1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS – CEJURPS CURSO DE DIREITO – CAMPUS SÃO JOSÉ NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DOS PRESOS E A VINCULAÇÃO DO JUIZ À LEI Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, na Universidade do Vale de Itajaí, Centro de Educação São José. Acadêmico: Jesus José de Pina Correia São José (SC), outubro, 2007 2 JESUS JOSÉ DE PINA CORREIA A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DOS PRESOS E A VINCULAÇÃO DO JUIZ À LEI Monografia apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito, na Universidade do Vale de Itajaí, Centro de Educação São José, sob a orientação do Prof. Msc. Rodrigo Mioto dos Santos. São José (SC), outubro, 2007 3 AGRADECIMENTOS Agradeço, Primeiramente à Deus, base sólida e guardião de todos os meus passos; O meu orientador, pela paciência, dedicação, apoio e principalmente, por estar sempre presente nas horas que mais precisei para suprir as minhas dúvidas acadêmicas; A minha família, particularmente aos meus dedicados pais, irmãos e sobrinhos; A minha namorada, pela paciência, apoio, amor, carinho e compreensão; Por fim, agradeço aos meus professores, conterrâneos, amigos e fiéis companheiros da batalha acadêmica, pelas calorosas e profícuas discussões nos corredores da Universidade, principalmente após cada prova. 4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho: Primeiramente à Deus, base sólida e guardião dos meus passos; Aos meus pais, meus ídolos – Sr. Cácá e Sra Maria – pela dedicação, carinho, amor, pelos ensinamentos, apoio, enfim, por tudo que fizeram e fazem por mim; Aos meus irmãos Jordan, Judith, Neusa, Jerymias, Janeth e Jorge Pacheco, a minha avó Virgínia (in memoriam) - que sempre estiveram do meu lado e participaram intensamente da minha formação pessoal e acadêmica. Aos meus sobrinhos – Flávia e Dasley À minha namorada Sandra Bettencourt, pelo carinho, amor, dedicação, compreensão, apoio acadêmico e emocional, enfim, por ser essa pessoa muito especial. E por fim, aos meus conterrâneos, amigos e colegas de faculdade, pela amizade e por dividirem comigo as aflições e peripécias da vida acadêmica. Sem dúvida, são amizades sinceras e perenes. 5 JESUS JOSÉ DE PINA TAVARES CORREIA A VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DOS PRESOS E A VINCULAÇÃO DO JUIZ À LEI Esta Monografia foi julgada adequada para obtenção do título de Bacharel em Direito e aprovação pelo curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI/São José – CES VII. São José (sc), 09 de novembro de 2007. Prof. Rodrigo Mioto dos Santos, MSc. UNIVALI Orientador Prof. Giovani de Paula, MSc. UNIVALI Prof. Juliano Keller do Valle, MSc. UNIVALI 6 RESUMO A pesquisa tem como finalidades específicas verificar e analisar o status dos direitos assegurados aos presos no ordenamento jurídico brasileiro, demonstrar ilustrativamente o atual quadro do sistema penal no Brasil, e conseqüentemente, demonstrar ilustrativamente às freqüentes violações dos direitos dos apenados para, ao final, analisar o instituto da vinculação do juiz à lei. Durante a presente pesquisa foi utilizado o método dedutivo. O trabalho está dividido em 3 capítulos: no primeiro capítulo será analisado o status das normas protetivas dos presos asseguradas no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a Constituição Federal/88, o Pacto São José de Costa Rica (Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos) e a Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/84; no segundo capítulo será elencado e analisado o catálogo dos direitos assegurados aos presos nos documentos legais supra; e no terceiro e derradeiro capítulo será trabalhado o instituto da vinculação do juiz à lei, bem como mostrar-se-á ilustrativamente o atual quadro do sistema penal brasileiro. Por fim, salienta-se que o apenado, pelo fato de estar encarcerado, não perde a sua condição de pessoa humana, por isso, os seus direitos não atingidos pela sentença penal condenatória devem ser rigorosamente respeitados, sob pena de flagrante violação da Constituição. E assim, o juiz não pode se eximir de aplicar a lei, pois, o mesmo a ela está vinculado de forma obrigatória. É imperioso que fique bem claro a obrigatoriedade do juiz em aplicar a lei, sob pena de afastarse de um Estado de Direito Democrático. Palavras-chave: direitos dos presos, direitos e garantias constitucionais; Lei de Execução Penal; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, vinculação do juiz à lei. 7 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................................08 1 O STATUS DAS NORMAS PROTETIVAS DOS PRESOS.................................................11 1.1 Status das normas constitucionais de direitos fundamentais....................................................11 1.2 A proteção dos direitos humanos pelo Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos): o apoio internacional na defesa dos direitos fundamentais .................................................................................................................................17 1.3 A Lei de Execuções Penais como especificação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados aos presos .................................................................................24 2 O CATÁLOGO DE DIREITOS RECONHECIDOS AOS PRESOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO........................................................................29 2.1 Os direitos assegurados na Constituição Federal.....................................................................29 2.2 Direitos assegurados aos presos na Convenção Americana sobre Direito Humanos ..............34 2.3 Os direitos assegurados na Lei de Execução Penal..................................................................38 3 AVINCULAÇÃO DO JUIZ À LEI E A ATITUDE A SER TOMADA DIANTE DE FLAGRANTE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS ASSEGURADOS AOS PRESOS.................49 3.1 O quadro do sistema prisional brasileiro: a violação da lei pelo Estado ..................................49 3.2 O caso do juiz LIVINGSTHON JOSÉ MACHADO ..............................................................55 3.3 A vinculação do juiz à lei: poderia o juiz LIVINGSTHON JOSÉ MACHADO ter decidido de forma diversa? ..........................................................................................................................59 CONSIDERAÇÕES FINAIS .....................................................................................................68 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................70 ANEXO ........................................................................................................................................73 8 INTRODUÇÃO Em novembro de 2005, foi noticiada com certa ênfase, nos órgãos de comunicação social, a decisão do então Juiz titular da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Contagem/MG – Livingsthon José Machado – que determinou a expedição de alvará de soltura aos presos que estavam cumprindo pena em condições degradantes e desumanas nas carceragens do citado município. Com efeito, por mais paradoxal que possa parecer, não se trata tão somente de um caso isolado dentro do atual sistema prisional brasileiro, muito pelo contrário, é cada vez mais corriqueira essa situação de cumprimento de penas em condições desumanas e degradantes. Nesse passo, pressupõe-se afirmar que os direitos humanos fundamentais dos presos assegurados no ordenamento jurídico brasileiro, com destaque à Constituição, não estão sendo observados. Assim, pergunta-se: Quais são os direitos e o status desses direitos assegurados aos presos? O que deve fazer o Judiciário diante dessa situação? Qual é o papel do juiz nesses casos? O juiz é obrigado a aplicar a lei para fazer cessar essas violações de direitos humanos fundamentais? Dessas reflexões provém a importância da presente pesquisa. Assim, propõe-se verificar e analisar o status dos direitos assegurados aos presos no ordenamento jurídico brasileiro, demonstrar ilustrativamente o atual quadro do sistema penal no Brasil e conseqüentemente, apresentar as freqüentes violações dos direitos dos apenados e, por fim analisar o instituto da vinculação do juiz à lei. Assim, para atingir os objetivos traçados no presente trabalho usar-se-á o método dedutivo, tendo como ponto de partida ou premissa maior, a análise dos direitos assegurados e reconhecidos no ordenamento brasileiro. A segunda premissa se refere à universalidade desses direitos, ou seja, são direitos que se estendem a todos, pois, todos são iguais perante a lei e por fim, concluiu-se que os presos também têm acesso a esses direitos constitucionalmente reconhecidos. Para abordar as questões acima mencionadas o presente trabalho está dividido em três capítulos. O primeiro capítulo versará sobre o status das normas protetivas dos presos asseguradas no ordenamento jurídico brasileiro, quais sejam, a Constituição Federal/88, o Pacto São José de Costa Rica (Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos) e a Lei de Execução Penal – Lei n.º 7.210/84. 9 É na Constituição Federal/88 que se encontram uma grande parte dos direitos assegurados aos presos, basicamente no seu art. 5º, o que equivale afirmar, que os direitos assegurados aos presos fazem parte do denominado direitos fundamentais, o que lhes conferem maior credibilidade, respeito e aplicabilidade, pois as normas constitucionais definidores de direitos fundamentais têm aplicação imediata e eficácia plena, além de serem hierarquicamente superiores às demais, motivo pelo qual, qualquer norma infraconstitucional ou ato administrativo que contrariem as disposições constitucionais devem ser veementemente repudiados. Relativamente ao Pacto de São José de Costa Rica, ratificada no Brasil pelo Decreto 678/92, é que se encontra a proteção internacional dos direitos humanos fundamentais dos presos. Assim, a proteção dos direitos humanos ganharam uma proporção e proteção internacional na qual cada Estado tem por obrigação zelar, respeitar e fazer respeitar os mesmos, criando mecanismos eficazes de responsabilização internacional de um Estado pelas suas violações – é a responsabilidade internacional do Estado decorrente de um descumprimento de uma obrigação internacional. Por outro lado, Convenção Americana foi criada para proteger os direitos fundamentais da pessoa humana, contra qualquer Estado e essa proteção independe da nacionalidade do indivíduo. A Convenção Americana é um instrumento multilateral entre os Estados que consiste no compromisso de, acima de tudo, respeitar os direitos humanos dos indivíduos. No último tópico do primeiro capítulo é feita uma abordagem sobre a Lei de Execução Penal como especificação dos direitos fundamentais reconhecidos aos presos na Constituição. É por isso que se afirma que o processo de execução penal, em momento algum pode arranhar a dignidade da pessoa humana, garantida contra qualquer ofensa física ou moral, sendo incontestável que qualquer ato – judicial ou administrativo - que contrarie essa disposição, é indubitavelmente inconstitucional. No segundo capítulo buscou-se elencar e analisar o catálogo de direitos reconhecidos aos presos pelo ordenamento jurídico brasileiro. No primeiro item, destacam-se os direitos assegurados na Constituição Federal/88, basicamente, no seu art. 5º. Pretendeu-se, no entanto, identificar na Constituição Federal alguns direitos reconhecidos aos presos, e que freqüentemente lhes são acintosamente negados. No que tange aos direitos assegurados no Pacto de São José de Costa Rica que se refere à proteção internacional dos direitos humanos, destacou-se a vinculação dos Estadosmembros, sendo que em caso de violação estarão sujeitos a responsabilidade internacional, pois, o Estado é responsável por reparar as violações aos direitos humanos fundamentais ocorridos, proporcionando recursos de modo a custear a investigação, condenação dos 10 responsáveis pelas violações e o pagamento de indenizações tanto a vítima como também aos familiares. E, por último, é feita uma análise dos direitos estabelecidos na Lei de Execução Penal, com ênfase no seu art. 88, que estabelece claramente que o apenado será alojado em cela individual com área mínima de seis metros quadrados (art. 88, b) e tal local deverá conter obrigatoriamente dormitório, aparelho sanitário e lavatório. De igual modo, a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana são requisitos básicos e imprescindíveis da unidade celular (art. 88, alínea a). O terceiro e derradeiro capítulo debruçou-se sobre o instituto da vinculação do juiz à lei e a atitude a ser tomada diante de flagrante violação aos direitos assegurados aos presos. Nesse passo, propôs-se abordar primeiramente o atual quadro do sistema penal brasileiro e a situação da violação dos direitos dos presos pelo Estado, através de inúmeras reportagens veiculadas nos órgãos de comunicação social. Reportagens essas que retratam de uma forma cristalina a realidade dos estabelecimentos prisionais no Brasil. Por conseguinte, no segundo tópico do derradeiro capítulo, analisou-se um dos casos mais marcantes da realidade prisional brasileira, rotulado no presente trabalho de “O caso do Juiz Livingsthon José Machado”, no qual serão verificados os fundamentos jurídicos que motivaram a decisão de expedir alvará de soltura aos presos custodiados nas carceragens do 1º DP de Contagem prolatada pelo então Juiz titular da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Contagem/MG. Em decorrência da citada decisão, por derradeiro, buscou-se no último tópico analisar o instituto da vinculação do juiz à lei e a possibilidade de o Juiz Livingsthon José Machado de decidir de maneira diversa. Em suma, com o presente trabalho, não se pretende, como é óbvio, esgotar e analisar todos os direitos dos presos, mas sim, apenas mostrar a situação alarmante do atual sistema prisional brasileiro e demonstrar, concomitantemente, que por mais grave que seja a infração cometida pelo condenado, os seus direitos e garantias legais (Constituição Federal/88, Pacto São José de Costa Rica e a Lei de Execução Penal) hão de ser resguardados e preservados, sobretudo os relacionados com a dignidade da pessoa humana, salvo aqueles incompatíveis com o cumprimento da sentença penal condenatória. 11 1 O STATUS DAS NORMAS PROTETIVAS DOS PRESOS Os presos, assim como qualquer outro cidadão livre, são possuidores de obrigações e igualmente, como é óbvio, de direitos. Esses direitos estão assegurados e reconhecidos em vários documentos legais, com destaque à Constituição Federal/88, Pacto de São José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direito Humanos) – o qual Brasil é signatário e a Lei de Execução Penal, instituído pela Lei 7210/84. Portanto, neste tópico, pretende-se fazer uma análise no sentido de evidenciar a natureza ou status das normas que assegurem os direitos dos presos nos documentos enumerados anteriormente. Nesse passo, o primeiro e o principal documento legal protetor dos direitos dos presos a ser analisado é a Constituição Federal de 1988. Esses direitos possuem status de normas constitucionais de direitos fundamentais, o que pressupõe afirmar que são normas hierarquicamente superiores às demais e que, por isso, merecem um tratamento e atenção peculiar por parte do judiciário. O segundo documento legal protetor dos direitos humanos e conseqüentemente dos direitos dos presos, é o Pacto São José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos). Pretende-se mostrar a panorama de proteção dos direitos fundamentais no contexto internacional e de que forma funcionam os mecanismos de proteção desses mesmos direitos. Por fim, no que tange às normas protetivas dos direitos dos presos, destaca a Lei de Execução Penal, que não é mais do que especificação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Destarte, convém por oportuno salientar que qualquer violação dos direitos assegurados aos presos esculpidos na Lei de Execução Penal constitui uma flagrante violação da Constituição Federal. 1.1 Status das normas constitucionais de direitos fundamentais Os direitos individuais assegurados na Constituição de 1988 estão elencados basicamente no artigo 5º, o que pressupõe afirmar que fazem parte dos denominados direitos 12 fundamentais. Por conseguinte, mister se faz, antes de debruçarmos efetivamente sobre esses direitos constitucionalmente assegurados, realçar a importância e o status das normas constitucionais de direitos fundamentais. Antes de adentrarmos no exame do status das normas constitucionais de direitos fundamentais, primeiramente teremos que abordar sucintamente, o próprio conceito de direitos fundamentais. Como ensina José Afonso da Silva, não é tarefa fácil conceituar direitos fundamentais e essa tarefa torna-se ainda mais difícil devido às várias expressões utilizadas para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do homem, direitos individuais, direitos subjetivos, liberdades fundamentais, públicas, direitos 1 fundamentais do homem, entre outras denominações . Aliás, Ingo Sarlet, que partilha do mesmo entendimento, realça a sua preocupação relativamente à heterogeneidade, ambigüidade e discordância conceitual e terminológica, e, inclusive, ressalta a importância e necessidade de obter um critério comum2. Cumpre sublinhar que a própria Constituição de 1988, no dizer de Ingo Sarlet, não obstante as significativas evoluções, ainda se caracteriza por uma variedade semântica na seara terminológica dos direitos fundamentais, empregando as mais distintas expressões, quais sejam, direitos humanos, direitos e garantias fundamentais, direitos e liberdades constitucionais e direitos e garantias individuais3. Prossegue ainda o autor, afirmando que a amplitude do catálogo, a falta de rigor cientifico, aliada a uma técnica legislativa deficiente, constituem como principais vícios da Constituição de 1988, o que enseja contradições e problemas de natureza hermenêutica.4 Cumpre sublinhar, que essa dificuldade em encontrar um denominador comum e essa falta de sintonia inerente a nomenclatura dos “direitos fundamentais”, em momento algum enfraquece a força normativa e a aplicabilidade destes, pois a sua eficácia e efetividade independem do termo usado para os definirem. Porém, uma determinada denominação, numa determinada situação poderá atribuir aos direitos fundamentais maior abrangência e amplitude. Com efeito, a problemática de conceituar “direitos fundamentais” e a falta de consenso no seu uso, têm rendido efetivamente discussões calorosas. Contudo, por não ser proposta primordial do presente trabalho fazer um estudo exaustivo acerca das expressões usadas ao se 1 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 182. 2 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 33. 3 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 33/34. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado 2005, p. 79. 13 referir a direitos fundamentais, descarta-se a possibilidade de trazer à tona os posicionamentos dos doutrinadores e controvérsias que aquecem essas discussões. Porém, considerando a natureza e o tema do presente trabalho, a expressão que mais se coaduna é também aquela que segundo José Afonso da Silva considera a mais adequada: que são direitos fundamentais do homem, pois: [...] além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reserva para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.5 No qualificativo fundamentais, prossegue o citado autor: [...] acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive. Fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concretamente e materialmente efetivados.6 No que tange a natureza das normas de direitos fundamentais, no entendimento de José Afonso da Silva, desde que no plano interno assumiram o caráter concreto de normas positivas constitucionais, sem margem para discussão, a sua natureza passa-se a ser constitucional.7 Ao fazer parte do corpo constitucional, as normas de direitos fundamentais passam a gozar de um novo status, que lhes asseguram maior respeito e credibilidade, bem como aplicabilidade. Assim, por serem normas de natureza constitucional, no dizer de Raúl Machado Horta, são hierarquicamente superiores às leis ordinárias e gozam de uma rigidez que as robustecem, pois, afirma o retro citado autor que “a distinção formal confere maior permanência ao todo constitucional, que só pode vir a ser modificado dentro de processo pré-estabelecido” 8 Nesse sentido, José Afonso da Silva, afirma que da rigidez constitucional emana, como principal conseqüência, o princípio da supremacia da constituição, o que significa que: 5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 182. 6 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 182. 7 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 183. 8 HORTA, Raúl Machado. Direito Constitucional, 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 126. 14 [...] a constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e a todos os poderes estatais são legítimos na medida em que os reconheça e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação as demais normas jurídicas.9 Por conseguinte, Raúl Machado Horta defende que: [...] não basta o simples reconhecimento teórico da supremacia constitucional. É preciso reconhecer (...), as conseqüências que defluem da regidez constitucional: permanência jurídica da constituição e superioridade jurídica das leis constitucionais sobre as leis ordinárias, acarretando repulsa a toda lei contrária à Constituição.10 Nesse passo, mister se faz reconhecer a nível prático, a hegemonia das normas constitucionais, de modo que todas as disposições normativas infraconstitucionais e/ou quaisquer atos administrativos que contrariam as disposições da Carta Maior, devem ser declarados inconstitucionais, cujos valores jurídicos, se reduzem a zero. Relativamente a eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais, André Ramos Tavares11, apresenta didaticamente algumas classificações, quais sejam, eficácia plena e limitada, direta e indireta, exeqüíveis e não exeqüíveis. No que tange a aplicabilidade, a Constituição é expressa, quando estatui que as normas definidores dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Assim, em caso da existência das normas definidores dos direitos fundamentais, é imperativo aos aplicadores da Constituição terem como princípio a eficácia plena e a aplicabilidade imediata dessas mesmas normas. Se as normas de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, sob a égide suprema da Constituição, pressupõe afirmar no entendimento de André Ramos Tavares, que são igualmente de eficácia plena, “portanto, independem de legislação posterior para sua plena execução. Desde a entrada em vigor da Constituição, produzem seus efeitos essenciais, ou apresentam a possibilidade de produzi-los.” 12 Raul Machado Horta, no que tange a natureza da norma constitucional, é peremptório ao afirmar que: 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 47. 10 HORTA, Raúl Machado. Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 126. 11 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 90/91. 12 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 92/93. 15 [...] é a norma primária do ordenamento jurídico, ocupando o lugar mais elevado na pirâmide do sistema jurídico. A norma constitucional é a norma fundamental que ocupa o vértice do ordenamento jurídico. A posição hierárquica suprema da nossa constituição desencadeia a sanção da inconstitucionalidade, quando se verifica o conflito entre a norma fundamental e primária e as normas ordinárias e secundárias.13 Nesses casos, a eficácia das normas constitucionais, no dizer de José Sampaio, atua no sentido de: [...] ensejar 'humanização' da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva e da justiça social, impressas no tecido constitucional.14 Porém, na separação entre as normas constitucionais auto-aplicáveis e não aplicáveis, no que tange a sua eficácia, é que apareceu a concepção moderna das normas constitucionais programáticas. Luiz Roberto Barroso define normas programáticas como: [...] aquelas em que o legislador constituinte ou não, em vez de editar regra jurídica de aplicação concreta, apenas traça linhas diretoras, pelas quais se hão de orientar os poderes públicos. A legislação, a execução e a própria justiça ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função.15 Contudo, outros doutrinadores (Luis Roberto Barroso e Jorge Miranda), entendem que todas as normas são dotadas de eficácia vinculativa imediata dentro de uma análise sistêmica da Constituição, afastando-se a identificação das normas programáticas como mera intenção futura ou simples programas. Sustentam ainda os autores que as normas programáticas têm eficácia vinculante e imediata, pois toda a norma constitucional é sempre obrigatória, pois derivam do Poder Constituinte sendo dotadas de supralegalidade e todas apontam no topo do ordenamento jurídico a que as demais normas devem respeito. Na lição de Raúl Machado Horta a norma programática confere maior elasticidade ao ordenamento constitucional, o que permite uma “atualização sucessiva da Constituição, de modo a acomodá-la às tendências da vontade popular, projetada periodicamente na 13 HORTA, Raúl Machado. Direito Constitucional, 4. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 279. SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Delrey, 2003, p. 273. 15 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. São Paulo: Renovar, 2006, p. 114. 14 16 composição do Poder Legislativo, responsável pela concretização da norma programática”. 16 Ainda, na valiosa contribuição doutrinária do Raul Horta: [...] a norma programática vincula-se a normas constitucionais que estabelecem fundamentos, fixam objetivos, declaram princípios e enunciam diretrizes. Nesses casos, o comando da norma programática é exeqüível por si mesmo, sem necessidade de complementação legislativa ulterior.17 Por derradeiro, no que tange a aplicabilidade dos direitos fundamentais, o §1º do artigo 5º da Carta Maior é taxativo, ao estabelecer ipsis litters que: Art. 5º - As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.18 Ingo Sarlet, ao comentar o §1º do artigo 5º, afirma que a função primordial deste preceito normativo é precisamente “oportunizar a aplicação imediata, sem qualquer intermediação concretizadora, assegurando a plena justiciabilidade destes direitos, no sentido de sua exigibilidade em juízo”. 19 Prossegue ainda o autor alegando que: [...] a aplicabilidade imediata e a plena eficácia destes direitos fundamentais encontram explicação na circunstância de que as normas que os consagram receberam do Constituinte, em regra, a suficiente normatividade e independem de concretização legislativa, consoante, aliás, já sustentava a clássica concepção das normas auto-executáveis.20 Na mesma linha de pensamento o entendimento de Luis Roberto Barroso: [...] as normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de um cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências da insubmissão ao seu comando.21 16 HORTA, Raúl Machado, Direito Constitucional. 4. ed. Belo Horizonte: Delrey, 2003, p. 195. HORTA, Raúl Machado, Direito Constitucional, 4. ed, Belo Horizonte: Delrey,2003, p. 198. 18 BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1998, p. 5. 19 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 276. 20 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 276. 21 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. São Paulo: Renovar, 2006, p. 76. 17 17 Com efeito, a imperatividade das normas constitucionais fundamentais nem sempre se manifestou com a mesma intensidade que se vê atualmente, ou seja, havia uma carência de normatividade, tornando-se juridicamente irrelevante. Por derradeiro, na lição de José Afonso da Silva, algumas características são atribuídas aos direitos fundamentais, tais como a inalienabilidade, imprescritibilidade e irrenunciabilidade. Assim, no dizer do autor, os direitos fundamentais não podem ser transferidos e nem tampouco negociados por não terem conteúdo de cunho econômicopatrimonial (inalienabilidade), da mesma forma que não podem ser renunciados, independentemente se estão sendo ou não exercidos (irrenunciabilidade). Com efeito, o não exercício dos direitos fundamentais, não implica a sua prescrição, pois estes poderão ser exigidos a qualquer tempo (imprescritibilidade) sem prejuízo de qualquer ordem.22 Assim, após esse breve apanhado acerca do status das normas constitucionais de direitos fundamentais, ficou patente a importância e a hegemonia da Constituição em relação às demais normas. Convém não olvidar que as normas definidoras de direitos fundamentais, além de serem normas que conservam a imperatividade, são normas de aplicabilidade imediata e de plena eficácia. Ademais, importa enfatizar que qualquer violação das normas de direitos fundamentais, implica numa flagrante violação da Constituição, que tem mecanismos eficaz e próprio de coação, de modo a garantir-lhe a imperatividade. Em seguida, sem mais delongas, passemos a analisar a proteção dos direitos humanos na esfera internacional. 1.2 A proteção dos direitos humanos pelo Pacto de San José de Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos): o apoio internacional na defesa dos direitos fundamentais Após abordar a natureza das normas constitucionais de direitos fundamentais, cuidaremos nesta parte de mostrar a sua dimensão territorial e de que forma é feita a sua proteção no âmbito internacional. Para fins de esclarecimento, direitos humanos e direitos fundamentais, são expressões similares, sinônimas até, que refletem exatamente a mesma realidade. Pois, assim como direitos fundamentais, os direitos humanos apresentam-se como um conjunto de direitos 22 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo, Malheiros, 2000, p. 185. 18 necessários para assegurar a vida do homem com base na liberdade e na dignidade.23 Porém, nesta parte usaremos a nomenclatura direitos humanos em vez de direitos fundamentais, haja vista que aquela é mais usual e a preferida àquela nos documentos internacionais, proporcionando maior amplitude ao termo na seara da comunidade internacional. Assim, cumpre salientar que a proteção dos direitos humanos deixou de ser uma obrigação ou responsabilidade de um único Estado individualmente considerado. A sua proteção foi ganhando contornos e proporções cada vez mais gigantescas, ultrapassando o âmbito territorial de um Estado isolado e transformou-se numa luta conjunta e engajada de vários Estados. Noutro dizer, os direitos humanos ganharam uma proporção e proteção internacional na qual cada Estado tem por obrigação zelar, respeitar e fazer respeitar os mesmos, criando mecanismos eficazes de responsabilização internacional de um Estado pelas suas violações – é a responsabilidade internacional do Estado decorrente de um descumprimento de uma obrigação internacional. Por conseguinte, a violação de uma norma de direitos humanos por parte de um determinado Estado consiste em um descumprimento de uma obrigação internacional, tornando-o responsável pela reparação dos danos eventualmente causados, sendo que essa reparação se dá a luz das normas de Direito Internacional. Ou seja, a responsabilidade internacional não é mais do que o dever de reparar qualquer violação cometida por um Estado em detrimento de outro. Salienta-se, ainda, que a vinculação de um Estado à responsabilidade internacional se constitui de uma forma 'obrigatória'. No mesmo diapasão, comenta André de Carvalho Ramos que: No caso de não aceitação do princípio da responsabilidade internacional, então, os Estados não seriam obrigados a cumprir as normas jurídicas internacionais. Seria o fim da ordem internacional. Além disso, a existência de regras de responsabilização ao Estado infrator tem o efeito de evitar novas violações de normas internacionais e, com isso, assegurar o desenvolvimento das relações entre Estados com base na paz e na segurança coletiva.24 Ademais, o estudo da proteção dos direitos humanos está intrinsecamente vinculado a questão da responsabilidade internacional. Assim, ainda na preciosa lição do referido autor, a questão de “respon sabilização do Estado por violação de direitos humanos é essencial para 23 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 11. 24 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 09. 19 reafirmar a juridicidade deste conjunto de normas voltado para a proteção dos indivíduos e para a afirmação da dignidade humana”. 25 Contudo, para que as obrigações internacionais tenham os efeitos desejados, mister se faz criar mecanismos eficazes que sirvam de instrumento para efetiva proteção os direitos humanos, sendo que tal mecanismo “deve ser mais amplo possível para que se evite justamente o caráter meramente programático das normas internacionais sobre direitos humanos”. 26 Com efeito, a internacionalização de direitos humanos, é fruto da convivência e engajamento dos Estados, que teve como marco inicial a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assim, é preciso ter a plena consciência que toda a violação de direitos humanos/direito internacional, implica a obrigação de reparação do dano provocado. Assim, a esse respeito, observa André de Carvalho Ramos que: A proteção de direitos humanos torna-se fator-chave para a convivência dos povos na comunidade internacional. Essa convivência é passível de ser alcançada graça à afirmação dos direitos humanos como agenda comum mundial, levando os Estados a estabelecerem projetos comuns, superando as animosidades geradas pelas crises políticas e econômicas.27 Ademais, a aderência dos Estados a instrumentos jurídicos internacionais de proteção de direitos humanos está sendo movida pela busca de governabilidade e legitimidade.28 Por outro lado, no dizer do mestre Alexandre de Moraes: A necessidade primordial de proteção e efetividade aos direitos humanos possibilitou, em nível internacional, o surgimento de uma disciplina autônoma ao direito internacional público, denominada Direito Internacional dos Direitos Humanos, cuja finalidade precípua consiste na concretização da plena eficácia dos direitos humanos fundamentais, por meio de normas gerais tuteladoras de bens da vida primordiais (dignidade, vida, segurança, liberdade, honra, moral, entre outros) e previsões de instrumentos políticos e jurídicos de sua implementação.29 Conseqüentemente, com a aderência dos Estados e com as outras convenções internacionais realizadas, verificou-se a internacionalização dos direitos humanos, com 25 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 09. 26 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 09. 27 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 19. 28 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 19. 29 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 460. 20 intento de proteger a pessoa humana sem a menção à nacionalidade ou o país de origem. Nesse sentido, afirma Maurício Andreiuolo Rodrigues que: A partir de então, e mais especificamente, a contar da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, os direitos humanos desenvolveram nova e mais profunda extensão. Seu panorama passou a ser universal, não cabendo mais limites de fronteira, passou-se a uma nova era, a era dos direitos humanos internacionais. De acordo em essa nova disciplina, os direitos humanos teriam sido promovidos à posição de idéia-vetor para toda comunidade jurídica mundial. Seu epicentro.30 Desse modo, de acordo com a nova concepção dos direitos humanos, a soberania dos Estados passa para plano secundário. Portanto, não há que se falar em soberania de um Estado quando se está em causa a garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, comenta o mesmo autor que: [...] o Direito Internacional dos Direitos Humanos, considerado uma nova disciplina autônoma, guarda seu postulado-guia na proteção do ser humano. O ordenamento jurídico deve adotar tal alinhamento como o norte do seu rumo. Não há barreira que obstaculize essa idéia-mestra. Nem mesmo o conceito de soberania poderá frená-la, pois o conceito tradicional de soberania estatal cede espaço ao socorro do ser humano naquilo que lhe é mais caro: a dignidade como pessoa humana. Na contraposição entre soberania e Direitos Humanos Internacionais, prevalecem os direitos humanos.31 Com efeito, a evolução histórica de proteção dos direitos humanos em documentos internacionais é relativamente recente, teve seu início com importantes declarações sem caráter vinculativo e, posteriormente, assumiu a forma de tratados internacionais, no intuito de obrigarem os Estados signatários ao cumprimento de suas normas e determinações. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada em 10 de Dezembro de 1948, assinada em Paris, é sem dúvida a marca principal da conquista dos direitos humanos a nível internacional.32 O Direito Internacional dos Direitos Humanos, disciplina autônoma de direito internacional, na lição do ilustre doutrinador André Ramos “é entendido como o conjunto de direitos e faculdades que garante a dignidade da pessoa humana e beneficia-se de garantias 30 RODRIGUES, Maurício Andreiuolo (et al); Org.: Ricardo Lobo Torres: Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 170. 31 RODRIGUES, Maurício Andreiuolo (et al); Org.: Ricardo Lobo Torres: Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 171. 32 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 460. 21 internacionais institucionalizadas”. 33 Destarte, afirma ainda André Ramos, citando Bruno Simma, que esse novo ramo de direito internacional, “consiste em um conjunto de normas jurídicas internacionais que cria e processa obrigações do Estado em respeitar e garantir certos direitos a todos os seres humanos sob sua jurisdição, sejam eles nacionais ou não”. 34 Implica, desta maneira, afirmar que no tocante a abrangência geográfica de proteção de direitos humanos é de vocação universal, protegendo qualquer ser humano, em qualquer região do mundo, sem limitação territorial ou de conteúdo. Assim, destacam-se alguns instrumentos de proteção de direitos humanos de caráter universal como a Carta da ONU e posteriormente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que foi aprovada sob a forma de resolução da Assembléia Geral da ONU. Por conseguinte, agregou-se a esses textos internacionais, alguns outros tratados de alcance regional, com realce para a Convenção de Americana de Direitos Humanos – Pacto São José da Costa Rica, 1969 – que será futuramente abordada Nesse texto, o rol de direitos protegidos é mais amplo, mas o espaço territorial abrangente é menor quando comparado com documentos de abrangência mundial. Cada novo texto criado no sentido de proteger internacionalmente os direitos humanos, aumenta a garantia do indivíduo. Assim, sustenta André de Carvalho Ramos que: Esses tratados de direitos humanos são diferentes dos tratados que normatizam vantagens mútuas aos Estados contratantes. Com efeito, o objetivo dos tratados de direitos humanos é a proteção de direitos de seres humanos diante do Estado de origem ou diante de outro Estado contratante, sem levar em consideração a nacionalidade do indivíduo-vítima.35 Prossegue, ainda, afirmando que: [...] um Estado, frente a um tratado multilateral de direitos humanos, assume várias obrigações para com os indivíduos sob sua jurisdição, independentemente da nacionalidade, e não para com outro Estado contratante, criando o chamado regime objetivo das normas de direitos humanos. Esse regime é o conjunto de normas protetoras de um interesse coletivo dos Estados, em contraposição aos regimes de reciprocidade, nos quais impera o caráter quid pro quo nas relações entre os Estados. Logo os tratados de direitos humanos, estabelecem obrigações objetivas, entendendo estas como obrigações cujo objeto e fim são a proteção de direitos 33 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 25. 34 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 25. 35 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 29. 22 fundamentais da pessoa humana.36 Conclui o autor que os tratados de direitos humanos não são tratados multilaterais tradicionais, baseados na troca recíproca de benefícios entre os Estados contratante, pois o seu escopo é tão somente a proteção dos direitos humanos, independentemente da nacionalidade, “gerando para isso uma ordem legal internacional que visa beneficiar, acima de tudo, o indivíduo”. 37 Salienta-se também que relativamente aos tratados institutivos de garantias e proteção dos direitos humanos, não se aplica a noção contratualista, comum em outros tratados, pois a obrigação não depende de uma contraprestação de outra parte, é tão somente, uma obrigação para a sociedade internacional. Ou seja, o Estado obriga-se a respeitar os direitos humanos sem que haja qualquer contraprestação a ele devida e as normas dos seus tratados devem ser interpretados em prol dos indivíduos. Deste modo, a Corte Interamericana de Direitos Humanos sustentou que: [...] os tratados modernos sobre direitos humanos, em geral e, em particular, a Convenção Americana, não são tratados multilaterais do tipo tradicional, concluídos em função de intercâmbio recíproco de direitos, para o benefício mútuo dos Estados contratantes. Seu objeto e fim são a proteção dos direitos fundamentais dos seres humanos, independentemente de sua nacionalidade, tanto em face de seu próprio Estado como em face de outros Estados contratantes. Ao aprovar esses tratados sobre direitos humanos, os Estados submetem-se a uma ordem legal dentro da qual eles, para o bem comum, assumem várias obrigações não em relação com outros Estados, senão com os indivíduos sob sua jurisdição.38 A bem da verdade, a Convenção Americana foi criada para proteger os direitos fundamentais da pessoa humana, contra qualquer Estado e essa proteção independe da nacionalidade do indivíduo. A Convenção Americana é um instrumento multilateral entre os Estados que consiste no compromisso de, acima de tudo, respeitar os direitos humanos dos indivíduos. Convém frisar que esse compromisso-obrigação internacional, já mencionado inúmeras vezes, não tem como sustentáculo a reciprocidade ou o engajamento similar de outro Estado. Nessa ótica, disserta André de Carvalho Ramos que: 36 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 29. 37 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 29. 38 Corte Americana de Direitos Humanos, Parecer Consultivo OC-02/82 de 24 de setembro de 1982, série A, n. 02, parágrafo 29 23 [...] a objetividade da proteção dos direitos humanos consiste na impossibilidade da utilização do princípio geral de Direito Internacional da reciprocidade. A violação de um tratado multilateral de proteção aos direitos humanos em nada afeta a obrigação de outro Estado-parte, que continuará obrigado pelas normas do mesmo tratado.39 Conclui ainda o autor que: Esse caráter objetivo das obrigações de respeito a direitos humanos assumidos pelo Estado põe em evidência que a responsabilização internacional do Estado por violação de direitos humanos tutela o interesse do indivíduo e não um interesse material do Estado. Por isso que não se admite a relação de reciprocidade em tais tratados.40 Essas transformações decorrentes do movimento de internacionalização dos direitos humanos contribuíram, e muito, para a democratização do próprio cenário internacional, haja vista que, além dos Estados e Organizações Internacionais, podem participar no palco internacional os indivíduos e organizações não-governamentais. Os indivíduos se transformaram em sujeitos de direitos internacionais, lugar onde antes só poderiam afigurar Estados. Desta maneira, o interesse individual referente aos direitos humanos, poderá ser resolvido, na seara do Direito Internacional, com aceitação da legitimidade ativa do indivíduo, através da possibilidade lhe que é concedida de acionar o Estado perante órgãos internacionais competentes, sem necessidade de intermediários – Estados-terceiros e organismos internacionais – para encaminhamento das suas reclamações.41 Nessa ótica, afirma Flávia Piovesan que: [...] na medida em que guardam relação direta com os instrumentos internacionais de direitos humanos – que lhes atribuem direitos fundamentais imediatamente aplicáveis – os indivíduos passam a ser concebidos como sujeitos de direito internacional. Na condição de sujeitos de direito internacional, cabe aos indivíduos o acionamento direto de mecanismos internacionais, como é o caso da petição ou comunicação individual, mediante a qual um indivíduo, grupos de indivíduos ou, por vezes, entidades não-governamentais, podem submeter aos órgãos internacionais competentes denúncia de violação de direito enunciado em tratados internacionais.42 39 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 33. 40 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 34/35. 41 RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. São Paulo: Renovar, 2002, p. 35. 42 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 27/28. 24 No entanto, ainda é necessário democratizar e facilitar o acesso às instituições internacionais, de modo a permitir um maior espaço de atuação e participação eficaz dos indivíduos e das identidades não-governamentais. Em arremate, restou-se claro que a proteção dos direitos humanos não compete tão somente a um Estado considerado isoladamente, mas sim, consiste numa luta engajada e conjunta dos Estados à nível internacional. Em outro dizer, além da proteção interna vige uma proteção internacional dos direitos humanos, o que pressupõe informar que violação de direitos humanos implicará obrigatoriamente a responsabilização internacional do Estadomembro infrator. Salienta-se ainda que a abrangência geográfica de proteção de direitos humanos é de vocação universal, protegendo qualquer ser humano, em qualquer região do mundo, sem limitação territorial ou de conteúdo. Feitas essas considerações a respeito das normas de proteção internacional, passaremos a analisar, nas linhas que se seguem, a natureza da LEP – Lei de Execução Penal. 1.3 A Lei de Execuções Penais como especificação dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados aos presos A Lei n.º 7.210 de 11 de Julho de 1984, que instituiu a Lei de Execução Penal – doravante LEP –, é um instrumento normativo regulador da estrutura e disciplina do sistema prisional brasileiro que traça principalmente a “ressocialização do condenado como objetivo anunciado da pena, reincorporando a noção de periculosidade do agente e primando pela idéia 43 de 'tratamento do delinqüente'.” Assim, a LEP foi criada como instrumento normativo capaz de proporcionar humanidade e racionalidade ao processo de aplicação da pena privativa de liberdade, em conformidade com o esculpido no seu art. 1º, in verbis: Art. 1º A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. O presente diploma legal é claro nos seus dois objetivos. O primeiro se refere à correta efetivação da sentença ou decisão criminal, destinado a reprimir e prevenir crimes, ao passo 43 ROIG, Rodrigo Duque. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio Janeiro: Revan, 2005, p.138. 25 que o segundo objetivo é criar condições propensas para a harmônica integração social do condenado e do internado. Salienta-se ainda que a LEP instituiu uma série de direitos sem os quais o segundo objetivo ficará irremediavelmente prejudicado. No que tange ainda aos objetivos da LEP, disserta Andrei Zenkner Schmidt que: Resta evidente, portanto, a opção do nosso legislador, no sentido de que a sanção penal fixada na sentença condenatória será cumprida com uma finalidade específica, qual seja, a de proporcionar a harmônica integração social do condenado e do internado [...]. Nesse sentido, é notório o fundamento pedagógico adotado pelo legislador penal no que se refere à pretensão executória, característica esta notada em inúmeras outras incidentes da execução da pena, tais como remição (art. 126), as recompensas (arts 55 e 56), etc.44 Com efeito, até o momento, a concretização dos objetivos traçados na LEP não foram alcançados, principalmente por falta de estrutura adequada destinada a cumprimento da sentença penal condenatória. Nesse sentido, observa Rodrigo Roig que: Em momento de crise, a sociedade brasileira atribui a responsabilidade pela falência do sistema penitenciário a uma série de fatores exógenos à estrutura normativa da execução penal em nosso país, olvidando-se, no entanto, que esta é responsável por nortear as ações e sancionar as inúmeras violações à ordem constitucional. Em lugar de corrigir as iniqüidades em sede executiva, o que se vê é a legitimação de uma série de práticas arcaicas e atentatórias aos direitos mais elementares dos detentos.45 Com efeito, os objetivos previamente estabelecidos pela LEP não foram alcançados por conta das insistentes e inúmeras violações/descumprimentos dos preceitos normativos assegurados não só no citado diploma legal, como também nos documentos internacionais e principalmente na Constituição Federal/88. Noutro dizer, as disposições normativas esculpidas na LEP, não são mais que especificações dos direitos internacional e constitucionalmente assegurados aos presos. O legislador constituinte encontrou na LEP uma solução jurídico-penal de esmiuçar os direitos e garantias assegurados a todos na Constituição Federal, de forma a nortear e regular toda a fase de execução penal. Assim, sustenta Andrei Schmidt que: 44 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 209. 45 ROIG, Rodrigo Duque. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio Janeiro: Revan, 2005, p. 139. 26 A jurisdição e, conseqüentemente, a constitucionalização da pretensão executória do Estado dá origem, primeiramente, a deveres dos representantes do Estado em não ofenderem os direitos fundamentais do preso. Juízes, representantes do ministério Público, administradores de casas prisionais e, até mesmo, advogados, têm obrigação de respeito às garantias fundamentais do sujeito da execução.46 Cumpre, por oportuno, sublinhar que do anteriormente exposto, uma violação de um preceito normativo assegurado na LEP implica – por via reflexa – violação de uma norma de direito internacional e constitucional, pois a LEP é extensão normativa destes. Assim, todas as disposições normativas previstas na LEP que asseguram direitos aos presos encontram respaldado na Constituição Federal, motivo pelo qual deverá ser “religiosamente” respeitada, sob pena de violação de um preceito de natureza constitucional. Nesse sentido, destaca-se o argumento ventilado pelo Mirabete, declarando que: A Lei de Execução Penal, impedindo o excesso ou o desvio da execução que possa comprometer a dignidade e a humanidade da execução, torna expressa a extensão de direitos constitucionais aos presos e internos. Por outro lado, assegura também condições para que os mesmos, em decorrência de sua situação particular, possam desenvolver-se no sentido da reinserção social com o afastamento de inúmeros problemas surgidos com o encarceramento.47 Prossegue ainda Mirabete enumerando alguns direitos reconhecidos e assegurados tanto na LEP como também na Constituição Federal. Destaca-se direito à vida (art. 5º, caput, CF); o direito a integridade física e moral (art. 5º, III, V, X e XLIII, da CF); o direito à propriedade, de natureza material e imaterial, ainda que o preso não possa temporariamente exercer alguns dos direitos do proprietário (art. 5º, XXII, XXVII, XXVIII, XXIX e XXX da CF); o direito à liberdade de consciência e de convicção religiosa (art. 5º, VI, VII, VIII, da CF); o direito à instrução (art. 208, I, e § 1º, da CF); o direito e o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e telefônicas (art. 5º, XII, da CF); o direito de representação e de petição aos Poderes Públicos, em defesa de direito ou contra abusos de autoridade (art. 5º, XXXIV, a, da CF), o direito à expedição de certidões requeridas às repartições administrativas, para defesa dos direitos e esclarecimentos de situações de interesse pessoal (art. 5º, XXXIV, b, LXXII, a e b, da CF); direito à assistência judiciária (art. 5º, LXXIV, da CF); o direito às atividades relativas às ciências, às letras, às artes e à tecnologia (art. 5º, IX e XXIX, da CF) e o direito à indenização por erro judiciário ou por 46 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 223. 47 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 42. 27 prisão além do tempo fixado na sentença (art. 5º, LXXV).48 Alexandre Moraes compartilha do mesmo entendimento, pois segundo o autor: O preso, porém, continua a sustentar os demais direitos e garantias fundamentais, por exemplo, a integridade física e moral (CF, art. 5º, III, V, X e LXIV), à liberdade religiosa (CF, art. 5º, VI), ao direito de propriedade (CF, art. 5º, XXII), entre inúmeros outros, e, em especial, aos direitos à vida e à dignidade humana [...].49 Por conseguinte, o art. 5º, XLVIII, da CF, no entender de Alexandre Moraes, está regulado também na LEP, de modo a colaborar com a tentativa de recuperação do condenado, fazendo com que a execução penal seja, na medida do possível, individualizada, de forma a socializá-lo. Destaca, ainda, o mestre, que a previsão constitucional de direitos dos presos, bem como a preservação da dignidade da pessoa humana durante a execução penal, encontrase respaldo nos em vários ordenamentos jurídicos constitucionais.50 Argumenta ainda o citado autor exemplificando que: A previsão ordinária (lei n.º 7.210/84 – Lei das Execuções Penais) compatibiliza-se plenamente com o mandamento constitucional, determinando a classificação dos condenados, segundo os antecedentes e sua personalidade, para orientar a individualização da execução penal (art. 5º).51 Por fim, Alexandre de Moraes destaca igualmente que: O pacto de São José da Costa Rica, igualmente, prevê regras protetivas aos direitos dos reclusos e, em seu art. 5º, determina que os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado a sua condição de pessoas não condenadas.52 Na verdade o processo de execução penal, em momento algum pode arranhar a dignidade da pessoa humana, garantida contra qualquer ofensa física ou moral, sendo incontestável que qualquer ato – judicial ou administrativo - que contrariar essa disposição, é indubitavelmente inconstitucional. Destarte, do exposto, resta-se cristalina que a LEP consiste em especificação dos 48 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 42. MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Paulo: Atlas, 2005, p. 338. 50 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Paulo: Atlas, 2005, p. 338/339. 51 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Paulo: Atlas, 2005, p. 338. 52 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. Paulo: Atlas, 2005, p. 341. 49 5. ed. São 5. ed. São 5. ed. São 5. ed. São 28 direitos assegurados e garantidos na Constituição Federal e nos documentos internacionais de proteção de direitos humanos, destinados a proteção dos presos. Oportunamente, serão abordados, no presente trabalho, com mais afinco, alguns dos direitos assegurados aos presos tanto na LEP, na Constituição Federal, bem como também nos documentos internacionais. 29 2 O CATÁLOGO DE DIREITOS RECONHECIDOS AOS PRESOS PELO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Após abordar, nos tópicos anteriores, o status das normas protetivas dos presos assegurados na Constituição Federal, Pacto São José de Costa Rica e Lei de Execução Penal, passar-se-á, em seguida, a enumerar e analisar os direitos reconhecidos aos presos pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, cuida-se nesta parte de identificar nos diplomas legais alguns direitos reconhecidos aos presos, e que freqüentemente lhes são negados. Não se almeja, contudo, elencar e nem tampouco abordar todos os direitos reconhecidos aos presos, mas sim fazer um catálogo dos principais direitos salvaguardados e que são mais comumente atingidos pela prática dos Estados. Assim, destaca-se os direitos reservados aos presos esculpidos na Constituição Federal/88, com particular enfoque para o seu art. 5º, que sem dúvida é o ponto de referência do nosso ordenamento jurídico. Com efeito, conforme se verá posteriormente, é basicamente no art. 5º constitucional que se encontra todos os direitos e garantias individuais reservados à todos, inclusive, aos presos. Nessa linha, também serão analisados os direitos assegurados aos presos constantes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual Brasil é signatário, como já tivemos oportunidade de frisar. Por fim, traz-se à lume, os direitos assegurados aos presos estabelecidos na Lei de Execução Penal - LEP. Na verdade, a LEP além de nortear todo o cumprimento da pena, é o documento onde se encontram esmiuçados todos os direitos constitucionais reservados aos presos. 2.1 Os direitos assegurados na Constituição Federal A Constituição, como já foi oportunamente frisado, é a lei fundamental e suprema do Estado que traça as diretrizes, fundamentos e as competências governamentais. As demais normas que fazem parte do ordenamento jurídico devem obediência às normas constitucionais e só serão válidas se estiverem em conformidade com as mesmas. 30 Portanto, é na Constituição que estão consubstanciadas as normas fundamentais que são a própria estrutura do Estado, que traçam as diretrizes e a organização dos seus órgãos. É também na Constituição Federal que estão salvaguardadas os direitos e garantias individuais, igualmente reconhecidos a todos e sem qualquer distinção. Noutro dizer, implica afirmar que os ditames constitucionais atingem toda coletividade e os direitos salvaguardados na Carta Maior e igualmente reconhecidos a todos abraçam também os presos, salvo os direitos atingidos pela sentença penal condenatória. Assim, cuida-se nesta parte de identificar na Constituição Federal alguns direitos reconhecidos aos presos, e que freqüentemente lhes são acintosamente negados. Não se pretende, contudo, elencar e nem tampouco abordar exaustivamente todos os direitos reconhecidos na Constituição Federal aplicáveis aos presos, mas sim fazer um apanhado dos principais direitos salvaguardados na Constituição e que são mais comumente atingidos pela prática estatal. Conforme o artigo 1º da Constituição Federal, o Brasil é um Estado de Direito Democrático e tem como um dos fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Nesse contexto, a dignidade da pessoa humana, sem margem para dúvida, é um dos princípios mais abrangentes e ao mesmo tempo mais importante do ordenamento jurídico. O seu conteúdo, abrangência e significado, dificultam trazer aqui uma conceitualização clara e precisa do que efetivamente seja esta dignidade. Tal dificuldade é decorrente de expressões vagas e imprecisas que caracterizam esse princípio, tornando-o de natureza polissêmica. No entendimento de Ingo Sarlet, a dificuldade reside no fato de que: [...] no caso de dignidade da pessoa, diversamente do que ocorre com as demais normas jusfundamentais, não se cuida de aspectos mais ou menos específicos da existência humana (integridade física, intimidade, vida, propriedade, etc.), mas, sim, de uma qualidade tida como inerente a todo e qualquer ser humano, de tal sorte que a dignidade [...] passou a ser habitualmente definida como constituindo o valor próprio que identifica o ser humano como tal, definição esta que, todavia, acaba por não contribuir muito para uma compreensão satisfatória do que efetivamente é o âmbito de proteção da dignidade, na sua condição jurídico-normativa.53 Contudo, em que pesem as dificuldades em formular uma proposta de conceitualização jurídica da dignidade da pessoa humana, é possível trazer no presente trabalho entendimentos conceituais de alguns doutrinadores, dentre eles, Alexandre Moraes, que afirma que a dignidade da pessoa humana, não é mais do que: 53 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 40. 31 [...] um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que trás consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo o estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.54 Nesse sentido, o não menos ousado Ingo W. Sarlet, na esteira da sua lição entende que dignidade da pessoa humana é: [...] qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direito e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.55 Com efeito, o princípio da dignidade humana encontra-se ligado à própria condição humana de cada indivíduo e é um valor supremo que atrai e unifica o conteúdo de todos os outros direitos fundamentais. Portanto, é patente e inequívoca que a dignidade da pessoa humana é norma fundamental na ordem jurídico-constitucional brasileira e por ser princípio definidor das normas e garantias fundamentais, algumas características lhe são atribuídas, tais como a imprescritibilidade, a irrenunciabilidade, a inviolabilidade e a inalienabilidade. Assim, convém por oportuno, trazer o entendimento do mestre Ingo W. Sarlet, ao afirmar que: [...] a qualificação da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental traduz a certeza de que o artigo 1º, inciso III, da nossa Lei Fundamental não contém apenas (embora também e acima de tudo) uma declaração de conteúdo ético e moral, mas que constitui norma jurídicopositiva dotada, em sua plenitude, de status constitucional formal e material e, como tal, inequivocamente carregado de eficácia.56 Por derradeiro, no que tange à dignidade da pessoa humana, como um valor indissociável do ser humano e norma fundamental da República Federativo do Brasil, é de salientar que este é um princípio que contempla toda a coletividade e ninguém pode ser 54 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 128. 55 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 59/60. 56 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição federal de 1988. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 70. 32 privado desse direito e qualquer violação desse princípio é uma clara afronta a Constituição, que é peremptória ao estabeleceu que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, conforme seu art.5º, inciso XLI. De igual modo, a Constituição no seu artigo 3º, traça como um dos objetivos fundamentais (inciso IV) da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por conseguinte, é no artigo 5º do texto constitucional que estão assegurados e salvaguardados os direitos e as garantias individuais mais importantes de todo o ordenamento jurídico. Como já foi anteriormente realçado é no artigo 5º da Constituição que estão estabelecidos basicamente todos os direitos e garantias individuais, e indubitavelmente é esse dispositivo a espinha dorsal e o ponto de referência do ordenamento jurídico, quando se trata dos direitos considerados fundamentais. Com efeito, é impossível dissociar o artigo 5º do conceito de normas de direitos fundamentais: as duas coisas se confundem e se complementam, tornando-se algo uno e inseparável. Importante frisar que segundo o art. 5º, caput, da Constituição Federal: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Primeiramente, é de salientar que os direitos assegurados no art. 5º se destinam a todos os brasileiros e igualmente, aos estrangeiros residentes no Brasil. Assim, o art. 5º constitucional é bastante claro no que tange aos destinatários dos direitos e garantias individuais, assegurando à todos, sem discriminação de qualquer natureza, a titularidade dos direitos fundamentais. Nesse passo, torna-se imperativo concluir que os direitos fundamentais ressalvados na cabeça do art. 5º constitucional, se destinam também aos presos. Ora, se o referido artigo estabelece que são assegurados à todos os direitos fundamentais, independentemente de qualquer condição, logo, os presos também estão contemplados. É óbvio, que pelo fato de estar preso, uma pessoa inegavelmente não perde a sua característica maior, a de pessoa humana. A Constituição, no art. 5º, III, proíbe textualmente a prática de tortura e qualquer outro tratamento desumano ou degradante. A condenação do crime de tortura é tão incisiva, que aos olhos da Constituição, no seu art. 5º, XLIII, afigura-se como inafiançável e insuscetível de graça ou anistia. Por conseguinte, como veremos mais adiante, em que pese a Constituição ter proibido 33 incisivamente a prática de tortura e qualquer outro tratamento desumano ou degradante, contra qualquer seja e independente da condição que essa pessoa se encontre, verifica-se que efetivamente, não é isso que acontece hodiernamente nos estabelecimentos prisionais brasileiro. Muito pelo contrário, o que se vislumbra atualmente é que a prática de tratamento desumano e degradante é corriqueira nos presídios brasileiros. O mais grave é que o judiciário se mostra ausente, para não dizer conivente, com a tal situação. No entanto, não se pode falar da proibição da tortura e de outros tratamentos desumanos e cruéis, sem falar abordar a questão do respeito à integridade física e moral dos presos, pois, este se encontra atrelado àquele. Os dois direitos igualmente assegurados na Constituição Federal de 1988 estão entrelaçados. Cumpre, por oportuno, sublinhar que é no art. 5º, XLIX da Constituição que está assegurado aos presos o respeito à sua integridade física e moral. Como bem ressalta José Afonso da Silva, agredir a integridade física do preso (corpo) é mesma coisa que agredir a vida, pois a vida se realiza no corpo humano. Por isso, conclui o mestre que a integridade física, então, é um direito fundamental do ser humano, o que justifica igualmente, a sua punição pela lei penal.57 Por outro lado, é igualmente punida pela legislação penal qualquer lesão à integridade moral do ser humano, pois, a vida não é tão somente um conjunto de elementos materiais/patrimoniais, ela também possui elementos incorpóreos, como os morais. Nesse passo, disserta José Afonso da Silva que: A Constituição empresta muita importância à moral como valor ético-social da pessoa e da família, que se impõe ao respeito dos meios de comunicação social. Ela, mais do que as outras, realçou o valor da moral individual, tornando-o mesmo um bem indenizável (art. 5º, V e X). A moral individual sintetiza a honra da pessoa, o bom nome e a boa fama, a reputação que integram a vida humana como dimensão imaterial. Ela e seus componentes são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação. Daí por que o respeito à integridade moral do indivíduo assume feição de direito fundamental.58 Assim, a própria Constituição, diz José Afonso da Silva, empresta uma supra importância à moral como valor ético-social, cabendo, inclusive, direito de resposta, além de indenização por dano moral sofrido (art.5º, V e X CRFB/88).59 A Constituição garante igualmente aos presos que a pena será cumprida em 57 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros. 2000, p. 202. 58 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 204. 59 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 204. 34 estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado – art. 5º, XLVIII – que a lei regulará a individualização da pena – art. 5º, XLVI – e que às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação – art.5º, L. Nesse sentido, afirma Alexandre Moraes que garantir o direito às presidiárias de amamentarem seus filhos é uma inovação no tocante aos direitos humanos fundamentais e que essa previsão tem um duplo sentido, pois além de garantir a mãe o contato com o seu filho e o direito de amamentação permite também a esse o direito à alimentação natural. (2005, p.341). Em arremate, é também garantido na Constituição, no seu art. 5º, XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Noutro dizer, é o princípio da inafastabilidade do Judiciário e o princípio da legalidade, que são princípios basilares da existência do Estado de Direito. Assim, entende Alexandre de Moraes, que o Judiciário é obrigado a aplicar o direito ao caso concreto sempre haja plausividade na sua ameaça, ou seja, é um direito assegurado a todos, no qual, não se pode declinar a prestação judicial requerida de forma regular.60 2.2 Direitos assegurados aos presos na Convenção Americana sobre Direito Humanos Cuida-se nesta parte abordar os aspectos alusivos a proteção dos direitos humanos no plano internacional – Interamericano – e conseqüentemente, abordar quais direitos são assegurados e garantidos aos presos na Convenção Americana de Direitos Humanos, também conhecida como Pacto São José da Costa Rica. O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui, não obstante a sua importância na dimensão axiológica e territorial, um movimento extremamente recente na história, como já tivemos oportunidade de frisar, surgindo na época pós-guerra, tendo como seu marco maior na reconstrução dos direitos humanos a Declaração Universal de Direitos Humanos. Este documento internacional criou uma nova concepção de direitos humanos, tendo como traços característicos a universalidade e a indivisibilidade. Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos e indivisibilidade porque a garantia dos direitos 60 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 293. 35 humanos, apesar de abranger várias áreas (direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais) é considerado algo uno e quando um deles é violado, os demais também o são. Assim, os direitos humanos formam uma realidade una, indivisível, interdependente e interrelacionada.61 Por conseguinte, a nova concepção contemporânea dos Direitos Humanos levou ao desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos, integrado por instrumentos de alcance global – sistema global de proteção dos direitos humanos. A par desse sistema global de proteção de direitos humanos, surgiu o sistema de proteção regional, que busca internacionalizar os direitos humanos no plano regional, especialmente na Europa62, África63 e América, cada qual com aparato jurídico próprio, porém, todos com o mesmo objetivo, qual seja, a proteção de Direitos Humanos dos indivíduos. Tanto o sistema global, como os sistemas regionais foram criados com o mesmo intuito que é de ampliar e fortalecer a proteção dos direitos humanos e em caso de incompatibilidades, aplica-se o sistema normativo que no caso concreto melhor protege a vítima, pois o que importa é o grau de eficácia da proteção dos direitos humanos. Nessa ótica, afirma Flávia Piovesan que: Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, esses sistemas se complementam, interagindo com o sistema de proteção nacional, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. [...] Consagra, assim, o principio da prevalência da norma mais benéfica, ou seja, a Convenção só se aplica se ampliar, fortalecer e aprimorar o grau de proteção de direitos, ficando vedada sua aplicação se resultar na restrição e limitação do exercício de direitos previstos pela ordem jurídica de um Estado-parte ou por tratados internacionais por ele retificados.64 61 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 18. 62 A Convenção Européia de Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais entrou em vigor em 1953 e foi elaborada sob a responsabilidade do Conselho Europeu e aberta à adesão a todos os membros. No início de 1993 essa Convenção havia sido ratificada por todos os 21 membros do Conselho e as suas previsões normativas são comparáveis com as disposições constantes do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. - (PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 22). 63 Sobre o sistema Africano de Direitos Humanos, escreve Flávia Piovesan que este está numa fase incipiente, cujo principal instrumento é a Carta Africana de Direitos Humanos e 1981, que entrou em vigor em 1987, com a ratificação de 26 Estados-membros da Organização da União Européia. O mecanismo de supervisão é a Comissão de Africana de Direitos Humanos. - (PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 23). 64 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de 36 Assim, conclui que: Logo, os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas ao revés, são complementares. Inspirados nos valores e princípios da Declaração Universal, compõem um universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Em face desse complexo universo de instrumentos internacionais, cabe ao indivíduo que sofreu a violação de direito, a escolha do aparato mais favorável, tendo em vista que, eventualmente, direitos idênticos são tutelados por dois ou mais instrumentos de alcance global ou regional, ou ainda, de alcance geral ou especial. Nessa ótica diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos.65 Do que foi anteriormente exposto, fica patente a coexistência de distintos sistemas de proteção, desde que, todos eles estejam a serviço da ampliação e efetivação da proteção dos direitos humanos. Para fins do presente tópico, ater-se-á tão somente ao sistema de proteção regional americano. Esse sistema tem como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos. Esta Convenção foi assinada no ano de 1969, em São José, Costa Rica, mas só em Julho de 1978 o documento entrou em vigor. Somente os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) têm o direito de aderir à Convenção Americana. Segundo os dados apresentados, dos 35 (trinta e cinco) Estados membros da OEA, somente 25 (vinte e cinco)66 Estados fazem parte da Convenção Americana, sendo que o Brasil foi um dos Estados que mais tardiamente aderiu à Convenção – 25 de setembro de 1992.67 Como era de se prever, a Convenção Americana de Direitos Humanos, teve como base normativa a Declaração Universal de Direitos e Deveres do Homem de 1948. Aliás, até nos dias de hoje a este documento continua sendo a principal base normativa da Convenção Americana, no sentido de consagração dos direitos inerentes à pessoa humana, utilizado em várias ocasiões pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos seus pareceres.68 Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 25/26. 65 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 24/25. 66 Eis os Estados-membros que faziam parte da Convenção Americana de Proteção dos Direitos Humanos: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Onduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Perú, República Dominicana, Suriname, Trindad e Tobago, Uruguai e Venezuela. (Flávia Piovesan, p. 30). 67 PIOVESAN, Flávia. Introdução ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos: a Convenção Americana de Direitos Humanos.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 29. 68 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos no limiar do Novo Século: recomendações para o fortalecimento de seu mecanismo.in: GOMES, Luiz Flávio e PIOVESAN, Flávia. 37 A Convenção Americana para fazer frente ao instituto da responsabilidade internacional criou, conforme o seu art. 33, dois órgãos competentes para conhecer dos assuntos relacionados com os compromissos assumidos pelos: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericano de Direitos Humanos. Salienta-se que toda a composição, competência, procedimento e outras disposições inerentes a esses órgãos estão esculpidas nos art. 34 a 73 da presente Convenção. Por conseguinte, esses órgãos foram criados como mecanismo para efetivação e proteção dos direitos humanos assegurados a todos na Convenção, pois, como bem alega Alexandre de Moraes, o Pacto de São José da Costa Rica, não trouxe tão somente normas de caráter material, mas sim veio reafirmar o propósito dos Estados Americanos em consolidar no continente, um regime de liberdade pessoal e igualdade social fundado no respeito dos direitos fundamentais.69 Dentre esses direitos fundamentais ressalvados na Convenção, destacam-se os direitos assegurados aos presos, dos quais nos ocuparemos a seguir. Assim, o art. 5º da referida Convenção, estabelece o direito à integridade pessoal, afirmando que toda a pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral e que ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Estabelece ainda o art. 5º, que toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Aliás, essa disposição normativa está em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, que constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Noutro dizer, a prática que qualquer ato atentatório a integridade física e moral, estipulado no art. 5º, XLIX, da Constituição, é também repudiado veementemente no contexto internacional de proteção de direitos humanos. Ainda o art. 5º da Convenção, assim com o art. 5º, XLV, CF, estabelece que a pena não pode passar da pessoa do condenado. A Convenção, assim como as normas internas do direito brasileiro, prima pela separação do processado em relação ao condenado. É o que se depreende do art. 5º, item 4, que estabelece que os processados devem ficar separados dos condenados, salvo em circunstâncias excepcionais, e devem ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de pessoas não condenadas. Aliás, como se verá mais adiante, a LEP – Lei de Execução O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 110. 69 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 462. 38 Penal, no seu art. 84, prima exatamente pela separação do preso provisório do condenado por sentença transitada em julgado. Encontra-se garantida na Convenção Americana de Direitos Humanos, no seu art. 11, a proteção da honra e da dignidade, alegando que toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. Uma vez mais, a Convenção insiste – e com razão – em trazer à tona a dignidade da pessoa humana, também assegurada no art. 1º, III, CF/88. A insistência dos diplomas legais em assegurar reiteradamente o direito à dignidade da pessoa humana, se deve a sua reconhecida, porém não respeitada, importância, tanto no contexto global como também no regional. Aliás, como já frisado anteriormente, a dignidade é inerente à condição humana e sem ela a pessoa humana não consegue existir ou não é capaz de se desenvolver e de participar da vida com plenitude. De igual modo, é contemplado também na Convenção, o princípio da inafastabilidade do judiciário (art.5º, XXXV, CF) que está garantido no art. 25 da convenção, no qual toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela própria Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais. Em derradeiro, eis alguns direitos assegurados na Convenção, aos quais estão vinculados os Estados-membros, sendo que em caso de violação estarão sujeitos a responsabilidade internacional, pois, como já frisado, o Estado é responsável por reparar as violações ocorridas, proporcionando recursos de modo a custear a investigação, condenação dos responsáveis pelas violações e o pagamento de indenizações tanto a vítima como também aos familiares. 2.3 Os direitos assegurados na Lei de Execução Penal A Lei de Execução Penal – LEP –, como já tivemos a oportunidade de frisar, foi instituída pela lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984, e traça como objetivo precípuo, logo no seu art. 1º, efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. Do esculpido no art.1º, é possível vislumbrar dois objetivos da Lei de Execução Penal. 39 A primeira é efetivar os mandamentos da sentença penal condenatória ou qualquer outra decisão criminal e o segundo objetivo é proporcionar condições para a reinserção social do apenado. Contudo, a execução penal é uma atividade complexa e a sua aplicação desde o início, deixou muito a desejar, pois, no dizer de Mirabete: Desde o início da vigência da lei, havia uma convicção quase unânime entre os que militam no exercício da aplicação do direito de que a Lei de Execução Penal era inexeqüível em muitos dos seus dispositivos e que, por falta de estrutura adequada, pouca coisa seria alterada na prática quanto ao cumprimento das penas privativas de liberdade e na aplicação da lei com relação às medidas alternativas previstas na nova legislação. Embora se reconheça que os mandamentos da Lei de Execução Penal sejam louváveis e acompanham o desenvolvimento dos estudos a respeito da matéria, estão eles distanciados e separados por um grande abismo da realidade nacional, o que a tem transformado, em muitos aspectos, em letra morta pelo descumprimento e total desconsideração dos governantes quando não pela ausência dos recursos materiais e humanos necessários a sua efetiva implantação.70 Contudo, vislumbra-se que a afirmação supra não é de todo verdade, pelo simples motivo de que as normas assegurados na LEP, como já tivemos oportunidade de frisar, são especificações dos direitos ressalvados na Constituição Federal/88. Por outras palavras, subentende-se que as disposições normativas da LEP, pelo fato de serem especificações dos direitos assegurados na Constituição Federal, são sim normas exeqüíveis. Por outro norte, não é a LEP que está distanciado da realidade, mas sim é a realidade prisional brasileira que não se coaduna com as disposições normativas da citado diploma legal, o que constitui, sem dúvida, uma flagrante violação da Constituição Federal. Porém, a autoridade não se pode mostrar conivente com os freqüentes descumprimento das normas esculpidas na LEP. Urge criar condições materiais e humanas que possibilitem o cumprimento da pena nos moldes do mandamento da sentença, sob pena de ilegalidade. A LEP estabelece também em seu art. 3º que serão assegurados, ao condenado e ao internado, todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Como alega Mirabete, é comum no ordenamento brasileiro, quando se cumpre pena privativa de liberdade, se verificar privação ou limitação de direitos jurídicos do preso não alcançados pela sentença penal condenatória, o que viola a medida de proporcionalidade e se transforma em poderoso fator de reincidência.71 Ainda na lição de Mirabete, a privação dos direitos e interesses jurídicos diversos dos aplicados na sentença penal condenatória, aliada aos inúmeros problemas pessoais do preso, 70 71 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 29. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 40. 40 quais sejam, a reprovação exagerada ou falta de apoio por parte dos familiares, afastamento do cônjuge e dos filhos, o ambiente prisional, solidão, superlotação dos presídios, entre outros. Esses fatores elencados, prossegue o mestre, não contribuem para a recuperação do condenado como também podem estimular a prática de novos crimes, o desejo de evasão e determinam maior desajustamento social.72 Ademais, afirma Mirabete que: A relação jurídica de sujeição especial criada com a sentença transitada em julgado não retira ao sentenciado sua condição de sujeito de direito, assumindo a Administração uma série de responsabilidade que diz respeito à pessoa humana do preso e a seus direitos e interesses jurídicos não afetados pela condenação. Essa relação penal-penitenciária entre o Estado e o sentenciado surge no momento em que passa em julgado a sentença condenatória ou a sentença absolutória em que foi imposta a medida de segurança e extingue com o cumprimento de sanção (pena ou medida de segurança) ou com a ocorrência de alguma causa extintiva da punibilidade ou mesmo, no caso de liberado definitivo, após um ano a contar da saída do estabelecimento.73 Cumpre frisar que a prisão não pode ser vista como um território onde a norma constitucional não tenha validade, pois transgredir uma norma de Execução Penal pressupõe transgredir uma norma de direito constitucional, haja vista que a norma prescrita na LEP prevista não é mais do especificação do constitucionalmente estabelecido. A LEP também prevê no seu art. 5º, a classificação dos condenados, consoante os seus antecedentes e personalidade, para orientar e individualizar a execução penal. O princípio da individualização da pena é também assegurado na Constituição, art. 5º, XLVI, e segundo Alexandre de Moraes, “exige uma estreita correspondência entre a responsabilização da conduta e a sanção a ser aplicada, de maneira que a pena atinja as suas finalidades de prevenção e repressão”. 74 Nesse caso concreto, a individualização da pena depende da censurabilidade da conduta praticado pelo apenado. Assim, entende Mirabete que a execução penal não pode ser igual para todos os presos e terão de ser submetidos à programa de execução distintos e que durante a fase executória da pena terá que ter um ajustamento desse programa conforme a reação do apenado.75 Essa individualização da pena terá como sustentáculo um laudo técnico-científico (exame criminal, de personalidade e criminológico) e nunca se dará de uma forma 72 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 40. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 41. 74 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 330. 75 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 48. 73 41 improvisada, iniciando-se com a imprescindível classificação dos condenados de modo a serem destinados aos programas de execução que mais se coadunam com a censurabilidade da sua conduta e em consonância com as suas condições pessoais. Conforme o art. 6º do mesmo diploma legal, a classificação será feita por uma Comissão Técnica de Classificação, que irá elaborar o programa individualizador da pena privativa de liberdade adequada ao condenado ou preso provisório, de acordo com a redação dada pela Lei n.º 10.792/2003. Ademais, ao preso lhe é também assegurada pelo Estado, de acordo com o art. 10 da LEP, a assistência com intuito de prevenir o crime e orientar o retorno à convivência social. Essa assistência, conforme parágrafo único do artigo supra, estende-se ao egresso. Tal medida é devida ao preso com intento de conscientizá-lo e capacitá-lo, fazendo-o respeitar a lei penal, a sua família, ao próximo e à sociedade em geral. Pois, no dizer do Mirabete, já foi superada essa fase de que a lei penal serve tão somente para retribuir ou prevenir a ação criminal. A lei penal, diz Mirabete, que a sua finalidade primordial, na fase executória, é de “reeducar” o criminoso, mostrando-o a sua inadaptabilidade social com a prática delitiva.76 Conclui Mirabete que: Se a reabilitação social constitui finalidade precípua do sistema de execução penal, é evidente que os presos devem ter direito aos serviços que a possibilitem, serviços de assistência que, para isso, devem ser-lhes obrigatoriamente oferecidos, como dever do Estado. É manifesta a importância de se promover e facilitar a reinserção social do condenado, respeitadas suas particularidades de personalidade, não só com a remoção dos obstáculos criados pela privação da liberdade, como também com a utilização, tanto quanto seja possível, de todos os meios que possam auxiliar nessa tarefa.77 O programa de reeducação, na fase penal executória é uma das mais importantes bases no processo destinado à reinserção social e essa assistência se dará nas mais diversas vertentes, quais sejam, material, moral e intelectual. No entanto, segundo Mirabete, o dever do Estado em prestar assistência não se esgota após o cumprimento da pena imposta pela sentença condenatória, muito pelo contrário, essa assistência se estende a fase pós-carcerária, com intuito de promover seu reajustamento consigo mesmo e com os outros, numa adaptação racional a seu meio social e cultural. Prossegue ainda o mestre, alegando que essa assistência pós-carcerária nos primeiros tempos se deve principalmente graças às ações de associações privadas, por meio dos chamados patronatos, que se preocuparam, impulsionados por um sentimento religioso e humanitário, 76 77 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 62. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 64. 42 em ajudar os presos e os liberados.78 Por conseguinte, de acordo com o art. 26 da LEP, considera-se egresso o liberado definitivamente, pelo prazo de um ano a contar da saída do estabelecimento e o liberado condicional, durante o período de prova.79 A assistência será prestada pelo Estado, de modo a obter reinserção social do condenado, nos regimes carcerários, conforme a necessidade do tratamento individual dos apenados e de acordo com art. 11 essa assistência se dá em vários planos: material, jurídica, educacional, social, religiosa e na área de saúde também. Da mesma forma, o art. 83 da LEP, estabelece que o presídio deverá contar em suas dependências com áreas e serviços destinados a dar assistência, educação, trabalho, recreação e prática esportiva. Assim, nesse sentido, estabelece o art. 12, que a assistência material ao apenado consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas. A alimentação deve ser servida nas horas usuais e de boa qualidade, bem preparada e suficiente para manutenção de sua saúde e de suas forças. Por conseguinte, além de alimentação comum, há necessidade de oferecer aos presos refeições especiais para os doentes, conforme a requisição médica e para os idosos e mulheres que estão amamentando, para além de água potável sempre que se fizer necessário. No que tange ao vestuário, todo preso que não tiver autorização para vestir roupas pessoais, deverá receber pela administração do estabelecimento prisional roupas adequadas e apropriadas ao clima, limpas, que não afetam a sua dignidade e respeito próprio. A higiene pessoal e o asseio da cela ou alojamento compete ao preso, de acordo com art. 39, IX, da LEP, devendo igualmente conservar os seus objetos pessoais (art. 39, X da LEP). No entanto, Mirabete afirma que, a administração do estabelecimento prisional, deve oferecer “condições para que os presos e internados, no cumprimento dos seus deveres, disponham de elementos indispensável para a limpeza e higiene das celas e das demais dependências do estabelecimento”. 80 A LEP ainda estabelece no art. 13 que o estabelecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais, além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração. A assistência à saúde ao preso e internado, compreenderá o atendimento na área médica, farmacêutico e odontológico – art. 14, da LEP. Pois, como bem esclarece Mirabete, qualquer pessoa, é suscetível de contrair doença ou alguma perturbação da saúde física ou 78 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 64. Art. 26 da Lei n.º 7.210 de 11 de Julho de 1984 80 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 67. 79 43 mental, que podem se agravar com a péssima atmosfera e más condições de higiene, alimentação e vestuário do estabelecimento prisional.81 A assistência jurídica se afigura também igualmente importante para a população carcerária, pois a maioria deles são hipossuficientes e não têm condições de constituir um advogado, que poderá, no entendimento de Mirabete, interferir diretamente no andamento processual e fiscalizar para uma adequada execução da sentença penal condenatória em caso da pena privativa de liberdade, além de reparar erros judiciários, evitar algumas prisões arbitrárias, entre outras atividades consideradas vitais à administração da justiça.82 Por sua vez, a assistência educacional, considerada uma das prestações básicas mais importantes não só para o homem livre, mas também àquele que está preso, compreenderá a instrução escolar e a formação profissional – art. 17 da LEP. Assim, o ensino de primeiro grau será obrigatório (art. 18, LEP) e o ensino profissional será ministrado em nível de iniciação ou de aperfeiçoamento técnico (art. 19, LEP) e a mulher condenada terá ensino profissional adequado à sua condição (art. 19, parágrafo único da LEP). A assistência social tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade – art. 22, da LEP. Assim, a assistente social desempenha, no dizer de Mirabete, um papel crucial no processo de reinserção social do apenado, já que ele faz o elo de ligação e comunicação entre o apenado e a sociedade da qual se encontra temporariamente afastado.83 Por fim, no que tange à assistência religiosa, é assegurada aos apenados a liberdade de culto, no local apropriado dentro do estabelecimento, destinados aos presos e aos internados, consiste na participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa – art. 24, da LEP. Assim como na Constituição Federal, art. 5º, XLIX, o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios, está igualmente esculpido na LEP, particularmente no seu art. 40, devendo ser escrupulosamente seguido por todas as autoridades. Cumpre ressaltar que a integridade física e moral faz parte do rol dos direitos fundamentais, assegurado a todos pela simples condição de serem seres humanos e está intimamente relacionado com outros direitos fundamentais, em especial à vida, saúde e dignidade humana. Contudo, é sabido que os presos sempre foram e ainda são vítimas de excessos, violência e discriminações quando submetidos aos cuidados de carcerários de presídios. 81 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 69. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 73. 83 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 80. 82 44 Porém, assim como qualquer direito fundamental, o respeito à integridade física e moral é inviolável, imprescritível e irrenunciável, no qual, o Estado tem por obrigação velar e criar mecanismo eficaz de modo a proteger não só a integridade física e moral, como também outros direitos dos presos não atingidos pela sentença penal condenatória. No que tange a integridade moral, Andrei Zenkner Schmidt é claro ao afirmar que deve ser observado a garantia constitucional prevista no inciso X do art. 5º, que se refere a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas e condena por sua vez o uso de instalação de câmera de televisão no interior do estabelecimento prisional ou monitoramento eletrônico de presos. Assim, esclarece Andrei que: Parece que tais medidas não podem subsistir, não só por regras éticas como, ademais, por razões jurídicos. A primeira delas é que o direito à intimidade é um direito individual, considerado cláusula pétrea pela Constituição e ínsito da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB/88), cujo eleito é a invalidação de qualquer projeto de lei que tendesse a aboli-la. Tal direito não comporta 'interesse social' (...), até mesmo porque esta é uma ficção criada retoricamente para fundamentar princípios morais cuja titularidade é só do seu autor.84 Aliás, já foi ressaltado por inúmeras vezes e insiste-se em reiterar que, a situação especial em que encontra o apenado – privado do seu direito de liberdade –, não leva este a perder sua condição de pessoa humana. Nesse sentido, argumenta Mirabete que: [...] a execução da pena deve estar em consonância com os fins a ela atribuídos pelo ordenamento jurídico e, por essa razão, cumpre determinar, em função dela, a condição jurídica do preso a fim de que a execução, tanto quanto possível, possa assemelhar-se às relações da vida normal.85 Pois com a condenação, cria-se uma situação jurídica delicada entre o apenado e o Estado, que se traduz em deveres que devem ser respeitados pelos presos e direitos a serem respeitados pelo Estado. Assim, eis alguns direitos ressalvados aos presos no art. 41 da LEP, que estabelece in verbis: Art. 41 - Constituem direitos do preso: I - alimentação suficiente e vestuário; II - atribuição de trabalho e sua remuneração; III - previdência social; 84 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 227/228. 85 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 118. 45 IV - constituição de pecúlio; V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena; VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa; VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado; X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados; XI - chamamento nominal; XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena; XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento; XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito; XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes. Salienta-se que esse rol dos direitos dos presos supra, assegurados na LEP, não é obviamente, exaustivo, haja vista que o mesmo diploma legal prevê outros direitos reservados aos presos, sendo que, aliás, alguns já foram abordados no presente trabalho. Nessa ótica, adverte Andrei Zenkner Schmidt que: Primeiramente, no que tange aos direitos do preso, não faz ele jus, apenas, às situações arroladas nos incisos do art. 41, senão também a todos os demais direitos individuais e sociais previsto na Constituição Federal, desde que compatíveis com a sua situação de apenado.86 Os direitos assegurados aos presos no art. 41, estão elencados de uma forma clara e precisa, dispensando assim, uma análise minuciosa acerca dos mesmos. Porém, alguns desses direitos merecem uma breve abordagem. Destarte, constitui como um dos direitos do preso a atribuição de trabalho e sua remuneração (art. 41, II). Em que pese o trabalho fazer parte dos direitos sociais, previsto no art. 6º da Constituição Federal, o preso, tendo em conta a sua condição de condenado, não pode exercer livremente a sua atividade laborativa. Contudo, deve o Estado criar condições para que o condenado exerça a sua atividade laborativa dentro do próprio estabelecimento prisional, mediante uma remuneração justa, conforme preconizam as Regras Mínimas da ONU, não podendo ser inferior a três quartos do salário mínimo (art. 29, LEP). Após estarem satisfeitas as obrigações maiores, quais sejam, indenização pelo dano causado, assistência à família, despesas pessoais e ressarcimento ao Estado (art. 29, §1º, a, b, c e d), o remanescente da remuneração do apenado será destinado à constituição de pecúlio 86 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 224. 46 (art. 41, IV). Além do direito ao descanso e recreação após cada jornada de trabalho (art. 41, V), é reservado igualmente ao preso o direito ao exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas, em compatibilidade com a execução da pena (art. 41, VI). No que tange à visita dos familiares e amigos (art. 41, X), salienta-se que é de suma importância, pois, o preso mesmo encarcerado, não deve romper seus contatos e laço com a sociedade e que terão de ser preservadas as relações que unem o preso aos seus familiares e amigos. Nesse sentido, explica Mirabete que: Não há dúvida de que os laços mantidos principalmente com a família são essencialmente benéficos para o preso, por o levam a sentir que, mantendo contatos, embora com limitações, com as pessoas que se encontram fora do presídio, não foi excluído da comunidade. Dessa forma, no momento em que for posto em liberdade, o processo de reinserção social produzir-se-á de forma natural e mais facilmente, sem problemas de readaptação a seu meio familiar e comunitário.87 Por conseguinte, salienta-se que contato do preso com os familiares e amigos é uma das mais importantes formas de contato com o mundo exterior (art. 41, XV). A correspondência escrita, a leitura e outros meios de informação, conforme estabelece a LEP, constituem outros. Aliás, a comunicação do preso com o mundo exterior facilita e muito a reinserção social do condenado, pois este tem direito à liberdade de informação e expressão, através de correspondência, imprensa escrita, rádio, cinema, televisão, etc. No que se refere as correspondências, defende Andrei Zenkner Schmidt, que estas são absolutamente invioláveis. Assim, afirma que: Portanto, também as correspondências enviadas e recebidas pelos presos são absolutamente invioláveis, ressaltando-se nesse sentido, que nem por ordem judicial seria possível a quebra dessa modalidade de sigilo, até mesmo porque isso só se dá em relação às interceptações telefônicas.88 Por conseguinte, prossegue o autor sustentando que “na pior das hipóteses, poderá o preso ser compelido a abrir a correspondência na frente da autoridade competente, mas, em nenhum momento, a esta será dado o direito de conhecer o conteúdo da mensagem.” 89 No que tange ao aspecto físico do estabelecimento prisional, vê-se literalmente uma 87 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 124. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 224. 89 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 224. 88 47 colossal incongruência com relação ao disposto na LEP. Senão vejamos: o art. 88 estabelece claramente que o apenado será alojado em cela individual com área mínima de seis metros quadrados (art. 88, b) e tal local deverá conter obrigatoriamente dormitório, aparelho sanitário e lavatório. De igual modo, a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana são requisitos básicos e imprescindíveis da unidade celular (art. 88, alínea a). Nessa ótica afirma Douglas Camarano de Castro que: O preso, enquanto condenado, é possuidor de deveres e direitos. Segundo a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), dentre outros, constituem-se como direitos dos presos: ter alimentação suficiente e vestuário; assistência à saúde, material, jurídica, educacional, social e religiosa; proteção contra qualquer forma de sensacionalismo; igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização da pena; representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito e etc. Dentre os direitos assegurados aos presos, podemos considerar como um dos mais importantes o disposto no Art. 88, da LEP.” 90 . Nesse sentido, afirma Mirabete que a reforma penitenciária deverá começar primeiramente com uma reforma na arquitetura das prisões, pois ainda nos dias de hoje, vislumbra-se que: [...] nas prisões respira-se um ar de constrangimento, repressão e verdadeiro terror, agravado pela arquitetura dos velhos presídios em que há confinamento de vários presos em celas pequenas, úmidas, de tetos elevadas e escassas luminosidade e ventilação [...]91 Com efeito, a superlotação indubitavelmente constitui um dos mais graves problemas penitenciários no Brasil, que a cada dia aflige não só os presos e os seus familiares, como também as autoridades e a própria sociedade. A superlotação prisional é igualmente responsável pela maioria dos distúrbios que se tem noticiado, assunto que será desenvolvido oportunamente. Por conseguinte, ressalva o art. 85, caput da LEP que o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade, cabendo ao Conselho de Política Criminal e Penitenciária a concessão para determinar os limites máximos de capacidade de cada estabelecimento, conforme a sua natureza e peculiaridades (art. 84, parágrafo único da LEP). O estabelecimento prisional ainda terá que oferecer estrutura que permita a separação entre o preso provisório e o condenado por sentença transitada em julgado (art. 84, caput da LEP). Assim, ensina Mirabete que “as prisões deve m propiciar a separação dos presos em 90 CASTRO, Douglas Camarano de. Soltura de presos condenados x conveniência estatal: legalidade ou ilegalidade no cumprimento da Lei de Execuções Penais?. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 882, 2 dez. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7652>. Acesso em: 24 out. 2006. 91 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 270. 48 grupos homogêneos, não só por diversidade do título da prisão, como também para facilitar o tratamento penitenciário e as medidas de vigilância do estabelecimento penal”. 92 Nesse sentido, prossegue ainda o autor aduzindo que: [...] a pessoa submetida à prisão temporária não pode ficar recolhida juntamente com condenados ou mesmo com aqueles submetidos às demais espécies de prisão provisória. [...] Os presos provisórios (prisão preventiva ou decorrente de flagrante, pronúncia ou condenação recorrível e, agora, da prisão temporária), embora sujeitos à disciplina penitenciária, não estão submetidos às mesmas limitações e obrigações dos condenados [...], uma vez que se encontram recolhidos à prisão apenas em decorrência de uma medida cautelar, gozando ainda da presunção de inocência, e não em cumprimento de uma pena imposta em sentença irrecorrível.93 Da mesma forma deve-se igualmente respeitar a separação entre o preso primário e o preso reincidente (art. 84, § 1º), de modo a evitar influências nocivas deste em relação àquele. Em derradeiro, é assegurada também a separação entre o preso que, ao tempo do fato, era funcionário da Administração da Justiça Criminal dos demais, com intento lógico de evitar a concretização de sentimentos de vingança ou práticas de atos de represália contra o (ex) funcionário (art. 84, §2º). Salienta-se ainda, em suma, que a LEP é patente nos seus desideratos, quais sejam, efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a reintegração social do apenado. Assim, para cumprir à contento, os seus escopos, a LEP instituiu uma série de normas, de observância imperiosa. Essas normas instituídas pela LEP consistem num conjunto de orientações normativas criadas exclusivamente para nortear o cumprimento da sentença penal condenatória. Noutro dizer, a LEP estabelece, dentro dos parâmetros constitucionais, qual o tratamento deve o preso ser submetido, quais são os direitos e garantias que lhe é assegurado e quais são as suas obrigações. Em derradeiro, insiste-se em afirmar, por acharmos necessário e extremamente importante, que por um lado, aos presos são assegurados todos os direitos não atingidos e incompatíveis com a sentença penal condenatória e, por outro, que a LEP consiste na especificação das normas asseguradas constitucionalmente. Daí, a sua observância imperiosa, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. 92 93 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 254. MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 254. 49 3 AVINCULAÇÃO DO JUIZ À LEI E A ATITUDE A SER TOMADA DIANTE DE FLAGRANTE VIOLAÇÃO AOS DIREITOS ASSEGURADOS AOS PRESOS Cumpre nesta parte traçar primeiramente um quadro do atual sistema prisional brasileiro e mostrar através das reportagens veiculadas nos meios de comunicação social, a violação dos direitos assegurados na Constituição, documentos internacionais e conseqüentemente, na Lei de Execução Penal. Portanto, através dessas reportagens, pretende-se mostrar ilustrativamente, a ineficiência do sistema prisional brasileiro e inobservância das normas constitucionais, internacionais e da Lei de Execução Penal, que comprometem sem dúvida, o cumprimento da sentença penal condenatória. Nesse sentido, será analisada e aferida a luz das normas constitucionais e infraconstitucionais, a decisão proferida pelo Juiz Livingsthon José Machado, que expediu alvará de soltura aos presos que estavam cumprindo a pena em condições degradantes e desumanas. Por conseguinte, pretende-se abordar o aspecto da vinculação do juiz a lei e até que ponto, o juiz deve obediência à lei. Ante a decisão prolatada, pergunta-se: poderia o Juiz Livingsthon José Machado ter agido de forma diversa? Um aplicador da lei, num caso concreto, deve se omitir ou aplicar a lei vigente? Salienta-se que o 'caso do Juiz Livingsthon José Machado' constitui sem dúvida, o ponto fulcral deste capítulo. Em suma, conforme tudo aquilo que já foi explanado, pretende-se analisar a nível prático as situações de violações dos direitos dos presos. É lícito manter um condenado encarcerado em situação diversa do mandamento penal condenatório? O juiz é obrigado a aplicar a lei? Quando o preso não cumpre as suas obrigações durante a execução da pena ele sanções e o que acontece quando o Estado viola os seus direitos? São reflexões que serão objetos de análise nesse tópico. 3.1 O quadro do sistema prisional brasileiro: a violação da lei pelo Estado Cumpre nesta parte traçar um quadro do atual sistema prisional brasileiro e mostrar a violação dos direitos assegurados aos presos pelo próprio Estado. Importa não olvidar que a violação dos direitos dos presos, implica igualmente uma imediata violação de preceitos 50 constitucionais. Outro lembrete importante é que aos presos são assegurados todos direitos não atingidos pela sentença penal condenatória. Com efeito, o sistema prisional brasileiro não atende aos objetivos para o qual foi criado, haja vista que não permite a efetivação dos mandamentos da sentença penal condenatória e nem tampouco cria condições para a reinserção social do apenado, conforme o art. 1º da Lei de Execução Penal. Por conseguinte, as insistentes violações dos preceitos normativos destinados a assegurar os direitos dos presos e a não observância – omissão – da Lei de Execução Penal que norteia o cumprimento da sentença penal condenatória, atrelados a outros fatores, contribuem e muito para a falência do sistema penitenciário brasileiro. O meio pelo qual pretendemos mostrar a inoperância e ineficiência do sistema prisional brasileiro e, conseqüentemente, a violação dos direitos assegurados aos presos, é através das informações veiculadas nos órgãos de comunicação social. A bem da verdade, não muito raro, depara-se com notícias e informações veiculadas em todos os tipos de meios de comunicação social, revelando descumprimento das disposições normativas constitucionalmente assegurados aos presos. Assim, em consonância com os objetivos do presente trabalho, selecionamos algumas notícias divulgadas na mídia, do qual ocuparemos a seguir, de flagrante violação dos direitos humanos dos presos assegurados na Constituição, documentos internacionais e conseqüentemente, na Lei de Execução Penal. Cumpre por oportuno sublinhar que, para apresentar o quadro do sistema penal brasileiro, não se utilizará de critérios estatísticos, posto que as noticias são meramente ilustrativas por um lado e por outro, o quadro penitenciário no Brasil é público e notório. Conforme uma reportagem divulgada na internet94, em abril de 2005, sobre o sistema carcerário brasileiro, foi possível constatar a situação de precariedade e insalubridade das carceragens. Essa reportagem foi realizada com base nos relatórios dos Deputados Estaduais do Paraná, particularmente, a Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Paraná. Informa a reportagem que a incidência de epidemias entre presos transformou as cadeias paranaenses em focos de doenças contagiosas e as carceragens enfrentavam o risco de surtos epidêmicos provocados pelas péssimas condições de higiene e pela superlotação das celas. Em decorrência de falta de higiene e da superlotação, de acordo com a reportagem, 94 CEGALLA, Alexandre et al. Sistema Prisional. Disponível: <http://portal.rpc.com.br/gazetadopovo/sistcarcer/conteudo.phtml?tl=1&id=701575&tit>. Acesso em: 15 nov. 2006. 51 foram registrados casos de tuberculose, aids, hepatites A e C, sífilis e pneumonia. À época da reportagem, 170 presos ocupavam a carceragem, cuja capacidade normal era para tão somente 20 detentos. Em uma ala, 60 detentos dividiam um único banheiro e muitos deles dormiam no chão. O sistema de ventilação era inexistente nas celas, permitindo o aumento de temperatura em até 10ºC em relação ao ambiente externo. Ainda segundo a reportagem, no ano 2003 foram notificados, na população carcerária do Paraná, 2.958 detentos com tuberculose e em 2004 foram notificados 2.720 casos. Explica o então Coordenador do Programa de Controle de Tuberculose de Paraná – Fidelis Berneck – que a concentração de pessoas, a circulação insuficiente do ar e as más condições de higiene são os fatores que colocam as cadeias públicas na condição de locais mais propícios para a disseminação da tuberculose. A contaminação pelo bacilo da Koch, bactéria causadora da doença, ocorre ao respirar o ar contaminado por uma pessoa infectada. Pelos dados da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), 30% da população tem o bacilo no corpo, mas só um pequeno percentual irá desenvolver a doença. Nas delegacias, com má alimentação e baixa imunidade, os detentos ficam mais suscetíveis. A falta de circulação de ar e outras condições de insalubridades tornam as doenças facilmente disseminadas no interior das cadeias. Na cadeia de Umuarama, conforme a reportagem, foram registrados surtos e a doença atingiu 30 dos 160 presos e também contaminou 3 policiais. O presídio foi interditado por três meses pela vigilância sanitária e para o delegado-chefe da 7ª Subdivisão da Polícia Civil, Antônio Ângelo Colombo, a superlotação uma vez mais foi crucial na proliferação da doença entre os detentos. De acordo com a reportagem, eis a situação de superlotação levantadas, nas 4 cadeias/presídios no Estado de Paraná: Cadeias/Presídio Delegacia de Cadeia Pública Paranaguá/PR L. Neves - Foz do Iguaçu 9ª Subdivisão de Polícia Civil em Maringá/PR Mini-presídio em Cascavel/PR Capacidade normal/permitida 20 350 156 140 População dos detentos 170 748 368 385 150 a mais 398 a mais 212 a mais 245 a mais Excesso na população carcerária Esses números expressivos falam por si. Ao longo da reportagem, ficou evidenciado 52 que a superlotação e as péssimas condições higiênicas das celas foram os dois principais fatores que mais contribuíram para a precariedade do sistema prisional. O Estado de Santa Catarina também não foge à regra. Uma reportagem do Diário Catarinense95 em dezembro de 2006 denuncia também a situação lastimável do sistema carcerário no estado. A reportagem nos informa que o sistema prisional de Santa Catarina tem 11.200 presos espremidos em 7.100 vagas e que no verão, segundo o DEAP (Departamento de Administração Prisional da Secretaria de Segurança Pública) os números de detentos aumentam mais 30%, ou seja, o sistema carcerário precisará abrigar 14.500 detentos, o dobro da capacidade. Na mencionada reportagem, os números também são alarmantes: na Central de Triagem de Florianópolis, 115 presos ocupam 30 vagas e na Delegacia de Palhoça, 20 detentos ficam alojados em local projetado para tão somente 4 pessoas. Na Delegacia de Palhoça, informa a reportagem que os presos mais privilegiados dividem cama com outro preso, outros 3 presos ficam no banheiro e os restantes, que geralmente são mais de 10, passam o dia todo sentado no chão um de frente para o outro com as pernas dobradas, em um espaço de 3 metros de largura. De acordo com o relatório da Anistia Internacional divulgado na internet96, a prática de tortura e as péssimas condições dos presídios do Estado de Espírito Santos resultam em tratamento desumano e degradante dos detidos. Ainda, de acordo com a reportagem, outros grupos de direitos humanos locais denunciaram a formação de gangues e corrupção no sistema carcerário que contribuem para os níveis extremos de violência, para o surgimento de rebeliões e para o uso de força excessiva durante as tentativas de readquirir o controle sobre o sistema. Ressalta a Anistia Internacional que a Casa de Custódia de Viana é um exemplo negativo de cadeia. O relatório encaminhado à Comissão Nacional de Direitos Humanos por grupos de direitos humanos locais em junho de 2006 mostrou que a prisão estava superlotada com quase três vezes mais presos do que a capacidade projetada, de que não havia separação por categorias de presos, de que os detidos condenados e os que aguardam julgamento permaneciam juntos e de que detidos que tiveram a vida ameaçada não foram colocados em celas protegidas. Ressalta a reportagem que a Anistia Internacional denunciou também o uso de policiais militares com auxílio de membros da Força Nacional de Segurança Pública em 95 PEREIRA, Felipe. Sistema prisional fora de controle. Diário catarinense, Florianópolis, 3 dez. 2006, reportagem especial, p. 4 e 5. 96 KUNSCH, Daniela. Anistia Internacional denuncia Governo do Estado por violação de Direitos Humanos e prática de tortura em presídios. Disponível em: <http://www.mndh.org.br/anistiadenuncia.htm>. Acesso em: 09/04/2007. 53 atividades exclusivas de agentes carcerários para o qual não são autorizados, nem treinados e nem efetivamente monitorados. Segundo a anistia, o Governo do Estado falhou ao não tomar providências para superar a crise enfrentada pelo sistema prisional capixaba. Frisa ainda o documento da Anistia Internacional, que esta falha persistente na investigação das denúncias de tortura e da contínua violação dos direitos humanos pelos policiais militares, ilegalmente usados como guardas dentro do sistema, com certeza reforçaram o padrão de violações de direitos humanos. Segundo o relatório da Anistia Internacional, que serviu de base para a mencionada reportagem, os detidos também fizeram uma relação específica de violações de direitos humanos, quais sejam, tortura regular com eletro-choque conduzida por membros da Força Nacional de Segurança Pública, utilização de jatos de gás quando entram e saem das celas, prática de exercícios físicos no pátio nus, uso de balas de borracha e cilindros de gás lacrimogêneo e presos forçados a dormir no chão. Em Tangará da Serra (251 km de Cuiabá-MT), conforme a reportagem veiculada no dia 27/03/2007 na internet97, o juiz está a liberar os presos por falta de estrutura e condições no estabelecimento prisional. Conforme a reportagem, a semelhança de outras unidades prisionais no país, em Tangará da Serra, a superlotação é um dos empecilhos que comprometem o cumprimento eficaz da sentença penal condenatória. Com capacidade para abrigar 47 detentos, a cadeia do Tangará abrigava à época da reportagem 120 pessoas. Em agosto de 2006, quando a superlotação já estava em um nível crítico, atrelados às péssimas condições higiênicas e de segurança, foi pedido a interdição da cadeia em Tangará da Serra. Outro problema que igualmente assola o sistema carcerário brasileiro é a falta de assistência jurídica destinada aos presos que não têm condições financeiras de constituir um advogado. A título ilustrativo uma notícia que fora disponível na internet98 no dia 26/03/2007, na qual um acusado de crime de homicídio que estava preso havia 1 ano e meio, foi absolvido no 1º Tribunal do Júri e, mesmo com expedição de alvará de soltura o mesmo continuou preso no Presídio de Franco da Rocha I, na Grande São Paulo. Para o Defensor Público que cuidou do caso em análise, houve uma clara violação a direitos fundamentais. Foi instalada no dia 22/08/07 na Câmara dos Deputados a CPI do Sistema Carcerário,99 na qual se pretende fazer um diagnóstico das prisões brasileiras para, em 97 MAGALHÃES, João Carlos. Juiz manda liberar presos por falta de vagas em cadeia. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u133512.shtml> . Acesso em: 09 abril 2007. 98 DOGI. Absolvido pela justiça continua preso em SP. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL14515-5605,00.html >. Acesso em: 27 março 2007. 99 OLIVEIRA, José Carlos. Câmara instala CPI do Sistema Carcerário. Disponível em: 54 seguida, oferecer sugestões de projetos de lei para o Legislativo e de ações para o Executivo deixarem o sistema mais humano. Conforme o noticiário, o autor do requerimento de criação da CPI do Sistema Carcerário, deputado Domingos Dutra (PT-MA), afirmou que o primeiro passo será investigar as principais deficiências do sistema carcerário, destacando a superlotação dos presídios, a situação dos detentos que já cumpriram pena mas continuam presos porque não têm advogados, corrupção e desorganização do sistema e saúde no sistema penitenciário. O Diretor-geral do Departamento Penitenciário Nacional, Maurício Kuehne, afirmou no dia 18/09/2007100 que os presídios brasileiros têm déficit de 200 mil vagas e que os recursos são insuficientes para garantir o número ideal de vagas. Sublinhou, ainda, de acordo com a fonte, que os presídios não recuperam os presos e que, por isso, é preciso investir em educação e no trabalho prisional. Na reportagem, informou o Diretor que o número de presos no País saltou de 148,7 mil em 1995 para 419,5 mil em junho deste ano e que 550 mil condenados ainda não foram presos. Como solução para minimizar o déficit de vagas, o diretor defende aplicação de penas alternativas. Outro caso de suma importância que marcou de uma forma indelével o mundo jurídico e não só, foi a decisão levada a cabo pelo juiz Livingsthon José Machado, da Vara de Execuções Penais de Contagem em Minas Gerais, em novembro de 2005, que face a flagrante violação dos direitos constitucionais assegurados aos presos, determinou a soltura de dezenas de condenados. Salienta-se que oportunamente será analisado de forma mais minuciosa “o caso Livingsthon José Machado”. De antemão, frisa -se que a decisão não só foi acertada, como também foi muito corajosa, além de ter observado e atendido os princípios e garantias fundamentais na Constituição Federal de 1988. Em derradeiro, do exposto vislumbra-se flagrantemente que o atual quadro do sistema carcerário é no mínimo assustador e ultrajante para os presos, e evidencia igualmente a violação diária dos direitos humanos fundamentais assegurados aos presos, face a inoperância do Executivo e, em certas ocasiões, do Judiciário. Com efeito, essas notícias ventiladas anteriormente apresentam-se como a ponta de um iceberg. Assim, urge tomar medidas adequadas e eficazes de modo a devolver o mínimo de dignidade e respeito dos direitos humanos fundamentais àqueles que têm sua liberdade restringida pelo Estado. <http://www2.camara.gov.br/internet/homeagencia/materias.html?pk=108518 >. Acesso em: 23 set. 2007. 100 TRIBOLI, Pierre. Presídios brasileiros têm déficit de 200 mil vagas. Disponível <http://www2.camara.gov.br/homeagencia/materias.html?pk=110228 >. Acesso em: 23 set. 2007. em: 55 3.2 O caso do juiz LIVINGSTHON JOSÉ MACHADO Em meados do mês de novembro do ano 2005 foi noticiada, com certa ênfase na imprensa nacional101 a decisão proferida pelo Excelentíssimo Senhor Juiz de Direito, Livingsthon José Machado, que como titular da Vara de Execuções Criminais da Comarca de Contagem-MG, determinou a expedição de alvarás de soltura para presos condenados, que se encontravam cumprindo pena em condições sub-humanas nas celas das delegacias de polícia do citado município, zelando-se assim, pelo correto cumprimento da pena. Assim, no cumprimento da sua função e munido dos poderes conferidos pela própria Constituição, o Juiz – fundamentadamente – tomou a decisão de expedir alvará de soltura dos presos, por entender que não seria justo, seguro e legal mantê-los encarcerados na situação em que se encontravam. Destarte, sem mais delongas, traremos a seguir, no presente trabalho, alguns dos argumentos jurídicos que fundamentaram a decisão do Juiz Livingsthon José Machado.102 Um dos argumentos ventilados na decisão em análise é a inobservância do art. 104 da LEP, que disciplina a cadeia pública e estabelece que as exigências mínimas do art. 88 e seu parágrafo único devem ser observadas também para o preso provisório. Convém relembrar que o parágrafo único, b, do art. 88 exige área mínima de 06 m² (seis metros quadrados) para cada cela individual. Por outro lado esclarece o Juiz na sua decisão que: A Constituição Federal traz como fundamento do próprio Estado Brasileiro, a dignidade da pessoa humana, estabelecendo alguns direitos e garantias fundamentais como eixo de orientação de todo o ordenamento jurídico, inclusive e principalmente o relacionado ao cerceamento da liberdade da pessoa humana, dentre eles a proibição de se submeter alguém à tortura ou a tratamento desumano ou degradante.103 Deste modo, sustenta o Juiz que a lei punirá qualquer discriminação atentatórias dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) e que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária (art. 5º, LXV). Esclareceu ainda na sua decisão, que a carceragem do 1º Distrito Policial de Contagem, 101 LOPES, Roberta. Direitos dos condenados: disponível em: <http://www.mundolegal.com.br/?FuseActino=Artigo_Detalhart&did=17909 >. Acesso em 25 agosto 2006. 102 CONTAGEM. Vara de execuções Criminais de Contagem. Procedimento Administrativo. Correcional n.º 729/05. Livingsthon José Machado, Juiz de Direito. 08 nov. 2005. 103 CONTAGEM. Vara de execuções Criminais de Contagem. Procedimento Administrativo. Correcional n.º 729/05. Livingsthon José Machado, Juiz de Direito. 08 nov. 2005. 56 muito pouco tem contribuído para as finalidades da execução penal, quais sejam efetivar as disposições da sentença criminal condenatória e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado (artigo 1º da Lei 7.210/84). O flagelo de superlotação, como era de se esperar, também foi trazido à tona na fundamentação da sua decisão, haja vista que existem 6 unidades policiais com carceragem na comarca de Contagem, um dos quais o 1º Distrito Policial com capacidade para abrigar, segundo o laudo pericial, apenas 07 presos, mas que, a despeito disso, possuía 63 presos. Assim, para equacionar o problema de superlotação naquela carceragem, várias medidas administrativas anteriores foram adotadas pelo juiz titular da Vara de Execuções. Contudo, sem surtir o efeito desejado, pois, argumentou o Juiz que nenhuma providência ou sinalização de que medidas estavam sendo adotadas para a solução dos problemas foram apresentadas. De igual modo, aduz o juiz que foram inúmeras vezes requisitadas vagas em estabelecimentos penais adequados ao cumprimento de pena dos sentenciados que ali estavam recolhidos, sendo que a resposta da administração pública estadual foi sempre no mesmo sentido, qual seja, a falta de vagas para matrícula dos condenados. Da mesma forma foi determinada a transferência dos presos detidos nas carceragens do 1º DP de Contagem e, no entanto, a medida não foi efetivamente cumprida. Fundamentou ainda que “o local onde os presos estão recolhidos afronta os direitos individuais e fundamentais da pessoa humana, aniquilando visivelmente sua condição de dignidade, tornando o cumprimento da pena aplicada cruel e manifestadamente ilegal, abusiva.” 104 Também, o juiz escreveu na sua decisão que: A manutenção dos presos condenados nas carceragens de distritos policiais ou cadeias públicas caracteriza flagrante ilegalidade, afrontando não só os dispositivos da Lei de Execução, como os princípios orientadores de todo o direito penal e várias garantias e direitos constitucionais, como aqueles identificados linhas acima.105 Em razão disso, entendeu o Juiz, face a situação irregular da carceragem do 1º Distrito Policial de Contagem, bem como o risco real para a saúde dos presos ali recolhidos e a inércia da administração pública para a solução dos problemas apontados, que a medida mais acertada era a interdição da carceragem daquela unidade policial. 104 CONTAGEM. Vara de execuções Criminais de Contagem. Procedimento Administrativo. Correcional n.º 729/05. Livingsthon José Machado, Juiz de Direito. 08 nov. 2005. 105 CONTAGEM. Vara de execuções Criminais de Contagem. Procedimento Administrativo. Correcional n.º 729/05. Livingsthon José Machado, Juiz de Direito. 08 nov. 2005. 57 No mesmo ato, o Juiz, com fundamento no art. 5º, LXV, da Constituição Federal/88, por considerar ilegal e abusiva a prisão de todas as pessoas detidas na citada unidade carcerária, determinou a expedição de alvará de soltura de todos que estavam ali cumprindo pena. Assim, determinou a suspensão da pena de todos os condenado recolhidos no 1º Distrito de Policial de Contagem, até que sejam disponibilizadas vagas em estabelecimento prisional adequado ao cumprimento das respectivas condenações. Por conseguinte, a soltura dos presos condenados que foi noticiada na imprensa deu-se porque os mesmos encontravam-se cumprindo a pena que lhes foi aplicada de forma totalmente contrária ao determinado pela lei, vez que estavam custodiados em celas superlotadas, imundas, insalubres, convivendo presos saudáveis com presos acometidos de tuberculose, hepatite, sarna e outras moléstias, o que se não averiguado com a atenção necessária, além de um problema prisional, poderia causar, em breve interregno, um sério problema de saúde pública. Assim, com base nos argumentos ventilados pelo Excelentíssimo Juiz Livingsthon José Machado, não resta dúvida de que os presos estavam encarcerados em situação degradante e desumana, bem como que a sanção a eles aplicada pelo Estado era totalmente ilegal e contrária aos princípios constitucionais da individualização da pena e da dignidade da pessoa humana. Ora, se o Estado não oferece aos presos condições adequadas ao cumprimento dos comandos legais, não é justo mantê-los detidos em situação diversa e muito mais gravosa daquela descrita na sentença penal condenatória. Salienta-se ainda, que a decisão do Juiz Livingsthon José Machado, teve apoio unânime dos seus colegas, que partilham exatamente da mesma opinião. Assim, numa carta aberta dos Juízes da mesma comarca106, estes manifestaram apoio à decisão proferida, e simultaneamente repudiaram com veemência a atitude de autoridades públicas, que de uma forma inadequada, tomaram medidas equivocadas, ao ponto de instalar uma comissão tendente à averiguação de uma possível conduta ilícita por parte do Juiz da Vara de Execuções Criminais e conseqüentemente o afastamento do mesmo. Na citada carta aberta dos magistrados foi reforçada a decisão proferida, aduzindo que foi um gesto extremo, mas pautado em argumentos legais e jurídicos, em atenção ao comando constitucional que determina sejam todos, inclusive os encarcerados, respeitados em sua dignidade, determinou a soltura dos presos que se encontravam recolhidos em estabelecimentos prisionais que, repita-se, não apresentavam as mínimas condições de 106 LÚCIO, Mário. A marcha da arbitrariedade. http://www.jornalorebate.com/12/Livingsthon.htm >. Acesso em: 11 nov. 2006. Disponível em: < 58 salubridade e segurança, sendo de se registrar que há incidência de casos de lepra, tuberculose, hepatite e doenças sexualmente transmissíveis entre a massa carcerária. Complementa ainda os magistrados, que Livingsthon José Machado agiu no exercício de seu poder jurisdicional, sendo certo, por isso, que a sua decisão, pautada na lei e nos princípios gerais do Direito, ainda que dela discorde alguns, há de ser combatida nos tribunais, e só nestes. Salienta-se que após a decisão, o Juiz Livingsthon José Machado foi imediatamente afastado, e o Governo do Estado local impetrou um mandado de segurança107, de modo a suspender definitivamente a eficácia da referida e analisada decisão. Na decisão que deferiu unanimemente o mandado de segurança, afirma o Desembargador Relator Paulo Cézar Dias, que se trata de uma questão que se versa sobre direito individual versus o direito coletivo, e entende que, este prevalece sobre àquele. Alega ainda o Relator que a ordem de expedição de alvará de soltura dos presos, “por critério de oportunidade e conveniência, sem que tivesse um processo instaurado para esse fim, consiste usurpação de atividade própria da Administração, ofendendo, assim, os princípios da legalidade e o da separação dos Poderes do Estado”. 108 A decisão proferida pelo Juiz, segundo o entendimento do Relator, se evidencia como uma clara ilegalidade, haja vista que o art. 109 da LEP, elenca situações que determinam a expedição de alvará de soltura do condenado, nas quais, a superlotação e as condições insalubres e desumanas não estão contempladas nesse rol, motivo pelo qual a soltura dos presos fora das hipóteses do citado artigo, é uma clara afronta à exigência legal. A ordem de soltura e a suspensão da execução das penas, no entendimento do relator, não se apresentam como solução, porquanto só faz agravar o senso de impunidade, incentivo a prática de novos delitos e por fim, o descrédito da população nos poderes constituídos. Assim, defende o relator que a decisão não pode subsistir, por absoluta falta de amparo legal e apresenta solução “menos gravosa” à justiça e conseqüentemente à sociedade, qual seja, construção de novos estabelecimentos prisionais. Porém, reconhece o próprio relator que a construção de novas carceragens envolve trâmites legais, como processos licitatórios, e o aparelhamento físico e de pessoal administrativo, o que sem dúvida, levaria uma eternidade até a conclusão das obras. Com efeito, a construção de estabelecimentos carcerários modernos, que permitam o 107 Minas Gerais. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mandado de Segurança, n.º 1.0000.05.429879-9/000(1),3ª Câmara Criminal. Estados de Minas Gerais e Juiz de Direito da Vara Criminal de Contagem/MG. Paulo Cézar Dias. 07/03/2006, publicado em 09/08/2006. 108 Minas Gerais. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Mandado de Segurança, n.º 1.0000.05.429879-9/000(1),3ª Câmara Criminal. Estados de Minas Gerais e Juiz de Direito da Vara Criminal de Contagem/MG. Paulo Cézar Dias. 07/03/2006, publicado em 09/08/2006. 59 cumprimento adequado da pena, poderá sim resolver, a longo prazo, uma grande parte dos problemas prisionais verificadas atualmente. Porém, convém não olvidar que emerge tomar medidas enérgicas, imediatas e que permitam resolver ou, ao menos, minimizar a atual situação precária das carceragens no Brasil. Os Desembargadores que julgaram o mandado de segurança, ora analisado, como é de praxe, acompanharam o voto relator, entendendo o Des. Reynaldo Ximenos Carneiro que expedir alvará de soltura é realmente a situação mais cômoda ante o problema de superlotação, porém, não é a decisão correta. Argumenta ainda que não existiu legitimidade na decisão do Juiz Livingsthon, tendo em conta que este não poderia proceder à soltura pura e simples de presos, se eles estavam condenados. Nesse passo, afirma a Des.ª Jane Silva, que o Juiz tinha outras alternativas à sua disposição que não passaria pela decisão de soltar os presos. Em suma, os Doutos Desembargadores reprovaram de forma unânime a decisão proferida pelo Juiz José Livingsthon Machado, sob alegação de falta de legitimidade, supremacia de interesse social em detrimento de interesse individual e falta de fundamento legal. A seguir, propõe-se analisar a decisão proferida pelo juiz e se a mesma corresponde a compêndio constitucional. 3.3 A vinculação do juiz à lei: poderia o juiz LIVINGSTHON JOSÉ MACHADO ter decidido de forma diversa? Cuida-se nesta parte de analisar a decisão prolatada pelo Juiz Livingsthon José Machado e verificar a sua validade jurídico-constitucional. Poderia este magistrado ter decidido de forma diversa? Qual a natureza da vinculação do Juiz à lei? Este tem obrigação de aplicar a lei? Pretende-se responder a essas indagações nas linhas que se seguem. No entanto, é de salientar primeiramente que o juiz desempenha uma das funções mais importantes, senão a mais importante, na administração da justiça, pois é o juiz que dá vida as letras frias das leis, é o aplicador das leis no caso concreto submetido a apreciação do judiciário. O juiz deverá demonstrar, segundo Dalmo Dallari, plenas condições para “avaliar com independência, equilíbrio, objetividade e atenção aos aspectos humanos e sociais, as circunstâncias de um processo judicial, tratando com igual respeito a todos os interessados e 60 procurando, com firmeza e serenidade, a realização da justiça”. 109 O reconhecimento constitucional da independência do juiz contribui, e muito, para aplicação mais justa da norma. Nesse passo, afirma Dallari que: [...] para que o Poder Judiciário garanta os direitos e realize a justiça é necessário que ele seja materialmente bem aparelhado, mas isso apenas não é suficiente, sendo exatamente relevante que os juízes tenham preparo adequado e sejam conscientes de suas responsabilidades. Mas além disso tudo e como requisito prévio e essencial é indispensável que a magistratura seja independente.110 Prossegue ainda o autor, afirmando que: Longe de ser um privilégio para os juízes, a independência da magistratura é necessária para o povo, que precisa de juízes imparciais para harmonização pacífica e justa dos conflitos de direitos. A rigor, pode-se afirmar que os juízes têm obrigação de defender sua independência, pois esta a atividade jurisdicional pode, facilmente, ser reduzida a uma farsa, uma fachada nobre para ocultar do povo a realidade das discriminações e das injustiças.111 Porém, o magistrado, no desempenho da sua função deve obediência à lei, ou melhor, todas as decisões devem ser juridicamente fundamentadas. A vinculação do juiz a lei é obrigatória. É o que se depreende do art. 93, IX, CF/88, in verbis: Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito a intimidade do interessado no sigilo não prejudique público à informação.112 Nesse sentido assevera Alexandre de Moraes que: A fundamentação constitui pressuposto de legitimidade das decisões judiciais. A fundamentação dos atos decisórios qualifica-se como pressuposto constitucional de validade e eficácia das decisões emanadas do Poder Judiciário. A inobservância do dever imposto pelo art. 93, IX, da Carta Política, precisamente por traduzir grave transgressão de natureza constitucional, afeta a legitimidade jurídica do ato decisório e gera, de maneira irremissível, a conseqüente nulidade do pronunciamento judicial.” 113 109 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 26. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 44. 111 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 45. 112 Art. 93, IX da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 113 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2005, p.1352. 110 61 A vinculação do juiz a lei é imprescindível para a prevalência da segurança jurídica. Ora, a segurança jurídica estaria comprometida se cada juiz na sua decisão procurasse imprimir a sua vontade pessoal, afastando da aplicação das normas vigentes. Assim, se cada juiz estivesse autorizado a fazer valer a sua própria vontade, estar-se-ia perante uma ditadura – ditadura dos juízes. O juiz, que não é legislador, ante a um caso concreto, não pode deixar de aplicar uma lei já existente, para equacioná-lo de maneira que lhe aprouver, sob pena de insegurança jurídica e descrença da população.114 A função do juiz, sustenta Almeida Paiva115, é, no entanto, aplicar, interpretar a lei e determinar-lhe sentido e alcance. Contudo, isso não implica dizer que o juiz é um mero aplicador da lei, haja vista que, antes de aplicá-la, este deve interpretá-la e muitas vezes, complementando-a e até mesmo melhorando-a, numa interpretação que mais atendam aos anseios, valores e finalidades nelas contidas. Ou seja, o juiz pode interpretar, complementar e até melhorar, mas não pode negar a vigência e aplicabilidade de uma norma, não pode negar a própria lei ou decidir contra aquilo que a mesma estabelece. Por conseguinte, em caso de hiatos na lei, é permitido ao magistrado recorrer à analogia, costumes, doutrina, jurisprudência e princípios gerais do direito. Com efeito, convém reiterar que não se está aqui defendendo que o magistrado é tão somente um simples aplicador da lei, muito pelo contrário, o magistrado deve sim aplicar a lei sem olvidar que não se trata de apenas letra fria, mas sim que é um corpo vivo que precisa ser compreendido, que há uma vida atrás de um processo. Nessa ótica, defende Dallari, que esses juízes demasiados formalistas oferecem um grande perigo, uma vez que esses magistrados fanatizados pela lógica aparente do positivismo jurídico, favorecem a impunidade e que: [...] muitas vezes, não chegam a perceber que o excessivo apego a exigências formais impede ou dificulta ao extremo a consideração dos direitos envolvidos no processo. Condicionados por uma visão exclusivamente formalista do direito, esses juízes concebem o respeito das formalidades processuais como o objetivo mais importante da função social. Não se sensibilizam pelas mais graves violações de direitos humanos, desde que sejam respeitadas as formalidades. Por isso se pode dizer que os juízes formalistas são cúmplices inconscientes dos violadores de direitos humanos 114 PAIVA, J. Vitória, 5 set. 2007. 115 PAIVA, J. Vitória, 5 set. 2007. A. Almeida. A função do juiz é interpretar e aplicar a lei, não legislar!... Jus Vigilantibus, 2005. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/17098>. Acesso em: 18 de jul. A. Almeida. A função do juiz é interpretar e aplicar a lei, não legislar!... Jus Vigilantibus, 2005. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/17098>. Acesso em: 18 de jul. 62 e concorrem de maneira significativa para garantir sua impunidade.” 116 Prossegue ainda o autor na sua lição, criticando aqueles magistrados acomodados, os que se afirmam apolíticos e entendem que não fazem parte da sua tarefa fazerem indagações sobre a justiça, a legitimidade e os efeitos sociais das leis. É esse comportamento, entende o autor, que freqüentemente compromete o prestígio do Poder Judiciário, contribuindo “para que ele seja visto como uma 'forma legal de promover injustiças'. Também esses juízes são cúmplices, não tão inconscientes, da impunidade dos violadores de direitos humanos”. 117 Conclui o autor que, no entanto, não há que confundir o valor da segurança jurídica com a ideologia da segurança, que tem por objetivo o imobilismo social. O juiz deve assumir sua politicidade e seu poder político atuando como cidadão, sendo um arquiteto social agindo ativamente.118 Assim, anota Luigi Ferrajoli que: A sujeição do juiz à lei já não é de fato, como um velho paradigma juspositivista, sujeição à letra da lei, qualquer que seja o seu significado, mas sim sujeição à lei somente enquanto válida, ou seja, coerente com a Constituição. E a validade já não é no modelo constitucionalista-garantista, um dogma ligado à existência formal da lei, mas uma sua qualidade contingente ligada à coerência – mais ou menos opinável e sempre submetida à valoração do juiz – dos seus significados com a Constituição. Daí deriva que a interpretação judicial da lei é também sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, compatíveis com as normas constitucionais substanciais e com os direitos fundamentais por elas estabelecidos.119 Nesse sentido, esclarece Alexandre de Moraes da Rosa que: [...] foi a partir dessa nova concepção do papel do juiz e na mesma linha dos demais atores jurídicos no Estado Democrático de Direito e, assim, do reconhecimento de suas funções de garantidores dos Direitos Fundamentais inseridos ou decorrentes da Constituição Federal da República, que o ordenamento infraconstitucional deve ser aferido.120 O juiz não é um mero reprodutor das leis, sua vinculação à lei deve ser feita dentro da perspectiva de uma sociedade em permanente processo de mudança e evolução e não como 116 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 38. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 38. 118 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 85. 119 FERRAJOLI, Luigi. O Direito como Sistema de garantias. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades (org.). O novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 90/91. 120 ROSA, Alexandre de Moraes da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 91. 117 63 algo estático e inerte, em consonância com os ditames constitucionais. Assim, argumenta Paulo Ricardo Schier que a criação de um novo discurso jurídico, desligado do mundo, muito pouco poderia contribuir dentro da construção dessa nova concepção jurídica. Assim, prossegue o autor que esta nova concepção exige: [...] não apenas um novo fundamento epistemológico mas, sim, uma releitura do próprio arsenal dogmático do Direito. Afinal, uma nova epistemologia mostrar-se-á inócua se os operadores jurídicos continuarem com o velho modo de utilização do Direito. De nada vale qualquer concepção epistemológica emancipatória se continuarem os juízes a aplicar as leis do século passado com a cabeça do século passado. Ou pior, se continuarem a ler os novos instrumentos e valores trazidos pela nova ordem (a instaurada no Brasil com advento da Constituição de 1988) sob o influxo da ordem anterior ou, ainda, insistirem em adaptar a Constituição ao espírito da legislação infraconstitucional.121 Defende ainda citado autor que, ante as mudanças verificadas, é preciso recrear um novo discurso do direito e seu instrumental e, posteriormente, reaprender a usá-lo em prol da justiça e dignidade humana, especificamente, no âmbito constitucional, que possibilitará a extração de conseqüências que deverão irradiar-se por toda a ordem jurídica.122 Noutro dizer, a ordem jurídica constitucional prevalece sobre as demais. Assim, Alexandre de Moraes Rosa, citando Mauro Cappelletti, é peremptório ao afirmar que: A função de todos os juízes é a de interpretar as leis, a fim de aplicá-las aos casos concretos de vez em vez submetidos a seu julgamento; uma das regras mais óbvias da interpretação das leis é aquela segundo a qual, quando duas disposições legislativas estejam em contraste entre si, o juiz deve aplicar a prevalente [...] quando o contraste seja entre disposições de diversa força normativa: a norma constitucional, quando a constituição seja 'rígida' e não 'flexível', prevalece sempre sobre a norma ordinária contrastante. Logo, conclui-se que qualquer juiz, encontrando-se no dever de decidir um caso em que seja 'relevante' uma norma legislativa ordinária ntrastante co com a norma constitucional, deve não aplicar a primeira e aplicar, ao invés, a 123 segunda. Destarte, do exposto, torna-se fácil concluir que foi exatamente isso que o Juiz Livingsthon José Machado fez, ou seja, ele não poderia agir de modo diverso, uma vez que vinculação do juiz a lei é obrigatória. Portanto, o juiz Livingsthon José Machado não fez mais do que cumprir a sua função. Aliás, função essa que a própria Constituição lhe assegura e impõe. Ademais, a decisão levada a cabo está de acordo com os ditames constitucionais, haja 121 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 62. 122 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 63. 123 ROSA, Alexandre de Moraes da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 105. 64 vista que, como os presos estavam cumprindo pena de modo diverso do qual deveriam estar, e por um tempo já demasiado longo – era uma prisão considerada aos olhos da Constituição Federal de 1988, ILEGAL e ABUSIVA. Eis uma parte da decisão devidamente fundamentada pelo MM Juiz Livingsthon José Machado: Assim, devidamente comprovada a situação irregular da carceragem do 1° Distrito Policial de Contagem, bem como o risco real para a saúde dos presos ali recolhidos e a inércia da administração pública para a solução dos problemas apontados, julgo PROCEDENTE a representação ofertada pelo Ministério Público e com fundamento no disposto nos artigos 66, VI, VII e VII da lei de Execução penal e artigo 61, VIII da Lei Complementar 59/01, INTERDITO toda a carceragem daquela unidade policial. Para que a medida seja eficaz e em razão da urgência necessária, com fundamento no disposto no art. 5° LXV da Constituição Federal, por considerar ILEGAL e ABUSIVA a prisão das pessoas que ali se encontram recolhidas, determino que se expeça alvará de soltura a todos os presos condenados que ali estão cumprindo pena, que deverão ser cumpridos independente de qualquer consulta ao SETARIN.124 Do exposto, o juiz entendeu não ser justo, seguro e legal mantê-los encarcerados na situação em que se encontravam e se não tomasse a decisão que tomou estaria sem dúvida agindo contra legem, contra as leis constitucionais. Assim, a despeito da decisão unânime dos desembargadores que deferiu o citado Mandado de Segurança, entende-se que a decisão do Juiz foi acertada, senão vejamos, nas razões enumeradas a seguir: Primeiro, os doutos desembargadores alegaram falta de legitimidade. Ora, o Juiz José Livingsthon Machado era, à época da decisão, Juiz titular da Vara de Execuções Criminais e Corregedoria de presídios de Contagem, desempenhando a sua função que lhe foi conferida pela própria Constituição Federal, razão pela qual, não há que se falar em falta de legitimidade. Nessa ótica, afirma Dalmo de Abreu Dallari que “desde que a Constituição preveja esse modo de escolha e uma vez que os juízes, regularmente selecionados, atuem nos limites de sua competência legal, não há como pôr em dúvida sua legitimidade.” 125 Segundo, os desembargadores alegaram a supremacia do interesse coletivo em detrimento do interesso individual. No caso, os desembargadores estão se baseando numa ameaça ou lesão de interesse coletivo em potência, que poderá eventualmente ocorrer, ou seja, não é nada que tenha base concreta. Assim, não se justifica sacrificar direitos individuais fundamentais passíveis de violação iminente e atual, a favor de um direito social abstrato e em 124 CONTAGEM. Vara de execuções Criminais de Contagem. Procedimento Administrativo. Correcional n.º 729/05. Livibgston José Machado, Juiz de Direito. 08 nov. 2005. 125 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 24/25. 65 potência. Nesse sentido, sustenta Andrei Zenkner Schmidt que somente um direito social concreto, “cuja lesão é atual ou iminente é que poderia, em nome do princípio da proporcionalidade, autorizar a sucumbência do direito individual à intimidade [...] frente a um interesse social”. 126 Terceiro, no atinente à falta de fundamentação legal, vislumbra-se literalmente que a decisão do juiz Livingsthon José Machado encontra-se devidamente fundamentada na Constituição Federal, a lei suprema do Estado. Nesse passo, destaca-se a valiosa contribuição do Ministro Celso de Mello, ao afirmar que: O respeito incondicional aos princípios constitucionais evidencia-se como dever inderrogável do Poder Público. A ofensa do Estado a esses valores que desempenham, enquanto categorias fundamentais que são, um papel subordinante na própria configuração dos direitos individuais ou coletivos introduz um perigoso fator de desequilíbrio sistêmico e rompe, por completo, a harmonia que deve presidir as relações, sempre tão estruturalmente desiguais, entre os indivíduos e o Poder.127 No mesmo sentido, Paulo Ricardo Schier realça a superioridade das normas constitucionais e a obrigatoriedade de vinculação a todos. Observa também que: Afinal, o exercício de direitos, faculdades, deveres, obrigações e sujeições decorre, direta ou indiretamente, do texto constitucional. Vincula também a Administração Pública na prática de ações e abstenções. Basta verificar os writs, sempre voltados à atribuição de efetividade aos valores constitucionais quando não realizados pela administração. Vincula também o Poder Judiciário, que deve pautar todas as suas decisões em consonância com a Constituição sob pena de reforma mediante os recursos adequados.128 Do exposto, vislumbra-se claramente que a decisão foi provida de fundamento jurídico, que não justifica a decisão equivocada de afastar o Juiz Livingsthon José Machado. Retomando o que foi abordado anteriormente no presente trabalho, cumpre relembrar que são assegurados aos presos todos os direitos não atingidos pela sentença penal condenatória. Assim, enquanto condenado, o preso é possuidor de deveres e direitos assegurados na Constituição Federal de 1988, na Lei de Execução Penal e nos documentos internacionais de proteção dos direitos humanos. 126 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 228. 127 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. PET-1458/CE. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 01 abril. 2006. 128 SCHIER, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 83/84. 66 A República Federativa do Brasil, como já frisado, tem como um dos fundamentos a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e traçou como um dos seus objetivos promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV), bem como a proibição de prática de tortura e tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) e o respeito à integridade física e moral de todos (art. 5º, XLIX). Nos documentos internacionais, particularmente a Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual Brasil é signatário, também são assegurados direitos aos presos, como já tivemos a oportunidade de abordar. A Lei de Execução Penal, por sua vez, assegura igualmente aos presos alguns direitos, tais como a alimentação suficiente e vestuário, assistência à saúde, material, jurídica, educacional, social e religiosa. Por conseguinte, um dos mais importantes direitos assegurados aos presos, como já foi também anteriormente abordado, está esculpido no art. 88, que dispõe que o condenado será alojado em cela individual que conterá dormitório, aparelho sanitário e lavatório. E mais, em seu parágrafo único, estabelece que são requisitos da unidade celular a salubridade do ambiente pela concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana e área mínima de 6,00m2 (seis metros quadrados). Cabe realçar que no que tange aos direitos dos presos, estes não podem ser meramente figurativos, uma vez que, aqueles, enquanto detentos, têm deveres e direitos, e não se pode tão somente exigir que se cumpram seus deveres ao mesmo tempo em que vêm os seus direitos vilipendiados, sob pena de nos afastarmos da condição de Estado Democrático de Direito. Assim, assevera Alexandre de Moraes que: A Constituição Federal, ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, em que pese à natureza das relações jurídicas estabelecidas entre a Administração Penitenciária e os sentenciados a penas privativas de liberdades, consagra a conservação por parte dos presos de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, com exceção, obviamente, dos incompatíveis com a condição peculiar de preso [...].129 Por outro lado, a falta de apoio da instituição judicial é desestimulante quando se tem e se quer ter atitudes heróicos e corajosos, no sentido de frear as freqüentes violações dos direitos humanos. Nessa ótica, explica Dallari que: 129 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 338. 67 Há situações em que são tais as restrições que nem mesmo o juiz mais consciente e mais corajoso pode castigar um violador de direitos humanos. Não são raros os exemplos de juízes verdadeiramente heróicos, que em suas sentenças denunciam as dificuldades para conhecer a verdade, as investigações policiais deliberadamente malfeitas, os obstáculos interpostos para impedir a identificação ou levar a julgamento os verdadeiros responsáveis por violações graves de direitos.130 Prossegue ainda o autor na sua explanação, a semelhança do que aconteceu no caso Livingsthon José Machado, alegando que: É comum que esses juízes sejam vozes isoladas que não recebem apoio da instituição judicial. Por isso é importante falar sempre, com insistência, da necessidade de sua independência, mas sem esquecer que, com freqüência, a cumplicidade e a indiferença dos juízes e cúpulas judiciais são elementos com os quais contam os governos injustos para assegurar a impunidade dos violadores de direitos humanos. Quanto aos juízes e à proteção judicial, é necessário reconhecer que sem juízes bem informados, conscientes de sua responsabilidade social e verdadeiramente comprometidos com a justiça, será quase impossível obter uma proteção real dos direitos humanos.131 Desta forma, vislumbra-se que a falta de apoio da própria instituição judicial, aliada a falta de independência dos juízes constituem sérios obstáculos a proteção real dos direitos humanos. Como já tivemos oportunidade de comentar várias vezes, uma vez assegurados na Constituição todos os direitos não atingidos pela sentença penal condenatória, estes terão de ser cumpridos. O cumprimento da pena, em momento algum pode arranhar os direitos não atingidos pela sentença, sob pena de uma indiscutível inconstitucionalidade. Nesse passo, em que pesem todas as manifestações contrárias, entende-se que a razão assiste à decisão proferida pelo Juiz Livingsthon José Machado, pelo simples e singelo fato deste ter agido em consonância com os preceitos constitucionais. Noutro dizer, de tudo que foi aqui abordado, conclui-se que o juiz está vinculado à lei de uma forma compulsória. Assim, em decorrência da compulsoriedade do juiz à lei, a decisão de expedir alvará de soltura foi acertada e assente em argumentos constitucionalmente válidos. 130 131 DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 38/39. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 39. 68 CONSIDERAÇÕES FINAIS De tudo o que foi exposto até o presente momento, é inegável a existência de garantias e direitos dos presos, assim como é igualmente inegável as suas freqüentes violações por parte do Estado. A dubiedade reside exatamente no que acarreta em termos práticos essas violações, já que os presos têm deveres a cumprir e direitos a serem respeitados e cumpridos. Se o não cumprimento de um dever por parte do preso, acarreta sanção, que incumbe ao próprio Estado aplicar, este também não poderia 'ficar impune' por não cumprir os seus deveres para com o preso. E muito menos pode o preso sofrer dupla sanção por uma única conduta ilegal. Por outro norte, muito se fala sobre quem deve ir para prisão, por quais motivos e pouco se fala ou se discute sobre o que acontece efetivamente dentro das prisões. Freqüentemente são noticiadas nos órgãos de comunicação social as condições prisionais degradantes e desumanas às quais os presos estão submetidos, perante a inércia das autoridades judiciais. É de salientar que a grande maioria das revoltas que se verificam nas prisões se deve à falta de cumprimento dos deveres por parte do Estado em relação aos presos, o que, sem dúvida, compromete os propósitos da condenação. Ficou igualmente patente que aos presos são assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença. Assim, estes direitos não podem ser meramente figurativos, uma vez que, se os presos, enquanto condenados, têm deveres e direitos, não se pode, portanto, exigir somente que cumpram suas obrigações, mas há de se fazer valer também os seus direitos, sob pena de afastar-se da premissa de Estado Democrático de Direito. Nesse passo, como bem afirma Mirabete, ao condenar um preso deve-se levar em conta o principio de que a pena privativa de liberdade é punição mais do que suficiente, motivo pelo qual o mesmo não deve cumprir qualitativa e quantitativamente pena diversa daquela que foi aplicada na sentença, pois, isso implica a imposição de uma pena suplementar e não prevista em lei.132 Desta forma, é precisamente ante a inobservância e violação das normas asseguradas aos presos no ordenamento jurídico, que se exige a atuação do Poder Judiciário, particularmente a do juiz, através do real e imediato cumprimento da lei. Nessa ótica, como foi abordado anteriormente, a vinculação do juiz à lei é compulsória. Assim, importa relembrar a brilhante lição de J. A. Almeida Paiva,133que é 132 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 47. PAIVA, J. A. Almeida. A função do juiz é interpretar e aplicar a lei, não legislar!... Jus Vigilantibus, Vitória, 5 set. 2005. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/17098>. Acesso em: 18 de jul. 2007. 133 69 peremptório ao afirmar que a vinculação do juiz a lei é imprescindível para a prevalência da segurança jurídica. Alega ainda que a segurança jurídica estaria comprometida se cada juiz na sua decisão procurasse imprimir a sua vontade pessoal, afastando-se da aplicação das normas vigentes. Prossegue ainda afirmando que o juiz não é legislador, e que ante a um caso concreto, não pode deixar de aplicar uma lei já existente, para equacioná-lo de maneira que lhe aprouver, sob pena de insegurança jurídica e descrença da população. Em última análise, ressalta-se que os objetivos do presente trabalho foram alcançados e que mais do que um ato heróico e corajoso, a decisão do MM Juiz Livingsthon José Machado, foi pautada em leis e argumentos constitucionalmente válidos. Assim, conclui-se, considerando a vinculação compulsória do juiz à lei, que a decisão tomada foi acertada e assente nas leis em pleno vigor. Que sirva de exemplo que não se pode acomodar-se, muito pelo contrário, deve-se repudiar veementemente todas e quaisquer atrocidades cometidas que violem os direitos humanos constitucionalmente assegurados aos presos. 70 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas – limites e possibilidades da Constituição brasileira. 8. ed. São Paulo: Renovar, 2006. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1998. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. PET-1458/CE. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 01 abril. 2006. CASTRO, Douglas Camarano de. Soltura de presos condenados x conveniência estatal: legalidade ou ilegalidade no cumprimento da Lei de Execuções Penais?. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 882, 2 dez. 2005. 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São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. RODRIGUES, Maurício Andreiuolo (et al); Org.: Ricardo Lobo Torres: Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. 72 ROIG, Rodrigo Duque. Direito e Prática Histórica da Execução Penal no Brasil. Rio Janeiro: Revan, 2005. ROSA, Alexandre de Moraes da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, Deveres e Disciplina na Execução Penal. in: CARVALHO, Salo de. Crítica a Execução Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. TRIBOLI, Pierre. Presídios brasileiros têm déficit de 200 mil vagas. 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Através da Portaria n° 02/2005, foi instaurado então o procedimento administrativo para apuração completa dos fatos e adoção das medidas cabíveis, sendo determinadas a inspeção sanitária da unidade prisional apontada para verificação das condições de salubridade, ale, de se proibir também o recolhimento de qualquer outro preso naquela unidade até que seja decida a questão posta em juízo. Às fls. 08/09 veio a relação dos presos custodiados nas “celas” do 1° distrito policial da comarca, num total de 63 internos, das quais 34 já estavam condenados. Às fls. 10/16 vieram cópias do laudo pericial de vistoria e foram apresentados os quesitos a serem respondidos pela inspeção sanitária pelo Ministério Público e Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais (fls. 21/22 e 23 respectivamente). Às fls. 28/312 veio o relatório de inspeção sanitária realizado seguido de manifestações finais do Ministério Público e Defensoria Pública. É o breve relato que faço do procedimento. Decido. Dispõe a Lei 7.210/82, Lei de Execuções penais em seu artigo 66 que compete ao Juiz da Execução, dentre outras atribuições, zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança; tomar providências para o adequado funcionamento dos estabelecimentos penais e interditar, no todo ou em parte, estabelecimento penal que estiver funcionando em 74 condições inadequadas o com infringência aos dispositivos desta lei. A mesma Lei de Execução Penal 7.210/84, ao classificar e caracterizar os estabelecimentos penais, afirma que se destinam ao condenado, ao submetido à medida de segurança e ao preso provisório (art. 82 da LEP) mas deverá ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade. A carceragem de distritos policiais é equiparada à cadeia pública, cuja finalidade está inserida no disposto no art. 102 do mesmo diploma legal, a saber: A cadeia pública destina-se ao recolhimento de presos provisórios. Já a Lei de Execução Penal do Estado de Minas Gerais ( Lei 11.404/94) permite a colocação de presos condenados no mesmo estabelecimento penal (cadeia pública) contrariando frontalmente o que está previsto na Lei Federal. Art. 71 – Os estabelecimentos penitenciários destinam-se ao cumprimento do disposto nos incisos XLVI “a”, XLVIII, XLIX e L do art. 5° da constituiç ão Federal e compreendem: I – presídio e cadeia pública, destinados à custódia dos presos à disposição do Juiz processante. Art. 80 – O presídio e a cadeia pública, estabelecimentos do regime fechado, destinam-se à custódia do preso provisório e à execução da pena privativa de liberdade para o preso residente e domiciliado na comarca. Observa-se entre a Lei de Execução penal (Lei 7210/84) e a legislação estadual (Lei 11.104/994) um conflito de normas que só pode ser solucionado com a análise da competência legislativa inserida na Constituição Federal no artigo 24, pois quando tratar de competência legislativa concorrente, a legislação local tem o caráter suplementar, não podendo assim contrariar o texto da norma federal que tem competência para legislar sobre normas gerais. Em razão disto, tenho como inaplicável o disposto no art. 80 da Lei de Execução Penal Estadual, por clara inconstitucionalidade, como demonstrado. Por sua vez, a LEP, ainda em seu artigo 104, disciplinando a cadeia pública, estabelece que as exigências mínimas do art. 88 e seu parágrafo único devem ser observadas também para o preso provisório, já o citado artigo 88, parágrafo único, b exige área mínima de 06 m² para cada cela individual. Já a constituição Federal, traz como fundamento do próprio Estado Brasileiro, a dignidade da pessoa humana, estabelecendo alguns direitos e garantias fundamentais como eixo de orientação de todo o ordenamento jurídico, inclusive e principalmente o relacionado 75 ao cerceamento da liberdade da pessoa humana, dentre eles a proibição de se submeter alguém à tortura ou a tratamento desumano ou degradante. Art. 5° - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito á vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e apropriedade, nos termos seguintes: I - ... II - ... III – ninguém será submetido a tortura ou tratamento desumano ou degradante XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatórias dos direitos e liberdades fundamentais LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária. A situação dos presídios do Estado de Minas Gerais, apesar das intensas propagandas que vêm sendo veiculadas pelos meios de comunicação (jornais, rádios, televisão) é muito mais dramática que a de alguns anos passados. Fortunas são despendida com estas propagandas ou com a construção inadequada de presídios que em muito pouco contribuem para as finalidade da execução penal, quais sejam efetivar as disposições da sentença criminal condenatória e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado ou do internado (artigo 1° da Lei 7.210/84). Ao assumir as funções de Juiz titular da Vara de Execuções Criminais E corregedoria de presídios de Contagem, nos termos do disposto na lei complementar 59/2001, obtive a informação que o único presídio regional aqui instalado é a Penitenciária Nelson Hungria, com 12 pavilhões e capacidade de se abrigar 90 sentenciados em cada pavilhão, mas que apesar disto o pavilhão 01 está destinado ao recolhimento de presos provisórios 9sem sentença condenatória transitada em julgado), abrigando 02 presos por cela. Também é fato público e notório, portanto que independe de prova, que existem também 06 unidades policiais com carceragem na comarca, um dos quais o 1° Distrito Policial com capacidade para abrigar, segundo o laudo pericial juntado às fls. 10/13, apenas 07 presos, mas que , a despeito disso, possui 63 presos conforme se verifica da grade juntadas às fls. 08/09. Várias medidas administrativas anteriores foram adotadas, como por exemplo, ofícios remetidos ao Presidente do Tribunal de Justiça solicitando sua intervenção junto ao Secretário de Estado de Defesa Social e ao Governador do Estado; ofício ao Corregedor Geral de justiça informando da situação e solicitando também que S. Exa. Intercedesse junto aos órgãos 76 competentes para a adoção das medidas cabíveis; ofícios aos Srs. Delegados de polícia e ao Comando da Polícia Militar; ofícios ao Sr. Secretário de Defesa Social e Sub Secretário de Movimentação Penitenciária; contudo, nenhuma providência ou sinalização de que medidas estão sendo adotadas para a solução dos problemas foram apresentadas. De igual modo já foram requisitadas vagas em estabelecimentos penais adequados ao cumprimento de pena dos sentenciados que ali estão recolhidos, sendo que a resposta da administração pública estadual vem sempre no mesmo sentido, qual seja a falta de vagas para matrícula dos condenados Também já foi determinada anteriormente por este juízo a transferência dos presos depositados nas carceragens do 1° DP de Contagem, sem que a medida tenha sido efetivamente cumprida. Basta uma análise superficial da relação de presos juntada às fls. 08, para se constatar que muitos dos sentenciados ali estão recolhidos há mais de 04 anos e nenhum deles ali se encontra por tempo inferior a 90 dias após a sentença condenatória, situação que demonstra o descaso dos órgãos encarregados da administração penitenciária. Apesar disto, a imprensa tem divulgado diuturnamente propagandas do governo estadual, no meu modo de entender, enganosas, dando conta que novos estabelecimentos prisionais estão sendo construídos e que o problema da segurança pública está sob controle, que não corresponde à realidade, pois segundo informações que nos tem chegado, Contagem é, nos dias de hoje, a cidade mais violenta do Estado de Minas Gerais em relação ao número de habitantes. No entanto, não tem recebido a atenção necessária do Governo Estadual, talvez em razão da divergência política com a atual administração local. Ao contrário de se adotar medidas para equacionar as questões a Secretaria de Defesa Social só tem colocado dificuldade e empecilhos às soluções apresentadas. Exemplo disto é o fato de que já foi disponibilizado pelo Poder Público Municipal imóvel onde deverá funcionar a nova unidade policial e até a data de hoje não cuidou a autoridade policial responsável de proceder a mudança daquela unidade. O local onde os presos estão recolhidos afronta os direitos individuais e fundamentais da pessoa humana, aniquilando visivelmente sua condição de dignidade, tornando o cumprimento da pena aplicada cruel e manifestadamente ilegal, abusiva. Não se concebe, por outro lado, que dos 63 presos recolhidos na carceragem do 1° Distrito Policial de Contagem 34 sejam já condenados e ali permaneçam enquanto cerca de 253 outros presos provisórios ocupam o pavilhão 01 da penitenciária Nelson Hungria. 77 A manutenção dos presos condenados nas carceragens de distritos policiais ou cadeias públicas caracteriza flagrante ilegalidade, afrontando não só os dispositivos da Lei de Execução, como os princípios orientadores de todo o direito penal e várias garantias e direitos constitucionais, como aqueles identificados linhas acima. Assim, devidamente comprovada a situação irregular da carceragem do 1° Distrito Policial de Contagem, bem como o risco real para a saúde dos presos ali recolhidos e a inércia da administração pública para a solução dos problemas apontados, julgo PROCEDENTE a representação ofertada pelo Ministério Público e com fundamento no disposto nos artigos 66, VI, VII e VII da lei de Execução penal e artigo 61, VIII da Lei Complementar 59/01, INTERDITO toda a carceragem daquela unidade policial. Para que a medida seja eficaz e em razão da urgência necessária, com fundamento no disposto no art. 5° LXV da Constituição Federal, por considerar ILEGAL e ABUSIVA a prisão das pessoas que ali se encontram recolhidas, determino que se expeça alvará de soltura a todos os presos condenados que ali estão cumprindo pena, que deverão ser cumpridos independente de qualquer consulta ao SETARIN. Determino também que se oficie aos juízes criminais da comarca, informando da interdição daquela unidade carcerária para que possam adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento da presente decisão. Determino, de igual modo, que se oficie à Prefeitura Municipal de Contagem, para que não permita que em qualquer outro novo imóvel destinado à instalação do 1° distrito Policial, sejam construídas celas pra recolhimentos de presos. Em razão da presente decisão, suspendo a execução das penas dos condenados recolhidos no 1° Distrito Policial de Contagem, até que sejam disponibilizadas vagas em estabelecimento penal adequado ao cumprimento das respectivas condenações, certificando a sra. Escrivã sobre o ocorrido em cada processo de execução em curso relacionado com a presente. Remetam-se cópias da presente decisão ao Governador do Estado de Minas Gerais, ao seu Secretário de Defesa Social, à Corregedoria Geral de Justiça e à Presidência do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, à Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça. Publique-se; Registre-se; 78 Cumpra-se. Contagem, 08 de novembro de 2005. Livingsthon José Machado Juiz de Direito