PARENTESCO E ORIGEM GENÉTICA Roberta Grisi Caixeta de Araujo1 Tarcisio Caixeta de Araujo2 Débora Regina Cunha Borges Escanoela3 Resumo: Este artigo trata do parentesco e da origem genética. Para tanto, discute-se os critérios jurídico, biológico e afetivo da filiação. Avalia-se também a posse do estado de filiação, inseminação artificial heteróloga, direito ao sigilo do doador, direito à identidade genética e direito à origem genética como direito de personalidade. Palavras-chave: Parentesco, Origem Genética, Filiação, direito de personalidade. Abstract: This article deals with parentage and the genetic origin. To do so, we discuss the legal, biological and affective criteria of filiation. It evaluates as well the possession of the membership status, heterologous artificial insemination, the right of confidentiality of who gives the semen, the right of genetic identity and the right of genetic origin as a right of personality. Keywords: Parentage, genetic origin, filiation, right of personality. 1. INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo trazer à luz pontos essenciais do direito à origem genética. A importância do assunto tratado está no fato de que todos os seres vivos, sem exceção, são portadores de dados genéticos que lhes conferem suas características matrizes. No caso dos seres humanos, pela complexidade de sua 1 Bacharel em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Estudante do sétimo período do curso de Direito da PUC-MG. 2 Mestre em Teologia pela University of Wales (South Wales Baptist College) com reconhecimento pela PUC-Rio, licenciado em Letras pelo UNI-BH, bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Mineiro (curso livre), alfabetização Braille pelo Instituto São Rafael, Belo Horizonte-MG. Professor de Hebraico bíblico, Antigo Testamento, Teologia do Antigo Testamento e Exegese na Faculdade Batista de Minas Gerais. Membro da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil (OPBB), do National Association of Professors of Hebrew (NAPH), do Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG (NEJE), da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). 3 Estudante do sétimo período do curso de Direito da PUC-MG. 2 constituição, não apenas biológica, mas também espiritual, os dados genéticos podem ter sua exteriorização mais ou menos mitigada. A tecnologia, entendida latu sensu, é responsável pelos diversos arranjos culturais e sociais em locais e tempos diversos. Dentro da cultura humana está o Direito, que é responsável por explicitar as normas que devem vigir, sempre de acordo com os interesses de quem detém o poder de controle social. Até mesmo aquilo que é inerente ao ser humano pode ter, por meio do Direito, sua importância ressaltada ou ignorada. Este “ambiente” abstrato será o cenário para a observação da questão real dos dados genéticos humanos e sua ligação com a filiação. O artigo está organizado e fundamentado considerando o que a Lei, a doutrina e a jurisprudência têm a iluminar e explicitar sobre a filiação, a posse do estado de filiação, parentesco, origem genética, inseminação artificial heteróloga, direito ao sigilo do doador versos o direito à identidade genética, direito à origem genética como direito de personalidade. Percorrer-se-á os caminhos da história da filiação e o desenvolvimento da personalidade. Algumas evoluções das ciências biomédicas e humanas serão minimamente abordadas. Devido à vastidão desses temas tão interessantes, far-seá recortes daqueles aspectos imprescindíveis ao artigo. 2. A FILIAÇÃO As leis que surgiram antes da Constituição Federal brasileira de 1988 buscavam sistematizar o modelo da família patriarcal, privando da tutela jurisdicional as demais espécies de entidades familiares e os filhos que não fossem havidos na constância do casamento. A Constituição de 1988, em seu artigo 227, §6º, estabeleceu absoluta igualdade entre todos os filhos, “não mais admitindo a retrógrada distinção entre filiação legítima a ilegítima, segundo os pais fossem casados ou não, e adotiva que existia no Código Civil de 1916.” (GONÇALVES, 2013, p. 319). Paulo Lôbo (2008) afirma que a “filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida de outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse do estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga.” Dessa forma, a filiação estabelece-se não apenas em face do vínculo biológico ou jurídico, mas principalmente em face do 3 vínculo socioafetivo que “atende mais ao princípio do melhor interesse da criança, da dignidade da pessoa humana e também da paternidade responsável.” (MOREIRA FILHO, 2011). Percebe-se, assim, que há três critérios para se identificar a filiação: o jurídico, o biológico e o afetivo. 2.1. Critério jurídico da filiação O critério jurídico é aquele que prevalecia até a Constituição de 1988. Esse conceito estabelece a paternidade por presunção imposta pelo legislador em circunstâncias previamente indicadas no texto legal, independente da correspondência ou não com a realidade, conforme elucida Juliana Queiroz Machado Carrion (2011): A máxima do direito Romano, pater is est quem justae nuptiae demonstrant, decorrente do casamento, pode ser definida como a presunção que atribui ao homem os filhos de sua mulher. Acima da verdade biológica, o sistema jurídico brasileiro faz prevalecer a verdade jurídica. (ALMEIDA apud CARRION, 2011). Em textos hebraicos antigos encontra-se a chamada lei do levirato ou lei do cunhado, a qual reza o seguinte: uma mulher casada que se tornasse viúva, sem filhos, teria que, por força da lei, se casar com o irmão do falecido esposo (caso esse vivesse próximo e aceitasse cumprir tal lei). Em caso de casamento e concepção de um filho, o cunhado (irmão do falecido) daria o nome do falecido ao filho primogênito homem e não seu próprio nome. O filho seria criado como se fora filho do morto. Portanto, um filho adotivo do pai biológico. (De VAUX, 2004). 2.2. Critério biológico da filiação A filiação biológica é aquela estabelecida pela consanguinidade, conforme salienta Queiroz (2001). Assim que as relações de parentesco se fizeram importantes à humanidade, foi tal critério que teve maior prevalência. Dessa forma, “a maternidade era estabelecida e, a partir desta, a paternidade era atribuída ao genitor.” (QUEIROZ, 2001 p. 46). Percebe-se dessa forma que o fundamento 4 “biológico foi o embasador para a atribuição do vínculo de paternidade, mesmo adquirindo formas presuntivas.” (QUEIROZ, 2001 p. 47). Pelo sistema biológico, filho é aquele que detém genes do pai. O avanço da biotecnologia, com a descoberta da estrutura do DNA, permitiu, com certo grau de exatidão, o reconhecimento dos laços consanguíneos de filiação. Vale lembrar que a utilização do exame de DNA de forma simplista deve ser criticada, pois a filiação não pode ser resumida à identificação de dados biológicos apenas. (NUNES, 2006 p. 43). 2.3. Critério afetivo da filiação As transformações em relação ao conceito de família culminaram no entendimento de que atualmente, o liame mais importante é o afeto. Família não é apenas aquela fundada pelo casamento. O texto constitucional explicita que também a união estável e a família monoparental recebem proteção estatal (CF/88. Art. 226 caput e parágrafos seguintes úteis). A genética é incapaz de per si, criar laços de afetividade. Estes advêm da convivência. O filho não ocupa mais o lugar de instrumento de produção, com função patrimonial, que existia apenas para garantir o patrimônio familiar. O filho agora é visto como sujeito de direitos e deveres, a quem o Direito atribui personalidade. Assim sendo, deve ter assegurada a proteção de sua dignidade humana. (GREUEL, 2009, p.110). O convívio e o afeto podem ocorrer entre pessoas que tenham sido geradas de diferentes maneiras, em circunstâncias diversas. A origem biológica não garante que o indivíduo tenha suas necessidades básicas atendidas (alimentação, lazer, educação, amor, afeto), o vínculo sócio-afetivo, sim. (QUEIROZ, 2001, p. 49). Rodrigo da Cunha Pereira (1999) preleciona: A paternidade constitui, segundo a psicanálise, uma função. É essa função paterna exercida por um pai que é determinante e estruturante dos sujeitos. Portanto, o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou ritualmente, aquele que fez a adoção..., enfim, aquele que exerce a função de pai. (PEREIRA, 1999, p. 148). 5 Desta forma, percebe-se que o critério afetivo é uma conquista e não uma “herança” como ocorre no critério jurídico e/ou biológico. A convivência é necessária para a criação e construção de vínculos de amor e respeito. 2.4. Posse do estado de filiação Afetividade e posse de estado de filiação são aspectos intrinsecamente conectados. A posse do estado de filiação ocorre quando alguém assume o papel de filho em face daquele ou daqueles que assumem o papel de pai ou de mãe ou de pais. A afetividade é que torna a posse do estado de filho, assim como a paternidade e a maternidade, possível. O sujeito precisa sentir e acreditar ser filho. Para Lôbo (2004), o vínculo biológico não é essencial, pois a importância da posse do estado de filiação está na medida em que ele é exteriorização da vida familiar, do cuidado, da educação, enfim, a preocupação dirigida ao ser que se desenvolve. Compreender a posse do estado de filho é importante para o enfrentamento da questão relacionada ao parentesco e a origem genética. 3. PARENTESCO VERSUS ORIGEM GENÉTICA Parentesco e origem genética não são termos necessariamente conectados. Pode-se ter parentes que possuam a mesma origem genética, mas não obrigatoriamente. Nesse sentido, torna-se necessária a distinção entre parentesco e origem genética. 3.1. O parentesco O parentesco pode ser compreendido como: a relação jurídica, calcada na afetividade e reconhecida pelo Direito, entre pessoas integrantes do mesmo grupo familiar, seja pela ascendência, descendência ou colateralidade, independentemente da natureza (natural, civil ou por afinidade). O conceito de parentesco não se identifica com a noção de família, pois os cônjuges ou os companheiros, por exemplo, embora constituam uma família, não são parentes entre si. (GAGLIANO, 2012). 6 O código civil reconhece expressamente o parentesco natural ou civil. O art. 1.593 do C.C/02 diz: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.” Apesar de nada mencionar sobre a socioafetividade, base do vínculo parental, a expressão “outra origem” permite uma interpretação ampliativa do dispositivo, uma vez que os tribunais têm reconhecido esta forma de vínculo que decorre do afeto. O Estatuto das Famílias, em seu art. 10, apresenta uma definição mais completa do que vem a ser parentesco, a saber: “o parentesco resulta da consanguinidade, da socioafetividade ou da afinidade.” 3.2. A origem genética Não restam dúvidas de que todo ser humano possui origens genéticas advindas de um homem e de uma mulher. A hereditariedade, ou seja, a transmissão de características se dá no momento da fecundação do óvulo. A origem genética se torna questão importante para o direito de família no momento em que se está diante de um dos seguintes vínculos de parentesco: a) filiação não biológica em face de ambos os pais, por meio de adoção regular ou em face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho; b) filiação não biológica em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga. Diante dessas duas formas de filiação torna-se necessário esclarecer o que vem a ser inseminação artificial heteróloga. 3.2.1 Inseminação artificial heteróloga Tem-se a inseminação artificial heteróloga quando o marido autoriza previamente, verbalmente ou por escrito, que outro sêmen, que não o seu, seja utilizado para que o óvulo da mulher seja fecundado. Tal procedimento é regulado pelo artigo 1.597, V, do Código Civil. É importante notar que há a exigência da autorização pelo marido e que a mesma deve ser anterior ao ato da fecundação. Conforme Lôbo, 2004, “a autorização verbal é válida quando provada em juízo.” O vínculo que se estabelece entre pai e filho, nessas circunstâncias, é o socioafetivo e não o biológico. A origem genética da criança não coincide com os laços afetivos de sua filiação. Vale ressaltar que nestes casos, o marido não poderá 7 negar a paternidade, em razão da origem e nem, com o mesmo fundamento, poderá ser investigada a paternidade. Se a impugnação da paternidade fosse permitida, com base nestes argumentos, haveria a chamada paternidade incerta (DINIZ apud LÔBO, 2004). 3.2.2 Direito ao sigilo do doador versus o direito à identidade genética O Direito não consegue acompanhar com a mesma velocidade as mudanças que ocorrem na sociedade, na produção de normas, fundamentos e interpretações que abarquem os novos fatos sociais. Dentre as situações fáticas sem regulamentação apropriada está a reprodução humana assistida, que é uma técnica que envolve diretamente a vida do ser humano. (GREUEL, 2009 p.106). A ausência de norma faz com que não haja resposta para várias questões que envolvem este tema. Dentre as mais relevantes questões pergunta-se: é ou não possível ao indivíduo oriundo de fecundação artificial com material genético doado ter acesso aos dados de identificação do doador? Conforme Greuel (2009), a dificuldade de se responder a tal questionamento está no fato de que há um confronto entre dois princípios constitucionais: o direito ao sigilo e o direito à ascendência genética. Princípios constitucionais não se sobrepõem. No caso concreto é que se deve valorar a escolha de um em detrimento do outro. Sobre o sigilo das informações ligadas à origem genética, a Declaração Universal do Genoma humano, em seu artigo 9º, diz que: Com o objetivo de proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais, as limitações aos princípios do consentimento e do sigilo só poderão ser prescritas por Lei, por razões de força maior, dentro dos limites da legislação pública internacional e da lei internacional dos direitos humanos. A regulação existente no Brasil é a Resolução 2013/2013, do Conselho Federal de Medicina, que veio substituir a Resolução 1.358/92 (modificada em 2010), mas nenhuma delas define a questão do anonimato do doador e do eventual direito de conhecimento da identidade genética do ser humano advindo de tais técnicas. 8 Conhecer a origem genética, no caso de inseminação heteróloga, pode ter razões diversas, excluindo-se desse rol a paternidade. Isso se deve ao fato de que a paternidade socioafetiva já fora estabelecida. (QUEIROZ, 2001, p. 126). 3.3. Direito à origem genética como direito de personalidade O estado de filiação não se traduz e nem pode ser explicado exclusivamente pela origem genética. Estado de filiação e origem genética são, em vários casos, ramos diferentes do direito. Em regra, o primeiro atende ao direito de família e, o segundo ao direito de personalidade. Estado de filiação e origem genética complementam-se quando procuram dar uma resposta ao mesmo ramo do direito, a saber: o direito de família. Quando se busca através da origem genética estabelecer um estado de filiação, de alguém que não o possui, um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível está sendo observado. Para Lôbo (2004), a ação de investigação de paternidade é inadequada para que se possa conhecer a origem genética. Isso se deve ao fato de que a origem genética não pode explicar a filiação. A relação entre pais e filhos é muito mais complexa e depende de mecanismos afetivos e sociais que se estabelecem durante a convivência, os cuidados, as demonstrações de carinho. A origem genética não possui o papel legitimador da filiação. Ela integra os direitos de personalidade, com finalidade totalmente desvinculada do estado de filiação. (LÔBO, 2008). O parentesco, em especial a filiação, não se estabelece por dados genéticos. Eles são estabelecidos, essencialmente, pela afetividade. Uma pessoa pode precisar/desejar conhecer sua origem genética pelo simples fato, pode parecer redundante, de precisar/desejar conhecer sua origem genética, não tendo relação alguma com a questão da filiação. Dessa forma, fica compreendido que há uma distinção significativa entre origem genética e reconhecimento e/ou contestação do estado de filiação. A origem genética pode, em certos casos, direcionar o reconhecimento ou contestação do estado de filiação, mas com ele não se confunde. 4. ANÁLISE DO ACÓRDÃO4 4 Acórdão é a decisão colegiada de segundo grau de jurisdição, ou seja, do órgão colegiado de um tribunal (câmara, turma, secção, órgão especial, plenário). 9 Conforme jurisprudência, em anexo, Valter inconformado com a sentença que julgou improcedente a ação de herança cumulada com anulação de partilha, interpôs recurso de apelação. Sentiu-se injustiçado por não ter parte na herança deixada pelo pai biológico. O apelante, foi adotado “à brasileira” por seu pai registral, com quem mantém uma relação hígida. A adoção à brasileira se estabelece quando alguém declara a maternidade ou a paternidade, sabendo não ser pai ou mãe daquela criança e não observa as exigências legais para a adoção. A vontade de integrar a criança na família, acolhendo-a como se a tivesse gerado, é o que move aquele que faz a falsa declaração. Aos 16 anos, Valter soube que sua origem genética não coincidia com a filiação estabelecida. Conheceu o pai biológico e passou a relacionar-se com ele. Eles participaram, segundo Valter, um da vida do outro, da adolescência até a vida adulta, mantendo uma relação socioafetiva. Diante do bom relacionamento com o pai biológico, pediu que sua origem genética fosse judicialmente reconhecida, o que, de fato ocorreu. Valter, assim como a maior parte das pessoas, acreditou que a descoberta de sua origem genética teria o condão de estabelecer um liame de filiação, de maneira automática, ao seu pai biológico, substituindo cabalmente sua filiação socioafetiva. Contudo, a filiação é mais abrangente que a origem genética. O pedido de Valter foi o de ter sua origem genética reconhecida. Não houve a solicitação de contestação do estado de filiação, razão porque o liame de filiação entre Valter e seu pai registral não foi dissolvido. A verdade socioafetiva se estabeleceu com força suficiente para afastar a verdade biológica. No caso em tela vê-se claramente a relativização do papel da origem genética. Ela não dita, de forma imperativa, o estado de filiação de ninguém. Este é alçando de maneiras diversas, baseado especialmente na relação socioafetiva. 5. CONCLUSÃO Diante do tema abordado, percebe-se que houve uma evolução do conceito de filiação e dos critérios existentes para sua análise. Se num primeiro momento a 10 filiação apenas se presumia, a partir do casamento dos genitores, hoje ela se baseia na relação de afeto entre pais e filhos, não interessando se o liame que os une é biológico ou não. A origem genética perdeu seu papel de legitimador da filiação, tendo seu foco migrado para o direito de personalidade. Dessa forma, a origem genética não serve, per si, para configurar o estado ou não de filiação. Este é uma construção, que envolve tanto o ser quanto o querer ser. Na inseminação artificial heteróloga, o direito à origem genética esbarra no direito ao anonimato do doador. Ambos direitos fundamentais, que só poderão ser confrontados diante do caso do concreto, levando em conta os interesses e necessidades que estão em jogo, uma vez que a falta de legislação é marcante nesse sentido. É necessário que o legislador brasileiro siga a orientação da Declaração Universal do genoma humano e estabeleça critérios objetivos para a regulação do sigilo do doador de material genético, bem como estabeleça os direitos do ser humano advindo de inseminação artificial que queira conhecer sua identidade genética. A importância da regulação está no fato de que ela poderá estabelecer um clima de segurança jurídica para aquele que deseja doar, mas tem receio de fazê-lo, pois não sabe se será ou não obrigado a comparecer em juízo para que responda por uma situação jurídica em relação a qual não manifestou sua vontade. Hodiernamente, como se pode observar no acórdão, ainda há a crença de que haveria certa preponderância do vínculo biológico sobre o socioafetivo. Não é verdade. Dar o direito a alguém de ter reconhecida sua origem genética, não significa ter que abdicar ou ter reconhecidos outros direitos. É simplesmente permitir que ele se conheça e se reconheça de outras formas, em outras pessoas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS De VAUX, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004. 11 GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil. Direito de família – as famílias em perspectiva constitucional. 2. ed. rev., atual. e ampl. v.6. São Paulo: Saraiva, 2012. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: direito de família. 10 ed. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2013. LÔBO, Paulo. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. NUNES, Leila Freitas santos. Filiação socioafetiva e direito à identidade genética. 2006. 146f. Dissertação (mestrado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, programa de pós-graduação em direito privado, Belo Horizonte. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito de família: uma abordagem psicanalítica. Belo Horizonte: Del Rey, 1999. QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicas de inseminação artificial. Doutrina e jurisprudência. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Sites BRASIL. Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Diário oficial da União. Brasília, 05 de outubro de 1988. em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Disponível Acessado em: 20 de outubro de 2013. BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução 2.013, de 16 de Abril de 2013. Adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida, anexas à presente resolução, como dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos e revoga a Resolução CFM nº 1.957/10. Disponível em: <http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/39/Documentos/resolucao_CFM _2013_2013_reproducao_assistida.pdf>. Acesso em: 20 de outubro de 2013. 12 BRASIL. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Diário oficial da União. Brasília, 10 de janeiro de 2002. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2002/L10406.htm>. Acessado em 30 de outubro de 2013. CARRION, Juliana Queiroz Machado. A relativização da coisa julgada nas ações de investigação de paternidade. 2011. 31f. Trabalho de conclusão de curso Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul, graduação em Direito, Porto Alegre. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2011_1/ juliana_carrion.pdf >. Acesso em: 18 de outubro de 2013. GREUEL, Priscila Caroline. Doação de material genético: confronto entre o direito ao sigilo do doador, direito à identidade genética e eventual direito de filiação. Revista Jurídica Científica do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Regional de Blumenau. Vol. 13, No. 26, 2009. Disponível em: <http://proxy.furb.br/ojs/index.php/juridica/article/view/1888/1253>. Acesso em: 15 de outubro de 2013. LÔBO, Paulo. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 194, 16 jan. 2004. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4752>. Acesso em: 20 de outubro de 2013. MOREIRA FILHO, José Roberto. Direito à origem genética. Revista Faculdade Arnaldo Janssen Direito, v. 3, n. 3, janeiro a dezembro de 2011. Disponível em: <http://www.faculdadearnaldo.edu.br/revista/index.php/faculdadedireitoarnaldo/article /view/29/24 >. Acesso em: 22 de outubro de 2013. UNESCO. Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos. 16 out. 2003. Disponível em: <http://www.ghente.org/doc_juridicos/dechumana.htm>. Acesso em: 20 de outubro de 2013. ANEXO 13 AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA CUMULADA COM QUE RECONHECEU A PATERNIDADE SEM GERAR EFEITOS CIVIS. 1. Mostra-se flagrantemente descabida a petição de herança cumulada com nulidade de partilha, com base na sentença que se limitou a reconhecer a paternidade biológica, já que o pedido era expresso no sentido de buscar apenas origem genética e também de ser mantida a paternidade registral, tendo em mira a existência de uma relação de paternidade socioafetiva. 2. Se a relação jurídica de parentesco com o pai registral permanece hígida, então inexiste título jurídico a albergar a pretensão de anular a partilha em razão da petição de herança. 3. Não obstante a sentença ter declarado a paternidade genética, ela é também imprestável para esse fim, pois sequer foi realizado exame de DNA. Recurso desprovido. APELAÇÃO CÍVEL SÉTIMA CÂMARA CÍVEL Nº 70 051 398 550 COMARCA DE JAGUARÃO VALTER LUIZ GONÇALVES RAMOS APELANTE VERA MARIA DIAS DUTRA E OUTROS APELADO ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos. Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento ao recurso. Custas na forma da lei. Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), as eminentes Senhoras DES.ª LISELENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO E DES.ª SANDRA BRISOLARA MEDEIROS. Porto Alegre, 21 de novembro de 2012. DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES, Presidente e Relator. RELATÓRIO DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES (PRESIDENTE E RELATOR) Trata-se da irresignação de VALTER L. G. R. com a r. sentença que julgou improcedente a ação de petição de herança cumulada com anulação de 14 partilha que move contra DARLI D. P. e OUTROS, condenado-o nos encargos sucumbenciais, ficando suspensa a exigibilidade em razão do deferimento do benefício da assistência judiciária gratuita. Sustenta o recorrente que merece reforma a r. sentença, pois restou demonstrada a existência de relação socioafetiva também com o pai biológico, o que lhe assegura o direito à herança dele. Alega que, aos 16 anos de idade, teve ciência de que o sr. WALTER D. era o seu pai biológico, passando a conviver e nutrir vínculo afetivo com o falecido, embora constasse no seu registro civil o nome do seu padrasto. Aduz que o pai biológico também passou a acompanhar a sua vida, estando presente em todos os momentos importantes, da adolescência até a vida adulta. Assevera não ser descabida a possibilidade de duplicidade de vínculos paterno-filiais, para garantir o cumprimento de princípios constitucionais, tais como, do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana. Argumenta que não foi informado pelo seu defensor sobre os efeitos da ação de reconhecimento de paternidade, pois entendeu que não havia necessidade de alterar o seu registro civil, incluindo o nome do pai biológico e excluindo o do pai registral, que ainda está vivo e com quem mantém bom relacionamento. Refere que, na ação de investigação de paternidade, os recorridos concordaram com o pedido porque sabiam que era filho biológico de WALTER S.D. Pretende seja dado prosseguimento ao feito, possibilitando a produção de provas, a fim de que seja reconhecida a paternidade socioafetiva, reconhecendo-o como herdeiro e anulandose a partilha realizada nos autos do inventário nº 055/1.10.0000015-3. Pede o provimento ao recurso. Intimados, os recorridos ofereceram contra-razões, sustentando que na ação de investigação de paternidade, o recorrente destacou que a ação não tinha por objeto a exclusão do nome de seu pai registral, JACINTO R., mas a declaração de sua filiação biológica, tanto que o pai registral sequer foi incluído no pólo passivo da demanda. Alegam que é totalmente descabida a juntada de documentos com a apelação, conforme art. 396 do CPC. Aduzem que não houve a alegada socioafetividade com o pai biológico, sendo que tal argumento surgiu apenas no recurso, demonstrando o interesse exclusivamente patrimonial do recorrente. Pretendem seja mantido o juízo de improcedência da ação e a condenação do recorrente por litigância de má-fé. Pedem o desprovimento do recurso. 15 Com vista dos autos, a douta Procuradoria de Justiça lançou parecer pugnando pelo conhecimento e desprovimento do recurso. Foi observado o disposto no art. 551, § 2º, do CPC. É o relatório. VOTOS DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES (PRESIDENTE E RELATOR) Estou confirmando a r. decisão recorrida pelos seus próprios e jurídicos fundamentos, que tenho como se aqui reproduzidos estivessem. Com efeito, mostra-se flagrantemente descabida a petição de herança cumulada com nulidade de partilha, com base na sentença que se limitou a reconhecer a paternidade biológica, já que o pedido era expresso no sentido de buscar apenas origem genética e também de ser mantida a paternidade registral, tendo em mira a existência de uma relação de paternidade socioafetiva. Ou seja, se a relação jurídica de parentesco com o pai registral permanece hígida, então inexiste título jurídico a albergar a pretensão de anular a partilha em razão da petição de herança. Primeiramente, friso que a situação posta nestes autos é peculiar e decorre, lamentavelmente, da má compreensão dos institutos do direito de família, onde diuturnamente „achismos‟ (com escusas pelo neologismo), com bases em premissas falsas, com caráter ideológico (ou demagógico) levam a construções jurídicas equivocadas e inconsistentes. Por exemplo, com base no desgastado „princípio dignidade da pessoa humana‟, que na verdade é apenas uma mera variável axiológica, justifica-se o „sagrado‟ direito fundamental de se conhecer a origem biológica, como se a origem biológica fosse única... Mas não é, todos nós somos filhos de um pai e uma mãe (duas fontes, em primeiro grau) e nossos pais têm também seus próprios pais (quatro fontes de família em segundo grau) e eles, por sua vez, também têm seus genitores (oito famílias em terceiro grau) e assim sucessivamente, sendo que, em décimo grau, ultrapassa a casa das mil fontes genéticas. E afirmo, com segurança, que é impossível a certeza da origem genética, pois isso somente seria possível se tivessem todos feito exame de DNA, já que é possível, inclusive, que algum dos 16 nossos ascendentes tenham sido adotados ou sido fruto de alguma adoção à brasileira. E isso sem descartar a possibilidade de alguma filiação adulterina não reconhecida... Portanto essa busca da identidade genética tem marcante conteúdo retórico, quando ultrapassa a casa do parentesco de primeiro grau. De outra banda, é preciso notar que a relação de filiação estriba-se, em princípio, na existência do vínculo biológico ou de consangüinidade e que o registro público deve, tanto quanto possível, espelhar a verdade real. Situações existem, no entanto, onde o liame consangüíneo não se verifica e, ainda assim, persiste a relação jurídica de paternidade. É que a paternidade, mais do que um mero fato biológico, é um fato jurídico, dada a sua expressão social. É isso o que ocorre, por exemplo, quando um homem, com a anuência materna, firma o registro de paternidade, consciente da inexistência do vínculo biológico. Em tal situação, ex vi legis, ao pai registral não é dado sequer o direito de arrepender-se e buscar a revogação do seu ato (art. 1º da Lei nº 8.560/92). Além disso, encontram-se precedentes jurisprudenciais convalidando registros que não revelam a verdade real, considerando-se a situação como se de adoção se tratasse, sendo chamado por alguns de “adoção à brasileira”, como é, aliás, o caso dos autos. Assim, para a definição do vínculo de paternidade, tem sido prestigiado também o critério da verdade socioafetiva e até, não raro, em detrimento da própria verdade biológica. É que, além da questão da segurança jurídica e da estabilidade das relações sociais, deve ser destacado o alcance protetivo do vínculo parental, seja no plano econômico, seja no plano moral. Tanto assim é que, por exemplo, na própria adoção, onde não existe o liame biológico, o legislador constituinte encarregou-se de equipará-la à filiação natural, sendo vedada qualquer designação discriminatória acerca da natureza da filiação (art. 227, §6º, da Constituição Federal). No caso sub judice, o recorrente pretende seja reconhecido o seu direito à herança deixada pelo pai biológico, WALTER S. D., com a conseqüente anulação da partilha já efetuada no inventário dos bens deixados por ele. Mas, nos autos da ação de investigação de paternidade, o recorrente deixou claro que o objeto daquela ação era apenas declaração da sua filiação biológica, razão pela qual não pretendia a desconstituição do registro primitivo (fl. 103). 17 E exatamente por inexistir pedido de exclusão do pai registral, - tendo o autor dito, na ocasião, que “o objeto não é a exclusão do nome do senhor JACINTO RAMOS, mas sim a declaração de filiação biológica do autor” e que, “portanto, não se trata de investigação de paternidade cumulado com pedido de desconstituição do registro primitivo, uma vez que paternidade socioafetiva e a biológica diferem e uma não se sobrepõe a outra”, reconhecendo expressamente que “trata-se de uma adoção à brasileira, havendo vínculo socioafetivo entre o autor e seu pai registral” (fls. 103) é que o julgador se limitou a acolher esse pedido e não determinou inclusão do pai registral no pólo passivo da ação e determinou a realização do exame de DNA (fl. 108). Curiosamente, pouco antes da realização da prova pericial, as partes promoveram a composição consensual da lide, tendo os réus admitido que havia liame biológico, sendo então prolatada a sentença julgando procedente a pretensão do autor, que era de obter a declaração de paternidade biológica ou genética... Assim, foi prolatada uma sentença declarando, não uma relação jurídica, mas um fato, e não obstante essa sentença tenha declarado a paternidade genética, ela é também imprestável para esse fim, pois sequer foi realizado exame de DNA... Ora, em que pese tenha sido reconhecida essa paternidade estritamente biológica inclusive sem a realização de exame genético, friso - a sentença que declarou esse vínculo biológico não produz qualquer efeito civil, pois o recorrente continua sendo filho de JACINTO R, seu pai registral. Ou seja, inexiste qualquer relação jurídica entre o autor e o pai biológico. Por fim, destaco que a conduta de VALTER tangencia a litigância de má-fé, pois afirmou na ação de investigação de paternidade que seu objetivo era estritamente a declaração da filiação biológica e após o reconhecimento da filiação biológica, ingressa – quatro meses após - com a presente ação de petição de herança cumulada com nulidade de partilha. E certamente não poderia ignorar que tal pretensão é completamente destituída de fundamento jurídico. Deixo de aplicar a litigância de má-fé, pois existem precedentes jurisprudenciais e textos doutrinários apontando o direito constitucional à busca da ‘verdadeira identidade’ ou ‘origem genética’ em nome o notável da ‘princípio da dignidade da pessoa humana’... No entanto, como a questão dos autos é decorrência direta e imediata da definição do vínculo parental, penso que se impõe uma maior reflexão sobre o tema. Mesmo que pudessem coexistir a paternidade registral (com validade jurídica) e a biológica – apesar de ser absurda essa hipótese - é imperioso atentar para o conjunto dos interesses postos e, entre os valores em disputa, para encontrar então qual o que deve prevalecer, pois não se pode ignorar, evidentemente, que o direito de filiação é indisponível. 18 No caso em tela, penso que existe ponderável razão de ordem pública para manter mesmo incólume o registro que, embora não espelhando a realidade biológica, induvidosamente espelha a realidade social e afetiva, e já vem perdurando há muitos anos. Aliás, restou consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva com o pai registral, que o próprio autor proclamou de forma expressa e afirmou que pretendia manter incólume. Sendo assim, lembro que inexiste qualquer relação jurídica entre o autor e o falecido ‘pai biológico’, pois a paternidade é fato jurídico e diz com o status social da pessoa. Mesmo que, movido pela ganância, pudesse o autor pretender a desconstituição da relação jurídica de paternidade com seu pai registral, ainda assim sua pretensão à herança não poderia prosperar, pois não pode o mero interesse patrimonial ensejar a desconstituição do liame jurídico de filiação que já espalhou suas raízes no tecido social, não havendo dúvida alguma de que o verdadeiro pai do autor é JACINTO (fls. 103/105). Como lembra JAQUELINE NOGUEIRA (in “A filiação que se constrói: o reconhecimento do afeto como valor jurídico”, pág. 85), “o vínculo de sangue tem um papel definitivamente secundário para a determinação da paternidade; a era da veneração biológica cede espaço a um novo valor que se agiganta: o afeto, porque o relacionamento mais profundo entre pais e filhos transcende os limites biológicos, ele se faz no olhar amoroso, no pegá-lo nos braços, em afagá-lo, em protegê-lo e este é um vínculo que se cria e não que se determina”. Destaca, ainda, a ilustre jurista que a noção da posse do estado de filho ganha abrigo nas mais recentes reformas do direito internacional, que “não se funda com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade”. Assim, o vínculo biológico perde relevância para o registral, quando este está agregado ao envolvimento social e afetivo. E, também, o vínculo registral perde significado quando ausentes os componentes social e afetivo, pois a chamada paternidade socioafetiva tem sua justificativa jurídica na situação da posse do estado de filho, cujos elementos característicos da posse de estado são o nome (nomen), o tratamento (tractatus) e a reputação (fama). E essa questão relativa à posse de estado está a merecer rápida digressão. Segundo o jurista português EDUARDO SANTOS (in “Direito da Família”), “estado de uma pessoa é o que determina a medida dos poderes e deveres jurídicos de que elas são suscetíveis”, ou seja, “é um conjunto de qualidades da pessoa que a lei tem em conta para lhe atribuir um certo número de direitos e obrigações”. E o estado de família “é a posição que o indivíduo ocupa na família ou no grupo familiar”. Segundo o precitado jurista, o estado de família é pessoal, intransmissível, indisponível, sujeitando-se a normas de interesse e ordem pública, é universal e indivisível (isto é, 19 ninguém pode ter dois estados diferentes simultaneamente, por exemplo, ser solteiro e casado, ter dois pais ou duas mães, nem ter um estado familiar perante umas pessoas e diverso estado perante outras), reclama correspectividade ou reciprocidade (irmãos entre si, pais e filhos, marido e mulher), estabilidade (caráter duradouro), oponibilidade (tem validade erga omnes), imprescritibilidade e suscetibilidade de posse. Essa suscetibilidade de posse é, segundo ALEX WEILL (apud EDUARDO SANTOS, op. cit., pág. 83) “o exercício de fato de prerrogativas de um direito, independentemente de se saber se se é ou não titular deste direito”. Assim, na filiação socioafetiva estão presentes, precisamente, esses três elementos que tratam da posse de estado e, por essa razão, podem perfeitamente ensejar o seu ingresso regular no mundo do direito. Como afirma, aliás, JULIE CRISTINE DELINSKI, “assim como a posse conduz à propriedade, a posse de estado conduz a um estado”. E, a propósito, lembra ORLANDO GOMES que “a admissibilidade da posse dos direitos pessoais é defendida como corolário natural e lógico do princípio segundo o qual a posse é o exercício de um direito”. Assim, o efetivo exercício da posse de estado de filho resulta, primeiro da declaração de paternidade e, segundo, do exercício dessa paternidade, o que conduz à indelével confirmação desse estado de família, que, como estado de família, tende à estabilidade e à universalidade. Ou seja, a relação parental estabelecida entre o autor e JACINTO deve se perpetuar. É preciso ter em mira que a família é protegida de forma especial pelo Estado por ser a própria base da sociedade, cuidando o Estado para que, dentro dela, as pessoas se mantenham protegidas na sua dignidade, recebendo as primeiras e mais importantes noções de vida social e também os preceitos morais que devem nortear as suas vidas. E admitir, nesse contexto, a pretensão do autor de anular a partilha e acolher sua petição de herança implicaria valorizar mais do que o fato social, mais do que a afetividade, o tênue liame biológico, que de nada valeu durante toda uma vida, para se justificar um mero proveito patrimonial. Para o autor ostentar a condição de herdeiro, precisaria desconstituir a paternidade jurídica com JACINTO, mas parece claro que, para o autor, se o seu pai biológico de nada valeu enquanto vivo, talvez lhe sirva depois de morto, nem que, para isso, precise desconsiderar o seu verdadeiro pai, que lhe deu o amparo material e moral, bem como o suporte afetivo ao longo dos anos... Se, enfim, for esse o valor cultuado pelo autor, não pode ser o valor que a sociedade e o Estado deve tutelar. 20 A pretensão do autor é manifestamente improcedente e, a rigor, ele é, até mesmo, carecedor de ação, pois o seu pai é JACINTO e não WALTER S. D., tal como demonstra a sua certidão de nascimento. De qualquer sorte, não apenas não procede a pretensão de receber a herança de WALTER, como inexiste qualquer nulidade na partilha levada a efeito. ISTO POSTO, nego provimento ao recurso. DES.ª LISELENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO (REVISORA) - De acordo com o(a) Relator(a). DES.ª SANDRA BRISOLARA MEDEIROS - De acordo com o(a) Relator(a). DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES - Presidente Apelação Cível nº 70051398550, Comarca de Jaguarão: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: FERNANDO ALBERTO CORREA HENNING