A IDENTIDADE DO SER HUMANO À LUZ DA FÈ Hélcion Ribeiro A antropologia teológica se relaciona com várias outras ciências, inclusive teológicas e, hoje, mais concretamente, se percebe que é assim que ela se constrói. Por exemplo, com a teologia da criação (teologia da criação e também conhecida como protologia), com a escatologia (teologia da consumação do mundo e do ser humano), com a cristologia (sobretudo ao enfocar Cristo modelo e salvador do ser humano e da humanidade toda). Aqueles que escrevem “antropologia teológica” se sentem devedores da tradição manualistica, onde esta temática aparecia nos tratados “De Deo creante” e “De Deo elevante”. A catequese também sofre (ainda) esta influência. Então ao se identificar teologicamente o ser humano, entre as primeiras idéias que nos vem, então: fomos criados por Deus (na origem do universo), à sua imagem e semelhança, em Adão e Eva tornamo-nos pecadores (pecado original) e Deus nos concede graças para nos tirar do pecado e nos salvar (por isso a grande graça salvadora é Jesus, homem-Deus). A bíblia e mais especificamente desde o AT, deu à criação um enfoque teológico. A antropologia atual se torna mais cristológica. O ser humano, sem dúvida, é contemplado decididamente a partir de Cristo – que sem dúvida remete ao mistério trinitário. Aborda-se teologicamente a criação porque quer-se afirmar dois pontos: a) toda a origem de tudo em Deus; b) a razão da criação é a glória; c) tudo converge para Deus. A antropologia cristã é bem mais um estudo a partir do ser humano, que não pode jamais estar desvinculado da Trindade, e mais precisamente de Cristo; pois tudo foi criado por ele, nele e para ele (cf. 1Cor 8,5-6; Col 1,15-20). A antropologia cristã estuda, por um lado, o ser humano criado e consumado em Cristo; por outro, analisa as questões de autonomia do ser humano, dentro da história da salvação. O mistério do ser humano se explica em Cristo, em sua totalidade. Isto quer dizer: leva-se em conta o Cristo pascal, contemplado como salvador pré-existente, encarnado na humanidade, senhor da história, Filho de Deus, sentido profundo e último da história e da realização cósmica. 1. Uma identidade teológica para o ser humano Ao produzirem suas antropologias teológicas, os teólogos preferem identificar a pessoa humana a partir de Jesus Cristo. É assim que se vem procedendo desde o Concilio Vaticano II. Como diz a GS 22 (e João Paulo II, na RH. 11): Só Jesus Cristo explica verdadeiramente quem é o ser humano e sua altíssima vocação. Antes, São Paulo já afirmava: Cristo faz nova a sua criatura. Pode-se fundamentar nossa identidade e origem em Cristo nos seguintes textos: Col. 1,15-17; 1,18-20; Rom 8,28-30; Col 3,10-15; Rom 6,3-11; 2Col 5,17; Gal 6,15. Ainda mais: São Paulo aproveitou um hino de sua época, fez uma adaptação belíssima em Ef 1,3-13. Entre outras afirmações, se diz: fomos criados em Cristo, por ele e para ele. É o plano, já antes de Deus, criar tudo quanto existe. Deus não faz distinção de pessoa, faz chover sobre bons e maus e faz o sol brilhar sobre justos e injustos (cf.. Mt 5,45). São Paulo é quem mais ajuda a compreender o significado cristocêntrico tanto da criação, em geral, quanto do ser humano. E ele ajuda por causa de suas afirmações escatológicas – que são intensas – quanto por mostras Cristo como imagem visível do Pai invisível, o primogênito da criação. “E nós todos que com a face descoberta, refletimos como num espelho a glória do Senhor, somos transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente pela ação do Senhor, que é o Espírito” (2Cor 3,18), (cf. notas da bíblia de Jerusalém sobre este versículo). Só Cristo revela quem é realmente o ser humano (independentemente de ser católico, budista, muçulmano ou espírita). Lembre que Deus amou tanto o mundo (a humanidade inteira) que nos deu seu Filho único. Veja que isto não depende da religião ou crença. É um ato de amor de Deus,acima e antes de qualquer outra coisa. No Verbo eterno feito carne e habitando entre nós (cf. Jo 1,14), conhecemos a imagem de quem somos e de quem seremos. O Filho de Deus, que preside a criação, intervém nela para comunicar a nós, seres humanos, o reflexo do rosto do Pai. Cada ser humano participa, do dinamismo da criação, em pessoa pelo Filho, como imagem do Pai. E tudo isto se revela em plenitude pela ressurreição de Cristo. Ele, o primogênito dos mortos, leva à realização máxima nossa carne mortal agora transformada em carne imortal. Isto quer dizer: a criação nossa em Cristo só se completará de modo definitivo quando ressuscitado, participaremos da vida em Deus, vendo-o face-a-face. Isto é sendo semelhante a ele, pois Cristo nos fez assim. Esta nossa união escatológica – ação do Espírito – nos con-figura totalmente em Cristo. E por ele seremos apresentados ao Pai. Criados, então, nele e por ele. E consumados nele e com ele como glória do Pai. Só por Cristo e nele, a criação passa a ter seu sentido: participar da glória do Pai. Levamos a imagem de Cristo impressa em nós – desde antes da criação – porque, tudo o que foi feito, o foi por ele desde o início. É ele quem, por seu Espírito, conserva nossa existência e a conduz à sua consumação. Sem dúvida, a imagem de Deus - visível em Jesus histórico - alcançou grandeza sublime, mas ainda estava distante da dignidade que o próprio Cristo lhe confere. Quer dizer: a dignidade de Cristo em nós é muito maior que o próprio Jesus – considerado apenas historicamente. Santo Irineu dizia que o Filho preparou (criou) nossa carne (nossa humanidade) de tal modo que pudesse conter sua divindade. Com isto visava levar-nos a sua estatura de filhos de Deus. A antropologia teológica do AT. é ampliada na antropologia cristãneotestamentaria e aí se revela todo o significado cristológico de pessoa humana. Daí pode-se afirmar toda pessoa é cristica, por origem e destinação. Toda pessoa é feita por ele e por ele elevada a glória do Pai. O dever moral de nos assemelharmos a Deus e a seu Cristo, como “homens novos” – como ensina a Igreja – decorre daí exatamente e vai se manifestar através de nossas atitudes. Desde a antropologia pode-se dizer que o amor de Deus pelo ser humano, possui três faces: a criação, a conservação e a consumação. Moralmente é uma só a resposta humana: viver a vida nova de Filho de Deus em Cristo pelo Espírito. Desde a criação levamos o sinal de Cristo, o Primogênito de toda a Criação, por ele somos feitos Filhos do Pai Eterno, e por ele haveremos de ver a Deus. Cristo oferece a todos os homens um testemunho perene de si mesmo (cf. Rom 1,19-20), (GS 12; DV 3). Esta relação do amor um trinitário de Deus tem sentido nitidamente cristocêntrico (cf. LG 38. Foi assim que o Pai nos quis predestinado à imagem de seu Filho primogênito em quem todos somos irmãos (cf. Rom 8,29). Nós nos tornamos cooperadores de Deus (ver GS 34) co-criadores com ele em Cristo, por ele e com ele também; e o somos nós todos pela nossa vida e nosso trabalho. Estabelecendo uma relação de irmãos com todos os Filhos de Deus, a modo do amor trinitário, e a exemplo de Cristo. Muitas vezes, nos textos bíblicos, aparece a expressão “nova criatura”. Nova porque se contrapõe à “velha criatura”. A “velha criatura” é o ser humano em seu pecado. O velho Adão é o ser humano pecador. Mas, em Cristo está o verdadeiro ser humano, sem pecado. Nele está o ser original e novo. Não o envelhecido pelo pecado. E isto faz uma diferença muito grande. Evidentemente quem é cristão (consciente) sabe, conhece o que significa de viver em Cristo, ser “nova” criatura. Isto é um mistério que nos foi revelado exatamente em Jesus de Nazaré. Então, além de Cristo nos fazer seres humanos novos, também nos revela quem somos. 2. A filiação divina Por meio de Cristo, o Filho, constrói-se ainda outra identificação nossa: nós nos tornamos filhos de Deus. Esta categoria – Filho de Deus – é fundamental e é afirmada no batismo. Mas, não confunda: por causa de Cristo – desde toda a eternidade e pelo simples fato de nascermos, somos filhos de Deus. Jesus é o Filho Unigênito e/ou primogênito de Deus. Por meio dele todo homem e toda mulher também o são. O batismo – que tem diversas funções (p. e. introduzir-nos na Igreja) – torna consciente a cada pessoa sua filiação divina. A expressão “filho” indica a especial relação nossa com Deus, pois tem em conta o aspecto mais intimo e profundo do ser: divino; a comunhão de pessoas. Aqui há uma diferença radical dos outros seres existentes e nós. Enquanto pessoas somos filhos de Deus e nossa relação com ele é filial. Não por causa de nós. Foi Cristo quem repartiu – desde toda a eternidade (cf.. Ez 1,3 ss.) esta filiação adotiva, assumida pelo Pai. Deste modo como diz a GS: somos as únicas criaturas que Deus quis por si mesmas. Teólogos há que seguem um raciocínio diverso: porque nos comportamos dignamente diante de Deus é que vivemos esta filiação divina. Nós afirmamos aqui: a causa da filiação está no tão grande amor de Deus por nós, que nos deu seu próprio Filho (e, pelo Espírito Santo filhos no Filho. Isto é antropológico. A outra questão é moral: viver com dignidade o que somos. Especialmente nos textos bíblicos indicados, no item acima (3.1), você viu muitas vezes a expressão “nova criatura” ou “homem novo” contraposta ao “velho homem”. Foi S. Paulo quem mais explorou este tema. Hoje em dia, quando os cristãos - católicos e outros – usam a expressão, o fazem quase só em sentido moral (e moralista). Isto é correto, porque quem recebe o batismo quando criança - por meio dos pais e padrinhos - sabe pessoalmente, que assumiu explicitamente a condição de cristão. I.é: de seguidor (discípulo e missionário) de Cristo. E como tal deve viver está “nova” condição de vida. Enfaticamente, a(s) Igreja(s) usa(m) esta linguagem “novo” e “velho homem” em referência aos sacramentos (batismo, penitência, unção dos enfermos), moral (e moralismo) e membresia religiosa. Também se usa do fator de pecado original. Quando se professa que todos os homens e mulheres nascem sob o signo do pecado original, a Igreja Católica não afirma que todos os seres humanos, por natureza, nascem pecadores. Sabe-se que o pecado original só é pecado analogicamente. Ninguém é pessoalmente responsável por ele. Só se o é por solidariedade moral. Por natureza, nós não somos pecadores. Só o somos por participação. Sem dúvida, pelo ensino da Igreja se sabe que “o pecado das origens” “debilita” o ser humano, em sua liberdade. Contudo, ao menos de Jesus e Maria a Igreja fala de modo claro que eles, desde a natureza, foram isentos do pecado. Lembre que Jesus só foi perfeito porque não pecou. S. Paulo, na carta aos Romanos, para realçar a grandeza de Cristo, o contrapõe ao “velho Adão”, “o homem pecador”. O “homem velho” é o que está sob o jugo do pecado, do que não pode libertar-se sem a graça de Cristo. Ou seja: o pecador perdeu a liberdade de sair por si só de seu pecado. E aí só Cristo pode libertá-lo. Neste sentido, fica realçada a função redentora de Cristo. Só ele e por ele se reconquista a liberdade sempre comprometida pela concupiscência, mas também sempre amparada pela graça. Deve-se dizer, pois, que só Cristo faz “nova” a criatura, só ele nos liberta de nossos pecados. 3. O homem, “criatura nova” Deve-se, agora aprofundar duas questões, antropologicamente pouco estudada. A primeira está muito presente, mas quase só sob o prisma da moral. Aqui é necessário ter presente que não vamos considerar os pecados morais e nem afirmar a historicidade do senhor Adão que com sua esposa Dona Eva, cometeu o pecado original. Também para S. Paulo, “Adão” é: a) em geral o símbolo da humanidade (homem natural); b) às vezes, símbolo da humanidade pecadora; c) também símbolo do ser humano sem Cristo, ou melhor, do que o nega. A segunda questão: Cristo foi constituído por Deus como o salvador da humanidade já antes da criação. Recorde-se que salvar/salvação tem dois sentido: salvar do pecado (sentido negativo) salvar para a vida eterna (sentido positivo). Quando o Verbo se encarnou encontrou o ser humano ferido pelo pecado e “impotente” diante da liberdade. Daí, transparece a necessidade histórica da salvação Cristo. Ele nos restituiu, pela graça, a vida nova. Neste sentido ele fez “novas criaturas” todos os que viviam sob o domínio do pecado. Ele continua salvando do pecado todo homem e toda mulher, que ab-usa de sua liberdade e se escraviza no reino do pecado. Jesus foi um homem livre. Usou a liberdade dele para dedicar-se totalmente a Deus. Por esta razão não pecou. Jesus – o que não pecou porque era livre – mostra a possibilidade, com a graça de Deus de se evitar o pecado. Mais ainda: ele quer nos salvar para. A vida com Deus. Salvar aqui quer dizer, sob a força do Espírito, ele quer nos levar à realização plena. Quer nos colocar diante de Deus face-a-face. É ele que, salvando-nos nos leva à realização plena: ver a glória de Deus. Como todo ser humano foi criado para ser salvo, mesmo tendo o dom da liberdade, sofre impactos da tentação – como Jesus. Ninguém é obrigado a cometer pecado(s) e nem a ser pecador. Dizem que Sta. Terezinha do Menino Jesus afirmava que desde os 4 anos de idade, nunca cometeu um pecado. Deus nos fez a caminho da perfeição; não nos fez imperfeitos, nem perfeitos, mas perfectíveis. Para isto é radical a colaboração da graça de Deus, por Cristo no Espírito Santo. O ser humano é nova criatura porque nascido em Cristo, dele e por ele. Originalmente, ele é o modelo. Ele é a imagem visível do Deus invisível. Sto. Irineu nos ajuda aqui outra vez: O modelo, só apareceu recentemente. O primeiro Adão apareceu antes do original. O primeiro Adão é a humanidade histórica que o AT conheceu e chamou “imagem de Deus”. “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu próprio Filho, nascido de mulher” (da humanidade em geral e de Maria, em particular). No homem Jesus, encontramos Deus mesmo. No mistério do Verbo encarnado viu-se o homem tão humano que era Deus. Aquele que existia desde toda eternidade – o Verbo – uniu-se profundamente à humanidade e foi um de seus filhos. Após a morte, Deus o ressuscitou e revelou que aquele seu filho amado era (é) o homem original, sua imagem visível e pensado desde toda a eternidade para que um dia se manifestasse entre nós, como um de nós. Era o primeiro e o verdadeiro Adão, mesmo que só aparecido depois, como Cristo. Ele o primogênito de toda criatura, era o “novo”, mesmo que só tenha aparecido recentemente (há 2000 anos. Convém recordar que o homo sapiens tem uns 150.000 anos). Nem todo o significado da palavra “novo” transparece na língia portuguesa. O “novo” é o original, o primeiro, o autêntico. Aqui não é a questão de tempo; mas de perfeição. Cristo – que nos revela em si e por sim, quem somos verdadeiramente – é o protótipo do ser humano. Porque somos de sua origem e de sua vida, também somos “novas” criaturas. O que nos envelhece é a idolatria, não a idade, nem o tempo. A graça de Deus é dom de Deus que pode nos manter sempre novos, como Cristo, mesmo vivendo na história. Resumindo, antropologicamente antes que no aspecto moral, somos novas criaturas em Cristo, porque feitos nele, por ele e para ele. Com a graça de Deus, podemos nos manter nesta história de salvação como “criatura nova”. Os cristãos têm a consciência deste mistério que só agora foi-nos revelado, e que estava oculto aos próprios anjos. O mistério da “nova criatura” em Cristo vem desde antes da criação. Foi-nos revelado em Jesus de Nazaré. A Igreja ensina que Deus salva misteriosamente, de um modo só conhecido dele, também aqueles que fazendo o bem e seguem reta consciência. 4. A filialidade por vontade de Deus Nosso tema é a identificação do ser humano à luz da revelação (cristã). Somos criados, em Cristo, por Cristo e para Cristo, somos nele “novas criaturas”. Agora queremos aprofundar nossa filiação divina. Somos filhos de Deus. Aliás, dizer que os homens são filhos de Deus (ou dos deuses) é uma atitude freqüente nas religiões. Os cristãos, porém, dão a esta identificação um sentido peculiar. Jesus, pelos evangelhos sinóticos, revela um sentido novo da paternidade de Deus e de nossa filiação. Há uma diferença fundamental, revelada pelo próprio Jesus entre ele e nós (cf. Mt 5.45; 25,34; Lc 24,49). São Paulo elabora teologicamente melhor nossa condição de filhos. O fundamento da filiação não é a criação, mas a adoção. Jesus é filho único de Deus mesmo que se fale dele como unigênito ou primogênito. Nos o somos porque Deus se torna nosso Pai, através do seu Filho. Surgem aqui novamente questões antropológicas e pneumatológicas, mas não necessariamente jurídicas. É claro, haverá também uma dimensão moral na filiação, mas isto é uma abordagem da teologia moral. Deus, por meio de seu Filho, nos eleva à condição de filhos; infunde em nós uma vida nova, guiados pelo seu Espírito. (cf.Rom 8,15-23; Gal 4,1-7; Ef 1,5; sobre a vida nova: Gal 1,4-5; Ef. 5,20; 2Tes 2,15-16) . Em Ef 1,3-14, encontramos o texto mais importante deste tema. O texto sagrado faz uma grande e majestosa síntese da filiação divina, fundada na gratuita eleição do Pai, que nos adota por meio de seu Filho, nos concede como dom o Santo Espírito, como garantia da herança a ser recebida. O evangelista João acentua não tanto o aspecto moral (fazer-ser filho), mas a realidade ontológica (ser filho). A filiação é um dom que vem do alto (Jo 3,7). Não somos chamados a ser, mas o somos realmente. Mesmo que isto ainda não se tenha manifestado (cf. 1Jo 3,1-2). Não nos tornamos filhos pelo nascimento, nem pelo agir (vontade da carne ou do homem). È a gratuita bondade de Deus que nos elege (Jo1,13). Segundo João, somos filhos de Deus, não da Trindade, por sermos irmãos de Jesus (Jo 20,16-17) e nascidos do Espírito (Jo 3,8). Também, “somos feitos sua herança” (Ef 1,13). Ser filho implica de modo inseparável em ser herdeiros. “Se nós somos filhos, logo somos também herdeiros, herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo, se é certo que com ele padecemos, para que também com ele seremos glorificados” (Rom 8,17). Esta herança vem ligada a herança/benção de Abraão (Gal 11,7). E culmina na fortificação da herança dos santos na luz (Col 3,24; 1Pe 1,4). 5. A fraternidade universal Sendo criaturas em Cristo, ele nos faz ser “criaturas novas” e nos torna filhos adotivos de seu Pai, surge quase naturalmente a questão da nossa fraternidade em Cristo e com Cristo. Se todos somos criados nele, então somos todos os homens e mulheres irmãos uns dos outros. Se todos temos a filiação comum, então também temos a fraternidade em comum. Todo homem e toda mulher são irmãos entre si, independentemente do tempo, do lugar, da situação socioeconômica. A fraternidade universal é um dom do alto, porque Deus se fez o Pai comum e ele no-la concede eticamente um dom e uma tarefa. Esta fraternidade não está circunscrita a comunidade dos crentes. A filiação divina institui um estatuto universal entre todas as pessoas, que se manifesta de modo concreto no amor ao próximo (Mt 5,44ss.; 2 Pe 1,7) – para os seguidores de Cristo se impõe inclusive como amor aos inimigos, toda diferença deve moralmente ser superada nas questões raciais, nacionais, sexuais etc. porque dos povos divididos Jesus Cristo fez um só povo: o povo de Deus. O fundamento da fraternidade humana está em Cristo Jesus, além da nossa filiação universal; pois Jesus Cristo é quem une e unifica todos os homens e mulheres da história. Ao assumir a carne humana, este Deus se fez nosso irmão. A leitura antropológica desta afirmação cristológica fica assim: Deus é nosso irmão, ou somos irmãos de Deus. Jesus mesmo afirma isto inúmeras vezes (cf, Mt 12,50; Mc 3,34; Hebr 2,11; Lc 8, 21; Hebr 2,11-17). Assumindo a natureza humana o Verbo se fez em tudo igual a nós. Isto quer dizer: ele se tornou membro da família humana (cf. Mt 1,1-17; Lc 3,23-28). O texto de Gal 4,4 “nascido de mulher” implica em afirmar “filho da humanidade”. Portanto, o irmão universal. Deus o constitui primogênito. Ele é o irmão maior com os direitos e deveres de primogênito (cf, Ex 13,2; 34,19; Lv 27,26; Nm 3,13: Deut 21,17; Ne 10,36). Somos irmãos de Deus, Deus é nosso irmão, porque ele quis pertencer a nossa família, a fim de nos fazer participar também de sua família: a Trindade. Esta irmandade em Cristo não é conseqüência de nossos atos, mas um dom prévio de Deus e que nem por isto nos converte em Deus ou deuses. A fraternidade, intimamente relacionada à filiação, indica a igual dignidade e a solidariedade universal. Ela é um processo. Pois não somos nem perfeitos, tão pouco imperfeitos, mas processualmente em construção, em aperfeiçoamento. Fundada com Cristo, nosso irmão e na fraternidade de Deus, a fraternidade universal cria entre os irmãos a consciência e a responsabilidade ética de todos por todos. E da experiência judeu-cristã, surge um parâmetro especial: os pobres. São milhões e milhões os pobres da terra, irmãos de todos. No AT., Deus se volta em primeiro lugar para os pobres; Jesus, que passou pelo mundo fazendo o bem (cf. At 10,38), também nos legou este princípio. Em nossa identificação (criados em Cristo, “nova criatura”, a filhos do Pai de Jesus e irmãos universais) a teologia baseou-se, sobretudo, na bíblia neotestamentária. Por outro lado, deve ter percebido que também o NT não tem uma linguagem conceitual, filosófica, ela é, sobretudo descritiva. Em terceiro lugar, a antropologia cristã não se esgota nestas grandes idéias. 6. Um ser total (holístico) E a questão do ensino bíblico a respeito da alma e do corpo?A resposta deve ser buscada mais na filosofia que na bíblia – apesar do que a Igreja também frequentemente tenha se deixado influenciar pelo helenismo. São Paulo até fala sobre o corpo e alma do ser humano. Ele, porém, não usa os conceitos gregos. E, inclusive, chega a falar de corpo, alma e espírito humanos. A tricotomia paulina é uma descrição do ser humano e não uma definição. São Paulo faz uma teologia eminentemente cristológica, sotereológica. É daí que decorre sua antropologia. Ao falar do ser humano, na verdade, discorre sobre Cristo. Isto quer dizer: não faz antropologia em si. Antes tem, neste sentido, intenções cristológicas pastorais e, inclusive, morais. Por isto, predominam as dicotomias em S. Paulo: velha/nova criatura, segundo a carne/segundo o Espírito, homem carnal/homem espiritual, desde o pecado/desde a justificação etc. No mais, como a bíblia, ele sempre vê o ser humano à luz de Deus (à luz de Cristo no NT). É por isto, que utiliza a linguagem da antropologia bíblica. A antropologia bíblica, em sua linguagem, é sempre descritiva. E com freqüência fala de um aspecto do ser humano para indicar o todo. Assim palavras como rim, coração, corpo, alma, espírito, mão, sangue, ossos, vísceras etc., sempre tem mais o sentido de indicar o todo pela parte. Por exemplo, no AT quando Deus manda “cingir os rins” para a batalha, está se querendo dizer: “prepara-te ó homem, para a luta entre Deus e os ídolos”. A linguagem antropológica do AT, por outro lado, não tem o mesmo sentido semântico atual. Ela muitas vezes é polissêmica, isto é: tem vários significados para expressar as realidades humanas; é sinonímica, i. é.: utiliza diversos termos para expressar a mesma realidade. É simbólica: muitas vezes um simples órgão do homem representa o homem inteiro. É representativa, i.é: os termos não têm a rigorosa função que hoje nós lhe atribuímos, mas expressam diferentes atividades humanas. Por fim, deve-se também fazer menção às questões de tradução. Nem sempre a palavra traduzida tem o significado real da língua original. Deste modo, a tricotomia paulina (diferente da dicotomia grega) é a ocasião de entender a realidade sob um aspecto ou tal palavra servia para ressaltar um aspecto da totalidade. A pessoa humana é, pois, uma totalidade complexa, pluridimensional, aberta as relações com Deus (principalmente), com os outros e com o mundo. É uma realidade relacional dialógica. Não é uma constituição ontológica (como os gregos). As categorias corpo-alma-espírito (“nephes”, “bazar” e “ruah”) exprimem relações constitutivas da experiência humana. a. Um ser vivente (“nephes”). O tema “nephes” indica a vida no seu sentido mais geral, inclusive aplicada aos animais. No caso do ser humano, a “nephes” é o sentir vital da pessoa na sua individualidade, o eu como subjetividade aberto às relações com tudo que o circunda e transcende. O termo não pode ser entendido de modo unívoco, pois muitas vezes se justapõe ou sobrepõe a outros. “Nephes”, que indica vida, primitivamente na natureza física, bem concreta: parte do corpo que une a cabeça ao tronco (pescoço, a garganta). Por ali passa a respiração, sem o que o ser humano morre. O termo bíblico em Sl 69,2 foi empregado diferente do Sl 124,4-5; Nm 21,5; nos seguintes conjuntos “nephes” pode ser entendido como respiração Jr 15,9; Jô 11,20; 41,13; como princípio vital, a vida em si: Ex 4,19ª; 1Sm 19,11b; Jô 30,16; Lam 2,12; como impulso vital Pr 10,3; Dt 12,15,20-21; Sl 35,9; 1Sm 1,10; Ex 15,9; como individuo concreto (Jos 11,11; Nm 6,6; Lev 19,28; como pronome pessoal Gen 12,13; 1Pe 20,32. A expressão hebraíca “nephes” foi traduzida em 600 casos para o grego dos LXX como “psyche”, e daí ao latim e outras línguas ocidentais como “alma” ou “anima”. Isto não foi nem uma boa tradução nem boa interpretação. Desde a bíblia, ele é “nephes” e não tem “nephes”. Isto significa que o homem é um ser vivente; Já para os gregos e latinos, a alma é um componente do homem: o homem tem alma. b. Um ser terrestre, frágil, mortal (corpo). “Basar” indicada esta realidade. “Basar” é a realidade humana sob o aspecto de fragilidade e caducidade, a finitude estrutural do ser humano. Indica também, em sentido negativo, a carne, o egoísmo, o pecado, a posição a Deus e ao espírito; em sentido positivo indica o corpo. “Basar” pode identificar-se com o corpo físico (2Re 5,10; Ez 37,6; Ex 28,42; Jó 6,12; Sl 109,24; Nm 19,7); como sede dos sentimento (Jô 14, 22; 21,6; Sl 16,9; Sl 84,3; Sl 63,2); como pessoa inteira ou sinônimo do homem (Jr 17,5; Gen 6,3); como debilidade física ou moral (Jó 34; 14-15; Is 40,6-7; Pr 5,11; Gen 6,12). “Basar”, na versão grega dos LXX, foi traduzido, do modo indistinto, por “sarx” e “kreas” significam “carne”, “corpo biológico”. E este sentido passou para o latim e as demais línguas ocidentais. Isto não significa algo externo, biológico ou físico; pois Deus se fez humano. O corpo – no sentido bíblico – pode ser carnal ou espiritual instrumento do Espírito ou do egoísmo. Pode ser corpo espiritual ou corpo de pecado. Ele é sinônimo de pessoa na sua concretude. A relação do ser humano com os outros e com o mundo se faz pelo corpo (“basar"). Neste sentido é o ser humano que demonstra sua solidariedade (ou egoísmo). É o ser humano que necessita da salvação de Deus e expressa sua condição humana, no ecossistema e cosmo. “Basar” é o único termo hebraico para designar o “corpo” do homem. (umas 50 vezes). Também é aplicado ao corpo morto, ao cadáver (2Re 4,3; Ez 32-5; Sl 79,2) c. O portador do sopro divino Como imagem de Deus o ser humano recebeu o “sopro divino”, a” ruah”. “Ruah’ qualifica a interioridade (“nephes”) e as relações sociais (“basar”) do ser humano. É o principio da vida religiosa e moral (Ez 11,19-20; Zac 12,10). Significando originalmente ar, vento, álito vital, força vital, o termo exprime a convicção que a força que mantém vivo o ser humano vem só de Deus. sem ele, o homem volta a ser pó e more (Jó 34,1415). O fundamento da vida humana com Deus está na “ruah”. Por ela, Deus faz as pessoas viverem à vida (criação) e se Deus a retira, o homem não o verá (não se salvará). Neste termo, há uma plurissemia também, ao analisar as variações bíblicas: como “vitalidade” ou “potencia vital” (1Sm 30,12b; Gen 7,105; Gen 6,3; Jo 34,14-15; Sl 104,2a), sede das paixões ou “aflitos do homem” (Gen 26,35; 1Re 21,5; Is 54,6; Ex 21,22); sede de projetos e decisões (Is 29,24; Ez 11,5; Ex 35,21; Nm 14,24; Sl 77,7), em sentido escatológico (Ez 11,19). “Pneuma” é a versão grega dos XXX para “Ruah”. Daí para as demais línguas ocidentais como “espírito” – palavra que indica um conceito particular. Ele por não ter correspondente em nossas línguas se presta a confusões. Há inúmeros outros conceitos, na mentalidade bíblica, além destes três fundamentais que São Paulo usou, que aludem à realidade humana. Identificálos, compreendê-los também é importante num estudo aprofundado sobre a antropologia bíblica. Apenas vamos citá-los para que se você quiser ampliar seus conhecimentos tenha uma indicação. “Leb”/”lebad” (centro da atividade sentimental e espiritual, ele foi traduzido como “kardia” – coração) é o primeiro. Outros mais são: “dam” (sangues), “neshamah” (respiração), “me’im” (vísceras), “janim” (rosto), “ro’sh” (cabeça). 7. Ser imagem e semelhante a Deus Há uma admirável riqueza de expressões na antropologia. Mas sua linguagem não tem a precisão de certas outras línguas e/ou conceitos, como o grego ao falar da constituição do homem em corpo e alma. Pode-se formular ao menos duas questões: 1) mas a bíblia não usa a expressão “homem”? - O que se deve entender então? 2) porque então na Igreja e no cristianismo se usa a palavra “homem” e até as categorias de corpo e “alma”? Façamos uma introdução ao tema, primeiramente. Quase todas as vezes que neste texto a palavra “adão” está escrita em letra minúscula. Nós a temos como um substantivo genérico e coletivo. Não como nome de uma pessoa. Na bíblia, “adão” é usado (562 vezes). A etimologia não é muito segura. Porém, se aceita que ou deriva da raiz “adamah” (terra), em referência ao elemento material, do qual havia sido feito. Ou se relaciona com “adam” (vermelho, escuro, moreno) aludindo a cor escura da pele, da gente médio-oriental. Note – que algumas vezes é usado para designar nominalmente um ser humano – o primeiro dos viventes (cf. Gen 40,25; 5,1-5; 1Cron 1,1). “Adão” na bíblia, diz C. Spicq ,significa a natureza adamitica. Ela vincula os seres humano entre si, nas suas qualidades, história e destino. Este seria o sentido do II Henoc 30,13: “Eu lhe dei um nome composto dos quatro pontos cardeais: Leste, Oeste, Norte e Sul: A para Anatalé, D para Dúsis, A para Arhos e M para MesemBria”. (C. Spicq, Dio e l’uomo secondo il Nuovo Testamento. Roma: Paoline, 1969, pg 183. Veja também meu “Da imagem à semelhança”. pg 53ss). Alguns dizem que “adão” foi feito com um punhado de terra tirado dos quatro cantos do mundo.). á a palavra “ish” significa varão, marido, ser humano. “Ishâh” é o correspondente feminino e designa a mulher, a fêmea. São usados no plural e no singular 2160 e 775 vezes respectivamente. Também, os israelitas usaram a palavra “enõsh” (45 vezes) por indicar o homem, para significar “ser débil” ou ”ser social”; outras vezes tem o sentido de “ser forte”, os homens (todos ou só alguns), humanidade. Como já se afirmou, a bíblia, já se afirmou, não tem a moderna concepção semiótica das palavras. Ela as usa como significados, não como definições ou conceitos. Por outro lado também não é um livro de teologia, mas narra a história da salvação. Por isso, sua preocupação é com o ser humano real e a humanidade toda no processo salvífico. Ela se ocupa do ser humano a partir da história que Deus faz com ele. Ela conta isto ao usar recursos lingüísticos, literários e culturais de sua época. A concepção positivista e filosófica não lhe pertence. Isto, todavia, não significa desinteresse pelo ser humano. Bem pelo contrário. Pois o único interlocutor de Deus,é ele. E a bíblia só descreve o ser humano histórico, marcado pelo seu passado e projetado para o futuro, desde uma concepção teológica. A dramática vida humana sobre a terra, na bíblia, é contada e recontada muitas vezes. Ela adquire um caráter mítico, um caráter simbólico e/ou exemplar, que permitem narrar fatos com significado universal – sobretudo os 11 primeiros capítulos do Gênesis. O ser humano, em síntese é um ser vivente – por obra de Deus – capaz de relacionar-se com ele. De receber uma missão na administração da criação toda. De ser marcado, mesmo na diferença do homem e mulher, por uma igualdade fundamental. Além da missão sobre a terra e a parceria com Deus, ele tem um destino divino. O ser humano, muitas vezes, o é um homem frágil, ambíguo. Torna-se idólatra, abandonando o único Deus, verdadeiro e fiel na aliança comum. Mesmo assim, ele é um ser de cuidados divinos. Deus tem por ele particular solicitude. Apesar das aparências em contrário e da insatisfação diante das respostas tradicionais, ele se convence que Deus lhe prepara um destino ultraterreno feliz. Então é importante retornar a um tema (quase o único, talvez) que se traz da catequese: o ser humano foi criado por Deus a sua imagem e semelhança. A afirmação é encontrada no Gen 1,26-27. E ela se tornou clássica em nossas igrejas: o ser humano é imagem e semelhança com Deus. Mesmo que tenhamos já antecipado que Jesus é a imagem visível do Deus invisível, que ele é o modelo original, “novo” e que só apareceu na encarnação do Verbo – convêm voltar ao tema do ser humano como imagem e semelhança. A bíblia, em geral, usa “quase” como sinônimas estas duas palavras (“selem” e “demut”, em grego). Na patrística, vários Stos. Padres, entre eles Sto. Irineu, deram um sentido diferente: feita à imagem de Deus, o ser humano vai se tornando – pela ação do Espírito Santo – semelhante a ele, até podê-lo ver facea-face. Já é tradição bíblico-histórica ocmpreender-se o ser humano como imagem de Deus. Enunciaremos aqui esquematicamente algumas idéias, que depois você deve aprofundar num bom comentário de bíblia. A palavra “selem” designa o que, mais-ou-menos entendemos por imagem, e “demut” significa a semelhança. “Selem” aparece na bíblia 17 vezes e “demut” 25 vezes. Significa estatua de um ser divino – estatua de deus ou representação de Deus ou representante de Deus. No caso imagem humano representa Deus. Alguns Stos. Padres, “imagem e semelhança” davam-lhe dois sentidos: Sentido funcional: É imagem e semelhança porque o Senhor confiou ao ser humano uma missão/benção. A pessoa humana será o representante de Deus diante da criação toda. É o lugar tenente de Deus. Assim, o que o caracteriza é o agir humano no lugar de Deus e como Deus age. O outro é o sentido relacional: É imagem porque está relacionado a Deus. Daí derivaria a dignidade do ser humano. Só ele pode fazer companhia a Deus. Ele responde e fala com Deus. É seu interlocutor. O “tu” de Deus. Muitos se perguntaram, na história da fé, se a imagem que o ser humano é, está no corpo, na alma, no espírito. As respostas foram as mais diversas. Talvez, a discussão hoje não faça sentido. Como não o fez na bíblia. Importante é afirmar e crer: a) todo homem e toda mulher – independente de qualquer situação – são imagens de Deus; b) por isto, tem confirmado sua dignidade. Em outro sentido, é preciso compreender: a) o ser humano não é Deus, mas sua imagem; b) porque foi criado assim; c) ele é interlocutor de Deus; d) é naturalmente bom, mas ainda não perfeito (nem imperfeito). Deve crescer e se aperfeiçoar; e) a imagem de Deus está em todos e em cada um em particular. O ser humano, porque, é imagem de Deus, não se esgota dentro do universo cósmico. Ele é chamado a transcender-se. O pecado pode até machucar, mas nunca eliminar a imagem de Deus, que cada um traz em si. No ser humano ferido, machucado e empobrecido, também permanece a imagem de Deus – mesmo que mais próximo do Deus crucificado. A imagem de Deus está no todo do nosso ser e, portanto, ela se manifesta, clara e límpida, nobre e santo; ou ferida e empobrecida, idolátrica e pecadora em cada um de nós. É claro que homem e mulher, rico ou pobre, branco ou negro etc., todos somos imagem de Deus. Sendo imagem de Deus, o ser humano sempre refletimos – mesmo se se está em pecado – a sua origem. Em outras palavras somos abertos (a Deus. Somos feitos para a comunhão inter-humana. Somos dotados de liberdade, responsabilidade e comprometidos com o meio ambiente e o cosmo todo. Porém, como podemos “carregar” em nós – seres humanos concretos, corporais -a realidade espiritual que é Deus. Diversos teólogos afirmam que a plenitude da imagem e semelhança com Deus se evidenciará na consumação do mundo. Outros dizem que o Verbo se fez humano para que nos divinizar. Divinização significa também: deificação ou santificação. Para o ser humano atual, desde a teologia, se pode falar da realização plena como ser humano, ou a humanização completa em Deus.De qualquer forma, uma ou outra – além da contribuição humana – é uma radical ação do Espírito de Cristo. E isto é motivo de louvar a Deus. Estas identificações todas são fundamentalmente reveladas e decorrem da Bíblia Sagrada. É oportuno, porém, concluir e, a modo de síntese, acenar a duas questões. A primeiro: a Bíblia revela quem é o ser humano (diante de Deus e dos outros). Mas de modo algum se tem uma teorização sobre o tema. Não se encontra nela um estudo sistemático, nem uma tratação uniforme e localizada. A identificação da pessoa humana está nos milhares de versículos escritos em tempos, linguagens e perspectivas diferentes. Mais complexa é a segunda questão. E decorre da revelação. Pode ser percebida como uma construção ou elaboração da teologia. Estamos falando do conceito pessoa. Se o texto bíblico não sistematiza este tema, se o conceito de pessoa. Uma das maiores contribuições dadas pela Igreja é a concepção de pessoa humana. Tal compreensão é fruto de muita observação e reflexão, que evolui ao longo dos séculos. A modo de uma síntese: UM ESQUEMA AMPLO O esquema a seguir, poderá ajudá-lo a desenvolver melhor seus estudos. Ser uma pessoa significa: a) uma relação única, singular e irrepetível (ninguém é “clonável”); b) subsistir em si e para si – é um sujeito que se auto-possui. Mas nãose fecha sobre si mesma; c) ser aberta ou se transcende para o mundo, para o outro e para Deus (é “socium”); d) viver uma relação radicada na liberdade; e) ter um duplo movimento (de dom e de tarefa) no processo de aperfeiçoamento rumo a Deus. f) ser um mistério paradoxal que não se esgota em si. g) viver sua vida no cotidiano, através do trabalho, dos encontros interpessoais e de seus múltiplos amores, angústias e questionamentos. h) suas respostas às perguntas existenciais são, para além do senso comum, buscadas em quatro âmbitos: na religiosidade (a mais antiga), na filosofia, na literatura e na ciência (a mais nova). h.1.As religiões se originaram diante da realidade frente ao fascínio e ao medo e de perguntas existenciais. Sua base é a fé. h,2, As filosofias surgidas a partir de perguntas de inquietudes humanas, remetem às deduções e intuições onde a vida é o próprio horizonte das questões. Sua base é a razão. h.3.As artes, em suas diversas manifestações, apontam, de modo ficcional, para os anseios humanos que recriam as explicações da vida (humana). Sua base é a imaginação. h.4 As ciências (modernas), surgidas da curiosidade humana, estabelecem, em múltiplas direções, perguntas e explicações sobre a realidade que nos cerca. Sua base está na experimentação e no controle da verificação. h.5.Todas estas respostas, desproporcionalmente, entremisturam mitos, crenças, evidencias e fantasias. É comum afirmar-se que tudo quanto existe tem um começo (inicio) que se perde na memória dos tempos. Em geral, usa-se a expressão “no princípio”; o que denota de imediato a história – portanto também a mudança. 1. Os que privilegiam a religiosidade estabelecem deus(es) criado(s) à sua imagem ou aceitam um deus de quem são imagem. Não poucos crêem que antes do “princípio” só existia(m) deus(es) – que está(âo) na fonte, origem e sustentação de tudo. Portanto, acima de tudo. 2. Uns, inclusive, crêem que Deus pode dialogar com os homens. 3. Desde alguns conhecimentos – por sua própria natureza ontológica – só se consegue afirmar a casualidade (acaso) da origem e permanência de todas as coisas existentes – incluindo aí sua “não-necessidade”. 4. Outros conhecimentos, sobretudo a partir da fé, indicam uma teleologia (finalidade, direcionamento) de tudo, num processo que envolve até o caos, o acaso, as necessidades, as mudanças de direção (transformações), vitórias, fracassos, correções de rota etc. 5. Para os cristãos, tendo em conta todos os outros saberes, há uma história de salvação, que tem seu começo e seu fim (completude) em Deus. Isto comporta uma história dinâmica e evolutiva. 6. Tal história não é nem linear (retilínea) nem evidente. É como um ponto de partida (Big Bang?! com estilhaços que partem em muitas direções. Ou como uma árvore que cresce frondosa com múltiplos ramos). 7. Tal processualidade não depende da vida do ser humano. Não é ele quem controla ou limita o processo. O ser humano mesmo é apenas mais uma das bilhões de vida que compõem este pluri ou multi-verso. 8. A vida é um processo que se auto-organizou(a) em formas incalculavelmente variadas. Uma delas é a vida humana, que surgiu retrospectivamente dos mistérios que ela comporta (o origem da matéria, o surgimento da própria vida, o surgimento da consciência). Ou seja: da matéria inanimada à matéria viva, da matéria viva à hominização, da hominização à consciência, da vida consciente (humanização), daí ao próximo salto (?!) ainda não dado (espiritualização ou cristificação). 9. Este processo, de aparente acaso, na verdade – para os cristãos – é acompanhado por Deus, Pai do Verbo encarnado. Parece que Deus “joga dados” na sua criação continua e ininterrupta. 10. A teologia, a partir da Bíblia sagrada, em geral detém-se sobre o ser humano (chamado “moderno” pelas ciências contemporâneas). Crê-se – e isto é um ato de fé – que fomos criados por Deus à sua imagem, para participarmos de sua glória (viver definitivamente nele). 11. Somos uma unidade radical e, ao mesmo tempo, uma coletividade, que caminha nos percalços da vida, rumo a Deus (télos). Nossa origem (cósmica e individual) bem como a consumação de nossa vida está ligada ao Verbo encarnado – nosso modelo e arquétipo. 12. Para resguardar esta origem e destinação divinas, o judaísmo e o cristianismo propõem explicações (hermenêutica) inclusive buscadas em outros saberes, Todas as nossas linguagens e explicações (hermenêutica) são limitadas e circunstanciadas, pois que – como cremos –só em Deus encontra(re)mos o absoluto significado de toda a criação. 13. A simplista compreensão do ser humano em suas dimensões de matéria e espirito (concepção dualista) é hoje substituída por uma visão unitária, mas multidimensional [dimensão social, pessoal (eu), psíquica, emocional, material, histórica, social, cósmica etc.]. 14. Esta unidade global (ser humano) – fruto do desenvolvimento cósmico – é uma criação personalizada e personalizante de Deus. No homem, Deus projetou sua imagem. E o homem tornou-se vida sagrada, única, amada por si só, de modo inconfundível. Por meio de Cristo, fomos feitos filhos de Deus, irmãos entre nós e administradores do criado. 15. Desconhecemos o “momento exato” da passagem da animalidade para a humanização. Desde as ciências naturais se sabe que a hominização foi (é) um processo, onde inclusive não há ruptura radical e exclusiva, como um salto dos primatas para o homem moderno. 16. Do “homo ergastus” ao homem moderno, houve um crescendo, onde a vida foi se humanizando até nós. 17. Desconhecemos o significado salvifico do desígnio de Deus sobre aqueles tão próximos de nós (p.ex.: o neandertalense, o homo floresiense etc.) 18. Desde a revelação podemos entender que a criação de Adão (ser humano) é um processo de “desdobramento de fibra por fibra no seio da história” acompanhado por Deus até a plenitude (escatológica) dos tempos. 19. O “velho homem” encontrou no Verbo encarnado o “homem novo”. O ser humano conhecendo Cristo Jesus, descobriu em si quem ele próprio é (ou será, quando se completar o plano de Deus). 20. A encarnação do Verbo é, para os cristãos, mais um passo da criação/evolução. É preciso lembrar o adâmico Jesus de Nazaré é filho de Maria portanto da humanidade - graças a sua ressurreição, foi o revelador definitivo de quem é o ser humano em plenitude. 21. Em Jesus Cristo, a natureza humana atingiu já seu fim último: ver e viver em Deus, pois a imagem torna-se semelhante a Deus. Atinge sua perfeição. 22. Quer dizer: só em Deus o ser humano chega a ser o que é. Deus, que o quis, na verdade, tinha um propósito: o ser humano foi feito (criado) para que participasse de Sua glória, depois de viver no cosmo, como um de seus elementos. 23. Este mistério, já antecipado no Filho ressuscitado, indica a completude (consumação, o chegar ao fim) da evolução cósmica: viver eternamente no amor de Deus. Aliás, Deus é amor.