Administração de Justiça e expansão de democracia María del Carmen Cortizo Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Professora do Departamento de Serviço Social, CSE, UFSC e-mail: [email protected] As demandas por uma administração de justiça mais rápida e eficiente são reivindicações permanentes de setores cada vez mais amplos da sociedade (SADEK, 2001). Entretanto, o número de estudos provindos das ciências sociais não acompanha esta realidade. Segundo Sadek e Arantes (1994: p. 36), levantamentos bibliográficos mostram que esta é uma área pouco trabalhada nas ciências sociais, o que se deveria ao que Slotnick1 denomina a esquizofrenia deste campo de estudo definida pelas seguintes características: o estudioso do Judiciário possui uma perspectiva multidisciplinar; vive abundantes tensões devidas à falta de consenso sobre a especificidade do seu trabalho; a legitimidade dos seus estudos e a sua credibilidade são colocadas em questão já que deve reinterpretar conceitos típicos da teoria jurídica; ele “cria um espaço de interconexão entre áreas, no qual juristas e cientistas sociais sentem-se pouco confortáveis” (SADEK-ARANTES, 1994: p. 36). Zaffaroni (1995: p. 31), por sua vez, também se refere às dificuldades do trabalho teórico nesta área, apontando para o fenômeno que denomina “inibição dos teóricos”, produzido por diversos fatores, entre eles: a) o descrédito político do tema, já que “o matiz ‘político’ do problema escapava ao ilustre cientista, que dentro de uma tradição ainda mais ligada ao neokantismo proporciona trabalhos de pura investigação jurídica”; b) a falta de interesse – por ser considerado um assunto subordinado – dos setores críticos da esquerda minimiza conseqüentemente o atrativo acadêmico; c) a falta de incentivos, e até a rejeição das análises teóricas pelos próprios operadores jurídicos envolvidos na administração de justiça. A essas considerações devemos acrescentar como obstáculo ao desenvolvimento de análises críticas algumas particularidades próprias do objeto em questão: o Judiciário é uma organização fortemente corporativa, fechada ao debate sobre os seus métodos e princípios de funcionamento. 1 Elliot E. Slotnick, “Judicial Politics”, in William Crotty (ed.), Political Science: Looking to the Future, vol. IV, cap. 3, Evanston, Illinois, Northwestern University Press, 1991. Em: Sadek- Arantes, 1994: p. 36. 1 O mundo da administração de justiça é um mundo sobre o qual pouco sabemos, embora seja o único espaço legitimado dentro do Estado para resolver de forma pacífica os conflitos surgidos nas relações sociais. É atravessado pelos rituais do processo, pelos brocardos em latim, pelo vestiário imposto não somente aos juízes, mas também a qualquer mortal que pretenda entrar no recinto dos tribunais. Às vezes temos a sensação de estarmos muito mais ante o Colégio dos Pontífices da Roma antiga do que ante um tribunal de juízes do século XXI. De alguma maneira a função do juiz jamais deixou de ser concebida, na cultura jurídica, como um verdadeiro sacerdócio. Esta constatação não é uma novidade, já nos textos que sobre o exercício jurisdicional Calamandrei começa a produzir na década de 1930 (1998: p. 257-258) podemos ler: Estou cada vez mais convencido de que entre o rito judiciário e o rito religioso existem parentescos históricos muito mais próximos do que a igualdade da palavra indica. Quem fizesse um estudo comparativo do cerimonial litúrgico e das formas processuais perceberia na história certo paralelismo de evolução. Quase se poderia dizer que, nos tribunais e nas igrejas, a religião degenerou em conformismo. A sentença era, originariamente, um ato sobre-humano, o juízo de Deus; as defesas eram preces. Mas com o passar dos séculos o espírito voltou para o céu, e na terra só ficaram as formas exteriores de um culto em que ninguém mais acredita. Ao assistirmos ao cansaço distraído de certas audiências, somos levados a pensar na indiferença com que tanta gente boa, nos feriados religiosos, continua indo à missa por força do hábito e para ostentar em público uma fé que já não tem no coração. (...) Também nas cerimônias do processo se nota certa diferença entre crentes e carolas, entre religiosos e conformistas, entre a humilde fé na justiça e a faustosa carolice judiciária. A permanência de formas exteriores consolidadas na tradição legitima a cultura jurídica contemporânea pelo seu engajamento histórico com uma versão formalizada do passado, embora se trate de “formas exteriores de um culto em que ninguém mais acredita”. Quando o positivismo jurídico do século XX entra em cena não rompe com os velhos rituais, na verdade os incorpora outorgando-lhes um novo significado: o dogma do direito natural – de índole religiosa ou racional – se transmuta no dogma da norma jurídica. Aqui se articulam dois elementos da cultura jurídica surgidos em tempos históricos diferentes: o elemento novo – no caso o positivismo jurídico – que ao torna-se hegemônico, redefine o elemento antigo – o formalismo do passado – e o incorpora dentro da sua própria lógica. O lugar teórico do direito natural, enquanto instância legitimadora da ordem jurídica e política do Estado moderno, é ocupado pela norma positiva hierarquicamente organizada. O culto metafísico deixa lugar ao culto científico. Assim a permanência dos rituais tradicionais se torna um dos elementos de continuidade histórica justificadora. 2 A visão tecnicista e dogmática provinda do paradigma positivista hoje hegemônico na teoria jurídica traz como conseqüência necessária – já que é um dos seus pressupostos teóricos mais prezados – uma visão avalorativa do direito. A formação dogmática recebida pelos magistrados, e pelos operadores jurídicos em geral, provoca o isolamento dos juízes com respeito à realidade social que existe para além dos autos. O excessivo formalismo dos procedimentos, por sua vez, impede às pessoas “leigas” de compreender os labirintos legais dentro dos quais os juízes ficam protegidos, mas também prisioneiros. Como é expressamente reconhecido: Cumpre recordar, ainda, que a entidade surgiu das próprias inquietudes despertadas pela administração da justiça em nosso país. É alto o preço que pagamos pela falta de eficiência e pela falta de visão crítica dos conflitos, decorrente de nossa própria formação tecnicista e dogmática. É alto o preço pago pelo nosso isolamento, gerado por aqueles problemas e também pela dificuldade de acesso das camadas mais pobres à prestação jurisdicional, pelo excessivo formalismo do sistema processual e pela dificuldade da população de entender o funcionamento da máquina judicial. (Boletim Oficial da AJD. ano 1, N 0, set. 1993) O esforço do positivismo jurídico por criar uma ciência do direito, seguindo o paradigma moderno das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais, é a negação de qualquer reflexão científica que pretenda ocupar-se dos problemas valorativos do direito. A ciência jurídica deve ser um tipo de conhecimento que não realiza juízos de valor, limitando-se à enunciação de juízos de fato. Segundo esta perspectiva os juízos de valor são subjetivos e envolvem uma tomada de posição frente à realidade, seu objetivo é influir na conduta das pessoas; já os juízos de fato – que são objetivos – somente são uma tomada de conhecimento da realidade, com a finalidade de informar sobre o observado. O positivismo jurídico – como aponta Bobbio (1995: p. 136) – representa: (...) O estudo do direito como fato, não como valor: na definição do direito deve ser excluída toda qualificação que seja fundada num juízo de valor e que comporte a distinção do próprio direito em bom e mau, justo e injusto. O direito, objeto da ciência jurídica, é aquele que efetivamente se manifesta na realidade histórico-social; o juspositivista estuda tal direito real sem se perguntar se além deste existe também um direito ideal (como aquele natural), sem examinar se o primeiro corresponde ou não ao segundo e, sobretudo, sem fazer depender a validade do direito real da sua correspondência com o direito ideal. Segundo Kelsen (1987: p. 56-60): El derecho positivo y la moral son dos órdenes normativos distintos uno del otro. (...) Desde el punto de vista de la moral la norma jurídica es buena o mala, justa o injusta. Hay aquí un juicio de valor emitido sobre la base de una norma moral y, por consiguiente, extraño a la ciencia del derecho. (...) Los únicos juicios de valor que la ciencia del derecho podría pronunciar teóricamente son aquellos que comprueban la conformidad u oposición entre un hecho y una norma jurídica. 3 La ciencia del derecho no puede declarar que tal orden – o tal norma jurídica – es justo o injusto, pues tal juicio se funda, ya sea en una moral positiva, es decir, en un orden normativo diferente e independiente del derecho positivo, o en un verdadero juicio de valor, con carácter subjetivo. No mesmo sentido: A sua tarefa (da ciência) é analisar objetivamente as diversas normas que os homens consideram válidas quando valoram algo como “justo”. Como ciência, não tem de decidir o que é justo, isto é prescrever como deveremos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor. (KELSEN, 1993: p. 16) Dentro da coerência que caracteriza a teoria positivista kelseniana, a função de aplicar as normas jurídicas, ou jurisdição, reveste-se das seguintes características (KELSEN, 1987: p. 151152; 1934: p. 107-108): 1- a jurisdição é analisada junto com a função administrativa do Executivo, já que ambas aplicam normas jurídicas gerais aos casos particulares, produzindo normas jurídicas individuais: 2- a jurisdição se diferencia da administração devido a algumas particularidades: a) por razões históricas, os tribunais gozam de independência; b) a jurisdição persegue os fins do Estado de maneira indireta: 3- a jurisdição cria direito no ato de individualizar a norma geral e abstrata, na resolução do caso concreto: 4- a jurisdição, considerada como parte das funções executivas do Estado, deve encontrarse alheia à luta política, luta que se circunscreve ao âmbito legislativo. Quando uma lei é promulgada, são fixados nos seus conteúdos os valores e os interesses políticos que acabaram prevalecendo nas discussões no trâmite legislativo. Depois dessa instância se fecha a possibilidade destes valores ou interesses interferirem na função de aplicação das normas (seja esta administrativa ou jurisdicional). A partir desta caracterização da função jurisdicional, os juízes devem limitar-se a aplicar as normas; mas, pelo fato dessas normas serem gerais e abstratas, o problema que aparece, no momento de realizar a operação de subsunção do caso particular no preceito jurídico geral, é decidir qual das várias interpretações possíveis seguir a fim de não introduzir elementos axiológicos ou políticos na resolução judicial do conflito. Existem diversos métodos de interpretação das normas jurídicas (gramatical, lógicosistemático, histórico-evolutivo, teleológico). Porém, Kelsen somente aceita os métodos 4 gramatical e lógico, ou qualquer outro que não apele para circunstâncias exteriores à norma ou ao ordenamento jurídico considerado como uma totalidade auto-suficiente: La regla de derecho establece una relación entre una condición y una consecuencia, afirmando que si la condición se realiza, la consecuencia debe ser . Pero esta expresión “deber ser” está desprovista de todo sentido moral. Tiene un sentido puramente lógico. (KELSEN, 1987: p. 68) Segundo esta teoria, existe a possibilidade de se atribuir a uma mesma norma jurídica mais de um significado – sempre seguindo métodos de interpretação avalorativos ou apolíticos –, porém, resulta impossível definir cientificamente qual é o significado que se deve adotar na aplicação dessa norma, esta definição fica por conta da decisão individual do juiz. Como aponta Coelho (1995: p. 54-55): Isto porque a definição como correto de um dos muitos sentidos que a norma jurídica pode ter é, sempre, ato de vontade e nunca de conhecimento. A própria ciência do direito, ao postular que determinada norma apenas se pode interpretar de um certo modo também perde o seu caráter científico, também realiza o ato volitivo. Para Kelsen, o objetivo do conhecimento científico do direito é o de simplesmente apresentar aos órgãos aplicadores do direito as alternativas de sentidos que, sob o ponto de vista do método científico, são oferecidas por uma norma jurídica em particular. (...) E, assim sendo, a teoria pura acaba por reservar à ciência do direito uma função de importância no mínimo questionável, porque reconhece, de um lado, a multiplicidade de significações que se pode agregar à norma jurídica, mas, por outro lado, ignora os determinantes desse fato, ao prestigiar o corte epistemológico fundamental. Resta ao cientista do direito apenas a tarefa de elencar os diferentes modos de se entender as normas vigentes, oferecendo o cardápio assim confeccionado ao desfrute dos órgãos aplicadores do direito. Uma das manifestações da fortíssima influência do positivismo jurídico kelseniano no âmbito da administração de justiça brasileira é o medo à política que às vezes aparece transvestido na defesa do princípio de independência do Judiciário. Estas questões nos interessam particularmente desde que os juízes realizam a expansão da cultura jurídica fundamentalmente – quase exclusivamente – através das suas práticas no processo judiciário. Não resulta possível pensar em uma reformulação da cultura jurídica dos cidadãos separadamente de uma transformação da cultura jurídica, não somente dos juízes, mas dos operadores jurídicos no seu conjunto, que são, em definitivo, os seus principais veículos de expansão. Neste contexto, e sem esquecer das limitações apontadas, propomos uma análise da administração de justiça sob o aspecto da sua capacidade de difundir certas práticas vinculadas a determinados valores sociais, ou seja, de expandir cultura jurídica. No bojo desta discussão entendemos por cultura jurídica – compreendida dentro do âmbito mais amplo da cultura política – aquele processo social de conformação das orientações axiológicas e práticas diante do direito. As pessoas têm uma visão do que seja o direito a partir da maneira como os seus direitos são efetivamente conhecidos e exercidos: assim o titular de um direito tem a percepção de que 5 pode exercer esse direito plenamente quando, diante da violação ou a não efetivação de um direito formalmente declarado em lei, aparece para ele a possibilidade real de obter uma reparação do dano sofrido ou a efetivação do seu direito mediante a intervenção dos órgãos pertinentes da administração pública. Nessa percepção empírica do funcionamento efetivo dos direitos as pessoas constroem a própria concepção do mundo jurídico que integra o senso comum que todo sujeito possui e, portanto, imprimem uma dinâmica própria aos processos de transformação social dos quais participam, seja no que diz respeito aos fins que se pretende atingir quanto aos meios considerados adequados para alcançar tais fins (SANTOS, 1988), já que as concepções de mundo são parte e fundamento das práticas sociais (GRAMSCI, 1981; NUN, 1989). Por este ponto de vista, a questão dos direitos é redefinida. Em primeiro lugar, é abandonada a matriz do individualismo possessivo e a idéia da existência de direitos naturais anteriores à sociedade política; os direitos se constroem historicamente porque nunca são individualmente exercidos, eles não existem isoladamente, mas sempre inseridos nos complexos de relações sociais que os definem. Os indivíduos concretos, na sua expressão cotidiana, interpretam, mudam e criam símbolos e significados. Nesse processo é que “acontece”, se constitui e se desenvolve a dinâmica da cultura (THOMPSON, 1981; WILLIAMS, 1980). Dinâmica que pode ser regressiva ou progressiva segundo tenda a produzir sujeitos sociais subalternos ou sujeitos autônomos, respectivamente. Tratando-se da articulação da administração de justiça em um projeto radicalmente democrático, a crítica necessária deve incorporar ao direito não apenas elementos provindos de outras ciências, mas também de outras áreas de elaboração racional como o bom senso, no sentido de Gramsci, a fim de que a democracia se expanda através da reforma intelectual e moral da sociedade. Este conceito de origem gramsciana nos permite pensar articuladamente a administração de justiça e os outros espaços em as relações sociais se desenvolvem formando parte de um processo material único sem que seja necessário apelar para o conceito de ideologia. Deste ponto de vista, a atividade jurisdicional que se autodenomina como despolitizada, neutra, acrítica, não é qualificada como ideológica, mas considerada uma atividade inserida em um projeto hegemônico conservador não expansivo de democracia. Evita-se por este meio a 6 armadilha de separar a realidade jurídica entre atividades não ideológicas (verdadeiras) e atividades ideológicas (falsas). Mas o paradigma herdado do modelo da ciência moderna ainda predominante – do qual o positivismo jurídico faz parte – impede alternativas de projetos de mudança social que pretendam a incorporação transformadora do senso comum ou de concepções de mundo consideradas não científicas. Como diz Nun (1989: p. 99): “éste es finalmente el asunto: en política, toda discusión sobre el sentido común es una discusión sobre la democracia”. Mas o inverso, podemos acrescentar, também é verdadeiro: toda discussão sobre a democracia deve ser uma discussão sobre o senso comum. No sentido da argumentação de Nun (1989: p. 99): Tanto en el Este como en el Oeste, la retórica política acabó apropiándose del argumento de Rousseau: la ley debe fundarse en la voluntad popular y no en una razón iluminada porque únicamente pueden ser obligados por ella, como personas libres, los hombres y las mujeres que contribuyen a hacerla. Sólo que asistimos a una profecía autocumplida: por un lado, las diversas formas de institucionalización de la política han coincidido en una desvalorización sistemática de los componentes de sentido común de esa múltiple y heterogénea voluntad popular; y, por el otro, la falta de información y el escaso interés por la política del ciudadano medio son esgrimidos como justificación palmaria de los propios mecanismos que en gran medida los provocan, esto es, como prueba de la inviabilidad de una democracia genuinamente participativa. (...) Repensar las relaciones entre las teorías sociales, las ideologías políticas y el sentido común popular me parezca condición necesaria para una búsqueda de alternativas institucionales que, al darles una materialidad respetuosa de su autonomía relativa, faciliten “transiciones auténticas” que permitan su comunicación y su confrontación. O senso comum, enquanto conceito, surge no século XVIII e representa o combate da burguesia contra o ancien régime. O senso burguês se apresenta como um senso natural, razoável, prudente, e acaba por converter-se no senso médio e universal. Contra esse senso comum lutam as ciências sociais nascidas no século XIX, em uma complexa relação de aceitação-rejeição. Algumas correntes teóricas salientaram seus aspectos positivos, como o conceito de consciência coletiva elaborado por Durkheim, ou o conceito de opinião pública próprio da ciência política. Outras correntes, por sua vez, salientaram a negatividade do senso comum, - o exemplo mais forte neste sentido é o conceito de ideologia elaborado pela teoria marxista, que envolve também o senso comum (Santos, 1991). Dentro da tradição marxista é com Gramsci se abre a possibilidade de reconsideração do senso comum visando um projeto hegemônico de caráter socialista. O interesse de Gramsci pela cultura das classes subalternas – a “religião do povo” – e pela criação de uma nova cultura provém da certeza de que a cultura é sempre politicamente funcional aos interesses das classes. 7 Para ele o antagonismo com o capitalismo e a sua derrubada exigem a criação de uma nova visão do mundo. Nos Quaderni del Carcere2 o senso comum se refere à “filosofia dos não filósofos”, às concepções de mundo absorvidas acriticamente nos diferentes âmbitos sociais e culturais nos quais se desenvolve a individualidade moral do homem médio (QC, 1396). Cada grupo social tem o seu senso comum, a sua própria concepção de mundo difundida e aceita. Segundo Gramsci, esse senso comum é desarticulado, não pode constituir uma ordem intelectual unificada e coerente, é dogmático e conservador. Porém, isto não significa que não existam elementos de verdade nesse tipo de conhecimento; esses elementos devem ser recuperados e reconstruídos em um outro nível: através da filosofia da práxis, que se constitui como crítica ao senso comum. Assim, de acordo com Gramsci, não se trata de introduzir um conhecimento científico, uma ciência nova na vida das pessoas, mas de tornar crítica uma atividade cognitiva já existente (QC, 1383). A experiência concreta dos setores populares produz um núcleo de bom senso e é a partir desse núcleo que deve iniciar-se o processo de transformação social. O ponto de partida da filosofia da praxis é esse momento catártico de rearticulação crítica do senso comum, começando pela construção da autonomia dos setores subalternos até chegar à autonomia da sociedade entendida como totalidade, num processo de progressivo conhecimento em que se unificaram teoria e prática. Esse processo, evidentemente, não é espontâneo; uma massa humana não se torna autônoma sem organizar-se, e não existe organização sem intelectuais (QC, 1385). A tarefa desses intelectuais especialistas é tanto introduzir a racionalidade mais avançada nas massas quanto potencializar o núcleo de bom senso. Assim, a relação entre a filosofia e a sociedade é garantida pela política (QC, 1383). Como aponta Gonzalez (1981: p. 95-96): O intelectual orgânico de um grupo social subalterno que está rompendo com a rédea de hegemonias tradicionais formulará um novo projeto de relação com o senso comum, lugar onde age o “filósofo popular”. Como procederá esse intelectual diante da consciência popular? Primeiro baseia-se nela, porque todos são filósofos. Não age dizendo: “venho trazer uma ciência nova, esqueçam todo o anterior”; pelo contrário, registra a atividade cultural já existente – vestígios de todas as formas anteriores de dominação, mas também de todas as formas anteriores de reflexão que podem ter servido como instrumento para se livrar dessa dominação. E depois, “de dentro” dela, tenta torná-la crítica; de “dentro” dela... porque não há pensamentos “falsos” ou “verdadeiros” em si mesmos, mas 2 Neste trabalho seguimos, nas citações de Gramsci, os Quaderni del Cárcere: Edizione critica dell’Istituto Gramsci a cura di Valentino Gerratana. Torino: Einaudi, 1975, indicada com as siglas QC seguidas do número da página respectiva. 8 pensamentos que expressam com mais ou menos claridade a presença dos interesses de classe; no caso das classes produtivas e operárias, porque sua consciência social já contém pressupostos a partir dos quais se pode elevá-las a uma concepção superior de mundo. Esses elementos, se não estão já contidos na própria vida popular, não podem vir de nenhuma outra parte. Através deste processo de relação orgânica com os grupos intelectuais a elas vinculados, as classes subalternas poderão construir um pensamento coerente e sistemático, e o bom senso é condição necessária desse processo. A incoerência atribuída por Gramsci ao senso comum está centrada nas diferenças entre pensamento racional e pensamento vulgar, sendo este último o momento negativo do processo. O senso comum será sempre um primeiro momento incoerente e a-sistemático. A filosofia da praxis deve torna-lo unitário e coerente em sentido lógico, incorporando-o ao discurso plenamente racional Nesta mesma linha de recuperação do vínculo entre transformação superadora do senso comum e transformação social, Boaventura de Sousa Santos caracteriza o senso comum como uma racionalidade diferente da racionalidade científica. Assim, ele afirma: O senso comum faz coincidir causa e intenção; subjaz-lhe uma visão do mundo assente na ação e no princípio da criatividade e das responsabilidades individuais. O senso comum é prático e pragmático; reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um dado grupo social e nessa correspondência se afirma de confiança e dá segurança. O senso comum é transparente e evidente, desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas que estão para além da consciência, mas, por isso, é exímio em captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre as pessoas e entre pessoas e coisas. O senso comum é indisciplinar e metódico; não resulta de uma prática especificamente orientada para o produzir; reproduz-se espontaneamente no suceder quotidiano da vida. Por último, o senso comum é retórico e metafórico; não ensina, persuade. (SANTOS, 1991: p. 56) Santos (1989: p. 41) procura “salientar a positividade do senso comum, o seu contributo possível para um projeto de emancipação cultural e social”. Ora, o desenvolvimento pleno das potencialidades valiosas do senso comum somente poderá acontecer na configuração de um tipo de conhecimento que ainda está em construção. Um conhecimento que deve conciliar a ciência com outros tipos de racionalidade. Na nossa afirmação da administração de justiça como aquele complexo processo material de produção de normas jurídicas particulares que expande um tipo de cultura jurídica e também tem capacidade para transformar essa cultura, resulta indispensável o seu equacionamento dentro de um projeto de democracia plural e radical que leve em conta a reformulação do senso comum nos termos aqui colocados. Mas, como se insere a administração de justiça neste particular processo democratizador? 9 Acreditamos que um ponto de partida seja a necessidade da perda do medo à política por parte dos juizes e outros funcionários da administração de justiça. Estamos nos referindo aqui à política que se encontra implicada, em diferente medida, em todo sistema de relações sociais, que sempre envolve relações de poder. Para perder o medo à política é preciso perceber que, como anota Mouffe (1999: p. 190): “negar lo político no lo hace desaparecer, solo puede conducirnos a la perplejidad cuando nos enfrentamos a sus manifestaciones y a la impotencia cuando queremos tratar con ellas”. Em conseqüência, a mesma autora afirma que: En lugar de intentar hacer desaparecer las huellas del poder y la exclusión, la política democrática requiere ponerlas en primer plano, para hacerlas visibles, de modo que puedan entrar en el terreno de la controversia. (MOUFFE, 1999: p. 202) A política enquanto criação, reprodução e transformação das relações sociais não pode ser localizada em um determinado lugar do social. O político é o problema da instituição do social, da sua definição e articulação hegemônica no meio dos antagonismos (LACLAU-MOUFFE, 1987: p. 171). Não obstante, uma vez colocados os antagonismos sociais em primeiro plano, devem estabelecer-se os critérios segundo os quais esses conflitos devem ser resolvidos, critérios que surgem do projeto hegemônico em questão em cada caso. Nesta perspectiva, a questão da interpretação da lei adquire uma importância central. É por este motivo que aquilo que na teoria jurídica se denomina como hermenêutica, é uma questão que faz parte do problema da transformação da cultura jurídica. Segundo o positivismo, como já apontamos, são as atitudes e a capacidade próprias do juiz em definitivo as únicas garantias, para uma interpretação adequada e atualizada da lei, que oferecem seguridade aos cidadãos. Mas, as decisões judiciais são sempre decisões política. Neste sentido discorre Zaffaroni (1995: p. 92-94): A tarefa de interpretar a lei para aplicá-la ao caso concreto é árdua. Equívoca e discutível. Se assim não fosse, seriam inúteis as bibliotecas jurídicas. Não há dúvida de que, diante de certos problemas, a lei não é interpretada da mesma maneira por um conservador e um liberal, um socialista ou um democrata-cristão, mas isso não obedece a que qualquer comitê partidário lhe distribua ordens e menos ainda a corrupção. Fora qualquer patologia institucional, isso obedece a uma certa coerência necessária e saudável entre a concepção de mundo de cada um e a sua concepção do direito (que é algo que “está no mundo”). O juiz não pode ser alguém “neutro”, porque não existe a neutralidade ideológica, salvo na forma de apatia, irracionalismo ou decadência de pensamento, que não são virtudes dignas de ninguém e menos ainda de um juiz. Como bem se tem assinalado, “nem a imparcialidade nem a independência pressupõem necessariamente a neutralidade. Os juízes são parte do sistema de autoridade dentro do 10 Estado e como tais não podem evitar de serem parte do processo de decisão política. O que importa é saber sobre que bases são tomadas essas decisões”3. (...) Não há outra imparcialidade humana além da que provém do pluralismo, e este só é possível dentro de um modelo democrático de magistratura que permita os agrupamentos democráticos e espontâneos, e o controle recíproco dentro de sua estrutura. (...) Não resta dúvida de que esta função implica um exercício de poder que não pode, no mínimo, que ser político. Esta afirmação costuma produzir ardência, porque como tudo o que é relacionado ao judiciário dá lugar a gravíssimos mal-entendidos. É lugar comum a resistência frontal à “politização”, as confusões alcançam um nível máximo e verdadeiramente perigoso, freqüentemente traduzido em que esta frase feita provoque precisamente o que com ela se quer evitar. (...) Cada sentença é um serviço que se presta aos cidadãos, mas também é um ato de poder e, portanto, um ato de governo, que cumpre a importante função de prover a paz interior mediante a decisão judicial dos conflitos. Na leitura do autor, a questão da política não é obliterada, do mesmo modo já apresentado por Calamandrei, põe manifesta a impossibilidade da neutralidade judicial, e também coloca abertamente o maior problema: sobre que bases os juízes tomam as suas decisões – que sempre são decisões políticas? A resposta, para este autor, deve ser buscada no pluralismo democrático e nos controles externos exercidos pela sociedade: O certo é que os homens têm ideologias, que não podem deixar de tê-las, que os homens que se desempenham como juízes têm uma filiação política e que, ainda que privadamente, esta se expressa tanto em sua atividade extrajudicial quanto nas idéias que plasmam suas sentenças. A partidarização não é um problema que dependa do conhecimento mais ou menos público da filiação política dos juízes, senão, diretamente, um problema de independência judicial e de imparcialidade. Um juiz não é parcial porque tenha uma filiação política, mas porque depende, para sua nomeação, permanência, promoção e demissão de um partido político ou de um grupo de poder. Quando uma estrutura judiciária garante o pluralismo, evitando esta dependência, no âmbito de uma democracia com liberdade de expressão e de crítica, o controle público da atividade judiciária é facilitado, pois qualquer parcialidade será mais facilmente observada e denunciada pelos diferentes grupos de opinião, internamente, e pela opinião pública em geral. (ZAFFARONI, 1995: p. 98-99) Toda decisão judicial na resolução de conflitos significa a articulação de diferentes antagonismos sociais, não apenas daquele que está sendo julgado; portanto, toda atuação jurisdicional produz conseqüências em cada um dos espaços sociais em jogo. Toda decisão a respeito de conflitos em uma área do direito – seja trabalhista, civil, comercial, penal, ambiental, etc. – interfere em outros universos de direitos, e sobre os titulares desses direitos, embora não sejam parte formal no litígio. Cada vez que um trabalhador injustamente demitido ganha, através de um processo judicial, o seu direito efetivo à indenização declarada na lei, todos as pessoas ganham porque se reafirma o discurso da justiça social trabalhista. Cada vez que uma empresa é multada por agressão ao meio ambiente, todos as pessoas ganham porque se reafirma o discurso 3 J. A. G. Griffith. Giudici e política in Inghilterra. Milano: 1980, p. 191. Em Zaffaroni, 1995: p.92. 11 da defesa do meio ambiente. Mas é importante levar em conta que o mesmo poderia concluir-se em sentido inverso. A administração de justiça enquanto atividade voltada fundamentalmente para a aplicação do direito é veículo social privilegiado na compreensão e reestruturação do sentido do direito e dos direitos no senso comum, mas não podemos ser ingenuamente otimistas na maioria dos exemplos que cotidianamente se sucedem na prática dos tribunais se percebe a expansão de uma cultura jurídica marcadamente conservadora. O caminho para qualquer processo de transformação da cultura jurídica passa necessariamente pela democratização interna do Poder Judiciário e pela possibilidade de controle externo por parte dos cidadãos da atividade jurisdicional. Sem essas mudanças, as vias de articulação da administração de justiça em um projeto hegemônico de democracia plural e radical permanecem limitadas. REFERÊNCIAS AJD - ASSOCIAÇÃO DOS JUÍZES PARA A DEMOCRACIA (1995), Boletim Oficial da Associação dos Juízes para a Democracia, ano 1, No. 0, set. 1993. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995. CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes: vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1998. COELHO, Fábio Ulhoa “Hermenêutica Kelseniana”. Em: Beatriz Di Giorgi, et al., (coordenadores), Direito, cidadania e justiça: ensaios sobre lógica, interpretação, teoria sociológica e filosofia jurídicas. 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