B runo G laab

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A morte de Jesus segundo Mc 10,45
“Pois o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
em resgate por muitos”.
1 – Introdução
É muito comum, principalmente durante os discursos de semana santa, ouvir os
velhos chavões teológicos: “Jesus, na cruz, morreu para pagar pelos nossos pecados”.
Cada pecador é exortado a olhar para o crucificado, homem das dores, e ver suas iniqüidades estampadas no rosto desfigurado de Jesus. Ele precisou morrer em nosso lugar para
sermos perdoados pelo Pai e termos condições de nos salvar. Nossa condição de pecadores nos afastou definitivamente do Pai. Não havia mais nenhuma possibilidade de remissão. Estávamos irremediavelmente perdidos. Jesus, Deus e homem, assumiu em nosso
lugar e nos reconciliou com Deus.
Esta visão mítica, no entanto, é problemática em muitos sentidos. Teria Deus criado o ser humano de tal forma que este pudesse ser perfeito ou não pecar? Se Deus criou
o ser humano com limites, poderia ele se sentir enojado diante de sua criatura limitada?
Se é verdade que todos os seres humanos pecam, por que Deus estaria tão preocupado a
tal ponto de querer condenar seus filhos e filhas? Quem seria este Deus vingativo que
criou seres humanos limitados e agora não suporta os limites de suas criaturas?
Poder-se-ia ainda perguntar: que gosto teria Deus em substituir o castigo dos muitos e fazer o seu Filho padecer, ou melhor, que alegria lhe daria o padecimento e a morte
de Jesus, para que assim ele perdoasse ao ser humano? Esta postura teológica, no mínimo, mostra um Deus malvado, sádico1 e vingativo. Mostra também a imagem de um Filho que assume um papel vetero-testamentário de bode expiatório2. Ora, Jesus, na realidade vai desmantelando o antigo culto (Jo 2,13ss). Ele mesmo diz: “Misericórdia é que
eu quero, e não sacrifício” (Mt 9,13; 12,7).
Tal teologia expiatória e vicária era bem aceita em outros tempos. Hoje, porém,
para o ser humano moderno esta idéia é chocante e mesmo legitimadora de sacrifícios
humanos de tantos pobres e pequenos que vêem suas vidas relegadas ao lixo da história
para dar privilégios a poucos. Faz-se, então mister entender como se deve ler a frase de
Mc 10,45.
2 – A questão de Mc 10,45
1
2
VARONE, François. El Dios Sádico – Ama Dios el sufrimiento? Bilbao: Sal Térrea, 1985.
GIRARD, René. El Chico expiatorio. Barcelona:Anagrama, 1982.
2
Numa primeira leitura de Mc 10,45 poderíamos entender que de fato Jesus veio
dar a vida para nos resgatar, isto se apenas nos atermos à segunda parte da frase. A leitura, no entanto, deve ser bem mais ampla, ou seja, o versículo tem duas idéias. A primeira
idéia inicia com a diaconia do Filho do Homem. Esta diaconia do Filho do Homem é um
novo caminho de libertação que culmina na morte. O presente estudo quer ser uma tentativa de superar a leitura sacrificialista da morte de Jesus e ver a diaconia do Filho do Homem e dos discípulos como o verdadeiro caminho de libertação. Jesus trouxe o caminho
da redenção, não pelo fato de ter morrido, mas pelo fato de ter vivido, isto é, ter-se encarnado em nossa história (Jo 1,14).
3 - Como foi trabalhada, até hoje, a questão da diaconia e da morte de Jesus?
Através da história, desde o Novo Testamento, até os tempos atuais, a vida de Jesus de Nazaré, bem como sua morte, foram lidas de maneiras, nem sempre iguais. No que
concerne à questão da morte de Jesus e de sua interpretação, tem se escrito muito. Numa
primeira leitura, transparece, com toda força, a questão sacrifical, sem levar em conta que
a morte de Jesus é conseqüência de sua vida e de sua diaconia. Ou seja, a morte é vista
separada da diaconia.
3.1 – Nos tempos primitivos da Igreja
A começar pelo contexto do Novo Testamento, paira uma névoa sobre a compreensão da vida e da morte de Jesus. Fixa-se a atenção sobre a morte. Esta é vista como algo que tem valor em si. A vida de Jesus e sua diaconia libertadora são obnubiladas, e neste exato momento começa-se a dar peso à morte de Jesus como salvífica, expiatória e vicária. A morte de Jesus passa a ser encarada como sacrifício (Mc 10,45; 14,24 e principalmente Paulo em Gl 1,4; 1Cor 15, etc.). Está aqui uma interpretação teológica das primeiras comunidades, onde a morte de Jesus soa como um vergonhoso fracasso. Pela ressurreição de Jesus os discípulos começam a interpretar a morte, transformando-a em síntese de toda diaconia de Jesus, declarando-a salvífica. Uma morte pelo Reino passou a ser
vista como salvadora, à luz dos sacrifícios do Antigo Testamento3, bem como também do
contexto grego, onde os sacrifícios e o resgate também são conhecidos4.
No Antigo Testamento existem muitas figuras de lytron (resgate), quer seja o kofer, quer o termo go’el, padah ou de termos assemelhados. Todos eles têm o sentido de
resgate e libertação. No Antigo Testamento, bem como no Novo Testamento, há textos
que apontam para a necessidade sacrifícios em vista do perdão (Lv 1,4; 4,1; 5,14; 1Jo 1,7;
Ap 5,9-10; Lc 22,20; etc.)5. Há, no Antigo Testamento uma compreensão de um Deus violento que exige o sacrifício de Isaac (Gn 22), luta com Jacó (Gn 32,23ss), permite a desgraça para Jó (Jó 1,1ss). Parece que nestes textos Deus pratica a violência contra seu povo. Isto, lido de forma fundamentalista, leva a uma compreensão de um Deus violento,
que para perdoar, necessita do sangue das vítimas e do próprio Filho. Porém, há também
textos bíblicos que conhecem o perdão sem sacrifícios (Ez 18,21-23; Mt 6,12.14-15; Mc
3
JEREMIAS, J. Der Opfertod Jesu Christi. p.6.
BÜCHSEL, F.
. In: TWZNT, n.4.
5
PIXLEY, Jorge. Exige o Deus verdadeiro sacrifícios cruentos? In: Ribla., n.2, p.89.
4
3
2,2,5; 1Jo 1,9). Uma leitura unilateral dos textos de um Deus irado e violento, pautaram a
teologia sacrifical do Novo Testamento.
No contexto do Antigo Testamento a punição tinha um sentido de expiação. Havendo uma falta contra a lei positiva, esta devia ser punida. Pecado, no Antigo Testamento, é considerado falta contra a ordem divina da criação6.
“Para toda a antigüidade, a expiação nunca é um acontecimento arbitrário, menos ainda nascido
do desejo de vingança e crueldade, mas sempre um acontecimento necessário; pois entre a ação e
a conseqüente condição de vida existe na antigüidade, e especialmente no Antigo Testamento,
um nexo indissolúvel: através do seu agir o ser humano cria para si uma esfera que o envolve
permanentemente, gerando bem-estar ou desgraça”7.
Nesta concepção, quem pecou trouxe para si a desgraça. A expiação recompõe a
harmonia original da ordem da criação e devolve ao ser humano a graça perdida pelo pecado. Já nesta concepção se percebe a noção de pagamento para refazer a ordem divina
da criação, ou seja, quem destruiu, deverá, com esforço próprio, ainda que de forma simbólica, reconstruir8.
O sacrifício, como exigência para o perdão de pecados, é seriamente criticado pelos profetas, que, numa intuição profunda percebem a dicotomia desta prática externa,
pois ela nada tem a ver com a realidade pecaminosa, nem com a conversão. Assim, muitos são os textos da literatura profética que criticam a prática sacrifical. O texto de Os 6,6
quer amor e não sacrifícios, Am 4,4-5 critica os sacrifícios suntuosos, Mq 6,6-7 questiona
se Deus poderá ter prazer em animais e em óleo oferecidos, Is 1,10-17 bem como Is 58,110 criticam o sacrifício sem a justiça. Deus não aceita tais sacrifícios.
No Novo Testamento, Jesus já não comunga com esta compreensão. Ele não se
mostra sacrificialista, mas prega um Pai misericordioso (Mt 9,3). O Pai é cheio de misericórdia, perdoa e se alegra com a volta do filho perdido (Lc 15,11,32). Além do mais, a
morte de Jesus é a superação do antigo sistema de expiação (Hb 9,11ss). No entanto, os
teólogos do Novo Testamento, para se fazerem entender, usaram a linguagem corrente do
judaísmo, onde a morte expiatória e vicária era bem conhecida. Teologicamente esta idéia era oportuna, pois a salvação vem de Jesus. Ele reatou o ser humano com Deus, destruindo aquilo que marginaliza o pecador. No entanto, entender a morte de Jesus como
pagamento a Deus, é estranha.
“Outra distorção sobre a morte de Jesus é aquela que a apresenta como sacrifício: Deus estaria
tão enjoado com o pecado dos homens que somente o sacrifício sangrento de seu próprio filho
poderia aplacá-lo. O sacrifício de Cristo na cruz seria o pagamento dos pecados dos homens para
6
BARTH, Ele morreu por nós. p.74.
BARTH, Ele morreu por nós p.75.
8
Deve reconstruir, ainda que de forma simbólica, porque de fato, a pessoa que faz o sacrifício, não tem condições
de refazer a harmonia nas dimensões que o estrago oriundo do pecado o necessitaria. Assim, aquele que faz sacrifício, nunca, diante de Deus, poderá reparar totalmente seu estrago. A reparação se dá porque o ofendido (Deus) é misericordioso. Aqui se deve notar que, por um lado se ressalta o esforço humano e por outro se mostra que ainda assim, é Deus quem não exige uma reparação total.
7
4
com Deus. Esta concepção sacrificial da crucifixão não está nos relatos bíblicos, mas aparece na
Idade Média para justificar teologicamente o pagamento dos pecados cometidos”9.
É oportuno ressaltar que tal visão é mítica. Trata Deus como um carrasco sanguinário que aplaca sua ira às custas de sangue. Além disto, Jesus morre vicariamente. Só
ele, que é igual a Deus (Fl 2,6) poderia satisfazer a ira de Deus10. Também no mundo grego existe a figura do lytron como dinheiro para a compra da liberdade de escravos ou presos de guerra11. Estas duas realidades, o mundo do Antigo Testamento, como o mundo
grego, serviram de pano de fundo para a compreensão mítica da morte expiatória feita no
Novo Testamento.
3.2 – Através da história
Ao longo dos séculos, a teologia sempre teve uma postura sacrificialiasta frente à
morte de Jesus. Talvez a síntese que melhor explique esta postura, esteja refletida em
Santo Anselmo, teólogo do século XI12. Para ele, que tem uma experiência de senhores e
súditos, ou ainda, do Direito Romano, o homem que pecou não pode satisfazer sua culpa,
uma vez que é inferior ao ofendido. Pelo pecado a honra de Deus foi ofendida e esta honra deve ser refeita, pois sem ela não pode haver o perdão. Ou se refaz a honra, ou o infrator deverá ser punido para refazer a honra. Como Deus quer a salvação do ser humano, e
como este não pode refazer a honra que roubou de Deus pelo pecado, era necessário que
alguém o fizesse em seu lugar. Neste momento entra a pessoa de Jesus, que, por ser humano é solidário com os humanos, mas ao mesmo tempo os supera, pois é também divino.
“Jesus Cristo, por não ter pecado, pode assumir a morte livre e satisfatória. Por seu valor infinito,
ultrapassa e compensa a dívida de nosso pecado; é infinitamente meritória. Agora ele pode transferir estes méritos aos seus irmãos homens’13.
Nesta visão a morte de Jesus nada tem a ver com o modelo de vida que levou, ou
seja, com a diaconia exercida a favor dos humanos. Ele tinha de morrer, pois estes eram
os desígnios do Pai, conforme as Escrituras. Esta teologia, com pequenas variantes, chegou ao século XX, e ainda hoje tem fortes raízes na piedade popular e mesmo nos documentos oficiais da Igreja, bem como em muitos biblistas.
3.3 – A questão atual
Ainda hoje, a questão da diaconia e da morte de Jesus não é pacífica. Há diversos
grupos de autores que se destacam por suas leituras diferentes.
a) Grande parte dos autores separa Mc 10,45 em dois segmentos. O v.45a é analisado em vista da diaconia e do título do Filho do Homem. O v.45b é lido separadamente
e analisado em vista da morte por resgate. Nesta leitura, a primeira parte do referido ver9
RICHARD, Pablo. O homem Jesus. p.58.
SCHIWY, B Weg ins Neue Testament – Mathäus, Markus, Lukas. p.246.
11
MUNDLE, W.
. In: Dicionário Teológico del Nuevo Testamento. Vol 4.
12
MEZZACASA, F. Jesus, o Go’el. In: Ribla.1994/2, n.18, p.57ss.
13
CHAVERRA, N. V. Jesus Cristo “resgate por muitos”. In: Ribla. 1994/2, n.18, p.106ss.
10
5
sículo (45a), é parenética e a segunda parte (45b) é soteriológica. A primeira parte requer
imitação. A segunda, por ser de efeito mágico, é exclusiva de Jesus14.
Desta forma a morte de Jesus leva a reflexão como tema central. Não se liga, ou
mal se liga a morte como conseqüência da diaconia. Tais autores caem na interpretação
da morte de Jesus por resgate e, por mais que se esforcem, na morte de Jesus acontecem
alguns pontos dúbios:
-
A morte de Jesus ganha aspectos míticos e mágicos;
A morte tem valor em si;
A morte vem separada da vida;
A salvação sempre será apenas escatológica, ou espiritual e eterna.
Nesta linha encontram-se biblistas célebres, que inclusive afirmam que Mc 10,45b
venha da boca de Jesus histórico. Assim se posicionam:
JEREMIAS, J. Teologia do Novo Testamento. p.433ss.
STUHLMACHER, P. Versöhnung, Gesetz und Gerechtigkeit. p.40ss.
MOULDER, W. J. The Old Testament Backround and the interpretation of Mk
X,45. In: New Testament Studies. 1978, n.24, p.126ss.
GRIMM, W. Weil ich dich liebe. p.231ss.
WEGNER, U. Deu Jesus um sentido salvífico à sua morte? In: Estudos Teológicos. 1986, n.3, p.209ss.
VIEWEGER, Dieter e BÖCKLER, Anette. “Ich gebe Ägypten als Lösegeld für
dich”. Mk10,45 und die jüdische Tradition zur Is 43,3b-4. In: Zeitschrift für Alttestamentliche Wissenschaft. 1996, Vol. 108, n.4, p.594-607
b) Boa parte de autores já questionam esta postura. Julgam que a noção da morte
de Jesus por resgate é teologia pós-pascal, quando se interpreta a morte do mestre. A estes autores, embora tenham um avanço, falta uma articulação entre a morte de Jesus e a
diaconia, bem como, com sua opção de vida, ou seja, a opção do Filho do Homem Servo.
Nesta linha, encontram-se:
SCHÜRMANN, H. Gesù di fronti alla propria morte. p.49ss.
LEON-DUFOUR, X. Jesus y Pablo ante la muerte. p.90ss.
ZAGER, W. Wie kam es im Uhrchristentum zur Deutung des Todes Jesu als Sühnegeschehen? In: Zeitschrift für Neutestamentliche Wissenschaft. 1996, n.3/4, p.165ss
BASTIN, M. Jesus devant as passion. p.90ss.
ROLOFF, J. Anfang der Soteriologischen Deutung des Todes Jesu (Mk X,45).
p.38ss.
c) Outros autores chegam até a acenar para uma certa articulação entre a vida de
Jesus e sua morte. Falta-lhes, porém, a verdadeira teologia da diaconia no mundo do Novo Testamento, bem como a teologia do Filho do Homem Servo relacionadas com a morte de Jesus. Não chegam a ver a morte salvífica de Jesus como uma conseqüência da diaconia de Jesus e de sua opção de Filho do Homem Servo. Nesta postura encontram-se,
alguns autores. Entre eles diversos latinoamericanos:
14
PRETE, B. Il logion di Gesù: “Dare la propria vita in riscato per molti (Mc 10,45). p.317.
6
MEZZACASA, F. Jesus, o Go’el. In: Ribla. 1994/2, n.18, p.65ss.
RICHARD, P. O homem Jesus. p.58ss.
PIXLEY, J. Exige Deus verdadeiro sacrifícios cruentos? In: Ribla. 1988, n.18,
p.89ss.
BARTH, G. Ele morreu por nós. p.74ss
DUQUOCK. C. Prefácio a F. Varone. El Dios Sádico. p.12ss,
KELLNER, W. o Filho do Homem.
BACKHAUS, K. Lösepreis für viele (Mk 10,45). In: Stuttgarter Bibelstudien.
1995, Vol 163, p.91ss
PRETE, Benedetto. Il logion di Gesu: “dare la propria vita in riscatto per molti”(Mc 10,45). In: Revista Biblica.1996, n.3, p.309-335
3.4 – O que falta
Ir além de tudo o que foi visto nestes autores é o objetivo deste trabalho. Com base
em todos os autores citados, percebe-se que falta uma articulação entre a diaconia realizada por Jesus, o Filho do Homem Servo. Não se leva em conta a opção do Filho do Homem Servo, que em decorrência desta opção, Jesus escolhe para si um caminho de total
dedicação ao Reino de Deus. Esta dedicação está dentro da dimensão humana de Jesus.
Por isto mesmo, ele gastou a sua vida. Nisto consiste doar a vida. A doação da vida de Jesus à causa do Reino culminou na cruz, mas não necessariamente teria chegado a isto. Se
ele morresse idoso, em seu leito reconhecido por todos, ainda assim se poderia dizer que
ele deu sua vida pela humanidade e também que resgatou a mesma.
Ao encarnar e assumir a opção do Filho do Homem Servo, Jesus assume um projeto de vida com compromissos de instaurar o Reino de Deus já aqui, na história. Instaurar
o Reino de Deus comporta mudanças de critérios. Portanto, Jesus rompe com os padrões
convencionais de poder (Mc 8,30ss) e de grandeza ((Mc 10,35-45). Esvazia-se (Fl 2,611) e como humano escravo, que em nada se assemelha aos senhores deste mundo, põese a servir. Não partilha da arrogância dos poderosos, desafia seu modo de agir. Invertendo seus critérios, traz a novidade, pois sem esta total inversão, o Reino não acontece. Colocando sua vida, como o humano servo, ele não apenas liberta seus contemporâneos,
mas estabelece critérios para seus seguidores, que definitivamente rompem com a lógica
do mundo (Mc 10,35-45). Desta forma, seguindo a Deus encarnado, esvaziado de sua divindade, que optou pela cristologia do Filho do Homem Servo, os discípulos estarão perpetuando, na história, a salvação/libertação trazida por Jesus, e pela qual ele deu a vida.
No entanto, parece que Mc 10,45b tem conotação sacrificialista. Se é verdade que
esta sentença se inspirou em Is 43 ou 53, deve-se então levar em conta que, apesar da
roupagem expiatória e vicária, a interpretação pode ser diferente. Se o Servo, em Is 53, é
símbolo do povo de Israel deportado na Babilônia15, então o sofrimento tem o sentido de
conscientizar as nações de que Javé o defende e liberta. Este sofrimento depura a consciência dos povos e do próprio Israel16. Neste sentido, a roupagem sacrifical pode receber
15
16
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio. p.97ss.
PIXLEY, Exige o Deus verdadeiro sacrifícios cruentos? In: Ribla., n.2, p.105.
7
outro colorido. O mesmo se percebe nos sermões de Pedro nos Atos dos Apóstolos. Em
At 3,13.26; 4,27.30 sempre Pedro se refere a Jesus como
(Servo condenado pelas
autoridades). O Servo é morto pelas autoridades que executam seu assassinato por mãos
de pagãos. Pela ressurreição, tanto eles, como todas as nações (Is 53) são conscientizados17. E, o serviço de Jesus em prol do ser humano, acaba se tornando o real motivo de
salvação. Este serviço culminou na doação da vida. Portanto, ao se falar da doação da vida como acontecimento salvífico, deve-se pensar naquilo que levou Jesus a morrer. Conclui-se, então que o motivo máximo foi seu serviço ao ser humano.
4 – Como entender a diaconia de Jesus?
No evangelho de Marcos encontram-se, em diversas ocasiões, indicações de que
Jesus estava servindo aos doentes, pecadores, pequenos e excluídos e, por causa disto, se
confrontando com as autoridades (Mc 2,1-12.13-17.23-28) e que isto lhe valia ameaças
de morte (Mc 3,6). Desde cedo, em Marcos, a morte é conseqüência da diaconia de Jesus
para com os pecadores, doentes, deficientes e toda a espécie de excluídos dos sistemas
romano e judaico18. Quando, mais tarde, em ambiente pós-pascal, se tem a necessidade de
explicar a humilhante morte de cruz sofrida por Jesus, não é difícil fazê-lo a partir do servir, ou seja, a morte adquire o sentido que tem o servir de Jesus. Ele resgata os seres humanos das situações de escravidão e miséria. A partir da diaconia de Jesus, a comunidade
postula suas doutrinas: “ele morreu por nós” 19. Os três anúncios da paixão, morte e ressurreição (Mc 8,31; 9,31; 10,32-34) têm ligação com a questão da diaconia, pois, enquanto Pedro julga Jesus como o grande senhor e Cristo, ele deve calar, já que a tarefa de Jesus é outra (Mc 8,32)20. Ele não será o grande, mas o humilde que toma a cruz, aquele que
age na humildade em favor dos pecadores (Mc 9,33ss), dispondo-se, por esta prática, ao
perigo do sacrifício de sua própria vida. A morte de Jesus tem estreita conexão com o
servir, mesmo fora de Mc 10,45, onde tal idéia vem claramente exposta. Jesus é interpretado à luz do Servo de Is 53,10-1221. Jesus se identificou com o Filho do Homem e com o
Servo a tal ponto que usa os dois atributos, ou ainda, quando usa o título messiânico de
Filho do Homem, usa atributos do Servo de Javé, como se encontra em Isaías. Os ditos da
paixão, morte e ressurreição de Marcos trazem reflexos de Is 53, onde se realça, junto
com o título messiânico do Filho do Homem, a prática de servir.
Marcos descreve a atividade de Jesus com o termo euangelion (evangelho) que
corresponde ao hebraico b.sorâ23. Trata-se de raiz hebraica muito usada pelo segundo Isa-
17
PIXLEY, Exige o Deus verdadeiro sacrifícios cruentos? In: Ribla., n.2, p.104.
Isto faz com que, muitas vezes se confunde sofrer e servir. Não se quer dizer que sofrer é sinônimo de servir. Apenas, no caso de Jesus, o servir aos últimos tornou-se uma afronta aos poderosos e isto trouxe sofrimento.
19
JEREMIAS, J. Der Opfertod Jesu Christi. p.21.
20
ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. p. 5ss.
21
HOOKER, M. Jesus and the Servant. p.1. Quando aqui se afirma que Jesus interpretado à luz do Servo de Is 53,
não se quer cair em contradição com o que foi dito no subcapítulo 1.4.3, onde se afirma que, “Mc 10,45 não é apenas cópia da comunidade primitiva, nem da tradição do Filho do Homem judaico, nem tampouco de Is 53; 43,3s ou
dos anúncios da paixão, morte e ressurreição, mas antes é formação semítica feita à luz do ressuscitado, quando se
interpreta Jesus para a comunidade” (p.160). Antes, quer-se reafirmar, pois ali se diz: “não é apenas cópia...”.
22
SCHMOLLER, A.
. In: Handkonkordanz zum Neuen Testament.
23
FASCHER, E. Botschaft. In: Biblisch-Historisches Handwörterbuch.
18
8
ías24, com o sentido de proclamação da salvação de Javé25. Evangelho é diaconia, pois é
boa notícia aos pobres e deserdados. Marcos inicia com João Batista aplicando o termo
de Isaías a Jesus. Ele aponta para a missão de Jesus como uma diaconia que traz a redenção de Javé. Assim, o ministério de Jesus é a realização da esperança messiânica do dêutero-Isaías: curas (Is 42,7), expulsão de demônios (Is 49,24-25), batismo de Jesus (Is
42,1), etc. Tudo isto agora são frutos da diaconia de Jesus, conforme previstos em Isaías.
Jesus, pelo evangelho (diaconia) inaugura os tempos messiânicos, que agora são apresentados como Reino de Deus. Tudo isto já desloca o eixo do sofrer para o eixo da diaconia.
Jesus traz o Reino, não porque sofre, mas porque serve. Servindo, incorre no sofrimento.
Por isto pretende-se ressaltar a diaconia e não o sofrimento. Quando Marcos, bem como
os demais evangelhos sinóticos, se refere à vida de Jesus, usa a figura do Servo de Javé,
não apenas quando fala de sua morte. Aliás, no relato da morte, as evidências são menores26. É a vida de Jesus que é apresentada nos moldes do Servo de Javé, não apenas a
morte. No entanto, mais tarde os comentadores bíblicos identificaram a morte de Jesus
com o Servo de Javé. Em Jesus se confunde o título de Servo com o de Filho do Homem,
a tal ponto que o primeiro é substituído pelo segundo. A idéia da humilhação do Filho do
Homem origina-se no Servo de Javé27. Ainda que o termo Servo não seja aplicado a Jesus,
o conceito se acha em seu ensino. A figura do salvador crucificado se encaixa na figura
de Servo Javé.
Os termos Servo/servir são antes a indicação da messianidade de Jesus que, segundo Marcos, se manifesta na humildade ativa, em contraposição ao conceito messiânico vigente entre os contemporâneos de Jesus e de Marcos28, onde ser grande era sinônimo
de exploração e de domínio (Mc 10,42-45). A sentença de Mc 10,45 reflete o pensar teológico da metade do primeiro século cristão, quando existe a real preocupação com a libertação do domínio estrangeiro. Só mais tarde entraram as teorias da compensação29. Mc
10,45b está em perfeita harmonia com Mc 10,45a. Não introduz a idéia sacrifical. Dar a
vida não é apenas o supremo exemplo de serviço (a cruz), mas a culminação que dá sentido a toda vida de serviço. Na doação da vida não está apenas o momento da cruz, mas
todos os gestos de Jesus, ao longo de sua vida, a favor dos humanos. Como, junto ao serviço veio a cruz, isto é, a cruz foi o preço do servir, liga-se servir com sofrer e morte (Mc
8,34ss).
Concluindo este item, evidencia-se que a morte de Jesus, num primeiro momento,
é a conseqüência lógica de uma vida doada a favor da vida de todos, principalmente da
vida daqueles que eram relegados à margem da sociedade: pobres, doentes, deficientes,
pecadores, estrangeiros, etc. No entanto, ao morrer, projetou-se um fracasso sobre toda a
causa de Jesus. Este fracasso devia ser racionalizado. Começa, então um longo processo
24
“Este conceito de mensageiro recém-chegado do campo de batalha encontra-se no âmago dos usos mais teologicamente fecundos em Isaías e em Salmos. Aqui é o Senhor que é vitorioso sobre os seus inimigos. Por causa de sua
vitória, ele vem agora libertar os cativos (Sl 68,11[12]; Is 61,1)” (Oswald, J. N.
. In: Dicionário Internacional
de Teologia do Antigo Testamento.
25
HOOKER, , M. Op. cit. p. 148.
26
Idem, p. 148.
27
Ibidem, p.12.
28
MINETTE DE TILLESSE, C. O Segredo Messiânico em Marcos.p.6.
29
HOOKER, , M. Op. cit. p.78.
9
de elaboração teológica da cruz, do sofrimento e da morte (Fl 2,6-11). O que aparentemente era fracasso, foi o preço de quem não aceitou fracassar em sua missão e fidelidade
ao Pai. Num segundo momento, dado à complexidade do tema da cruz, a morte de Jesus
passou a ser interpretada à luz do Antigo Testamento e, o que humanamente era vergonhosa derrota e fracasso, passou a ser visto como fato cúltico e apresentado de forma mítica. Assim ganharam contorno as interpretações da morte de Jesus como sacrifício, como
vítima expiatória, etc. Na realidade, a compreensão mítica e cúltica apenas tentam apresentar a morte de Jesus para a compreensão humana. Antes de se entender Jesus à luz do
Antigo Testamento é preciso buscar entender a missão de Jesus que se fez servo de todos.
A diaconia de Jesus, bem como a diaconia da igreja são libertadoras. Libertar pessoas
implica conflitos e contradições, pois o sistema precisa da opressão. Tanto a diaconia de
Jesus como a diaconia dos discípulos se chocam com os opressores. A diaconia, além de
comportar sacrifício do egoísmo, resulta em sofrimento diante daqueles que precisam da
escravidão. Jesus entendeu esta lógica. Primeiramente assumiu para si a diaconia que
comporta sacrifício. Em segundo lugar assumiu o preço de contrariar interesses. Seu estilo de vida, diante do sistema, o conduziu à morte. O que é importante, não é a morte, mas
o estilo de vida (diaconia). A morte só mostra com que radicalidade Jesus assumiu a
diaconia.
Dar a vida em resgate é visto como um conceito carregado de um referencial mítico, próprio do Antigo Testamento e do mundo grego, ou seja, exprime-se na cosmovisão
onde os resgates pelas vidas caídas em desgraça eram exigidas de muitas maneiras. A
morte de Jesus é interpretada neste mundo conceitual. Pela total obediência a Deus, Jesus
desfaz o pecado da desobediência de Adão30. No entanto, esta visão mítica caduca quando
se busca os motivos mais profundos da morte de Jesus. Além do mais, esta visão deforma
a imagem de Deus, tornando Este um monstro que se aplaca com o sangue do Filho. Esta
concepção é fruto de uma evolução teológica31.
Jesus, antes de tudo, supera o Antigo Testamento, sua visão sacrificalista e exclusivista. Por um lado Jesus, pela sua diaconia/morte universaliza a concepção veterotestamentária, pois os benefícios de sua diaconia/morte se estendem a todos e, por outro lado,
o efeito é para sempre. A vida de Jesus é doada de uma vez por todas. Morrendo na cruz,
Jesus liga a humanidade com o Santo. Acabou com as mediações (Mc 15,38).
Esta concepção mítica da doação da vida, nos evangelhos vem ligada à diaconia32.
Perscrutando os motivos últimos que levaram Jesus à morte, percebe-se sempre o motivo
da diaconia. Jesus se compromete com Deus e com os irmãos e, principalmente com os
mais oprimidos. Este compromisso, de ser servo de Deus e ao mesmo tempo dos humanos, trouxe para Jesus, a morte33. A morte, é, nesta perspectiva, o exemplo máximo de diaconia aos pobres e fidelidade a Deus34. Na morte, de fato, encontram-se todos os motivos
de Jesus: sua diaconia aos humanos, principalmente aos mais pobres, seu acolhimento
30
SCHIWY, G. Op. cit. p.246.
BULTMANN, R.
. In: TBNT.
32
LOHSE, E. Op. cit. p.120-121.
33
BRACKEMEIER, G. Op. cit. p.210.
34
PIKAZA, J. e LA CALLE, F. Op. cit. p.73.
31
10
aos ladrões com ele crucificados (Mc 15,27) e o amor aos seus algozes. Desta forma, todos os humanos recebem as benesses da vida e da morte de Jesus. A diaconia de Jesus a
favor dos humanos encontrou, na hora da morte, a totalidade dos destinatários: os bons,
os maus e até os seus próprios inimigos.
Com esta lógica de Jesus, a diaconia quebra o sistema de exclusão e escravidão.
Jesus não muda o coração de Deus, que sempre ama a todos, mas muda a lógica humana
da exclusão/escravidão. Comprometendo-se com os pobres, doentes e deficiente; acolhendo os pecadores e amando os próprios algozes, nova ordem se estabelece. Esta ordem
é libertadora.
5 – A diaconia do Filho do Homem
Das diversas categorias do título do Filho do Homem nos evangelhos, somente o
Filho do Homem Servo é característico de Marcos35. A Quelle não traz os ditos sobre o
Filho do Homem Servo, por isto toma-se aqui a liberdade de se ater mais especificamente
no estudo deste grupo, ou seja, a ocorrência do Filho do Homem Servo, em Mc 8,31;
9,9.13.31; 10,33; 10,45. Estas ocorrências têm, em Marcos, uma função pedagógica, isto
é, para corrigir uma perspectiva messiânica e a tentação triunfalista dos discípulos36, muda-se o título de Cristo (8,27-30), para Filho do Homem (8,31), pois neste momento, da
profissão de fé de Pedro, o título de Cristo já seria insuficiente37, já que este se prestaria
para ambigüidades, o que mostra a expectativa de Pedro (Mc 1,37; 8,32). O título messiânico de Filho do Homem Servo prepara os discípulos para a missão (diaconia) e, em
conseqüência, para o trágico desfecho da cruz, bem como, muda toda concepção messiânica dos discípulos. Em todas as citações referidas, há a marca da morte. Isto leva a atestar que o título do Filho do Homem Servo, acompanhado da cruz, é trabalho redacional de
Marcos38, ou mesmo da comunidade que se adapta lentamente à cultura da época em que
se formou o evangelho de Marcos39, pois aqui, ao que parece, o título de Filho do Homem
assume as características próprias do ebed (servo) de Javé conforme Is 5340. Seria mais
lógico dizer que o Servo de Javé não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida
em resgate por muitos (Mc 10,45). Assim a diaconia de Jesus estaria mais ligada à questão soteriológica e a morte seria entendida como conseqüência.
Em Marcos o uso do termo Filho do Homem é paradigmático. Marcos usa sete vezes o título Cristo; sete vezes o título Filho de Deus, enquanto usa catorze vezes o título
Filho do Homem41. Assim sendo, o título recapitula os dois títulos anteriores (Cristo e Filho de Deus). Isto se evidencia em Mc 8,29-31. Depois de uma confissão messiânica
(v.29), que representa o auge de uma tese de Marcos: Jesus é o Cristo (cf. Mc 1,1; 8,29),
esta confissão é corrigida. De Messias triunfante, passa para o Filho do Homem Servo. O
35
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. I, p.202.
ALEGRE, X. Op. cit. p.5ss.
37
MINETTE DE TILLESSE, C. O evangelho segundo Marcos. p. 190.
38
RAMOS, F. Op. cit. p.71.
39
JEREMIAS, J. Abba - El mensaje central del Nuevo testamento. p.123.
40
MANSON, T. W. O ensino de Jesus. p.230.
41
MINETTE DE TILLESSE, C. Marcos. In: Revista Bíblica Brasileira. 1996, n.1,2,3,4, p.586.
36
11
mesmo ocorre em Mc 14,61-62, diante do sumo sacerdote que indaga Jesus se ele é o
Cristo, Jesus responde com o título do Filho do Homem.
“Portanto, neste exato momento da confissão de Pedro, o título de Cristo torna-se de repente insuficiente ou inadequado para conter a realidade messiânica integral, o título Filho do Homem
vem prolongar, corrigir e complementar o título de Cristo”42.
Com isto se evidencia que o título Filho do Homem Servo traz em si um conteúdo
teológico que Marcos usa metodologicamente. Como Marcos destaca o papel da cruz na
vida de Jesus, como símbolo do ebed, sua tradição também trouxe para a redação dos sinóticos, a contribuição do título do Filho do Homem ligado ao tema do servir e do sofrer,
(Servo de Deus). Marcos se esmera
que provavelmente vem do termo grego
em destacar o sofrimento de Jesus decorrente de seu servir. Assim, nos anúncios da paixão, morte e ressurreição (8,31; 9,31; 10,32-34), no anúncio da traição (14,21) nos ditos
do caráter expiatório (10,45; 14,24), nas alegorias da morte de Jesus (10,38; 14,36) quase
sempre ele liga, o sofrimento com o título Filho do Homem no contexto do servir, ou seja, ele é o sujeito43. O evangelista Marcos coloca a tônica nos três anúncios da paixão,
morte e ressurreição (8,31; 9,31; 10,32-34), onde ele faz questão de ressaltar o sofrimento
que devia acontecer, conforme as Escrituras. O mesmo ele destaca em 9,12 e 14,21. Em
Mc 10,45 ele diz que o Filho do Homem não veio para ser servido. Este verbo “veio” coloca Jesus na perspectiva da esperança messiânica: “vir a público”44. Refere-se ao que
devia vir (Mt 3,11; 11,3; 21,9; Mc 14,62). Assim, o Filho do Homem tem referência às
Escrituras, o que os títulos de Cristo e de Filho de Deus não têm45. Nos três anúncios da
paixão, morte e ressurreição percebe-se a mão do redator, pois existem neles sumários do
relato da paixão, ou seja, de forma resumida já se diz antecipadamente o que acontecerá
na paixão46. Isto tudo indica que o Filho do Homem, enquanto servo sofredor, é um trabalho de Marcos para apresentar sua visão de Jesus no Novo Testamento. Não se quer com
isto afirmar que foi Marcos quem criou o termo, ele tem origem em Dn 7,13 e outros, inclusive, o próprio Jesus, conforme visto acima, deve ter usado este título. Apenas, se afirma que Marcos trouxe este conceito à tona, o usou teologicamente para falar de Jesus .
O primeiro anúncio da paixão, morte e ressurreição (Mc 8,31) vem traduzido para
o grego de uma forma um tanto crua. Isto é indicação de sua origem palestina, onde, no
entanto, se escreve grego e por isto mesmo a escrita grega nem sempre é bem polida. No
segundo anúncio (Mc 9,31) também há vestígios de aramaico. Isto são evidências de uma
teologia anterior a Marcos, mas assimilada por este. Deve-se ainda responder: onde teria
Marcos se inspirado para desenvolver este tema? Marcos, quando fala do Filho do Homem servo sofredor, alia este título às Escrituras, ou seja, cumprimento das Escrituras
(Mc 14,49). Insiste-se que o sofrimento de Jesus corresponde às profecias a respeito do
prometido. Porém, as referências conhecidas do Filho do Homem no Antigo Testamento
(Dn 7,13), não falam do servir/sofrer, enquanto Is 53 fala do servir/sofrer, mas não fala
do Filho do Homem. No entanto, no livro apócrifo de 1Henoque o Filho do Homem so42
Idem
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. Vol. 1, p.202.
44
GINGRICH, D.W. Léxico do Novo Testamento Grego/Português.
45
MINETTE DE TILLESSE, C. Op. cit. p.588.
46
GOPPELT, L. Op. cit. p.203.
43
12
fre. Aqui há uma mistura do título de Filho do Homem com o título de Servo Sofredor (Is
52,13-63,12)47.
Em Mc 8,31 se diz que o Filho do Homem “deve” sofrer (conseqüência do servir) . Este “deve” é referência a 1Henoque. No entanto, aqui pode-se ver que nem sempre o que diz: “conforme a Escritura” encontra um paralelo no Antigo Testamento, ou na
literatura apócrifa. Assim, faz-se sentir a própria vida terrena de Jesus. Ele, podia antever
sua sorte com relação às autoridades49. Marcos, valendo-se de possíveis ditos jesuânicos50,
remaneja estes mesmos para lugares estratégicos, bem como, vale-se da narração da paixão, para montar seu esquema. “No detalhe das três predições da paixão há, obviamente,
várias ‘profecias ex eventu’, isto é, vários detalhes foram tirados da própria narração da
paixão”51. Estes detalhes também podem ser percebidos nas demais previsões (Mc 9,9.12;
10,45; 14,21.41). Sempre aparecem resquícios do relato da paixão. Certamente na pregação de Jesus houve referências ao seu próprio sofrer. Jesus diz: bem-aventurados os perseguidos (Mt 5,3.10). No ambiente judeu, no tempo do Novo Testamento, há a imagem
dos justos perseguidos, os anawim52 (pobres perseguidos pela justiça - Mt 5,3.10), isto reflete bem nas três predições da paixão, morte e ressurreição bem como em Mc 15,34. Reflete também o Sl 22 e Is 53. É muito provável que Jesus aplicasse a si a tradição do profeta assassinado53. À luz deste imaginário social e religioso, Jesus procura entender seu
caminho, a partir das Escrituras. Desta forma a noção do Servo saído da boca de Jesus,
acrescido do título de Filho do Homem, compilado por Marcos, assumiu a idéia do sofrimento. Em Mt 8,20, considerado um logion autêntico de Jesus, já se percebe a idéia da
rejeição e do sofrimento.
48
“A base dos anúncios do sofrimento pode ser facilmente deduzida das premissas da atividade de
Jesus, enquanto que sua formulação, através de mestres do cristianismo primitivo, seria uma
construção postulada”54.
Ligar o tema da cruz ao título messiânico de Filho do Homem, parece não ser jesuânico. Antes, porém, parece ser trabalho metodológico de Marcos ou das comunidades,
que realçam a natureza humana e servil de Jesus para corrigir uma perspectiva triunfalista55, ou até mesmo herética, no sentido de apagar o sofrimento, a corporeidade ou a materialidade de Jesus56. Neste sentido, Marcos extrapolou toda perspectiva messiânica, pois,
47
MINETTE DE TILLESSE, C. Op. cit. p589.
Em Is 52,13-53,12 o sofrimento também é decorrência do servir, pois é o Servo que sofre.
49
GOPPELT, L. Op. cit. p.205.
50
Fora dito acima que a categoria dos títulos messiânicos de Filho do Homem Servo seriam próprios de Marcos. Por
isto, quando aqui se afirma que “Marcos, valendo-se de possíveis ditos jesuânicos, remaneja-os para lugares estratégicos...” não se quer dizer que Marcos encontrou esta categoria pronta na boca de Jesus, o que seria contradição. Antes, Marcos se valeu dos títulos do Filho do Homem Servo, inspirando-se nos ditos de Jesus, tanto quando ele fala
do Filho do Homem, como quando fala do sofrimento.
51
MINETTE DE TILLESSE, C. Op. cit. p.592.
52
“anaw exprime o resultado almejado com a aflição: humildade” (Coppes, L.
. In: Dicionário Internacional de
Teologia do Antigo Testamento.
53
GOPPELT, L. Op. cit. p.206.
54
Idem, p.207.
55
ALEGRE, X. Op. cit. p.5ss.
56
É bem provável que entre os leitores de Marcos houvesse pessoas influenciadas por filosofias gregas. No mundo
grego são conhecidas diversas heresias, como a gnose, o docetismo e outras. Na realidade estas heresias florescem
no século II, porém, em ambiente de filosofia epicuréia e estóica, já havia embriões de desvios que deveriam ser cor48
13
como foi visto, o título messiânico Filho do Homem sempre veio ligado à grandeza, à
glória. Ao que parece, os títulos de Cristo e de Filho de Deus eram mais oportunos para
uma ambigüidade pois lembravam a realeza e a divindade, enquanto que o título Filho do
Homem, apesar de se referir a Dn 7,13, onde se fala de grandeza e realeza, recordava,
também a natureza humana e o sofrimento, que Marcos tanto realça. E, o que Marcos
mais quer em seu livro, que oculta a messianidade triunfalista de Jesus57, é apontar para a
realidade humana e servidora de Jesus, tanto assim que, ressalta seu sofrimento decorrente de seu servir.
“A morte de Jesus, há de saber o cristão, é exemplo de serviço prestado pelo mestre (10,45). Dela
o discípulo tem que aprender a ser escravo de todos, servidor nato da comunidade (10,43s). A
morte de Jesus não se valoriza em seu aspecto sacrifical, senão na humilde colaboração de Jesus
com os planos de Deus; se tem convertido no protótipo de serviço e entrega”58.
Só um Filho do Homem poderia ser este protótipo do servir e ao mesmo tempo, do
sofrer em vista da correção da cristologia. Os títulos de Cristo e de Filho de Deus não se
prestariam para isto, ou ao menos, teriam mais possibilidades de serem entendidos de outra forma, ou seja, trariam a imagem de um rei messiânico, conforme o entenderam os
Zebedeus (Mc 10,35-40), isto é, o prometido de Deus59, ou ainda, como pensavam os discípulos depois da ressurreição de Jesus, quando indagaram se agora Jesus iria restaurar a
realeza de Israel (At 1,6-8). A morte do Filho do Homem mostra assim, o serviço prestado, uma vez que, neste contexto, sintetiza os atributos do Servo de Javé60.
T. W. Manson61 sugerira que o título messiânico de Filho do Homem vinha na esteira de outros títulos messiânicos, como, o Remanescente e o Servo de Javé. Fora dito
que o título de Filho do Homem é descendente linear do Servo de Javé. Quando Marcos
põe sobre Jesus este protótipo, assumia também seu conteúdo, ou seja, apresenta Jesus
como o servo que, com seu servir, redime o povo. O sofrimento vindo da Paixão é a síntese do serviço prestado, pois a exemplo do Servo de Javé (Is 52-53) carrega, pela sua
dimensão servil, os pecados da humanidade.
“Tal fato sugere imediatamente que o que estava na mente de Jesus era que ele e seus seguidores
participariam juntos do destino que ele atribuía à Paixão do Filho do Homem, isto é, que ele e eles juntamente seriam o Filho do Homem, o Remanescente que salva pelo serviço e pelo sacrifício62 de si mesmo, o órgão do propósito redentor de Deus no mundo”63.
Nesta perspectiva, quando, o Jesus de Marcos fala dos sofrimentos, da paixão,
morte e ressurreição, e liga isto à figura do Filho do Homem (Mc 8,31; 10,32-34.45), ele
pensa o Filho do Homem como um projeto de serviço64, do qual ele e seus discípulos derigidos por Marcos, ou por sua comunidade. Por outro lado, na época de Marcos já se conhece o problema dos judaizantes. Para eles a cruz de Jesus, lida à luz do Deuteronômio, poderia significar vergonhosa maldição.
57
ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. p.5ss.
58
PIKAZA, J. e LA CALLE, F. Teologia de los evangelios. p. 73.
59
GOPPELT, L. Op. cit. p.186.
60
JEREMIAS, J. Abba - El mensaje central del Nuevo testamento. p.123.
61
MANSON, T. W. Op. cit. p.227.
62
O grifo é nosso.
63
MANSON, T. W. Op. cit. p.230-231.
64
Aqui não pensamos no Jesus histórico. Ou melhor, afirmando que Jesus entendia o Filho do Homem como um
projeto que também seria trilhado pelos discípulos, pode estar em jogo o Jesus de Marcos e não o histórico. Marcos
14
veriam participar. Como, no entanto, os discípulos não foram capazes de acompanhar o
mestre até à cruz, Jesus foi sozinho65. Assim, Jesus sozinho recebeu o título de Filho do
Homem. Em Marcos, Jesus pensava o Filho do Homem como uma comunidade, isto é,
ele e seus discípulos. Juntos iriam à cruz (Mc 8,34ss) e, juntos, pelo servir e pelo sofrimento, resgatariam os discípulos, mas como é tão caro a Marcos, os discípulos não entenderam este processo. Paulo intui isto quando diz que seus sofrimentos completam nele
o que falta aos sofrimentos de Cristo. Assim, participar dos sofrimentos de Cristo, no seu
corpo, que é a Igreja, conduz à glória. Este é sacrifício que redime.
“Faz, portanto, parte integrante do pensamento do apóstolo a concepção da Igreja como um organismo vivo reproduzindo e continuando na sua própria vida os sofrimentos e a exaltação de sua
cabeça”66.
Paulo, no entanto, nunca usa o termo Filho do Homem. Talvez o faça de forma velada em 1Cor 15,45-49, quando apresenta a figura do homem celeste, homem novo, veste
nova (cf. Dn 7,13) e também em Ef 2,13-18, onde os discípulos são homens novos. Devese isto, talvez, ao fato de o Apóstolo, em suas cartas, pouco se interessar pelo Jesus histórico e dedicar quase toda a sua pregação a falar do Cristo ressuscitado (2Cor 5,16).
Em Marcos, durante sua vida pública e pela sua pregação Jesus queria que os discípulos participassem de seu projeto de Filho do Homem. Pela paixão, morte e ressurreição, Jesus encarnou a figura do Filho do Homem. Passou de ideal religioso para uma pessoa concreta. Os discípulos são chamados a participar deste ideal de Filho do Homem. No
entanto, aproximando-se da cruz, os discípulos deixam Jesus a sós. A morte poderia ter
sido o fim, mas a ressurreição e a vinda do Espírito Santo reiniciam o projeto do Filho do
Homem. Assim, em Paulo os discípulos voltam a participar dos sofrimentos de Jesus, isto
é, reassumem o projeto Filho do Homem.
“A medida em que estudamos a vida de Jesus parece que o vemos tornar-se o Filho do Homem,
realizar o Filho do Homem ideal, por meio de um processo de eliminação. Quando examinamos o
ensino de Paulo encontramos a mesma idéia sendo levada a ulterior e cabal cumprimento, mas
por um processo de inclusão”67.
O Reino de Deus é a vivência dos discípulos na total obediência a Deus. Isto é a
vivência do ideal, do Remanescente, do Servo de Javé, do Filho do Homem. Sempre
houve, em Israel, tentativas de viver tal ideal. Jesus viveu esta total obediência a Deus,
ele encarnou o Remanescente, o Servo de Javé e o Filho do Homem. Ele convida os discípulos a acompanhá-lo nesta jornada, porém, à medida que se aproxima da cruz, os discípulos fogem. Mas logo após os discípulos voltam e assumem também o modelo serviçal, que os projeta na cruz, pois pela paixão, morte e ressurreição, o Filho do Homem encontra seu prolongamento, ou seja, adquire um corpo, isto é, a igreja; logo, doravante são
os discípulos que continuam, pelo seu servir, que resulta em sofrer, até a morte, o projeto
apresenta Jesus que tem o projeto do Filho do Homem em mente. Talvez na vida de Jesus histórico faltasse este
conceito enquanto elaborado nas categorias do Filho do Homem Servo.
65
Este é um dos métodos usados por Marcos: os discípulos não entendem a Jesus quando se trata de segui-lo até a
cruz.
66
MANSON, T. W. Op. cit. p.232.
67
Idem, p.233.
15
do Filho do Homem. Assim, para Marcos, o Filho do Homem é antes um projeto políticoreligioso realizado por Jesus no serviço até a morte e continuado na igreja pelo serviço. O
sacrifício daí decorrente, pode ser interpretado com salvífico, ainda que, a libertação se
dá pelo serviço e não pelo sacrifício.
Como conclusão, supõe-se que o título messiânico de Filho do Homem Servo em
Mc 10,45 originalmente tenha sido Pais Theou (Servo de Deus). Por conveniências das
comunidades, onde tal título seria mal entendido, o mesmo foi mudado para Filho do
Homem, que é uma categoria veterotestamentária que, embora também fosse estranha por
nunca se ligar ao tema do servir, dava outra idéia, uma vez que o referido título deve ter
sido usado pelo próprio Jesus em muitas ocasiões. Assim, Mc 10,45, valendo-se do título
messiânico de Filho do Homem, ligou-o ao Servo de Javé (Is 53) e traduziu o termo Servo de Deus por Filho do Homem. Nesta perspectiva, Marcos, ou a comunidade póspascal, criaram a nova categoria para falar do serviço e por conseqüência do sofrimento
de Jesus. No lugar do servo que sofre, é o Filho do Homem Servo que, em conseqüência
de sua diaconia, sofre. Desta forma o servo muda de forma (Filho do Homem) e o Filho
do Homem muda de conteúdo (serviço e sofrimento).
O título messiânico do Filho do Homem, enquanto corrige a cristologia triunfante,
chama os discípulos à dura realidade. Jesus não é aquele ser apenas divino e majestoso,
forte e vitorioso, como o queriam os discípulos. Antes, assume um projeto de Filho do
Homem (Dn 7,13 e 1Henoque). Este projeto requer o empenho de Jesus, não enquanto
divino, mas enquanto humano e de uma forma tão radical que o leva à doação da vida. O
próprio Jesus já devia imaginar tais prerrogativas, pois se confrontava com o poder e, além disto, em um logion considerado autêntico, exalta os que sofrem por causa da justiça
(Mt 5,3.10). Este sofrer pela justiça é sinal de compromisso com a justiça, ou, em outras
palavras, é viver uma vida de serviços68. Vivendo assim, só poderá advir o sofrimento.
Marcos mostra muito bem, em seu evangelho, que o sofrimento de Jesus está ligado ao
seu servir. Sofrer é o outro lado da missão entre o povo, principalmente entre o povo excluído. Assim foi com Jesus, assim será com os discípulos (Mc 8,34ss). O sofrimento do
Filho do Homem é o envolvimento num projeto político, religioso, social e ideológico
(Dn 7,13). É o serviço que o projeto requer. Serviço este que Jesus assumiu em todo o
seu agir. Portanto, o Filho do Homem, antes de ser entendido como sacrifício, é serviço.
Mais que uma salvação mágica, é salvação pelo servir que compreende mudança da lógica opressora dos senhores deste mundo. Neste cenário, anunciar Jesus apenas como o
Cristo ou como o Filho de Deus, ou ainda um Jesus que preenchesse as expectativas messiânicas dos Zebedeus (Mc 10,35-40), de Pedro (Mc 8,29ss), dos discípulos (At 1,6-8),
não salvaria os pobres, pois perpetuaria a lógica humana de organização social e política
(Mc 10,42-44), organização esta que por si mesma é excludente. Acentuando um Cristo
apenas divino, esquece-se que a salvação acontece quando o Verbo se encarna (Jo 1,14) e
se esvazia, por assim dizer, de sua condição divina (Fl 2,6-11).
Jesus, assumindo o título messiânico de Filho do Homem Servo, absorve o conteúdo do Servo de Javé (Is 53). Este se realiza no serviço e na total obediência a Deus (Fl
2,6-11). É pela humanidade de Jesus que ele consegue realizar tal projeto. Portanto, o
68
MATEOS, J e CAMACHO, F. O evangelho de Mateus. p.60.
16
servir em Marcos, colocado estrategicamente no título de Filho do Homem, tem o sentido
de salvar a condição humana de toda a opressão. Salvação esta que no entanto não se restringe às opressões meramente humanas, mas também à situação escatológica, porém esta
salvação nada tem de mágico. Trata-se de uma salvação concreta, feita pelo servir de Jesus e de seus discípulos.
5 – Conclusão
A visão neotestamentária é mítica e a cosmovisão de Sto. Anselmo não satisfazem os homens e mulheres de hoje, pois já não se vê castigo como expiação, mas tão somente como reeducação, ressocialização ou intimidação. A idéia da transferência vicária
é estranha e até inaceitável. Hoje as próprias leis que o pecador infringe podem ser mudadas. No Antigo Testamento isto era impensável. Então, o infrator não estaria necessariamente contrariando a ordem divina da criação. O agir do ser humano não acarreta necessariamente desordem na natureza. O bem-estar ou o mal-estar não são decorrência direta
de seu agir. Logo, não tem sentido sofrer na intenção de refazer a ordem divina da criação. Hoje dar a vida, quando se exige o sacrifício do povo pobre do Terceiro Mundo em
prol do bem-estar do Primeiro, pode ser trágico, pois assim se justificaria o sacrifício
humano de muitos para uns poucos. Isto se deduz de uma interpretação distorcida da
morte de Jesus.
“O povo deve pagar suas dívidas ainda que seja com suas vidas, com seu sangue, assim como Jesus pagou na cruz. Os Evangelhos não apresentam a morte de Jesus como sacrifício para acalmar
um Deus sequioso de vingança, mas como fidelidade ao projeto do Reino de Deus”69
Corre-se sério perigo em ver a morte de Jesus como vontade do Pai e não como
conseqüência da prepotência dos humanos. Cai-se então na idolatria, pois deuses que exigem sacrifícios, são ídolos. A prática sacrifical torna-se fuga para os senhores do mercado se desviarem da justiça. Além do mais, nesta perspectiva, pode-se entender a morte
de Jesus como um gesto eficaz por si mesmo, que salva sem exigir conversão e entender
a figura do Pai como um sádico70. Jesus não comprou uma salvação pronta, mas antes, pela diaconia, trouxe uma proposta de vida, isto é, o Reino de Deus. Lutou por esta proposta e foi fiel até a morte71. Logo, sua morte deve ser vista como o preço de sua fidelidade
ao Reino e não como sacrifício para aplacar a ira divina. Jesus se tornou a vítima da vida
do povo por se ter colocado a serviço das vítimas de seu tempo72. A prática de Jesus a favor dos últimos lhes garante o reino (Mt 5,3ss; 6,9; 11,25ss). Esta prática lhe valeu a perseguição e a morte73. Assim pode-se ver Jesus como sacrifício pelo pecado da exclusão
dos pobres. Mas a visão sacrificial do passado é viciada pela cosmovisão filosófica de
uma época que se reflete até hoje. Olhando para o mundo como intrinsecamente mau,
pensava-se que deveria haver um sacrifício para reconciliar. Deus teria criado tudo bom,
mas o pecado original teria desviado a criação de seu objetivo original, criando ao mesmo
tempo um desequilíbrio no mundo bom de Deus. Deus, então, enviou seu Filho para res69
BARTH, Ele morreu por nós. p.58.
PIXLEY, Exige o Deus verdadeiro sacrifícios cruentos? In: Ribla., n.2, p.108-109.
71
DUQUOC, Ch. Prólogo. In: VARONE, El Dios Sádico - ama Dios el sufimiento? p.12.
72
GASS, Ildo Bohn. O antigo sacrifício e o sacrifício novo de Cristo. In: Estudos Bíblicos, n.34, p.56.
73
PORATH, Renato. Da vida solidária à morte vicária. In: Estudos Bíblicos, N.34, p.67.
70
17
tabelecer a ordem inicial. Da mesma maneira como Jesus se sacrificou para refazer o
mundo bom de Deus, o ser humano teria, hoje de se sacrificar para apagar os desequilíbrios decorrentes do pecados original.
“Hoje devemos desmitologizar para entender verdadeiramente o que quis dizer com isso e voltar
a desmitologizá-la com nossas categorias atuais para que seja compreensível ao homem de hoje”74.
Portanto, não se deve ver a morte de Jesus como se ele a tivesse buscado, ou como
se o Pai a tivesse exigido, nem tampouco, o cristão de hoje deve buscá-la. Nem Jesus,
nem o Pai quiseram a morte, mas ambos queriam o reino. Em vista do Reino foi capaz de
se sacrificar, pois sabia que anunciar o Reino e testemunhá-lo, custaria um preço. Então,
a morte de Jesus não é uma fatalidade trágica, mas uma conseqüência de sua prática.
Sendo que Jesus morreu como conseqüência de uma vida doada, também o homem e a
mulher de hoje não devem buscar o sofrimento em si, isto seria um contra-valor evangélico. Antes, devem buscar a doação de sua vida pelas causas do povo como o fizeram tantos mártires, como Oscar Romero, Josimo e neste ano a Ir. Dorothy Stang. Mesmo que
isto implique sofrimentos e até a morte. Tais sacrifícios têm valor diante de Deus e também da comunidade75. Os valores que Jesus viveu e testemunhou até à sua morte, bem
como os nossos mártires, são valores que salvam, que trazem vida.
“Portanto participar do sacrifício de Jesus não significa acumular e padecer sofrimentos como se
estes tivessem em si mesmo um valor compensatório diante de Deus, e Deus sentisse agrado por
todo este acúmulo de dor. Participar deste sacrifício de Jesus é integrar-se numa práxis de libertação ao serviço dos pobres e oprimidos no prosseguimento de Jesus (Lc 4,18-19), sabendo que no
caminho encontraremos o que Jesus encontrou: dúvidas, decepções, medos, incompreensões, perseguições e até a própria morte”76.
Então, antes de se falar em sacrifício pelo perdão de pecados, deve-se falar no serviço ao Reino. Gastar a própria vida para implantar os valores do reino, ou seja, lutar a
favor da vida, da justiça e denunciar com espírito combativo toda ordem humana que destrói a vida, é o verdadeiro sentido expiatório. Não foi porque Jesus morreu que o gênero
humano obteve a possibilidade do perdão, mas porque o Verbo se fez carne e habitou entre os humanos (Jo 1,14), serviu a eles, ensinando-lhes os caminhos do servir e denunciando o espírito dominador e acumulador. Toda a vida de Jesus se tornou salvífica porque
ele serviu. A morte foi apenas o preço deste seu servir. O servir de Jesus o levou a doar a
vida, logo, o servir tem valor de redenção.
74
MEZZACASA, Florêncio. Jesus, o Go’el. In: Ribla, n.18, p.70
MEZZACASA, Jesus, o Go’el. In: Ribla, n.18, p.69.
76
MEZZACASA, Jesus, o Go’el. In: Ribla, n.18, p.71.
75
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