17 DECISÕES PARA MONTAR BRECHT NO SÉCULO XX NA CIDADE DE SÃO PAULO. DECISÃO! Luiz Campos1 RESUMO Não temos dúvida de que Bertolt Brecht e suas obras, não só dramatúrgicas, perpetuaram-se como uma nova etapa para o teatro, por intermédio de suas criações e, de modo sistematizado, o teatro épico redimensionou-se. Entender tal tipo de teatro que amplia conhecimentos e não apenas os processos de encenação, mas todo um conjunto de atitudes e ações, que caracteriza o fazer teatral, não é tarefa das mais fáceis. Montar Brecht, em qualquer lugar do mundo, segundo documentação disponível, é sempre uma tarefa das mais complexas. Na cidade de São Paulo, o Grupo Teatral Decisão, formado em 1963, apesar das dificuldades e desafios lançados pela obra brechtiana,e passados quase sete anos após o falecimento de Brecht, o Decisão se tornou um encorajador de muitos que ainda não tinham o entendimento ou as bagagens necessárias para tornar o épico uma realidade de montagem em São Paulo. Estas descobertas, fazem parte do material de minha pesquisa, com o total apoio da Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, sobre o ex-diretor Antonio Ghigonetto que foi também um dos criadores do Grupo Teatral Decisão, juntamente com Antonio Abujamra, Emilio Di Biasi, Wolney de Assis e Lauro Cesar Muniz. Palavras-chave: Teatro épico, Grupo Teatral Decisão, história do teatro brasileiro, Bertolt Brecht. 1 Luiz Campos é ator / educador / pesquisador do Instituto de Artes da UNESP. Licenciou-se em Teatro na Faculdade Paulista de Artes). ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 18 ABSTRACT There is no doubt that Bertolt Brecht and his works, not only dramaturgical, were perpetuated as a higher step for the theater, through his creations, systematically, the epic theater took a new dimension. Understanding this type of theater that expands knowledge, and not just the staging process, but a whole set of attitudes and actions that gives new characteristics to making theater, is not an easy task. Brecht, anywhere in the world, according to available documentation, is always a difficult and complex task. In Sao Paulo, the Theater Group Decisão, formed in 1963, despite the difficulties and challenges imposed by Brecht’s work, and almost seven years after his death, has become encouraging to many who have not had the understanding or necessary luggage to make the epic Theater come to life in Sao Paulo. These findings are part of my research material, with the full support of the State University Júlio de Mesquita Filho, on the former director Antonio Ghigonetto which was also one of the creators of Theater Group Decisão, along with Antonio Abujamra, Emilio Di Biasi, Wolney de Assis and Lauro Cesar Muniz. Keywords: Epic Theatre, Theater Group Decisão, history of Brazilian theater, Bertolt Brecht. 1. DECISÕES PARA MONTAR BRECHT NO SÉCULO XX NA CIDADE DE SÃO PAULO. Bertolt Brecht, o iconoclasta, o destruidor consciente da dramaturgia aristotélica, o cultuador do direto, do simples, do acessível, tem por motivos integralmente alheios à sua vontade e às intenções, se tornado, até certo ponto, tudo aquilo que não quereria ser: um mistério um monstre sacré,uma espécie de arma secreta dos que se proclamam iniciados, que dizem “eu conheço Brecht” (HELIODORA, 2007 p.145). Imaginem como foi a recepção há tempos, (precisamente no séc. XX) dos artistas teatrais e seu público fiel, ao se depararem com uma montagem de Bertolt Brecht e seu teatro épico. No meio de inúmeras montagens teatrais vistas até aquele presente momento, sua totalidade naturalista, com cenas majoritariamente dependentes umas das outras, aguardava-se sempre um desfecho.Os atores apropriados de total ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 19 domínio das suas técnicas e textos convencionais, usando a quarta parede como uma máscara absoluta do palco. Não restam dúvidas que com a inserção de Brecht naquele período histórico,seu entendimento e percepção do que era apresentado de teatro para alguns, assim como toda inovação/revolução, não foi tarefa das mais fáceis de aceitação, principalmente dos veteranos artistas teatrais por onde se era pesquisado. Isso não foi diferente quando se começou a falar de Bertolt Brecht em São Paulo, que naquela época vivia numa crescente fase de encenações e consequentemente,aumentava-se ali sua plateia. Nossas características, de teatro brasileiro, não eram totalmente brasileiras por si só, nossa atuação ainda estava querendo se florir. Em contribuição do exposto anterior, segue uma declaração de Sábato Magaldi com as impressões obtidas ao se deparar com uma obra de Brecht e seu épico pela primeira vez: Meu contato com a obra de Brecht remonta à temporada de 1952-53, quando assisti, no Teatro Nacional Popular francês, em Paris, à encenação de Mãe coragem(1939), assinada por Jean Vilar. E não vou esconder que fiquei muito decepcionado: achei o espetáculo por demais cansativo, e o público se enfadava todo o tempo. Em conversa com o diretor, acompanhado pelo cenógrafo Santa Rosa, cheguei a aconselhar-lhe que não incluísse a montagem no programa de excursão de seu elenco ao Brasil, já cogitada por ele. (MAGALDI, 1987, p.223). Isso só nos reafirma que Brecht esteve à frente de seu tempo. Por um estranhamento, Sábato Magaldi, influente crítico e teórico teatral paulista do período, aconselhou que tal montagem não chegasse a ser apresentada no Brasil. Figura-chave nas reflexões traçadas entre teatro e educação, Brecht afirmava que a leitura crítica, a capacidade de compreensão de uma obra de arte, no entanto, pode e precisa ser trabalhada. A capacidade de elaboração estética é uma conquista e não somente um talento natural. (DESGRANGES, 2003, p. 31). ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 20 2. DECISÃO. Após seu falecimento (1956), assim como acontece em tempos atuais com a maioria dos grandes destemidos descobridores cênicos, as obras e teorias de Bertolt Brecht foram totalmente mais estudadas e montadas na cidade de São Paulo. Como o teatro estava em ritmo crescente, seria arriscado, por exemplo, substituir os teatros convencionais (fora do épico) naquela época para encarar uma encenação, que pouco se conhecia, pois pouco se viu e poucos foram os que viram e queriam correr os riscos do fracasso. Em minha pesquisa, juntamente com o IA2 da UNESP, na área do teatro brasileiro mais precisamente sobre o ex-diretor Antonio Ghigonetto tive a percepção que, tanto nas entrevistas como em documentos coligidos, o grupo teatral Decisão criado por Ghigonetto, Antonio Abujamra, Emílio Di Biasi, Wolney de Assis e Lauro Cesar Muniz, estava entre os corajosos daquele tempo dispostos a propor singularidades para o cenário teatral paulista daquele período. Em janeiro de 1963, com o lançamento do Grupo Decisão, existiam em São Paulo, apesar de grande metrópole, poucas companhias teatrais profissionais. Eram elas: Teatro de Arena, Teatro Oficina, Teatro Cacilda Becker, Teatro Maria Della Costa, Companhia Nydia Licia e o Grupo Teatral Decisão. O Decisão queria ocupar um caminho diferente, assim como podemos confirmar em uma entrevista com Edgar Gurgel Aranha ao jornal Correio da Manhã com Van Jafa: De uma maneira geral, o teatro em S. Paulo atinge no momento, um nível bastante considerável, quer do ponto de vista de repertório quer da qualidade dos espetáculos. Apesar de umas poucas companhias somente se dedicarem ao teatro digestivo, comercial, existem outras que percorrem um caminho inteligente, procurando apresentar um teatro de cultura, atuante. Este tipo de teatro é realmente nos interessa, e que tem como preocupação maior o teatro como cultura, na verdadeira acepção de seu valor intelectual e social. (JAFA, 1964, cad. 2 p. 3). 2 Sigla IA: Instituto de Artes, campus pertencente à Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho localizado na cidade de São Paulo. ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 21 O Grupo Teatral Decisão, teve como primeira montagem em seu repertório Sorocaba, Senhor, que na verdade foi uma adaptação de Fuenteovejuna, escrita por Lope de Vega. Abujamra, diretor, fez uma adaptação do texto, fazendo com que ele saísse do século de ouro espanhol passando assim para o contexto brasileiro prérepublicano, tornando à tona toda ação social de Lope de Vega contra a violência e despotismo político dos tais governantes daquele período. Logo em sequência, escolhem Brecht para sua segunda e terceira peça a serem montadas pelo grupo; as escolhas recaem sobre Terror e miséria do III Reich, com direção ainda de Antônio Abujamra, e Os fuzis da senhora Carrar, agora com direção a cargo de Antonio Ghigonetto. Elas se constituíram nas primeiras experiência com o teatro épico: Foto de João Xavier. Elenco de Terror e miséria do III reich3, de Bertold Brecht e direção Antonio Abujamra.Fonte: MAGALDI e VARGAS, 2000, p. 385. Era preciso continuar, nossa segunda peça foi Terror e Miséria do III Reich de Bertold Brecht. A primeira experiência do grupo com o teatro épico encorajou-nos a enfrentar uma obra do criador do próprio 3 Elenco,em primeiro plano: Emílio Di Biasi, Clóvis Bueno, Renato Dobal, Juarez Magno, Regina Guimarães, Mário Roquette. Atrás sentados: Cecília Morganteti, Glauce Rocha, Antônio Abujamra, Vivien Mahr, Antonio Ghigonetto. Em pé: Sérgio Mamberti, Silvio O. Lima, Cecília Carneiro, Ricardo de Lucca, Ivonete Vieira, Argentino, Ademir Rocha, Edgard Gurgel Aranha, Homero Capozzi, Luiz Gonzaga Diogo, Ivo Carmona, Paulo Camargo. Foto: João Xavier. Acervo: Renato Dobal. ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 22 teatro épico. Partimos para encenação de Brecht. Cada ensaio, uma nova experiência, um nôvo descobrimento. Mais uma vez dirigidos por Abujamra, tentávamos algo nôvo dentro do teatro brasileiro. Não nos faltava coragem, nem vontade de trabalhar. Terminamos Terror e Miséria do III Reich e enfrentamos novamente outro Brecht. Desta vez, Os Fuzis da Senhora Carrar. A direção cabia agora a Antonio Ghigonetto, e sentíamos vontade de representar para um publico nôvo, mais popular, não uma platéia de elite, intelectualizada. Apresentamos Brecht numa temporada popular, nos teatros da periferia de São Paulo e em alguns sindicatos. Somente o resultado alcançado e a participação do publico no Sindicato dos Ferroviários. Já valeria por todo nosso esforço. Levamos um dos teatros mais importantes da atualidade, em cinco dos mais expressivos e populosos bairros de São Paulo, que foi visto e aplaudido por grande parte de um público ainda virgem de teatro. Passamos nosso primeiro ano de experiência buscando sempre novas experiências, testando o público, procurando trazer para o teatro um número cada vez maior de espectadores e, principalmente universitários (JAFA, 1964, p. 3). A partir do relato apresentado por Edgar Gurgel em entrevista a Van Jafa, os receios dos integrantes do Decisão quanto a montar Brecht foram, de certo modo, superados. Entretanto, pelo fato de Abujamra ter recém chegado da Europa e vivenciado experiências com o teatro épico, a confiança nas encenações de Bertolt Brecht se transformou. Desse modo, é possível concluir que, pela aceitação quanto a Terror e miséria do III Reich, seria possível buscar novos públicos distantes dos espaços de representação hegemônicos. Corrobora com essa afirmação a declaração de Emilio Di Biasi segundo a qual, com Terror e miséria do III Reich “As pessoas queriam se emocionar com todo o terror nazista, mas a montagem tinha essa rédea chamando mais atenção para a reflexão. Também não foi exatamente um sucesso de público” (BIASI apud RIEDEL, 2010, p. 102). Assim, o Grupo decide-se pela mudança de estratégia e apresenta Os fuzis da Senhora Carrar, como afirmado anteriormente, a populações de bairros periféricos e a sindicatos. À luz do exposto, a estratégia adotada pelo Grupo, de certa forma, contrapunhase tanto aos espectadores que já haviam tido contato com a linguagem teatral quanto àqueles acostumados ao naturalismo televisivo. Assim, não é incorreto afirmar, ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 23 possivelmente, que a obra brechtiana, tendo em vista sua forma estética, ressoava de modo bastante positivo à população desabituada da linguagem teatral. A mudança por novos textos e público, reestabelece novas diretrizes no destino do Grupo Teatral Decisão. O novo desafio assumido, portanto, de certa forma, promove algumas diferenças quanto a opções feitas por grupos teatrais, que junto ao Decisão, tenderam a mudar a história do teatro brasileiro, sobretudo, pela inserção das obras e expedientes do teatro brechtiano. Estas informações dificilmente são encontradas nos livros de história do teatro brasileiro, talvez pelo fato de Decisão ter durado curto espaço de tempo, ou, por não terem montagens tão populares em seu repertório, ou até mesmo por ambos os motivos. O que posso afirmar é que tais comprovações só são feitas diante de verticalizações ou visões não tão levadas ao óbvio. Assim como nessa pesquisa, vou descobrindo coisas que jamais foram faladas e consequentemente não estão registradas. Acredito que existem ínfimas preciosidades da nossa história do teatro brasileiro, entretanto encontram-se turvas, precisando assim de um enfoque maior de nós, pesquisadores. Por entre os infinitos corredores, gavetas, papéis, publicações, documentos, películas, de instituições públicas e particulares; residências particulares, de muita conversa, o historiador precisa de muita originalidade também e quase infinita capacidade para o trabalho. Para o trabalho de descobrir os objetos , para enxergá-los, para analisá-los, para ressignificar-lhes os sentidos... Precisa sobretudo estofo para denunciar aquilo que possa tê-los opacizado. Não tenho ideia de que tenha conseguido conquistar algum desses atributos, mas, em oposição a isso, a certeza de muito trabalho e do outro tanto ainda a fazer (MATE, 2008, p. 306). BIBLIOGRAFIA BRAGA, Claudia (org.). Barbara Heliodora: escritos sobre teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003. ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24 24 JAFA, Van. “Com o grupo decisão de São Paulo”. Correio da Manhã, São Paulo, 03 mai. 1964, p. 3. MAGALDI, Sábato e VARGAS, Maria Thereza. Cem anos de teatro em São Paulo (1875-1974). São Paulo: SENAC-São Paulo, 2000. MATE, Alexandre, Luiz. A produção teatral dos anos 1980: rabiscando com faca o chão da história. 2008. 2 vols. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2008. RIEDEL, Erika (org.). Emilio Di Biasi: o tempo e a vida de um aprendiz. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. REFERÊNCIAS BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil: uma avaliação - experiências e influência. São Paulo: Paz e Terra, 1987. BASBAUM, Hersch, W. Lauro César Muniz: solta o verbo. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2010. BRECHT, Bertold. Escritos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. FERRARA, Lucrécia, D’Aléssio. Da literatura à tevê. São Paulo: IDART, 1981. GARCIA, Clovis. Os caminhos do teatro paulista: O Cruzeiro (1951-1958): A Nação (1963 – 1964). São Paulo: Prêmio, 2006. SÉRGIO, Renato. Mauro Mendonça: em busca da perfeição. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. SFAT, Dina. Dina Sfat – palmas pra que te quero. Rio de Janeiro: Nórdica, 1988. VASCONCELOS, Maria, Luiza, Teixeira. A crítica de João Apolinário: memória do teatro paulista de 1964 a 1971. São Paulo: Imagens, 2013. ARTEREVISTA, n. 6, ago./dez. 2015, p. 17-24