CAPÍTULO 17 Alimentação complementar gradativa: aspectos importantes da função mastigatória M A RI Â NG ELA MILE NA SA NT O S S C HA LKA P E T E R JO H N BU E LAU M A RI A I SAU RA MO NT E IRO BU E LAU IN TRODU Ç ÃO A alimentação complementar infantil, por orientação do Ministério da Saúde, deve ser iniciada aos 6 meses de idade. Entende-se por alimentação complementar qualquer alimento que não seja o leite humano oferecido à criança amamentada. Alimentos de transição referem-se aos alimentos complementares especialmente preparados para crianças pequenas, até que elas passem a receber os alimentos consumidos pela família. Aos 6 meses, a maioria das crianças atinge estágio de desenvolvimento com maturidade fisiológica e neurológica e atenuação do reflexo de protrusão da língua, o que facilita a ingestão de alimentos semissólidos. As enzimas digestivas são produzidas em quantidades suficientes, razão que habilita as crianças a receberem outros alimentos além do leite materno.1 Após o 6º mês de vida, a energia proveniente apenas do leite materno não supre mais as necessidades energéticas das crianças. Assim, líquidos muito diluídos, como sucos de frutas ou de vegetais, sopas, mingaus e leites, comuns em nosso meio e muitas vezes oferecidos por mamadeira, são desaconselhados. Muitas dietas monótonas possuem baixa densidade energética, o que pode estar relacionada com a sua pouca consistência.2 Nutrição é um tema amplamente debatido por diversas associações médicas, seja no âmbito nacional ou internacional. Em relação ao primeiro ano de vida do lactente (de 0 a 12 meses), este debate tem um caráter especial porque, em nenhum outro momento da vida do ser humano, ocorre um ganho de peso, um crescimento na estatura e um desenvolvimento neuropsicomotor de forma tão intensa.2 Além disto, a alimentação é uma atividade pela qual pais e cuidadores têm o primeiro acesso ao bem-estar da saúde geral e do neurodesenvolvimento. É a base para as demais habilidades, por exemplo, a fala. Estudos relacionam a mastigação deficiente a casos de gastrites, úlceras gástricas, obesidade e problemas de memória.3-5 189 Odontopediatria_C17.indd 189 10/08/15 13:39 Para os odontopediatras, os alimen- Coulthard, Harris e Emmett9 estudaram tos são de extrema importância quanto crianças de 7 anos de idade que tiveram a à sua forma de consumo. No seu primei- introdução de alimentos consistentes em ro ano de vida, com o desenvolvimen- diferentes momentos. Constataram que to craniofacial do bebê, seu crânio atin- as dificuldades alimentares e a rejeição a ge metade do tamanho do crânio de um grupos de alimentos como frutas e vegeadulto de 18 anos (nas medidas sagitais tais eram maiores nas crianças que tivedo crânio, mandíbula e maxila).6 ram a introdução de alimentos consistenO comportamento alimentar (fee- tes e mastigáveis após os 9 meses de idade. ding) é bem mais que a qualidade dos A transdisciplinaridade é fundamennutrientes de uma refeição. É um con- tal para o processo de informação das junto de atitudes que abrange o ofere- famílias, ainda mais quando o conceito cimento dos alimentos, sua preparação, de normal está sendo amplamente cona colocação na cavidade bucal, seu pro- fundido com o de frequente. Atualmencessamento para ser deglutido – a in- te, parece normal que uma criança por gestão – passando pela relação do cui- volta dos 4 a 5 anos de idade tenha os dador com a criança e da apresentação dentes sem nenhum espaço entre eles e, do alimento em si – sua aparência, chei- quando aos 6 a 7 anos os dentes permaro, textura, consistência, tamanho etc.7 nentes começam a erupcionar mal posiA família é responsável pela forma- cionados por falta de espaço, coloca-se ção deste comportamento alimentar da a “culpa” na genética. Entretanto, poucriança, por meio da aprendizagem so- cos pais se lembram do período de trancial, tendo os pais o papel de primeiros sição líquido-sólido (introdução da alieducadores nutricionais. Os fatores cul- mentação complementar), em que as turais e psicossociais influenciam de for- sopinhas eram batidas no liquidificador, ma positiva ou negativa as experiências as frutas descascadas e picadas. O prato alimentares da criança desde o momento preferido era macarronada com carne do nascimento. As estratégias utilizadas moída, o leite era dado somente em mapara alimentar uma criança assumem madeiras (muitas vezes além dos 3 anos um papel preponderante dentro do con- – idade em que boa parte do crescimentexto social,8 o que proporcionará uma to craniofacial já se processou e, embora alimentação e consequente nutrição ade- nem sempre evidente, a função mastigaquada, se forem bem trabalhadas. tória já está alterada).6,10 Discussões soNo entanto, a inter-relação alimenta- bre desenvolvimento normal da criança ção–desenvolvimento não é percebida e a prática de uma puericultura que escomo causa-consequência, uma vez que teja atenta às demandas funcionais são seu efeito se dá em longo prazo. Em 2009, as armas disponíveis para não permi- 190 | OD ONT O P EDIATRIA Odontopediatria_C17.indd 190 10/08/15 13:39 tir que os subdesenvolvimentos das estruturas do ser humano sejam vistos em breve como fatos normais (Figura 17.1). NORM AL VS. SUBDES E N VO LV I ME N T O Normal é a desproporção craniocefálica e craniofacial, presente no recém-nascido, sendo compensada nos primeiros 6 meses por duas funções importantes: a respiração e a amamentação. Elas proporcionam estímulos necessários para a equiparação e preparam a musculatura para a outra função que dará continuidade a este estímulo: a mastigação10 (Figura 17.2). A FIGURA 17.1. O organismo humano se desenvolve graças a dois estímulos nervosos. O primeiro depende do biótipo, ou seja, da herança genética, determinando o genótipo. O outro estímulo é proveniente do meio externo e da função; são os chamados estímulos paratípicos. Da união dos dois, tem-se o fenótipo. O neurocrânio desenvolve-se principalmente em função do crescimento expansivo da massa encefálica, determinado geneticamente e com pouca influência externa. Ao contrário, o craniofacial, além do fator genético, necessita dos estímulos do meio externo (os chamados estímulos paratípi- B Bocas sem espaços entre os dentes. A: Normal para idade de 2 a 3 anos; B: patológica para os 6 a 7 anos. A FIGURA 17.2. B Retrognatismo fisiológico ao nascimento (A), que foi corrigido após 4 meses (B). A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR GRADATIVA : ASPE CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A Odontopediatria_C17.indd 191 | 191 10/08/15 13:39 cos) para crescer e se desenvolver. Estes estímulos são oferecidos de forma natural diariamente pelas funções adequadas da respiração, amamentação, mastigação e deglutição. Os estímulos paratípicos são responsáveis por 2/3 do crescimento craniofacial; a genética, pelo 1/3 restante. Um exemplo da influência dos estímulos paratípicos é encontrado nos gêmeos univitelinos que cresceram em ambientes distintos10 (Figura 17.3). A B FIGURA 17.3. Proporção entre craniocefálico e craniofacial na criança (A) e no adulto(B).11 192 A respiração nasal será mais bem estimulada com a amamentação natural, uma vez que existe um selamento dos lábios durante a sucção, sem a necessidade de interrupção para entrada do ar, como acontece com a mamadeira.10 A amamentação, pelo movimento de ordenha que a mandíbula executa, garante o estímulo simultâneo para a região posterior das articulações temporomandibulares (ATM) e promove o avanço mandibular, aumento na tonicidade muscular e uma relação adequada dos rebordos gengivais, por volta dos 6 meses de vida (Figura 17.4). Com a relação maxilo-mandíbula fisiologicamente corrigida, a criança tem, então, condições de fazer o selamento labial, a respiração nasal e uma correta postura da mandíbula e da língua. Para isso, também é muito importante a não instalação do hábito de sucção não nutritiva – chupeta, mamadeira e sucção digital – que muito atrapalham este desenvolvimento.7 A partir da erupção e contato dos incisivos, as ATM deixam de ser estimuladas simultaneamente. Com a apreensão e o corte dos alimentos pelos dentes, iniciam-se movimentos rudimentares de lateralidade (cisalhamento), deflagrando estímulos alternados para cada articulação (Figura 17.5). Juntamente com as forças dos lábios, língua e bochechas, orientam o posicionamento correto dos dentes de leite na sua trajetória de erupção. Dentes bem posicionados garantem uma função vigorosa e equilibrada, decorrente de um processo | O D O NT OP E DIATRIA Odontopediatria_C17.indd 192 10/08/15 13:39 de maturação da primeira dentição, tendo como resultado a eficiência mastigatória e o preparo das arcadas (desenvolvimento pleno) para o início das trocas dentais. Para que este círculo virtuoso se estabeleça, é fundamental uma alimentação dura, seca e fibrosa.5,12 Durante esse período, que vai do nascimento até por volta dos 6 anos de ida- FIGURA 17.4. Rebordos bem relacionados para erupção de incisivos. de, os dentes de leite devem ter sua forma modificada pelo uso, apresentando facetas de desgaste, contatos bem distribuídos durante os movimentos mastigatórios (que devem permitir o esfregamento dental) e aparecimento de diastemas (espaços entre os dentes)3,13 (Figura 17.6). Neste contexto, acontece a maturação da mastigação. FIGURA 17.5. Estabelecimento da guia incisal, com trespasse ideal de cerca de 1/3 do bordo do inferior. A B FIGURA 17.6. Dois momentos de uma criança com desenvolvimento normal. A: Aos 3 anos de idade, com os dentes jovens. B: aos 6 anos, com desgastes pelo uso. As bases ósseas foram bem desenvolvidas e preparadas para a troca dentária. A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR GRADATIVA : ASPE CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A | Odontopediatria_C17.indd 193 193 10/08/15 13:39 Assim como em qualquer estágio inicial de atividades motoras, os primeiros movimentos de mastigação são irregulares e pouco coordenados. Muitos são os órgãos sensoriais que levam as informações da cavidade bucal para o sistema nervoso central (SNC): receptores nas ATM, membrana periodontal, receptores de tato e pressão em língua, mucosa bucal e nos próprios músculos.12,14 A coordenação dos movimentos em função dos estímulos é muito adaptativa nas crianças, porém torna-se mais difícil mais tarde. Esta dificuldade é mencionada pela Organização Mundial de Saúde15 e em estudos como de Sakashita, Inoue e Kamegai16 e Coulthard, Harris e Emmett.9 FUNÇ Ã O M A ST I G AT Ó R I A A mastigação é uma função vital, um reflexo condicionado aprendido e que resulta da interação de um padrão neurológico rítmico e intrínseco com a retroalimentação (feedback) gerada pela interação do sistema motor-efetor (músculos, ossos, articulações, dentes e tecidos moles) com os alimentos.14,17 Consiste na apreensão e corte dos alimentos, preparo pela trituração e moagem do alimento pelas estruturas bucais (acontece mesmo na ausência de dentes) e transporte pela língua até o ponto de deflagração da deglutição. Uma mastigação deficiente pode levar à má digestão e seleção de alimentos inadequada, fatores que estão associados a uma 194 série de problemas cardiovasculares, cognitivos e físicos. Além da sua função direta, os movimentos mastigatórios também têm sido relacionados a outras atividades, incluindo controle de humor e de aprendizagem e memória. Embora aparentemente simples, os movimentos orofaciais rítmicos produzidos durante a mastigação exigem coordenação de diversos músculos da mandíbula, da face e da língua. A exemplo de outras funções cíclicas, como respiração e locomoção, o padrão rítmico destes músculos é determinado por uma rede neuronal designada de CPG – do inglês central pattern generation – um sistema central gerador de padrão.14,18,19 A CPG da mastigação está localizada no tronco cerebral, e a maioria dos neurônios de sua composição está ligada ao núcleo motor e ao núcleo facial do trigêmeo. Seus mecanismos biológicos permitem que os impulsos provenientes do SNC e da periferia que chegam ao núcleo interajam com as propriedades rítmicas de seus neurônios para ajustar e adaptar o movimento à dureza do alimento e, assim, estabelecer o padrão rítmico da mastigação. O ritmo da mastigação inclui 3 tipos de ciclos, o primeiro apenas com movimentos de abertura e os demais com marcado componente lateral. Embora seja possível a geração do ritmo diretamente pelo tronco cerebral, a variabilidade do movimento que acontece fisiologicamente durante a função está diretamente relacionada a al- | O D O NT OP E DIATRIA Odontopediatria_C17.indd 194 10/08/15 13:39 gum tipo de feedback periférico.19 De um modo bem simplificado, é esta riqueza de impulsos e conectividade que permitem a formação da CPG e do ritmo mastigatório no adulto. Aliando os conceitos do feeding à formação da CPG, a questão do tempo do alimento na cavidade bucal torna-se fundamental. É importante levar em consideração que, ao alimentar uma criança a partir de 6 a 7 meses, o tempo do “exercício” realizado para “mastigar” uma banana já amassada é cerca de 2/3 do tempo que a criança levaria se a mesma banana fosse dada em suas mãos. A consistência do alimento também interfere no número de ciclos que a criança realiza. Se há um estímulo prévio de alimentos consistentes, que requerem pelo menos o amassamento com os rebordos, a tendência é manter este padrão para os demais alimentos.20 Ao ser introduzido na cavidade oral, um alimento processado dispara, por meio dos diversos neurorreceptores, uma aferência para o SNC de que já está pronto para ser deglutido, não havendo necessidade de executar a mastigação.21 Em termos práticos, pode-se dizer que a criança que está acostumada a comer comida pastosa ou liquefeita e a tomar várias mamadeiras ao dia terá mais dificuldades em executar movimentos de lateralidade com alimentos mais consistentes. Ao relacionar esta percepção da textura alimentar (se há mais necessidade de mastigação ou se o alimento já está pronto para ser deglutido) com os resultados de pesquisas sobre a relação de tempo e número de ciclos com diferentes texturas e as bases neurofisiológicas de desenvolvimento da CPG da função mastigatória, percebe-se a importância da consistência alimentar, em especial na segunda metade do primeiro ano, para o amadurecimento da função mastigatória. Quanto mais consistente o alimento, mais tempo ele permanece na boca, permitindo que sejam alcançados os ciclos II e III do ritmo mastigatório e, portanto, com maior estímulo de crescimento para o sistema estomatognático.19 Segundo estudos de Sarrafpour, Swain e Zoellner,12 a interface entre o osso e o tecido conjuntivo do folículo dentário é crítica para a erupção. A remodelação óssea acontece pela força eruptiva e é influenciada pela indução das forças de mordida e contato com o alimento, bem como pela intermitência das forças da língua, lábios e bochechas. Estes dados são bem observados na clínica diária do odontopediatra ao se constatar a associação das atrofias de diferentes graus com o histórico da amamentação por pouco tempo, introdução da alimentação complementar muito pastosa e hábitos nocivos.22 Crianças com histórico de papinhas pouco consistentes, uso de mamadeira após o 1o ano e respiração oral têm, em sua maioria, uma arcada estreita e mandíbula retroposicionada (Figura 17.7). A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR GRADATIVA : ASP E CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A | Odontopediatria_C17.indd 195 195 10/08/15 13:39 A B FIGURA 17.7. Criança de 5 anos com arcada atrofiada e distoclusão – mandíbula com déficit de cres- cimento anteroposterior. Os caninos decíduos são dentes fundamentais para o crescimento maxilomandibular. Os movimentos de lateralização da mandíbula, realizados por estímulo da alimentação consistente, associados às forças intermitentes da língua, lábios e bochechas, permitem que seu posicionamento seja mais adequado tanto no sentido vertical como laterolateral. Uma vez bem posicionados, eles guiam os movimentos mandibulares com componentes horizontais mais extensos.23 Se mal posicionados, os caninos levam a um travamento da mandíbula e a um padrão vertical de mastigação com baixa eficiência para desfazer as fibras dos alimentos (Figura 17.8). Nestes quadros, é muito comum a queixa dos pais de que a criança enrola para mastigar um pedaço de carne e depois o cospe, dizendo estar duro. A verticalização do movimento leva a retirar somente o sumo da carne. 196 O ritmo dos movimentos mandibulares é ditado pela CPG da mastigação e modulado pelas aferências periféricas, ou seja, basicamente pela alimentação. O estabelecimento desta CPG acontece a partir do 2º semestre de vida. Fica claro, portanto, a importância da alimentação complementar para estimular o componente horizontal e, por consequência, permitir um adequado crescimento craniofacial da criança.5,12,13,19 A riqueza de outros estímulos, que não o ato em si da mastigação, também é incomparável: a criança precisa segurar o alimento, sentir sua textura, levá-lo à boca, fazer o corte e, a partir de então, mastigar. São análises como estas que tornam tão complexa a neurofisiologia do tema. O ato de se alimentar envolve estruturas e conexões que vão muito além do sistema estomatognático7 (Figura 17.9). | OD ONT O P EDIATRIA Odontopediatria_C17.indd 196 10/08/15 13:39 A A B B C C FIGURA 17.8. Boca com atrofia (A) e caninos in- terferindo na eficiência mastigatória. Notar C D o afastamento dos dentes posteriores quando dos movimentos de lateralidade direita (B) e esquerda (C), o que dificulta a trituração dos alimentos. Essas crianças têm um padrão vertical de mastigação. FIGURA 17.9. Estímulos para formação de dife- rentes conexões relacionadas à alimentação, que ultrapassam o ato de se nutrir. A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR GRADATIVA : ASPE CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A | Odontopediatria_C17.indd 197 197 10/08/15 13:39 Entretanto, a civilização da alimentação, aliada aos inúmeros fatores que podem interferir no processo, não permite que o sistema se desenvolva em sua plenitude. Os índices de maloclusões são altos mesmo para a dentição decídua.22 A OMS15 preconiza que a progressão da alimentação deve acompanhar o desenvolvimento das habilidades da criança. A orientação para pais e cuidadores é de que a alimentação tenha sua consistência progressivamente aumentada conforme a mastigação se desenvolva. No entanto, os cuidadores não oferecem determinados alimentos por temerem que a criança não consiga comer ou mesmo que possa engasgar. Sakashita, Inoue e Kamegai16 afirmam que a não aceitação de determinados alimentos é fruto de um desenvolvimento insuficiente da capacidade mastigatória, exemplificando o fato com a dificuldade de moagem e trituração de alimentos, como certas verduras e carnes (alimentos mais fibrosos). Os estudos ligados às áreas de neurologia, em especial à disfagia, demonstram que o desenvolvimento neuromotor do sistema estomatognático é diretamente ligado aos estímulos aferentes que chegam ao SNC. Isso significa que, para o correto amadurecimento e um bom desenvolvimento do sistema, é fundamental que a alimentação seja consistente desde o início. O uso do fogo para a cocção, talheres para a diminuição dos pedaços (em substituição à função de corte dos in- 198 cisivos), o processamento do alimento associado à redução do tempo de dedicação para refeições são fatores decisivos para a diminuição da necessidade da mastigação.24 Após o período exclusivo de amamentação, o desafio de ligar a clínica às matérias básicas encontra-se justamente no que é oferecido a este bebê para que os estímulos provenientes dos órgãos sensoriais da cavidade bucal cheguem até o SNC para que, a partir daí, estabeleçam suas sinapses, sejam analisados e integrados, interajam com o sistema central gerador de padrão e gerem respostas motoras condizentes com o desenvolvimento das estruturas24 (Figura 17.10). C ONSID ER AÇÕES F INAIS Para a realização deste treinamento, é fundamental o conhecimento dos aspectos diretamente relacionados com a prática diária. Feeding é muito mais que morder e triturar o alimento. O profissional de saúde, sobretudo o pediatra, ao orientar seu paciente, precisa do conhecimento da interação do alimento com a função mastigatória para que se obtenha o máximo de desempenho das estruturas e continue o desenvolvimento iniciado pela amamentação. Muitas das queixas de crianças aos 5 a 6 anos são decorrentes da falta de informação e orientação do estímulo correto da função mastigatória desde o início da vida pós-natal. | OD ONT O P EDIATRIA Odontopediatria_C17.indd 198 10/08/15 13:39 A FIGURA 17.10. B C Estímulos de apreensão e corte dos alimentos, sempre com supervisão de um adulto. Um estudo multicêntrico de consumo alimentar realizado pelo Ministério da Saúde mostrou que a alimentação das crianças no 1º ano é basicamente láctea (leite materno e/ou de vaca), acrescido de açúcar e espessantes. O consumo de frutas, verduras e folhosos verdes variados não é um hábito entre as crianças nesta fase.2 A realidade brasileira mostra que o padrão de alimentação complementar das crianças brasileiras é desfavorável: a alimentação, na maior parte das vezes monótona, é introduzida precocemente; o uso da mamadeira é muito frequente, mesmo entre as crianças amamentadas; os alimentos complementares não suprem as necessidades de ferro nem de vitamina A.2 Há ainda menos preocupação com a consistência e a textura. Nem sempre as famílias são orientadas para que a papa seja amassada, sem peneirar ou liquidificar, de forma que sejam aproveitadas as fibras dos alimentos e que fique na consistência de purê, com cubos semicozidos. Aos 6 meses, os dentes estão próximos às gengivas, o que as torna endurecidas de modo que auxiliam a triturar os alimentos. A consistência dos alimentos deve ser progressivamente aumentada, estimulando-se o desenvolvimento da criança e evitando-se, assim, a administração de alimentos muito diluídos e com baixa densidade energética. Além disso, as crianças que não recebem alimentos em pedaços até os 10 meses apresentam, posteriormente, maior dificuldade de aceitação de alimentos sólidos.1,10 Alimentos levemente cozidos em pequenos pedaços estimulam a manipulação pela própria criança, sempre com a supervisão de um adulto responsável – talvez seja esta a maior dificuldade das famílias: o tempo e a paciência que isto requer. Na revisão feita em 2014, Le Reverend, Edelson e Chrystel13 concluíram que as crianças estão A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR G RADATIVA : ASP E CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A | Odontopediatria_C17.indd 199 199 10/08/15 13:39 mais propensas a aceitar os alimentos consistentes que possam manipular, e o quanto antes for feita esta exposição, melhor será a aceitação, inclusive de outros tipos de texturas. Em acordo com as recomendações dos manuais da Sociedade Brasileira de Pediatria1 e do Ministério da Saúde,2 reforça-se que os aspectos discutidos no capítulo são interessantes para o profissional que lida com a criança em seu primeiro ano de vida e orienta seus cuidadores. É preciso dar mais enfoque à importância da textura alimentar no desenvolvimento da função mastigatória, invertendo o conceito de que a criança precisa estar madura para se introduzir a textura. São exatamente os inputs neurológicos provenientes dos alimentos no contato com os receptores periféricos que informam o SNC sobre a resposta muscular a ser realizada, e, por consequência, levando ao amadurecimento e melhor desenvolvimento de todo o sistema (Figura 17.11). Os conceitos deste capítulo envolvem toda a equipe de saúde e fazem parte da transdisciplinaridade. A B C FIGURA 17.11. Sistema bem desenvolvido para a idade (A) com movimentos equilibrados e eficientes; B: lateralidade direita; C: lateralidade esquerda. Nota-se que todos os dentes mantêm contato durante o movimento de esfregamento, em um padrão horizontal de mastigação. 200 | O D O NT OPEDIATRIA Odontopediatria_C17.indd 200 10/08/15 13:39 RE FERÊ NC I AS B I B L I O G R ÁF I C A S 1. Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP). Manual de orientação do departamento de nu- 4. neiro: Medsi, 1997. 11. Atlas colorido de anatomia da cabeça e pescoço. 2.ed. São Paulo: Artes Médicas, 1998. 12. 6. H. 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Progress in neurobiology A LI MENTA ÇÃO COM PLEM ENTAR GRADATIVA : ASP E CTO S I M PO RTAN TE S DA F U N ÇÃO M ASTI GATÓ R I A | Odontopediatria_C17.indd 201 201 10/08/15 13:39 generation of the masticatory central pattern malocclusion between primary and mixed den- and its modulation by sensory feedback. Prog titions among Brazilian children. The Angle Or- Neurobiol 2012; 96:340-55. thodontist 2012; 82(3):495-500. 20. Gisel EG. Effect of food texture on the deve- chewing performance depend upon a specific mas- months and two years of age. Dev Med Child ticatory pattern? J Oral Rehabilit 1999; 26:547-53. Neurol 1991; 33:69-79. 21. 23. Yamashita S, Hatch JP, Rugh JD. Review – Does lopment of chewing of children between six 24. Schalka MMS. Aspectos da função mastigató- Thexton A. Mastication and swallowing: an ria no período da transição líquido-sólido (esta- overview. Br Dent J 1992; 173(6):197-206. belecimento da dentição decídua) e sua relação 22. 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