliações judiciais obtidas a partir da advertência do próprio juiz de que as lides em geral arrastam-se anos a fio, incutindo, sobretudo no litigante menos privilegiado economicamente, o medo da morosidade processual e forçando este à realização de qualquer acordo em juízo, ainda que visivelmente prejudicial ao seu direito”. 2- Conflito de interesses Importante assinalar que não basta a mera imposição de regras para que o homem viva em harmonia. A idéia de um Direito que seja inato à razão humana, a ser seguido espontaneamente, temas muito caros ao Direito Natural, não encontrou plena efetividade. De nada vale uma proibição se não há como impor o seu cumprimento. É importante fazer esta primeira observação no sentido de estabelecer uma inicial diferença entre Direito Material e Direito Processual. O Direito Material ou Substancial é aquele que está lançado em códigos e legislações esparsas, separado em disciplinas como o Direito Civil, o Direito Penal, o Direito do Trabalho, o Direito Ambiental, o Direito Constitucional, o Direito Empresarial, etc... Já o Direito Processual é o ramo de Direito que se habilita como instrumento para tornar o Direito Material efetivo. Logo, o processo não é um fim em si mesmo, mas sim meio para concretização do Direito. Esta observação de que o processo não é um fim em si mesmo está intimamente ligada com a concepção instrumentalista que domina a ciência processual contemporânea. O juiz deve estar sempre atento ao fato de que o processo é tão somente um meio de obter a solução dos conflitos de interesses e a pacificação social. Assim sendo, não obstante a lei imponha a obediência a determinadas formas, o ato processual será válido, ainda que não obedeça completamente estas formas se: • Não violar direitos fundamentais; • A lei não impor a forma como obrigatória ou impedir o uso de outra alternativa para que seja atingida a finalidade do ato; • Não causar prejuízos às partes; • Atingir o resultado para o qual foi previsto. Neste sentido, preconiza o art. 154 do CPC: Art. 154. Os atos e termos processuais não dependem de forma determinada senão quando a lei expressamente a exigir, reputando-se válidos os que, realizados de outro modo, lhe preencheram a finalidade essencial. 3- Direito Processual Direito Processual é o ramo do Direito que possui as regras, princípios e procedimentos que tratam a jurisdição, ou seja, que regulam a aplicação do Direito no caso concreto. Existiu quem entendesse mais escorreito o uso da expressão “Direito Judiciário”. Contudo, várias vozes se levantaram contra isto. Segundo Arruda Alvim, a expressão “Direito Judiciário” tinha como defeito “não abranger o processo de execução, que também é atividade jurisdicional. Dizia respeito, o Direito Judiciário (por causa da origem do termo juditium), somente à atividade do juízo, entendida esta predominantemente como atividade lógico-jurídica, em especial a do processo de conhecimento. Por outro lado, a denominação é ampla demais, compreendendo outros assuntos, como o da organização judiciária, por exemplo, o qual não se pode dizer integrante do conceito de Direito Processual, no que respeita à sua essência, embora tradicionalmente venha sendo estudada nesta disciplina”. Outras nomenclaturas foram usadas e também abandonadas em razão dos graves defeitos que apresentavam. Sobre o tema, Marcus Orione assim se manifesta : “O direito processual recebe algumas outras denominações, com as quais precisamos familiarizar-nos, em vista do seu uso por diversos autores. Dessa forma, ora é chamado de direito formal, ora de direito adjetivo. Direito formal em oposição a direito material; direito adjetivo em contraponto a direito substantivo (outra denominação do direito material). Essas duas denominações são constantemente criticadas, na medida em que conspiram contra a autonomia do direito processual, uma vez que sugerem uma indevida dependência do direito processual ao direito material”. O termo “Direito Processual”, de fato, é mais feliz ao fazer um recorte mais específico daquilo que realmente é de interesse do processo. O Direito Processual estuda regras, princípios e procedimentos ligados ao processo, de maneira que é até mais simples visualizar a disciplina utilizando esta nomenclatura específica. 4- A Denominação “Direito Processual” Muito embora discutir frivolidades terminológicas por vezes seja algo muito estéril no aprofundamento dos verdadeiros interesses da boa ciência jurídica, não deixa de ser interessante fazer uma breve análise do porquê do uso do termo “Direito Processual”. Com o Direito Constitucional a ligação é óbvia. O Direito Processual é regido por vários princípios e dispositivos previstos na Constituição Federal de 1988 . Há de ressaltar ainda que existe até quem fale em uma subdivisão do Direito Processual que teria criado o chamado “Direito Processual Constitucional”, que nada mais do que seria um conjunto de normas que regula a aplicação da jurisdição constitucional. Nesta perene ligação processo/Direito Constitucional há também que se ressaltar que a Constituição Federal é quem estabelece a composição, atribuições e competências do Poder Judiciário, bem como se preocupa também em fixar garantias e vedações aos juízes no exercício de suas funções dentro do processo. Estão também previstas na Constituição Federal várias ações judiciais, tais como o mandado de segurança, o habeas data, os recursos extraordinários e especial, o mandado de injunção, a ação direta de inconstitucionalidade, entre outros. O Direito Processual tem também relações com o Direito Penal. No Código Penal e em legislações penais esparsas há previsões de crime para quem tenta fraudar a Justiça, se comporta com má-fé no processo, desrespeita os jurisdicionados, enfim, quem se porta com a intenção de lesar alguém dentro de um processo judicial. Mister até assinalar que o Direito Penal chega ao extremo de auxiliar até na manutenção do monopólio da jurisdição nas mãos do Estado, afinal de contas transformou em ilícito penal a conduta daquele que faz justiça com as próprias mãos. Para tanto, basta ter em mente o exposto no art. 345 do Código Penal. O Direito Processual tem evidente ligação com o Direito Civil. O Código Civil dedica dispositivos que regulam vários aspectos com influência no Direito Processual, tais quais capacidade das pessoas, provas, prescrição, decadência, etc... A ligação do Direito Processual com os múltiplos ramos do Direito é gigantesca, de maneira que, com o escopo de não tornar o estudo enfadonho e interminável, as exposições aqui lançadas já servem como parâmetros exemplificativos do quão o Direito Processual consegue se interligar com outras disciplinas. Cumpre também registrar que a conexão do Direito Processual com outras ciências não atinge só as ciências jurídicas. Dentro de um processo, conhecimentos da Matemática, da Engenharia, da Física, da Medicina, da Psicologia, da Filosofia, da Sociologia, enfim, de todo o saber humano serão de muita valia na resolução de vários conflitos. 05- Ligação do Direito Processual com outros ramos do Direito O Direito Processual é ramo autônomo do Direito. O fato de ser um instrumento do Direito Material não retira sua autonomia. Contudo, se partirmos da idéia de que a ciência do Direito é una e considerarmos o fato de que a autonomia do Direito Processual não pode ferir o anseio de multidiscplinaridade do Direito, torna-se necessário estabelecer mecanismos de ligação do Direito Processual com outros ramos do Direito. Ainda assim, muitos são os que ainda insistem em tal classificação e, para quem persiste considerando válido separar os vários ramos do Direito em Público ou Privado, cabe então tecer qual a natureza do Direito Processual. Primeiramente, é preciso saber como descobrir o que é Direito Público e o que é Direito Privado (embora, conforme assinalado no parágrafo anterior, isto talvez não seja tão importante; a preocupação em fazer esta divisão é apenas para conhecer melhor alguns debates acadêmicos hoje menos adotados). Os critérios para a separação Direito Público x Direito Privado são os seguintes: a) Critério do interesse- Sugerido por Ulpiano, ainda no Direito Romano. Segundo tal critério, Direito Público seria aquele no qual houvesse prevalência dos interesses do Estado, ao passo que Direito Privado seria aquele no qual a prevalência seria dos interesses dos particulares. Trata-se de uma teoria completamente abandonada, uma vez que é cada vez mais difícil nos dias atuais delimitar onde começa o interesse do particular e onde se inicia o do Estado; b) Critério dos sujeitos da relação- Segundo este critério, Direito Público seria aquele no qual o Estado é um dos pólos da relação jurídica e Direito Privado seria aquele o qual o Estado está ausente na relação. Também revela-se um critério inadequado. Há relações jurídicas nas quais o Estado se faz presente sem se tratar de uma relação de Direito Público. Basta ter como exemplo os casos nos quais o Estado celebra contrato de locação de dado imóvel com particular; c) Critério da natureza da relação- É o critério mais razoável. Segundo este critério, a noção da natureza da relação entre os sujeitos é que será determinante para saber se estamos diante de um ramo do Direito que versa sobre Direito Público ou Privado. Se, em dada relação, o Estado encontra-se em posição de superioridade frente aos particulares, fazendo uso de seu poder de Império, estamos diante de uma relação de Direito Público, ao passo que, se o Estado está em pé de igualdade com o particular, trata-se de uma relação de Direito Privado. No cotejo destas teorias, afigura-se melhor, para aqueles que ainda acreditam na separação Direito Público x Direito Privado, firmar o Direito Processual como Direito Público. Sobre o tema, assim se manifesta Marcus Orione : “ Como interessa ao Estado a solução de conflitos por meio do processo para a busca da harmonia social a partir da decisão soberana tomada pelo poder estatal, nas relações de Direito Processual esse mesmo Estado aparece em posição de superioridade (jus imperi). (...) A vontade do Estado substitui a dos particulares a partir da decisão judicial. Logo, resta claro que, observada a noção antes exposta, o Direito Processual é ramo do Direito Público.” Finalmenet, afirma Marcus Vinícius Rios Gonçalves: “ É ramo do Direito Público, pois suas normas disciplinam a relação entre as partes e o poder estatal, no curso do processo. Mesmo que o direito substancial invocado seja de natureza privada, as normas de processo têm sempre natureza pública, razão pela qual, como regra, não podem ser objeto de disposição pelas partes”. 5- Natureza do Direito Processual A dicotomia Direito Público x Direito Privado está cada vez mais em desuso. O sistema jurídico é uno, conforme já advertiram, com muita sapiência, Kelsen e Norberto Bobbio. Divisar o que é público e o que é privado talvez não seja uma das tarefas mais profícuas para um real aprofundamento nas ciências jurídicas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. São Paulo: RT, 2005, v.1 * João Fernando Vieira da Silva Professor das disciplinas Teoria Geral do Processo, Processo Civil I e II e Prática Jurídica nas Faculdades Doctum/Leopoldina- MG; Especialista em Direito Civil pela UNIPAC- Ubá- MG; Mestrando em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC- Rio. Disponível em: http://wwww.doctum.com.br/unidades/leopoldina/graduacao/direito/artigos/13746 Acesso em: 3 de setembro de 2007