Anais da Semana de Pedagogia da UEM ISSN Online: 2316-9435 XXI Semana de Pedagogia IX Encontro de Pesquisa em Educação 20 a 23 de Maio de 2014 ALTERIDADE E FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO LATINOAMERICANA - A PARTIR DE LEVINAS E DUSSEL AZEVEDO, Luís Fernando [email protected] CALSA, Geiva Carolina (Orientadora) [email protected] (UEM) Educação e diversidade INTRODUÇÃO O caráter ético da Filosofia da Libertação, ao qual me deterei nesta pesquisa, é oriundo da proposta de discorrer sobre a imprevisibilidade do ser humano, do valor de sua idiossincrasia, do respeito ao seu contexto particular e da não-ruptura com a origem de sua cultura. Sobre a origem da imposição de uma cultura a outra, dentro do processo de fundamentação da civilização humana, podemos considerar a teoria de Rousseau na qual se identifica dois momentos de coerção original do homem: o primeiro se deu quando ao cercar um terreno o individuo encontrou pessoas que se subordinaram a esta “falsa” afirmação de propriedade; e no segundo momento, a dominação se deu por conta dos aspectos físicos destes que afirmavam serem donos das terras e que tinham porte para defendê-las. De acordo com essas afirmações o domínio do homem sobre o Outro passou a ser condição para o avanço e o progresso humano. Os meios para alcançar tais conquistas se dividiram em dois tipos de coerção – física e mental. A partir do século XVI com o desenvolvimento do sistema capitalista de produção, contudo, a tendência vem sendo de crescente coerção por meio da propriedade dos meios de produção: força de trabalho e maquinaria. A partir desse pano de fundo, lembro que desde minhas primeiras experiências sociais notei indícios de subserviência perante os demais. Durante um tempo pensava que talvez esta característica fosse inata. Esse foi o pensamento recorrente durante minha adolescência na qual em um microcosmo me deparava com a diferença.Somente mais tarde, ao ter contato Universidade Estadual de Maringá, 20 a 23 de maio de 2014. com o mundo externo, mais amplo, notaria que aquele local onde minha família se constitui era base de minha subordinação. Nele os valores estavam definidos a partir do capital, o qual não nos apetecia. A partir da instrução filosófica incipiente recebida no colégio me aventurei emleituras que possibilitaram um olhar diferente sobre a minha realidade e introduziram inquietações filosóficas a cerca daquele todo. Anos mais tarde, ao investigar a respeito de uma filosofia que fizesse referencia a essa forma de sentir e pensar a realidade me deparei com o filósofo argentino Enrique Dussel, o mesmo que será “objeto” desta pesquisa. Em seus escritos propõe uma filosofia que aborde a possibilidade do Outro, da alteridade que não é o centro do poder, é periférico, é marginal. Em seu discurso afirma “escrever da periferia para o homem da periferia e dirigi-se ao centro” a partir de uma filosofia latino-americana independente dos poderes geopolíticos. Encontro em Dussel a reverberação do que sinto e penso quando afirma que a filosofia “não nasceu dentro do espaço político central, a filosofia nasceu nos espaços periféricos em seus tempos criativos”. A partir dessa inquietação sobre o poder central como representante de uma totalidade, visamos em contrapartida, o outro, estabelecido pelo filósofo argentino, como o oprimido na dominação exercida na atividade colonial, de maneira geral, na história do nosso pais, na América latina, na negação dos índios e na submissão da mulher, dentre outros aspectos que não se encontram representados, e automaticamente são direcionados à margem. Encontra-se como escopo dessa pesquisa a analise e o desenvolvimento teórico de Enrique Dussel que dialoga com uma ética do cotidiano, delineada a partir da contribuição do debate travado com filósofos como Apel, Hinkelammert, Kant, Marx, Habermas,entre outros e que tem como referência a vítima do sistema-mundo. No entanto, discutiremos aqui sobre o conceito de alteridade e o momento de sua cisão com a idéia de Levinas. Visando discorrer sobre a aplicação do conceito para retomar a vida do outro, o marginalizado, com o intuito de a partir das lentes do autor compreendermos como e qual o papel da filosofia nesse processo de libertação. DESENVOLVENTO A ALTERIDADE EM LEVINAS Oriundo de um contexto pós-guerra, tanto as guerras coloniais quanto a guerra fria, Levinas, se depara com as correntes que cunhavam seus pressupostos históricos, a saber, Marxismo, existencialismo, mais tarde o estruturalismo, movimentos dominantes no cenário Frances. Considerando que logo de inicio suas idéias não ganhavam público, só a partir de meados dos anos 70 que ganha espaço em meio a discussão sobre a totalidade, a partir da 2 idéia de uma reapropriação do sujeito - entenda-se aqui uma busca pela autonomia, o agir por si mesmo - frente à peça sem consciência pré-determinada como outros filósofos descreviam o estruturalismo do sujeito até então. Com seus princípios racionais apresentando caráter de verdade unívoca, a filosofia ocidental que encontra sua fundamentação na ontologia, foi apontada por Levinas como a causa da dominação do eu sobre outro. A violência contra o outro é segundo o autor, uma herança da forma como desde Platão a filosofia se estabeleceu no oriente. Sendo o escopo do pensamento lógico filosófico o si mesmo, o ser enquanto ser, e assim fazendo do outro o esquecimento. Acredita Levinas que desde os gregos se instalou um discurso marcado pela dominação, sendo que na antiguidade e na idade media o marco foi o Ser, substituído, mais tarde na modernidade, pela idéia do eu, ainda preservando o vigor da totalidade, excluindo a diversidade. Referente ao Ser mais tarde a modernidade acrescenta uma função reflexiva a este, dando também um sentido ao mundo, vindo à tona a razão. A partir das lentes do racionalismo o Eu está carregado de uma preponderância geradora de violência, ou seja, conhecer torna-se sinônimo de dominar, excluir como corrobora a comentadora ROLANDO R.“Se conhecer quer dizer tomar posse, dar forma, reconduzir ao uno, comandar significa ‘agir sobre uma vontade’, ainda que violentamente, até manipular e aniquilar por meio da guerra”. Trata-se de uma concepção que parte do Ser e encontra em Si mesmo o seu fundamento, em outras palavras, o Eu torna-se sujeito quando pensa. “A filosofia ocidental foi, na maioria das vezes, uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo, pela intervenção de um termo médio e neutro que assegura a inteligência do ser.” Segundo Levinas, “a filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não questiona o Mesmo, é uma filosofia da injustiça”, ou seja, na proposta do autor o eu deve se colocar a serviço do outro, visto a violência de toda a dominação histórica. O interesse de Levinas consiste em apresentar como a disposição ontológica desenvolvida na filosofia ocidental contribuiu para a negação do outro, ou seja, sua proposta é a implantação de um novo paradigma para o ocidente. Esse paradigma seria baseado no reconhecimento do outro, de sua alteridade, isto é, não significa negar a subjetividade do eu. O autor ainda apresenta outro aspecto que deve nortear esse novo paradigma entre o Eu e o Outro, ou seja, o serviço do eu em direção ao outro é caracterizado por uma responsabilidade do eu que deve transcender os interesses do eu. Haja vista que justamente pela idéia de desinteresse (aqui compreendido com um sentido próprio para levinas, ou seja, 3 dês – prefixo negativo -, inter – dentro -, esse – ser-, isto é, não dentro do ser) pressupondo um não interesse pela reciprocidade, e na responsabilidade ao outro que eu se afirma, considerando que para o filosofo, o humano é constituído a partir da relação ética, isto é, pela alteridade De fato, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade, isto é, a partir da posição ou da de-posição do eu soberano na consciência de si, deposição que é precisamente a sua responsabilidade por outrem. (...) Tal é a minha identidade inalienável de sujeito. (LEVINAS, 1988, p. 93) DE LEVINAS A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO DE DUSSEL. A razão desta influencia levinasiana na filosofia da libertação se dá por meio de uma construção do autor lituano que permite apoiar e fundamentar uma nova consciência de dependência que se formava na America latina. Dussel apresenta o encontro com a Filosofia de Levinas do seguinte modo: Estávamos ministrando um curso de ética ontológica dentro da linha heideggeriana na Universidade Nacional de Cuyo (Mendonça, Argentina), quando, em grupo de filósofos descobrimos a obra de Emmanuel Lévinas, Totalité et Infinit. Essai sur l’Exterité. A minha ética ontológica passou a ser, então, Para uma ética de la liberación latinoamericana (DUSSEL, 2000, p. 17-18). A intersecção de Levinas e dussel pode ser vista pelo fato do primeiro, Levinas, se ocupar em elaborar uma crítica a filosofia ocidental em sua globalidade, apresentando, assim, como alternativa sua proposta filosófica centrada numa metafísica e antropologia da alteridade. O judeu lituano (…) viveu a “experiência” traumática de cinco anos de seu corpo vulnerável concreto, no campo de concentração nazista (Stammlager). Foi uma vítima do holocausto judeu no coração da modernidade. (DUSSEL, 2000, p. 363) Foi a partir dessa experiência que o filosofo lituano percebeu que o pensamento da modernidade é um pensamento violento, totalitário, impossibilitando de se pensar o diferente, o outro. Levinas aponta que “Não é, portanto, uma relação com o outro como tal, mas a redução do outro ao mesmo” (LEVINAS, 2008, p. 33). Sendo este o contexto em que o filosofo lituano propõe a ética como filosofia primeira, ou seja, a partir da alteridade do outro. 4 Dentro do pensamento levinasiano ao assumir o outro ou esse outro aparecer como uma responsabilidade é um princípio que precede qualquer consciência reflexiva, em outras palavras, este princípio possibilita à filosofia da libertação estabelecer o outro como base da afirmação do eu próprio. Sendo esse pensamento que permite com que Levinas apareça como um dos principais suportes teóricos da Filosofia da Libertação latino-americana. Porque a experiência inicial da Filosofia da Libertação consiste em descobrir o ‘fato’ opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem ‘senhores’ de outros sujeitos [...] O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados pela publicidade) não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente, a ‘estima de si mesmo’. O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clamando por justiça: – Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes (DUSSEL, 2000, p. 18). A conexão entre os autores é marcada a partir da originalidade que Dussel observa em Levinas: trata-se da descoberta da alteridade, ou seja, o outro que está no mundo e é exterior ao meu mundo. Para Dussel, Levinas foi quem mostrou como que a tradição filosófica segue o primado grego do ser, o ser como definido, o permanente. A RUPTURA COM LEVINAS Para Dussel, embora, Levinas tenha abordado sobre a alteridade, ele não contempla por completo a temática. Segundo Dussel, a superação da modernidade e da totalidade ontológica foi possível a partir de Levinas, ruptura que vai contra a totalidade de “o mesmo”. No entanto, aponta Dussel, que essa superação é incompleta. Dussel, então, se debruça num repensar o discurso levinasiano. Alguns comentadores, como Carlos Beorlegui, apontam que algumas das críticas feitas por Dussel são um tanto superficiais, já outras indicam com claridade a distancia do pensamento de ambos. Sendo assim, Dussel considera como insuficiente o pensamento levinasiano por este ser uma filosofia européia, ou seja, considera Dussel que a diferença entre suas abordagens é inclusive por ser a referencia do Outro de Levinas a um europeu, que se faz cúmplice da dominação eurocêntrica sobre o resto do mundo - a exemplo os latinos americanos que sofrem tal dominação -. O outro apresentado pelo filosofo lituano, diz Dussel, não pensa que poderia ser um índio, um africano, um asiático. Desse modo, concebemos, nós, os latinos americanos, como o 5 outro, o que vai à contramão a totalidade européia, trata-se do povo pobre e oprimido dominado pela oligarquia. CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO DE DUSSEL O intento do autor neste desenvolvimento é apresentar, em primeiro momento, a dominação histórica da cultura do centro solidificada a partir da cultura européia, isto até meados do século XX, quando dá lugar a cultura norte-americana. O que preocupa nosso autor é que o pensamento crítico surgido na periferia direciona-se sempre ao centro e este que ocupa o centro passa a ser considerado como a única realidade, abrigando em seus limites o não-ser, o sem sentido. Sendo, segundo Dussel, o propósito inicial da filosofia da libertação Descobrir o ‘fato’ opressivo da dominação, em que sujeitos se constituem ‘senhores’ de outros sujeitos [...] O pobre, o dominado, o índio massacrado, o negro escravo, o asiático das guerras do ópio, o judeu nos campos de concentração, a mulher objeto sexual, a criança sujeita a manipulações ideológicas (também a juventude, a cultura popular e o mercado subjugados pela publicidade) não conseguirão tomar como ponto de partida, pura e simplesmente, a ‘estima de si mesmo’. O oprimido, o torturado, o que vê ser destruída a sua carne sofredora, todos eles simplesmente gritam, clama o por justiça: – Tenho fome! Não me mates! Tem compaixão de mim! – é o que exclamam esses infelizes (DUSSEL, 2000, p. 18). A partir da citação depreende-se que a filosofia da libertação tem como objetivo analisar o processo pelo qual a dominação se dá. A ética da alteridade, assumida como principio pela Filosofia da libertação, abre-se ao outro como um mistério inesgotável. Na filosofia de Dussel, essa abertura ao outro tem o caráter de escuta, como se ouvíssemos o outro dizendo que tem fome, mas não se trata de uma fome por falta de pão, mas por se tirar do faminto o pão produzido por ele próprio (característica marxiana, dá qual, não nos aprofundaremos nesta pesquisa). O pensador argentino considera que essa atitude de escutar o outro se chama consciência ética. Diz Dussel, “somente quem tem consciência ética pode aceitar o questionamento a partir do critério absoluto: o outro como outro na justiça” (DUSSEL, 1977a, p. 65). Trata-se de um reconhecimento do outro por meio da consciência, ampliando, dessa maneira, o olhar diante a existência das particularidades e diversidades humanas, permitindo que se considere a vida como um processo / movimento de interação. Uma nova perspectiva de leitura da realidade que se advém deste principio. 6 Compreende-se nesse processo de contato com o outro um caráter dialético, contudo, o filósofo busca repensar a dialética. Dussel ao remontar o trajeto da dialética observa que o “âmbito próprio da dialética é o ontológico” (1977: 162). A dialética assim é apresentada a partir do pensar crítico reflexivo de Dussel como um outro totalizante que foi estabelecido como um modelo universal, trata-se de uma redução a totalidade. No intuito de edificar um método baseado na alteridade, e que logo não se reduza ao mesmo, Dussel desenvolve a transposição da dialética a analética. O método do qual queremos falar, o ana-lético, vai mais além, mais acima, vem de um nível mais alto (aná -) que o do mero método dialético. O método dalético é o caminho que a totalidade realiza em si mesma: dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes. Trata-se agora de um método (ou do domínio explícito das condições de possibilidade) que parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade; que parte, então, de sua palavra, da revelação do outro e que confiado em sua palavra atua, trabalha, serve, cria. O método dia-lético é a expansão dominadora da totalidade desde si; a passagem da potência para o ato de “o mesmo”. O método analético é a passagem do justo para o ato de “o mesmo”. A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dialética; tinha, porém, razão Feuerbach ao dizer que ‘a verdade dialética’ (há, pois, uma falsa) parte do diálogo do outro e não do ‘pensador solitário consigo mesmo’. A verdadeira dialética tem um ponto de apoio analético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dialético (1986: 196-197). CONSIDERAÇÕES FINAIS A construção proposta pelo autor de uma consciência analética crítica fundamenta uma crítico-reflexão, isto é, o sujeito construído a partir das relações tem a experiência como fundamentação, sendo a história o pano de fundo a ser percorrido. Busca-se perceber o processo pelo qual gera a exclusão, que desconsidera o sujeito autóctone – nativo -. Portanto, segundo Dussel, a filosofia como prática da libertação pede do filósofo que com o resgate da vida dos oprimidos, haja a vista que neste contexto o filosofar é uma busca na eticidade baseada na escuta do outro. A filosofia, o filósofo, desenvolve ao outro sua própria revelação como renovada e re-criadora, crítica, interpretante. O pensar filosófico não aquieta a história expressando-a pensativamente para que possa ser arquivada nos museus. O pensar filosófico, como pedagogia analética da libertação latino- 7 americana, é um grito, um clamor, é a exortação do mestre que faz reincidir sobre o discípulo a objeção que antes havia recebido; agora, como revelação reduplicadamente pro-vocativa, criadora (1986: 211). REFERÊNCIA DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão. 4ºed. Petrópolis: Vozes. 2000. ______. Filosofia da Libertação na América Latina. Piracicaba: UNIMEP; São Paulo: Loyola, 1977. ______. Método para uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986. ZIMMERMANN, Roque. América Latina – O não-ser: uma abordagem filosófica a partir de Enrique Dussel (1962-1976). Petrópolis: Vozes, 1987. LEVINAS, E. Totalidade e infinito: ensaio sobre a exterioridade. Trad. José Pinto Ri- beiro. Lisboa: Ediciones 70, 2000. BEORLEGUI, Carlos. La influencia de E. Levinas en La Filosofia de la liberación de J.C. Scannone y de E. Dussel. ROLANDO, Rossana. Emmanuel Levinas: Para uma sociedade sem tiranias. Educ. Soc. vol.22 no.76 Campinas Oct. 2001. 8