GREVE DE FOME Há uma “liberdade de morrer”? Direito à Vida ou Direito à Liberdade? Carlos Aurélio Mota de Souza Temas referentes à vida humana vêm sendo relativizados, quando não banalizados, em círculos acadêmicos e pelos meios de comunicação, incitando-nos a reavaliar sua discussão rigorosamente dentro da ética e do direito. É o caso da greve de fome, por motivos políticos, e da eutanásia, por motivos psicológicos, pois os argumentos a ambas se aplicam. Anos atrás, na Espanha, dezenas de terroristas encarcerados pleiteavam conviver num mesmo presídio, mas tiveram sua pretensão contrariada, pois as autoridades decidiram separá-los por diversos centros penitenciários; protestaram através de uma longa greve de fome, que levaram até as últimas consequências, para comoverem a opinião pública e obrigarem os correligionários a segui-los, e assim pressionarem as autoridades. Recorrendo ao Judiciário para obviar os efeitos dessa conduta, os médicos encarregados da saúde dos presos questionaram que o problema não era jurídico, mas deontológico, pois seus preceitos éticos mandam respeitar a liberdade pessoal de cada um, apenas intervindo no estágio final da resistência física, para impedir que o abstinente pereça. Para os médicos, portanto, não caberia aos juízes decidirem em qual momento deveriam intervir, sugerindo que não acatariam ordens contrárias à sua ética. Ainda no decorrer dos fatos, alguns presos morreram, e um médico, do presídio de Zaragoza, atendendo a princípios mais elevados de solidariedade, interveio para salvar a vida de um deles e acabou sendo friamente assassinado, em seu consultório, por outros terroristas... (cf. noticiário do jornal ABC de Madri, de julho de 1990). A greve de fome, naquele caso, demonstrava intuito de imolação pessoal por uma causa, uma ideologia, uma paixão política, constituindo, em suma, um suicídio passional, não altruístico como o de Jean Palach, no triste episódio da invasão da Hungria (1969), que se deixou queimar vivo; ou ainda do chinês que desafiou uma coluna de tanques na Praça Tianamen (Praça da Paz Celestial), na sangrenta madrugada de 04 de junho de 1989, em Pequim, ao contrário de outro episódio famoso, o do cidadão checo, que na invasão soviética de 1968 abriu o peito nu diante de um tanque, em Bratislava, e foi fulminado (Veja, 14.06.89, p. 46 ss). Há aqui, como se vê, aparente conflito de princípios éticos, de valores e legais, formando uma confusão a considerar e esclarecer. O mesmo se aplica a outras questões pertinentes à vida humana, como a eutanásia. É uma questão de deontologia médica, e não uma questão jurídica, dizerem os médicos quando devem intervir; cabe a estes respeitar a liberdade de cada um, mas sem permitir que o paciente morra. Parece que não é da competência médica ajuizar sobre a liberdade do paciente em tirar a própria vida. Ao médico compete usar de todos os meios que a ciência, a técnica e sua experiência profissional lhe proporcionam, a fim de evitar mortes. Há, porém, um limite de risco. Aquele que, voluntária e firmemente recusa alimentar-se, tem consciência de que o limite da resistência orgânica será sua própria morte... Por isso, sabe antecipadamente que pode morrer, pondo fim, expontânea e forçosamente, à própria vida. Neste ponto, o suicídio é um homicídio, e o é, conscientemente, contra a própria vida. Qualquer que seja a causa, o móvel psíquico dessa conduta, ou ainda seu grau de nobreza, de convicção, o indivíduo se determina a pôr fim à vida, assemelhando-se a Hamlet, que suicidou-se por paixão numa crise existencial. Na greve de fome dos presos, o que conflitava eram os pontos de vista sobre o direito à vida e à liberdade, valores estes fundamentais para a pessoa humana, porém com diversos enfoques de apreciação, tanto da parte dos médicos quanto da parte dos juízes, contrários entre si, mas não contraditórios. Parece-nos que os enfoques são diferentes, e os dois valores fundamentais da pessoa humana, contrapostos. Um deles, porém, é anterior e tem primazia nesta discussão: a vida. Sem ela não há liberdade que possa ser exercitada; porém, mesmo sem liberdade, a vida pode ser preservada. Extinta a vida, de que serve a liberdade? Ela é, portanto, um valor mais alto, que importa primeiro preservar. A liberdade subsistirá sempre, enquanto houver vida. A discussão médico-jurídica ocorre, assim, em planos éticos diversos: a vida humana é um bem jurídico garantido por normas de direito, e diz respeito às normas de justiça, sobretudo as penais. Enquanto ao médico incumbe cuidar bem da saúde dos pacientes, para garantir-lhes a preservação da vida, aos juízes compete garantir a vida, por meios legais, como bem indisponível, juridicamente protegido. Assim como o homem, e o próprio Estado, não têm o direito de tirar a vida de alguém, porque comete homicídio (aborto, eutanásia, pena de morte etc.), também o indivíduo não tem o direito (liberdade, faculdade) de tirar a própria vida, pretextando pleno exercício da sua liberdade (admitindo-se, pelo quod plerumque accidit, o entendimento normal das pessoas, de que tal conduta contraria preceitos morais e normas jurídicas). O médico que, no exercício de sua profissão, tem a seu cuidado renitente grevista de fome, e se recusa a alimentá-lo alternativamente, sob argumento ou objeção de consciência, pratica raro induzimento ao suicídio ou clara omissão de socorro, pois se torna cúmplice do resultado morte quefatalmente poderá advir. O argumento ético de que só poderá intervir quando o recusante perder a consciência, é semelhante ao da permissão do aborto até determinadas semanas da concepção: no primeiro, a perda da consciência pode se dar num limite de irreversibilidade da vida, quando poderá provocar a morte ou mesmo lesões corporais permanentes (perda de sentido, funções ou morte cerebral); no segundo, o limite de existência da vida intra-uterina não pode ser estendida segundo a corrente científica do momento, pois a certeza da vida está no marco inicial da concepção, não passando as demais teorias de meras opiniões, não confirmadas cientificamente. Portanto, a vida não é um dado exclusivamente de saúde médico-científica, tal como quando um doente grave não deseja se curar ou submeter-se a delicada intervenção cirúrgica: o paciente poderá falecer por omissão sua, ao rejeitar o tratamento indicado pelo médico. A disposição pessoal de causar culposamente a morte mediante greve de fome (ou recusar medicação ou tratamento, como a transfusão de sangue) é, em si mesma, uma conduta antisocial e anti-ética, porque é da essência da pessoa humana conservar a vida e protegê-la contra doenças ou agressões (legítima defesa da própria vida ou alheia), porque o homem não é um ser isolado, mas relacional, criado para viver em sociedade, em relação com outros homens, em mútua dependência. Enquanto ser social, ser com os outros em relação permanente e sempre mais interdependente, não pode o homem invocar sua liberdade individual para liquidar a própria vida, sob pena de praticar mal injusto aos demais, à sociedade com que se relaciona (família, ambientes de trabalho, sociais, políticos, religiosos etc.), e ao Estado que dele depende, como cidadão, para sua organização e sobrevivência. Nesse sentido, a ética médica não pode ir além da obrigatoriedade de preservar a vida do paciente, dentro dos limites da ciência e das técnicas médico-hospitalares, excluída qualquer violência que suponha abuso na ministração da medicina. Deixar de socorrer quem se predispõe a caminhar para a morte, sob fundamento de respeitar a liberdade de morrer, supõe e convalida outra forma de homicídio, a eutanásia. Acatada ou tolerada a omissão médica por respeito à liberdade do desejo de morrer, estará permitida a ação suicida de abreviar seu fim, sob o mesmo fundamento de respeito à liberdade, ao paciente que sofre doença grave irrecuperável. Ora, a liberdade pessoal aqui, implicando disponibilidade da própria vida, não pode ser tolerada como um mero direito subjetivo, potestativo, mas como um bem indisponível, ainda que individual. E como valor jurídico que é, está submetido ao ordenamento legal que rege a conduta de um povo e à filosofia de vida que lhe está subjacente. Refoge, por isso, ao campo meramente técnico-científico da medicina, cujos profissionais estão sujeitos ao Código Deontológico da ciência de curar, mas não lhes cabe juízo crítico da liberdade que o paciente se atribui de poder tirar a própria vida, que é um julgamento jurídico (ou político-jurídico). Pertence, pois, ao Judiciário, devidamente provocado, manifestar-se especificamente sobre o dever jurídico de limitar a liberdade de quem atenta contra sua vida, para salvá-la ou impedir consequências danosas à sua pessoa. É ato estritamente jurídico, como quando o juiz condena o mau motorista a perder sua carteira de habilitação ou restringe sua liberdade por qualquer forma legal. A intervenção do médico se dá, não porque este julgou que poderia fazê-lo sem ferir a ética profissional, não violando a liberdade do paciente, mas sim porque essa liberdade não é absoluta, mas limitada juridicamente por princípios de ordem pública e de ordem moral, por leis como não matar, não induzir ao suicídio e ao aborto, não omitir socorro, não auxiliar alguém em perigo de vida, ou não prestar auxílio a alguém que está para morrer. Em síntese: a vida é um bem superior à liberdade de querer morrer; preservá-la, em todas as circunstâncias e ocasiões, é um dever jurídico e não meramente ético-profissional: a ética não pode contrariar um valor fundamental da pessoa humana, pois a moral repele qualquer ação ou omissão contra a vida. Logo, o juízo de valor que determine salvar a vida, limitando a liberdade do homem que age contra ela, não é da esfera deontológica da medicina, ou técnico-científica, em função da saúde do homem, mas é de competência do Direito, através do Poder Judiciário. Em suma, salvar vidas é um dever jurídico, e este tem prioridade até mesmo sobre o dever ético. E como a Moral não pode contradizer o Direito, o dever profissional não pode recusar o dever legal, sobretudo quando imperativo coercitivo, como no caso da proteção à vida. A defesa da vida como bem ou valor superior indisponível, não é questão meramente ética. A ética profissional se distingue pela conduta moral em uma profissão, dentro do exercício de uma profissão em relação ao próximo, objeto do exercício profissional. Não há lugar para questionar se o paciente quer morrer; esta voluntariedade do agente, a discussão ou aceitação dessa conduta, é contrária à moral humana... Como se vê, temas como estes, nos dias que correm, nos convidam e nos incitam a repensar o direito, a lei, o direito justo, a liberdade, o melhor tipo de governo para um povo, a lei injusta, a pessoa humana, direitos do homem e até mesmo o direito de resistir (e mesmo matar) aos tiranos, reavivando o velho tema de Antígona sobre o direito natural, e, portanto, sobre o largo tema dos Direitos do Homem e do Cidadão, cujo Cinquentenário neste ano se comemora, juntamente com os 10 anos da Constituição Federal do Brasil. Texto publicado no boletim da Tribuna da Magistratura, Caderno de Doutrina da APAMAGIS, Dezembro, p. 413-414, 1998.