Sociologia, Arte pública e cidadania:

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Governing the African Public Sphere
12e Assemblée générale
Administrer l’espace public africain
12a Assembleia Geral
Governar o Espaço Público Africano
‫ةيعمجلا ةيمومعلا ةيناثلا رشع‬
‫ﺣﻜﻢ اﻟﻔﻀﺎء اﻟﻌﺎم اﻹﻓﺮﻳﻘﻰ‬
Sociologia, Arte pública e cidadania: - Subsídios sobre a
reprodução das estrelas em Moçambique
Filomene Manuel Meigos
Universidade Eduardo Mondlane
07-11/12/2008
Yaoundé, Cameroun
1-Esticando a tela
Os pintores plásticos iniciam o seu trabalho preparando a tela esticando-a. É um trabalho de
criatividade, prosaico e poético, na medida em que pressupõe ficar atento à textura e aos
contornos, e, em função disso, às possibilidades do acaso criativo, tendo em conta a realidade
que circunda tanto a tela como o próprio artista.
Este trabalho segue, de grosso modo, a mesma demarche. Portanto, este é um state of mind
paper. Sigo as minhas percepções, algumas abordagens teóricas, e, sobretudo, a minha
experiência vivencial do assunto. Debruço-me sobre a relação que se estabelece entre a arte
pública e a materialização da cidadania na esfera e lugares públicos em Moçambique. Por
outro lado, a comunicação procura dar conta do papel que a sociologia pode desempenhar
para a compreensão e explicação dessa ambígua e tensa relação. Proponho a hipótese,
segundo a qual, em Moçambique os lugares públicos não são tipicamente tratados como coisa
pública de importância estética, e tão pouco são discutidos na esfera pública. Esta acepção
implica dizer que as intervenções nos lugares públicos, (em termos de arte pública), são
deficitárias, ou seja, elas são caracterizadas por um déficit de participação. Isto é, não existe
na esfera pública uma acção que envolva todas as partes
interessadas no ordenamento
espácio-estético dos lugares, o que era suposto pois, tal como diz Kant, a “esfera pública é a
racionalização da dominação”. Na verdade, a dominação, particularmente na arte pública,
deve ser racionalizada, o que acontece de forma estranha em Moçambique. Portanto, a arte
pública em Moçambique apresenta-se problemática, uma vez que não são tidos em conta, nem
discutidos, os aspectos estéticos e ideológicos a ela subjacentes. Tão pouco são tidos em conta
aspectos ligados a ocupação artística dos espaços públicos. Isso revela, por hipótese, a falta de
vontade dos decisores políticos se exporem a inputs que não apenas os da sua entourage. E,
provavelmente, também revele falta de iniciativa de cidadania por parte dos utentes desses
espaços e lugares públicos. De qualquer modo, fica claro que na esfera pública moçambicana,
no que tange a arte pública, há uma relação de dominação onde o que predomina é uma
racionalidade politizada e ideologizante. Melhor, uma abordagem partidarizada, onde, acto
contínuo, os partidos do dia chamam a si o protagonismo que era suposto ser público, no
sentido de discussão e representatividade, em termos de negociação e troca de informação
sobre o que, como, e onde fazer o quê, no domínio da arte pública.
Por isso, defendemos que a sociologia pode ajudar-nos a entender a questão, porque a arte
pública é sinónimo de cidadania, e esta implica participação ao nível da esfera pública, o que
se afigura essencial para a “racionalização da dominação”, se quisermos falar como Kant.
Todos esses conceitos e processos são potenciais objectos de estudo da sociologia, e passíveis
1
de observação empírica. Nesse mister a sociologia presta-se a fazer perguntas tais como: O
que se passa em Moçambique em termos de arte pública? Como se passa? Quem são os
actores envolvidos? Que instituições? Como tudo isso se estrutura?
“Sendo a arte a expressão de grupos humanos distintos simultaneamente da sociedade global
e das classes sociais, definidas por oposições concretas de tendências e de interesses”
(Francastel,1982), aventamos que é por esse motivo que a sociologia é chamada a intervir
como área do saber. Na verdade, a sociologia tem o papel de mapear esse debate sobre a arte,
estética, e cidadania, que se expressa de múltiplas formas, captando as tensões sócio-políticoeconómico-culturais subjacentes às dinâmicas conflituais de que a arte se reveste.
Consequentemente, a sociologia chama a si o papel de estudar as inquietações que estruturam
o que no presente trabalho chamamos de cidadania estética que, no caso de Moçambique,
ocorre de forma não participativa, e por isso, excludente.
No nosso argumento, periodizamos a ocorrêrncia da arte pública em Moçambique em duas
épocas distintas, que correspondem a dois tipos de cidadania, e, consequentemente, a duas
esferas públicas, cada uma das quais com caracteristicas sui generis. De facto, se olharmos
para a história recente de Moçambique, veremos que podemos divisar dois tipos de cidadania,
ou pelo menos dois tipos de participação e intervenção em termos de arte pública, que
coincidem com períodos caracterizados por
tipos de regime
sócio político económico
cultural diferentes. Mormente, de 1975 a 1986, e, de 1986 em diante (simbolicamente
representado pela constituição multipartidária de 1990). Analisamos essas duas épocas que
correspondem a duas visões distintas de comportamentos e atitudes para com a arte pública,
ilustrando cada uma com um exemplo empírico típico: Para retratar a época 1975- 1986
trazemos o caso mimético das praças dos heróis moçambicanos erigidas aleatoriamente por
Moçambique adentro. Esta época é caracterizada pelo samorismo1, particularmente na sua
função de regulação estética e ideológica. Isto é, tudo o que foi construido nos lugares
públicos nesse tempo (estátuas, monumentos alusivos a efemérides, murais, dependiam de
“orientações do partido” aos diferentes níveis.
Para caracterizar o segundo período, trazemos o caso típico da praça André Matsangaísse2, na
Munhava-Beira. Esta autarquia foi ganha por um partido da oposição, a Renamo, já no
1
Samorismo é um conceito cunhado pelo sociólogo moçambicano Carlos Serra, que o define nos seguintes
termos:”Proponho que se entenda por samorismo o conjunto de crenças, de práticas e de métodos utópicos que
se estruturou no imaginário popular por consenso e por recusa”. (Serra,1997:38)
2
André Matssaangaísse foi o fundador da Renamo (Resistência Nacional Moçambicana) que se rebelou contra o
governo vigente liderado pela Frelimo. Pertenceu ás Forçcas Populares de Libertação de Moçambique braço
armado da Frelimo, movimento que protagonizou a luta armada de libertação nacional contra o colonialismo
português.
2
contexto do multipartidarismo, nas segundas eleições autárquicas realizadas em 2003. A
opção de implantar a praça na Munhava em 2006, quanto a nós, foi levada a cabo nos mesmos
moldes excludentes característicos da época do monopartidarismo samoriano. Isto é, sem a
participação dos munícipes, o que criou disfunções pouco consentâneas com o
multipartidarismo, em muitos sentidos. Primeiro, no próprio acto de exclusão e de não
negociação sobre arte e intervenção nos lugares públicos, não obstante ter sido quebrada a
“tradicional”prerrogativa do partido Frelimo, até então único, a dar nomes e a regular estética
e ideologicamente os lugares públicos.
Segundo, porque o nome de Matsangaíssa é pome de discórdia, visto que para uns é herói, e
para outros, é “bandido armado chefe”3 que participou da vandalização de Moçambique,
incluindo a própria cidade da Beira, através de acções armadas levadas a cabo no contexto da
guerra que desestabilizou o país durante 16 anos.
Esta comunicação procura equacionar algumas hipóteses de trabalho que ajudem a
compreender e explicar as duas mencionadas épocas, do ponto de vista da sociologia.
O trabalho está estruturado em 3 partes. Na primeira, procuramos responder a questão, como
e porquê a sociologia pode ser útil na comprensão e explicação da arte pública. Aqui
trazemos os debates em torno dessa problemática, em Moçambique, os protagonistas e os
conteúdos em contenda.
Na segunda parte, explicamos, em que medida a cidadania tem a ver com a arte pública e
como no caso de Moçambique, a cidadania corresponde a duas épocas distintas.
Para ilustrar o nosso argumento e ajudar a compreeensão e explicação de cada uma dessas
épocas trrazemos na terceira parte duas evidências empíricas: O caso das “estrelas”, como
metáfora do mimetismo que caracteriza as praças assim construidas, e o caso da “estrela” da
Munhava, por sua vez, como metáfora do protagonismo, também excludente, da Renamo na
Beira, a despeito do contexto multipartidário no qual a praça foi erigida.
Temos como conclusão que a arte pública resulta em acto político que camufla a verdadeira
essência da arte, a ideia de criação – de poiein, por um lado. Por outro, ela exclui no sentido
sociológico do termo, ela “des” racionaliza a dominação, numa perspectiva adversa a de Kant,
para quem, como dissemos alhures, a esfera pública funciona como racionalizador da
dominação.
3
Bandido armado é o epíteto pelo qual eram conhecidos os guerrilheiros da Renamo.
3
1.1 A sociologia e o debate: artistas plásticos, políticos, académicos, cada um à sua
maneira
Nesta secção procuramos responder a questão como e porquê a sociologia pode ser útil na
comprensão e explicação da arte pública, bem como damos conta dos processos correlatos.
Como uma das áreas de saberes que analisa os discursos e o que lhes está subjacente, a
sociologia é chamada por exemplo, a mapear os debates em torno da questão da arte e esfera
públicas versus cidadania. Assim, a sociologia pode ilucidar-nos sobre que campos, como, e
que conteúdos perfazem tais debates.
Por exemplo, no caso de Moçambique, os referidos debates ocorrem no campo artístico,
político e académico, ainda que de forma distinta, irregular e com intensidades diferentes.
No campo artístico os debates sobre arte e estética são “acesos” e têm como contendores os
próprios artistas divididos entre os da chamada “velha guarda”, os chamados “puristas,
tradicionalistas” e os que se identificam como sendo os da “nova geração”. Por sua vez, esta
geração pode ser dividida entre o grupo que, se bem que eterogêneo, tem por comunalidade
não ter tido oportunidade de formação específica em arte. Outrossim, este mesmo grupo
caracteriza-se pelo facto de não fazer parte de nenhum movimento artístico entanto que tal, e
portanto, não possuir nenhum manifesto.
O segundo grupo é constituido por diferentes artistas conglomerados em torno do chamado
Movimento de Arte Contemporânea (Muvart). Este grupo possui manifesto no qual são
especificados os objectivos e as actividades a levar a cabo.
No que tange as discussões sobre os puristas e tradicionalistas, Costa (2005) adianta que
“Desde os anos 60 desenvolve-se uma crescente preocupação em relação ao abandono de
certas tradições artísticas, à produção, à reprodução de modelos, à falta de estímulos”. Este
parágrafo demonstra que a discussão é antiga relativamente a tradições artísticas e modelos.
Como que a querer dar resposta a essa questão, com uma linha de orientação e objectivos
expressos, foi criado o Movimento Arte Contemporânea cujo manifesto assevera que, “O
movimento de Arte Contemporânea, ambiciona ser um meio activo de promoção da estética
conhecida universalmente por “Arte Comtemporânea”. O mesmo documento acrescenta que
pretende favorecer o seu (referindo-se à Arte Contemporânea) desenvolvimento realizando
acções de intervenção prática e de reflexão sobre ela. O manifesto vai mais longe ao
preconizar incentivo e promoção da participação dos artistas e dos criadores artísticos
moçambicanos, na arena internacional, não como espelhos de uma África congelada dentro
4
das suas tradições mas como testemunhos do mundo de hoje, a partir de riquezas
humanas, singulares e contemporâneas”. (o sublinhado é meu).
Como se depreende os da velha guarda são acusados de continuarem agarrados às velhas
formas marcadamente figurativas e a conteúdos do quotidiano tipicamente naturalistas e
interventivas, no sentido de representarem o quotidiano sem grandes abstracções, e de estarem
muito arreigados aos tradicionais materiais e técnicas: esculturas em madeira (sândalo, pau
preto, jambirre); desenho a tinta da china ou lápis de carvão, pintura á óleo sobre tela e
acrílico.
O grupo da nova guarda que não teve acesso a formação formal sobre as técnicas que
utilizam, constitui, mesmo assim, a ruptura com os chamados puristas- poderei considerá-los
aquilo a que Kwame Appiah se refere “na Casa de meu pai” como pertencendo ao paradigma
neo-tradicional, ”uma palavra quase correcta-, que fornece, a meu ver, a pista fundamental”
(Appiah,1997:196) . De facto o que Appiah nos diz é que o neo-tradicional revela no
conteúdo, entenda-se o produto final e a ideografia que lhe está subjacente, reminescências de
contacto entre o tradicional e o moderno (colonia) e que, portanto, o neo-tradicional é fruto da
pós colonialidade caracterizado pela sua cultura pós moderna
“ (..) cultura em que operam todos os pós-modernismos, ora em sinergia, ora em competição,
uma vez que a cultura contemporânea (...) é transnacional, global- embora isso, não
signifique, de maneira alguma, que seja a cultura de todas as pessoas do mundo” (idem:201).
O grupo dos que se intitulam de Movimento de arte moderna (MUVART), são no meu
entender o último anel do neo-tradicionalismo, com o condão de terem objectivos e
actividades específicas, a saber:
1. Desenvolver actividades de carácter artístico no âmbito da estética “contemporânea”
como um testemunho do mundo de hoje, fazendo de Moçambique um centro de
criação artística que compete no panorama internacional.
2. Incentivar e promover a participação dos artistas e dos criadores artísticos
moçambicanos, na arena internacional não como espelhos de uma África congelada
dentro das suas tradições mas como testemunhos do mundo de hoje, a partir de
riquezas humanas, singulares e contemporâneas.
3. Criar um movimento com capacidade crítica e de reflexão sobre os problemas sócioculturais de Moçambique e que tenha um papel significativo na formação ideológica e
cultural da sociedade.
As actividades a serem perseguidas com vista a alcançar esses objectivos são subdivididas
“em duas vocações de acçcão, a teórica e a prática”:
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1. A vocação teórica é a vocação responsável pela sensibilização do público e do artista
por meio de uma reflexão crítica sobre diversos problemas sociais, culturais e
artísticos, em debates, conferências, pesquisas, publicações, etc.
2. A vocação prática deve garantir eventos artísticos, priorizando as tendências
contemporâneas, tais como: instalação, land art, performance, arte pública, body art,
etc. Para permitir um campo de pesquisa e de auto avaliação. Importa deixar claro que
a prática das artes convencionais tais como: a pintura, o desenho, a escultura, a
gravura entre outras, embora não constituam uma prioridade de promoção e difusão na
política do movimento da arte contemporânea, encontram-se integradas desde que
obedeçam a uma estratégia pertinente e crítica.
Ora, como se pode depreender, a posição do Movimento Arte Contemporânea de
Moçambique, e o conteúdo do respectivo manifesto, revelam a pretensão duma posição
contrária ao estado actual das artes em Moçambique no concernente aos estilos, modalidades,
usos de materiais e técnicas. No mínimo, o movimento está preocupado com a abordagem
teórica e, cosequentemente, com a acção artística. De facto, segundo o mesmo manifesto, “a
Arte Contemporânea é uma arte viva, uma arte que engloba numerosas abordagens para além
das tradicionais (pintura, escultura, gravura...(...)”. Deste pressuposto podemos inferir que
Arte em Moçambique está pouco viva, segundo o Muvart, se não moribunda, ou mesmo
morta. Por outro lado, podemos deduzir do mesmo manifesto que a arte em Moçambique temse ficado pelas tradicionais modalidades (pintura, escultura, gravura) daí a razão de ser do
Movimento Arte Contemporânea de Moçambique.
De qualquer jeito, o denominador comum da discussão entre todos estes segmentos de artistas
plásticos parece serem os modelos a trilhar, os estilos, as técnicas, as tradições artísticas, e
sobre os materiais usados nas obras de arte. Por conseguinte, o debate é entre os ditos
puristas/tradicionalistas e os que se intitulam de inovadores.
Um último ponto que se nos afigura pertinente é a pretensão do Muvart chamar a si, por
exclusividade, todo este debate e acção, o que nos parece ser falacioso, na medida em que, a
condição de neo tradicionalidade é apanágio de todos os grupos de artistas ,
independentemente de possuirem ou não manifesto.
No campo político (policy making) os debates resumem-se, por um lado, a não agenda (non
agenda), isto é, a não discussão do assunto, a não inclusão na agenda (agenda setting) o que
por si é um debate, ainda que mudo. Todavia, por outro lado, esse mesmo campo tem vindo a
fazer uso da simbologia que imana das artes no geral e da pública em particular, com vista a
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legitimação da sua acção político-programática. Tal é o caso da utilização/apropriação das
praças públicas, pracetas, rotundas, implantando nelas, estátuas, ou outros monumentos, ou,
dando nomes de heróis, a lugares públicos, legitimados por fechamento pelo campo político,
sem a devida discussão na esfera pública.
As nossas evidências empíricas, as quais nos referiremos na parte final deste trabalho são
disso exemplo.
No campo académico, institucionalmente, o debate circunscreve-se a encontros que têm sido
realizados pelo MUVART no Museu Nacional de Arte, ou por este nas suas actividades
institucionais. Recentemente, ocorreu no mesmo um ciclo de debates, intitulado “não deixem
morrer a cultura, não deixem morrer Craveirinha”, a propósito da exposição no local do artista
plástico moçambicano, Naguib. A Universidade Eduardo Mondlane fundou a Escola de
Comunicação e Artes onde apenas se ensina música e jornalismo, portanto ainda é insípido o
debate naquela escola. No entanto, na faculdade de arquitectura da mesma universidade
ocorre algum debate sobre arte pública, no quadro do planeamento físico e urbanismo ali
ministrados.
Outra instituição, de nível médio, onde o debate se desenvolve é a Escola Nacional de Artes
visuais. Esta possui um curriculum e formação em artes plásticas que inclui teoria de arte e
aspectos práticos a ela ligados, onde se inclui a arte pública.
Portanto, a Sociologia tem a tarefa de explicar esse emaranhado de que é feita a arte pública, e
que envolve diferentes actores, processos, conteúdos e instituições. São tais processos a que
Simmel se refere serem importantes para a sociologia captar, procurando o contigente, o
particular, o efémero das interacções sociais “valorizando também o lado da experiência
subjectiva (de que a arte se constitui, este sublinhado é meu), por contraposição à estrutura
objectiva”. Do mesmo modo, diremos que Simmel apreende as relações sociais a partir dum
quadro estético porque para este autor as tensões do mundo moderno se configuram num
modo estético. Portanto, recorrendo à teoria social, a sociologia trata da especificidade da
configuração artística actual, que reside na interdependência entre o mercado (onde se
efectuam as transacções) e os campos cultural e político (onde se operam a homologação e a
hierarquização dos valores artísticos) e a subjectividade artística. Isto é, a sociologia estuda
como, e em que medida, o fenómeno arte se incrusta nos campos cultural (criação e trocas
simbólicas), político (concepção de políticas e manifestação de autoridade e poder) e
económico (troca de bens e serviços). Quer dizer que neste caso a sociologia trata da
compreensão e explicação do fenómeno arte e espaço públicos versus cidadania como parte
do fenómeno social holístico. Por conseguinte, a sociologia trata de estudar interacções de
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que resultam as várias configurações que constituem o objecto de estudo “Arte Pública”. Esta,
por sua vez, pressupõe uma interacção entre o artista, o espaço físico definido como público,
os decisores políticos e gestores de tais espaços locais. Ou seja, o artista, o espaço público, os
decisores políticos e os espaços onde se materializa a arte pública, são categorias sociais,
constructos que têm como denominador comum a noção de cidadania, esta que se revela uma
realidade interactivo-accionista, este que por sua vez é um conceito definidor da sociologia.
Para o caso deste trabalho quando falamos de cidadania, referimo-nos a uma cidadania
específica, a estética, que se define como o pensar e o agir que concorrem para a estruturação
duma racionalidade estética consubstanciada nos espaços e esfera públicos4. Esse pensar e
agir incide sobre os espaços públicos, tendo em conta não só o preenchimento dos lugares
físicos ou indicação de nomes às praças , avenidas, estradas,etc, mas, e sobretudo, toma em
conta o processo de discussão que vai desembocar nas acções que estruturam a efectivação da
arte pública. Vai daí que, o preenchimento dos espaços é, supostamente, discutido do ponto de
vista da perspectiva, dos materiais, dos estilos, do efeito de volume e da evocação do
contexto. Concomitantemente, as questões que se levantam, em resultado disso são, de entre
outras, as seguintes: Como preencher o espaço? Que cores ou formas utilizar? Que contexto
político ideológico representa o que vai ser erigido, pintado ou esculpido? Que simbologia
expressa? O que é que representa o que se constroi?
Ora, esse state of arts pode e deve ser explicado pela sociologia em vários ângulos, mesmo
que
sob umbrella única da Sociologia da arte. Por isso, na secção que segue vamos,
tentativamente, demonstrar a função da sociologia na explicação da arte pública como um
problema do seu fórum.
4
Neste trabalho espaço público é uma noção que imana da formulação de Jurgen Habermas. Na verdade o
correcto seria dizer esfera pública fazendo oposição entre aquilo que é do domínio privado e do público.
Segundo Habermas, “por mais que se diferenciem entre comunidades de comensais, salões e cafés, no tamanho
e na composição de seu público, no estilo de seu comportamento, no clima de raciocínio e na orientação
temática, todos tendem sempre a organizar, no entanto, a discussão permanente entre pessoas privadas; dispõem,
para isso, de uma série de critérios institucionais em comum. Em primeiro lugar, é exigida uma espécie de
sociabilidade que pressupõe algo como igualdade de status, mas inclusive deixa de leva-lo em consideração.
Contra o cerimonial das hierarquias impõe-se tendencialmente a polidez da igualdade. A paridade, cuja base é
tão somente que a autoridade do argumento pode afirmar-se contra a hierarquia social e, por fim, até se impor,
para o espírito vigente á época (...) As pessoas privadas, às quais a obra se torna acessível enquanto mercadoria
(entenda-se bem de consumo estético como o é a arte pública), profanam-na à medida que por vias do
entendimento racional, entre si, por conta própria, o seu sentido, conversam sobre ela e, assim, precisam
verbalizar o que, até então, exactamente tinha podido, na não verbalização, desenvolver a sua autoridade”
(Habermas, 2003:52-3).
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1.2-Afinal, como a Sociologia compreende e explica a arte e a esfera Públicos?
A sociologia estuda o social. Sobre isto existe
um certo consenso no seio da disciplina.
As divergências começam, contudo,
na definição do social e de como ele
deve ser estudado.
Elísio Macamo
No tocante às artes, e a arte pública em particular, o social não deixa de ser menos complexo.
Tratando-se de um emaranhado de processos, conteúdos e artefactos que envolvem actores em
contenda pela hegemonia do simbólico e sua significação, põem-se grandes misteres à
sociologia na análise da Arte Pública.
Cabe a sociologia verificar as flutuações na apreciação da obra de arte tendo em conta o
contexto que a explica, o público fruidor e o próprio artista. Quer dizer que o sociólogo “com
base nas atribuições de cada época, classifica aquilo que tem a ver com o decorativo, o
artesanal (reprodução de modelos), o funcional, o artístico, muito pouco ou nada reconhecido
(visto)”. (Gervereau, 2000:152).
De que instrumentos e estratégias o sociólogo se faz valer para verificar essas flutuações e
classificar o funcional, o decorativo, o artístico, a reprodução de modelos, etc.? O que há de
sociológico nas artes, particularmente na Pública?
A obra de arte, o artista e os públicos são uma criação social, logo, passíveis de estudo
sociológico, pois, “sociologicamente falando, pode-se pois considerar essencial, ora o estudo
do meio produtor da obra de arte, ora o estudo dos destinatários da mensagem.”
(Francastel,1970:21).
Assim, há várias abordagens em relação ao assunto arte, tal como as há em relação à definição
do social. Seja qual for o estado da discussão (state of arts) de perspectivas, a que se nos
afigura mais consentânea com a nossa abordagem, é aquela que dá conta da plataforma de
reinterpretação da discursividade da produção artística contextual, o que nos permite captar
algumas questões sociologicamente interessantes:
1-A concepção da obra ( que nos remete às sociologias do conhecimento, das identidades,
e sociologia do quotidiano). Aqui podemos responder a questões tais como: Que
processos estão na base dessa construção social da realidade (artística, pública no caso)
que a sociologia do conhecimento trata? (Berger e Luckmann , Mannheim); que temática,
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que símbolos são representados, (no sentido ideologizante do termo), partindo do
pressuposto de que a vida do quotidiano é uma realidade interpretada pelos homens,
subjectivamente dotada de sentido, através do seu conhecimento (artisticamente
representado, no caso).
Que diferença, se é que existem, essas tais obras ostentam? (tendo em conta que a
identidade se define como produção da diferença (Dubar, Cook, Hall) e que cada obra é
uma produção identitária, por inclusão ou por exclusão, daí os grupos, movimentos, etc,
com características próprias: “A constituição da identidade social é um acto de poder (...)
pois, se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio de repressão daquilo que a
ameaça (Hall, 2000:110). Que segmentos, que gostos, que estilos e modos de vida
representam tais identidades através dos artefactos artísticos, pois a identidade é um acto
performativo? (Silva.T, 2000).
Que materiais são usados e por quem? Que estilo é dominante? Que estética revela tal
produção?) (Francastel).
2-Execução da obra ( processo de concretização o que nos remete para as condições de
produção: Quem é o artista, como e em que condições produz? Tem alguma remuneração? De
facto? Simbólica? Societal?
3-Fruição da obra ( que se relaciona com os modos e estilos de vida: quem se deleita com a
obra de arte? Quem a frui? Quem a pode apreciar? Sob que critérios? Qual é o discurso
estético dominante?
4- No caso da arte pública, quem decide onde, como, e quem executa a obra?
Aqui entramos num outro campo dos saberes Sociológicos, a Sociologia política. Esta referese, grosso modo, ao processo decisório, isto é, da tomada de decisão, conteúdos da
política/policy making, aquisição, extensão e manutenção do poder/dominação. Se nos
lembrarmos que a arte é uma dimensão com várias modalidades que pertencem ao grande
campo da cultura, é legítimo referir que : “A política dá uma forma à cultura, define as
relações culturais que determinam o funcionamento social” (M’Bow.A, 1970). Portanto, a
sociologia comprende e explica a Arte Pública duma forma holística tendo em conta a
complexidade do social que enforma essa mesma arte. No entanto, e embora assim seja, para
se entender a realidade Arte Pública é imperioso ter em conta a noção de cidadania estética.
Esta por sua vez incorpora e capta um certo sentido, uma certa representação, uma
determinada história e um certo lugar.
Como se estrutura (m) a(s) cidadania(s) que está(m) na base da acção e discurso sobre a arte
Pública em Moçambique?
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Parece que chegados aqui já podemos adentrar no assunto, tentativamente, dando os
contornos da particularidade moçambicana.
A próxima secção cuida dessa questão.
2- A sociologia e as cidadanias que se materializam na arte e esfera públicas
moçambicanas
A arte e a esfera públicos enformam uma relação negocial ambígua entre o gestor público, os
artistas, os arquitectos, os paisagistas, e o público fruidor utente dessa arte e espaço públicos.
Se por um lado a arte, o artista e o seu produto são, por excelência, uma manifestação da
individualidade, já a esfera pública tem o tom significacional de opinião colectiva no sentido
de constructo social de abrangência estamental, incluindo as representações dos segmentos
existentes, sejam partidários ou não. Ora, essa relação funcional pressupõe uma racionalidade
estética negociada que resulta daquilo a que defino como cidadania estética.
Chamo racionalidade estética o modo como os cidadãos utentes dos espaços, os paisagistas,
os artistas e outros interessados, funcionam num todo, e cada um desempenha seu papel de
modo complementar relativamente ao espaço físico público (lugar).Isto é, as intervenções nos
espaços (físicos/lugares) públicos, devem ser tratados como tal, por oposição ao doméstico ou
, que seja, privado.
Defino cidadania estética como sendo o acto através do qual os diferentes segmentos societais
se concertam para levarem a cabo as acções artísticas nos lugares públicos.Portanto, a
possibilidade de discussão sobre que símbolos, onde, como, e o que fazer, nos espaços
públicos que a tal se prestem. Se assim acontecer, a cidadania estética passa a ser um
pressuposto de inserção social que se estrutura a partir da definição e negociação (violenta ou
pacífica) de critérios estéticos. Isto é, estaremos perante uma acção cuja característica é a
intencionalidade individual negociada intra e entre grupos de pertença. Por seu turno, esta
acção é a chamada cidadania, “que regula e afere as relações entre os indivíduos e o Estado.
Ela permite avaliar o grau da democracia numa dada sociedade. Por ela os cidadãos delegam
ao Estado (ou Autarquia) funções públicas ou nele se fazem representar por mecanismos ou
órgãos validados. No centro da sociedade e do Estado está o cidadão. O Estado sente-se
validado apenas nessas condições. Este condicionamento de validade retira à partida a
pretensão de arbitrariedde do Estado (...) na gestão da coisa pública”. (Mazula, 2001:17-18).
Por outras palavras, o Estado ou Autarquia devem propiciar condições e espaço para que a
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cidadania, se efective mesmo que negociada, resultando daí a legitimidade do próprio Estado
ou Autarquia. Cá está, o interesse sociológico da questão: a negociação faz da arte pública
um campo de cidadania pela luta simbólica ou o contrário: um campo de luta simbólica pela
cidadania. Tanto numa como noutra situação algo se afigura óbvio: a ocorrência da
negociação como factor estruturante da cidadania, mesmo que a coexistência de vários actores
e instituições seja coalisiva, isto é, que efective perspectivas e interesses vários e mesmo
adversos.
Se olharmos na perspectiva do campo de luta simbólica pela cidadania veremos que o que
está em jogo é, como os grupos e interesses rivalizam para impor os seus símbolos, sabido
que os símbolos são coisas que estão no lugar de outras, isto é, representações construidas do
social. Já me explico: o nome duma rua não se atribui ao acaso.
Nomear é algo representativo e significativo para os que escolhem tal nome. Trata-se de
registo, de arquivo se quisermos falar como Foucault. O mesmo sucede com as opções
estéticas sobre o que se deve fazer nessas ruas, avenidas, praças ou alamedas. Portanto, os que
tiverem a prerrogativa de determinar o que, e como fazer, estão a materializar a sua cidadania
estética, estão a pensar e agir nos quadros das suas opções e critérios estéticos. Estão a fazer
valer os seus gostos, e por conseguinte as suas vontades, intencionalmente. De facto, estão a
fazer valer a sua satisfação, prazer, pois, segundo Hume, “ dizer que uma obra é boa é o
mesmo que dizer que é agradável ou aprazível”. Para este filósofo o que realmente importa na
arte é a sua”agradabillidade” o prazer que obtemos com ela, e que isto tem a ver com os
nossos sentimentos, não com a natureza intrínsica. Os “juízos” sobre o bom e o mau na arte,
de acordo com Hume não são na verdade de modo algum juízos, porque o sentimento não
tem referências fora de si mesmo e é sempre real, onde quer que um homem tenha consciência
dele” (Hume, 1975:238).
Voltando à Moçambique, por exemplo, a discussão que houve em torno do monumento
erigido na Praça da Organização da Mulher Moçambicana (OMM), ora tombado, no bairro da
Coop, em Maputo, concebido pelo conceituado arquitecto moçambicano José Forjaz, trouxe
à baila apaixonados debates. Há quem chame ao monumento de batatas fritas, por causa das
rodelas que o enformam, expostas num pedestal no centro da praça. O autor concebeu-o numa
base abstraccionista. Os seus opositores guiam-se pelo naturalismo das rodelas e acham que
elas representam batatas fritas, o que, acto contínuo, remete as mulheres (OMM) para o seu
espaço tradicional a cozinha, pois as rodelas, para eles significam efectivamente batatas fritas.
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Por outro lado, a alusão às batatas fritas no monumento da OMM, vista numa perspectiva
naturalista, sugere a revisitação das discussões sobre o lugar tipicamente alocado à mulher, o
espaço doméstico, por oposição ao espaço público. Se o primeiro remete a um espaço mais
opressivo, ou pelo menos mais tradicionalista, em resultado duma estrutura hegemónica da
família assente no patriarcado, o segundo (público), sugere um espaço mais libertário, mais
consentâneo com o privado,
e portanto mais propenso
a individualização da acção, a
objectivação duma cidadania que ocorre na esfera pública, porque “no sector privado também,
está abrangida a esfera pública propriamente dita, pois ela é uma esfera pública de pessoas
privadas” (Habermas, 1984:45). Por conseguinte, este é um espaço, de exercício de cidadania,
por excelência. De qualquer modo, embora tenha desmoronado, o monumento foi então
erigido, a despeito das discussões e discordâncias extremais em torno do mesmo, nos jornais
da praça.
Se olharmos na perspectiva do campo da cidadania pela luta simbólica estaremos a referirmonos a uma cidadania que pauta pela reivindicação do direito de participação, portanto, de
inclusão na escolha e concepção dos símbolos e opções estéticas. Tal é o caso que poderemos
voltar a ilustrar com o incidente da praça da OMM. As mulheres da OMM e outros segmentos
interessados acham que deveriam ter sido consultados e por isso incluidos na concepção do
monumento que, em princípio é delas/deles e as representa. Para além de que, tendo sido
consultadas, estar-se-ia perante a possibilidade delas exercerem a sua cidadania, mesmo que
negociada.
Tanto numa como noutra perspectiva a sociologia desempenha papel preponderante para a
compreensão, explicação, e desconstrução dessa realidade, analisando-a. Na verdade, a
sociologia aflora os aspectos sociais significativos das artes, pois, as artes tratam, em última
instância de temas e símbolos sociais, cujos significados, sua partilha ou não, são do interesse
da sociologia. Cá estão as interacçães de que a sociologia procura dar conta.
Dissemos algures que a arte pública pressupunha uma interacção entre o artista, o espaço
físico definido como público, os decisores políticos e gestores de tais espaços locais.
Adiantamos também que tanto uns quanto outros são elementos sociais que têm como
denominador comum a noção de cidadania. Aventamos que, no caso, estava em jogo uma
cidadania específica que se definia como o pensar e o agir que concorrem para a estruturação
duma racionalidade estética consubstanciada nos espaços e esfera públicos.
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Ora, no caso moçambicano, não é assim tão linear. Se olharmos para a história recente de
Moçambique veremos que podemos divisar dois tipos de cidadania, ou pelo menos dois tipos
de participação e intervenção em termos de arte pública, que coincidem com
períodos
caracterizados pelo tipo de regime político-económico vigente: O primeiro período vai de
1975 a 1986 portanto, o correspondente ao chamado samorismo, caracterizado pelo
monopartidário autocrático de tipo centralismo democrático; e o segundo período que vai de
então aos dias que correm, a chamada época da neo-liberalização caracterizado por uma maior
abertura multipartidária e maior tolerância pela diferença de opinião. A próxima secção trata
de caracterizar e discutir cada um desses períodos.
3- As estrelas de Moçambique: o caso da cidadania mimética monopartidarizada (19751986)
Como dissemos anteriormente, o primeiro período vai de 1975 a 1986 e é caracterizado por
um tipo de cidadania a que chamo de cidadania partidarizada. Neste período a participação era
feita nos moldes do chamado centralismo democrático, tal como concebido na cartilha
praxiológica marxista-leninista, nos termos da ditadura dum proletariado que nem sequer
existia no caso de Moçambique. De qualquer modo, havia um “partido de vangaurda da
aliança operário camponesa” que regia o país nos moldes de partido-estado. Neste tempo
havia os que discutiam sobre o que fazer, como, e onde em termos de arte pública, mas não
propriamente na esfera pública, era uma discussão excludente, intra partidária. A regulação
estética era nos mesmos moldes obedecendo a canônes ideológicos e de um neo-realismo de
tipo socialista.
A cidadania monopartidarizada é caracterizada pelo facto de dar primazia a uma acção
intencional de adequação de meios a fins com vista a aquisição, extensão e manutenção de
poder político, mesmo que a acção fosse no campo artístico vazando o seu objectivo: a arte de
per si. Assim, acto contínuo, a arte como forma de saber e fazer específico, é nestes termos
secundarizada. Quer dizer que a vontade de poder se sobrepõe a vontade de saber, se
atendermos a que a arte é forma de saber, tal como concebida por Bachelard no seu
Racionalismo Aplicado. Já me explico. A vontade de poder (volonté du pouvoir) é esse
processo volitivo com vista a acção e fins políticos, tal como concebida por Foucault.
A vontade de saber (volonté du savoir), também conceito foulcauldiano, na concepção de
Bachelard, enfatiza a arte como forma de conhecimento da realidade social, cujo devaneio
deve ser tido em conta, a par do rigor científico. Portanto, o artista, esse escultor, pintor,
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poeta, bailarino, cantor, do social, do económico, do político, etc, que pode fazê-lo de forma
onírica ou na sua concretude, é subalternizado pelo político, sendo este quem estrutura,
concebe e agencia o que será chamado de arte pública, por exclusão.
Nestes termos, se era esperado que neste período houvesse discussões sobre os ícones, as
simbologias, os materiais, as formas, etc, a constarem dos espaços públicos, em Moçambique
não acontece(u) assim. O discurso ideológico apropriou-se, gradualmente, da imaginação
artística através dum processo de imposição duma iconografia de tipo socialista (Mira:2004),
pelo menos durante o samorismo (1975-1986). O que era decidido centralmente como
esteticamente correcto era reproduzido ao longo do país, ao sabor da lealdade e obediência ao
“príncipe”. É assim que surgem, por exemplo, os monumentos alusivos ao quinquagésimo
aniversário de Samora Machel, entre outros.
3.1. A estrela do Maputo versus as restantes estrelinhas
Quem conhece Maputo, e se cá tiver chegado de avião, certamente terá
passado pela
sumptuosa estrela da Praça dos Heróis Moçambicanos. Ora, essa estrela, concebida por
arquitectos, escultores, pintores, tudo feito com intencionalidade paisagistica, é um ex libris
da capital moçambicana.
Para além de cumprir uma função ideológica, é defensável que ela foi dimensionada com fins
estéticos: A Praça, ostenta esculturas e instalações de Malangatana e outros artistas, em metal
e outros materiais, que conjugam muito bem com o mural colectivo, lateral, pintado
colectivamente por nomes sonantes das artes plásticas moçambicanas. Essa disposição de
objectos artísticos causa pasmo e irradia esplendor, características definidoras de uma estética
consentânea com formas e perspectivas que preenchem volumes e harmonizam com o espaço.
A estrela foi concebida em mármore, o que para além de resultar bonito, confere dignidade à
obra, sobretudo à noite, quando a luz é derramada das suas frestas desenhadas de propósito.
Já não se pode dizer o mesmo das réplicas dessa estrela do Maputo, que ocorrem
Moçambique adentro, como por exemplo, na vila da Namaacha e Moamba (província de
Maputo), na cidade de Chimoio (província de Manica) ou em Mogincual (província de
Nampula). Construidas em cimento, e sem as devidas dimensões, nem perspectivas, elas são
imitações do género kitsch/Gadget que enchem de nadas as praças onde se encontram.
Podemos concluir que tal arte é feia, mesmo que o sociólogo alemão Simmel diga que “o
mais baixo, o que em si é feio, está integrado num jogo de cores e formas de emoções e
vivências que lhe conferem sentido”.
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Provavelmente, não deve ter ocorrido a Simmel a ideia segundo a qual os gostos se discutem,
contrariamente ao que diz o adágio popular. Mais, os gostos representam estilos e modos de
vida, o que, diferencia, segmenta, e por isso, revela opções estéticas distintas.
Compreendo que essas “estrelinhas” cumpriram, ao tempo, funções ideológicas. Não posso
dizer o mesmo em relação à função estética. Portanto, essas estrelinhas são feias do meu
ponto de vista, pois, são autênticos mamarrachos desfocados e embutidos à força nos espaços
onde foram implantados, revelando má harmonia de cores (no caso as cores não preenchem os
volumes). O mesmo se pode dizer em relação às formas, isto é, as linhas não evocam a forma.
Tratar-se-á de Surrealismo? Desconstrução? Alguma Posmodernice?
Não sabemos. No mínimo são-nos sugeridas pelo menos duas inquietações: Porque é que
acontece tal “desconstrução”, tal “pós-modernice”, na concepção dessas praças , se se trata do
mesmo país, na mesma época ideológica, e num mesmo momento regulador estético?
Se a lógica era o mimetismo, porque é que não foi reproduzido nos outros pontos do país o
procedimento, os materiais, a composição, a recepção da luz e a perspectiva da Praça dos
Heróis, do Maputo?
Assim, somos induzidos a concluir que o que foi feito foi-no por outros fins diferentes do da
praça do Maputo, e com critérios estéticos diferentes.
3.2- Praça André Matssangaísse: um caso de monopartidarismo numa situação de
multipartidarismo
Transposta para os dias que correm, e tendo em conta a autarcização de Moçambique,
decorrente da constituição da segunda República (1990), é verdade que começam a surgir
outros ícones e outras simbologias que não estão sob a alçada estético-reguladora do partido
no poder central. Por isso, tomam lugar outros ícones adstritos aos poderes locais que não são
necessariamente da mesma cor política do partido no poder central. Temos como exemplo a
Praça André Matssangaíssa, na Beira, autarquia sob égide da oposição (Renamo) que foi
erigida no quadro legal autárquico, o que causou algum celeuma nas hostes do partido
maioritário, a Frelimo, pois trata-se de um herói “contracultural”, portanto, “desviosionista”
do ponto de vista dos critérios frelimistas, e por conseguinte, muito propenso àquilo que os
sociólogos chamam de teoria da rotulação. No entanto, esses novos ícones e essas novas
simbologias também não foram negociadas no sentido de esfera pública e, portanto, de
apropriação pelos cidadãos munícipes.
Seja como fôr, a praça passou a ostentar o nome de André Matsangaísse, o que causou
desconforto, porque, para uns, Matsangaísse é herói. Para outros, é “bandido armado”,
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fundador do movimento que levou a cabo uma guerra civil de 16 anos e que dilacerou o país
vandalizando as infra estruturas e as suas gentes. Não é sem razão o refrão duma canção
popular muito propalada ao tempo: “Hloko ya Matsanga i matekenha!” ( O que quer dizer ,
literalmente o seguinte: a cabeça de Matsanga(isse) é cabeça de matequenha”, um pequeno
parasita, irritante, que se aloja entre os dedos dos pés e que se mata pela cabeça).
A implantação da praça gerou algumas discussões à partir da própria Beira na assembleia
municipal onde a Renamo tem mais assentos que a Frelimo. Daqui a discussão passou para o
plano dos jornais tomando outro cariz a nível nacional. A discussão passou para a questão de
se saber quem é, e quem deve ser herói em Moçambique, discussão essa nunca antes
levantada no período do samorismo, uma vez que isso era determinado dentro do partido
Frelimo sob seus próprios critérios pouco transparentes, ou pelo menos pouco publicitados.
Contudo, se quisermos construir um tipo ideal do herói construido pela Frelimo há pelo
menos dois critérios que podemos deduzir:
1. Ter morrido durante a luta armada;
2. Ter sido até à data da sua morte fiel aos princípios da linha política da Frelimo.
Ora, parecem ter sido estes os critérios também seguidos pela Renamo:
1. Matssangaísse morreu durante a luta armada por ela empreendida nos dezasseis
anos que durou. Aqui não está em discussão nem as motivações, tão pouco a
génese pouco clara da Renamo.
2. Segundo os argumentos da cúpula da Renamo Matssangaísse não só foi o seu
fundador como também sempre se manteve fiel aos seus princípios, tendo aliás,
perecido em combate contra as tropas do governo da Frelimo “inimigo comunista
que visavam aniquilar para implantar a democracia”.
Parece residir aqui, um campo fértil para a sociologia empreender e ajudar a compreender e
explicar esses fenómenos identificando e comparando as duas lógicas estruturantes da (s)
realidade(s) social(s) relacionadas com tais fenómenos.
Em jeito de conclusão
Esticada que foi a tela, pintámos da cor que melhor nos pareceu ser o quadro pretendido sobre
sociologia, arte pública e cidadania em Moçambique. Quanto às cores da sociologia,
pretendeu-se demonstrar como esta área do saber compreende e explica o fenómeno arte
pública. De igual modo passamos uma pincelada sobre as discussões que estão em curso em
Moçambique que opõem visões distintas sobre conteúdos, formas, técnicas e modalidades.
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Concluimos, por ora, que as discussões no fundo são efémeras, uma vez que a condição de
pós-tradicionalidade subjacente é comum a todos os grupos em “contenda”, se bem que o
grupo Muvart seja o único que possui um manifesto escrito explícito.
Sobre a relação que se estabelece entre arte pública e a cidadania na esfera e lugares públicos
em Moçambique pode-se considerar que ela é problemática. Podemos, contudo, divisar dois
momentos distintos que se caracterizam nos seguintes termos:
1. O período que vai de 1975 a 1986 que se caracteriza pela vigência do samorismo.
Neste, a arte pública foi tratada sem o devido debate na esfera pública. Por isso, as
decisões sobre o que fazer, onde e como em termos de arte pública, foram tomadas por
fechamento, denunciando assim um déficit de participação dos utentes dos espaços
físicos sobre os quais recairam as intervenções artísticas.
Durante este período, as acções no âmbito da arte pública foram levadas a cabo sem
que tivesse havido discussões na esfera pública. Por conseguinte, houve grupos e
interesses sociais que se hegemonizaram na concepção e implementação da arte em
espaços públicos. Paralelamente, ocorreram imitações das decisões estéticas tomadas
pelos decisores políticos representantes do grupo em apreço e pelos seus
correligionários, noutros lugares, com vista a atingir fins políticos, em termos de
lealdade e de obediência a uma certa disciplina partidária centralizante,
independentemente das opções estéticas.
2. O período que vai de 1986 até aos dias que correm onde, embora caracterizado por
uma situação de maior abertura política, a decisão por fechamento se manteve.
Portanto, a questão do déficit de participação, por indução, também. Assim, mesmo
com as mudanças estruturais a ela inerentes o assunto não muda de figurino. Se bem
que, grosso modo, comecem a aparecer novas propostas e outros grupos de cidadãos
interessados em dar outro cariz à questão, no entanto, continua a haver em algumas
autarquias a reprodução da lógica política de gestão e estruturação, a la mode du
ancien regime, mesmo que esses espaços estejam sob alçada de partidos de cor
política diferente. Tal é o caso da praça André Matssangaisse, na Munhava, Beira,
erigida nos mesmos moldes excludentes.
Finalmente, podemos concluir que nos dois períodos há uma lógica de dominação na qual o
campo político se sobrepõe ao artístico, e faz uso da simbologia produzida pelo último, na sua
acção político-programática.
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Nestes termos, a Sociologia pode desempenhar
papel interessante na compreensão e
explicação do fenómeno, uma vez que este campo do saber trata de estudar o social,
“relações que se definem no enfrentamento entre grupos, sistemas de interesses e teses
antagonistas” (Bourdieu:2002:32). Portanto, a Sociologia pode explicar como se estrutura,
não só o que se faz, mas o que se diz em termos de arte pública, estabelecendo relações de
causalidade entre as concepções, interesses e objectivos dos actores envolvidos, e o que, em
resutado disso, é construido como sendo arte pública.
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