O PENSAMENTO GEOGRÁFICO EM OBRAS LITERÁRIAS: UM

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O PENSAMENTO GEOGRÁFICO EM OBRAS LITERÁRIAS: UM ESBOÇO
METODOLÓGICO
VINAUD, Naiara Cristina Azevedo
Mestranda do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Geografia da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU)
[email protected]
LEITÃO JÚNIOR, Artur Monteiro
Mestrando do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Geografia da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU)
[email protected]
INTRODUÇÃO
Consoante Moraes (2002), a partir da dualidade inerente à ciência geográfica – a saber: a
realidade concreta e materializada da existência (a geografia material); e as representações e
projeções sociais acerca dessa mesma materialidade (os discursos geográficos) – é possível
pensar a consciência do espaço pelo chamado pensamento geográfico, o qual envolve os
discursos cultos que versam sobre o espaço e a superfície terrestre, nas esferas da Literatura,
Filosofia ou Ciência propriamente dita (falando, neste caso, em Geografia). Portanto, a
Literatura se filia como uma representação discursiva que permite o estudo da história do
pensamento geográfico, uma vez que se reveste de uma crítica e/ou projeção para a produção
e/ou para o ordenamento espacial.
Assim, advogando a pertinência do uso de obras literárias nos estudos geográficos, este
trabalho tem como proposta mais geral “clarificar” uma nova seara de estudos: a análise da
formação dos territórios, sob o suporte metodológico do materialismo histórico e dialético,
por meio dos discursos dos literatos. O território é a categoria eleita como suporte
epistemológico por ter como essência o seu uso social, envolto numa atmosfera dialética de
causa e efeito, condição e condicionante, que equaciona a valorização diferencial do espaço
segundo as variações têmporo-espaciais. Por ter uma qualidade processual e cumulativa,
numa relação perene de resultado-possibilidade e entre a estética (as formas espaciais
materializadas) e a teleologia, o território é, sobretudo, uma entidade movente, em contínua e
ininterrupta formação (MORAES, 2002). Destarte, o espaço, tal como é construído, é
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resultado (e condicionante) da ação dos homens, o que nos permite elencar a formação
territorial como a categoria mais adequada ao entendimento dos processos sociais,
econômicos, políticos e culturais que, a partir de relações recíprocas, engendram uma dada
formação econômico-social (SANTOS, 1977), cuja base é necessariamente territorial.
Por ser a realidade mais imediata e que engloba a todos, a existência material é, em última
instância, o referencial do qual partem as produções de cunho artístico – entre elas, as obras
literárias; isso significa que as narrativas, por mais que sejam mediadas por representações
simbólicas e pela dita “liberdade poética”, possuem como suporte a materialidade expressa
nas paisagens e em toda a sorte de relações humanas em uma dada referencialidade espacial
e temporal: pois, mesmo as ficções mais abstratas, possuem o fundamento de ligação, quer
para a afirmação, negação ou ressignificação, com a existência na qual se inscreve o literato.
Assim, por meio da ideologia, os indivíduos passam a representar não uma visão
individualizada do mundo, mas sim um projeto coordenado por uma visão/concepção de
mundo de um grupo que representam e “dão voz”; eles se revestem, pois, na instância de
indivíduos expressivos, expressão tomada emprestada de Goldmann (1979).
À guisa dos caminhos epistemológicos que se busca ampliar, portanto, este presente trabalho
pretende apenas iniciar um novo projeto de refletir o pensamento geográfico (e sua história)
como um método capaz de acessar a formação territorial (as formas territoriais; a interpelação
dos indivíduos em sujeitos na esfera “fluida”, mas palpável, da arte; a natureza teleológica e
ativa da dialética ação/pensamento dos sujeitos; os jogos políticos e de poder etc.), com
vistas a um entendimento maior das escolhas envolvidas na produção do espaço e,
evidentemente, do território. É possível (ou ao menos plausível) dizer, por fim, que os
corpora literários têm muito a contribuir com o pensamento e a ciência geográfica.
Para traçar esse caminho, iniciaremos uma reflexão acerca da questão do sujeito na produção
do espaço, pensando a dialética do conhecimento e da consciência individual, mediada pelas
relações sociais; perpassando pela noção de discurso, focamos o caráter de exterioridade
das produções dos literatos, atravessadas pelas instâncias da ideologia, da história, da
memória e da formação social, além da necessária consideração do inconsciente,
impregnado nas produções lingüístico-artísticas da Literatura. Essas reflexões serão ilustradas
por um estudo desse entrecruzamento entre Geografia e Literatura: o caso do romance O
Chapadão do Bugre (1965), de Mário Palmério.
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O SUJEITO (RE)PRODUZINDO O ESPAÇO
As formas espaciais, ou seja, as materializações da sociedade são produtos históricos, que
exprimem as relações sociais e políticas que lhes deram origem. Este fato revela o caráter da
historicidade do desenvolvimento humano, ou, em outros termos, a observação do espaço
produzido nos remete à história construída por sujeitos sociais em sociedades com diferentes
níveis de desenvolvimento. Para Charles Morazé:
Devemos procurar para além da geopolítica, do comércio, das artes e da
própria ciência, aquilo que justifica a atitude de obscura certeza dos homens
que se unem, arrastados pelo enorme fluxo do progresso que os especifica,
opondo-os. Sente-se que esta solidariedade está ligada à existência implícita,
que cada um experimenta em si, duma certa função comum a todos. Chamamos
a esta função historicidade. (MOZARÉ, 1967, p.59 apud LE GOFF, 2003, p.19).
As teorias construídas a respeito da organização do espaço produzido, ou ainda, ao explicar
o real, devem-se atentar não somente à sua perspectiva material, ou seja, os fatores que o
valorizam objetivamente, mas antes, a todo um conjunto de representações que revelam a
subjetividade do espaço, mais precisamente, as intenções e escolhas por trás de sua
produção.
Moraes (1988) nos explica que o processo de produção do espaço envolve
uma finalidade ou ainda que “as formas espaciais são produtos de intervenções
teleológicas, materializações de produtos elaborados por sujeitos históricos e sociais.”
(MORAES, 1988, p.16).
Pode-se dizer que a teleologia se relaciona à práxis enquanto processo anterior à ação,
enquanto processo em que se traça uma finalidade. Tal característica é inerente ao ser
humano; a capacidade de “pensar para agir” diferencia os homens dos animais. Desta forma,
temos que todo processo de (re)produção do espaço é antes um exercício social de
adequação do homem ao meio ou; a (re)produção do espaço social ocorre internamente, nos
interstícios da consciência humana. Para Moraes (1988):
Dizer que a produção do espaço social é um processo teleológico significa
que ele envolve uma finalidade. [...] Os atores são movidos por necessidades,
interesses, desejos e sonhos. A teleologia é um atributo da consciência, a
capacidade de pré-idear, de construir mentalmente a ação que se quer
implementar. Portanto, é um predicado específico do homem, um elemento
mesmo de definição do estatuto “humano”. (MORAES, 1988, p.16).
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Cabe salientar que, ao passo em que a teleologia é um atributo do indivíduo, as escolhas feitas
conscientemente por ele se dão com base em valores sociais e nos meios materiais, históricos
e geográficos: “as leituras individuais do mundo se fazem por parâmetros gestados pela
sociedade.” (MORAES, 1988, p.17).
Tais relações estabelecidas entre o indivíduo e a sociedade, entre a sociedade e o espaço,
buscam apreender a chamada dialética do conhecimento, em que a consciência do indivíduo,
mesmo quando vista de forma isolada, manifesta, na verdade, valores sociais concebidos no
movimento das relações sociais (Figura 01). “Nesse sentido, pode-se dizer que a
consciência individual é um produto social, assim como a própria armação das
subjetividades.” (MORAES, 1988, p.18).
Figura 01. Movimento da consciência expressando, na verdade, valores sociais.
No que se refere ao estudo da produção do espaço social, de suas fundamentações objetivas
(materiais) e subjetivas (ideais), algumas ressalvas são importantes. É o que nos lembra
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Moraes (1988), ao considerar aspectos da cultura e do contexto histórico-geográfico, além
de determinações próprias do sujeito, como sua biografia e o discurso empregado.
Temos que diferentes culturas revelam diferentes maneiras de “ler o espaço”; eis a ressalva
antropológica, a qual diz respeito ao amplo e denso universo cultural, em que as
características (de identidade ou alteridade) de cada sistema cultural imprimem nos sujeitos
formas distintas de produzir e valorizar o espaço em que habitam.
Outra importante ressalva “implica não se perder o contexto em que se movimenta o
sujeito em foco”. (MORAES, 1988, p.19). É a ressalva histórica, que contempla as
circunstâncias em que o sujeito se relaciona com a sua realidade, as quais são imprescindíveis
ao resgate das condições de produção do espaço. O próprio resgate do pensamento
geográfico somente é possível a partir do entendimento das condições históricas e também
sociais, políticas e culturais que deram origem ao espaço produzido.
Por fim, com base na Arqueologia do saber, de Michel Foucault, a ressalva que revela a
complexidade inerente às obras, permitindo aludir à mútua integração necessária entre o
autor, a obra e sua época.
Admite-se que deve haver um nível (tão profundo quanto é preciso imaginar)
no qual a obra se revela, em todos os seus fragmentos, mesmo os mais
minúsculos e os menos essenciais, como a expressão do pensamento, ou da
experiência, ou da imaginação, ou do inconsciente do autor, ou ainda das
determinações históricas a que estava preso. (FOUCAULT, 2008, p.28).
Tais ressalvas demonstram a preocupação da presente pesquisa com o papel do sujeito no
entendimento dos processos de (re)produção do espaço, tornando a reflexão mais rica, ao
aliar questões objetivas e subjetivas. O sujeito é aqui entendido enquanto agente principal
dessas mudanças, projetando no espaço seus interesses ao passo em que é afetado pela
(re)produção deste espaço.
De fato, a paisagem humana é resultado de um processo dialético que envolve matéria e ideia,
ou, dito de outra forma, as condições históricas e geográficas aliadas aos projetos de sujeitos
sociais.
As formas espaciais produzidas pela sociedade manifestam projetos,
interesses, necessidades, utopias. São projeções dos homens (reais, seres
históricos, sociais e culturais), na contínua e cumulativa antropomorfização da
superfície terrestre. Um processo ininterrupto onde o próprio ambiente
construído estimula as novas construções. (MORAES, 1988, p.22).
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O resgate da formação territorial de determinada época ou momento é possível a partir da
recuperação das condições históricas, sociais, políticas e culturais que ali eram vivenciadas,
sendo estas condições manifestas nos documentos históricos e nos discursos de maneira
geral. Aqui, os discursos literários, inseridos em determinada esfera socioespacial são
analisados enquanto expressão de um pensamento geográfico, de uma leitura do espaço.
A NOÇÃO DE DISCURSO: UM MODO DE LER LITERATURA
Paralelamente ao senso comum, o qual considera discurso como pronunciamentos
eloqüentes, geralmente de cunho político, ou meramente enquanto sinônimo de fala, a noção
de discurso aqui esposada alinha-se ao conceito elaborado no cerne da diretriz
teórico-metodológica da Análise do Discurso de linha francesa; nesse sentido, o discurso
implica uma exterioridade à língua(gem):
Referimo-nos a aspectos sociais e ideológicos impregnados nas palavras
quando elas são pronunciadas. Assim, observamos, em diferentes situações
do nosso cotidiano, sujeitos em debate e/ou divergência, sujeitos em
oposição acerca de um mesmo tema. As posições em contraste revelam
lugares socioideológicos assumidos pelos sujeitos envolvidos, e a linguagem
é a forma material de expressão desses lugares. Vemos, portanto, que o
discurso não é a língua(gem) em si, mas precisa dela para ter existência
material e/ou real. (FERNANDES, 2008, p.13).
Alicerçado nas condições histórico-sociais e nas filiações ideológicas dos sujeitos discursivos,
os discursos são engendrados no seio social e são inerentemente marcados por conflitos e
por embates, conferindo-lhes contradições constitutivas. Enquanto instâncias exteriores à
língua(gem) verbal ou não-verbal, eles possuem, enquanto condições de produção, a ordem
dos interdiscursos, da memória e da história, além do inconsciente do indivíduo, que, ao ser
interpelado ideologicamente, deixa esta condição para se transmutar em sujeito discursivo,
forma-sujeito que assume uma tomada de posição.
Dentre as muitas formas assumidas pelas produções discursivas, destaca-se a literatura:
configurando-se como uma porção bastante flexível do discurso, ela situa-se na tensão entre o
discurso objetivo que busca reproduzir-se e a infiltração corrosiva de dúvidas e
perplexidades. Destarte, faz-se necessária a assunção de uma postura metodológica que
conserve a riqueza estética e comunicativa do texto literário, ao mesmo tempo em que a
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produção discursiva preserve os significados que foram engendrados a partir do seio social:
afinal, todo escritor possui uma liberdade criativa inerente, uma licença poética, levando em
consideração que seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são guarnecidos, explícita
ou ocultamente, pelas condições espaço-temporais em que esse literato se insere.
A postura que assumiremos aqui então é a de encarar os escritores como indivíduos
expressivos (GOLDMANN, 1979), isto é, indivíduos que conseguem expressar e/ou melhor
discorrer, a partir de seus escritos, sobre uma visão de mundo compartilhada por um
determinado grupo social; esses escritos são, então, pautados, grosso modo, na maneira com
que os literatos vêem, sentem e imaginam o mundo. Mas essas concepções são objetivamente
condicionadas pelas relações de poder e de força instauradas na formação social. A literatura
enquanto discurso se transforma, pois, em um novo modo de ler os textos artístico-literários.
OS (DES) CAMINHOS DO SERTÃO: O ENTRECRUZAMENTO ENTRE A
GEOGRAFIA E A LITERATURA EM CHAPADÃO DO BUGRE
Os primeiros limites das relações construídas entre a Geografia e a Literatura devem ser
pensados em relação à identidade da Geografia diante da alteridade ou especificidade da
Literatura. O diálogo entre uma ciência social e uma estética passa, também, pela questão
ética da forma como o pesquisador aborda a obra e representa uma crescente preocupação
sobre o que está em jogo no discurso, abrindo a possibilidade de que o diálogo com a
literatura permita refletir sobre o modo de ler e escrever Geografia.
No final do século XIX, alguns escritores se propunham a construir representações de sua
região, sendo fiéis ao meio que descreviam. (BOSI, 1983, p.232). Esta fidelidade era o
projeto explícito dos regionalistas, e os levou a pesquisar o folclore e a linguagem do interior,
legando uma contribuição valiosa a Mário de Andrade e Guimarães Rosa, que darão
continuidade, na literatura modernista, ao interesse pela realidade brasileira rural e urbana.
Mário Palmério pode ser inserido nesse grupo de autores preocupados em revelar ao mundo
características próprias de sua realidade. Acreditamos ser com este propósito que ele escreve
suas duas obras, a saber: Vila dos Confins (1956) e Chapadão do Bugre (1965), a última o
objeto principal de nossa análise. Podemos afirmar que a obra de Palmério é um discurso
geográfico que trata do espaço mineiro, construída sob e sobre uma determinada sociedade e
marcada pela época em que foi gerada.
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Considerando, como propõe Moraes (2002), que todo olhar geográfico se dá através da
lente de determinantes históricos, Mário Palmério, não podendo desviar-se das condições de
seu tempo, faz de Chapadão do Bugre um exercício desse olhar, revelando um retrato de
como se estruturava socialmente o espaço sertanejo.
A principal questão presente em Chapadão do Bugre e talvez aquela que mais possibilita
reflexões gira em torno da dissolução de um sistema social e político existente no sertão
mineiro, na República Velha (1889-1930) – o Coronelismo. Deste modo, temos, de um lado,
o poder historicamente exercido pelos coronéis, por meio da riqueza e da violência; e, de
outro, o nascente poder da lei, por meio das instituições.
O Coronelismo é sustentado pelo que Victor Nunes Leal chama de “sistema de
reciprocidades” (LEAL, 1976), em que ocorrem arranjos políticos por meio da troca de
favores entre chefes municipais e coronéis.
Em Santana do Boqueirão mandavam os Barbosas – família de tronco muito
antigo, descendentes do Major Eustórgio, desbravador do Sertão do Bugre e
fundador da cidade. Gente numerosa e de ricas posses, seu orgulho maior era,
entretanto, o de não terem ainda perdido, em tempo algum, o domínio do lugar
– tampouco a influência nas cidades vizinhas, resultado do difundido
parentesco com as outras grandes famílias da região. (PALMÉRIO, 1982,
p.142).
Para manter a condição de “coronel”, muitos se apoiavam em diversas formas de coerção,
como, por exemplo, o uso de jagunços e cabos eleitorais para vigiar as eleições, favores
oferecidos aos eleitores, além de perseguições aos opositores. Tal fato é amplamente
debatido e exemplificado com perícia por Palmério.
Costumado a lidar com finanças, foi o Clodulfo do Nascimento quem, um dia,
aventou a idéia ao Coronel, arrazoando-a com muita lógica. As eleições
realizavam-se de quatro em quatro anos e requeriam, apenas por pequeno
prazo, os cabos-eleitorais do Partido. Terminado o pleito, atas lavradas e
consumada a vitória, o que fazer com aquela gente sem mais trabalho durante
o meio-tempo a decorrer até que outra eleição se ferisse? O Partido via-se
então frente à obrigação de estar arranjando mais empregos na Câmara
Municipal e repartições do Estado, gastando na instalação e abonando
aluguéis de chalé-de-bicho e loteria, acomodando mal-e-mal a vida de cada um
desses apaniguados. Casos e mais casos: ciumeiras entre eles, rendimento
nulo nos serviços públicos do Município, rixas, desordem e tiroteios diários
no Alto da Boa Vida, cansativa preocupação agravada com o rombo cada vez
mais fundo no caixa do Partido. (PALMÉRIO, 1982, p.205).
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Em Chapadão do Bugre, a organização política e social da chamada República Velha é
evidenciada, ao passo que algumas de suas principais características, como o conflito de
classes e a pobreza, servem de exemplo à demonstração de como o poder privado se
manifesta no interior das administrações municipais. Palmério mostra como as instâncias
públicas, diante da miséria e desinformação da maioria da população, acabam se tornando
meras instituições de interesses particulares, ao invés de promotoras da efetiva emancipação
social.
Além das questões levantadas acima, de cunho mais histórico e sociológico, Palmério também
busca transmitir em Chapadão do Bugre ideias de modernidade ou atraso advindas daquele
sistema social, principalmente acerca da modernização do território, revelando as concepções
de uma sociedade que busca romper com as estruturas arcaicas entendidas enquanto
sinônimo de isolamento e atraso, ao menos para aqueles que entendem os efeitos da
modernidade como algo positivo.
De forma bem resumida, pode-se dizer que paralela à trajetória da ruína do sonho do
personagem principal, existe o grande questionamento sobre a trajetória do Brasil, cujo
destino oscila entre interesses ora de oligarquias, ora de militares, ora de coronéis, ora de
juízes, ora, ainda, de alianças entre as elites, mas dificilmente no interesse da formação de uma
nação direcionada para o bem-estar do povo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Geografia, como a Literatura, usa símbolos impressos para comunicar suas visões de
mundo. Embora os literatos utilizem de sua “liberdade poética” ao escrever seus textos, a
identidade dos mesmos requer uma obrigatória conexão com a realidade, uma vez que
possuem autoria e são timbrados por uma escala temporal e espacial específica. Destarte, por
mais fantasiosas e ficcionais que sejam as narrativas literárias, elas sempre trazem embutidas
um registro da sua origem: afinal, enquanto seres sociais, os literatos comungam, com outros
indivíduos, as mesmas diretrizes gerais de determinadas concepções de mundo, de
ideologias, transformando-se, portanto, em porta-vozes, em sujeitos discursivos
(FERNANDES, 2008) ou em indivíduos expressivos (GOLDMANN, 1979).
Se a arte copia, (re)cria, fantasia ou transforma a realidade, por ora isso não vem ao caso: o
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que importa é que as obras artísticas (no caso, as obras literárias) manifestam e expressam,
por intermédio da “voz” dos artistas (no caso, os literatos), descrições e/ou julgamentos,
sejam eles tácitos ou explícitos, da realidade sob a qual estão assentadas; na Literatura, estas
características assumem a forma de interpretações do modo pelo qual os literatos acreditam
que deveriam ser ou ter sido ou de como percebem a sua realidade mais imediata, em termos
socioespaciais ou das relações inter ou intrasubjetivas em suas diversas aparências. Essas
crenças ou percepções dos escritores, mediadas por suas concepções e visões de mundo,
constituem-se, em essência, na linha genética dos seus enredos, personagens e ambientes.
Cabe ressaltar que não basta um estudo, por mais detalhado que seja, do autor em si para
perscrutar as percepções e as orientações sociais, políticas, culturais, econômicas e espaciais
que o mesmo busca dar vazão por meio de seus escritos: enquanto integrante de uma dada
posição social e adepto de crenças científico-filosóficas e artísticas específicas, torna-se
imprescindível contextualizá-lo espacial e temporalmente, buscando apreender, nas condições
máximas que a pesquisa pode permitir, os elos de ligação, ocultos ou evidentes, do literato
com a sua realidade lato sensu; afinal, os literatos sempre enunciam a partir de um lugar
socioideológico e histórico demarcado (FERNANDES, 2008).
Amparados pela noção de que os textos literários são parciais e reconhecendo a assunção,
por parte dos literatos, de uma posição de legítima representatividade no seio da
intelligentsia brasileira, o resgate dos discursos e das visões de mundo entranhadas nos
enredos literários significa apreender o entendimento desses intelectuais no que se refere à
realidade nacional: as linhas textuais são urdidas de modo a revelar elogios, críticas e anseios
para modificar a estrutura nacional nos aspectos econômico, social, político, cultural e
espacial.
REFERÊNCIAS
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FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7.ed. Rio de
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GOLDMANN, L. Dialética e Cultura. Trad. Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson
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LEAL, V. N. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil.
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LE GOFF, J. História e Memória. Trad. Irene Ferreira, Bernardo Leitão e Suzana Ferreira
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