e sobre a inserção dos movimentos sociais no debate

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Tatiana Tramontani Ramos – UFF-Campos – [email protected]
PERSPECTIVAS TEÓRICAS E POLÍTICAS PARA O TRATAMENTO DOS ATIVISMOS E LUTAS
URBANAS NO BRASIL
RESUMO
A produção brasileira sobre os ativismos sociais caracterizou-se pelo predomínio de
estudos de caso basicamente descritivos, com reduzida densidade teórica, ou
fundamentalmente inspirados pelo marxismo estruturalista. Poucos trabalhos eram
exceção a esse quadro e apresentavam uma reflexão teórica consistente, dialogando
criticamente com os autores estrangeiros, ou apresentando outras perspectivas teóricas e
políticas para o tratamento das lutas urbanas. Nas Ciências Sociais o debate acerca dos
ativismos sociais urbanos não é novo e, a partir das décadas de 1960 e 1970, a temática
das ações sociais coletivas é incorporada de forma sistemática às pesquisas urbanas. O
que nos motiva a retomar a questão conceitual acerca dos ativismos e movimentos
sociais, é justamente a imprecisão conceitual que está presente na literatura geográfica
acerca do tema. O ponto de partida de nossas reflexões é aquilo que vamos denominar de
protagonismo sócio-espacial. Este não é monopólio de um homem, uma instituição ou de
uma classe. É fundamental reconhecer que o protagonismo sócio-espacial não pode ser
atribuído única e exclusivamente ao Estado e ao Capital (nas suas diversas frações),
negligenciando e desconsiderando os demais.
A proposta é apresentar, sinteticamente, um conjunto de conceitos e procedimentos
metodológicos, desenvolvidos no âmbito do LEMTO-UFF e do NuPED-UFRJ, com o
objetivo de superar o caráter simplesmente empírico das pesquisas acerca dos ativismos
sociais, muitas vezes desprovidos, inclusive, de uma análise efetivamente geográfica da
ação social. Nesse sentido, vamos buscar apresentar reflexões circunscritas,
fundamentalmente, ao campo dos ativismos urbanos.
Reconhecer a espacialidade como um elemento que constitui os ativismos, leva-nos a
criar categorias analíticas a partir das próprias práticas dos ativismos e movimentos
sociais. Ao adotar esse procedimento, sustentamos uma abordagem teórico-conceitual e
metodológica, calcada na análise dos atributos dos movimentos sociais, que são os
seguintes: 1. os protagonistas; 2. os motivos/objetivos; 3. as formas de organização; 4. os
tipos de manifestações e estratégias de ação; 5. as escalas: em seu duplo aspecto, de
extensão e de qualidade/capacidade de articulação política e econômica.
As propostas e formulações apresentadas não devem ser consideradas, em hipótese
alguma, como um manual classificatório ou taxonômico das ações sociais. Não queremos
induzir o leitor a pensar que estamos advogando uma postura normativa, rígida e fechada
na qual a prioridade é a classificação das ações sociais. Longe disso. Nossa proposta é
apresentar um conjunto de formulações e instrumentos teóricos que permitam o
enriquecimento da análise geográfica dos ativismos sociais, através de ferramentas que
permitam uma análise mais consistente do conteúdo da ação social e sua espacialidade,
daí a importância de apresentar conceitos, que possam ajudar a distinguir o conteúdo dos
diferentes ativismos e suas espacialidades.
Palavras-chave: Ativismos, conflitos, espacialidade.
INTRODUÇÃO
O debate acerca dos ativismos sociais urbanos não é novo nas Ciências Sociais,
particularmente, na teoria social crítica. A partir das décadas de 1960 e 1970, a temática
das ações sociais coletivas é incorporada de forma sistemática às pesquisas, debates e
formulações de intelectuais e pesquisadores que se dedicam à análise da dinâmica urbana.
Nessa perspectiva, são assimilados novos elementos que enriqueceram significativamente
o conteúdo das análises políticas e contribuíram para desenvolver um aparato teórico e
metodológico importante para tentar apreender de forma substancial as novas formas de
lutas urbanas.
A Sociologia, sem dúvida, foi a disciplina que produziu as mais consistentes e
importantes formulações sobre as novas modalidades da ação social. Nesse sentido,
devemos destacar a obra de Touraine (1977 e vários outros), que foi o autor que colocou
de forma consistente os termos do debate e se tornou a principal referência para autores
como Castells (1972 e 1974), Borja (1975) e Lojkine (1981). Os últimos foram as principais
referências teóricas para o debate sobre os ativismos sociais urbanos e influenciaram (e
ainda influenciam) grande parte das pesquisas no Brasil. Todavia, podemos afirmar, que a
Sociologia, por questões internas à própria disciplina, não deu importância à dimensão
espacial dos ativismos e das lutas sociais: o espaço social era tratado como um palco, uma
metáfora para a arena, onde as ações sociais se desenrolavam. Não se trata,
evidentemente, de se fazer nenhuma cobrança ou crítica à Sociologia por isso, afinal,
trata-se de um olhar particular dessa disciplina para a interpretação de determinados
processos sociais.
Por outro lado, a Geografia1 (brasileira, inglesa, francesa, norte-americana etc.)
negligenciou a temática dos ativismos sociais, priorizando a análise de macro-estruturas
sociais, como o Estado, as estratégias de reprodução do capital ou determinados recortes
espaciais específicos: um bairro, uma região etc. No caso específico da geografia
brasileira, a temática dos ativismos sociais só foi incorporada na década de 1980 e por um
1
RODRIGUES (2005) realizou um levantamento que cobriu 14 anos (1990 a 2004) nos periódicos Annals of
the Association of American Geographers, Journal of Geography e Political Geography, onde nenhum artigo
foi encontrado. Uma exceção importante foi o periódico crítico Antipode (analisado de 1997 a 2004), no qual
consta um número maior de artigos, mas ainda assim, nada muito significativo levando-se em conta o total da
produção geográfica no período.
número muito reduzido de geógrafos, onde devemos destacar os trabalhos de Adão
(1983), Mizubuti (1986), Silva (1986).
A produção brasileira sobre os ativismos sociais foi fortemente caracterizada pelo
predomínio de estudos de caso basicamente descritivos, com reduzida densidade teórica
ou eram fundamentalmente inspirados pelo marxismo estruturalista2. Poucos trabalhos
eram exceção a esse quadro, e apresentavam uma reflexão teórica consistente, dialogando
criticamente com os autores estrangeiros (SANTOS, 1981), ou apresentando outras
perspectivas teóricas e políticas para o tratamento dos ativismos e lutas urbanas, como
são os casos de Sader (1988) e Souza (1988) que, praticamente sozinhos, apresentam uma
alternativa autonomista para a análise de tais questões.
Em um sintético, porém importante texto, Souza (2008) realiza um balanço crítico
sobre a produção acerca dos ativismos urbanos na geografia brasileira3 e aponta uma
estagnação da produção ao longo da década de 1990, apesar da emergência de ativismos
importantes como o hip hop e o Movimento dos Sem-Teto, por exemplo. Será necessário
esperar a outra década para que os primeiros trabalhos significativos e consistentes
começassem a aparecer. A partir da década de 2000, os trabalhos tornam-se mais
numerosos3, a preocupação com as reflexões teóricas é evidente e há um salto qualitativo
e quantitativo importante em relação à década passada. No entanto, é preciso sublinhar
que esse avanço qualitativo foi menor do que o quantitativo, ou seja, o número de
trabalhos, sem dúvida, aumentou, no entanto, a qualidade teórica não acompanhou tal
2
Esta perspectiva teórica legou uma espécie de regra de ouro nos trabalhos sobre os ativismos urbanos no
Brasil. Bastava articulá-los ao processo de reprodução da força de trabalho e à ação do Estado, que tudo
seria explicado. Existia uma moldura teórica onde o capitalismo produzia e organizava o espaço urbano
com o objetivo de facilitar a produção e circulação de mercadorias e para a reprodução da força de trabalho.
Uma vez que a força de trabalho não dispunha de renda suficiente para se apropriar de espaços com
infraestrutura adequada, ela era relegada a bairros populares, periferias e favelas. Essa dinâmica estrutural
levava a mobilização social, aos ativismos e movimentos. Podemos observar que as mobilizações populares
respondem à dinâmica do capitalismo. Este sim é o protagonista, aquele que imprime movimento, que age.
Esse esquema teórico, herdado principalmente das análises de Castells de A Questão urbana e Movimientos
sociales urbanos buscava explicar os movimentos sociais como uma “resposta” às contradições da
sociedade capitalista. Eles são movidos pelas próprias estruturas político-econômicas tornando secundária a
mediação cultural e simbólica entre sujeitos e estruturas. As lutas urbanas podem ser reduzidas, dessa
forma, como lutas de diversos setores da classe trabalhadora para melhorar suas condições de reprodução
dentro da estrutura de reprodução do capital.
3
Como podemos constatar nos anais dos Encontros Nacionais dos Geógrafos (2002, 2004, 2006, 2008, 2010),
existem diversos espaços específicos para se debater a questão dos ativismos sociais (no campo, na cidade e na floresta).
Na revista Terra Livre, até o número 18 (2003), foram publicados 134 artigos. Destes, apenas 10 tratavam diretamente da
temática dos movimentos sociais. Os números 19 e 21 foram dedicados ao tema. Devemos destacar que na revista
GEOUSP (de 1997 a 2003) e na GEOSUL (1986 a 2001) não encontramos nenhum artigo sobre esta temática.
Levantamento dos periódicos nacionais realizado no âmbito da pesquisa de mestrado de Rodrigues (2005) e merece ser
atualizado.
crescimento. Ainda é possível identificar significativas lacunas na produção geográfica
brasileira, principalmente em relação a dois aspectos: 1. a construção dos conceitos de
ativismos e movimentos sociais; 2. a apreensão da espacialidade propriamente dita dos
ativismos. Neste pequeno artigo, vamos buscar contribuir na discussão sobre esses dois
pontos, que consideramos de grande importância para o enriquecimento teórico e
metodológico da disciplina.
OBJETIVOS
O que nos motiva a retomar a questão conceitual acerca dos ativismos e
movimentos sociais, é justamente a imprecisão conceitual que está presente na literatura
geográfica acerca do tema. Nesse sentido, é possível encontrar inúmeras palavras para
qualificar as ações sociais: ativismos sociais, movimentos populares, movimentos sociais,
movimentos urbanos, movimentos reivindicativos, movimentos associativos. O problema
ocorre quando a mesma palavra ou expressão é utilizada para qualificar ações com
conteúdo e naturezas distintas, o que ocorre com frequência na produção brasileira: tudo
(ou quase tudo) vira movimento social. Portanto, acreditamos ser importante ressaltar este
aspecto para que as análises teóricas e políticas ganhem mais solidez, contribuindo, de
fato, para um entendimento mais consistente da dinâmica sócio-espacial.
O ponto de partida de nossas reflexões é aquilo que vamos denominar de
protagonismo sócio-espacial (GONÇALVES, 1999 e RODRIGUES, 2005). Protagonista é
aquele que busca o princípio da ação, que toma a iniciativa, que se coloca explicitamente
como produtor de vida, logo, de espaço e tempo, geografia e história. O protagonista é
aquele que além de se colocar em movimento, também imprime movimento em alguma
coisa ou em alguém, logo, ele é o centro de onde se iniciam as práticas e ações sociais.
Uma vez que nas sociedades humanas existem inúmeros protagonistas, existem inúmeros
centros de onde partem iniciativas que entram em relação umas com as outras
constituindo uma gigantesca e infinita rede ou teia de relações sociais.
Um primeiro esforço, que devemos fazer é reconhecer a existência de ações
pontuais, espontâneas4 (quebra-quebra, incêndios de ônibus, saques, confrontos entre
camelôs e a polícia etc.) que não possuem nenhum tipo de organização no nível mais
4
Devemos ressaltar que estas ações podem ser estratégias de ação de verdadeiros movimentos sociais. Não existe uma
classificação dada a priori, fechada e inflexível.
elementar, “não visam a conquista de direitos e/ou não veiculam um projeto que
ultrapasse os estímulos mais imediatos da conjuntura” (RIBEIRO et al, 2001:10); em
outras palavras, são ações onde os objetivos são pontuais e imediatos, não apontam para
um questionamento sistematizado da sociedade instituída. Estas ações não são ativismos
ou movimentos sociais, no entanto, são manifestações concretas do agravamento das
desigualdades e das contradições sociais.
Não devemos, em hipótese alguma, subestimar ou desvalorizar estas ações que
exprimem, concretamente, os conflitos existentes na sociedade. São práticas que
demonstram e exprimem sentimentos não verbalizados ou sistematizados de revolta, dor,
de percepção das desigualdades e injustiças; significam formas de se colocar em
movimento para garantir determinadas conquistas ou direitos imediatos extremamente
necessários à vida cotidiana, mas que não colocam em evidência a sociedade instituída.
Estas práticas indicam que existem diversas conflitividades sócio-espaciais, que se
expressam através dos conflitos5.
O segundo ponto importante é a preocupação com a análise explícita da
espacialidade dos ativismos sociais, ou, em outras palavras, na relação entre ação social
e espacialidade. Esta perspectiva, contraditoriamente, não é devidamente valorizada ou
apresentada de forma consistente, fazendo com que grande parte da produção
geográfica assuma um caráter mais sociológico ou econômico, do que propriamente
geográfico.
A primeira questão que se coloca é: o que, efetivamente, deve-se entender por
espacialidade dos ativismos sociais? Na tentativa de preencher tal lacuna e contribuir
para o debate, Souza (2008:368-369), propõe cinco pontos que as reflexões e as pesquisas
empíricas deveriam ser capazes de revelar: 1. O espaço de referência identitária, 2. O
espaço enquanto lugar, 3. As estratégias espaciais, 4. A forma como o substrato espacial
(a materialidade) influencia, condiciona ou determina as demandas ou questões que são
a razão de existência do ativismo, 5. A transformações espaciais realizadas pelos
ativismos a partir das relações sociais e de poder produzidas de forma imanente.
5
Estas formulações sobre conflito e conflitividade são uma construção coletiva de todos os pesquisadores do
Laboratório de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO/UFF), durante a pesquisa “Geografia dos conflitos sociais
na América Latina”. Agradecimentos a todos, em especial, ao professor Carlos Walter
Porto Gonçalves.
Os cinco pontos propostos por Souza nos permitem pensar, de forma explícita e
efetiva, a espacialidade dos ativismos sociais, uma vez que nos oferece diretrizes e
balizamentos para organizar e orientar as pesquisas. Significa dizer que o espaço, além
de ser um produto social, ele influencia e condiciona as relações sociais. Nesse sentido, o
espaço, mais do que um palco, uma arena, ele constitui e institui as próprias relações
sociais, uma vez, que ao organizar e instituir as relações sociais e organizações societárias,
o homem institui/produz/organiza, ao mesmo tempo e no mesmo processo, o espaço
geográfico que garante sua condição de existência e reprodução. A espacialidade do
social é imanente à sociedade porque também é um dos componentes da condição
humana; ela é um processo de construção e instituição permanente e imanente da
própria sociedade. Esta só se constitui e se institui completa e continuamente, enquanto
espaço, produzindo-o e organizando-o, não apenas, enquanto tempo.
Outra aproximação com a questão pode ser feita a partir da formulação de
Gonçalves (1999:69), na qual o autor chama a atenção para a relação explícita entre o
espaço social e os movimentos sociais. A expressão movimento social ganha, assim, para
nossa compreensão das identidades coletivas um sentido geográfico muito preciso: um
processo através do qual determinado segmento social recusa o lugar que, numa
determinada circunstância espaço-temporal, outros segmentos sociais melhor situados no
espaço social pelos capitais que já dispõem tentam lhe impor e, rompendo a inércia
relativa em que se encontravam, se mobilizam movimentando-se em busca da afirmação
das qualidades que acreditam justificarem sua existência.
Este trecho é extremamente importante para nossa formulação, pois ele explicita
a questão da espacialidade dos ativismos, incorporando-a como um elemento constitutivo
destas experiências e não apenas um palco onde os atores atuam. Assim, fica explícita a
espacialidade quando o autor afirma que os movimentos sociais indicam, rigorosamente,
mudança (movimento) de lugar (social), sempre recusando o lugar social que lhes são
impostos por uma ordem sócio-espacial hegemônica (GONÇALVES, 1999).
METODOLOGIA
Para avançar nestas questões, vamos recuperar a formulação de SOUZA (1988 e
2006), onde o autor propõe uma diferença entre as diversas formas de organização e
mobilização social, com o objetivo de analisar criticamente o potencial transformador, os
limites e as insuficiências dos ativismos. Neste sentido, ele propõe uma diferenciação
entre ativismos sociais e movimentos sociais.
Ativismos e movimentos sociais são formas que as pessoas constroem para
participar ativamente da sociedade, ou seja, para efetivarem seu protagonismo, lutando
por melhoria na qualidade de vida, afirmação de direitos políticos, econômicos, culturais,
etc. por mais modesta que sejam as conquistas. De acordo com este autor, podemos
afirmar que todo movimento é um ativismo social, mas nem todo ativismo é um
movimento. Os movimentos sociais são um tipo especial de ativismo.
O ativismo social é uma categoria extremamente ampla que abarca uma série
gigantesca de ações, organizações, manifestações e mobilizações as mais diversas que vão
desde ações paroquiais que não aprofundam sua crítica à sociedade instituída e encarnam
lutas pontuais e específicas, que se esvaziam assim que o problema é resolvido, desde
mobilizações mais amplas com um forte potencial transformador, discurso crítico acerca
da sociedade instituída, que questionam seus fundamentos políticos, econômicos,
culturais, estéticos, étnicos e éticos.
Dessa forma, existe um gigantesco espectro de
possibilidades nas ações sociais, desde as mais paroquiais até as mais radicais e
revolucionárias. É importante salientar que os ativismos sociais podem se desenvolver em
relação a qualquer tipo de questão social, desde fundamentos econômicos, estruturas
agrárias, racismo, machismo, homofobia. Não existe um protagonista dado a priori nem
um monopólio de algum grupo, classe ou questão sobre o protagonismo revolucionário
ou questionador da sociedade hegemônica.
Dessa forma, dentro dos ativismos sociais podemos identificar dois conjuntos: os
ativismos reivindicativos e os movimentos sociais. Ambos possuem dois elementos
básicos que os caracterizam, que são a sua escala de articulação política e a radicalidade
de suas reivindicações. Estas são duas qualidades distintas, mas que evidentemente se
relacionam em diversos momentos.
Os ativismos reivindicativos expressam uma mobilização social por uma demanda
específica como o melhoramento da iluminação de uma rua, a instalação de uma creche
e um posto de saúde em uma favela, a eletrificação de um assentamento rural; enfim, são
demandas por melhoramentos em determinada rua, bairro, favela ou localidade rural, mas
sem considerar o espaço urbano ou rural como um todo, as relações sociais e de poder
que o produzem e organizam. A radicalidade de suas reivindicações não coloca em
questão a sociedade instituída e buscam melhorias na qualidade de vida dentro do estado
de coisas existentes.
Os movimentos sociais são um tipo especial de ativismo. Os movimentos sociais
representam uma contestação da ordem sócio-espacial hegemônica. Seus objetivos,
geralmente, visam transformações mais ou menos profundas na sociedade instituída, o
que implica em um amplo horizonte de luta política, econômica e cultural, baseado em
um discurso crítico (com variados graus de radicalidade), não fazem reivindicações
pontuais ou paroquias, mas buscam articular várias escalas de ação (local, regional,
nacional e internacional) e sua agenda de luta é mais ampla, como a luta contra a
segregação sócio-espacial, pelo aumento da justiça social, combate ao racismo e
homofobia, dentre outras.
Podemos, então, afirmar que os movimentos sociais possuem uma espacialidade,
que se revela pela análise dos atributos e das práticas que os constituem. Eles estão
inscritos nas relações sociais e de poder que conformam determinada produção e
organização do espaço.
Reconhecer a espacialidade como um elemento que constitui os ativismos, levanos a criar categorias analíticas a partir das próprias práticas dos ativismos e movimentos
sociais. Ao adotar esse procedimento, sustentamos uma abordagem teórico-conceitual
metodológica, calcada na análise dos atributos dos movimentos sociais6, que são os
seguintes: 1. Os protagonistas (quem?); 2. Os motivos/objetivos (por que?); 3. As formas
de organização (de que maneira?); 4. Os tipos de manifestações e estratégias de ação
(como?); e 5. As escalas (possui um duplo aspecto, de extensão, quando informa sobre a
área de abrangência e/ou ação de um movimento social, e de qualidade, que refere-se à
capacidade de articulação política e econômica – agenciamento de recursos).
Os atributos dos ativismos sociais nos ajudam a apreender sua espacialidade, nesse
sentido, é importante articular a análise dos atributos com os cinco pontos (SOUZA,
2008) que devem nortear a pesquisa geográfica acerca da questão. Podemos observar que
existem complementaridade entre os atributos e os balizamentos da pesquisa, o que
6
Evidentemente que não somos os primeiros a propor categorias de análise dos movimentos sociais. Alguns bons
exemplos podem ser encontrados em BORJA (1975), RIBEIRO (2001), GOHN (1997), CASTELLS (2003 [1972]).
torna mais claro o conjunto de procedimentos que podem ser observados e seguidos para
que a pesquisa se torne mais consistente.
RESULTADOS PRELIMINARES
A análise dos protagonistas não pode ser feita dissociada dos motivos e objetivos
pelos quais eles estão se mobilizando e lutando. A identificação de atributos é meramente
um recurso metodológico, uma vez que a análise exige a articulação entre ambos, já que
a dinâmica social não é constituída por esferas, atributos ou estruturas autônomas. Sendo
assim, cabe a pergunta: ‘o que te move?’ o que move determinado protagonista? É
justamente pela análise da experiência, vivencia concreta e total da vida das pessoas é que
podemos identificar os seus interesses, seus objetivos. É através da construção de
significados políticos, culturais, econômicos, éticos e estéticos que os protagonistas agem,
se colocam em movimento para transformar suas vidas e os lugares onde vivem.
A análise das formas de organização dos movimentos sociais nos permite colocar e
desenvolver duas questões que nos parecem extremamente importantes. A primeira diz
respeito ao caráter do próprio movimento social e suas perspectivas democráticas,
autoritária, reformista, corporativista ou autonomista. A segunda refere-se à capacidade
de articulação e mediação políticas entre os protagonistas e outros sujeitos sociais.
Podemos afirmar que as formas de organização não são meramente aspectos
formais pelos quais são estabelecidas responsabilidades, funções, normas, etc., mas são
uma parte constitutiva fundamental dos protagonistas para identificarmos as
possibilidades, potencialidades, limites e contradições entre o discurso e os objetivos e as
práticas efetivas que constituem um movimento social, pois nos indicam a maneira como
os protagonistas se organizam para estabelecer estratégias de luta, prioridades, objetivos,
prazos, normas, funções, hierarquias, responsabilidade. Isso significa que uma série de
relações sociais e de poder criadas pelos protagonistas passa por este atributo. A
instituição destas relações no interior do movimento, de certa forma, é um prenúncio da
ordem sócio-espacial que se pretende estabelecer.
O segundo aspecto que ressaltamos é da capacidade de articulação e inserção
política dos protagonistas no debate político mais amplo com a sociedade. A capacidade
de se articular, construir mediações e alianças é uma qualidade crucial para que as ações
e objetivos do movimento social sejam alcançadas. Nesse sentido, a organização é um
atributo que nos permite avaliar a capacidade que cada movimento social tem de
conseguir se colocar de forma contundente e ser eficaz nas suas ações.
A capacidade de articulação refere-se aos contatos e alianças que os protagonistas
conseguem estabelecer com outros movimentos sociais, instituições privadas e públicas,
organizações da sociedade civil, mídia, enfim com uma série de outros sujeitos sociais que
são elementos importantes para o debate e luta política. A articulação implica em
construir relações e laços que podem ser simplesmente pragmáticos e estratégicos (com
o máximo de cuidado possível) ou então solidários, de cumplicidade e união. Conseguir
estabelecer esse tipo de relação é fundamental para as estratégias de ação dos
protagonistas, pois a cada articulação e aliança costurada, aumenta o poder político e
possivelmente o econômico, o que possibilitar aumentar a eficácia das ações. As
articulações políticas, econômicas e culturais são elementos importantes para que o
movimento social consiga potencializar suas lutas, permite alcançar maior visibilidade
pública, levantar recursos e fortalecer seu poder político.
As manifestações e estratégias de ação são um conjunto de procedimentos e meios
através dos quais os ativismos engendram suas lutas para alcançar seus objetivos. As
formas de manifestação e as estratégias de ação são as mais diversas possíveis e, no caso
dos ativismos urbanos, o espaço assume um valor estratégico fundamental, pois é através
dele que a maioria das lutas será viabilizada: marchas, atos públicos, fechamento de ruas
e avenidas, ocupações e prédios e terrenos, piquetes, vigílias etc. A questão fundamental
para os ativismos é saber escolher qual espaço será ocupado/apropriado para que a
eficácia da ação seja a maior possível, ou seja, que ela permita pavimentar cada vez mais
conquistas e vitórias.
A escala nos indica a magnitude e a área de abrangência de determinado processo,
fenômeno ou característica do espaço geográfico. Isso significa dizer que toda dinâmica
socioambiental, todo processo sócio-espacial se desenvolve em uma determinada escala
(local, regional, nacional, global etc.).
Nesse sentido, cada fenômeno, ou processo,
possuiu uma determinada escala de análise, ou seja, ele só é passível de ser conhecido e
apreendido se for analisado na escala adequada, do contrário se corre o risco de sub-, ou
supervalorizá-lo.
Em relação aos ativismos sociais não poderia ser diferente. É necessária uma
análise multiescalar para poder compreendê-los, do global ao local, identificando e
analisando as diferentes relações sociais e de poder que se estabelecem em cada escala e
quais os impactos e consequências geradas por estas relações. Se estamos falando de
formas de organização e mobilização de determinada parcela da população que tem como
objetivo algum grau de transformação da sociedade instituída, devemos apreender e
identificar as escalas que nos permitem fazer a análise deste movimento. Nesse sentido,
as escalas, em primeiro lugar, nos ajudam a pensar o processo de formação e constituição
dos movimentos sociais.
Tão fundamental quanto as questões desenvolvidas acima, é a importância das
escalas para apreendermos a capacidade de articulação política, econômica e cultural dos
movimentos sociais com outros movimentos, grupos e classes da sociedade civil
organizada, assim como o grau de intensidade da radicalização das propostas e
reivindicações transformadoras do movimento. Estes dois pontos nos informam sobre o
grau de conflitividade que o movimento social explicita para a sociedade (expondo as
contradições e conflitos que constituem a sociedade) e sobre a inserção dos movimentos
sociais no debate público aberto com a sociedade.
Fazer a distinção entre ativismos e movimentos sociais se mostra mais fácil na
teoria do que na prática. A experiência concreta dos protagonistas não é regulada por uma
regra dada a priori e os conflitos, problemas, circunstâncias políticas e econômicas que
se colocam como desafio diante deles, faz com que suas práticas sejam mutáveis. O que
pensamos ser um ativismo reivindicativo pode se transformar em um movimento social
na medida em que há um amadurecimento político da base e este passe a se articular em
outras escalas e recolocando de forma mais ampla suas questões. O contrário também
pode ocorrer, um movimento social pode, ao longo do tempo, perder consistência,
vitalidade e, aos poucos, transformando-se em um ativismo reivindicativo, ou até mesmo
se dissipando. Ao mesmo tempo, acreditamos que os ativismos reivindicativos não podem
ser menosprezados a priori simplesmente porque eles teriam um caráter mais local,
específico ou paroquial e não se colocam como transformadores das relações sociais e de
poder. Essas experiências possuem limites, é evidente, mas podem se mostrar espaços
interessantes de sociabilidade, contribuindo para uma formação política e pedagógica
(ainda que com muitas limitações), que podem culminar na transformação do ativismo
em movimento social.
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