PARENTESCO E ORIGEM GENÉTICA Roberta Grisi Caixeta de

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PARENTESCO E ORIGEM GENÉTICA
Roberta Grisi Caixeta de Araujo1
Tarcisio Caixeta de Araujo2
Débora Regina Cunha Borges Escanoela3
Resumo:
Este artigo trata do parentesco e da origem genética. Para tanto, discute-se os critérios jurídico,
biológico e afetivo da filiação. Avalia-se também a posse do estado de filiação, inseminação artificial
heteróloga, direito ao sigilo do doador, direito à identidade genética e direito à origem genética como
direito de personalidade.
Palavras-chave:
Parentesco, Origem Genética, Filiação, direito de personalidade.
Abstract:
This article deals with parentage and the genetic origin. To do so, we discuss the legal, biological and
affective criteria of filiation. It evaluates as well the possession of the membership status, heterologous
artificial insemination, the right of confidentiality of who gives the semen, the right of genetic identity
and the right of genetic origin as a right of personality.
Keywords:
Parentage, genetic origin, filiation, right of personality.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo trazer à luz pontos essenciais do direito à
origem genética.
A importância do assunto tratado está no fato de que todos os seres vivos,
sem exceção, são portadores de dados genéticos que lhes conferem suas
características matrizes. No caso dos seres humanos, pela complexidade de sua
1
Bacharel em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Estudante do sétimo período do
curso de Direito da PUC-MG.
2
Mestre em Teologia pela University of Wales (South Wales Baptist College) com reconhecimento pela PUC-Rio,
licenciado em Letras pelo UNI-BH, bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista Mineiro (curso livre),
alfabetização Braille pelo Instituto São Rafael, Belo Horizonte-MG. Professor de Hebraico bíblico, Antigo
Testamento, Teologia do Antigo Testamento e Exegese na Faculdade Batista de Minas Gerais. Membro da
Ordem dos Pastores Batistas do Brasil (OPBB), do National Association of Professors of Hebrew (NAPH), do
Núcleo de Estudos Judaicos da UFMG (NEJE), da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB).
3
Estudante do sétimo período do curso de Direito da PUC-MG.
2
constituição, não apenas biológica, mas também espiritual, os dados genéticos
podem ter sua exteriorização mais ou menos mitigada. A tecnologia, entendida latu
sensu, é responsável pelos diversos arranjos culturais e sociais em locais e tempos
diversos. Dentro da cultura humana está o Direito, que é responsável por explicitar
as normas que devem vigir, sempre de acordo com os interesses de quem detém o
poder de controle social. Até mesmo aquilo que é inerente ao ser humano pode ter,
por meio do Direito, sua importância ressaltada ou ignorada. Este “ambiente”
abstrato será o cenário para a observação da questão real dos dados genéticos
humanos e sua ligação com a filiação.
O artigo está organizado e fundamentado considerando o que a Lei, a
doutrina e a jurisprudência têm a iluminar e explicitar sobre a filiação, a posse do
estado de filiação, parentesco, origem genética, inseminação artificial heteróloga,
direito ao sigilo do doador versos o direito à identidade genética, direito à origem
genética como direito de personalidade.
Percorrer-se-á os caminhos da história da filiação e o desenvolvimento da
personalidade. Algumas evoluções das ciências biomédicas e humanas serão
minimamente abordadas. Devido à vastidão desses temas tão interessantes, far-seá recortes daqueles aspectos imprescindíveis ao artigo.
2. A FILIAÇÃO
As leis que surgiram antes da Constituição Federal brasileira de 1988
buscavam sistematizar o modelo da família patriarcal, privando da tutela jurisdicional
as demais espécies de entidades familiares e os filhos que não fossem havidos na
constância do casamento. A Constituição de 1988, em seu artigo 227, §6º,
estabeleceu absoluta igualdade entre todos os filhos, “não mais admitindo a
retrógrada distinção entre filiação legítima a ilegítima, segundo os pais fossem
casados ou não, e adotiva que existia no Código Civil de 1916.” (GONÇALVES,
2013, p. 319).
Paulo Lôbo (2008) afirma que a “filiação é conceito relacional; é a relação de
parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida de outra,
ou adotada, ou vinculada mediante posse do estado de filiação ou por concepção
derivada de inseminação artificial heteróloga.” Dessa forma, a filiação estabelece-se
não apenas em face do vínculo biológico ou jurídico, mas principalmente em face do
3
vínculo socioafetivo que “atende mais ao princípio do melhor interesse da criança,
da dignidade da pessoa humana e também da paternidade responsável.” (MOREIRA
FILHO, 2011).
Percebe-se, assim, que há três critérios para se identificar a filiação: o
jurídico, o biológico e o afetivo.
2.1. Critério jurídico da filiação
O critério jurídico é aquele que prevalecia até a Constituição de 1988. Esse
conceito estabelece a paternidade por presunção imposta pelo legislador em
circunstâncias
previamente
indicadas
no
texto
legal,
independente
da
correspondência ou não com a realidade, conforme elucida Juliana Queiroz
Machado Carrion (2011):
A máxima do direito Romano, pater is est quem justae nuptiae demonstrant,
decorrente do casamento, pode ser definida como a presunção que atribui
ao homem os filhos de sua mulher. Acima da verdade biológica, o sistema
jurídico brasileiro faz prevalecer a verdade jurídica. (ALMEIDA apud
CARRION, 2011).
Em textos hebraicos antigos encontra-se a chamada lei do levirato ou lei do
cunhado, a qual reza o seguinte: uma mulher casada que se tornasse viúva, sem
filhos, teria que, por força da lei, se casar com o irmão do falecido esposo (caso
esse vivesse próximo e aceitasse cumprir tal lei). Em caso de casamento e
concepção de um filho, o cunhado (irmão do falecido) daria o nome do falecido ao
filho primogênito homem e não seu próprio nome. O filho seria criado como se fora
filho do morto. Portanto, um filho adotivo do pai biológico. (De VAUX, 2004).
2.2. Critério biológico da filiação
A filiação biológica é aquela estabelecida pela consanguinidade, conforme
salienta Queiroz (2001). Assim que as relações de parentesco se fizeram
importantes à humanidade, foi tal critério que teve maior prevalência. Dessa forma,
“a maternidade era estabelecida e, a partir desta, a paternidade era atribuída ao
genitor.” (QUEIROZ, 2001 p. 46). Percebe-se dessa forma que o fundamento
4
“biológico foi o embasador para a atribuição do vínculo de paternidade, mesmo
adquirindo formas presuntivas.” (QUEIROZ, 2001 p. 47).
Pelo sistema biológico, filho é aquele que detém genes do pai. O avanço da
biotecnologia, com a descoberta da estrutura do DNA, permitiu, com certo grau de
exatidão, o reconhecimento dos laços consanguíneos de filiação. Vale lembrar que a
utilização do exame de DNA de forma simplista deve ser criticada, pois a filiação não
pode ser resumida à identificação de dados biológicos apenas. (NUNES, 2006 p.
43).
2.3. Critério afetivo da filiação
As transformações em relação ao conceito de família culminaram no
entendimento de que atualmente, o liame mais importante é o afeto. Família não é
apenas aquela fundada pelo casamento. O texto constitucional explicita que também
a união estável e a família monoparental recebem proteção estatal (CF/88. Art. 226
caput e parágrafos seguintes úteis).
A genética é incapaz de per si, criar laços de afetividade. Estes advêm da
convivência. O filho não ocupa mais o lugar de instrumento de produção, com
função patrimonial, que existia apenas para garantir o patrimônio familiar. O filho
agora é visto como sujeito de direitos e deveres, a quem o Direito atribui
personalidade. Assim sendo, deve ter assegurada a proteção de sua dignidade
humana. (GREUEL, 2009, p.110).
O convívio e o afeto podem ocorrer entre pessoas que tenham sido geradas
de diferentes maneiras, em circunstâncias diversas. A origem biológica não garante
que o indivíduo tenha suas necessidades básicas atendidas (alimentação, lazer,
educação, amor, afeto), o vínculo sócio-afetivo, sim. (QUEIROZ, 2001, p. 49).
Rodrigo da Cunha Pereira (1999) preleciona:
A paternidade constitui, segundo a psicanálise, uma função. É essa função
paterna exercida por um pai que é determinante e estruturante dos sujeitos.
Portanto, o pai pode ser uma série de pessoas ou personagens: o genitor, o
marido da mãe, o amante oficial, o companheiro da mãe, o protetor da
mulher durante a gravidez, o tio, o avô, aquele que cria a criança, aquele
que dá seu sobrenome, aquele que reconhece a criança legal ou
ritualmente, aquele que fez a adoção..., enfim, aquele que exerce a função
de pai. (PEREIRA, 1999, p. 148).
5
Desta forma, percebe-se que o critério afetivo é uma conquista e não uma
“herança” como ocorre no critério jurídico e/ou biológico. A convivência é necessária
para a criação e construção de vínculos de amor e respeito.
2.4. Posse do estado de filiação
Afetividade e posse de estado de filiação são aspectos intrinsecamente
conectados. A posse do estado de filiação ocorre quando alguém assume o papel
de filho em face daquele ou daqueles que assumem o papel de pai ou de mãe ou de
pais. A afetividade é que torna a posse do estado de filho, assim como a paternidade
e a maternidade, possível. O sujeito precisa sentir e acreditar ser filho. Para Lôbo
(2004), o vínculo biológico não é essencial, pois a importância da posse do estado
de filiação está na medida em que ele é exteriorização da vida familiar, do cuidado,
da educação, enfim, a preocupação dirigida ao ser que se desenvolve.
Compreender a posse do estado de filho é importante para o enfrentamento
da questão relacionada ao parentesco e a origem genética.
3. PARENTESCO VERSUS ORIGEM GENÉTICA
Parentesco e origem genética não são termos necessariamente conectados.
Pode-se ter parentes que possuam a mesma origem genética, mas não
obrigatoriamente. Nesse sentido, torna-se necessária a distinção entre parentesco e
origem genética.
3.1. O parentesco
O parentesco pode ser compreendido como:
a relação jurídica, calcada na afetividade e reconhecida pelo Direito, entre
pessoas integrantes do mesmo grupo familiar, seja pela ascendência,
descendência ou colateralidade, independentemente da natureza (natural,
civil ou por afinidade). O conceito de parentesco não se identifica com a
noção de família, pois os cônjuges ou os companheiros, por exemplo,
embora constituam uma família, não são parentes entre si. (GAGLIANO,
2012).
6
O código civil reconhece expressamente o parentesco natural ou civil. O art.
1.593 do C.C/02 diz: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consanguinidade ou outra origem.”
Apesar de nada mencionar sobre a socioafetividade, base do vínculo parental,
a expressão “outra origem” permite uma interpretação ampliativa do dispositivo, uma
vez que os tribunais têm reconhecido esta forma de vínculo que decorre do afeto. O
Estatuto das Famílias, em seu art. 10, apresenta uma definição mais completa do
que vem a ser parentesco, a saber: “o parentesco resulta da consanguinidade, da
socioafetividade ou da afinidade.”
3.2. A origem genética
Não restam dúvidas de que todo ser humano possui origens genéticas
advindas de um homem e de uma mulher. A hereditariedade, ou seja, a transmissão
de características se dá no momento da fecundação do óvulo.
A origem genética se torna questão importante para o direito de família no
momento em que se está diante de um dos seguintes vínculos de parentesco: a)
filiação não biológica em face de ambos os pais, por meio de adoção regular ou em
face do pai ou da mãe que adotou exclusivamente o filho; b) filiação não biológica
em face do pai que autorizou a inseminação artificial heteróloga.
Diante dessas duas formas de filiação torna-se necessário esclarecer o que
vem a ser inseminação artificial heteróloga.
3.2.1 Inseminação artificial heteróloga
Tem-se a inseminação artificial heteróloga quando o marido autoriza
previamente, verbalmente ou por escrito, que outro sêmen, que não o seu, seja
utilizado para que o óvulo da mulher seja fecundado. Tal procedimento é regulado
pelo artigo 1.597, V, do Código Civil. É importante notar que há a exigência da
autorização pelo marido e que a mesma deve ser anterior ao ato da fecundação.
Conforme Lôbo, 2004, “a autorização verbal é válida quando provada em juízo.”
O vínculo que se estabelece entre pai e filho, nessas circunstâncias, é o
socioafetivo e não o biológico. A origem genética da criança não coincide com os
laços afetivos de sua filiação. Vale ressaltar que nestes casos, o marido não poderá
7
negar a paternidade, em razão da origem e nem, com o mesmo fundamento, poderá
ser investigada a paternidade.
Se a impugnação da paternidade fosse permitida, com base nestes
argumentos, haveria a chamada paternidade incerta (DINIZ apud LÔBO, 2004).
3.2.2 Direito ao sigilo do doador versus o direito à identidade genética
O Direito não consegue acompanhar com a mesma velocidade as mudanças
que ocorrem na sociedade, na produção de normas, fundamentos e interpretações
que abarquem os novos fatos sociais.
Dentre as situações fáticas sem regulamentação apropriada está a
reprodução humana assistida, que é uma técnica que envolve diretamente a vida do
ser humano. (GREUEL, 2009 p.106).
A ausência de norma faz com que não haja resposta para várias questões
que envolvem este tema. Dentre as mais relevantes questões pergunta-se: é ou não
possível ao indivíduo oriundo de fecundação artificial com material genético doado
ter acesso aos dados de identificação do doador? Conforme Greuel (2009), a
dificuldade de se responder a tal questionamento está no fato de que há um
confronto entre dois princípios constitucionais: o direito ao sigilo e o direito à
ascendência genética. Princípios constitucionais não se sobrepõem. No caso
concreto é que se deve valorar a escolha de um em detrimento do outro.
Sobre o sigilo das informações ligadas à origem genética, a Declaração
Universal do Genoma humano, em seu artigo 9º, diz que:
Com o objetivo de proteger os direitos humanos e as liberdades
fundamentais, as limitações aos princípios do consentimento e do sigilo só
poderão ser prescritas por Lei, por razões de força maior, dentro dos limites
da legislação pública internacional e da lei internacional dos direitos
humanos.
A regulação existente no Brasil é a Resolução 2013/2013, do Conselho
Federal de Medicina, que veio substituir a Resolução 1.358/92 (modificada em
2010), mas nenhuma delas define a questão do anonimato do doador e do eventual
direito de conhecimento da identidade genética do ser humano advindo de tais
técnicas.
8
Conhecer a origem genética, no caso de inseminação heteróloga, pode ter
razões diversas, excluindo-se desse rol a paternidade. Isso se deve ao fato de que a
paternidade socioafetiva já fora estabelecida. (QUEIROZ, 2001, p. 126).
3.3. Direito à origem genética como direito de personalidade
O estado de filiação não se traduz e nem pode ser explicado exclusivamente
pela origem genética. Estado de filiação e origem genética são, em vários casos,
ramos diferentes do direito. Em regra, o primeiro atende ao direito de família e, o
segundo ao direito de personalidade. Estado de filiação e origem genética
complementam-se quando procuram dar uma resposta ao mesmo ramo do direito, a
saber: o direito de família. Quando se busca através da origem genética estabelecer
um estado de filiação, de alguém que não o possui, um direito personalíssimo,
indisponível e imprescritível está sendo observado.
Para Lôbo (2004), a ação de investigação de paternidade é inadequada para
que se possa conhecer a origem genética. Isso se deve ao fato de que a origem
genética não pode explicar a filiação. A relação entre pais e filhos é muito mais
complexa e depende de mecanismos afetivos e sociais que se estabelecem durante
a convivência, os cuidados, as demonstrações de carinho.
A origem genética não possui o papel legitimador da filiação. Ela integra os
direitos de personalidade, com finalidade totalmente desvinculada do estado de
filiação. (LÔBO, 2008). O parentesco, em especial a filiação, não se estabelece por
dados genéticos. Eles são estabelecidos, essencialmente, pela afetividade.
Uma pessoa pode precisar/desejar conhecer sua origem genética pelo
simples fato, pode parecer redundante, de precisar/desejar conhecer sua origem
genética, não tendo relação alguma com a questão da filiação.
Dessa forma, fica compreendido que há uma distinção significativa entre
origem genética e reconhecimento e/ou contestação do estado de filiação. A origem
genética pode, em certos casos, direcionar o reconhecimento ou contestação do
estado de filiação, mas com ele não se confunde.
4. ANÁLISE DO ACÓRDÃO4
4
Acórdão é a decisão colegiada de segundo grau de jurisdição, ou seja, do órgão colegiado de um tribunal
(câmara, turma, secção, órgão especial, plenário).
9
Conforme jurisprudência, em anexo, Valter inconformado com a sentença que
julgou improcedente a ação de herança cumulada com anulação de partilha, interpôs
recurso de apelação. Sentiu-se injustiçado por não ter parte na herança deixada pelo
pai biológico.
O apelante, foi adotado “à brasileira” por seu pai registral, com quem mantém
uma relação hígida. A adoção à brasileira se estabelece quando alguém declara a
maternidade ou a paternidade, sabendo não ser pai ou mãe daquela criança e não
observa as exigências legais para a adoção. A vontade de integrar a criança na
família, acolhendo-a como se a tivesse gerado, é o que move aquele que faz a falsa
declaração.
Aos 16 anos, Valter soube que sua origem genética não coincidia com a
filiação estabelecida. Conheceu o pai biológico e passou a relacionar-se com ele.
Eles participaram, segundo Valter, um da vida do outro, da adolescência até a vida
adulta, mantendo uma relação socioafetiva. Diante do bom relacionamento com o
pai biológico, pediu que sua origem genética fosse judicialmente reconhecida, o que,
de fato ocorreu.
Valter, assim como a maior parte das pessoas, acreditou que a descoberta de
sua origem genética teria o condão de estabelecer um liame de filiação, de maneira
automática, ao seu pai biológico, substituindo cabalmente sua filiação socioafetiva.
Contudo, a filiação é mais abrangente que a origem genética.
O pedido de Valter foi o de ter sua origem genética reconhecida. Não houve a
solicitação de contestação do estado de filiação, razão porque o liame de filiação
entre Valter e seu pai registral não foi dissolvido. A verdade socioafetiva se
estabeleceu com força suficiente para afastar a verdade biológica.
No caso em tela vê-se claramente a relativização do papel da origem
genética. Ela não dita, de forma imperativa, o estado de filiação de ninguém. Este é
alçando de maneiras diversas, baseado especialmente na relação socioafetiva.
5. CONCLUSÃO
Diante do tema abordado, percebe-se que houve uma evolução do conceito
de filiação e dos critérios existentes para sua análise. Se num primeiro momento a
10
filiação apenas se presumia, a partir do casamento dos genitores, hoje ela se baseia
na relação de afeto entre pais e filhos, não interessando se o liame que os une é
biológico ou não.
A origem genética perdeu seu papel de legitimador da filiação, tendo seu foco
migrado para o direito de personalidade. Dessa forma, a origem genética não serve,
per si, para configurar o estado ou não de filiação. Este é uma construção, que
envolve tanto o ser quanto o querer ser.
Na inseminação artificial heteróloga, o direito à origem genética esbarra no
direito ao anonimato do doador. Ambos direitos fundamentais, que só poderão ser
confrontados diante do caso do concreto, levando em conta os interesses e
necessidades que estão em jogo, uma vez que a falta de legislação é marcante
nesse sentido. É necessário que o legislador brasileiro siga a orientação da
Declaração Universal do genoma humano e estabeleça critérios objetivos para a
regulação do sigilo do doador de material genético, bem como estabeleça os direitos
do ser humano advindo de inseminação artificial que queira conhecer sua identidade
genética. A importância da regulação está no fato de que ela poderá estabelecer um
clima de segurança jurídica para aquele que deseja doar, mas tem receio de fazê-lo,
pois não sabe se será ou não obrigado a comparecer em juízo para que responda
por uma situação jurídica em relação a qual não manifestou sua vontade.
Hodiernamente, como se pode observar no acórdão, ainda há a crença de
que haveria certa preponderância do vínculo biológico sobre o socioafetivo. Não é
verdade.
Dar o direito a alguém de ter reconhecida sua origem genética, não
significa ter que abdicar ou ter reconhecidos outros direitos. É simplesmente permitir
que ele se conheça e se reconheça de outras formas, em outras pessoas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11
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12
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Disponível
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Acesso em: 20 de outubro de 2013.
ANEXO
13
AÇÃO DE PETIÇÃO DE HERANÇA CUMULADA COM
QUE
RECONHECEU A PATERNIDADE SEM GERAR EFEITOS CIVIS. 1.
Mostra-se flagrantemente descabida a petição de herança cumulada
com nulidade de partilha, com base na sentença que se limitou a
reconhecer a paternidade biológica, já que o pedido era expresso no
sentido de buscar apenas origem genética e também de ser mantida a
paternidade registral, tendo em mira a existência de uma relação de
paternidade socioafetiva. 2. Se a relação jurídica de parentesco com o
pai registral permanece hígida, então inexiste título jurídico a albergar
a pretensão de anular a partilha em razão da petição de herança. 3.
Não obstante a sentença ter declarado a paternidade genética, ela é
também imprestável para esse fim, pois sequer foi realizado exame de
DNA. Recurso desprovido.
APELAÇÃO CÍVEL
SÉTIMA CÂMARA CÍVEL
Nº 70 051 398 550
COMARCA DE JAGUARÃO
VALTER LUIZ GONÇALVES RAMOS
APELANTE
VERA MARIA DIAS DUTRA E OUTROS
APELADO
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário (Presidente), as
eminentes Senhoras DES.ª LISELENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO E DES.ª
SANDRA BRISOLARA MEDEIROS.
Porto Alegre, 21 de novembro de 2012.
DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES,
Presidente e Relator.
RELATÓRIO
DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES (PRESIDENTE E
RELATOR)
Trata-se da irresignação de VALTER L. G. R. com a r. sentença que
julgou improcedente a ação de petição de herança cumulada com anulação de
14
partilha que move contra DARLI D. P. e OUTROS, condenado-o nos encargos
sucumbenciais, ficando suspensa a exigibilidade em razão do deferimento do
benefício da assistência judiciária gratuita.
Sustenta o recorrente que merece reforma a r. sentença, pois restou
demonstrada a existência de relação socioafetiva também com o pai biológico, o que
lhe assegura o direito à herança dele. Alega que, aos 16 anos de idade, teve ciência
de que o sr. WALTER D. era o seu pai biológico, passando a conviver e nutrir
vínculo afetivo com o falecido, embora constasse no seu registro civil o nome do seu
padrasto. Aduz que o pai biológico também passou a acompanhar a sua vida,
estando presente em todos os momentos importantes, da adolescência até a vida
adulta. Assevera não ser descabida a possibilidade de duplicidade de vínculos
paterno-filiais, para garantir o cumprimento de princípios constitucionais, tais como,
do melhor interesse da criança e do adolescente e da dignidade da pessoa humana.
Argumenta que não foi informado pelo seu defensor sobre os efeitos da ação de
reconhecimento de paternidade, pois entendeu que não havia necessidade de
alterar o seu registro civil, incluindo o nome do pai biológico e excluindo o do pai
registral, que ainda está vivo e com quem mantém bom relacionamento. Refere que,
na ação de investigação de paternidade, os recorridos concordaram com o pedido
porque sabiam que era filho biológico de WALTER S.D. Pretende seja dado
prosseguimento ao feito, possibilitando a produção de provas, a fim de que seja
reconhecida a paternidade socioafetiva, reconhecendo-o como herdeiro e anulandose a partilha realizada nos autos do inventário nº 055/1.10.0000015-3. Pede o
provimento ao recurso.
Intimados, os recorridos ofereceram contra-razões, sustentando que na
ação de investigação de paternidade, o recorrente destacou que a ação não tinha
por objeto a exclusão do nome de seu pai registral, JACINTO R., mas a declaração
de sua filiação biológica, tanto que o pai registral sequer foi incluído no pólo passivo
da demanda. Alegam que é totalmente descabida a juntada de documentos com a
apelação, conforme art. 396 do CPC. Aduzem que não houve a alegada
socioafetividade com o pai biológico, sendo que tal argumento surgiu apenas no
recurso, demonstrando o interesse exclusivamente patrimonial do recorrente.
Pretendem seja mantido o juízo de improcedência da ação e a condenação do
recorrente por litigância de má-fé. Pedem o desprovimento do recurso.
15
Com vista dos autos, a douta Procuradoria de Justiça lançou parecer
pugnando pelo conhecimento e desprovimento do recurso.
Foi observado o disposto no art. 551, § 2º, do CPC.
É o relatório.
VOTOS
DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES (PRESIDENTE E
RELATOR)
Estou confirmando a r. decisão recorrida pelos seus próprios e jurídicos
fundamentos, que tenho como se aqui reproduzidos estivessem.
Com efeito, mostra-se flagrantemente descabida a petição de herança
cumulada com nulidade de partilha, com base na sentença que se limitou a
reconhecer a paternidade biológica, já que o pedido era expresso no sentido de
buscar apenas origem genética e também de ser mantida a paternidade registral,
tendo em mira a existência de uma relação de paternidade socioafetiva. Ou seja, se
a relação jurídica de parentesco com o pai registral permanece hígida, então inexiste
título jurídico a albergar a pretensão de anular a partilha em razão da petição de
herança.
Primeiramente, friso que a situação posta nestes autos é peculiar e
decorre, lamentavelmente, da má compreensão dos institutos do direito de família,
onde diuturnamente „achismos‟ (com escusas pelo neologismo), com bases em
premissas falsas, com caráter ideológico (ou demagógico) levam a construções
jurídicas equivocadas e inconsistentes.
Por exemplo, com base no desgastado „princípio dignidade da pessoa
humana‟, que na verdade é apenas uma mera variável axiológica, justifica-se o
„sagrado‟ direito fundamental de se conhecer a origem biológica, como se a origem
biológica fosse única... Mas não é, todos nós somos filhos de um pai e uma mãe
(duas fontes, em primeiro grau) e nossos pais têm também seus próprios pais
(quatro fontes de família em segundo grau) e eles, por sua vez, também têm seus
genitores (oito famílias em terceiro grau) e assim sucessivamente, sendo que, em
décimo grau, ultrapassa a casa das mil fontes genéticas. E afirmo, com segurança,
que é impossível a certeza da origem genética, pois isso somente seria possível se
tivessem todos feito exame de DNA, já que é possível, inclusive, que algum dos
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nossos ascendentes tenham sido adotados ou sido fruto de alguma adoção à
brasileira. E isso sem descartar a possibilidade de alguma filiação adulterina não
reconhecida...
Portanto essa busca da identidade genética tem marcante conteúdo
retórico, quando ultrapassa a casa do parentesco de primeiro grau.
De outra banda, é preciso notar que a relação de filiação estriba-se,
em princípio, na existência do vínculo biológico ou de consangüinidade e que o
registro público deve, tanto quanto possível, espelhar a verdade real. Situações
existem, no entanto, onde o liame consangüíneo não se verifica e, ainda assim,
persiste a relação jurídica de paternidade.
É que a paternidade, mais do que um mero fato biológico, é um fato
jurídico, dada a sua expressão social. É isso o que ocorre, por exemplo, quando um
homem, com a anuência materna, firma o registro de paternidade, consciente da
inexistência do vínculo biológico. Em tal situação, ex vi legis, ao pai registral não é
dado sequer o direito de arrepender-se e buscar a revogação do seu ato (art. 1º da
Lei nº 8.560/92).
Além disso, encontram-se precedentes jurisprudenciais convalidando
registros que não revelam a verdade real, considerando-se a situação como se de
adoção se tratasse, sendo chamado por alguns de “adoção à brasileira”, como é,
aliás, o caso dos autos.
Assim, para a definição do vínculo de paternidade, tem sido prestigiado
também o critério da verdade socioafetiva e até, não raro, em detrimento da própria
verdade biológica. É que, além da questão da segurança jurídica e da estabilidade
das relações sociais, deve ser destacado o alcance protetivo do vínculo parental,
seja no plano econômico, seja no plano moral.
Tanto assim é que, por exemplo, na própria adoção, onde não existe o
liame biológico, o legislador constituinte encarregou-se de equipará-la à filiação
natural, sendo vedada qualquer designação discriminatória acerca da natureza da
filiação (art. 227, §6º, da Constituição Federal).
No caso sub judice, o recorrente pretende seja reconhecido o seu direito à herança
deixada pelo pai biológico, WALTER S. D., com a conseqüente anulação da partilha já efetuada no
inventário dos bens deixados por ele. Mas, nos autos da ação de investigação de paternidade, o
recorrente deixou claro que o objeto daquela ação era apenas declaração da sua filiação biológica,
razão pela qual não pretendia a desconstituição do registro primitivo (fl. 103).
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E exatamente por inexistir pedido de exclusão do pai registral, - tendo o autor dito,
na ocasião, que “o objeto não é a exclusão do nome do senhor JACINTO RAMOS, mas sim a
declaração de filiação biológica do autor” e que, “portanto, não se trata de investigação de
paternidade cumulado com pedido de desconstituição do registro primitivo, uma vez que
paternidade socioafetiva e a biológica diferem e uma não se sobrepõe a outra”, reconhecendo
expressamente que “trata-se de uma adoção à brasileira, havendo vínculo socioafetivo entre o autor
e seu pai registral” (fls. 103) é que o julgador se limitou a acolher esse pedido e não determinou
inclusão do pai registral no pólo passivo da ação e determinou a realização do exame de DNA (fl.
108).
Curiosamente, pouco antes da realização da prova pericial, as partes promoveram a
composição consensual da lide, tendo os réus admitido que havia liame biológico, sendo então
prolatada a sentença julgando procedente a pretensão do autor, que era de obter a declaração de
paternidade biológica ou genética...
Assim, foi prolatada uma sentença declarando, não uma relação jurídica, mas um
fato, e não obstante essa sentença tenha declarado a paternidade genética, ela é também
imprestável para esse fim, pois sequer foi realizado exame de DNA...
Ora, em que pese tenha sido reconhecida essa paternidade estritamente biológica inclusive sem a realização de exame genético, friso - a sentença que declarou esse vínculo biológico
não produz qualquer efeito civil, pois o recorrente continua sendo filho de JACINTO R, seu pai
registral. Ou seja, inexiste qualquer relação jurídica entre o autor e o pai biológico.
Por fim, destaco que a conduta de VALTER tangencia a litigância de má-fé, pois
afirmou na ação de investigação de paternidade que seu objetivo era estritamente a declaração da
filiação biológica e após o reconhecimento da filiação biológica, ingressa – quatro meses após - com a
presente ação de petição de herança cumulada com nulidade de partilha. E certamente não poderia
ignorar que tal pretensão é completamente destituída de fundamento jurídico.
Deixo de aplicar a litigância de má-fé, pois existem precedentes jurisprudenciais e
textos doutrinários apontando o direito constitucional à busca da ‘verdadeira identidade’ ou ‘origem
genética’ em nome o notável da ‘princípio da dignidade da pessoa humana’...
No entanto, como a questão dos autos é decorrência direta e imediata da definição
do vínculo parental, penso que se impõe uma maior reflexão sobre o tema.
Mesmo que pudessem coexistir a paternidade registral (com validade jurídica) e a
biológica – apesar de ser absurda essa hipótese - é imperioso atentar para o conjunto dos interesses
postos e, entre os valores em disputa, para encontrar então qual o que deve prevalecer, pois não se
pode ignorar, evidentemente, que o direito de filiação é indisponível.
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No caso em tela, penso que existe ponderável razão de ordem pública para manter
mesmo incólume o registro que, embora não espelhando a realidade biológica, induvidosamente
espelha a realidade social e afetiva, e já vem perdurando há muitos anos.
Aliás, restou consolidada a relação jurídica de paternidade socioafetiva com o pai
registral, que o próprio autor proclamou de forma expressa e afirmou que pretendia manter
incólume.
Sendo assim, lembro que inexiste qualquer relação jurídica entre o autor e o falecido
‘pai biológico’, pois a paternidade é fato jurídico e diz com o status social da pessoa.
Mesmo que, movido pela ganância, pudesse o autor pretender a desconstituição da
relação jurídica de paternidade com seu pai registral, ainda assim sua pretensão à herança não
poderia prosperar, pois não pode o mero interesse patrimonial ensejar a desconstituição do liame
jurídico de filiação que já espalhou suas raízes no tecido social, não havendo dúvida alguma de que o
verdadeiro pai do autor é JACINTO (fls. 103/105).
Como lembra JAQUELINE NOGUEIRA (in “A filiação que se constrói: o
reconhecimento do afeto como valor jurídico”, pág. 85), “o vínculo de sangue tem um papel
definitivamente secundário para a determinação da paternidade; a era da veneração biológica cede
espaço a um novo valor que se agiganta: o afeto, porque o relacionamento mais profundo entre pais
e filhos transcende os limites biológicos, ele se faz no olhar amoroso, no pegá-lo nos braços, em
afagá-lo, em protegê-lo e este é um vínculo que se cria e não que se determina”.
Destaca, ainda, a ilustre jurista que a noção da posse do estado de filho ganha abrigo
nas mais recentes reformas do direito internacional, que “não se funda com o nascimento, mas num
ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade”.
Assim, o vínculo biológico perde relevância para o registral, quando este está
agregado ao envolvimento social e afetivo. E, também, o vínculo registral perde significado quando
ausentes os componentes social e afetivo, pois a chamada paternidade socioafetiva tem sua
justificativa jurídica na situação da posse do estado de filho, cujos elementos característicos da posse
de estado são o nome (nomen), o tratamento (tractatus) e a reputação (fama).
E essa questão relativa à posse de estado está a merecer rápida digressão.
Segundo o jurista português EDUARDO SANTOS (in “Direito da Família”), “estado de
uma pessoa é o que determina a medida dos poderes e deveres jurídicos de que elas são
suscetíveis”, ou seja, “é um conjunto de qualidades da pessoa que a lei tem em conta para lhe
atribuir um certo número de direitos e obrigações”. E o estado de família “é a posição que o
indivíduo ocupa na família ou no grupo familiar”.
Segundo o precitado jurista, o estado de família é pessoal, intransmissível,
indisponível, sujeitando-se a normas de interesse e ordem pública, é universal e indivisível (isto é,
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ninguém pode ter dois estados diferentes simultaneamente, por exemplo, ser solteiro e casado, ter
dois pais ou duas mães, nem ter um estado familiar perante umas pessoas e diverso estado perante
outras), reclama correspectividade ou reciprocidade (irmãos entre si, pais e filhos, marido e mulher),
estabilidade (caráter duradouro), oponibilidade (tem validade erga omnes), imprescritibilidade e
suscetibilidade de posse.
Essa suscetibilidade de posse é, segundo ALEX WEILL (apud EDUARDO SANTOS, op.
cit., pág. 83) “o exercício de fato de prerrogativas de um direito, independentemente de se saber se
se é ou não titular deste direito”.
Assim, na filiação socioafetiva estão presentes, precisamente, esses três elementos
que tratam da posse de estado e, por essa razão, podem perfeitamente ensejar o seu ingresso
regular no mundo do direito.
Como afirma, aliás, JULIE CRISTINE DELINSKI, “assim como a posse conduz à
propriedade, a posse de estado conduz a um estado”. E, a propósito, lembra ORLANDO GOMES que
“a admissibilidade da posse dos direitos pessoais é defendida como corolário natural e lógico do
princípio segundo o qual a posse é o exercício de um direito”.
Assim, o efetivo exercício da posse de estado de filho resulta, primeiro da declaração
de paternidade e, segundo, do exercício dessa paternidade, o que conduz à indelével confirmação
desse estado de família, que, como estado de família, tende à estabilidade e à universalidade. Ou
seja, a relação parental estabelecida entre o autor e JACINTO deve se perpetuar.
É preciso ter em mira que a família é protegida de forma especial pelo Estado por ser
a própria base da sociedade, cuidando o Estado para que, dentro dela, as pessoas se mantenham
protegidas na sua dignidade, recebendo as primeiras e mais importantes noções de vida social e
também os preceitos morais que devem nortear as suas vidas.
E admitir, nesse contexto, a pretensão do autor de anular a partilha e acolher sua
petição de herança implicaria valorizar mais do que o fato social, mais do que a afetividade, o tênue
liame biológico, que de nada valeu durante toda uma vida, para se justificar um mero proveito
patrimonial.
Para o autor ostentar a condição de herdeiro, precisaria desconstituir a paternidade
jurídica com JACINTO, mas parece claro que, para o autor, se o seu pai biológico de nada valeu
enquanto vivo, talvez lhe sirva depois de morto, nem que, para isso, precise desconsiderar o seu
verdadeiro pai, que lhe deu o amparo material e moral, bem como o suporte afetivo ao longo dos
anos...
Se, enfim, for esse o valor cultuado pelo autor, não pode ser o valor que a sociedade
e o Estado deve tutelar.
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A pretensão do autor é manifestamente improcedente e, a rigor, ele é, até mesmo,
carecedor de ação, pois o seu pai é JACINTO e não WALTER S. D., tal como demonstra a sua certidão
de nascimento.
De qualquer sorte, não apenas não procede a pretensão de receber a herança de
WALTER, como inexiste qualquer nulidade na partilha levada a efeito.
ISTO POSTO, nego provimento ao recurso.
DES.ª LISELENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO (REVISORA) - De acordo com o(a)
Relator(a).
DES.ª SANDRA BRISOLARA MEDEIROS - De acordo com o(a) Relator(a).
DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES - Presidente Apelação Cível nº 70051398550, Comarca de Jaguarão:
"NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME."
Julgador(a) de 1º Grau: FERNANDO ALBERTO CORREA HENNING
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