O AUTO DA COMPADECIDA E A LITERATURA DE CORDEL Introdução: A literatura de cordel nordestina, um dos fenômenos literários mais representativos da cultura popular brasileira, poucas vezes, foi declaradamente utilizada como fonte de inspiração pela chamada literatura erudita. É sabida a influência dos folhetos de cordel na obra de José Lins do Rego e Guimarães Rosa, por exemplo. Todavia, nenhum desses dois escritores explicitou claramente a origem dos temas e assuntos por eles utilizados. Contrariando essa tendência dominante de apagamento das fontes populares, o escritor paraibano Ariano Suassuna criou o Movimento Armorial no dia 18 de outubro de 1970, congregando em torno de si uma plêiade de artistas, como gravuristas, pintores, poetas, romancistas, músicos, atores, diretores de teatro etc., para juntos empreenderem uma ampla e criteriosa pesquisa etnográfica da cultura popular nordestina. Objetivo geral: Assim, buscamos identificar em sua obra teatral mais famosa - O auto da compadecida – os traços marcantes da influencia da literatura de cordel na feitura da peça. Metodologia: O percurso da investigação buscou analisar como o escritor valeu-se de três folhetos de cordel, a saber: O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da soberba, do poeta popular paraibano Leandro Gomes de Barros, tanto do ponto de vista temático, como estruturante. Análise dos resultados: A pesquisa mostrou claramente que o último folheto funcionou como detonador do tema central da peça e os dois primeiros, como motivos ilustrativos estruturadores da peça. Conclusão: Assim, concluímos que o Auto da compadecida é um exemplo cabal da importância da utilização das fontes populares pela literatura erudita, mostrando que, verdadeiramente, essa propagada divisão só existe dentro de uma mentalidade separatista de classe, já que, historicamente, a arte sempre foi patrimônio de todos sem distinção de qualquer tipo. A Literatura de Cordel nordestina é uma das mais autênticas manifestações culturais brasileiras. A sua enorme riqueza repousa tanto no aspecto etnográfico quanto propriamente estético, literário mesmo. É por isso que tantos escritores nordestinos (e não nordestinos), ao perceberem essa riqueza, utilizaram-se desse manancial na tentativa de renovar a literatura brasileira, dotando-a de traços marcadamente regionais. E é aqui onde a figura do escritor paraibano Ariano Suassuna torna-se marcante e fundamental nesse processo de renovação estética. Tudo começou nos anos 70, em Recife, com a criação do Movimento Armorial. Esse movimento cultural teve por finalidade congregar uma plêiade de artistas, como gravuristas, pintores, poetas, romancistas, músicos, atores, diretores de teatro etc., para juntos empreenderem uma ampla e criteriosa pesquisa etnográfica da cultura popular nordestina. Dessa forma, buscou-se redescobrir e revalorizar o teatro popular, através dos mamulengo, do bumba-meu-boi etc.; da gravura e da escultura populares, presentes nas capas dos folhetos de cordel e nos ex-votos; da poesia dos cantadores e emboladores de coco e do conto oral tradicional, em uma busca criteriosa de construir uma estética erudita que superasse a dicotomia entre o popular e o erudito, numa polifonia nova de vozes sem qualquer hierarquia de valores. Todavia, entre todas as manifestações populares que serviram de inspiração para o movimento, sem dúvida alguma o cordel é a mais importante, pois segundo as palavras do próprio criador do movimento, posteriormente sistematizadas no Manifesto Armorial, publicado em 1974, A arte Armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”, e com a Xilogravura que ilustra suas capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos populares com esse mesmo Romanceiro relacionados. (SUASSUNA, 1974, s.p.) Como podemos perceber, três artes convergem no cordel: a poesia, a música e a gravura. A cantoria de viola ou o repente fornece a poesia e a música; as capas dos folhetos, a gravura; juntos, consubstanciaram toda uma estética erudita plasmada dentro do espírito mágico da Arte Popular com seus arquétipos mitológicos, suas crenças e lendas. Em relação à peça O auto da compadecida, objeto desta comunicação, ela foi encenada pela primeira vez em 11 de setembro de 1956, no Teatro Santa Isabel, pelo Teatro Adolescente do Recife e em 1967, em São Paulo. Os três atos que a compõem foram claramente inspirados em três folhetos do poeta popular Leandro Gomes de Barros, a saber: O dinheiro, O cavalo que defecava dinheiro e O castigo da soberba. Todavia, não podemos confundir a peça com a minissérie ou o filme de Guel Arraes, pois estas foram adaptações feitas para a televisão e o cinema, acrescida de outra peça de Ariano, O santo e a porca. Portanto, todas as peripécias relacionadas ao namoro de Chicó com Rosinha não fazem parte do auto. É de opinião unânime entre os investigadores que Leandro Gomes de Barros foi o fundador do cordel, devido ao fato de este ter sido o primeiro poeta popular a viver exclusivamente da venda de seus folhetos. Além do mais, esse poeta paraibano foi o elo de ligação entre a cantoria e o cordel, adaptando os estilos e formas textuais próprias daquela para este. No primeiro folheto O dinheiro encontra-se o motivo do enterro de um cachorro com honras de cristão, mas o dono do animal é um inglês, ao invés da mulher do padeiro. Assim, Suassuna modificou o tom de crítica à presença dos ingleses no Brasil, por um motivo mais ligado ao universo do sertão nordestino, no qual determinadas classes sociais arvoram-se como merecedores de determinados privilégios simplesmente por deterem maior poderio econômico. Vejamos um fragmento do folheto que exemplifica bem esse caráter de crítica ao imperialismo inglês, claramente perceptível, inclusive, no nível da própria linguagem que reproduz a forma errada dos ingleses utilizarem os pronomes oblíquos: [O inglês] Foi ao vigário lhe disse: - Morreu cachorra de mim E urubu do Brasil Não poderá dar-lhe fim, Cachorro deixou dinheiro: Perguntou o vigário, assim? Mim quer enterrar cachorro Disse o vigário oh! Inglez! Você pensa que isto aqui É o paiz de vocês? Disse o inglez oh! Cachorro! Gasta tudo desta vez. (BARROS, 2005, p. 5) No que tange ao segundo ato da peça, inspirada no folheto O cavalo que defecava dinheiro, além da modificação do cavalo pelo gato, percebemos a troca vocabular do verbo “defecar” pelo neologismo “descomer”, muito mais adequado ao tom humorístico da peça, assim como mais adequado à linguagem própria dos sertanejos. Essa mudança também está relacionada com o fato de que o folheto original está inserido em um universo nobiliárquico, ou seja, trata-se de um camponês que tenta iludir um duque ao vender um cavalo que, supostamente, defecava dinheiro. Tanto na peça como no folheto, o camponês e João Grilo são personagens pobres que tentam superar a pobreza através da astúcia, ludibriando os ricos para obter determinados benefícios básicos à eles negados. Além do embuste do cavalo, o camponês consegue iludir o duque através de outro ardil preparado para livrar-se do primeiro. Trata-se do motivo da borrachinha cheia de sangue de galinha a qual o camponês manda a sua mulher colocar debaixo da roupa. Simulando uma briga com a ela, com raiva o camponês a mata, ressuscitando-a depois com uma rabeca. Na peça, a rabeca é trocada pela gaita e a mulher do camponês é substituída por Chicó, o amigo inseparável de João Grilo. Vejamos um trecho da peça: SEVERINO – Que conversa é essa? Já ouvi falar de chocalho bento que cura mordida de cobra, mas de gaita que cura ferimento de rifle, é a primeira vez. JOÃO GRILO – Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer. (...) Agora vou dar uma punhalada na barriga de Chicó. CHICÓ – Na minha, não. JOÃO GRILO – Deixe de moleza, Chicó. Depois eu toco a gaita e você fica vivo de novo! (Murmurando a Chicó). A bexiga! A bexiga! (SUASSUNA, 1980, pp. 122-123) Cabe ainda salientar que João Grilo é um personagem também extraído do universo poético do cordel. Segundo Arievaldo Viana, «João Ferreira de Lima, um poeta pernambucano, escreveu no final da década de 1920 o folheto de oito páginas intitulado "AS PALHAÇADAS DE JOÃO GRILO", que seria posteriormente ampliado para 32 páginas por DELARMÊ MONTEIRO, sob a orientação do editor JOÃO MARTINS DE ATHAYDE, tornando-se o que hoje conhecemos como "AS PROEZAS DE JOÃO GRILO", um dos maiores clássicos da Literatura de Cordel» (http://fotolog.terra.com.br/acorda_cordel:90, em 12/09/2012, às 10:45). Sem dúvida alguma, João Grilo é o personagem principal da peça, no primeiro ato, é ele que negocia o enterro do cachorro junto ao vigário local; no segundo ato, ele ludibria o padeiro e a sua mulher ao vender um gato que “descomia” dinheiro e, quando a cidade é invadida pelo cangaceiro Severino do Aracajú, utiliza o ardil da bexiga para também ludibria-lo. Finalmente, no terceiro ato, após ter sido morto por outro cangaceiro em virtude do fato do chefe não ter sido ressuscitado pela gaita, é ele que invoca o nome da Compadecida para salvar a todos do inferno, intercedendo junto a Jesus Cristo. É justamente nesse terceiro ato onde reside o tema central da peça, bem dentro do espírito dos autos barroco-medievais ibéricos, no qual Suassuna nunca negou buscar inspiração. Nesse ponto a semelhança entre a peça e o folheto é bem mais pronunciada. Ambas têm um sentido moralizante do ponto de vista cristão, presente tanto na linha geral, quanto nos pormenores. Em artigo publicado na revista Comentário, de 1969, Anatol Rosenfeld acredita que a peça apoia-se na tradição católico-didática dos fins da Idade Média, dos milagres e dos famosos autos de Gil Vicente. É a esta tradição principalmente, não tanto à influência de Claudel e ainda menos de Brecht, que a peça certamente deve o seu caráter épico e o jogo dirigido ao público, jogo acentuado pela intervenção de um comentador e pelos aspectos fortemente circenses e populares. Uma grande cena que representa o tribunal celeste e na qual a virgem Maria se compadece dos pecadores, retoma uma velha tradição do teatro cristão. Suassuna... conseguiu fundir... o legado católico, os intuitos de crítica social e o folclore nordestino. (Apud SUASSUNA, 1973, p. 157). Todavia, sem negar essa influência ibérica indireta, Suassuna declara claramente que o motivo do tribunal ele o buscou diretamente na literatura de cordel mesmo. Até o próprio nome Manuel foi extraído do folheto O Castigo da soberba que ele encontrara publicado tanto por Leonardo Mota como por Rodrigues de Carvalho, (neste último com o título de A peleja da alma, folheto atribuído a Silvino Pirauá). Concluindo, queremos ressaltar aos menos avisados que, apesar de toda essa influência popular, a obra do escritor paraibano é singularíssima e original, sobretudo na medida em que ele conseguiu plasmar de forma peculiar um teatro ao mesmo tempo regional e universal, posto que o homem é o mesmo em qualquer lugar do planeta. Um dos grandes méritos de Suassuna foi o de ter a coragem e a honestidade intelectual e artística de declarar publicamente através de diversos ensaios e entrevistas, a fonte concreta onde foi buscar os motivos, os personagens, os temas e os assuntos de suas peças, poemas e romances, mostrando que, verdadeiramente, essa propagada divisão entre arte erudita e popular só existe dentro de uma mentalidade separatista de classe, já que, historicamente, a arte sempre foi patrimônio de todos, sem distinção de qualquer tipo. REFERÊNCIAS BARROS, Leandro Gomes de. O dinheiro. Fortaleza: Tupynanquim editora, 2005. _________________________. Tupynanquim editora, 2000. O cavalo que defecava dinheiro. Fortaleza: SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. 16 ª ed., Rio de Janeiro: Agir, 1980. _________________. “A compadecida e o romanceiro nordestino”. In Literatura popular em verso. Estudos Tomo I. Rio de Janeiro: MEC/Fundação Casa de Rui Barbosa, 1973. __________________. Manifesto armorial. Recife: UFPE, 1974. VIANA, Arievaldo. http://fotolog.terra.com.br/acorda_cordel:90.