A Bolívia, Honduras e o resto do mundo José Luís Fiori Primeiro foi a Bolívia, mas duas semanas depois, o novo presidente de Honduras, Manuel Zelaya Rosales, também anunciou sua intenção de renegociar contratos e "preços justos" com as empresas petroleiras instaladas no seu país (O Globo, 13 de maio de 2006). Um fenômeno que vem se repetindo em quase todos os países exportadores de recursos energéticos, que nacionalizam suas empresas ou refazem seus contratos, desde que os preços do petróleo dispararam no mercado internacional. O caso mais importante foi, sem dúvida, o da reestatização da empresa Gazprom, em 2004/2005, que recolocou a Rússia na condição de "gigante mundial da energia". Mas este também foi o caminho tomado pelos governos da Nigéria, do Casaquistão e pela própria Grã Bretanha, que aumentou em 10% seus impostos sobre o petróleo do Mar do Norte no início de 2006. A mesma política que agora está sendo discutida dentro da União Européia e que já foi aprovada pelo Congresso americano, que decidiu recentemente "punir as empresas que rejeitem uma mudança nos seus contratos de operação que dará ao governo uma fatia maior dos lucros com o petróleo" (Valor, 22 de maio de 2006). Uma decisão que já havia sido tomada pela Venezuela e que está sendo negociada, neste momento, pelo Equador. Portanto, o que se vê, por todo lado, é uma tendência geral, que o "New York Times" identificou como uma "ressurgência mundial das políticas nacionalistas" (6 de maio de 2006). Confirmando esta hipótese, há algumas semanas o ministro japonês Shinzo Abe provável sucessor de Junichiro Koizume - denunciou em entrevista ao jornal "Financial Times", o "renascimento do nacionalismo asiático" (28 de abril de 2006), em particular na China e na Coréia, exatamente os dois países onde mais se tem criticado - na direção inversa - a volta do "nacionalismo japonês". Quase ao mesmo tempo em que o vicepresidente americano, Dick Cheney, acusava a Rússia, no último dia 5 de maio, de usar seus recursos energéticos com objetivos nacionalistas e expansionistas. Enquanto o ministro da Defesa polonês, Radek Sikorski criticava a Alemanha e a Rússia por estarem construindo um gasoduto entre os dois países, através do Mar Báltico, que exclui a Europa Central e que, segundo ele, relembra o acordo de 1938, entre Molotov e Ribbentrop ("FT", 4 de maio de 2006). Por outro lado, dentro da própria União Européia, multiplicaram-se recentemente as políticas defensivas e as intervenções dos governos para impedir aquisições e fusões empresariais que possam "desnacionalizar" suas empresas energéticas, como no caso mais surpreendente do veto inglês à compra, pela Gazprom, da Centric PLC, a maior distribuidora de energia do Reino Unido. Em artigo recente, Matthew Lynn, da "Bloomberg News", fala explicitamente da "volta do nacionalismo europeu" e denuncia o fato de as "economias européias estarem se conservando obstinadamente nacionais" (Valor, 4 de abril de 2006). Como explicar esta inflexão nacionalista tão rápida e universal? Parece tratar-se de um fenômeno de mais longo prazo e que não tem uma causa única. Mas de forma mais imediata, no curto prazo, não há dúvida que essa onda vem sendo alimentada pelo problema da segurança energética da nova máquina de crescimento mundial, liderada pelo eixo entre EUA, China e Índia. Juntos, esses dois países asiáticos detêm um terço da população mundial e vêm crescendo nas duas últimas décadas a uma taxa média de 6% a 10% ao ano, com previsão de que até 2020 a China deverá aumentar em 150% o seu consumo energético e a Índia, em 100%, se mantidas suas atuais taxas de crescimento econômico. A China já foi exportadora de petróleo, mas hoje é a segunda maior importadora do mundo, para atender um terço de suas necessidades internas. No caso da Índia, sua dependência do fornecimento externo de petróleo é ainda maior que o da China e nos últimos 15 anos passou de 70% para 85% do seu consumo interno. Ao mesmo tempo, o Japão e a Coréia seguem sendo grandes importadores de energia, o que explica sua corrida conjunta e competitiva em direção à Ásia Central, África e até mesmo à América Latina. O Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres atribui a esta mesma disputa energética a recente reestruturação naval e a presença militar crescente dos chineses e indianos no Mar da Índia e Oriente Médio. No outro lado do "eixo", os Estados Unidos seguem sendo os maiores consumidores de energia do mundo, e vem deslocando seu fornecimento para dentro de sua zona de segurança estratégica, no México e no Canadá, ou mesmo na Venezuela. Mas apesar disto, seguem atuando de maneira ofensiva e "nacionalista", em todo mundo, buscando um acordo estratégico de longo prazo com a Rússia, e tentando garantir o controle dos novos territórios petrolíferos da África subsahariana e da Ásia Central. Nesta luta, a Europa entra como "primo pobre" depois que a Grã-Bretanha voltou a sua condição de importadora de petróleo, enquanto o resto da União importa da Rússia, hoje, 49% do seu gás, e deverá estar importando da mesma Rússia, algo em torno de 80%, por volta de 2030. Por isso, em compensação, a Rússia vem ressurgindo como potência, com mais rapidez do que era esperado, não apenas por deter o segundo maior arsenal nuclear do mundo, mas também ser a fornecedora de energia, também, da China, Índia e Estados Unidos. Olhando desta forma para a Bolívia e Honduras, o que se vê, em última instância, é que a globalização do capital acabou globalizando a demanda e a disputa pelos recursos energéticos, e provocou um aumento de preços que pode e deve se sustentar por muito tempo, o que fortalece a posição econômica e estratégica dos países exportadores de recursos energéticos. É esta tensão que está por trás da nova "onda nacionalista" e tudo indica que veio para ficar por um bom tempo, empurrando as Grandes Potências na direção da sua velha luta pela conquista e monopolização de novos "territórios econômicos" supra-nacionais. Este tufão está no início, mas já paralisou a União Européia, atropelou o Mercosul e deve enterrar brevemente os sonhos liberalizantes da Rodada Doha. Enquanto isto, e apesar de tudo isto, a "idiotia conservadora" segue falando de "populismo latino-americano". José Luís Fiori é professor titular do Instituto de Economia da UFRJ. Escreve mensalmente, às quartas-feiras, no jornal Valor Econômico. Este texto foi publicado no dia 24 de maio de 2006.