do discurso estenográfico: uma análise da "falsa

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Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul
DO DISCURSO ESTENOGRÁFICO: UMA ANÁLISE DA “FALSA INERÊNCIA”
Maria Marta FURLANETTO (Universidade do Sul de Santa Catarina)
ABSTRACT: This paper intends to show a spread process in the Brazilian Portuguese: the “false
inherence”, regarding to a specific relation between the adjective and the name (argumental function),
marked by the reduction of a complex expression. I examine some nuances of this phenomenon and the
semantic effects they can produce.
KEY WORDS: change, adjectif, false inherence. .
0. Introdução
Este trabalho integra um projeto de pesquisa que focaliza tendências à deriva no uso escrito
culto do português brasileiro. Trata-se de descrever e interpretar certas ocorrências lingüísticas que se
desviam de alguma forma do que os instrumentos lingüísticos de gramatização1 preconizam (gramáticas,
dicionários, manuais), ou que não foram devidamente mapeadas e normatizadas nesses instrumentos, o
que dá margem a certas preferências (sobre os “limites da gramática” cf. AUROUX, 1997).
A base teórica da pesquisa é a análise do discurso derivada de Michel Pêcheux; assumo
também alguns pressupostos filosóficos sobre hiperlíngua2 (AUROUX, 1994, 1998), e utilizo subsídios
de abordagens que têm estudado fenômenos similares (funcionalismo lingüístico e sociolingüística da
variação).
O tópico que estudo aqui – e que mostra um processo comum na língua portuguesa – é o
que denomino “falsa inerência”. Ocorrências como
(1) médico psiquiatra INFANTO-JUVENIL
(2) [médicos] cirurgiões VASCULARES/TORÁCICOS
levaram-me a perguntar sobre a extensão desse fenômeno de 1990 para cá – limite inicial que estabeleci
para a coleta de dados –, e que explicação se poderia dar para tais ocorrências. Tomando o exemplo (1),
vê-se que “infanto-juvenil” não diz respeito a uma qualificação interna à figura do médico, mas a uma
relação. Considero que aqui há uma redução (explicarei isso adiante), sem a qual a relação seria assim
marcada sintaticamente:
(1a) médico psiquiatra DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES ou
(1b) médico psiquiatra PARA A INFÂNCIA E A ADOLESCÊNCIA/JUVENTUDE
Veja -se um recorte para (2):
(2a) “Agora, foi criada em São Paulo uma clínica especializada no tratamento do problema
[transpiração excessiva]. São três CIRURGIÕES VASCULARES e três CIRURGIÕES
TORÁCICOS que atendem em dois consultórios localizados na capital paulista.” (Revista
de circulação nacional, 2002)
O que a expressão abreviada representa é um elemento exterior associado a “médico” por
uma relação específica. A marca de “falsa inerência” manifesta em alto grau essa forma de relação. Tal
1
Processo iniciado no Renascimento europeu “que conduz a produzir dicionários e gramáticas de todas as
línguas do mundo [...] na base da tradição greco-latina.” (AUROUX, 1992: 8). A gramatização é tratada
como revolução tecnológica, servindo como meio de conhecimento e dominação de culturas. Guimarães
(1996) diz que no Brasil “a gramatização surge como um procedimento de independência de Portugal.”
(p. 136). V. também Orlandi, 1999/2000.
2
Os sujeitos vivem “[...] envoltos por um mundo e por artefatos técnicos, entre os quais figuram (às
vezes) gramáticas e dicionários. [...] o espaço-tempo, em relação à intercomunicação humana, não é
vazio, ele dispõe de uma certa estrutura, conferida pelos objetos e pelos sujeitos que o ocupam.
Denominaremos ‘hiperlíngua’ a este espaço-tempo assim estruturado.” (AUROUX, 1994, p. 243). V.
também Auroux 1998; Orlandi e Guimarães 2002.
uso, já disseminado, aponta uma espécie de fusão que cria a possibilidade de equívoco/ambigüidade,
abrindo para jogos de linguagem.
Considerando que essa construção sintaticamente reduzida emparelha qualificativo e nãoqualificativo – ou qualificador e especificador/classificador, produz-se uma neutralização sintática que
não corresponde a uma neutralização semântica, mas que manifesta a opacidade no uso da língua em
certo grau. Certamente é mais fácil mostrar a extensão dessa ocorrência do que descrevê-la (estrutural e
semanticamente) e explicar seu papel discursivo. O processo aí verificado já havia, no final do século
XIX, chamado a atenção de Michel Bréal. É com ele, portanto, que inicio a discussão teórica.
1. Bréal: o processo de “redução”
Bréal trata como “redução” um fenômeno que seria motivador da polissemia: “de duas
palavras primitivamente associadas uma é suprimida” (1992: 107). A conseqüência disso é que o termo
que permanece sofre alguma mudança semântica, ao mesmo tempo que absorve o sentido do conjunto.
Bréal se apóia no princípio de que um signo (no caso, uma locução) pode ser cortado, reduzido, desde que
continue reconhecível. Um termo, então, sobrevive, e toma o lugar do conjunto.
Muitos adjetivos persistem como núcleo após o descarte de um substantivo, que permanece,
no entanto, subentendido. São exemplos do português: brasileiro, deficiente, popular. Sintetizando o
fenômeno, Bréal diz: “A despeito dos sobressaltos aos quais essas elipses expõem a história das palavras,
é preciso ver aí o trabalho normal e legítimo da inteligência” (p. 111) 3 .
Quando se detém na história das palavras, Bréal retoma a noção de locução, salientando
que uma palavra, ao integrar um conjunto, perde sua individualidade, e nesse caso é menos sensível às
mudanças da língua, podendo percorrer séculos e serem repetidas. Mas as locuções podem abreviar-se, e
o autor faz uma comparação curiosa para mostrar essa transformação metonímica: assim como um
crustáceo solta uma pata para livrar-se do inimigo, as locuções também sofrem amputação, “com a
diferença de que a pata toma lugar do animal inteiro” (1992: 189-190). Assim, muitas expressões
lingüísticas aparecem como materialização de uma “língua estenográfica” – para cujo uso exige-se um
conhecimento implicado na trama da vida social4 .
Bréal estende aos verbos sua observação sobre a redução: complementos podem ser
subentendidos, deixando o verbo formalmente intransitivo: Você vai expor? Fulana recebe esta noite.
Esta loja está liquidando. Entretanto, diz o autor, às vezes a locução é abreviada “em direção ao meio”;
ele considerava esse processo um “barbarismo horrível”. São exemplos dessa abreviação: homem
terciário, paralíticos progressivos, filólogo comparado. Apesar da crítica, Bréal anota que os termos
reformados e católicos resultam de elipse do mesmo tipo (1992: 190-191). É esse processo radical de
abreviação que focalizo aqui.
Nesse caso o adjetivo não qualifica, como formalmente pareceria – não se trata de simples
atributo (quero dizer, atribuído no contexto social), como ocorre em cientista inteligente –, mas
determina, especifica (com outras propriedades a investigar). Trata-se de uma relação entre x e y, e que é
representada como se fosse interna. Muitas ocorrências, no alargamento do espectro de uso, ainda
chamam a atenção (como o diferente, que mina certa identidade).
O fenômeno que se observa aqui seria, então, uma “redução em direção ao meio”, já
efetuada sobre outra redução, o que se dá quando um adjetivo substitui o substantivo.
2. A perspectiva da gramática tradicional
Cunha e Cintra (1997: 238) definem o adjetivo basicamente como modificador, servindo
para, em relação ao substantivo:
a) indicar: qualidade ou defeito (homem perverso); modo de ser (pessoa simples);
aparência (vidro fosco); estado (casa arruinada).
b) estabelecer relação de tempo, de espaço, de matéria, de finalidade, de propriedade, de
procedência... Aqui ele é chamado adjetivo de relação. Exemplos: nota mensal (= nota
3
A gramática funcional faz referência à metáfora e à metonímia no estudo dos mecanismos de mudança
referentes à gramaticalização. O processo metonímico, nesse campo, designa “a mudança que sofre uma
determinada forma em função do contexto lingüístico (e pragmático) em que está sendo utilizada.”
(MARTELOTTA; VOTRE; CEZARIO, 1996: 56-57). Isso tem como conseqüência uma reorganização
estrutural.
4
Auroux diz isso, hoje, com estas palavras, remetendo à hiperlíngua: “Para saber aquilo de que as pessoas
falam, temos necessidade de uma ligação com o mundo do qual elas falam e do conhecimento da ligação
de sua língua com o mundo.” (1998: 22).
relativa ao mês); movimento estudantil (= movimento feito por estudantes); casa
paterna (= casa onde habitam os pais); vinho português (= vinho proveniente de
Portugal).
Os autores observam que esses adjetivos, que derivam de substantivos, são classificadores,
restringindo a extensão do significado do substantivo; não admitem graus de intensidade e vêm
norma lmente pospostos ao substantivo (1997: 238).
Note-se que essas formas adjetivas não podem funcionar como núcleo de expressão;
aparentemente, apenas adjetivos qualificadores de seres humanos podem ocupar posição nuclear,
agregando as propriedades do substantivo correspondente no processo de redução: o perverso, o simples,
o negro, o mulato, o estudioso, o pesquisador, o idiota, o perspicaz, o bom, o mau, o deficiente, o surdo.
Quanto às funções sintáticas, dizem os autores que, como adjunto adnominal, o adjetivo
serve para especificar ou delimitar o significado de um substantivo. Fica claro que: ou os adjetivos
relativos são simplesmente adjuntos adnominais para os gramáticos (embora sejam de natureza
classificatória, como dizem), ou a relação que se estabelece entre eles é omitida sintaticamente. Nesse
caso, seria possível pôr em pé de igualdade nota mensal e médico infanto-juvenil – a não ser que infantojuvenil pertença a outra classe, ainda não especificada.
Para Luft (1976), o adjetivo exprime apenas qualidades ou propriedades dos seres (p. 83).
Ou seja, funciona como qualificador. Mas o efeito não é o mesmo em psiquiatra infanto-juvenil. Se
mensal em nota mensal e outros exemplos de Cunha e Cintra aparentemente podem constituir adjuntos
adnominais, em meus dados a relação que se observa não parece idêntica. Qual a diferença?
A maioria dos exemplos do corpus já traz como núcleo atual um aparente adjetivo fazendo
as vezes de substantivo, ao qual se agrega uma ou mais especificações. Portanto, trata-se majoritariamente
de subespecificações aplicadas a seres humanos. Luft (1976: 111) diz que a preposição tem a função
subordinativa de regência. É relacional, portanto, e a relação pode ser variada. Veja-se a possibilidade de
redução em algumas das locuções exemplificadas (para ele, trata-se aqui de adjuntos adnominais):
o porta de ferro à porta férrea
o livro do estudante à ? livro estudantil
Em amor AO PRÓXIMO [? amor proximal], por outro lado, haveria um comple mento
nominal. No tópico sobre sintaxe (p. 141), Luft diz que o adjunto adnominal determina ou qualifica o
substantivo, e tal função pode ser expressa por um sintagma adjetivo ou um sintagma preposicional (=
modificadores, qualificadores). Chama-me a atenção este exemplo: praça [para esportes] (? praça
esportiva).
O adjunto adnominal, para Kury, Bueno e Oliveira (1977), pode ser expresso por uma
locução adjetiva (Sprep), mas os exemplos apresentados podem dar-se como adjetivos simples:
o palavras SEM NEXO (desconexas),
o raios DE SOL (solares) (p. 37),
o bancos DA ESCOLA (escolares) (p. 173).
Note-se, entretanto, uma diferença sutil entre os dois primeiros e o último: em bancos DA
ESCOLA (bem como o exemplo nota DO MÊS, reduzido para mensal por Cunha e Cintra como adjetivo
RELATIVO ), DA ESCOLA tem uma relação de exterioridade com bancos – ainda que se admita que bancos
feitos especialmente para a escola possam tornar “inerente” o ser escolar. Para sentir a diferença, basta
que se mostre a forma adjetiva junto a um substantivo menos típico do contexto, tal como fotografias
escolares – expressão que causa alguma estranheza se se quiser que coincida com fotografias da escola.
Pode-se dizer, então, que a distinção feita por Cunha e Cintra (quanto ao adjetivo relativo) não é
considerada comumente nas gramáticas, e também não foi aprofundada por esses autores. Tudo se reduz
sintaticamente a adjunto adnominal .
3. A gramática de usos de Neves
Neves (2000: 173) explicita duas possibilidades para os adjetivos: qualificar (moça bonita)
ou subcategorizar (estudo psicológico) um substantivo. Note-se que nos dois casos há restrição, não
explicação; portanto, a distinção que quero estabelecer não diz respeito à qualificação propriamente dita;
apenas a forma de uso constatada leva a confundir qualificação com subcategorização.
Locuções adjetivas como em um jovem do interior podem ter um adjetivo simples como
alternativa (jovem interiorano) (que suponho ser elemento subcategorizador), mas essa alternativa, diz
Neves, não é necessária para se falar em locução adjetiva. Isso não impede, entretanto, que a redução de
uma SPrep a um adjetivo simples produza confusão semântica, que pode ser fonte de ludismo: uma
combinação que se pretende de subcategorização apresenta formato lingüístico de qualificação.
Quanto às funções sintáticas do adjetivo, Neves (2000: 180 et seq.) explicita, ao lado da
função de adnominal (fibra nervosa), da função predicativa (estar doente) e da função apositiva
(Indiferente ao luto nacional, o americano sorria), estas duas, que são relevantes aqui:
a) funções próprias de substantivos (o adjetivo investe-se de propriedades substantivais e
funciona como núcleo do SN), como conseqüência de redução.
Nesta função, trata-se de adjetivos que comumente ocorrem com os mesmos substantivos,
acabando por assumir o papel deles, passando a indicar referente: o brasileiro, o mulato, a fugitiva, o
malandro (p. 184).
b) função de argumento (exprime o que seria um complemento nominal): obsessão
matrimonial (= pelo matrimônio); industrialização brasileira (= do Brasil); infiltração
comunista (= de comunistas).
É nesta função, em princípio, que as ocorrências em estudo se encaixam, classificando,
delimitando, exprimindo sintaticamente complemento, não adjunto.
Quanto às subclasses de adjetivos, Neves faz referência a dois grupos:
a) Qualificadores (cf. p. 185). A qualificação pode implicar uma característica ou mais ou
menos subjetiva, mas sempre com certa vaguidade. A considerar que se trata aqui de um tipo de
predicação, um teste simples poderia mostrar quando um adjetivo não é qualificador: artista plástico à ?
este artista é plástico. Não há vaguidade aqui, há delimitação de artista em relação a um campo de
trabalho.
b) Classificadores. Abrem uma subclasse, com uma indicação objetiva dessa subclasse.
São portanto denominativos, não predicativos. Indústria alimentícia [= de alimento], sistema filosófico [=
de filosofia]
Chamo a atenção para as características dos classificadores, conforme Neves: surgem
comumente como Sprep compondo locuções adjetivas e têm caráter não-vago (delimitam, individualizam,
localizam no espaço). É relevante observar, para a primeira característica, que a tendência que aponto é
justamente a de reduzir sempre que possível os classificadores a formas adjetivais simples, tal como em
indústria ALIMENTÍCIA . Então, de um modo geral, Sprep em função argumental, tendo em sua composição
nomes (comuns ou próprios), substantivos e advérbios, se materializam como simples adjetivos:
o
o
o
o
Semiólogos TEATRAIS ß da área de Dramaturgia
Autores INFANTIS ß de obras para crianças
Psicólogos EXPERIMENTAIS ß da área de Psicologia Experimental
Crianças deficientes FÍSICAS ß de caráter físico
Quanto às particularidades de construção com adjetivos, Neves (2000: 213) observa que em
certos sintagmas o conjunto apresenta um valor unitário, formando unidade lexical:
a) Com qualificadores: bom senso, mau gosto, bom humor, menores carentes;
Se em menores carentes (em que menores já é resultado de redução) tem-se um
qualificador, uma classificação se desenha se se fizer um acréscimo como: menores carentes CULTURAIS ,
em que o classificador se resolve como menores CULTURALMENTE carentes ou menores com carências DE
CARÁTER CULTURAL. Então essa expressão tem função argumental.
b) Com classificadores: salário mínimo, assistente social, direitos autorais, deputado
federal.
Neves diz que os classificadores tendem a formar um todo semântico com o substantivo
que acompanham. Embora isso pareça banal e de consenso, o uso rapidamente estendido dessa forma
drástica de redução torna esse fenômeno bastante interessante. Ela observa ainda (2000: 214) que, por
essa possibilidade de formar unidades lexicais, qualificadores e classificadores podem compor camadas
de modificação. Usando meu dado
o
surdos PROFUNDOS CONGÊNITOS
tem-se:
o
[[[(pessoas) Surdos] profundos] congênitos] = pessoas surdas à surdos profundos à
PROFUNDOS CONGÊNITOS. ß redução de “pessoas congenitamente
profundamente surdas”.
SURDOS
Minha hipótese sobre a produção dessa “falsa inerência” é: formada uma camada, outra
camada promove uma segunda modificação, dependendo das situações sociais vividas, transformando,
por exemplo, advérbios e Sprep em formas adjetivais. Isso é evidente em crianças carentes à crianças
carentes culturais, a que se poderia acrescentar outra camada, formando, por exemplo: crianças carentes
culturais profundas, semelhante a surdos profundos congênitos.
Núcleo: crianças carentes (crianças com carência);
Acréscimo1: de cultura (culturalmente)
Acréscimo2: com profundidade (profundamente)
4. A estrutura do sintagma nominal
Utilizo agora um estudo de Liberato (2001), de cunho funcionalista, sobre a composição do
sintagma nominal (SN) no português brasileiro.
A pesquisadora identifica seis funções semânticas exercidas pelos componentes estudados,
combinando a contribuição para os processos de delimitação (por parte de quem se enuncia) e de
identificação (por parte de quem interpreta):
a) classificador – o núcleo do SN: MÉDICO. Salienta ela que um classificador é uma
função semântica de item léxico assumida no SN;
b) subclassificador e qualificador (funções adjetivas; cf. p. 57): médico PEDIATRA
(subclassificador, função restritiva); TERRÍVEL pesadelo (qualificador, função
explicativa);
c) recortador e quantificador: ALGUNS médicos / TRÊS médicos (respectivamente).
d) Partitivo: BOA PARTE dos médicos.
Focalizo apenas as relações entre o que a autora chama subclassificador e qualificador. É
no contraste que se encontra neste par que parecia inicialmente resumir-se o caso em estudo. Para
Liberato (2001), no entanto, se um elemento subclassificador tem função restritiva (delimitadora), um
qualificador tem função apenas explicativa. Parece não haver congruência nessa caracterização; se o
subclassificador é sempre restritivo, um qualificador não tem de ser sempre explicativo.
Além disso, se ao dizer médico psiquiatra estou restringindo, delimitando [um médico
(classe) que é psiquiatra (subclasse)], e psiquiatra será subespecificador, infanto-juvenil, com essa forma
adjetiva, também deveria ser subespecificador, mas a relação é diferente. Parece que na classificação de
Liberato não há lugar para esse componente.
Uma alternativa é dizer que o nó da questão não é a distinção explicação/restrição: a própria
expressão restritiva precisaria de uma subclassificação: adjetivos relacionais, tal como Cunha e Cintra
rotulam, indicam uma restrição de caráter diferente, correspondendo ao que Basílio e Gamarski (1999)
chamam de função argumental – o que se verá a seguir, num trabalho de caráter morfológico.
5. Os adjetivos denominais
Basilio e Gamarski, num estudo sobre adjetivos denominais (derivados de nomes) no
português falado, relembram o problema de distinção funcional dos adjetivos (denotação ou predicação) e
de sua subclassificação, que divide os autores (1999: 632-633).
As autoras acrescentam a estas duas funções dos adjetivos denominais aquela que chamam
de argumental – ou seja, a expressão em forma de adjetivo do argumento interno ou externo de formas
nominalizadas. Sua ilustração é:
o
os constantes ataques estudantis [= dos estudantes] ao presidente estão causando
graves problemas à Coréia.
Essa função tem caráter sintático, ao passo que a denotativa é de caráter semântico-lexical
(classificatório), e a predicativa, de caráter proposicional. É da função argumental (também referida por
Neves, 2000) que se trata neste trabalho. Basilio e Gamarski observam que os adjetivos em função
argumental correspondem a um sintagma preposicionado, tal como em
o as incursões americanas à as incursões dos Estados Unidos.
Para complementar a exposição de Basilio e Gamarski, examino um trabalho de Lobato
(1993) que envolve tipologia e interpretação semântica.
Adjetivos em sentido estrito não levariam à identificação de uma certa classe de referentes.
Seriam apenas atributos (qualificadores, portanto). Em animal feroz o adjetivo não identifica nenhuma
classe, apenas atribui uma característica inerente – daí, por contraste, eu ter caracterizado as ocorrências
em estudo de “falsa inerência”: aparência de uso atributivo para algo que não é atributo.
Substantivos, por outro lado, remetem a classes. Se em cachorro temos a propriedade
canino, é esta propriedade que permite a identificação dos referentes que correspondem a cachorro. Esse
é o uso denotativo da forma adjetiva canino. Denotação, tal como define Lobato, constitui
[...] a relação entre as propriedades semânticas abstratas de uma expressão
(i.e., a sua intensão) e o conjunto de referentes em potencial dessa mesma
expressão (i.e., a sua extensão), o conjunto de propriedades semânticas de um
substantivo que o leva a ter a referência que tem pode, por sua vez, ser
apropriadamente denominado de um conjunto de propriedades denotativas.
(1993: 9)
Note-se, porém, que só nos substantivos a intensão permite levar à identificação da
extensão, o que é vedado ao adjetivo denotativo. Em seguida, Lobato procura mostrar que nem todo
adjetivo é predicativo (aqui entram os casos de “falsa inerência”), exemplificando com:
o cirurgião plástico
o engenheiro florestal
o sistema nervoso
Em nenhum desses casos o adjetivo denota propriedade do elemento nuclear da expressão;
ele não pode, portanto, ser usado como predicativo (é não-predicativo) – a não ser, é claro, em situação
lúdica.
o *Esse cirurgião é plástico.
o *Esse engenheiro é florestal.
o *Esse sistema é nervoso.
O que acontece aqui, explica Lobato, é que “[...] o papel do adjetivo é acrescentar uma nova
propriedade às propriedades denotativas do substantivo. Assim, do conjunto resulta a denotação de uma
outra classe natural, cuja extensão é um subconjunto da extensão do substantivo sozinho” (1993: 10).
Note-se que uma nova subclassificação poderia operar nessa estrutura (outra camada),
considerando, por exemplo, que se contrasta uma plástica de reparação e uma plástica de estética – de
onde, hipoteticamente, poderiam resultar as formações cirurgião plástico reparador e cirurgião plástico
estético. É esta a tendência que observo.
A interpretação semântica desse fenômeno – simplificando – se daria assim: no nível das
palavras de dicionário (língua) o referente é uma virtualidade; o substantivo (comum denotativo), então,
designa uma classe natural; o adjetivo, por outro lado, nunca tem referente em potencial, e a propriedade
expressa por ele é acrescida às propriedades de caráter nominal, o que resulta numa conjunção de
predicados.
Para contrastar: um adjetivo Predicativo, para Lobato, “[...] predica uma propriedade
diretamente do referente denotado pela expressão nominal com a qual se combina. Daí decorre que não
tem efeito sobre a denotação dessa expressão” (1993: 13). Isso significa que o adjetivo predicativo não
altera a extensão original da expressão nominal – como ocorre em (exemplo de Lobato):
o
Os brasileiros, industriosos, vencerão a crise. ß Os brasileiros são industriosos (todos
eles).
Trata-se, conforme Liberato, de um elemento qualificador, e não um subclassificador. Um
subclassificador corresponderia, por sua vez, a um elemento argumental, segundo Basílio e Gamarski.
6. Substantivos, adjetivos, advérbios – funções nominais
Em outro trabalho, Basilio (1991) explora o que chama “conversão” adjetivo/advérbio em
português. Minha reflexão diz respeito às questões freqüentes sobre proximidade e distanciamento entre
adjetivo e advérbio. No caso presente, trata-se da possibilidade de ocorrência (efeito de desdobramento do
adjetivo), no SN, de uma forma adverbial em -mente para muitas das construções, e que estaria sendo
substituída por forma adjetival no processo de redução no SN (cf. crianças deficientes físicas ß crianças
fisicamente deficientes). Isso significa uma modificação estrutural significativa, alterando a forma de
predicação, com proeminência para um elemento substantivado que estabelecerá a seguinte relação
formal, considerando esse exemplo:
o SN = Subst. + Adj. + Adj.,
ou seja, o segundo adjetivo estará restringindo o primeiro, o que se compreenderá se se tiver a estrutura
desdobrada:
o SN = Subst. + Adj. + Adv,
com o advérbio regendo o adjetivo. Ou, se se tratar de uma redução subst. + adj. à subst., como em
deficientes físicos, a forma
o SN = Subst + Adjet.
Como deficientes passa a funcionar como núcleo, parece natural que um modificador tenha
a forma adjetiva (físicos) – o que produz, como tenho chamado, a “falsa inerência”.
Basilio (1991) quer demonstrar que é bastante produtiva a formação de advérbios por
conversão de adjetivo (quer dizer: sem que haja qualquer operação fonológica envolvida). Isso ocorre em
seqüências como: falar macio; trabalhar duro; começar errado; namorar sério. Ela afirma que tudo
indica que se trata de verdadeiros advérbios por conversão, paralelamente à formação por acréscimo de mente a formas adjetivais. Considera que a possibilidade de flexão (concordância com o substantivo) é o
critério para marcar a diferença entre predicativo e o modificador do verbo: João fala gostoso/Maria fala
gostoso x *Maria fala gostosa; além disso, há evidência de que a conversão seria alternativa morfológica
para a formação com –mente; esses advérbios são obrigatoriamente pospostos ao verbo; há propriedades
típicas do advérbio nas formas conversas (falar sério à falar de modo sério).
Eu diria, por hipótese, que nos casos que analiso trata-se de adjetivos em função adverbial,
basicamente tendo em vista a concordância que é feita – tratando-se, como já especifiquei, de função
argumental. Uma função argumental exacerbada, se assim se pode dizer.
Quero lembrar ainda a conclusão de Perini et alii (1998) num estudo sobre o SN em
português (incluindo estrutura, significado e função):
[...] o núcleo do SN não é uma entidade definível formalmente (a partir de
sua posição no sintagma, ou de outros fatores, como o controle da
concordância); antes, trata-se de uma função semântica, a saber, o núcleo é o
termo do SN que está tomado em acepção referencial – ou seja, como
“designação de uma coisa”. [...] Há razões para crer que em cada SN há
sempre um centro de referência, e apenas um (p. 221, grifo dos autores).
A partir daqui é possível retomar a questão dizendo que, se “substantivos” e “adjetivos”
tradicionais têm sintaticamente o mesmo potencial funcional, eles constituem formalmente uma única
classe; a diferença é sua potencialidade semântica: substantivos podem ter acepção referencial, adjetivos
não. Assim, seguindo Mattoso Câmara (1970), os autores dizem que morfossintaticamente substantivos e
adjetivos não se distinguem.
7. Amostra do corpus
Para caracterizar as expressões em que há uma função argumental provida por adjetivo,
faço uma primeira distinção: a maior parte dos exemplos coletados diz respeito a seres humanos, havendo
especificação, no SN, de um núcleo-nome substantivo ou não – em várias ocorrências manifestando-se
como núcleo uma forma adjetiva (em função substantival, portanto), já resultado de redução de um SN;
um número proporcionalmente reduzido (mas tendendo a aumentar) de exemplos diz respeito a elementos
não-humanos. A estrutura completa, em sua aparência externa, para o SN que comporta uma função
argumental é a seguinte:
SN = Substantivo
Médicos
Cirurgião
Crimes
Textos
+
(Adjetivo)
dependentes
normativos
+
Adjetivo (função argumental)
QUÍMICOS
ONCOLÓGICO
DIGITAIS
GRAMATICAIS
Como observado em Lobato, em nenhum desses casos o adjetivo em função argumental
“denota” propriedade do elemento nuclear da expressão; não se trata de atributos daquilo que é referido.
O aparente adjetivo corresponde a um termo que, desdobrado, pode mostrar a característica de relação
que ele implica, resolvendo-se diretamente por uma função adverbial ou por uma complementação
nominal com Sprep:
o
o
o
o
médicos quimicamente dependentes / com dependência de elementos químicos
(médico) cirurgião especialista em cirurgia de remoção de câncer
crimes relativos ao mundo da informática
textos em que aparecem normas de caráter gramatical
Note-se ainda: é possível reduzir médico psiquiatra a psiquiatra, visto que se pode lidar
com implicação ou pressuposto (psiquiatra é um subconjunto do conjunto médicos), mas não se diz o
infanto-juvenil. Com efeito: contrastando médico homeopata / médico renal / cirurgião cardíaco /
cirurgião vascular /cirurgião torácico, note-se a possibilidade atual de o homeopata (pressupõe médico),
mas não de o renal, o cardíaco [o cardiologista, sim], o vascular, o torácico, o psicopata (psicopata seria
qualificador, remetendo ao afetado).
Segue uma amostra do corpus5 (TA = trabalho acadêmico), observando-se ainda que, para o
caso de seres humanos, trata-se ou de referência mais genérica (pessoas) ou feita a classes, profissões.
Faço comentário adicional em algumas situações, tal como a comparação com outras expressões, e em
alguns casos apresento um recorte mais substancial – o que não considerei necessário para todos os casos,
levando em conta sua recorrência no cotidiano.
A) Falsa inerência relativamente a pessoas.
(1)
(2)
(3)
(4)
(5)
(6)
(7)
(8)
(9)
(10)
(11)
(12)
(13)
(14)
(15)
(16)
(17)
(18)
(19)
(20)
5
cirurgião ONCOLÓGICO (Comparar: o oncologista) / cirurgião CARDÍACO (Comparar:
tratar de pessoas cardíacas) / cirurgião VASCULAR
cardiologista GERIÁTRICO [especialista em tratamento do coração de pessoas idosas]
(Comparar: cirurgião cardíaco/cardiologista) “‘A descoberta pode levar a novas
técnicas de prevenção e tratamento’, afirma Maurício Wajngarten, cardiologista
geriátrico de São Paulo.” (reportagem em revista de circulação nacional, 2002).
analfabetos FUNCIONAIS / analfabetos CIENTÍFICOS: “Escola pública forma analfabetos
CIENTÍFICOS”. (matéria de Jornal, 2002)
lingüistas APLICADOS / lingüista HISTÓRICO / lingüistas FORMAIS (Comparar: o
(lingüista) variacionista (e não VARIADO), o (lingüista) analista (e não ANALÍTICO),
lingüística formal): “No caso do falante, o que em geral aflora nos textos dos lingüistas
formais [= formalistas] é a concepção tradicional de pessoa humana...” (TA, 2001).
psicólogos EXPERIMENTAIS (Comparar: os experimentalistas); psicólogos
INTROSPECTIVOS; psicólogos EDUCACIONAIS
antropólogo COGNITIVO / cientista COGNITIVO (Comparar: Os cognitivistas...)
semanticistas GERATIVOS / gramáticos GERATIVOS (Comparar: Os gerativistas)
analistas ECONÔMICOS (Comparar: Os economistas...)
oradores SAGRADOS [que tematizam o mundo sagrado] (Comparar: livro sagrado)
feridos GRAVES [(pessoas) com ferimentos graves / gravemente feridas]
criminosos AMBIENTAIS [(pessoas) que cometem crimes contra o meio ambiente]
terroristas ECOLÓGICOS / terroristas POLÍTICOS
mortos e desaparecidos POLÍTICOS [(pessoas) mortas e desaparecidas por motivação
política]
biólogos MOLECULARES
arqueólogos MARINHOS (Comparar: sal marinho, monstro marinho)
terapeuta FLORAL (Comparar: medicamentos florais / os florais)
jornalista ECONÔMICO / colunistas ECONÔMICOS ( Comparar: o economista)
jornalistas CULTURAIS (Comparar: páginas culturais); jornalistas CIENTÍFICOS
(Comparar: artigos científicos); jornalistas POLICIAIS (Comparar: agentes policiais)
agricultores BIOLÓGICOS [referência a produtores de alimentos chamados “orgânicos”,
com técnicas de cultivo que excluem agrotóxicos, ou seja, fertilizantes, defensivos
químicos] (Comparar: agricultura orgânica, alimentos orgânicos)
pastores ELETRÔNICOS / pregadores ELETRÔNICOS (robôs doutrinando pela TV?).
Tenho no momento cerca de 90 ocorrências registradas, e esse número pode ser facilmente multiplicado.
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(22)
(23)
(24)
doentes RENAIS (Comparar: Cálculos renais). Hipótese de uso futuro: médicos renais.
viajantes AÉREOS
pesquisador MUSICAL (Comparar: brinquedo musical)
desenhista PORNOGRÁFICO : “Guardadas as diferenças técnicas, o apelo erótico das
garotas digitais é digno das criações de Carlos Zéfiro [...], o mais famoso desenhista
pornográfico brasileiro.” (Revista de circulação nacional, 2002).
B) Falsa inerência relativamente a não-pessoas.
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(28)
(29)
(30)
(31)
(32)
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arquivos PARANORMAIS [arquivos relativos a casos de paranormalidade]
filtro SOLAR [filtro de proteção contra os raios do sol], capota SOLAR [com abertura
para permitir a entrada de raios do sol] (Comparar: raios solares / calor solar)
Ciências M OLECULARES / biologia MOLECULAR
demência VASCULAR [que tem como causa problemas de ordem vascular]
Consultórios GRAMATICAIS [para consulta sobre questões de gramática] / textos
normativos GRAMATICAIS [textos com normas de caráter gramatical]: “Essa regência já
tem acolhida hoje não só nos textos literários como também nos normativos
gramaticais, apesar de ainda com ressalvas.” (TA, 1999)
“certificado ORGÂNICO” [encontrado num “selo de qualidade”; certificado concedido
pelo Instituto Biodinâmico, que fiscaliza e certifica produtos orgânicos no Brasil de
acordo com normas internacionais] (Comparar: lixo orgânico, produto orgânico)
droga INTELIGENTE [aquela que age em vários pontos do processo da doença]
terapia FLORAL [terapia com base em princípios extraídos de flores] / terapia CELULAR
[uso de células para combater doenças (transfusão, transplante de células)]
jornais ECONÔMICOS [jornais de Economia ] “Os dois principais jornais econômicos do
país, La Tribune e Les Echos, repercutiram a reforma brasileira.” (Revista de
circulação nacional, 2003)
8. Considerações finais
A formação estudada aparece comumente com um aspecto de composição, o que leva a
pensar que, em algum momento futuro, pelo menos algumas das expressões poderão sofrer hifenização na
escrita: deficientes-físicos, deficientes-mentais, dependentes-químicos, cirurgião-vascular. Basilio (1999:
68) diz que uma das preocupações atuais dos lingüistas brasileiros, focalizada na delimitação de unidades
lexicais, é buscar critérios mais aperfeiçoados para distinguir palavras formais e outras unidades lexicais,
bem como sintagmas e palavras compostas. Como se viu com Bréal, a identificação de uma locução pode
implicar certa estabilidade de seus termos – o que estou hipotetizando com os exemplos “virtuais” que
acabo de fornecer.
Muitas outras expressões são presumíveis, mas esse padrão não é seguido uniformemente: é
usual “crítico teatral”, bem como “crítico literário”, mas não “crítico artístico” (e sim “crítico de arte”).
É fácil entender que a variedade de influências a que falares e falantes estão sujeitos, ainda
que sempre haja pressão “purista” e a tentativa de monitoração em situações especiais, tenha peso
substancial nas pequenas mudanças que vão afetando a norma (no sentido do que a tradição vai
desenhando e o uso incorpora).
Neste ponto, retomo o conceito de hiperlíngua (cf. AUROUX, 1994, 1998) para estabelecer
que o fenômeno aqui estudado se processa num espaço/tempo de que fazem parte gramáticas, dicionários
e manuais (resultantes da gramatização), todos eles exercendo o papel histórico de impor certas restrições
sobre o uso da língua, em busca de identidade. O “modelo” da hiperlíngua supõe indivíduos mantendo
relações de comunicação em atividades sociais com base em certas aptidões, que variam de um indivíduo
para outro, tendo acesso a instrumentos lingüísticos (tais como gramáticas e dicionários). Os sujeitos,
portanto, são centrais nesse espaço/tempo, e com os outros elementos compõem uma estrutura específica.
Considera-se, aí, que qualquer atividade lingüís tica com suas diferenças tem uma relação estreita com o
ambiente cultural e a realidade não-lingüística (AUROUX, 1998). Se os instrumentos lingüísticos figuram
como componentes que constrangem os sujeitos, direcionando sua ação discursiva e promovendo a
estabilidade lingüística (criando normas), o espaço/tempo da hiperlíngua não é necessariamente estável, e
os próprios sujeitos podem ser “extremamente puristas ou muito tolerantes” (1998: 22). Enfim, a
hiperlíngua é um sistema bastante dinâmico, de modo que as atividades discursivas são sempre
subdeterminadas pelas gramáticas, sobretudo considerando que nem tudo foi devidamente mapeado e
normatizado nesses instrumentos, o que dá margem a certas escolhas – e à deriva. Ademais, se é possível
compreender e aprender o que as gramáticas e os dicionários sistematizam, “vivemos e trocamos falas,
em um ambiente dado, com a memória dos discursos e dos acontecimentos lingüísticos” (1998: 27).
Assim, o estudo que empreendi mostra que os “sobressaltos” provocados por elipses tão
radicais apenas configuram “o trabalho normal e legítimo da inteligência” (BRÉAL, 1992: 111). Por
outro ângulo, estrutura lingüística, memória e acontecimento discursivo imbricam-se: as formas
observadas se encaixam em estruturas existentes. E as permanentes exigências dos puristas ao extremo
são contrabalançadas pela tolerância daqueles que assumem o dinamismo da hiperlíngua, (re)criando a
memória desse discurso. Ainda que haja sempre, aqui e ali, o esforço para o controle, “não há ritual sem
falhas” (PÊCHEUX, 1988: 301).
RESUMO: Este trabalho mostra um processo comum na língua portuguesa: a “falsa inerência”, que diz
respeito a uma relação específica do adjetivo com o nome (função argumental), marcada pela redução de
uma expressão complexa. Examinam-se as várias nuanças desse fenômeno e os efeitos de sentido que
podem produzir no discurso.
PALAVRAS-CHAVE: mudança; adjetivo; falsa inerência.
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