SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi Vice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Diretor: Prof. Dr. Francis Henrik Aubert Vice-Diretor: Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz FFLCH/USP CONSELHO EDITORIAL DA HUMANITAS Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia) Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais) Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia) Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia) Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História) Profª. Drª. Beth Brait (Letras) V ENDAS L IVRARIA H UMANITAS -D ISCURSO Av. Prof. Luciano Gualberto, 315 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: (011) 3091-3728/3796 H UMANITAS -D ISTRIBUIÇÃO Rua do Lago, 717 – Cid. Universitária 05508-900 – São Paulo – SP – Brasil Telefax: (011) 3091-4589 e-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/humanitas Humanitas FFLCH/USP – maio 2002 ISBN 85-7506-063-5 Raquel Kritsch SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO 2002 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Copyright © 2002 by Raquel Kritsch É proibida a reprodução parcial ou integral, sem autorização prévia dos detentores do copyright. Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH/USP Ficha catalográfica: Márcia Elisa Garcia de Grandi – CRB 3608 K92 Kritsch, Raquel Soberania: a construção de um conceito / Raquel Kritsch. São Paulo : Humanitas/FFLCH/USP, 2002. 572p. Originalmente apresentada como Tese (Doutorado – Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2000). ISBN 85-7506-063-5 1. Estado (Política) 2. Igreja e Estado 3. Soberania 4. Teoria Política Medieval I. Título CDD 320.157 320.9 HUMANITAS FFLCH/USP e-mail: [email protected] Telefax: 3091-4593 Editor Responsável Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento Coordenação Editorial e Capa Mª. Helena G. Rodrigues – MTb 28.840 Diagramação e Projeto Gráfico Selma Mª. Consoli Jacintho – MTb 28.839 Revisão Simone D’Alevedo AGRADECIMENTOS Este trabalho, agora transformado em livro, foi apresentado como tese de doutorado junto ao Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, em dezembro de 2000. Como toda longa pesquisa, envolveu inúmeras pessoas. Agradeço a todos que, direta ou indiretamente, apoiaram e colaboraram para este trabalho. De modo especial, contudo, nomeio: Oliveiros S. Ferreira, Rolf N. Kuntz, Cicero Romão de Araújo. Não poderia deixar de retribuir ainda o apoio e a seriedade dos professores que compuseram a banca: Luís Alberto de Boni, Maria das Graças M. do Nascimento, Renato Lessa e Gabriel Cohn, cujos comentários muito enriqueceram a revisão do trabalho. E a José Antonio C. R. de Souza, que tanto estimulou esta publicação. Minha gratidão também aos professores e colegas do Grupo de Teoria Política, marca indelével em minha memória e em minha formação. Aos amigos Adrián, Alberto, Floriano, Lena, Márcio e Paula pelo auxílio e o incentivo. E, do outro lado do Atlântico, a Claus, Manfred e Saulo. Ao Ricardo pelo zelo das letras. Ao time da Humanitas, o esforço e a dedicação. A Alexandre e Rebeca, o exercício da tolerância e a fraternidade. À Consuelo, a memória de dias felizes. A José Roberto e Iracema, Rui e Dália, o apoio incondicional. A Johanna e Josef Hofbauer, o apreço. Ao Andreas, o muito. SUMÁRIO Prefácio: A gênese de um conceito (Newton Bignotto) ......... 13 Introdução: Os nomes e as coisas .................................... 19 Capítulo 1: A Questão das Investiduras e seus desdobramentos ..................................................................... 49 I. Antecedentes históricos ................................................ 51 II. Códigos e espadas ........................................................ 70 1. Os fundamentos da reforma eclesiástica ................ 75 2. A radicalização do partido gregoriano ..................... 85 3. Regnum e sacerdotium: os fundamentos da disputa pelo poder supremo ...................................... 93 III. Poder e Direito: império e papado no século XII .......... 110 Capítulo 2: O longo século XII ........................................ 129 I. II. III. IV. V. Uma introdução ao Século do Renascimento ............ 131 O surgimento da Universidade ................................. 138 O direito romano e o direito canônico ....................... 148 As traduções e o fomento da filosofia natural ............ 155 1. Árabes, judeus e gregos pós-helênicos: a herança do Ocidente medieval ............................. 159 2. A cristandade latina e o naturalismo político ........ 169 O desenvolvimento da burocracia e o surgimento da Comuna ............................................................. 182 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Capítulo 3: A política em transformação ......................... 199 I. O século XIII e o declínio do feudalismo .................... 201 II. A construção da teoria hierocrática do poder ............ 206 III. O corpus aristotélico dos latinos ............................... 231 1. Filosofia natural e a base da investigação científica .................................................................... 232 2. Ética e a constituição do justo ............................. 236 3. Da primazia do bem comum: a especificidade da política .......................................................... 244 Capítulo 4: Tomás de Aquino, leitor e comentador dos antigos ...................................................................... 261 I. Os fundamentos aristotélicos da metafísica tomista ................................................................... 263 II. A ética e o princípio da ação moral ........................... 285 III. Lei e Direito: a natureza mediada pela razão ............. 301 1. Lei: uma ordenação hierárquica da razão com vistas ao bem comum ......................................... 303 2. Justiça: um critério de ordenação dos iguais com vistas ao bem comum .................................. 323 IV. A política do Doutor Angélico ................................... 333 Capítulo 5: A hora dos reis ............................................ 367 I. Desenvolvimentos do processo de centralização monárquica ............................................................ 371 II. Bonifácio VIII e Filipe, o Belo: princípios em disputa ................................................................... 383 III. Egídio Romano e as raízes do absolutismo monárquico ................................................................. 392 8 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO PREFÁCIO DE UM CONCEITO 1. Do poder do príncipe eclesiástico .......................... 399 2. Dominium e coerção: o dom de Deus e o próprio dos homens ................................................. 403 3. Da plenitude de poder e da jurisdição do governo eclesiástico ................................................ 429 IV. João Quidort e os princípios da monarquia constitucional ................................................................ 436 1. Da força da palavra e o poder das armas .............. 439 2. Dominium e jurisdição: o bem privado e a justiça comum ........................................................ 457 3. O poder político humanizado ............................... 474 Final: O poder sem pecado ............................................. 493 I. Marsílio de Pádua e a supremacia da comunidade política .................................................................. 496 II. Guilherme de Ockham, o indivíduo e os direitos humanos ................................................................... 511 III. A herança e o inventário .......................................... 534 Apêndice ....................................................................... 537 “Prólogo” de Tomás de Aquino à Política de Aristóteles (Tradução) ............................................ 539 Liber primus (Prolugus), de Tomás de Aquino (texto latino) 545 Bibliografia ................................................................... 547 Fontes primárias ..................................................... 549 Fontes secundárias ................................................. 552 9 À minha avó Jeanette Martha Josefine Anna Kritsch (In memoriam) A GÊNESE DE UM CONCEITO Newton Bignotto Prof. Dr. Adjunto do Depto. de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais O conceito de soberania é com freqüência associado pelos historiadores da filosofia política ao nome de Jean Bodin. Ao formular a idéia de que a soberania é “a potência absoluta e perpétua de uma república”,1 ele abriu um campo de investigação que seria trilhado por uma boa parte dos autores, que mais tarde iriam se ocupar com a questão da origem e dos fundamentos do poder. A partir do momento em que o caráter humano da legislação tornou-se evidente, passou-se a buscar as maneiras de assegurar sua estabilidade e sua duração, num mundo que não podia mais contar com a certeza da emanação divina das formas de dominação. A aposta de Bodin num soberano absoluto, no entanto, não resolveu o problema posto pela afirmação de um poder inteiramente apoiado em raízes seculares. O pensador francês sabia que o príncipe, que formula leis e exige obediência, está ele mesmo sujeito às leis da natureza e aos comandos divinos. Encontrar os limites da soberania e definir sua relação com a crença dos homens no poder transcendente de Deus passou a ser um desafio para quase todos os pensadores que iriam se ocupar da matéria depois dele. Em Bodin o termo soberano 1 BODIN, Jean. Les six livres de la République. Livre I, chapitre VIII. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO alcança uma conotação definitiva, que ressoa até hoje no vocabulário da filosofia e da ciência política. Hobbes foi um dos que ajudaram a explorar as terras descobertas pelo jurista francês. Buscando constituir uma ciência da política baseada na razão e na descrição correta da natureza humana, ele soube como poucos analisar os vínculos que unem o medo original dos homens e a demanda por segurança que está, segundo ele, na raiz da constituição dos Estados. Nessa ótica, o soberano se estabelece por consentimento mútuo pelo claro desejo de todos de fugir da instabilidade imposta pela natureza aos que vivem isolados. Com o pensador inglês, o tema se vincula a discussões filosóficas que ainda não estavam presentes em Bodin. Ao se apoiar sobre um estudo da natureza humana para encontrar os fundamentos do contrato social, Hobbes forja uma compreensão da vida política que acaba em definitivo com a idéia de que o poder temporal possa encontrar seus fundamentos em uma ordem transcendente. Seria longo enumerar todos os pensadores que iriam fazer da soberania, tal como compreendida pelos dois autores, a pedra de toque de suas investigações sobre a natureza da política. Sob o manto das discussões sobre o contrato social se abrigaram quase todos os que se dispuseram a investigar as raízes temporais do poder. Se a preocupação com a religião segue habitando o coração da filosofia moderna, a idéia de que “todo poder vem de Deus” perdeu sua capacidade explicativa, deixando uma lacuna a ser preenchida com uma visão laica do mundo político. As considerações anteriores, que refletem uma visão comum entre os historiadores, podem induzir o leitor a acreditar que o estudo da gênese do conceito de soberania na modernidade não pode seguir outro caminho além do sugerido. De fato, não há como negar a posição de destaque ocupada pelas obras dos pensadores que citamos e o fato de que o tema do contrato social, tal como elaborado por eles, é central no pensamento político moderno. Apesar dessas evidências, alguns historiadores, menos convencidos pela ar14 PREFÁCIO gumentação dos que asseguram que uma importante ruptura ocorreu no século XV, passaram a rastrear no passado medieval uma série de discussões e debates que parecem colocar em questão a tese afirmada do surgimento do conceito de soberania com Bodin. Dentre eles, devemos destacar Walter Ullmann que numa série de livros e artigos procurou demonstrar que ao longo de toda a Idade Média encontramos nos juristas e em muitos filósofos discussões que não apenas já colocam o problema da origem das leis do ponto de vista de um fundamento humano, mas ainda ajudaram a tornar corrente o uso de termos como “soberano”, na mesma acepção que será adotada pelos modernos. Se fôssemos obrigados a tomar partido nessa discussão nos veríamos na embaraçosa condição de quem deve optar entre duas hipóteses que parecem razoáveis. Escolhendo a primeira via, deixaríamos de lado o resultado de pesquisas acuradas e sérias, para afirmar o primado da idéia de ruptura na história das idéias. Nesse caso, não se trata de dizer que as pesquisas dos medievistas são inúteis, mas simplesmente que a arqueologia de uma idéia, baseada na descoberta de proximidades de significados, não é o caminho adequado para encontrar as raízes de um conceito. Dizendo de outra forma, isso corresponde a afirmar que apesar da filiação de Bodin aos debates jurídicos dos bartolistas, há em suas teses algo que as diferenciam inteiramente dos antigos juristas. Nessa lógica, basear-se em fontes antigas, e mesmo citá-las o tempo todo, não garante continuidade entre hipóteses. Se de fato há continuidade, ela não explica a concepção de soberania moderna tal como formulada por vários autores. Na segunda via, a pesquisa minuciosa de textos nos quais o termo “soberano” aparece, aliada a outras estratégias investigativas, parece conduzir a uma afirmação da origem medieval do conceito de soberania, ao lado da progressiva afirmação dos Estados nacionais e da desmontagem das velhas categorias, que haviam assegurado a estrutura de justi15 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ficação da respublica christiana. Nesse caso, não há porque falar em ruptura na modernidade, mas sim em finalização de um processo do qual é possível conhecer os passos fundamentais, muitas vezes em detalhes. Para os defensores dessa tese fica sempre o desafio de mostrar de que maneira a modernidade veio a se diferenciar do período anterior e de apontar as razões pelas quais a idéia de uma ruptura com o passado, pelo menos no plano conceitual, deve ser tratada como uma mera quimera de historiadores. No entanto, não há como negar que nessa chave os vínculos com o passado esclarecem muitas dúvidas, que permanecem quando o investigador se dedica a afirmar o caráter de novidade das teses de Bodin. O trabalho de Raquel Kritsch proporciona ao leitor a rara oportunidade de freqüentar a querela entre “modernos” e “medievais” sem forçá-lo a adotar uma tese radical sobre a questão. Como observa a autora, o conceito de soberania conheceu uma longa gestação e é o processo dessa gestação que lhe interessa em primeiro lugar. Ora, no lugar de buscar o fio único que teria servido de guia para o tecido do problema ao longo dos muitos debates que povoaram a Idade Média sobre o tema da origem e do fundamento do poder temporal, o estudo de Raquel se emprega em desfazer o equívoco dos que acreditam chegar a uma única solução. Apoiado em evidências textuais, o livro vai montando um mosaico que, sem ser uma coleção desconexa de peças, não pode ser conhecido a partir de um único ponto de vista. Ao longo do livro, o leitor vai sendo apresentado não apenas a textos teóricos e filosóficos, mas a uma série de documentos, que atestam a maneira como disputas entre o Papado e o Império impulsionaram os defensores dos dois poderes a buscar novas armas em campos variados do saber. Em particular, a autora, no rastro das teses de Ullmann, mostra com clareza a importância do Direito como campo de combate entre os poderes. Regnum e Sacerdotium compuse16 PREFÁCIO ram um campo de batalhas no qual as escaramuças foram mais freqüentes que as guerras abertas. Ao golpe de decretos e bulas, os problemas foram se delineando e a idéia de soberania se construindo. Mas o leitor que espera uma demonstração linear e causal de como se chegou a Bodin deixará de lado a riqueza do estudo que examina. Raquel Kritsch é herdeira de um século que viu transformar a face das análises sobre a Idade Média. Servindo-se do resultado da pesquisa de autores como Le Goff, Kantorowicz, Nederman e de tantos outros, ela apresenta as principais discussões em vínculo estreito com a intricada história política medieval. Sem pretender escrever uma análise global do período que examina, a autora não desconsidera nunca o fato de que o debate de idéias no período medieval tem, sobretudo no tocante aos temas políticos, uma grande peculiaridade. Misturar textos jurídicos, decretos e textos filosóficos é parte de uma estratégia de alargamento do campo de compreensão do problema que examina. Dessa maneira talvez ela abdique de conclusões mais peremptórias, mas conserva todo o frescor do tema que investiga. Talvez pudéssemos retirar como uma lição preciosa do estudo da gênese de um conceito como o de soberania, o fato de que, para encontrarmos uma afirmação precisa tanto da novidade quanto da continuidade de um conceito, somos obrigados a esquecer a complexa articulação entre a produção teórica e a vida política. Dessa maneira, tomando como referência apenas textos pertencentes a um dado gênero literário, podemos chegar a conclusões mais restritivas e, num certo sentido, mais definitivas. O preço que se paga nesse caso, no entanto, ao conceder uma excessiva autonomia à história das idéias, é o de perder a riqueza da articulação entre o debate teórico e os embates políticos. Investigar idéias do passado e suas articulações com as disputas terrenas dos homens faz sentido porque nos ajuda a pensar nossas pró17 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO prias mazelas e a ligação que nossas pesquisas conceituais entretêm com nossa vida no seio de uma comunidade política. Ao se mostrar que o conceito de soberania não pode ser deduzido de um único processo de gestação, não se chega ao resultado de que é impossível falar da gênese de um conceito. Ao contrário, a investigação detalhada dos muitos caminhos que levaram dos autores medievais a Bodin e a Hobbes realiza um notável alargamento de uma questão que está longe de interessar somente aos especialistas. 18 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS INTRODUÇÃO OS NOMES E AS COISAS 19 O vocábulo stato pode até ter sido introduzido na literatura política por Maquiavel, como sugerem Meinecke,1 Hermann Heller2 e outros. E talvez não haja antes dele quem tenha escrito de modo tão franco sobre a lógica do poder. Mas a história da noção de razão de Estado e dos termos a ela associados começa bem antes: remonta no mínimo à disputa pelas Investiduras, caracterizada pelo confronto entre Imperium e Sacerdotium e sua aspiração de universalidade. A defesa de uma comunidade universal cristã na obra de João de Salisbury, por exemplo, não constituía somente a expressão de uma doutrina. Era também a resposta eclesiástica a uma nova realidade: um poder secular que afirmava sua jurisdição sobre um território, em oposição tanto aos poderes locais quanto às pretensões de ingerência da Igreja. Essa nova realidade não se configurou ao mesmo tempo nem por um processo único em toda a Europa.3 No caso inglês, internamente a Coroa se afirmou contra os barões e, no exterior, contra a Igreja. No continente, as forças em confronto eram quatro: as monarquias nascentes, o Império, o papado e os poderes locais. O conflito era simultaneamente jurídico e político. Político, porque envolvia não só uma redistribuição de poder, mas também a entrada de novos atores. Jurídico, porque os confrontos principais quase nunca, ou nunca, eram explicitados diretamente como problemas 1 2 3 MEINECKE, Fr. Machiavellism. London: Westview, 1984. HELLER, H. Teoría del Estado. México: Fondo de Cultura Económica, 1987. Cf. por exemplo a obra clássica de ELIAS, N. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2, esp. p. 87-131. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO de poder, mas como questões de jurisdição e de legitimidade. Os novos atores eram, entre outros: 1) a troupe do Estado (rei, ministros, burocratas, juízes, coletores de impostos etc.); 2) os elementos urbanos emergentes (artesãos e suas corporações de ofício, comerciantes, prestadores de serviços etc.); 3) uma intelectualidade que, embora dividida partidariamente e, portanto, dependente quase sempre ou da Igreja ou da espada, passava a constituir um fator de poder, identificado cada vez mais com a burocracia estatal; 4) os grupos envolvidos nos movimentos heréticos ou de oposição às doutrinas religiosas dominantes, em geral oriundos das camadas inferiores e muitas vezes participantes de desordens e sublevações. A luta se desenvolvia não só no plano da ação direta, mas também no das idéias. Participavam da disputa juristas, teólogos, filósofos e, muitas vezes, pessoas com todas essas qualificações. A eles competia determinar os fundamentos do direito de cada parte e, portanto, a legitimidade das pretensões em conflito. Nessa discussão se construíam os alicerces legais e ideológicos de um novo sistema de poder e, ao mesmo tempo, se determinava sua extensão. Os conflitos só apareciam, é óbvio, quando um novo poder tinha peso suficiente para questionar a ordem num certo momento. Esse era o fato político em sua versão mais crua. Mas o novo poder tentava afirmar-se não apenas pela força. Pretendia sobretudo ser reconhecido como portador de um direito ou, mais precisamente, como legítimo detentor de uma jurisdição. Esse era o fato jurídico em sua descrição mais simples. Mas não havia historicamente, nesse caso, um fato apenas político ou apenas jurídico: o político se manifestava na forma de uma reivindicação legal. Quando Maquiavel escreveu, já não precisou cuidar de questões legais. Ele já se referia à lei como um dado político e social. O trabalho de 22 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS construção já havia sido realizado: no século XVI, o Estado, como entidade juridicamente definida, era um fato plenamente desenvolvido, não uma novidade. *** Caberia aqui indagar: a partir de que momento então se pode falar em Estado, em sentido compatível com a noção moderna? A palavra compatível, nesse caso, é uma restrição importante. Trata-se de saber não a data de nascimento do Estado moderno, seja qual for sua descrição tipológica, mas de identificar um movimento histórico bem determinado. “Não tenhamos medo de fazer mau uso da palavra Estado para esses séculos que não a conheceram”, escreve Francesco Calasso.4 Não se trata somente de afastar, como inútil, o escrúpulo defendido, por exemplo, por Hermann Heller.5 Muito mais do que isso: trata-se de conferir a ênfase necessária ao movimento da história, sem se deixar limitar por uma classificação tipológica. Reconhecer esses processos de transformação que constituíram a base do Estado moderno e de seus principais atributos, entre os quais a noção de soberania, é o objetivo deste trabalho. Esse movimento ocorreu segundo ritmos diferentes em diferentes locais (na Inglaterra e no continente, para tomar uma distinção bem visível). E os arranjos de poder não 4 5 CALASSO, F. Gli ordinamenti giuridici del rinascimento medievale. Milão: Giuffrè, 1965. p. 237. Cf. HELLER, op. cit., p. 142 e seguintes. Heller utiliza a definição weberiana de Estado para analisar a Idade Média e nela buscar, sem as devidas mediações histórico-teóricas, algo que obviamente não poderia estar lá. Sua maior dificuldade, no entanto, é não ter percebido que boa parte das questões políticas medievais se apresentava como formulações de caráter jurídico – daí a sua pouca visibilidade para aqueles que tentaram localizá-las por meio de conceitos cristalizados da ciência política. 23 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO se deram da mesma forma em toda parte. No entanto, é possível mostrar, em todos os casos, características comuns de um processo de reordenação política. Essa reordenação foi constitutiva do que hoje chamamos Estado. A ordem gestada por esse processo é o que aqui se designa como compatível com a noção moderna. O problema, portanto, é procurar entender – e localizar corretamente nos diferentes momentos históricos – uma realidade que se constituía à sombra da ideologia da communitas humanitatis do Império e da Igreja. Essa communitas correspondia à totalidade dos cristãos e dos cives Romani imperii. Os dois conjuntos podiam se corresponder perfeitamente em termos ideológicos. “Na ideologia medieval do Imperium christianorum”, explica Calasso, “todos os que acreditavam em Cristo eram cidadãos do Império, isto é, eram cristãos e romanos; e vice-versa”.6 O fiel e o cidadão do império constituíam faces da mesma pessoa: o cristão era “romano” e viceversa. Império e Igreja eram co-extensivos em suas pretensões de domínio. A observação de seus respectivos códigos legais, isto é, as regras subsumidas sob o ius civile e ius canonicum, garantia uma convivência pouco conflituosa entre as duas instituições. Eram, idealmente, duas competências normativas convergentes e não competitivas. Sua unidade se expressava no aforisma “extra ecclesiam non est imperium”, porque fora da Igreja não existia poder ordenado por Deus. Historicamente, no entanto, imperadores e papas disputaram, às vezes com muito sangue vertido, o poder em todas as suas formas, temporais e espirituais. Também essa disputa entre Regnum e Sacerdotium servia para fecundar o pensamento político e jurídico, especialmente entre os séculos XII e XIV, mas dela não resultaria, senão de forma 6 CALASSO, op. cit., p. 241-2. 24 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS indireta, a destruição da idéia de uma comunidade universal dos cristãos. Essa noção estava muito firme, como objeto de fé, no tempo do “fatigoso nascimento dos assim chamados Estados nacionais”, lembra Calasso, ao relacionar, numa longa lista, as unidades políticas em formação em toda a Europa desde pelo menos o século XI.7 Enquanto a Europa, particularmente entre os séculos XII e XIII, era trabalhada pelo incessante movimento dos povos que emergiam em busca de seu lugar, dentro e fora da jurisdição direta do Império Romano-Germânico, no campo da ciência jurídica abria caminho um novo princípio, destinado a interpretar por séculos o mundo novo que estava por surgir. Esse princípio veio logo encerrado numa fórmula que assim soou: “rex superiorem non recognoscens in regno suo est imperator”, e que significava o seguinte: o rei, que não reconhece poder acima de si, 7 “Na península Ibérica, depois da vitória definitiva das armas cristãs sobre os muçulmanos, nascem o reino de Aragão e o de Portugal; consolidam-se como Estados fortes, mas através de uma história inteiramente diversa, o reino de França e o de Inglaterra – o primeiro, com a pressão da monarquia sobre as classes feudais e por meio da exaltação do elemento citadino; o segundo, com a coalizão triunfante das várias classes sociais contra a monarquia –; no coração da Europa, o reino da Alemanha, com a prevalência dos grandes feudatários, acentua cada vez mais uma política nacionalista, enquanto um novo Estado dele se destaca, a Áustria; ao norte, afirmam-se os Estados escandinavos, com predomínio do reino da Dinamarca; surgem os reinos da Lituânia, da Polônia, da Rússia; enquanto ao sul a Hungria, a Sérvia, a Croácia, a Bulgária, a Romênia, a Albânia se consolidam como Estados. São ordenamentos políticos novos ou em renovação, que se erguem sobre um fundo turbulento de lutas gigantescas, nas quais os povos europeus se empenharam freqüentemente contra forças extra-européias (dos muçulmanos no sul aos mongóis no leste). E, como organismos jovens, não querem sentir-se ligados pelas amarras de ideologias tradicionais, embora, note-se bem, como Estados cristãos, vinculados à Igreja de Roma, não possam, pela estrutura mesma do mundo medieval, ignorá-las”. In: CALASSO, op. cit., p. 243. 25 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tem, no âmbito do próprio reino, os mesmos poderes que tem o imperador sobre todo o Império.8 A reconstituição dos passos por meio dos quais ocorria a maturação dessas novas idéias, seja no trabalho dos juristas, seja no dos teólogos, é fundamental para compreender a formação da concepção de uma ratio specifica do Estado, em nossos dias freqüentemente resumida no termo soberania. Essa é a tarefa central a ser empreendida neste trabalho. Quando se entende este processo, pode-se fazer a crítica da opinião corrente que nega haver a Idade Média conhecido o conceito de Estado e também o de soberania. Segundo essa opinião, as duas idéias só se afirmaram no século XVI, com o triunfo do absolutismo, isto é, das condições de poder descritas teoricamente por Jean Bodin. Os tempos modernos – e aqui se está assumindo a posição também defendida por Calasso – preencheram a palavra soberania de uma substância que, como “fatalmente sucede às fórmulas definitórias”, foi-se petrificando e assumindo o peso de um dogma, um “verbum mysticum”, destinado a cobrir alguma coisa que na realidade se havia distanciado sempre mais das consciências. Fazer a história de um dogma, alerta Calasso, implica dissolvê-lo. Trata-se sobretudo de um erro de perspectiva: o medievo não conhece o dogma da soberania, pelo simples fato de que este é uma criação da época moderna; se colocamos, ao invés, o problema em termos modernos, o seu esforço consistiu sobretudo na consumação do velho invólucro que, como se viu, havia incubado a nova idéia.9 Calasso não usa essa imagem, mas poderia bem servir-se dela: o processo por ele descrito é análogo ao desenvolvimento de uma larva até a destruição do casulo. 8 9 Ibid., p. 244. Ibid., p. 257 – grifo meu. 26 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS É a insuficiência dessa noção de processo que dificulta o tratamento das noções de Estado e de soberania no capítulo de Heller, “Supostos históricos do Estado atual”.10 O texto contém referências históricas, mas permanece preso a uma perspectiva tipológica que se revela dogmática. Por isso, o autor acaba tratando exemplos históricos importantes, como os da Sicília e da Inglaterra, quase como casos excepcionais, desvios da norma, dados que não desmentem a communis opinio. Talvez o problema esteja no fato de que, enquanto Weber utiliza material histórico para construir um tipo, Heller, movido por uma inspiração declaradamente weberiana, parta de um tipo (do Estado) e de um conceito cristalizado (o de soberania) para examinar a história política medieval. *** Mas Heller certamente não é o único autor a se enredar nesse tipo de armadilha. Tampouco é esse o único equívoco que pode ser encontrado nas abordagens de historiadores e cientistas políticos. Hinsley, por exemplo, especialista em relações internacionais e autor de um livro conhecido sobre a questão de soberania,11 merece crítica semelhante. Embora bastante sensível aos fluxos históricos, ele vincula a reconstrução da noção a uma fórmula moderna: “a afirmação do conceito de soberania”, escreve, só teria lugar com a completa autonomização da noção como categoria reguladora da relação entre governante e comunidade política. Antes que o conceito aparecesse em sua plenitude, foi preciso consolidar o Estado, independentizá-lo dos laços com concepções de mundo divinas e 10 11 Cf. HELLER, op. cit., p. 141-54. HINSLEY, F. H. Sovereignty. Cambridge: University Press, 1986. 27 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO naturais – bem como o conceito de soberania –, e “libertálo” da idéia do monarca legislador absoluto, para que pudesse mostrar sua verdadeira face.12 Isso implica a constituição de um sistema de relações internacionais entre Estados autônomos. Se essas relações são verdadeiras, argumenta ele, quatro coisas devem se seguir: o conceito de soberania não será encontrado em sociedades que não tenham Estado. O conceito, longe de aparecer com as formas do Estado, não surgirá até que um processo subseqüente de integração ou conciliação tenha sido efetivado entre um Estado e sua comunidade. Ter-se-á infalivelmente lutado na superfície, por outro lado, quando e onde quer que esse processo tenha avançado apenas até um certo ponto. E depois, uma vez aparecido esse conceito em qualquer sociedade, seu desenvolvimento posterior será vinculado por último a transformações posteriores nas relações entre a sociedade e seu governo. E, depois de fornecer a receita, propõe: “Precisamos agora voltar à história da teoria política para descobrir se essas expectativas foram preenchidas”.13 O equívoco não poderia ter sido explicitado de forma mais clara. Vícios como esse podem ser encontrados em abundância nas formulações a respeito de noções como soberania e Estado.14 Mais do que meros enganos conceituais, no en12 13 14 “A teoria da soberania”, define Hinsley adiante, “não é uma justificação absolutista do poder político, mas sim uma justificação ‘constitucional’ do poder político absoluto”. In: HINSLEY, op. cit., p. 107. Ibid., p. 22. Crítica semelhante pode ser feita ao trabalho recente do cientista político sueco Jens Bartelson. Para dar conta da formação do conceito de soberania, ele o vincula logicamente à construção de um âmbito externo (ou internacional), em oposição ao interno. Ou seja, define soberania como uma derivação lógica da constituição de uma ordem internacional. Parte de uma relação localizada no presente – a existência de uma 28 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS tanto, as leituras e interpretações históricas são fruto das idéias, tendências e aparatos conceituais disponíveis em cada época. Ao invés de apontar este ou aquele culpado, contudo, a opção feita aqui foi a de procurar um caminho de reconstrução histórica e teórica que evite perpetuar raciocínios anacrônicos ou ainda a tentação de petrificar a história. Também merece atenção um outro ponto: noções como soberania e Estado moderno não podem e não devem ser utilizadas de modo intercambiável. Ora por falta de rigor conceitual, ora por convergências históricas, muitos autores sucumbem à tentação de tratá-las como um único fenômeno. A intenção deste trabalho, ao contrário, é tentar reconstituir a formação conceitual e histórica dessas duas noções diversas num contexto específico: em fins da Idade Média, sem procurar transpor suas definições ou funções para o mundo moderno. De modo bastante grosseiro, pode-se afirmar que um novo sistema de poder estava sendo gestado na Europa desde o século XI. Esse sistema desenvolveria características próprias, como se mostrará adiante, até se consolidar numa forma retrospectivamente denominada Estado moderno. A noção de soberania, por sua vez, aparece como um conceito em transformação desde pelo menos a difusão ordem política internacional, baseada em Estados nacionais soberanos – para buscá-la num passado remoto no qual ela obviamente não pode ria estar. Isso o obriga a afirmar que o conceito só se consolida, tal como o conhecemos modernamente, com o advento dos Estados nacionais soberanos. Segundo ele, soberania só terá realidade de fato quando as condições do conhecimento permitirem que seja pensada como uma construção puramente humana, expressão do poder criativo dos homens. E essas condições, diz Bartelson, serão alcançadas apenas com as transformações possibilitadas pelo Iluminismo no século XVIII. Somente com as sintetizações de Kant, Rousseau e Hegel, afirma o autor, torna-se possível concretizar a idéia de um sistema internacional e de Estados nacionais, condições epistemológicas do uso moderno do conceito de soberania. Cf. BARTELSON, J. A genealogy of sovereignty. Cambridge: University Press, 1995. (esp. p. 236 et seq.) 29 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ideológica e prática do cristianismo na Europa, a partir do século X. Num primeiro momento, esse fenômeno que viria a ser nomeado soberania indicava mais a atribuição da função de “comissário de Deus” a este ou aquele agente. Isto é, a determinação de quem fazia cumprir a lei em nome de Deus nesta ou naquela esfera de governo em circunstâncias determinadas. A Questão das Investiduras, por exemplo, girava em torno do problema de quem teria poder para nomear os bispos e investir o clero. Nesse momento, o problema da soberania se colocava não apenas para o imperador ou para o papa, mas para todos os poderes que pretendiam obter a supremacia nas querelas em questão. E, de modo um pouco diferente do que ocorreria com a noção de Estado moderno, soberania, nesse sentido, não era incompatível com a idéia de uma comunidade universal cristã. Foi apenas num momento posterior, com os acréscimos políticos e conceituais gerados pela recuperação do direito romano e dos escritos dos antigos – em especial os de Aristóteles –, pela síntese de Tomás de Aquino e pelas transformações em curso no Ocidente latino, sobretudo nos séculos XII e XIII, que se tornou possível pensar a capacidade de criar e impor a lei – fosse em nome de um legislador divino ou humano – como um atributo do conceito que seria sintetizado na idéia de soberania.15 A decisão de Filipe, o Belo, de 15 HINSLEY, por exemplo, inicia sua reconstrução do conceito de soberania – entendida como um conceito aplicado pelos homens, uma qualidade que eles atribuem ou ainda uma reivindicação que eles contrapõem ao poder político que eles ou outros homens exercem – remetendo-se à polis grega, passando depois pela Roma antiga, pelo medievo e pelos modernos até chegar nos usos contemporâneos. É claro que essa reconstrução não se fundamenta propriamente na existência da palavra soberania, mas nos seus vários nomes e nos significados que assumiu ao longo dos séculos até chegar a nós. Este o princípio útil a reter: o de que as idéias têm sempre uma história, esta também em constante transformação. 30 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS taxar o clero francês, independentemente de seus laços com a Igreja de Roma, ilustra bem a nova dimensão do problema: tratava-se agora de impor uma lei num determinado território como afirmação de uma vontade humana suprema. Somente depois de adquirir esse segundo sentido é que a noção de soberania pôde ser diretamente associada ao nascente Estado moderno: foi a partir daí que o poder de criação e imposição da lei por um legislador passou a transformar-se mais e mais num atributo de uma formação de poder territorial específica, definida em termos cada vez mais leigos e independente de normas e concepções divinas e universalistas. Quando essa “união” conceitual e prática passa a ter lugar, a história desses dois conceitos se entrelaça de tal modo que se torna difícil percebê-los como duas entidades teórica e historicamente distintas, como dois movimentos temporais diferenciados que – numa quase fusão – se encontram por um certo período e em determinado lugar na história. E, como conceitos temporalmente definidos, ambos seguiram se desenvolvendo ao longo dos séculos, adicionando e subtraindo características e alterando sua semântica, o que os tornaria ora menos, ora mais diferenciáveis. Essa separação entre as duas noções é provavelmente bem mais nítida hoje do que foi para Beaumanoir e seus contemporâneos.16 Em fins da Idade Média, contudo, é quase impossível 16 Apenas como exemplo ilustrativo: quando voltamos a atenção para o que está ocorrendo hoje no mundo, e sobretudo na Europa, torna-se bastante perceptível que, com o acirramento da internacionalização, os conceitos básicos da ciência política estão se redefinindo e gestando novas realidades. A criação da União Européia, por exemplo, e de um Parlamento europeu que legisla e decide em questões específicas acima dos “Estados nacionais”, impondo a cada Estado particular normas e sanções válidas para todos, vem mostrar que o locus, a natureza e, portanto, a definição da noção de soberania estão passando por profundas transformações conceituais e empíricas – o que não implica necessariamente a “morte” do conceito, mas sim sua reformulação em termos novos. 31 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO falar de um desses conceitos sem ter de mencionar ou considerar o outro, o que pode obscurecer bastante a clareza conceitual. *** De modo semelhante à noção de Estado moderno – e por vezes confundindo-se com ela –, também o conceito de soberania teve uma gênese demorada: resultou de um processo de transformação jurídica e política, do qual emergiu um novo mapeamento do poder e das lealdades na Europa. Nesse processo, não só se afirmava uma nova formação de poder, como também se desenvolvia um discurso jurídico e político adequado aos novos conflitos e à nova realidade.17 A formação do conceito, portanto, não ocorria paralelamente à história política: era parte dela. A mudança não se deu ao mesmo tempo nem com a mesma velocidade em toda a Europa. A consolidação da autoridade real, a centralização administrativa e a burocratização das funções públicas ocorreram mais cedo na Inglaterra do que na maior parte do continente. A influência do Império, assim como a da Igreja, se exercia de forma desi17 João Carlos Brum Torres aponta com clareza o vínculo entre as duas ordens de fatos, a reordenação do poder e a construção doutrinária: “A idéia de soberania é resultante doutrinária, mas também instrumento, de um longo processo de concentração e centralização do poder, em cuja dinâmica se integram, como linhas de força decisivas, sua fixação e centralização geográficas, o afastamento do príncipe das redes de vassalagem medieval e, sobretudo, a consolidação do poder real tanto frente às grandes figuras da alta nobreza, quanto, no plano externo, frente às pretensões temporais do papado [...]. Portanto, que o rei seja efetivamente imperator in regno suo, não reconhecendo nenhum poder terreno superior em todas as questões políticas, esta a propriedade fundamental da soberania e também o primeiro pré-requisito da concepção moderna do poder estatal”. In: TORRES, João Carlos Brum. Figuras do Estado moderno. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 47. 32 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS gual nas várias regiões. Na França, por exemplo, a figura do imperador praticamente não tinha relevância no início do século XIV, embora a literatura política da época, com freqüência, se referisse ao Império como paradigma do poder secular. Por trás de toda essa diversidade, alguns elementos comuns permitem falar num processo geral de transformação. Três desses elementos são apontados por Joseph Strayer – que em seu livro concentra a atenção no desenvolvimento institucional do Estado moderno – como essenciais à constituição do Estado, a partir das formações medievais: 1) o aparecimento de unidades políticas persistentes no tempo e geograficamente estáveis; 2) o desenvolvimento de instituições duradouras e impessoais; 3) o surgimento de consenso sobre a necessidade de uma autoridade suprema e a aceitação pelos súditos dessa autoridade como objeto da lealdade básica.18 Segundo Strayer, os Estados europeus surgidos depois de 1100 combinaram com êxito certas características dos impérios antigos, como a vastidão e o poder, e das cidadesestado, marcadas por um razoável grau de integração entre os súditos e por um sentimento de identidade comum. Por volta do ano 1000, depois de grandes migrações, guerras múltiplas e intensa fragmentação do poder, ainda era difícil encontrar na Europa algo parecido com um Estado. A partir do fim do século XI, porém, novas condições começaram a marcar a vida política e social. Strayer indica, em primeiro lugar, a difusão do cristianismo: segundo ele, “a Europa ocidental só passou a ser realmente cristã nos finais do século X”.19 A Igreja não só compartilhava alguns dos atri- 18 19 Cf. STRAYER, J. As origens medievais do Estado moderno. Lisboa: Gradiva, s. d., p. 22 et. seq. Ibid., p. 21. 33 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO butos do Estado nascente, como instituições duradouras e uma teoria do “poder supremo” papal, mas também influenciava diretamente a política secular, pelo envolvimento do clero nos negócios públicos e pela atribuição, aos governantes, da obrigação de garantir a paz e a justiça entre os súditos. Exigências desse tipo impunham o desenvolvimento de instituições judiciais e administrativas. O segundo fator apontado é a estabilização da Europa depois de um longo período de migrações, invasões e conquistas. “Pelo simples fato de se manterem de pé, alguns reinos e principados começaram a adquirir solidez. Certos povos, ocupando determinadas áreas, permaneceram, durante séculos, integrados num mesmo conjunto político.”20 Com a estabilização, surgiam condições para a implantação de padrões mais sólidos de segurança interna e externa, fundados em instituições judiciais e financeiras mais eficazes, mais complexas e crescentemente centralizadas. As atribuições públicas tendiam a especializar-se e a diferenciar-se, portanto, das funções costumeiras da comunidade. Foram transformações lentas, acompanhadas e reforçadas pelo aumento da produção agrícola, do comércio e das atividades urbanas. No fim do século XIII, segundo Strayer, a terceira condição estava consolidada, com os sentimentos de lealdade à Igreja, à comunidade e à família ultrapassados pelo sentimento de lealdade ao Estado nascente, principalmente na Inglaterra. Não que as lealdades e interesses anteriormente dominantes tivessem desaparecido ou perdido importância. O fato significativo é que se passava a pensar com um novo quadro de referências. Esse quadro se impunha mesmo nas rebeliões: não se lutava mais contra a instituição materializada no governo central, mas para mudar os padrões de governo e para obter dos tribunais a proteção desejada. 20 Ibid., p. 22. 34 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS Se essas mudanças ocorreram a partir da estabilização da Europa, seu desenvolvimento, no entanto, não foi pacífico. O conflito, como lembra Calasso, nem sempre assumia a forma de contestação aberta, pelos reis, da concepção tradicional da comunidade cristã universal. Tampouco se manifestava, sempre, como negação da autoridade imperial. Nem era preciso. No século XIII, o poder efetivo do imperador pouco significava nos principais reinos em formação. E a Igreja se encarregou, sempre que pôde, de pôr em xeque esse poder onde ele era mais significativo. *** A conformação desse novo sistema de poder estatal teve como contrapartida a constituição de uma nova ordem jurídica. Essa ordem redefinia os vínculos de comando e obediência, constituía unidades políticas como áreas de jurisdição exclusiva e estabelecia, entre essas unidades, relações de igualdade num sentido preciso: forte ou fraca, pequena ou grande, nenhuma se reconhecia como subordinada à outra. A generalização dessa idéia viria fundar a ordem internacional. Se o sistema de relações entre Estados era o reino da força, como pensaria Hobbes, ou se era também um universo legal em sentido próprio, como sustentariam os teóricos do bellum iustum (Grotius, Pufendorf etc.), não cabe aqui discutir. O importante é reter que o sistema se construía com base em determinadas pretensões jurídicas dos detentores do poder territorial. De um lado, essas pretensões excluíam toda interferência nos assuntos do reino. Constituía-se uma oposição legal entre o interno e o externo, em sentido radicalmente novo. De outro, passava-se a agir em nome de uma nova categoria de interesses. João Quidort já mencionava, em seu livro Sobre o poder régio e papal, no início do século 35 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO XIV, a possibilidade de o príncipe agir na defesa de interesses do reino: Se fizer [o que é indicado anteriormente] em proveito próprio ou de seu país [terrae], faz o que lhe é permitido, embora por conseqüência surjam danos a terceiros, pois a cada um é permitido fazer uso de seu direito. [...] E, mesmo que o príncipe tome tal medida com a intenção de prejudicar, mesmo assim lhe é lícito, se previr com argumentos prováveis ou evidentes que o papa se tornou seu inimigo ou que convocou os prelados para com eles planejar algo contra o príncipe ou o reino. É lícito ao príncipe repelir o abuso do gládio espiritual como o puder, mesmo se usando para tanto o gládio material, principalmente quando o abuso do gládio espiritual se converte em um mal para a república [rei publicae], cujo cuidado incumbe ao rei. Em caso contrário, não haveria razão para este levar o gládio.21 Pode parecer curioso João Quidort utilizar, nesse momento, argumentos originários do direito privado. Ele se referia ao uso das águas, numa propriedade, com prejuízo para os vizinhos. Pode um homem elevar as águas ou desviá-las por outros canais, impedindo a irrigação de terras alheias? “Diz a lei que lhe é permitida tal ação”, respondia, “pois está usando de seu direito, embora outros venham a ser prejudicados” (idem). Há dois pontos de especial significado nesse raciocínio. O primeiro é a analogia, estabelecida por João Quidort, entre propriedades particulares e potências. As relações entre potências eram equiparadas, juridicamente, às relações entre unidades individuais de direito, num sentido muito próximo àquele encontrado nas teorias contratualistas. Em lingua21 QUIDORT, Jean. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 123-4. 36 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS gem moderna, pode-se afirmar sem muitas reservas que João Quidort tratava as questões de direito público internacional como questões de direito privado: pensava os Estados como unidades individuais.22 O segundo ponto é o reconhecimento do interesse próprio como fonte absoluta de direito. Assim como o agricultor tinha o direito de usar as águas de sua bica segundo lhe parecesse melhor, mesmo com prejuízo dos vizinhos, podia o príncipe tomar as medidas que julgasse necessárias, “mesmo com a intenção de prejudicar”, na defesa própria ou de seu reino. Note-se a diferença entre duas questões: uma é o direito absoluto de agir, outra é a obrigação do príncipe de defender a república (“cujo cuidado incumbe ao rei”). A segunda noção era parte da tradição medieval: o governante era minister, ou seja, servidor da lei. A primeira fazia parte de uma idéia em formação: a dos Estados (regna, res publicae etc.) como sujeitos de interesses que se antepunham, por direito, a quaisquer outros. A novidade aqui consistia em conceber na figura do Estado o portador de um direito absoluto e incondicional, isto é, pensar o Estado como detentor de direitos indiscutíveis, de modo análogo ao direito de propriedade. Essa seria, na forma acabada, a mais radical concepção moderna da soberania de cada potência em face das demais. Esse novo desenho das relações de poder é ao mesmo tempo uma construção e uma descoberta. Construção, porque correspondia a planos e a ambições dos atores envolvidos. Descoberta, porque nenhuma virtù permitiria projetar com exatidão o formato do novo mundo. Com essa perspectiva, não é preciso eliminar a intencionalidade da ação política 22 Sua noção de direito era construída a partir da anterioridade do direito individual em relação ao direito público – tradição herdada em boa parte do direito romano. 37 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO nem ler a história atribuindo aos agentes, de forma retrospectiva, uma consciência que não poderiam ter. Assumido esse ponto, fica mais fácil mostrar em que consiste este trabalho. Estudar a formação do conceito que viria a ser nomeado soberania liga-se, sobretudo a partir do século XIII, à tarefa de examinar a construção de um novo sistema de poder, que se expressaria de maneira mais acabada no sistema estatal moderno. Se essa construção é também uma descoberta, o quadro conceitual correspondente se compõe, da mesma forma, ao longo de um caminho desconhecido para quem o percorre. Essa concepção explica tanto os cuidados quanto aparentes licenças que poderão surgir no texto. O cuidado principal é não buscar, no processo formador, nem o Estado como o conhecemos a partir do século XVI nem uma teoria da soberania tal como a sistematizada por Bodin ou por Hobbes. É inútil, neste caso, trabalhar com imagens prontas e tipos cristalizados e separados da história. Portanto, não se vai tomar, por exemplo, a definição weberiana de Estado e percorrer a história, como um catálogo, em busca do que se possa enquadrar no molde. Também não se entrará numa pesquisa filológica. O objetivo não é examinar textos antigos em busca de palavras como stato e souverain e discutir seu sentido preciso, embora esse exercício seja de grande importância para a história das idéias políticas. Tratar da gênese do Estado e da noção de soberania, isto é, da formação de uma ordem política que teria na definição moderna de soberania talvez a sua mais importante representação ideológica e jurídica envolve em primeiro lugar tarefas de outra natureza. O objeto “Estado” ou “Estado em formação” pode ser designado por muitos nomes (regnum, por exemplo). Da mesma forma, os atributos do poder supremo são indicáveis por muitas palavras diferentes do termo soberania (plenitudo potestatis, entre outros). 38 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS Isso sugere uma escolha metodológica. O caminho mais adequado parece ser o do exame de como as idéias e instituições políticas mais correntes chegaram a ser o que são ao longo de um mesmo devir histórico. De um mesmo devir, porque as doutrinas políticas e jurídicas não são somente reflexões acerca do mundo. São também parte dos fatos políticos. Os principais juristas e pensadores políticos do período estavam engajados nos grandes conflitos. Suas melhores produções correspondiam, antes de tudo, a artefatos destinados à luta política. O princípio de continuidade tem, portanto, importância crucial para entender como certas idéias – neste caso, as que marcaram o período medieval – originaram, lenta e gradativamente, nossas formas de pensar a vida política e o interesse público. Para os fins deste trabalho, portanto, será indispensável considerar tanto a história dos fatos políticos quanto a história das idéias políticas –23 estas freqüentemente revestidas como formulações de caráter jurídico. 23 O que se tentará aqui é não cair na ortodoxia daqueles que insistem ser o contexto (fatores econômicos, políticos e religiosos) o determinante do sentido de qualquer texto dado, privilegiando com isso a “moldura” em que se inserem os fatos; mas deve-se evitar ainda a ortodoxia oposta: aquela que insiste na autonomia do texto em si como a única chave necessária para a sua compreensão, deixando de reconstituir fatos históricos que podem explicar as preocupações de um autor. Como aponta Quentin Skinner, “[...] It must follow that in order to be said to have understood any statement made in the past, it cannot be enough to grasp what was said, or even to grasp that the meaning of what was said may have changed. It cannot in consequence be enough to study either what the statement meant, or even what its context may be alleged to show about what it must have meant. The further point which must still be grasped for any given statement is how what was said was meant, and thus what relations there may have been between various different statements even within the same general context”. In: TULLY, J. (Ed.). Meaning and context. Cambridge: University Press, 1988. p. 29 e p. 62. 39 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Mais importante, portanto, é identificar claramente as pretensões e os valores em jogo nas disputas de poder. A questão da soberania é constituída justamente no cruzamento desses confrontos políticos, que se dão entre: 1) o império e o papado; 2) o império e os poderes estatais nascentes; 3) o papado e esses poderes estatais; 4) estes poderes e a nobreza. Também é relevante, naturalmente, o pano de fundo das mudanças econômicas e sociais. Há uma relação de mão dupla entre os fatos da “base” – a urbanização, o crescimento do comércio, a formação de corporações, as revoltas no campo e na cidade etc. – e a redefinição das forças políticas e das instituições. O “povo” passa a ocupar, por exemplo, um lugar de crescente importância no discurso dos teólogos políticos, a ponto de, a partir do século XIV, haver espaço para noções democratizantes nas doutrinas sobre a organização eclesial – como, por exemplo, a teoria do poder ascendente.24 Torna-se cada vez mais difícil manter a teoria de um mundo social ordenado de cima para baixo. Os novos conflitos, principalmente a partir da Questão das Investiduras, deram origem a uma extensa literatura jurídica, política e artística. O apogeu desse movimento ocorreu entre os séculos XII e XIV. Grande parte da produção, talvez a mais conhecida, tratava do conflito sobre os poderes do papado (sacerdotium) e os do império (imperium ou regnum). Curiosamente, alguns dos textos mais notáveis apareceriam quando o império já pouco significava. No século XIV, quando entraram no debate figuras como Guilherme de Ockham e Marsílio de Pádua, a influência do imperador era muito limitada, e o poder dos reis, em contraste, cada dia mais sólido. Era como se os confrontos entre papado e impé24 Entre os vários autores que tratam essa questão, destaca-se a contribuição esclarecedora de Walter Ullmann. Cf. ULLMANN, W. Historia del pensamiento político en la Edad Media. Barcelona: Ariel, 1983. 40 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS rio compusessem o cenário para a consagração de um novo poder, o do Estado moderno. Em alguns dos textos mais ricos do século XIV, o poder real aparecia como um dado, enquanto o do imperador e o do papa eram objetos de discussão. Bom exemplo é o capítulo final do Brevilóquio sobre o principado tirânico, de Guilherme de Ockham. Nessa passagem, o não reconhecimento pelos reis da França de um superior em assuntos temporais era mencionado como um argumento, isto é, como um fato fora de disputa e reconhecido pela própria Igreja.25 O assunto em debate era outro: a pretensão do papa de estender seus poderes sobre o imperador. Faltava pouco, nesse momento, para a pulverização da idéia de comunidade cristã universal. Como indica Francesco Calasso, essa noção se mantinha sobretudo como uma moldura ideológica do debate político, uma moldura, porém, cada vez menos importante. Mas o poder real, muito mais concreto que o imperial no século XIV, só se consolidaria no decorrer de uma história de disputas com a Igreja e com o império, em que os reis enfrentariam cada adversário separadamente. No caso inglês, por exemplo, o confronto com o império era desnecessário. Restava, como rival, o poder do clero. Quando o rei Henrique II resolveu intervir no foro eclesiástico, a lealdade dos homens influentes estava definida. Thomas Becket só aceitara a decisão do Parlamento de Westminster com uma restrição: “salvo ordine nostro et iure Ecclesiae”. Henrique II recuou por um momento, e em seguida o Parlamento especificava, em 16 artigos, as restrições. Becket aceita, muda de idéia e foge para a França. 25 Cf. OCKHAM, G. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 184. 41 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Significativamente, partiu do papa Alexandre III a tentativa de entendimento. A resistência de Becket acabaria se dando quase à margem da política oficial pontifícia. Ao reconciliar-se com Henrique II, ele manteve a cláusula: “salvo honore Dei”. O rei, aparentemente, se dispôs à convivência. Historiadores descrevem o assassínio do arcebispo quase como um mal-entendido ou fruto de intriga. Henrique II, incitado por intrigantes, teria deixado escapar a famosa frase: “Não há ninguém capaz de vingar a honra do rei contra esse sacerdote?”. Quatro cavaleiros decidiram executar o serviço. A morte de Becket no templo foi descrita por João de Salisbury como um martírio.26 O mesmo Alexandre III que tentara a conciliação com Henrique II canonizou Becket, em 1173, três anos depois de sua morte. Acidente ou não, o fim da história parece evidente. O poder do rei se impunha ao resistente, e a Igreja fazia da vítima um santo. Que outro desfecho seria mais emblemático? Hobbes poderia ter feito essa pergunta. Os confrontos de Roberto de Nápoles com o imperador e de Filipe, o Belo, com o papa são especialmente interessantes por seus desdobramentos jurídicos. A controvérsia entre Bonifácio VIII e Filipe, o Belo, começou quando o rei francês decidiu tributar o clero. A medida foi contestada pelo papa na bula Clericis laicos, em 1296. Bonifácio declarou ilegal a taxação e proibiu o clero de pagar impostos sem expressa autorização papal. Recuou, depois, ao descobrir o apoio encontrado por Filipe, mesmo entre os padres, em torno de questões de interesse francês. A essa sucedeu uma polêmica sobre o direito da Coroa de prender e julgar um bispo acusado de traição. A crise terminou com a morte do papa, pouco depois de um grupo mandado pelo rei tentar levá-lo preso. A história ficou por isso mesmo, e “os papas 26 Cf. SALISBURY, John of. Policraticus. Madrid: Editora Nacional, 1984. 42 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS que se seguiram não conseguiram reavivar nenhum interesse pelo caso”.27 Bastaria esse desfecho para tornar esse conflito extremamente importante como episódio de afirmação do poder real. Mas a história interessa também pelo desenvolvimento do debate suscitado pela questão fiscal. A defesa das pretensões reais aparecia em tratados escritos por ministros do rei e por professores da Universidade de Paris, estes protegidos pelo anonimato. Um texto especialmente interessante mencionado com freqüência por especialistas é a Discussão entre um clérigo e um cavaleiro. Segundo o cavaleiro, Jesus nunca dera ao papa os poderes por este pretendidos. Sendo apenas um governante espiritual, sem domínio, não cabia ao papa ditar leis.28 Mas é sobretudo nos tratados de Egídio Romano e Jõao Quidort que a riqueza das conseqüências desse episódio para a literatura política se tornaria mais evidente. Em 1312, Roberto, o Sábio, resistiu às forças do imperador Henrique VII, quando este estava em campanha na Itália. Foi, então, acusado de traição, com o argumento de haver incitado os toscanos e lombardos a rebelar-se contra as forças imperiais e expulsar a administração germânica do norte da Itália. O rei siciliano foi citado, recusou-se a comparecer perante o tribunal imperial de Pisa e foi condenado por crime de lesa-majestade. Como o reino de Nápoles era, nominalmente, feudo do papado, Roberto levou o caso ao papa. Este consultou vários juristas eminentes. Em 1313, Clemente V editou o decreto papal Pastoralis cura, aderindo oficialmente ao ponto de vista segundo o qual o rei era soberano em seu território e não podia ser citado ante o tribunal de nenhum outro rei nem ante o do imperador. Como rei, não poderia cometer alta traição contra outro rei, por não ser súdito. 27 28 STRAYER, op. cit., p. 60. Cf. ULLMANN, op. cit., p. 149. 43 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Esse decreto é considerado por inúmeros autores a primeira expressão legal do conceito de soberania territorial. Negava a universalidade do poder do imperador, na qual o papado sempre havia insistido com especial interesse. O imperador só exercia, segundo o documento, um poder territorialmente limitado. Para muitos juristas, tanto acadêmicos, como os da Universidade de Bolonha, quanto profissionais, a idéia era bem familiar desde pelo menos o século XIII. Com uma certa licença poética, Calasso constata: “Lentamente, a venerada ideologia universalista cedia à vida”. A idéia do dominus mundi passava agora a ser reconhecida naquela plenitudo potestatis que o rei exercia no seu reino e que era igual àquela do imperator in Imperio. A nova concepção da plenitudo potestatis dos reis em seus reinos, afirma Calasso, viria fundamentar a concepção de uma ratio specifica do Estado, que nos modernos resulta na palavra soberania.29 Revela-se aqui plenamente o valor puramente paradigmático do Império. Na fórmula de Alan e Azzone se reconhece facilmente duas proposições: 1) o desconhecimento de qualquer superior por parte dos reis livres; 2) a atribuição a qualquer um deles, in regno suo, da plenitudo potestatis exercida pelo imperador in mundo. No final do século XIII a palavra souverain já aparecia nos escritos jurídicos. A referência mais freqüente é ao francês Filipe de Beaumanoir – que escreveu por volta de 1283 – , autor do primeiro texto conhecido em que aparece a palavra soberano (souverain). Em seus escritos, a noção era vinculada tanto à idéia moderna de função governamental quanto à de jurisdição: Verdade é que o rei é soberano acima de todos e tem, de seu direito, a guarda geral de todo o seu reino, pelo que 29 CALASSO, op. cit., p. 256-7. 44 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS ele pode estabelecer tudo que lhe aprouver para o proveito comum, e o que ele estabelece deve ser seguido [...]. E, como ele é soberano acima de todos, nós o nomeamos ao falar de alguma soberania que lhe pertença.30 Todas as propriedades mais importantes do poder soberano, tal como concebido nas modernas teorias do Estado, já apareciam nessa passagem de Beaumanoir: o domínio definido (“seu reino”), o poder legislativo amplo (“estabelecer tudo que lhe aprouver para o proveito comum”), o caráter vinculante das normas (“o que ele estabelece deve ser seguido”), o uso da força como parte da função (“a guarda geral de todo o reino”), a supremacia da autoridade (“soberano acima de todos”) e, o que é especialmente significativo, a idéia de uma legitimidade independente de qualquer outro poder (“tem, de seu direito”). A noção de gubernatio já não bastava, obviamente, para dar conta dos elementos apontados nesse texto. A palavra pode ter continuado em uso, mas tornava-se cada vez mais pobre diante dos desenvolvimentos políticos e jurídicos ocorridos ao longo dos séculos XIII a XV. Novas noções tornavam-se necessárias para dar conta dos novos fatos. Seja polemizando, seja refletindo sobre o espetáculo da política, os filósofos e os juristas do final da Idade Média tentaram refazer o quadro conceitual. Muito já estava feito quando Maquiavel e Bodin produziram seus tratados sobre as questões do Estado e da soberania. Nem os teóricos anteriores trataram apenas do que deve ser, desconhecendo a facticidade das coisas, nem foram cegos diante dos atributos do poder soberano. 30 No original francês: “Voirs est que li rois est souverains par dessus tous et a de son droit la general garde de tou son royaume, par quoi il puet fere teus establissemens comme il li plest pour le commun pourfit, et ce qu’il establist doit estree tenu [...]. Et pour ce qu’il est souverains par desseur tous, nous le nommons quant nous parlons d’aucune souveraineté qui a li appartient”. In: BEAUMANOIR, Ph. Coutumes de Beauvaisis. Paris: J. Picard, 1970. v. II, p. 23-4. 45 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO *** Uma descrição dos conflitos de maior conseqüência nos séculos XII a XIV, na Europa, envolveria, como se viu, no mínimo os seguintes elementos: 1) as pretensões de domínio temporal do papa, do imperador e dos reis; 2) a superposição ou separação das normas eclesiásticas e seculares; 3) a hierarquização das normas temporais (por exemplo: relação entre direito costumeiro regional e normas gerais ditadas por outras esferas de poder); 4) a divisão das funções judiciárias. Todas essas questões podiam ser entendidas como disputas de jurisdição. Tratava-se de saber quem julgava e quem punia delitos civis ou violações de normas religiosas, o que já implicava a distinção entre duas ordens normativas e duas classes de autoridade. Tratava-se ainda de estabelecer a extensão de poderes, como, por exemplo, o de tributar. O frade era subordinado apenas ao papa ou era também súdito do rei e, portanto, pessoa tributável? Ou de esclarecer em nome de quê, ou de quem, se julgava esta ou aquela causa judicial e a que instância cabia a setença definitiva. Esses problemas conduziram, nos séculos XIII e XIV, a uma posição nova – e também mais clara – do tema da jurisdição territorial. Os poderes de legislar, de mudar a lei, de resolver como última instância e de controlar o uso da violência constituem o que os autores modernos nomearam soberania. Se todos aqueles conflitos de jurisdição ocorressem de forma desarticulada, seria abusivo vinculá-los à formação da idéia de poder soberano; mas também não se poderia tratá-los como aspectos da constituição do Estado. Ou, dito de outra forma: as grandes unidades políticas européias, bem desenvolvidas no século XVI, teriam de ser vistas como resultantes de uma série de atos desconexos. Uma coisa é reconhecer processos que ultrapassam a intenção dos atores. Outra é negligenciar, ou desvalorizar, a articulação dos comportamentos intencionais. 46 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS Parece mais razoável a combinação de duas perspectivas: nem fazer da história o produto de um plano nem reduzi-la a retalhos inteiramente desligados das intenções dos atores. Os reis, os papas e imperadores, com certeza, não tinham desenhada na mente, com todos os traços, a imagem do mundo que estavam construindo. Mas tinham, certamente, uma visão organizada de suas ambições e dos objetos em disputa. Quando Filipe, o Belo, rei da França, se opôs ao papa Bonifácio VIII por uma questão tributária, o que se discutia era, claramente, o seu direito de cobrar impostos num dado território, com base numa lei de seu reino, com uso de sua força e com exclusão de qualquer outra autoridade. Aceitos esses pontos, falar em Estado (como objeto em formação) e em soberania (ponto de convergência dos grandes conflitos de jurisdição) deixa de ser um anacronismo. Poderá soar como licença, ocasionalmente, porém autorizada por toda a argumentação apresentada até aqui. Marcel David afasta sem muita dificuldade a objeção do anacronismo. Depois de examinar o uso dos termos soberano e soberania nos séculos XIII e XIV, ele põe na mesa um argumento muito mais importante: nos séculos XII e XIII, três das noções expressas em francês pela palavra soberania já existem, simplesmente adaptadas à estrutura da sociedade política do tempo. Duas delas, autoridade suprema e recusa de toda ingerência de um superior no nível de uma potência reconhecida como legítima, se exprimem pela mesma palavra: auctoritas. Quanto à potência pública, é a palavra latina a partir da qual ela se formou, potestas, que habitualmente serve para exprimila. Assim, o pensamento político dessa época soube fazer do vocabulário um uso mais judicioso do que a partir do século XVI.31 31 DAVID, Marcel. La souveraineté et les limites juridiques du pouvoir monarchique du IXe au XVe siècle. Paris, Dalloz, 1954. p. 14. Além de tudo, diz também Marcel David, “a história e a lógica não se opõem a que as idéias inerentes ao termo soberania tenham sido já extraídas, 47 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Como explica Alessandro Passerin D’Entrèves, o que importa não é a falta de um claro conceito de Estado no pensamento medieval, e sim o surgimento gradual de uma noção que dele se avizinha sempre mais, a noção de que, entre as múltiplas formas de associação humanas há uma dotada de um poder particular: um poder que administra, legifera, julga e tributa, não em virtude da simples posse da força material ou das qualidades pessoais de um chefe, mas em nome de um complexo de normas que, justamente porque pertinentes ao status rei publicae, são normas de direito público, não de direito privado. [...] À respublica christiana, organização ao mesmo tempo política e religiosa de todo o mundo cristão, terminará por substituir um novo tipo de organização, mais restrita, mas também mais definida e de caráter cada vez mais “leigo”, a civitas e o regnum.32 32 simplesmente expressas no latim da época, com ajuda de um vocabulário original que pôde muito bem permanecer sem grande influência sobre aquele que utilizamos em francês” (idem, p. 17). D’ENTRÈVES, Alessandro Passerin. La dottrina dello Stato. Torino: G. Giappichelli, 1962. p. 139. 48 INTRODUÇÃO - OS NOMES E AS COISAS CAPÍTULO 1 A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS 49 I ANTECEDENTES HISTÓRICOS O objetivo desta seção é apontar alguns eventos importantes ocorridos durante o período da chamada Alta Idade Média,1 que serão retomados ou mesmo exercerão influência direta para o curso das idéias no período aqui estudado – os séculos XI a XIV. Alguns desses episódios históricos, como, por exemplo, a conversão de Constantino ou a formação do papado no Ocidente, serão reinterpretados e/ou utilizados para sustentar práticas políticas bastante concretas, muitas vezes bem distantes do contexto específico no qual ocorreram. Tais episódios deverão servir ainda para iluminar um pouco a história da formação dessa unidade territorial hoje denominada Europa, a partir do ocaso dos romanos, e sua fragilidade diante dos grandes impérios da época, como o Bizantino ou os poderosos califados muçulmanos. 1 Chamarei de Alta Idade Média, neste trabalho, o período que vai até o final do século X; e de Baixa Idade Média o período que compreende os séculos XI e XV. Como alerta o historiador Jônatas Batista Neto, uma periodização mais rigorosa “reserva apenas aos séculos XIV a XV essa denominação”. Muitos chamam de “Idade Média central” o período entre os séculos XI e XIII – entre eles, Batista Neto. Mas não entrarei aqui num tal debate. Para os fins deste trabalho, essa seria uma discussão inútil, pois a questão não é objeto imediato das reflexões aqui empreendidas: o desenvolvimento da argumentação não depende de critérios precisos de periodização histórica. Cf. BATISTA NETO, J. História da Baixa Idade Média (1066-1453). São Paulo: Ática, 1989. p. 8-9. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A queda da cidade de Ravena,2 e com ela de boa parte do território que havia constituído até então o Império Romano do Ocidente, em mãos do chefe sírio Odoacro, em 476, significou o fim da política romana no setor ocidental. A vitória de Odoacro – fiel a Zenon, o augusto do Oriente, somada à instalação das populações germânicas em reinos bárbaros, principalmente na Europa central, punha uma pedra sobre a hegemonia romana na região: “os latinos acabaram daí em diante ou como massas submetidas ou como um complexo de grupos cultos que colaboraram com o poder dos bárbaros”.3 No plano institucional, portanto, só havia espaço para uma política inspirada nas necessidades desses povos bárbaros e suas formas de organização social. Duas transformações gerais merecem destaque: a substituição do sistema tributário e financeiro romano pelo novo sistema de prestação de serviços; e o retorno à economia natural. A Igreja, por não estar diretamente envolvida com o extinto império, acabou preservada e não participou de sua ruína. Pelo contrário: converteu-se numa instituição autônoma, com um princípio de unidade e órgãos de autoridade próprios. Essa 2 3 Desde o ano de 402-3, com o imperador Honório, a cidade de Ravena havia se tornado a sede da residência do imperador, por ocupar uma posição estratégica para a defesa imperial contra os ataques bárbaros ao norte. Tornou-se assim a capital do Império Romano do Ocidente. Em 476, caiu em poder do chefe bárbaro Odoacro e, em 493, passou ao domínio do ostrogodo Teodorico, tendo-se tornado capital da Itália ostrogoda. Em 540, foi transformada em exarcado imperial, agora em mãos dos bizantinos, passando a ser a capital da Itália e transformando-se no centro de toda atividade administrativa italiana. Era também o principal porto de entrada para os bizantinos. Depois do século VIII, Veneza passou a tomar o lugar de Ravena como o principal porto do Mar Adriático. In: LOYN, H. R. (Org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. p. 312. SAITTA, A. Guía crítica de la historia medieval. México: Fondo de Cultura Económica, 1989. p. 61. 52 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Ecclesia, lembra Saitta, “estava em condições de ser simultaneamente a herdeira e a representante da antiga cultura romana e mestra e guia dos novos povos bárbaros”.4 A Igreja, contudo, passaria por um longo processo de ordenação interna, no qual teriam lugar: o incremento da organização episcopal, em curso desde o século I d.C.; a progressiva cristianização de camadas sociais cada vez mais amplas; e o aumento da influência eclesiástica sobre os bárbaros, por meio da sua progressiva conversão ao catolicismo – que promoveu ainda a “romanização” desses povos –, forjando as bases para uma nova civilização romano-medieval. Os reis bárbaros aderiam à fé católica, mas não abdicavam de seus poderes temporais. Lentamente, os católicos se sobrepuseram aos arianos5 no território europeu. No século VI, embora se tenham erguido igrejas locais independentes de Roma na Gália, Espanha e África, algumas transformações foram fundamentais para a afirmação da superioridade da autoridade do pontífice sobre o poder dos reis. Uma delas foi o surgimento do monaquismo beneditino, por volta de 520, que aplicou à instituição monástica os princípios romanos da ordem e da lei. Também foi relevante a progressiva separação de Roma do predomínio cesaropapista6 de Bizâncio. O Império Bizantino, o grande centro político da época, precisava concentrar suas forças para conter a expansão dos 4 5 6 Ibid., p. 65. Cristãos visigodos e ostrogodos que acreditavam não ser Pai e Filho, na Trindade, compostos da mesma substância. A noção de cesaropapismo tem origem na figura clássica do imperador teocrático romano, que detinha o controle da Igreja e do Estado e era cultuado como uma divindade. O conceito acabou se transformando numa denominação para a teoria de governo segundo a qual os poderes temporais do rex e os poderes espirituais se combinam e são exercidos por um único governante leigo, como no caso dos imperadores bizantinos. Cf. LOYN, op. cit., p. 87. 53 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO povos do Oriente, entre os quais os belicosos mongóis, militarmente muito mais poderosos e ameaçadores do que as tribos germânicas. A preocupação com a defesa da fronteira oriental de Bizâncio acabou resultando num maior espaço para os bárbaros no Ocidente. Com a guerra gótico-grega (535-53), caía por terra a unidade territorial da península, pondo fim ao fiscalismo bizantino na região: estavam abertas as portas às pretensões expansionistas do pontífice de Ravena. Gregório Magno (590-604),7 primeiro pontífice da Igreja latina, “foi na verdade o último grande romano e o primeiro representante da civilização cristã-ocidental”. A ele se deve a codificação da liturgia utilizada até hoje e também a introdução do canto gregoriano nos cultos. Além disso, foi um severo regulador da vida disciplinar da Igreja e guardião da tradição dogmática.8 Consolidou a estrutura da Igreja Católica, reforçando a instituição episcopal e subordinando-lhe o próprio monasticismo, que até então tinha muitas vezes certa autonomia em relação às organizações eclesiásticas. Com ele também a Igreja enriquecera: Ao morrer, em 604, Gregório deixava já firme e bem construída a base sobre a qual o papado medieval edificaria sua própria existência: primazia e raio de ação ecumênico; poder moral indiscutível que não rejeita seus deveres no plano político-mundano; e, finalmente, uma conspícua riqueza econômica para o cumprimento de sua missão.9 Essa evolução terá como epicentro o século VIII. Como resultado da crise européia – que remonta ao expansionismo 7 8 9 As datas assim mencionadas referem-se ao período em que o cargo foi exercido, do início do mandato ao seu término, em geral coincidente com a data da morte de seu ocupante, seja ele papa, rei ou imperador. Essa forma de indicação já constitui hoje um padrão utilizado internacionalmente e será adotado aqui ao longo de todo o texto. Doutrina que afirma a existência de verdades ou princípios corretos que se pode comprovar serem indiscutíveis. SAITTA, op. cit., p. 70 e 72. 54 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS árabe do século VII, com a revolução religiosa de Maomé (571632), e à ruptura da unidade da costa mediterrânea, com a conseqüente destruição da atividade comercial –, tinha início um período em que passava a predominar uma economia puramente agrícola, de tipo latifundiário, baseada na grande propriedade rural, o feudo. O centro da civilização ocidental se movia em direção ao norte – e se manteria por muito tempo entre o Sena e o Reno. Outros fatores também intervieram nessa crise. Entre eles, deve-se mencionar: o problema da deterioração das relações religiosas entre Roma e Bizâncio (por exemplo, a Guerra Iconoclasta, 726-87); uma séria crise política, agravada com o assassinato do éxarchos de Ravena e com o desaparecimento, em Roma, do dux (chefe) bizantino (727) – episódio que causou problemas, na sucessão papal, entre aristocratas armados e clérigos munidos de milícias rurais; a ameaça direta contra a autonomia pontifícia, representada pelo expansionismo longobardo; e o amadurecimento das reformas introduzidas pelo papa Gregório Magno (590-604), que estendiam o poder do bispo de Ravena sobre todo o Ocidente cristão.10 Dois fatos – relevantes para a constituição do papado latino como instituição governamental – acompanharam essa evolução: a inserção da atividade missionária no esquema organizativo episcopal de Roma; e a constituição do papado como um poder político propriamente dito, por meio da formação de um Estado pontifício. A justificação da posse seria logo forjada por meio da falsificação da famosa Doação de Constantino. Além disso, o dinamismo da monarquia francesa, que constituía um obstáculo à ascensão do papado, foi posto em xeque com a deposição do último rei merovíngio e a aliança entre o papado e a nova dinastia carolíngia de Carlos Martel, que conduzira ao trono Pepino, o Grande, em 751. A 10 Ibid., p. 73-5. 55 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO partir daí, a espada francesa e a tiara pontíficia se converteriam nos supremos reguladores do Ocidente cristão, que lentamente passava a se diferenciar do “outro” – o perigo muçulmano.11 A expansão do Império Carolíngio sob Carlos Magno, coroado em 800, passou a abarcar um vasto mosaico de povos escassamente amalgamados. A íntima união entre Império e Igreja Católica, argumenta Saitta, alimentava um ideal estreitamente ligado à essência do novo império: nele a idéia mesma de poder supremo era inseparável da noção do cumprimento de uma missão religiosa, à qual se vinculavam tanto as batalhas militares de Carlos Magno quanto a sua convicção de ser o chefe da Igreja, já que o catolicismo só tinha vingado de fato nos territórios conquistados pelas armas. Essa ligação umbilical entre Império e Papado culminou nos séculos X e XI. Mas os abusos e intromissões do sumo pontífice em disputas políticas de caráter pouco sagrado conduziram a uma gradativa deterioração dessa relação. O predomínio imperial sobre o papado, contudo, só seria pôsto em xeque quando da Questão das Investiduras e seus resultados, assinados na Concordata de Worms, em 1122. O movimento de reforma da Igreja, que começava a tomar corpo e alterava a configuração política da Europa, era apoiado pela nova dinastia sálica.12 Mas o complexo de “Estados” surgidos dos povos germânicos diferia – e muito – dos seus antecessores romanos, pois fundavam-se em outras bases: seu eficiente aparato burocrático, por exemplo, não era “as11 12 Ibid., p. 77. Dinastia oriunda dos sálios, tribo de francos que viviam originariamente às margens do Rio Issel e terminaria por ocupar o território germânico. Na acepção latina mais antiga, o termo remete aos 12 sacerdotes de Marte responsáveis pela guarda dos escudos sagrados que protegiam a antiga Roma. 56 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS salariado”, como em Roma, e sim vivia do produto dos impostos e concessões de terra. Mais importante ainda: o vínculo fundamental com o Império era o da fidelidade pessoal ao imperador, base do sistema feudal medieval. *** Já no mundo árabe-muçulmano, os primeiros imperadores bizantinos promoveram a separação entre Roma e o Oriente por meio de uma helenização cada vez mais intensa. No século VI, Justiniano I (527-65) – “o último grande imperador romano e o primeiro bizantino” – tentou reconstituir a “totalidade” do antigo Império Romano. Dois pontos mereceram especial atenção desse governante: a idéia de um império uno e a difusão do cristianismo. “Subordinou a esse fim”, lembra Steven Wilson, “toda a sua política imperial, administrativa, fiscal, econômica e religiosa, enquanto a grande codificação do direito romano, o Corpus Iuris Civilis, forneceu a estrutura legal unitária para todo o espectro de poderes e prerrogativas imperiais exercidos por Justiniano”.13 Mas a era – e a obra – de Justiniano14 não demorou muito a ruir, sob o peso dos ataques persas e, ao norte, da reordenação de povos que teve lugar ao longo do Danúbio (es13 14 LOYN, op. cit., p. 227. O feito mais significativo de Justiniano I para a história do pensamento político foi provavelmente a reunião de uma coleção de leis e textos jurídicos da antiga Roma, que ficou conhecida como o Codex Justinianus, o Código de Justiniano. O Código era formado de quatro partes: o Codex Constitutionum (527-34), coletânea de antigas leis romanas compiladas em dez livros; o Digesto (530-3), formado por cinqüenta livros com citações de juristas romanos; os Institutas (533), compêndio elementar de instituições jurídicas para estudantes de direito; e as Novellae (514-65): uma coleção de todas as leis promulgadas por ele, esta última a única obra escrita em grego. O Codex Constitutionum e o Digesto foram reunidos no Corpus Iuris Civilis, que logo se tornou a grande referência medieval sobre direito romano. 57 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO lavos, búlgaros, kazares, avares). Além disso, ao sul e a leste o novo Império Árabe-Muçulmano florescia, agora convertido a uma nova religião: o islamismo. O regime de Bizâncio tentou o quanto pôde impedir a eliminação dos pequenos proprietários, cultivadores diretos da terra. Mas pouco a pouco o latifúndio foi conquistando também as novas terras do Oriente e fundando as bases do “feudalismo medieval”, sob as quais as usurpações dos barões diante dos poderes imperiais e religiosos se imporiam por volta do século X.15 Nas vizinhanças do Império Bizantino, entretanto, um Estado árabe, adaptado a uma “ideologia” árabe – que deveria abarcar, além de muçulmanos, beduínos e nômades –, começou a se tornar realidade com o líder reliogioso Maomé (570-632). Os princípios norteadores desse novo sistema de poder foram expostos doutrinariamente no Corão (e na Suna). Depois da morte do guia político e espiritual, surgiu na península a instituição do califado eletivo, modelo que repercutiria mais tarde nas sucessões dinásticas do Ocidente. O Império Árabe-Muçulmano, sustentado agora na lei islâmica, expandiu-se e passou a anexar novos territórios na Europa. Cientes de sua pouca experiência político-administrativa em terras ocidentais, os governantes árabes procuravam manter seu domínio sob as regiões anexadas sem contudo eliminar ou substituir as instituições locais. Um bom exemplo dessa política pode ser encontrado na ocupação da Espanha e do sul de Portugal. Os territórios conquistados eram considerados províncias do império. Os cristãos eram vistos como súditos de segunda classe. Todos os documentos oficiais eram redigidos em grego, e a lei islâmica era a regra de direito público. Mas a conversão à fé islâmica não era obrigatória aos povos conquistados, nem se mexeu no regime de propriedade, que continuou sendo estatal.16 15 16 Cf. SAITTA, op. cit., p. 104. Ibid., p. 110 et seq. 58 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS O Império Bizantino, influenciado sobretudo pelos povos do Oriente, trouxe para a sua religião – hoje denominada catolicismo ortodoxo – o culto à imagem, fortemente rejeitado pelos católicos da Europa e, agora, mais radicalmente ainda, evitado pelos povos árabe-muçulmanos. Esse choque deu origem à Guerra Iconoclasta, com grandes perdas para Bizâncio. Os árabe-muçulmanos impunham-se cada vez mais diante do poderio bizantino. Com a dinastia macedônica, que ascendeu ao poder com Basílio I (867-86), Bizâncio recuperaria parte do esplendor e atravessaria a virada do milênio rivalizando o alcance de sua civilização com a Bagdá muçulmana. Nessa disputa, não havia ainda lugar de destaque para a Europa latina, pobre, fragmentada e imersa em lutas intestinas. Desde Justiniano, Bizâncio já não conhecera mais tal extensão, abarcando agora também os eslavos convertidos ao cristianismo. Mas, depois de Basílio II (976-1025), recomeçou a decadência de Bizâncio para o resto de sua história: o choque com a Europa, marcado sobretudo pelo início das Cruzadas, alteraria definitivamente a configuração de poder no Ocidente latino. Também o Império Muçulmano vivia seu momento de glória e, juntamente com Bizâncio, depois da virada do milênio, conheceria a crise que determinaria seu fim. Paralelamente, a Europa central vivia um momento de “reordenação étnica”. A partir de povos turcos (sobretudo dos kazares, que permaneceram na costa do Mar Negro e ali fundaram um poderoso império), cresceu o acesso, entre os séculos XI e XIII, dos nômades da estepe na direção do Ocidente europeu. Os eslavos “desceram” literalmente em direção à Europa. Em poucos séculos, seu peso se faria sentir de norte a sul, por meio da migração dos povos.17 Nasciam nesse momento os Estados eslavos da Europa. 17 O avanço desses povos se deu fora da zona “iluminada” por textos gregos ou latinos, de modo que quase não há registros destes movimentos. 59 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O feudalismo pôde se desenvolver, sobretudo na Europa ocidental e central, à margem do intenso comércio fomentado pelos árabes, em boa medida em razão da não-intervenção direta dos muçulmanos nos costumes e tradições dos povos conquistados. O fenômeno feudal, que ganhou força no território europeu a partir do século VIII, teve origem na França merovíngia e carolíngia, embora seus elementos constituintes fossem muito mais antigos – já havia manifestações isoladas destes elementos na Itália, por exemplo. De modo geral, caracterizava-se por ser uma nova forma de organização simultaneamente política, econômica e social, e que tinha como base a divisão do poder supremo, o predomínio do campo sobre a cidade, e uma rígida distinção entre as camadas dos senhores e a dos servos e vassalos. Juridicamente, manifestava-se num complexo de instituições organizadas em torno da relação de vassalagem, que tinha como centro o feudo.18 Esse novo modelo significou “a completa desaparição do conceito romano de Estado, substituído pelo vínculo pessoal e hierárquico das pessoas”.19 No século X, à desordem política da Europa somavamse ainda um progressivo empobrecimento econômico e uma grave desintegração do complexo social, devida em parte à repetição do fenômeno migratório. A situação política começou a melhorar apenas com a ascensão da dinastia saxã – de 18 19 Pouco se sabe sobre a sua primeira forma de organização social e política. Cf. SAITTA, op. cit., p. 115. O feudo, de maneira genérica, era constituído de três elementos: o benefício, concessão de terras pelo rei ou pelo senhor; a vassalagem: o favorecido declarava-se vassus (seu, no sentido de posse) do senhor; e a imunidade: transferência ao vassalo, nos limites do feudo, dos poderes políticos desfrutados pelo senhor. O benefício (precarium – propriedade concedida como um empréstimo de um superior) e a imunidade tinham sido utilizados também no Império Romano. Já a vassalagem (comitatus – séquito formado de servos) era de origem germânica. SAITTA, op. cit., p. 134-5. 60 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Oto I e seus sucessores –, que, para superar essa desorganização feudal, entre outras coisas, introduziu por volta de 950 o feudalismo na própria Igreja, criando a figura do bispoconde. Logo depois, o Ocidente também viveria o florescimento do ano mil. A partir do século XI, aprofundou-se o modelo feudal, que conheceria seu auge ao longo do movimento das primeiras Cruzadas.20 A instituição eclesiástica, em especial o Papado, tentava desde o século IX impor-se como força moral e política alternativa aos poderes existentes. Os primeiros sinais do desenvolvimento de uma ideologia eclesial própria – e da valorização da Ecclesia como fator de poder – já começavam a aparecer. Mas o percurso que consolidaria a institucionalização do Papado como organismo de governo só teve lugar no decorrer de um longo processo histórico permeado por infindáveis conflitos entre códigos e espadas, cujo desenho mais bem acabado estaria disponível nas formulações do fim do século XIII. *** Antes de tornar-se um poder capaz de desafiar a tradição e a ancestralidade do Império, entretanto, a Igreja sofreria transformações profundas que modificariam seu caráter inicial. Entre o seu fortalecimento como órgão espiritual e a reivindicação de poder supremo pelo bispo de Roma, a instituição eclesiástica percorreria um longo e conturbado caminho, do qual a batalha entre regnum e sacerdotium constituiu 20 Três fatores contribuíram fortemente para o sucesso das Cruzadas: a introdução do feudalismo entre os povos eslavos convertidos ao cristianismo; o aumento do prestígio da Igreja e do Papado; e o interesse das “repúblicas marítimas” italianas em expandir-se na direção do Oriente. Com a vitória da Primeira Cruzada (1095-99), o feudalismo penetrou também no Oriente. Ibid., p. 140-1. 61 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO provavelmente um dos aspectos mais importantes para o desenvolvimento das idéias políticas que fundamentariam noções centrais da ciência política, como Estado e soberania. Walter Ullmann, num de seus livros mais conhecidos sobre o pensamento político medieval, oferece uma descrição pitoresca dos eventos que envolveram a constituição e a consolidação da organização eclesiástica, sobretudo a partir do século IX. Com a restauração do império, promovida por Carlos Magno,21 os princípios teocráticos, base do poder real, ganharam um novo impulso. Na tentativa de moralizar o reino – e, dentro dele, a Igreja Católica, então corrompida e assolada por todo tipo de desordem –, imperadores e reis apoiaram e promoveram a reforma eclesial, cobrando da instituição um novo padrão de conduta e de organização. As reformas introduzidas no foro eclesiástico foram tão profundas que acabariam por gerar uma instituição com independência suficiente para reivindicar uma visão do mundo de base hierocrática. Conta Ullmann que o pontífice Estêvão IV (816-7), procurando concretizar a idéia papal de criar um “imperador dos romanos”, partiu em viagem à França, onde coroou pessoalmente Luís I, filho de Carlos Magno, em 816. Na cerimônia, ofereceu-lhe a coroa de Justiniano e ungiu-o com os óleos sagrados. A partir daí, explica, a cerimônia de coroamento e a sagração pelo papa passariam a fazer parte de um único ato litúrgico: o primeiro imitava os imperadores de Bizâncio, enquanto a unção, nessa forma de cerimonial, era de origem bárbara e significava ter recebido o rei a graça de Cristo, passando a ser sua “imagem” ou “figura”. A sagração também fazia parte do ritual de posse dos bispos. A diferença, contudo, estava no fato de que a unção real não tinha 21 Carlos Magno, filho de Pepino, o Grande, foi rei franco entre 768-814 e imperador entre 800-14, ano de sua morte. 62 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS caráter indelével, enquanto a dos bispos os encarregava do “cuidado das almas”. Na coroação seguinte – do filho de Luís I, Lotário I, tornado co-imperador por seu pai –, o papa já não mais se deslocou até a França para o ato: convidou Lotário a Roma para realizar o coroamento, que ocorreu no altar-mor da Igreja de São Pedro – onde se perpetuaria desde então. Outro detalhe significativo, conta Ullmann, foi o fato de Lotário ter recebido das mãos do papa, durante a cerimônia, uma espada, símbolo da força física: o imperador passava a receber agora sua “força” das mãos do pontífice e teria assim o dever de protegêlo. Era o início de uma inversão de posições: o império passava a ser agora o “braço armado” da Igreja de Roma. A frase de São Paulo – “o príncipe não deve empunhar a espada sem causa” – ganhava um sentido prático: a razão para empunhá-la era agora “descarregar sua ira contra os malvados”. Em que consistia essa maldade e como erradicá-la era uma definição que cabia àqueles que estivessem qualificados para determiná-la: neste caso, ao sumo sacerdote. Agobardo de Lyon, que escreveu no século IX, contava que o significado concreto atribuído à espada era “o submetimento dos reinos bárbaros para que abraçassem a fé e ampliassem as fronteiras do reino da fé”.22 Setenta e cinco anos mais tarde, quando da coroação de Carlos VIII pelo papa João VIII (872-82), o pontífice deixou claro que o monarca havia sido chamado, eleito e confirmado por ele. E que seria nomeado imperador dos romanos “por privilégio da sé apostólica”. Havia-se dado uma notável transposição do pensamento político abstrato para o plano legal, como observa Ullmann. Ao longo do século IX, os imperadores adotaram exatamente o mesmo raciocínio e ponto de vista do 22 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 73-4. 63 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO papado, segundo o qual o “verdadeiro Império Romano” só poderia ser obtido com a concessão do papa, “rebaixando com isso o imperador do Oriente à categoria de mero governante grego: a universalidade do poder e o domínio estavam reservados ao verdadeiro imperador dos romanos, coroado pelo papa”.23 Nesse momento, era ao imperador bizantino cesaropapista que a Igreja do Ocidente tentava impor-se. A passagem da pura ideologia política à prática foi acompanhada de algumas produções literárias, como a do bibliotecário Anastácio (c. 860), para quem o papa era o vigário de Deus que distribuía o poder sobre a terra, na qualidade de “porteiro de céu”. A amplitude dos poderes de São Pedro para atar e desatar na terra afirmava-se sem ambigüidades: o supremo poder jurisdicional dentro da sociedade cristã passara a residir na pessoa do pontífice. Sob o papa Nicolau I (858-67), essas teses espalharam-se e alargaram-se: à congregação de todos os cristãos – presidida pelo papa e deixada a seu governo – Nicolau I denominou “sociedade de todos os crentes”, cujas leis eram ditadas pelo herdeiro de São Pedro. Ao imperador se concedia poder quando se lhe outorgava o direito de usar a espada. Baseado em tais considerações, Nicolau I forneceu aos princípes instruções muito concretas acerca de seus deveres, entre eles o do extermínio das heresias. Os reis estariam submetidos ao papa. E, portanto, não lhes era permitido julgar seus mestres nem servir a dois senhores, como afirmava o Evangelho.24 O princípio formulado a partir dessa afirmação – e este é um ponto relevante – era o da imunidade eclesiástica diante dos poderes seculares e reais: na “sociedade dos crentes”, as leis eclesiais deveriam ter sempre preeminência sobre aquelas ditadas pelos príncipes. 23 24 Ibid., p. 75. Cf. Mateus 6: 24; Lucas 16: 13. In: A Bíblia. São Paulo: Loyola, 1995. Todas as citações do Livro Sagrado foram retiradas dessa edição. 64 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS As leis seculares podiam existir, mas tinham caráter subsidiário: valiam sempre que não houvesse uma disposição canônica específica sobre a matéria e não contradissessem os princípios de direito eclesiástico.25 E a função das leis, afirmava Nicolau, era alcançar a “ordenação” social. Portanto, se um rei ditasse leis que se afastassem desse esquema jurisdicional ou contrariassem as finalidades de uma sociedade cristã, ele deveria ser desobedecido. Essa resistência, contudo, deveria ser aprovada – só e tão-somente – por aqueles qualificados a pronunciar-se a esse respeito. Adriano II (867-72), sucessor de Nicolau I, sustentava que os decretos papais materializavam a idéia de justiça, dado que esta era a base da lei. O pontífice defendeu ainda que era da sua competência decretar a exclusão de qualquer cristão da sociedade dos crentes, incluindo os reis, pois a estabilidade de um reino dependia do fato de o rei cumprir seus deveres como um governante cristão. O conteúdo da justiça só podia ser definido por aqueles qualificados para tal: os que tinham “os sentidos e a mente de Jesus Cristo”, como afirmara no século VII o papa Gregório II. Acima de tudo, impunha-se “o princípio da divisão do trabalho, segundo a qual cada pessoa ocupante de um cargo, fosse rei, imperador ou bispo, devia limitar-se ao desempenho exclusivo daquelas funções que lhe tinham sido atribuídas”.26 O rei tornava-se minister (servidor): devia governar com eqüidade e justiça, ainda que o conteúdo do justo não pudesse ser definido por ele, mas apenas pelo clero. A sustentação legal dessa posição remontava em geral ao argumento de Isidoro de Sevilha (c. 560-636), que dizia ser a função do rei meramente auxiliar, já que consistia em difundir pela força das armas a palavra dos sacerdotes. Esse era o principal 25 26 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 77. Ibid., p. 78. 65 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO aspecto da função ministerial do rei. As teorias hierocráticas – que pregavam a supremacia da autoridade papal sobre os demais poderes – ganhavam agora mais e mais espaço, difundindo-se entre os reis cristãos. Tais decretos papais, justamente porque não estavam em desacordo com a maioria das leis costumeiras vigentes, não causavam, nesse momento, conflitos de interesses relevantes.27 Mas essa convivência harmoniosa duraria pouco. Os reis ainda podiam possuir igrejas em seus territórios e a elas destinar seus bens por meio de doações. Os filhos de reis e nobres que não encontravam espaço nas sucessões de suas casas eram enviados para a Igreja, o que assegurava a manutenção de laços de fidelidade entre os senhores e o clero local. O senhor leigo controlava, inclusive, os cargos de bispos e abades, pois tinha poderes para designálos: a chamada investidura do clero no cargo e a concessão de seus benefícios (regalia)28 pelo senhor. Esses poderes dos senhores leigos não tardaram a ser alvo de críticas dos religiosos mais radicais. A Igreja, como instituição consagrada a Deus, não podia ser objeto de transação legal: devia ser retirada do domínio dos senhores laicos, que passariam a ser seus patronos e protetores, mas sem direito de dispor dela nem de seus pertences.29 Um tal passo, 27 28 29 Esse descompasso traria conseqüências graves apenas no século XI, quando o império voltaria a reivindicar, em vão, sua supremacia sobre o papado. Plural de regalis [rex], adjetivo neutro, que significa “real”, “relativo à realeza”; “de ou pertencente a um rei ou monarca real”. In: GLARE, P. G. W. (Ed.). Oxford Latin dictionary. Oxford: Clarendon Press, 1982. Ao longo da Idade Média, sobretudo na interpretação cesaropapista, o vocábulo deu origem à noção de “regalismo”: doutrina que sustentava a intervenção do chefe de Estado em assuntos religiosos. A palavra regalia passou para o português a partir da versão espanhola regalía, que quer dizer “direito próprio do rei”, ou ainda “privilégio”, “prerrogativa”. Essa “instituição” medieval constituiria a raiz do conflito pela investidura. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 81. 66 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS contudo, só seria dado no século XII, com o fim da Questão das Investiduras. Constituía, nesse momento, apenas uma das reivindicações de uma ala reformista minoritária da instituição eclesiástica. Mas a transformação no papel do governante temporal operada pelos pontífices não se deu à revelia do poder secular. O caráter sagrado conferido aos imperadores pela unção do papa interessava também aos monarcas, pois os colocava acima do povo: cada governante passava a ser qualificado como Rex gratia dei. Ou seja, com a unção, os reis recebiam diretamente de Deus o benefício de estar acima do povo para nele mandar e para governá-lo. A figura do chefe político distanciava-se mais e mais da forma de governo típica dos povos bárbaros, na qual o rei era eleito diretamente pelos membros da tribo. A unção pelo papa não apenas distinguia o monarca do resto dos mortais, como também evidenciava a legitimidade de seu governo, sancionado pela divindade. Todo poder, tanto do clero quanto dos monarcas, provinha de Deus diretamente aos seus representantes, sem intermediações. Essa era a base da doutrina do poder que afirmava o caráter divino do rei e do Santo Padre: o povo nada tinha a ver com a concessão divina da graça.30 Essa teoria seria usada mais tarde para sustentar tanto as pretensões de supremacia da monarquia papal quanto aquelas dos monarcas absolutos, como ocorreria em França. O governo do rex era exercido sobre o povo, o que reforçava a designação deste como majestas, denominação de origem romana tardia: maior do que qualquer indivíduo de seu reino – de onde foi refinada a noção, conhecida na época, de crime de “lesa-majestade”. A coroação acentuava a superioridade do rei, que se tornava “supremo” dentro de 30 Ibid., p. 84. 67 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO seu reino. O governante passava a ser assim persona ecclesiastica, cujo poder se baseava na observância das regras canônicas. Não havia uma ideologia real capaz de fazer frente às pretensões do papado.31 Mas a Igreja, apesar de influente sobre os poderes seculares do Ocidente latino, teria ainda de enfrentar por diversas vezes as pretensões de conquista de Roma e outros territórios ao norte da Europa pelos imperadores bizantinos. Para fazer frente ao Império do Oriente, o bispado de Roma precisava da figura do imperador romano. O imperador germânico Oto I (936-73), em estreito acordo com o papa João XII (955-63), dispôs-se a defender o pontificado romano dos ataques bizantinos em troca da nomeação de Imperador Romano do Ocidente. O argumento legal contra Bizâncio repousava na afirmação de que o bispo de Roma desempenhava um papel constitucional na criação do imperador do Ocidente – por meio da unção e coroamento do governante, em contraste com o patriarca bizantino, cujo papel na coroação era o de mera testemunha. Nascia assim o Sacro Império Romano do Ocidente. A criação eclesiástica do imperador do Ocidente não tardaria a voltar-se contra o próprio papado. O imperador germânico Oto III assumiu o Codex de Justiniano como a verdadeira origem romana do império e, por duvidar da Doação de Constantino, renovou a transmissão de Roma ao papa Silvestre II (999-1003), em 1001. Roma tomava o lugar de Bizâncio e passava a ser denominada “cidade real”, a cabeça do mundo. Pela reiteração da concessão, o papa passava agora a ser beneficiário do imperador, invertendo a posição até então sustentada pela Igreja. 31 Na concepção hierocrática, o rei estava sujeito às normas sacerdotais, pois não era suficientemente qualificado para ditar normas gerais e vinculantes que afetassem diretamente a estrutura básica da sociedade cristã. 68 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS O golpe era dirigido tanto contra Bizâncio como contra o papado, que agora paradoxalmente havia descido, em virtude da ideologia do Império Romano criada pelo próprio papado, a uma situação não muito distinta da do patriarca de Constantinopla.32 E, justamente porque eram cristãos, os imperadores passaram a promover reformas na instituição eclesiástica, o que acabou colocando a Igreja totalmente sob seu controle. Na tentativa de construir uma cristandade poderosa e universal, o Império forçava o papado a se renovar e a reformar-se completamente, destituindo governantes e nomeando novos pontífices. Os substitutos escolhidos pelo imperador Henrique III (1039-56), partidários fanáticos da causa hierocrática, colaboraram para a reforma substancial da Ecclesia – interesse comum que dividiam com os imperadores. Mas a morte prematura de Henrique dar-lhes-ia a chance de tornar a inverter o estado de coisas em poucas décadas. A própria Igreja assumia agora o comando das reformas e rumava em direção à consolidação teórica e prática da doutrina hierocrática. Essa teoria política da supremacia da autoridade papal desenvolvida pela Igreja na Baixa Idade Média, lembram Souza e Barbosa, combinava fontes legais tão distintas quanto o direito romano, a filosofia neoplatônica e as Escrituras.33 A ênfase era atribuída na maioria das vezes à palavra divina. Do Novo Testamento retirou-se o argumento de que São Pedro teria sido escolhido por Cristo para chefiar a Igreja e, ao mesmo tempo, cuidar de todos os fiéis: Eu, eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão 32 33 ULLMANN, op. cit., p. 95. SOUZA, J. A. C. R.; BARBOSA, João Morais. O reino de Deus e o reino dos homens. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. 69 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino dos céus, e o que ligares na terra ficará ligado nos céus; e tudo o que desligares na terra ficará desligado nos céus.34 O papado lutava, nesse momento, sobretudo para confirmar a sua plenitudo potestatis in spiritualibus. O neoplatonismo forneceria ao clero uma base sólida para essa reivindicação: o postulado de que as realidades superiores contêm em si as inferiores permitia ao papa defender que, dada sua superioridade espiritual, seu poder preexistia ao poder temporal, este “ligado à materialidade das necessidades concretas da vida humana em sociedade”.35 O milênio apenas começara: as pretensões eclesiásticas alargar-se-iam e tomariam novos rumos ao longo dos séculos seguintes. No embate entre império e papado, que se estenderia até o final do medievo, seriam fortalecidos tanto os argumentos em favor da primazia do poder secular quanto aqueles em defesa da plenitude do poder do papa. Nesse processo, novos atores políticos seriam forjados e uma nova realidade de poder seria gestada. É essa história, fundamental para a compreensão do desenvolvimento do pensamento político no Ocidente, que se pretende contar agora. II CÓDIGOS E ESPADAS O historiador francês Jacques Le Goff destaca, num de seus numerosos trabalhos, alguns acontecimentos relevantes que marcaram a história européia entre os séculos XI e XII. O primeiro desses episódios foi o rompimento do bispo de Roma com o patriarca de Constantinopla em 1054. A ques34 35 Mateus 16: 18-9; e Mateus 18: 18. In: A Bíblia, op. cit., p. 1216. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 15. 70 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS tão imediata girou em torno da adequação – ou não – à fé cristã do uso de fermento na confecção da hóstia. Para além do problema de natureza sacramental, a disputa punha em relevo a autonomia crescente da Igreja do Ocidente em relação ao império do Oriente.36 A contenda marcaria definitivamente o afastamento entre as duas Igrejas, matéria que já se arrastava desde o século VI. Em 1059, já no contexto de uma reforma inicial da Ecclesia, teve lugar o primeiro Concílio de Latrão, no qual foi promulgado um decreto que reservava a eleição do papa aos cardeais, retirando do pontificado as pressões vindas dos leigos. O decreto constituiu o embrião do conflito entre o império e o papado, que teria na Questão das Investiduras a sua primeira expressão. Nesse momento, contudo, a Igreja de Roma ainda era pobre, se comparada ao esplendor de Bizâncio. O grego era a língua predominante entre os eruditos, embora o latim ganhasse cada vez mais espaço. Com as traduções de textos árabes e gregos para o latim, sobretudo a partir do século XII, a Ecclesia passaria a dispor de um arsenal mais amplo de idéias e conceitos que permitiriam sofisticar muito o antigo legado romano e entendê-lo sob nova luz. Foi ainda nesse período que ocorreu a revolução econômica que mudaria a face da Europa ocidental. Para Marc Bloch, a base dessa transformação – e seu principal pivô – foram as migrações que ocorreram no período e povoaram os rincões mais distantes do então desconhecido – e desabitado – território europeu. Essas mudanças aconteceram entre 1050 e 1250 – período que o autor denominou “segunda idade feudal”. O efeito mais importante desse intenso fluxo de povoamento foi a aproximação entre os grupos humanos, que pôs fim aos espaços vazios em território europeu.37 Com isso, 36 37 LE GOFF, Jacques. La Baja Edad Media. México: Siglo Veintiuno, 1985. BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1987. p. 86 et seq. 71 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO cresciam as ligações entre os povoados e também as vias de acesso, permitindo a criação de novas rotas de comércio em território europeu. Ao lado de pestes, fome e muita destruição, o século XI no Ocidente foi também fecundo em invenções e acontecimentos. Além da explosão demográfica vivida no período, merecem registro ainda as novas transformações e as descobertas tecnológicas que possibilitaram, na virada do século, a chamada “revolução agrícola”. Também foram relevantes os desenvolvimentos artesanais e industriais, que terminaram por duplicar o progresso agrícola. Os excedentes demográficos e econômicos impulsionaram o crescimento e a formação de centros de consumo: as cidades – ou burgos – que começavam a nascer ao redor das fortalezas. Do ponto de vista da organização social, a sociedade do ano mil era tripartida. Pode-se falar, de modo geral, em três categorias sociais que a espelhavam: o clero, os cavaleiros e os camponeses. Esses três elementos constituíam a estrutura básica do mundo feudal no Ocidente. O clero podia ainda ser subdividido entre clérigos e monges (categoria da época carolíngia); a aristocracia feudal era representada pelos senhores (os guerreiros ou cavaleiros), e tinha caráter militar (comandava os vassalos),38 por fim, entre a massa de trabalhadores figuram os camponeses (servos e homens livres).39 38 39 A casta superior da aristocracia militar e agrícola era formada pela “nobreza de sangue”, que detinha o direito de jurisdição suprema (Hochgerichtsbarkeit): era o juiz nos casos criminais mais graves. Logo abaixo dessa nobreza, vinham os cavaleiros, que ocupavam as funções militares, oriundos também de famílias aristocráticas ou ricas. É preciso incluir nessa categoria fidalga ainda a figura dos “ministeriais”: homens que representavam uma nobreza de serviços, muitas vezes de origem servil. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 19. 72 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Nem todas as forças políticas que se beneficiaram dessas transformações ocorridas ao longo do século XI caminhavam na mesma direção. O período que vai de meados do século XI ao fim do século XII foi marcado, sobretudo no nível político, por infindáveis conflitos entre duas forças teoricamente complementares, regnum e sacerdotium, mas que amiúde se alternavam nos campos de batalha. “O impulso universal que anima a cristandade ocidental parece favorecer a unidade e, com efeito, vê-se que as duas potências que simbolizam essa unidade passam a ocupar o centro da cena política: o império e o papado.”40 Unidos ou não, seria em torno dos interesses desses dois atores que se desenvolveriam as novas idéias políticas. As Cruzadas foram a empresa militar comum dessas forças e acabou se impondo a quase todos os reinos e príncipes cristãos. Durante todo o período das “guerras santas”, que se estendeu de 1098 a 1400,41 o império e o papado lutaram pelo dominium mundi, pela direção dos eventos.42 A pretensão de domínio universal dos dois poderes foi sem dúvida um dos fatores que impediram a unificação política da cris40 41 42 Ibid., p. 77. O auge do movimento dos cruzados, contudo, pode ser localizado entre a Terceira Cruzada (1188) e a primeira metade do século XIII (c. 1250), período em que atraiu leigos de inúmeras camadas sociais interessados em tomar parte nessa atividade devocional à época deveras popular. Bizâncio havia resolvido esse problema de forma diferente: o imperador bizantino reunia em sua pessoa tanto o poder espiritual quanto o temporal; e o patriarca da Igreja era subordinado ao seu poder. A essa configuração do poder se denominou cesaropapismo. Alguns autores falam ainda numa teocracia régia. O Ocidente, por sua vez, não havia definido com clareza as relações entre ambos os domínios. Diferentemente de Bizâncio, os imperadores ocidentais tinham seus domínios em territórios geograficamente distintos dos dos papas: no reino franco e, mais tarde, na Germânia. Já os pontífices haviam se instalado desde o século VIII em Roma e detinham à sua volta um domínio territorial diretamente submetido ao seu poder temporal: o Patrimônio de São Pedro. 73 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tandade. A luta entre sacerdotium e império no Ocidente cristão mesclava reivindicações temporais e espirituais de ambas as partes. Os conflitos crescentes entre os leigos (bellatores) e o clérigos (oratores) ameaçavam a unidade da cristandade. “A cristandade unida sob uma dupla cabeça”, escreve Le Goff, “vai converter-se em seguida no puro sonho que Dante acalentará em fins do século XIII”.43 O impulso de expansão desordenada que se manifestava em todas as partes da Europa ocidental propiciava a formação de unidades populacionais pequenas, de escala local ou regional, centradas na figura dos barões e nobres locais, favorecendo uma certa atomização política. Esse movimento ocorria paralelamente àquele que defendia o fortalecimento de uma cristandade universal guiada pelo imperador e pelo sumo sacerdote. Entre esses dois pólos, começava a se tornar perceptível o surgimento de uma formação de poder alternativa, na qual chefes de um outro tipo iam lentamente colhendo triunfos: os reis e seus reinos. A natureza da autoridade dos reis era dupla, explica Le Goff: de um lado, é um poder religioso que tem sua origem na dupla herança das chefaturas bárbaras e das monarquias orientais [...] que o cristianismo consagrou com a sua unção; de outro lado, é um poder político superior: o da “res publica”, o Estado, o “poder do Estado”, legado pela tradição greco-romana. As insígnias do poder monárquico diante das insígnias imperiais e pontíficias [...] que manifestam o poder universal, simbolizam o duplo caráter (coroa, cetro) que se afirma à margem do sacro.44 Mas até o poder monárquico emergir de fato como fator político principal, dois poderes ainda predominantes se en43 44 LE GOFF, op. cit., p. 77-8. Ibid., p. 78. 74 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS frentariam ao longo dos séculos e, nessa batalha, ajudariam a forjar os fundamentos de uma doutrina do poder supremo capaz de sustentar-se – e isto é importante reter – independentemente da reivindicação de universalidade da cristandade. Como se deu essa transformação? É uma longa história. O importante, contudo, é tentar contá-la. 1. Os fundamentos da reforma eclesiástica Ao desenvolvimento de uma ideologia eclesiástica da supremacia papal correspondeu uma não menos poderosa sistematização leiga de conceitos e noções oriundas do antigo Império Romano, cujo objetivo inicial era reforçar as bases do poder teocrático do império – tanto perante as pretensões de Bizâncio quanto diante dos poderes locais. Depois da restauração tentada por Carlos Magno, no início do século IX, o âmbito da dominação temporal passou a ser amplamente igualado à pessoa do imperador: ele não apenas representava os súditos, mas também incorporava em sua figura o povo e a espada.45 A casa real aparecia como o centro da ordem política. Para pensar de forma adequada as estruturas políticas do século IX, recorda Struve, não era necessário um conceito abstrato de Estado: na Alta Idade Média – marcada por um pensamento holístico – não se concebia uma separação rígida entre as esferas política e religiosa. Também nas antigas teocracias romanas e bizantinas esses dois âmbitos não haviam sido tratados de forma autônoma. As áreas de dominação temporal e espiritual, denominadas na terminologia 45 STRUVE, Tilman. Regnum und sacerdotium. In: FETSCHER, I.; MÜNKLER, H. (Hrsg.). Mittelalter: Von Anfängen des Islams bis zur Reformation. Pipers Handbuch der politischen Ideen, v. 2. München: Piper Verlag, 1993. p. 189-235. 75 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO medieval pelos vocábulos regnum e sacerdotium, estavam incluídas numa ordem que as englobava: a da Ecclesia, que reunia toda a cristandade. A relação entre regnum e sacerdotium era definida em analogia com a relação de subordinação que supostamente existia entre a alma e o corpo. A lei era a alma que governava o corpo da comunidade dos cristãos.46 Dizia-se que apenas por meio da lei um corpo público podia viver, desenvolver-se e alcançar sua finalidade. Essa concepção da alma – na qual a Igreja aparecia como a executora da idéia cristã de justiça que governava o corpo social – e do corpo – associado aos leigos – expressava sobretudo a idéia do governo de um organismo público e corporado por meio da lei.47 A partir da identificação da Ecclesia com o corpo de Cristo (corpus Christi), era possível elevar a totalidade das relações sociais a um nível de abstração que fornecia clareza suficiente para ser compreendido pelos contemporâneos. Durante os primeiros séculos da Idade Média, a Bíblia, a Patrística e alguns poucos textos dos autores moralistas latinos constituíam o principal fundamento para as concepções de domínio e sociedade. Somente os clérigos eram considerados seus intérpretes legítimos, já que apenas eles dispunham da formação necessária para lê-los – além de serem os únicos a poder se apoiar na autoridade de um cargo para comentá-los. 46 47 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 99. Apenas no decorrer das mudanças iniciadas por volta de meados do século XI – que coincidiram com a chamada Questão das Investiduras – a realeza e o sacerdócio começaram a dissociar-se e a se desenvolver na direção de corporações diferentes. O exemplo do organismo sugeria não apenas a idéia de uma liderança homogênea, mas apontava ainda para o princípio da divisão do trabalho segundo as funções. Isso, de um lado, fortalecia a regra monárquica na Idade Média; de outro, fomentava a compreensão da inter-relação de todos os membros, incluindo os mais humildes, para o bem do todo. Cf. STRUVE, op. cit., p. 189-90. 76 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS À esfera temporal-estatal não se atribuía finalidade alguma apenas nela fundamentada.48 Estava muito mais integrada na ordem de salvação geral da Igreja, sua única fonte de legitimação até então. O domínio temporal assumia, segundo essa concepção, o caráter de um encargo (ministerium). O monarca aparecia como um encarregado de Deus (minister Dei) e era responsável pela correta execução de sua função diante do Senhor. A integração da esfera temporal no contexto mais amplo da Ecclesia possibilitou e marcou um primeiro passo no rumo de uma compreensão mais abstrata das relações políticas e socias.49 A formação de uma doutrina eclesiástica específica do sacerdotium, contudo, desenvolver-se-ia apenas lentamente. Esse progresso foi acentuado com o movimento de reforma ocorrido no século XI – sobretudo em virtude das demandas geradas pelo grupo reformista de Roma, ligado ao papa Leão IX (1049-54), ao qual pertenciam personalidades como o arquidiácono Hildebrando – futuro papa Gregório VII – e o cardeal Humberto da Silva Candida. Em seu pontificado, Leão IX tomou providências severas contra a simonia (venda ilícita de bens e cargos sagrados) e a investidura leiga e sancionou um código que normatizava o comportamento moral e religioso do clero e dos fiéis. Estabeleceu ainda o caráter eletivo do papado, reconheceu ordens sagradas e proibiu a comercialização de ofícios eclesiáticos, além de ter privado o clero do porte de armas.50 48 49 50 Como será mostrado adiante, apenas ao longo da recepção de Aristóteles, entre meados do século XII e XIII, acompanhada da recuperação da filosofia natural estóica e daquela desenvolvida pelos árabes a partir dos gregos, tornou-se possível conceber uma fundamentação natural da comunidade política. Cf. STRUVE, op. cit., p. 192. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 19 – cf. também as determinações de Leão IX no Sínodo de Reims. 77 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O historiador inglês Ian Stuart Robinson – especialista em questões religiosas dos séculos XI e XII – faz uma distinção útil entre o que considera dois movimentos de reforma da Igreja, ocorridos entre 1073 e 1198: o primeiro foi aquele inaugurado por Gregório VII, no Concílio Romano de 1074-5, e que ficou conhecido como a “reforma gregoriana” do século XI tardio. Essa reforma “começou sob os auspícios imperiais em meados do século e foi dedicada à erradicação da simonia e do casamento clerical na Igreja”. Nessa fase, a simonia,51 bem mais do que o nicolaísmo, era considerada a primeira e mais poderosa das heresias da Igreja cristã. O segundo movimento teve lugar com a introdução do novo programa de reforma pelo papa Inocêncio II, em 1130, no Concílio de Clermont. Esse programa foi sendo elaborado em sucessivos encontros e ganhou uma forma mais acabada no Terceiro Concílio de Latrão, de 1179, sob o papa Alexandre III. Dizia respeito não à liberdade da Igreja – batalha de Gregório VII, que o conduziu a um confronto direto com o poder secular –, mas à disciplina do clero e ao inculcamento dos padrões cristãos entre os leigos. “Foi no interesse da reforma”, argumenta Robinson, “que o governo papal tornouse mais eficiente e que os procedimentos papais judiciais foram tornados mais efetivos”.52 Em meio aos esforços para o fortalecimento da reivindicação papal de liderança máxima na comunidade dos cristãos, um documento ganhou significado especial: a Doação 51 52 Robinson lembra que, inicialmente, a simonia era definida como a venda de uma ordenação sacerdotal por um bispo. O termo foi mais tarde expandido, passando a recobrir todo o tráfico de coisas sagradas. No século XI, era mais freqüentemente usado para designar a venda do cargo de bispo ou abade pelo governante secular. Cf. ROBINSON, I. S. The papacy (1073-1198): continuity and innovation. Cambridge: University Press, 1996. p. IX. Ibid., p. IX. 78 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS de Constantino (Constitutum Constantini), da qual era possível derivar diretamente a posição eminente do sumo pontífice, e sua jurisdição sobre Roma e sobre os territórios do Estado eclesiástico53 (Patrimonium Petri). Tratava-se de um documento falsificado entre meados do século VIII e IX pela chancelaria papal e se ligava à lenda de Silvestre surgida no século V, nele extensamente narrada. Segundo a Doação, o imperador Constantino (305-37) teria deixado para o papa Silvestre I (314-37) e seus sucessores o palácio de Latrão, em agradecimento pela cura milagrosa54 e por sua conversão. Além disso, teria concedido uma série de privilégios e honrarias imperiais ao papa, entre as quais o direito de portar os trajes e usar as insígnias do poder imperial (o diadema, o cetro e a espada). Teriam sido entregues também ao Estado pontifício as honras e os privilégios do Senado. Finalmente, teria sido cedido ao pontífice o direito de domínio sobre a cidade de Roma e sobre as províncias da Itália, enquanto o próprio imperador teria transferido sua residência para a parte leste do reino, na direção de Bizâncio.55 O motivo imediato para o surgimento da Doação é até hoje desconhecido e fomenta inúmeras especulações entre 53 54 55 As inúmeras versões da Doação podem ser encontradas em: FUHRMAN, Horst (Hg.). Das ‘Constitutum Constantini’ (Konstantinische Schenkung) – Text. Fontes Iuris Gemanici Antiqui, v. X. Hannover: Hahnsche Buchhandlung, 1968. O imperador, depois de ter sido curado de lepra por Silvestre I, “por gratidão, entregou-lhe o governo do Império do Ocidente e da cidade de Roma, retirando-se para Constantinopla”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 68. O argumento da Igreja para justificar o ato de Constantino era o de que não seria justo nem adequado que o imperador temporal tivesse algum tipo de poder no âmbito onde a liderança do sacerdócio e a “cabeça da religião cristã” tivessem sido instituídas pelo imperador celeste. Cf. STRUVE, op. cit., p. 213-4. 79 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO os especialistas. Durante a Alta Idade Média, quando surgiu, o documento não exerceu influência relevante sobre a política papal. Mas, na época da reforma eclesiástica, a Doação passou a integrar os decretos “pseudo-isidorianos”,56 não mais verdadeiros, passando a fazer parte da coleção de documentos canônicos. Os juristas da Igreja, os canonistas, passavam a dispor assim de novos argumentos para sustentar a reivindicação de supremacia do papado, como a igualdade de posição entre o papa e o imperador, e seu poder sobre o território do Estado eclesiástico, de onde derivavam seus direitos temporais. Daí seguia-se a sua preeminência diante dos dominadores temporais do Ocidente, bem como, de modo geral, sua veneração como cabeça da cristandade (caput Ecclesiae). Nesse processo, o imperador Constantino foi transformado em exemplo para o dominador cristão: da sua generosidade para com o bispo de Roma era possível derivar a obrigação do imperador de obedecer e se submeter a São Pedro e ao seu representante na terra, o sumo pontífice. A Doação – recusada por alguns governantes seculares como falsificação – sobreviveu como apoio ideológico à posição eclesial durante a disputa entre o regnum e o sacerdotium, que dominou o período final da Idade Média.57 No contexto da formação – e defesa – de uma doutrina própria da Igreja, a Doação era importante, mas não bastava como fundamento do poder papal, pois nela a posição de poder atribuída ao 56 57 A falsificação das decretais “pseudo-isidorianas” também fortaleceu a posição dos bispos. Segundo essas normas, os julgamentos sinodiais passavam a requerer a confirmação do pontífice, a quem se podia apelar a qualquer momento. Houve uma valorização significativa da posição papal: apenas ao bispo de Roma cabia agora a jurisdição sobre os demais bispos. Ele convocava sínodos cujas resoluções ganhavam força legal apenas por meio da sua confirmação. Apenas em 1440, com o humanista Lorenzo de Valla, ela foi definitivamente decretada como falsa. 80 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS pontífice pela transferência baseava-se no fundo numa concessão imperial, e não numa transmissão divina.58 As questões em torno da reforma da Igreja tinham conseqüências práticas: a partir da afirmação de que a liderança da cristandade cabia apenas ao sumo sacerdote, deveria ser retirada ou diminuída tanto quanto possível a influência dos leigos sobre a Ecclesia. Bispos e clérigos de maneira geral deviam ser excluídos da jurisdição real: não deveriam estar submetidos a nenhum juiz temporal. Também os atos temporais que infringissem as prescrições eclesiásticas deveriam ser vistos como inválidos. Em contrapartida, a jurisdição espiritual deveria ser estendida para âmbitos temporais. Esse era, em linhas gerais, o programa de governo que algumas lideranças eclesiásticas, nesse momento ainda não tão significativas, se propunham a cumprir. Da experiência da Roma antiga parecia ter sobrevivido a idéia de que a aplicação de um sistema monárquico de governo requeria um firme controle dos cargos subalternos. Num governo de tipo papal, isso significava o controle do episcopado, sem o qual nem o pontífice nem o imperador podiam exercer efetivamente seus poderes políticos – esta, aliás, a raiz do conflito pela investidura. A subordinação política, isto é, jurisdicional, do clero ao papa se originou em etapas59 e culminou com a designação significativa de “bispos pela graça de Deus e da Santa Sé” (episcopus Dei et apostolicae sedis gratia).60 A implantação de um controle mais eficaz por parte do papado sobre o clero supunha a regula58 59 60 Cf. STRUVE, op. cit., p. 214. Contra a validade da Doação, também não tardaria a ser levantado o argumento, familiar aos juristas civilistas, de que uma tal transmissão feria os princípios do direito público imperial romano. Começou com o juramento episcopal que os bispos tinham de prestar ao pontífice e com as visitas regulares que deviam render-lhe. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104. 81 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mentação – em moldes constitucionais – da relação entre bispos e papas. O auge desse desenvolvimento foi a afirmação do princípio de que o bispo recebia do papa o seu poder para governar a diocese. A sua suspensão ou deposição, portanto, passava a ser da alçada exclusiva do pontífice. Inicialmente, a novidade foi ferozmente combatida pelo episcopado, pois os bispos equiparavam a identidade de suas funções sacramentais às do papa, apoiados na passagem de Mateus.61 A posição do episcopado não foi vencida, mas terminou relegada a segundo plano a partir do século XII.62 A concepção do papado, portanto, baseava-se na visão de que os poderes políticos do episcopado derivavam dos poderes do sumo sacerdote, que possuía plenitude de poder da qual os bispos apenas participavam.63 Os textos do “Pseudo-Isidoro” também serviam à mesma causa: transformavam reivindicações hierocráticas abertas ou latentes em decretos papais concretos. Atribuía-se aos papas dos primeiros séculos cristãos uma posição que na realidade nem eles nem seus sucessores jamais detiveram.64 Era clara a tendência de orientar toda a constituição da Igre61 62 63 64 “Em verdade eu vo-lo declaro: tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Eu vos declaro ainda: se dois dentre vós, na terra, se puserem de acordo para pedir seja o que for, isto lhes será concedido por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu Nome, eu estou no meio deles”. In: Mateus, 18: 18-20. In: A Bíblia, op. cit., p. 1216. Ela tornaria a reaparecer em meados do século XIV, sob a forma do chamado “conciliarismo”. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104-5. Souza e Barbosa observam que, mais tarde, o mandato petrino será ampliado, e será defendida, p. ex., por Bonifácio VIII, a tese de que o papa, na condição de vigário de Cristo e sucessor e herdeiro de São Pedro é o “monarca do mundo” de facto et de iure entre os cristãos, e apenas de iure entre os infiéis. A alusão às chaves será ainda o argumento papal para a reivindicação de sua superioridade sobre o imperador. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 14. 82 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS ja na direção do papado como centro legal, organizatório e ideal da cristandade. As frases “pseudo-isidorianas” foram amplamente assimilidas nas compilações de direito eclesiástico – que nessa época surgiam em grande número. A tese hierocrática ganhava assim uma base firme. Poucos meses depois de sua entronização, o papa Nicolau II (1058-61) emitiu, no Sínodo de Latrão, em abril de 1059, um decreto eleitoral que regulamentava as futuras eleições papais. Segundo o documento, a escolha de um novo papa passava a ser apenas da alçada de bispos e cardeais – que teriam direito de voto –, enquanto ao resto do clero e ao povo de Roma cabia o direito à aclamação. Em princípio, o papa deveria pertencer ao clero romano. Somente caso não se encontrasse nenhum candidato adequado, poder-se-ia eleger um clérigo de outra proveniência. Caso fosse impossível realizar uma eleição papal em Roma sem obstáculos, deverse-ia poder realizá-la também num outro lugar. O eleito deveria estar imediatamente investido de todos os poderes do cargo, mesmo quando circunstâncias externas impedissem ou atrasassem sua entronização. No chamado “parágrafo do rei”, assegurava-se que os direitos do rei alemão e futuro imperador e seus sucessores – que receberiam seus direitos da cadeira apostólica – deveriam permanecer intocados. Em primeiro plano estavam, portanto, as exigências da cidade de Roma. No interesse da liberdade e independência da Igreja, a nobreza romana – que no ano anterior havia expulsado os reformistas de Roma e instituído um candidato próprio, Benedito X – deveria ser, no futuro, excluída de toda possibilidade de influir na eleição papal. A escolha tornavase tarefa apenas de um círculo restrito de eleitores65 espirituais. O decreto não tocava, contudo, na posição do reino germânico, que tinha o direito de atuação conjunta – deriva65 Desse núcleo desenvolver-se-ia, aliás, o Colégio de Cardeais. 83 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO do do patriciado do rei alemão e do imperador – na instituição de um novo papa. Mas introduzia uma mudança sutil: nomeava esse direito imperial um privilégio honorífico, tornando-o dependente da concessão pontifícia. Expressava-se assim aquele pensamento hierárquico, segundo o qual a eleição do pontífice – e todos os assuntos eclesiásticos – deveria ser apenas da alçada da autoridade espiritual.66 Além dos esforços na direção de uma delimitação mais clara entre regnum e sacerdotium por parte do papado, chamava atenção ainda a posição de liderança que pretendia assumir a Igreja romana dentro da cristandade. As sanções definidas no Sínodo de Latrão contra a simonia, o casamento de padres (nicolaísmo) e os excessos de propriedades da Igreja comprovavam a determinação dos reformistas eclesiásticos de transformar suas reivindicações programáticas em práticas concretas de jurisdição eclesiástica. O sínodo romano, contudo, não recusava o direito de investidura pelo rei alemão de bispos e abades. No tempo em que Gregório VII ascendeu ao trono de Roma, o papado havia concluído que a causa mais forte da simonia era o controle imperial sobre cargos e nomeações eclesiásticas, característico da cristandade ocidental do século XI. Bispos e abades eram usualmente eleitos na presença do monarca e deviam prestar-lhe homenagem feudal. Também recebiam dele a investidura de seu cargo e a propriedade a ele ligada (regalias). A reforma gregoriana constituía, portanto, uma tentativa de acabar com esse controle secular dos ofícios eclesiásticos e com a resultante subordinação do sacerdotium ao poder do regnum. O objetivo dos reformadores era, nas palavras de Gregório VII, “arrebatar [a Igreja] da opressão servil, ou melhor, da escravidão tirânica, e restituir-lhe sua antiga liberdade”.67 66 67 Cf. STRUVE, op. cit., p. 216-7. Cf. ROBINSON, op. cit., p. IX-X. 84 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS 2. A radicalização do partido gregoriano Sob o pontificado de Gregório VII (1073-85), a doutrina hierocrática desenvolvida no círculo dos reformistas ganhou um significado prático. As idéias fundamentais do sumo sacerdote ganharam forma programática nas diretrizes pontifícias do ano 1075, integradas aos registros administrativos eclesiais sob o nome de Dictatus papae.68 Com elas veio claramente à tona a tendência de acentuar – por meio do fortalecimento da jurisprudência eclesiástica – a preeminência da Igreja romana tanto no âmbito eclesial interno como entre os representantes do poder temporal.69 logo a reivindicação de domínio universal seria levantada pela cadeira apostólica. A luta pelo controle das espadas temporal e espiritual envolvia bem mais do que meras ideologias: tratava-se sobretudo de determinar o dominus mundi e conseqüentemente a amplitude de seu poder sobre interesses bastante concretos e palpáveis – e muitas vezes conflitantes. O meio de garanti-lo, este sim, passava por reivindicações de cunho ideológico. E, nesse momento, o que importava era decidir 68 69 Um trecho do documento traduzido pode ser encontrado em SOUZA & BARBOSA, Documento 8, op. cit., p. 47-8. Cabe aqui uma advertência: o que se está afirmando é a existência, nesse período, de uma tendência ao predomínio da concepção hierocrática do mundo e da política. A ascensão dessa doutrina política, contudo, se daria de forma gradual, com avanços e retrocessos tanto conceituais quanto práticos. A teoria da supremacia papal constituía, nesse momento, a base de apenas uma das várias concepções que sustentavam as pretensões em conflito. Essa visão tendia, sem dúvida, a tornar-se a interpretação preponderante, como se verificaria dois séculos mais tarde. Ou seja, os poderes em disputa lutariam ainda durante muito tempo até que essa vertente interpretativa do mundo pudesse se afirmar como uma doutrina predominante. E importa lembrar: sem que jamais tivesse sido hegemônica ou consensual ao mesmo tempo para toda a cristandade. 85 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO qual dos dois poderes, realeza ou sacerdócio, estava mais apto a reivindicar o ofício (officium) de “comissário de Deus” na terra. O grande tema era, portanto, o da distribuição de jurisdições em sentido estrito: os poderes reivindicavam menos o direito de legislar do que a atribuição de quem faz cumprir a lei em nome de Deus nesta ou naquela esfera de governo.70 No que dizia respeito a questões de fé – este ponto, sim, bastante consensual –, cabia apenas à Igreja de Roma – à qual se atestava ainda a infalibilidade – a instância decisória. E disto Gregório VII se valeu imensamente. O papa, a quem se atribuía a santidade do cargo derivada dos merecimentos de São Pedro, não podia ser julgado por ninguém, insistia ele. Na doutrina hierocrática, do ponto de vista genérico, era o sumo sacerdote – investido de autoridade moral e divina – quem decidia sobre os interesses da comunidade, na qualidade de “juiz ordinário”, pois detinha o saber necessário e específico sobre quando se impunha a legislação. Da mesma forma, também no âmbito da jurisdição eclesiástica, apenas o pontífice devia ter o direito de investir os bispos nos seus cargos: a ele concedia-se até o poder de destituir os ausentes. O incremento da importância do bispo romano manifestava-se também no fato de que lhe era permitido introduzir novas leis segundo as necessidades. Apenas ao papa deviamse reservar os privilégios de honras imperiais, tais como o porte de insígnias imperiais, a recitação de seu nome durante a eucaristia e o beijo no pé pelos príncipes. Sua primazia sobre o poder temporal era atestada pelo fato de poder destituir o imperador e desvincular os vassalos do juramento de fidelidade quando julgasse o monarca não “adequado” ao exercício da função.71 70 71 A fonte da lei ainda não constituía objeto de discussão, pois apenas Deus era o legislador supremo. Robinson reclama ser essa noção um dos mais importantes passos para a constituição de um pensamento político papal. Gregório VII, baseado apenas na autoridade pontíficia, utilizou-a pela primeira vez na deposi86 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Tal separação entre os poderes temporal e espiritual, como lembram Souza e Barbosa, não era nova: remontava à doutrina do papa Gelásio I (492-6) que, tentando frear o cesaropapismo bizantino, escreveu ao imperador de Bizâncio Anastácio I (419-518) uma carta na qual expunha alguns dos pilares fundamentais do problema das relações entre os poderes. Entre as afirmações relevantes estavam as de que: 1) o papa possuía a auctoritas, enquanto o imperador e os reis detinham a potestas; 2) ao primeiro cabia – juntamente com seus ministros eclesiásticos – a salvação dos seres humanos: sua missão tinha caráter espiritual e transcendente. Aos demais competia propiciar, neste mundo, o bem-estar de seus súditos; 3) a missão dos sacerdotes era mais relevante do que a dos governantes temporais, o que lhes conferia uma posição de superioridade moral; 4) e o mais relevante: as esferas de atuação próprias do espiritual e do temporal eram distintas entre si.72 A teoria gelasiana das duas espadas, baseada na coexistência de direitos iguais entre regnum e sacerdotium, sofreria na doutrina gregoriana uma reinterpretação no sentido hierocrático. Entre regnum e sacerdotium existiria, de acordo com a interpretação de Gregório VII, uma diferença fundamental quanto à origem e aos objetivos: enquanto o domínio temporal teria sua origem na arrogância humana (superbia) – que podia até ser vista como obra do demônio – e ansiava apenas a vaidade, o sacerdotium, fundado diretamente na 72 ção e excomunhão de Henrique IV: um de seus argumentos foi justamente o da “inadequação” do imperador à sua tarefa. A noção da idoneitas (adequação) do governante secular ao seu cargo, idéia central do pensamento político gregoriano, foi incorporada mais tarde ao Decretum, de Graciano, como parte das leis canônicas. O autor lembra, contudo, que, à exceção de Lotário III, imperador associado ao partido papal, nenhum governante secular alemão abraçou esse conceito gregoriano. Cf. ROBINSON, op. cit., p. 315. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 16. 87 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO investidura divina, empenhar-se-ia em atingir a vida eterna. Mesmo o grau de investidura eclesial mais baixo, sustentava o pontífice, ainda estaria muito acima daquele dos reis e dos imperadores do mundo, em virtude do poder sacramental atribuído ao sacerdócio.73 Os esforços de reforma, intimamente associados à pessoa de Gregório VII, visavam no fundo a restringir a Igreja a uma comunidade de clérigos hierarquicamente estruturada – com o papa no topo –, em oposição à esfera dos leigos. Dessa perspectiva, a reivindicação de liberdade da Igreja (libertas Ecclesiae) em relação aos grilhões terrenos, comenta Struve, foi reinterpretada pelos reformistas como “domínio da Igreja sobre o mundo” (idem). Nessa concepção, o dominador temporal aparecia como um leigo, destituído de sua posição sacral e submetido ao poder de correção espiritual. Isto é, tinha sua figura restringida a um mero laico que exercia seu domínio apenas enquanto ocupante de um cargo (officium) dentro da Igreja. Essa visão do papado tinha como uma de suas bases a idéia de que a exclusão do temporal da jurisdição pontifícia não apenas era contraditória ao caráter onicompreensivo dos poderes de São Pedro para atar e desatar, mas também à própria essência do cristianismo. Dentro do esquema governativo do papado, nem o temporal nem seu governante podiam gozar de uma posição autônoma, independente e autogeradora. Tudo constituía um meio para atingir um fim último, Deus. O sumo sacerdote era o senhor único da comunidade dos cristãos. A unidade do corpo requeria a unidade do governo, que se manifestava na primazia do sumo sacerdote como “sentinela” (speculator) de todas as matérias que concerniam diretamente ao bem-estar da comunidade.74 73 74 Cf. STRUVE, op. cit., p. 222. A plenitude de poderes do papa se concebia completamente no terreno jurídico: em primeiro plano permaneciam o cargo e as leis, e os decretos 88 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS A gradação hierárquica dos cargos assegurava a ordem e o trabalho pacífico de a toda comunidade. Essa ordem se manteria enquanto todos e cada um dos membros da comunidade se mantivessem nos limites das funções para as quais foram designados. O princípio da divisão do trabalho constituía um elemento vital desta concepção. A suprema autoridade, por estar acima da comunidade dos crentes, desempenhava suas funções diretivas como um timoneiro (gubernator). De modo semelhante, uma aplicação conseqüente desse programa político do papado exigia a pretensão de controlar os governantes seculares – o imperador de forma diferente dos demais reis, por ser aquele o “braço armado” da Ecclesia.75 O conflito entre regnum e sacerdotium – que se tornou iminente com a intransigência das reivindicações do movimento reformista eclesial – manifestou-se abertamente na disputa pela investidura, a cerimônia de posse que investia o religioso com as insígnias do cargo. No confronto, que durou gerações, o tema da investidura, isto é, da legitimidade do monarca medieval para empossar bispos e abades, foi somente o estopim do conflito. O que estava de fato em jogo era sobretudo a definição da posição e da função do dominador cristão dentro da comunidade universal da Ecclesia. Com a reivindicação de liderança da cristandade pelo papado re- 75 dele emanados. A validade de um decreto em nada dependia da pessoa do pontífice. A idéia subjacente era a de que nenhum papa sucedia a seu predecessor em suas funções papais, mas sucedia a São Pedro diretamente e sem intermediários. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 97 e p. 102. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 104. Essa seria a base da teoria das duas espadas de Bernardo de Claraval, desenvolvida pouco depois, segundo a qual o papa tinha poder de iure sobre as espadas temporal e espiritual, mas cedia a primeira ao imperador, que, na qualidade de braço armado da Igreja, sustentava essa espada por ordem do papa. Uma vez corado, o imperador passava a ter o poder de facto sobre o gládio material. 89 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO formista, colocava-se o problema de quem deveria ser, no futuro, a cabeça (caput) na Ecclesia – esta entendida como corpo orgânico. Isto é, qual dos dois poderes deveria chefiála.76 O problema tornou-se ainda mais agudo quando a Igreja passou a pôr em dúvida o caráter sagrado da realeza, propagando a idéia de uma associação entre poder temporal e condição leiga. O movimento reformista questionava os próprios fundamentos da ordem de dominação teocrática, predominante na Alta Idade Média. A instituição eclesiástica caminhava agora na direção de uma corporação – além de religiosa – também juridicamente fechada, na qual a idéia da Igreja coincidia, conceitualmente, cada vez mais com aquela da comunidade dos clérigos. A realeza, uma autoridade fundada apenas na tradição e no costume, parecia despreparada para responder aos reformistas hierocráticos e precisaria de algum tempo até produzir códigos adequados para o enfrentamento das novas reivindicações eclesiásticas. Enquanto isso não ocorria, valia-se da espada, que, de todo modo, era sua especialidade. A Questão das Investiduras foi bastante longa e envolveu avanços e retrocessos em ambas as posições.77 A resposta de Henrique IV – rei alemão e imperador dos romanos – às 76 77 O medievalista alemão Gerd Tellenbach resumiu esta disputa de maneira clara e precisa: segundo ele, a batalha entre realeza e sacerdócio constituía um problema de dois poderes fundados por Deus. E a grande disputa da época era a de decidir se um deveria se submeter ao outro, ou se deviam ser considerados dois poderes independentes, tal como havia proposto Gelásio I. “Estas duas alternativas”, diz ele, “têm sido freqüentemente subsumidas nos termos monismo e dualismo”. In: TELLENBACH, G. The church in western Europe from the tenth to the early twelfth century. Cambridge: University Press, 1996. p. 352. Uma discussão bastante detalhada dos episódios que envolveram a disputa pela investidura de bispos e abades pode ser encontrada em TELLENBACH, op. cit., p. 185-303. 90 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS medidas de Gregório VII foi dada num sínodo por ele convocado, em Worms, no ano de 1076: com os votos de 24 bispos alemães e dois italianos, o papa foi deposto. O pontífice respondeu negando ao imperador o direito de exercer o poder na Germânia e na Itália e ordenou a todos os cristãos que lhe negassem obediência – desde o século IV (394) não ocorria mais excomunhão na Igreja. O imperador ficava impedido, entre outras coisas, de receber os sacramentos. Além disso, Gregório VII passou a apoiar as pretensões de Rodolfo da Suábia ao trono alemão, como forma de pressionar o imperador a arrepender-se.78 Como o descontentamento de bispos e nobres dentro do reino germânico aumentasse, Henrique IV – numa estratégia para ganhar tempo e adesão – dirigiu-se à Canossa e solicitou ao papa sua absolvição. Depois de cumprir três dias de penitência à porta do castelo, sob o rigor do inverno europeu, o imperador foi absolvido pelo pontífice, em janeiro de 1077. Henrique, contudo, para vencer os inimigos no reino, recorreu novamente à investidura e à simonia. Resultado: em março de 1080, ele foi novamente excomungado pelo papa. À nova expulsão, Henrique IV respondeu com a eleição do antipapa,79 Clemente III (1080-1100). Gregório recorreu 78 79 Um ponto que merece destaque nesse conflito entre o império e o sacerdócio – lembrado freqüentemente por especialistas – é o fato de que o papa Gregório VII, inicialmente, não pretendia uma confrontação. Pelo contrário: o pontífice alimentava a esperança de conseguir envolver Henrique IV no movimento de reforma da Igreja. Por isso também estava disposto a reconhecer o imperador como o “chefe dos leigos” (laicorum caput), mantendo ao mesmo tempo o respeito à primazia do poder dos clérigos no âmbito temporal. Somente depois do conflito aberto entre a realeza e o papado, em fins de 1075 e início de 1076 – ao longo do qual Henrique IV foi ameaçado de excomunhão e banido da Igreja por Gregório VII –, a preeminência do sacerdócio elevou-se ao nível programático. O segundo grande tema do livro de Robinson trata justamente das cisões vividas pela Igreja entre 1073 e 1198. Três cismas dominaram, 91 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO aos nômades (vindos sobretudo das estepes) da Itália meridional para defendê-lo. Em 1084, Henrique se apoderou de Roma e fez coroar Clemente III. No ano seguinte, Gregório morreu em Salerno, quando deixava o exílio no castelo normando de Sant’Angelo. Seu sucessor, Urbano II (1088-99), comandou a reação, apoiando os inimigos de Henrique IV. Em 1094, entrou novamente em Roma. No ano seguinte, o pontífice lançava a Primeira Cruzada e, como chefe da cristandade, convocava-a para um empreendimento coletivo do qual o imperador excomungado estava excluído – e também os reis de França e Inglaterra. Com a morte de Urbano II, o conflito continuou, agora sob o comando de Pascoal II (1099-1118), a quem só interessava a independência do clero. O pontífice chegou a propor, na Concordata de Sutri, que a Igreja abandonasse a posse das regalia –80 tese que, é claro, não vingou. O imperador agora era Henrique V (1106-25), herdeiro de Henrique IV – seu pai havia morrido pouco antes numa batalha nos campos da Itália. Henrique V recusou o acordo de Sutri, encarcerou o papa e obrigou-o a reconhecer a investidura leiga para os bispos. A concessão forçada, contudo, foi logo depois anulada. Em 1122, depois de muita relutância – e já sob o pontificado de um outro papa, Calixto II (1119-24) –, o impera- 80 segundo o autor, o papado nesse período: o do antipapa Clemente III (1080-1100) e seus sucesores, que durou até 1121; o cisma de Anacleto II (1130-8); e o dos antipapas Vítor IV (1159-64), Pascoal III (1164-8) e Calixto III (1168-78). Cada um desses antipapas, recorda Robinson, foi sustentado por um governante secular suficientemente poderoso para expulsar o papa legal de Roma em direção ao exílio: Clemente III pelo imperador Henrique IV; Anacleto II pelo rei Rogério da Sicília; e Vítor IV e seus sucessores pelo imperador Frederico I da dinastia dos Hohenstaufen. Cf. ROBINSON, op. cit., p. X-XI. Propunha o pontífice renunciar à posse de grandes feudos. Em troca, ficaria restrita à Igreja a liberdade de eleger bispos e também a investidura no cargo. 92 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS dor Henrique V pôs fim às negociações, assinando a Concordata de Worms. Segundo o tratado, o imperador renunciava à investidura mediante o báculo e o anel, mas conservava o direito de vigilância sobre as eleições eclesiais no reino alemão, reservando-se ainda o poder de decidir eleições contestadas. Conservou também o direito de conceder a investidura dos bens temporais (regalia) mediante o cetro, podendo fazêlo, em território alemão, entre a eleição e a consagração dos escolhidos. Na Itália e na Borgonha as eleições episcopais eram livres e, por isso, o bispo só precisava prestar juramento de fidelidade ao imperador seis meses depois da consagração. Entre as conseqüências relevantes da disputa estavam a libertação da Igreja do cesaropapismo germânico e o reforço do prestígio e da autoridade moral da instituição papal. “A renúncia à investidura com anel e bastão – alcançada cedo ou tarde em toda parte – foi um sucesso para o movimento em direção a uma demarcação mais nítida da influência leiga dentro da Igreja, pois tornou claro que os direitos residuais dos leigos não eram de natureza espiritual.”81 3. Regnum e sacerdotium: os fundamentos da disputa pelo poder supremo Se a contenda foi árdua na prática, mais acirrada ainda foi a disputa no campo das idéias. A literatura que se produziu para a defesa das pretensões de ambos os lados não foi tão inovadora como aquela que surgiria como resultado do confronto entre Filipe, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII, na aurora do século XIV. Mas, sem dúvida, fazia avançar a construção conceitual. 81 TELLENBACH, op. cit., p. 286. 93 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Os textos de disputa tinham, de modo geral, caráter panfletário e dispunham-se em duas trincheiras: aqueles que defendiam a posição imperial; e os que sustentavam as pretensões eclesiásticas. Parte desses documentos, de difícil acesso, foi reunida séculos depois sob o nome Libelli de lite e constitui hoje a principal fonte para o estudo da história do pensamento político no período. É o desenrolar desse debate, em suas linhas gerais, que se pretende reconstruir agora. A realeza sálica, em oposição às pretensões hierocráticas do papado, esforçava-se para enfatizar a noção do “rei pela graça de Deus” (rex gratia Dei): Henrique IV opunha repetidamente ao pontífice o fato de não ter recebido sua honra deste, mas diretamente de Deus. Diferentemente das idéias do círculo influenciado pelo pensamento gregoriano, direcionadas para uma rígida submissão do poder temporal, levantava-se entre os defensores da realeza, inicialmente, apenas a reivindicação de igualar as esferas do regnum e do sacerdotium. Essa posição foi defendida de forma eficaz num manifesto propagandístico de Henrique IV, de autoria do notário imperial Gottschalk de Aachen, em 1076.82 Nele foi usado 82 Por constituírem textos de difícil acesso – e quase sempre inexistentes em bibliotecas brasileiras, à exceção da compilação eclesiástica reunida sob a denominação Patrologia latina –, a citação de escritos dos autores da época seguiu aqui dois critérios básicos: 1) o recurso às fontes primárias sempre que possível; 2) a referência completa das fontes secundárias quando o original não pôde ser conferido. Boa parte dos textos que compõem os Libelli de lite aqui citados foi retirada da conhecida obra de referência, os Monumenta Germaniae Historica (MGH), editada editada por E. Dümmler et al. Societas Aperiendis Fontibus Rerum Germanicarum Medii Aevi. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1891. Os inúmeros volumes dos MGH subdividem-se em cinco grandes grupos: Scriptores; Leges; Diplomata; Epistolae; e Antiquitates. Os textos de disputa aqui utilizados foram aqueles constantes nos volumes referentes aos Scriptores, intitulados: Libelli de lite imperatorum et pontificum, saeculis XI. et XII. conscripti. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1891 e 1892. t. I e II. 94 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS pela primeira vez, conta Struve, a imagem das duas espadas como designação direta de regnum e sacerdotium.83 O autor, que também compunha sermões e sentenças, sustentava a existência de uma dualidade (dualitas) entre regnum e sacerdotium e defendia enfaticamente a coexistência de direitos e valores iguais por parte dos dois poderes, cuja validade podia ser reivindicada para todos os reinos cristãos. Segundo Gottschalk, a corporação eclesiástica – simbolizada pela espada espiritual – devia exortar os vassalos a obedecer o monarca, que governava no lugar de Deus. Ao poder real – identificado à espada temporal – cabia proteger a cristandade dos ataques inimigos tanto interna quanto externamente. A relação dos poderes entre si devia orientar-se segundo o princípio do respeito e do reconhecimento mútuos.84 A competência do príncipe secular limitar-se-ia ao âmbito temporal. Mas nesse âmbito seu poder era ilimitado.85 Não se esclarecia nessa abordagem, contudo, a problemática da delimitação das áreas de competência que deveriam caber a cada um dos poderes, regnum e sacerdotium. 83 84 85 Cf. STRUVE, op. cit., p. 224. Sua posição baseava-se na passagem de Mateus: “E ele lhes disse: ‘Quando eu vos enviei sem bolsa, nem alforje, nem sandálias, algo vos faltou?’ Eles responderam: ‘Não, nada’. Ele lhes disse: ‘Agora, porém, quem tiver uma bolsa, tome-a; da mesma maneira quem tiver um alforje; e aquele que não tiver espada venda o manto para comprar uma. Pois eu vos declaro, é preciso que se cumpra em mim este texto da Escritura: Eles o contaram entre os criminosos. E, de fato, o que me concerne vai se cumprir’. – ‘Senhor, disseram eles, eis aqui duas espadas’. Ele lhes respondeu: ‘Basta’.” In: Mt. 22: 35-8. In: A Bíblia, op. cit., p. 1299. Cf. ERDMANN, C. (Ed.). Die Briefe Heinrichs IV. Freiherr vom Stein-Gedächtnisausgabe, n. 12, Darmstadt: 1963, p. 5-28. Ed. bilíngüe de FranzJoseph Schmale, retirada de MGH Deutsches Mittelalter. Stuttgart: 1937. t. I. Para o debate na época, cf. ANTON, Hans H. Beobachtungen zur heinrizianischen Publizistik: Die Defensio Heinrici IV. regis. In: Historiographia mediaevalis. Darmstadt: 1988. p. 149-67. 95 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A realeza sálica reivindicava assim nada menos do que a autonomia da esfera estatal-temporal. De outro lado, a defesa dessa posição, baseada no argumento gelasiano da independência das duas espadas, temporal e espiritual, deixava aberta a possibilidade de uma reinterpretação, pelos opositores, no sentido de retirar o poder espiritual do âmbito de dominação do imperador, rompendo com o modelo cesaropapista de Bizâncio e aquele da antiga teocracia régia dos gregos e romanos. Essa muito provavelmente não tinha sido a intenção imediata do notário, partidário das forças imperiais. Mas essa conseqüência lógica não tardaria a ser tirada pelos defensores do pontífice. De toda maneira, essa diferenciação estabelecida por Gottschalk de Aachen significava um primeiro passo na direção do desenvolvimento de uma esfera de poder autônoma e secular. A renovação das sanções contra Henrique IV, em 1080, conduziu a um debate sobre os fundamentos da relação entre o poder temporal e a corporação dos clérigos. No centro estavam dois temas estreitamente inter-relacionados: a questão da legitimidade do papa na destituição do rei alemão; e a desvinculação dos vassalos do rei do juramento de fidelidade ao imperador. O tema era complexo, pois Henrique IV era ao mesmo tempo rei alemão e imperador dos romanos. A discussão materializou-se nos chamados textos de disputa das Investiduras (Libelli de lite), marcando os primeiros testemunhos de uma publicística na Idade Média. Bernoldo de Constança, monge de S. Blasien e Schaffhausen, teólogo e canonista suábio, saiu em defesa das teses gregorianas. Em numerosos tratados e escritos litúrgicos, ele opinou a respeito de questões contemporâneas como a simonia e o nicolaísmo e tratou também de questões dogmáticas. Num de seus tratados, o De solutione sacramentorum (c. 1085), Bernoldo se posicionou claramente contra as pretensões teocráticas do rei germânico e imperador do Ociden96 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS te. Para ele, a Igreja era uma instituição de salvação hierarquicamente estruturada, em cujo topo estava o papa. Por essa razão, sustentava ele, o primado da cadeira papal não conhecia limitações. Suas decisões, conseqüentemente, não deviam ser questionadas por quaisquer das partes.86 Uma investigação sobre a legitimidade do banimento de Henrique IV, tal como havia sido reivindicado pelos seguidores do monarca, constituiria assim uma exigência descabida. Para Bernoldo, era fato inquestionável que ao sacerdotium cabia a primazia sobre o regnum. Pois a dominação temporal, dizia, era uma criação humana (humana inventio) e, como tal, não podia – diferentemente da corporação eclesiástica – reivindicar para si a investidura divina. Também por isso não havia dúvidas de que cabia ao papado, em virtude de sua autoridade, o papel de árbitro na disputa pelo trono alemão. O critério fundamental para julgar o governante temporal repousava não apenas na sua disposição de empenhar-se em favor dos assuntos da Igreja, mas sobretudo na sua obediência à cadeira pontifícia.87 Também Manegoldo de Lautenbach, religioso que viveu na Bavária e morreu na Alsácia entre 1103 e 1119, foi um defensor árduo do partido papal. Foram de sua autoria dois textos divulgados no período, o Contra Wolfelmum, no qual discute os perigos do avanço da filosofia natural e a querela da investidura, e Liber ad Geberhardum, obra na qual ataca os juristas imperiais e também o imperador. Manegoldo compartilhava da concepção gregoriana, segun86 87 Cf. PERTZ, G. H. (Ed.). Chronicon. In: MGH Scriptores. Hannover: Impensis Bibliopolii Hahniani, 1844. t. V, p. 385-467 (esp. crônicas dos anos 1080 e 1085). A fim de acentuar essa submissão, Bernoldo fez no documento longos elogios ao anti-rei Rodolfo da Suábia por sua defesa dos militantes do partido gregoriano. Consta que Rodolfo os teria caracterizado como militantes incansáveis da Igreja e “soldados de São Pedro” (miles sancti Petri). Cf. STRUVE, op. cit., p. 226. 97 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO do a qual a dominação temporal devia ser entendida como uma obra humana. Suas restrições ao poder temporal levaram-no à conclusão de que a realeza seria, em princípio, dispensável – diferentemente do corpo ecelesiástico, insubstituível para a vida cristã. No âmbito em que aceitava a dominação real, contudo, enquanto instituição imposta pelo pecado original dos homens, atribuía-lhe em primeiro lugar uma tarefa defensiva: a proteção dos vassalos contra ataques violentos, a defesa dos seguidores da lei e a rejeição aos malfeitores.88 A idéia da adequação ao cargo (officium) já havia fornecido um fundamento teórico para intervir contra um governante que não cumprisse com suas obrigações diante da Igreja e do povo. No contexto de sua “teoria do contrato” – que, é claro, nada tinha que ver com o pensamento da moderna “soberania do povo” –, ele entendia a autoridade do príncipe secular como um ofício cedido pelo povo e delimitado no tempo. Caso o governante infringisse seus deveres de dominador, como assegurar o bem comum e proteger os súditos, ele romperia o contrato (pactum) que o ligava aos vassalos, de maneira que estes estariam liberados de toda obrigação para com o senhor e poderiam – e isto era a conseqüência prática importante – submeter-se a um outro rei. Para justificar essa posição, Manegoldo recorreu à metáfora tradicional – conhecida do populacho – do pastor de suínos que esquecia de cumprir suas obrigações e, por causa de seus erros, tinha sido expulso de seu ofício pela comunidade.89 Ele diferenciava assim com clareza entre o cargo transferido pelo povo e a pessoa de cada um dos detento88 89 Cf. FRANCKE, K. (Ed.). Contra Wolfelmum libro. In: MGH Libelli de lite. t. I, p. 300-8 (esp. p. 306, c. 23.13-35). STRUVE, op. cit., p. 226. A menção original pode ser encontrada também em FRANCKE, K. (Ed.). Liber ad Gebehardum. In: MGH Libelli de lite. t. I, p. 309-430 (cf. esp. c. 30). 98 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS res.90 A teoria de Manegoldo em favor da possibilidade de destituir um governante injusto era, porém, menos determinada por idéias solidamente fundadas em códigos legais do que pela prática medieval do direito de resistência, herdada das tribos germânicas.91 De qualquer forma, já era visível que o conceito gregoriano da idoneitas do dominador temporal fazia escola. Contra as reivindicações de liderança levantadas pela Igreja, os defensores da casa sálica reforçaram a idéia da legalidade do regnum, sua antiguidade e sua concordância com a tradição. O escolástico Wenrich de Trier, em sua defesa da concepção teocrática de governo, assumiu a causa do imperador. A realeza (regnum) era para ele um poder instituído por Deus, ao qual o próprio papa devia obediência.92 Sustentava a defesa da posição real no princípio da antiguidade 90 91 92 O argumento aparece na mesma passagem mencionada na nota de rodapé n. 88. Essa distinção entre o cargo e a pessoa de seu detentor ganharia argumentos mais sólidos ao longo do século XII e, no século XIII, já constituiria uma premissa da discussão a respeito da política e da função pública do governante. A esse respeito, cf. KANTOROWICZ, E. H. The king’s two bodies. New Jersey: Princeton University Press, 1957. Trata-se aqui sobretudo da prática de resistência herdada dos reinos bárbaros. De acordo com o direito costumeiro das tribos germânicas, o povo podia depor o governante caso discordasse de suas práticas. Esse argumento podia ser confirmado, lembrava Wenrich, por meio da leitura das Escrituras quando propõe: “seculares hystorias revolvamus”. E escrevia: “‘Arma militiae nostrae non sunt carnalia’, sed spiritualia. [...] Summus pontifex oboedientiam se regibus debere protestatur et asserit, ea debiti necessitate ad ea, quae mentis iudicio ipse reprobat, pro tempore toleranda aliquando descendit, quae tamen ipsa quantum sibi displiceant, adepta oportunitate, salva in omnibus principis reverentia, aperte innotescit. Unde cum legem de militibus ad conversionem minime recipiendis imperator promulgari iussisset, legem quidem latam quam Deo adversari videbat, statim exhorruit, sed tamen illam ex iussione principis ad omnium notitiam ipse, qui eam inprobabat, insinuare, non distulit”. In: FRANCKE, K. (Ed.). Epistola. In: MGH Libelli de lite. t. I, p. 291, c. 4. 99 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO do reino: desde o início do mundo teriam existido reis. A ênfase recaía na legitimidade divina do reinado sálico: o imperador, na qualidade de “ungido do Senhor”, não podia simplesmente ser destituído como um mero detentor dependente de um cargo. Além disso, a prática da investidura pelo rei alemão justificava-se totalmente, segundo ele, pela tradição do direito canônico, pela Bíblia e pelos escritos dos patriarcas da Igreja. Segundo ele, o pontífice procedera de maneira apressada no conflito das investiduras. Como vários outros contemporâneos, Wenrich não pretendia negar uma certa validade às idéias dos reformistas acerca da investidura de leigos. Nem mesmo o imperador havia sido contrário às reformas: havia um consenso geral a respeito do fato de que era preciso recuperar a credibilidade moral do papado, abalada pela corrupção e pela fragilidade da instituição ao longo da Alta Idade Média.93 Sua crítica dirigia-se ao conteúdo das reformas: elas estariam sendo determinadas mais por interesses político-partidários do que por reflexões religiosas profundas. A postura moderada de Wenrich de Trier ante a Igreja – que, aliás, retratava também a visão de grande parte do episcopado fiel à realeza – poderia ser resumida em seu famoso comentário: para consertar uma fissura na parede, não se deveriam abalar as bases de toda uma casa.94 93 94 “Non est novum, regiam dignitatem indignari in eos, quos vident in se sacrilega temeritate insurgere; non est novum, homines seculares seculariter sapere et agere. Novum est autem et omnibus retro seculis inauditum, pontifices regna gentium tam facile velle dividere, nomen regum, inter ipsa mundi initia repertum, a Deo postea stabilitum, repentina factione elidere, cristos Domini quotiens libuerit plebeia sorte sicut villicos mutare, regno patrum suorum decedere iussos, nisi confestim adquiverint, anathemate damnare”. In: FRANCKE, op. cit., p. 290, c.4. No original: “Sed non ita, inquiunt, scissuram parietis convenit resarciri, ut totum domus fundamentum inde contigat labefactari”. In: FRANCKE, op. cit., p. 288, c.3. 100 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Um avanço mais substancial na defesa da posição imperial, entretanto, deveu-se aos escritos de Pedro Crasso. O jurista italiano, em seu Defensio Henrici IV. regis (1084), abriu uma nova perspectiva argumentativa ao recorrer ao antigo direito romano – que na Itália nunca havia desaparecido por completo –, em especial ao Codex de Justiniano, para fundamentar a posição da casa sálica. Para Crasso, o mundo dividia-se em duas esferas de direito (duplices leges), independentes entre si e originadas de Deus: o direito canônico para o âmbito espiritual; e as “leis sagradas” (sacratissimae leges) do direito romano para o âmbito temporal.95 Ao sustentar o direito como categoria fundamental para a ordenação da comunidade humana, Crasso tornava a letra um ideal característico do período medieval, aquele da nomocracia. Uma vida sem leis igualava-se, em seu raciocínio, à existência dos animais irracionais.96 Em sua concepção, tanto as leis de maneira geral quanto a dominação temporal eram derivadas diretamente de Deus. Nessa perspectiva, a esfera secular era retirada do âmbito do poder papal. Em sua defesa do império, o autor recorreu tanto à argumentação tradicional – retirada do texto bíblico Epístola 95 96 “Tum illa omni mora remota sic est exorsa: ‘Quoniam conditor rerum in rebus, quas condidit, nihil homine carius habuit, duplices ei contulit leges quibus fluctivagam compesceret mentem ac se ipsum agnosceret conditorisque sui mandata servaret; sed harum unam per apostolos successoresque eorum ecclesiasticis assignavit viris, alteram vero per imperatores et reges saecularibus distribuit hominibus, beato Augustino huic rei testimonium perhibente: ‘Ipsa’, inquit, ‘iura humana per imperatores et reges seculi Deus distribuit humano generi’”. In: HEINEMANN, Lothar von (Ed.). Defensio Henrici IV. regis. In: MGH Libelli de lite. t. I, p. 438, c. 4. Uma passagem do documento está traduzida para o português e pode ser encontrada em SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 61-2. “Abolitis enim legibus, nonne parum vivere a brutis animalibus redarguimur?”. In: HEINEMANN, op. cit., p. 445, c. 7. 101 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO aos romanos –97 quanto à noção do dominador enquanto “imagem de Deus” (imago Dei) de Ambrósio. Para justificar o governo de Henrique IV, Pedro Crasso sustentou tanto a hereditariedade da realeza e do império – que existiria desde tempos imemoriais – quanto a continuidade da dominação dentro da casa sálica. Recorrendo ao direito romano de bens e de família, comentava que Henrique IV seria o detentor legal do poder tanto no sentido jurídico, devido ao direito de herança, quanto no sentido material, devido à posse factual das coisas (“...Nonne Henricus rex iure et corpore possidet regnum?...”) (cf. c. 6.33-34). Ao assumir o direito romano de majestade da Lex Iulia (I. 4,18,3) – segundo a qual qualquer ataque contra o imperador e seu Estado deveria ser punido como um crime merecedor de pena capital –,98 Crasso reforçou a posição do rei. A causa do imperador ganhava assim uma sustentação expressiva: com base na continuidade – sem ruptura – do direito romano, Henrique IV era igualado aos imperadores romanos. Como o direito de majestade dizia respeito não apenas à pessoa do governante, mas também ao bem comum (respublica) de maneira genérica, como um bem que merecia ser protegido, sustentava-se a idéia de um conceito de Estado para além da pessoa do monarca. Embora a recorrência ao direito romano em Pedro Crasso servisse para fortalecer sobretudo o princípio monárquico, a retomada desse corpo legal apontava para um desenvolvimento futuro: a cons97 98 “Seja todo homem submisso às autoridades que exercem o poder, pois não há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabelecidas por ele. Assim, aquele que se opõe à autoridade se revolta contra a ordem querida por Deus, e os rebeldes atrairão a condenação sobre si mesmos”. In: Romanos, 13: 1-2. In: A Bíblia, op. cit., p. 1396. “Item in libro Institutionum ita: ‘Lex Iulia maiestatis, quae in eos, qui contra imparatorem vel rempublicam aliquid moliti sunt, suum vigorem extendit, cuius poena animae amissionem sustinet, et memoria noxii post mortem damnatur’”. In: HEINEMANN, op. cit., p. 452, c. 7. 102 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS trução de uma área de dominação temporal como corporação juridicamente fechada, baseada numa lei genericamente válida para todos. O Anônimo Normando (também conhecido como Anônimo de York), que escreveu provavelmente em Rouen por volta de 1100, autor de cerca de trinta tratados,99 foi responsável por uma ruptura radical com a interpretação tradicional da doutrina gelasiana dos dois poderes – incluindo sua reinterpretação hierocrática pelos gregorianos. Aos esforços – provindos dos reformistas – de dessacralização da figura do governante temporal, o Anônimo Normando contrapunha, em seu texto De consecratione pontificum et regum, a tese da realeza, segundo a qual a sacralidade do cargo teria origem imediatamente de Deus.100 O ponto de partida de sua argumentação era a constatação de que o rei – de forma semelhante aos clérigos – participava, por meio da unção, da natureza divina de Cristo,101 e sofria assim uma espécie de deificatio. 99 Os textos podem ser encontrados em: PELLENS, K. (Ed.). Die Texte des Normannischen Anonymus, Veröffentlichungen des Instituts für Europäische Geschichte Mainz. Wiesbaden: 1966, n. 42. Parte do texto aqui utilizado, o De consecratione pontificum et regum, foi traduzida por SOUZA & BARBOSA. 100 “Os Pontífices não ignoram que o poder dos reis sobre todos os homens lhes foi conferido do alto e que Deus lhes concedeu exercer um domínio não apenas sobre os leigos e os soldados, mas ainda sobre os seus sacerdotes. [...] O fato de os monarcas estabelecerem leis para a proteção da Igreja e velarem por ela não é contrário à justiça, porque [...] eles detêm um poder sacrossanto inclusive sobre os Pontífices do Senhor, bem como exercem o governo eclesiástico”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 14, op. cit., p. 88. 101 “[...] de modo que os reis, ao serem ungidos, recebem o poder de Deus para governá-la, confirmá-la na justiça e julgamento, e administrá-la segundo o estatuído pela lei cristã, pois eles reinam na Igreja, que é o povo de Deus, e exercem essa missão juntamente com Cristo”. Ibid., p. 88. 103 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Essa forma de participação era conseqüência de um efeito de graça divina. As relações entre o poder temporal e a instituição eclesiástica, segundo o Anônimo Normando, orientavam-se pela respectiva relação com Cristo – o único “rei e sacerdote” (rex et sacerdos) verdadeiro e perfeito, como já havia constatado Agostinho. Enquanto o primeiro participava da natureza superior da realeza de Cristo, o sacerdote participava apenas da sua natureza humana inferior. Essa dedução teológica resultava, conseqüentemente, para o Anônimo Normando, na primazia do regnum sobre o sacerdotium no âmbito temporal.102 Ao imperador, continuava o Normando, era concedido – na qualidade de “sacerdote supremo” (summus pontifex), de acordo com a prática da instituição eclesiástica estatal constantina – o direito de convocar concílios e decidir em assuntos de fé. Por causa da honrosa reputação desfrutada pelo império em virtude da sacralidade do cargo atribuída pela unção, o mesmo direito valia para a investidura de sacerdotes: os bispos recebiam do governante temporal, mediante o ato da investidura, o poder do cargo sobre o povo eclesiástico e o poder de dispor sobre os bens da Igreja.103 102 “O sacerdote desempenha um ministério proveniente da natureza inferior de Jesus, a humana; o rei, pelo contrário, desempenha uma função de origem naturalmente superior, a divina. [...] Alguns julgam que o rei e o seu poder é maior e mais importante do que o sacerdote e a sua autoridade, no respeitante à missão que desempenham junto ao povo. [...] É por isso que afirmam que a dignidade real institui a sacerdotal e esta deve ser-lhe submissa, e tal fato não contraria a justiça divina, porque o mesmo acontece com Jesus Cristo”. Ibid., p. 88-9. 103 “Os Sumos Pontífices estão subordinados tanto aos reis quanto a Jesus Cristo e prestam-lhes homenagem, porque sabem perfeitamente que, mediante os reis, é Ele que reina e exerce o seu domínio sobre todos [...]. Não é um leigo que concede a investidura, mas um monarca, o cristo do Senhor, co-reinando pela graça divina com Ele, ungido do Senhor por natureza, e como esses dois cristos reinam juntamente, ambos concedem simultaneamente o que é necessário ao seu reino [...] além disso, o 104 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Segundo o Anônimo, a investidura executada pelo monarca não se referia à posição sacramental e à função do bispo, mas apenas a suas competências de dominação temporal (regalia). Ele não deixava dúvidas, porém, de que o governante investia o clero não como leigo, mas como administrador da própria divindade. Embora sua argumentação parecesse repousar mais numa tentativa de recuperação do antigo modelo teocrático dos césares romanos, ao rejeitar a visão dualista clássica, baseada na relação entre alma e corpo, segundo a qual o domínio material englobava apenas os corpos, enquanto o domínio sacerdotal englobava as almas dos homens, o Normando contribuía com um passo decisivo em direção à autonomia do governo temporal: seu argumento não tardaria a ser desenvolvido. Em oposição à linha de argumentação defendida pela Igreja para justificar sua preeminência, o Anônimo enfatizava que as almas não podiam ser governadas sem os respectivos corpos, nem os corpos sem as almas. No interesse da unidade do governo, portanto, impunha-se o direito do rex de dispor sobre a Igreja. A idéia da realeza divina centrada em Cristo ganhava com o Normando uma projeção expressiva. Não havia ainda no horizonte, é claro, a menor possibilidade de pensar uma monarquia absoluta nos moldes daquelas que surgiriam séculos depois no continente europeu. O desenvolvimento caminhava muito mais na direção de uma diferenciação dos poderes. Mas já se podiam entrever indícios de uma tendência à – e material teórico para a defesa da – centralização do poder nas mãos de um único governante supremo. Se esse poder deveria caber ao papa ou ao imperador, era o que se debatia neste momento. bispo recebe juridicamente do rei as suas possessões; e não só isso, mas também a missão de guardar a Igreja e o direito de governar o povo de Deus”. Ibid., p. 89. 105 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Por meio da separação conceitual entre, de um lado, o ofício espiritual (spiritualia) e, de outro, os bens temporais e os privilégios ligados ao cargo (temporalia), preparava-se a solução para o problema das investiduras. O notável nessa interpretação, comenta Struve, não foi tanto a distinção entre spiritualia e temporalia, mas sim a incorporação das últimas à ordem temporal de direito104 (ius humanum) – associação que encontrava em Agostinho uma base sólida. Essa diferenciação, relevante para o desenvolvimento das idéias políticas, foi introduzida e fundamentada nos textos de publicistas e canonistas importantes da virada do século. Faltava pouco para o fim da querela pela investidura. O canonista francês Ivo de Chartres, sobretudo na sua coletânea de cânones escritos entre 1097 e 1115, explicava que cabia ao imperador, como “cabeça do povo” (caput populi), dispor sobre as temporalia. A investidura de leigos, porém, constituía, segundo ele, uma intromissão indevida do poder temporal na esfera de direito da Igreja – ingerência que, no interesse da liberdade evangélica, deveria ser impedida. O bispo de Chartres acreditava, contudo, que a harmonia da cristandade unida na Ecclesia dependia da concórdia (concordia) – que deveria ser alcançada a qualquer custo – entre regnum e sacerdotium. Essa sua crença constituía um ponto decisivo para o desenvolvimento de suas posições: importante era a ação conjunta harmoniosa dos membros do corpus Christi. Ivo de Chartres procurava uma solução ponderada para o conflito, sem intransigências de nenhuma parte. Isso o levou a sustentar que a investidura, quando despojada de caráter sacramental, não significava uma ofensa contra a lei divina (lex aeterna) e, por isso, não devia ser entendida necessariamente como uma heresia: podia – e devia – ser tolerada em casos 104 Cf. STRUVE, op. cit., p. 232. 106 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS excepcionais (dispensatio) para manter a paz interna e a utilitas comum.105 Também o publicista imperial Wido de Ferrara, no seu texto em defesa do antipapa Clemente III, De schismate Hildebrandi (1086), já havia defendido a investidura imperial como um empréstimo temporal. Ele distinguia conceitualmente entre o cargo episcopal, atribuído à esfera dos spiritualia, e o complexo de bens recebidos e de direitos ligados a ele, para o qual usava a designação “regalias” (regalia). Como esse conjunto era concedido pelo poder temporal, eles pertenciam aos assuntos seculares (saecularia). As regalias eram definidas, assim, como aqueles direitos que cabiam ao governante secular, independentemente de qualquer outra autoridade. Dado que esses privilégios eram cedidos à Igreja como direitos reais genuínos – por meio do ato da investidura – apenas para a utilização temporária e limitada, cada troca no cargo episcopal tornava necessária uma nova investidura real.106 Sigisberto de Gembloux, autor de um tratado muito divulgado sobre a investidura dos bispos (Tractatus de investitura episcoporum, de 1109), sustentava que o juramento de fidelidade (sacramentum) e a homenagem feudal (hominium) tinham o caráter de atos compensatórios pelo recebimento das regalias. Embora seguisse a doutrina gelasiana tradicional da independência dos dois poderes, o autor concordava com os partidários do imperador a respeito do fato de que cabia ao governante temporal a investidura dos bispos.107 E 105 Cf. SACKUR, Ernestus (Ed.). Epistolae ad litem investiturarum spectantes. In: MGH Libelli de lite. t. II, p. 640-57 (esp. p. 60, 106, 171, 236, 238). 106 Cf. WILMANS, R.; DÜMMLER, E. (Ed.). De schismate Hildebrandi. In: MGH Libelli de lite. t. I, p. 529-67 (esp. p. 560-67). 107 “[...] et investituras episcoporum eis determinavit, ut non consecretur episcopus, qui per regem vel imperatorem non introierit pure et integre, exceptis quos papa Romanus investire et consecrare debet ex antiquo 107 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO adicionava um argumento importante: em razão do direito costumeiro108 (antiqua consuetudo). Para sustentar sua posição, apoiava-se nos privilégios de investidura de Adriano I (772-95) (in: Hadrianum) e Leão VIII (963-65) (in: Privilegium minus), falsificados na virada do século XI para o XII por círculos fiéis ao imperador da Itália. Tal como seu contemporâneo Wido de Osnabrück, Sigisberto chamava atenção para o fato de que a Igreja devia a sua riqueza à generosidade dos reis e do imperador e de beatos leigos.109 Todos os pertences da instituição eclesiástica – posse de bens, ganhos e direito sobre um território – foram subsumidos em sua argumentação sob o conceito de regalia. Ao governante temporal, como cabeça do povo, cabia o direito de investidura dos bispos.110 O autor avançou mais um passo ao conceder também ao rei o direito de entronização, sem com isso atribuir à investidura um caráter espiritual (cf. Tractatus, p. 501). Uma solução viável ao problema das investiduras ganhava terreno: com base nos direitos de feudo, se tornava possível sustentar a separação – teoricamente preparada na publicística da época – entre os poderes espirituais e temporais, conferindo estes últimos à dono regum et imperatorum cum aliis que vocantur regalia, id est a regibus et imperatoribus pontificibus Romanis data in fundis et reditibus. In hac concessione continentur regales abbatie, prepositure. In: BERNHEIM, E. (Ed.). Tractatus de investidura episcoporum. In: MGH Libelli de lite. t. II, p. 498. 108 “Ex hoc, prout sunt consuetudines in regnis per orbem terrarum, de episcopis investiendis servanda sunt antiqua iura”. In: BERNHEIM, op. cit., p. 502. 109 “[...] [reges et imperatores], a quibus – et etiam a devotis laicis et feminis – fundi et mobilia ecclisiis Dei in orbe terrarum provenerunt sibique tutelas et defensiones rerum ecclesiasticarum retinuerunt contra tyrannos et raptores”. In: BERNHEIM, ibid., p. 500. 110 “[...] ut rex, qui est unus in populo et caput populi, investiat et intronizet episcopum et contra irruptionem hostium sciat, cui civitatem suam credat, cum ius suum in domum illorum transtulerit!”. In: BERNHEIM, ibid., p. 502. 108 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS competência do direito secular. Era o fim da querela entre os dois poderes. Na Concordata de Worms, Henrique V abriu mão da concessão de posse com anel e bastão e garantiu a eleição canônica livre e a investidura. Em troca, o papa Calixto II (111924) concedeu ao imperador que, dentro do reino alemão, a eleição dos bispos e abades ocorresse na presença do monarca. Caso houvesse uma eleição ambígua, o imperador deveria decidir a favor do “partido mais sensato” (sanior pars). No lugar da investidura no sentido comum, foi previsto que o eleito deveria receber as regalias, na Alemanha, antes da cerimônia de posse; na Itália e na Borgonha, em um prazo de seis meses depois de empossado. Desse modo, mantinha-se a influência do rei sobre a ocupação de bispados e abadias dentro do reino alemão.111 Ficou acertado ainda que o clero tinha de cumprir com os deveres – isto é, a homenagem feudal e o juramento de fidelidade, além das obrigações a eles ligadas – surgidos a partir do empréstimo das regalias pelo imperador, segundo o direito do regnum. A Concordata de Worms que, aliás, não foi integrada nas grandes compilações de direito eclesiástico, caracterizou-se nitidamente pela marca do acordo: os dois poderes cediam em nome da restauração da paz na cristandade dividida. No conflito pela disputa das investiduras – e também como reflexo da “Humilhação de Canossa” – a reale111 Apesar da aparente vitória experimentada pelo papado, lembra Gerd Tellenbach, a conduta dos bispos individuais em seus cargos nos assuntos do dia-a-dia “continuou sendo ainda fortemente determinada pelos poderes locais prevalecentes – seus colegas episcopais, o rei e sua corte, barões locais – tanto quanto pelo papa distante e seu aparato curial e legados de funcionamento intermitente”. Isto é, as idéias e a prática da maior parte dos leigos e prelados estavam ainda impregnadas dos valores e instituições de caráter feudal. Cf. TELLENBACH, op. cit., p. 349. 109 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO za medieval perdeu muito da sua investidura sagrada originária. Na prática, contudo, isso pouco alterava a configuração de poder local: a fragilidade institucional do papado e sua dificuldade de enfrentar a força das armas em terras distantes impediam maior eficácia no cumprimento do acordo. Mas era indiscutível a sua vitória moral. Depois das regulamentações do acordo, as competências do imperador – inicialmente não divididas – foram restringidas à esfera das temporalia. A obrigação de responder às reivindicações de poder hierocráticas levou os partidários do governante secular a recorrer com maior ênfase à antiga tradição romana do império, mas sobretudo ao direito romano, intrinsecamente a ele ligado. Como uma instituição puramente temporal, fundada por leigos para leigos, o império fornecia à realeza um fundamento de idéias totalmente novo e independente da doutrina eclesiástica. Estavam criadas, pelo menos no plano teórico, as precondições para a autonomização da esfera temporal. III PODER E DIREITO: IMPÉRIO E PAPADO NO SÉCULO XII Os desenvolvimentos ocorridos no interior da cristandade e da Igreja alteram a configuração da sociedade européia durante o século XII. Apesar de finda a disputa pela investidura, novas lutas ferrenhas entre o papado e o império pela pretensão de universalidade de seus representantes máximos – e, portanto, pelo domínio da cristandade – ainda ocorreriam. As querelas entre os dois poderes foram responsáveis por boa parte dos problemas políticos ocorridos em seus territórios, a Alemanha e a Itália. Os avanços no pensamento político – embora talvez modestos da nossa perspectiva – foram contudo bastante relevantes para a época. 110 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS A recuperação do antigo direito romano, nesse período, combinou-se de maneira excepcionalmente fértil com a onda de novidades intelectuais e iniciativas artísticas: conhecedores denominam – não sem razão – o conjunto de inovações e transformações do período de o Renascimento do Século XII. No âmbito religioso, propagaram-se as ordens monásticas e o culto ao ideal de pobreza, que exerceu forte influência sobre a instituição eclesiástica sobretudo a partir de 1100. Também cresceu o movimento econômico dentro da Igreja, sobretudo nas áreas próximas das cidades. No campo, predominavam os cistercienses, cultivadores da vida eremítica. Os eventos políticos também seguiam seu curso, alterando e simultaneamente sendo modificados pelos novos ventos. Depois do acordo realizado na Concordata de Worms, o partido gregoriano se fortaleceu. Trinta anos de paz se seguiram. Quando Henrique V morreu, em 1125, sem deixar herdeiros, a cúria papal tratou de providenciar sua sucessão, afastando da disputa seu sobrinho Frederico II de Staufen, duque da Suábia. Contra ele, a cúria romana apoiou Lotário de Supplinburg, duque da Saxônia e inimigo da casa sálica desde a rebelião de Henrique IV contra o papado. Lotário III, depois de eleito imperador, garantiu algumas liberdades ao sacerdotium e renunciou a dois direitos acordados em Worms: abriu mão da presença nas eleições eclesiais e também de conferir as regalia antes da consagração – renúncias que na prática não foram sempre cumpridas. Com o cisma de 1130, o apoio de Lotário III às posições do pontífice parecia confirmar a nova política papal: a restauração do imperador ao papel de defensor do papado. Com a morte de Lotário, seu filho Conrado III foi nomeado imperador e seguiu, de modo geral, a mesma linha de conduta do pai. Essas décadas foram marcadas por uma contribuição que faria escola no pensamento jurídico: o Decretum (ou Concordantia discordantium canonum), de Graciano. O documento, uma coleção formada de decretos papais e imperiais, 111 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO escritos dos Santos Padres, leis romanas etc., continha material suficiente para sustentar tanto a afirmação da independência das duas espadas quanto a doutrina gregoriana da subordinação da espada temporal à espiritual. A enorme compilação do mestre Graciano de Bolonha – que rapidamente se tornaria a grande referência para o estudo do direito canônico e serviria de base para o Corpus Iuris Canonici – continha, entre outras, duas afirmações que teriam desdobramentos relevantes para o pensamento político: a de que uma concepção apostólica guardaria sempre a pureza da fé católica; e a de que príncipes cristãos deviam auxiliar a Igreja romana no cumprimento desta função.112 Do poder temporal, a instituição eclesiástica esperava que suprimisse “aqueles que perturbam a paz da Ecclesia”: se eles desdenhassem fazê-lo, seriam excluídos da comunhão. Príncipes seculares, portanto, deviam estar preparados para conduzir uma guerra santa contra os inimigos da fé, quando instigada pela Igreja romana. Fundamentava-se assim a teoria da “perseguição justa”, desenvolvida pelos canonistas gregorianos – ancestral tanto da idéia de Cruzada quanto das medidas coercitivas contra heréticos desenvolvidas no século XII. Um ponto merece destaque: o comentário feito por Bernardo de Claraval (1090-154), abade borgonhense de Clairvaux, também conhecido como São Bernardo. Quando o papa Inocêncio II (1130-43) foi expulso de Roma, no cisma de 1130, Bernardo declarou que os papas expelidos eram “geralmente expulsos da cidade e aceitos pelo mundo”. Robinson chama atenção para o fato de que, apesar dos cismas e das expulsões dos pontífices de sua base romana, os “papas legais” acabaram vitoriosos porque “foram aceitos pelo mundo”. Mas eles tiveram primeiro de persuadir príncipes e 112 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 318. 112 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS religiosos da legitimidade de sua causa pelo Ocidente afora. Esses esforços de persuasão acabaram projetando o papado para o mundo além de Roma. Outras forças, além dos cismas, também contribuíram para levar os papas para fora dos limites romanos: a cidade havia-se tornado perigosa por causa da hostilidade do populus romano ao pontífice. A independência papal nos séculos XI e XII foi ainda ameaçada pelas ambições das famílias nobres. “Depois de 1143”, escreve Robinson, a ameaça foi intensificada pela fundação de uma Comuna romana que reclamava jurisdição sobre a cidade. Os papas mantinham sua liberdade de ação criando um sistema de governo que os tornou independentes dos romanos, por meio da exploração de recursos dos territórios papais (“o Patrimônio de São Pedro”) e por meio de sua aliança com príncipes ocidentais.113 Essa projeção do sacerdotium, contudo, esteve intrinsecamente ligada às suas infindáveis disputas com os defensores do imperium, que resistiam com todas as armas à reivindicação de plenitude do poder pelo trono pontifício. *** Diferentemente de Conrado III e seu pai, a eleição do rei alemão Frederico III, da dinastia dos Hohenstaufen, du113 ROBINSON, op. cit., p. IX. O sucesso dessa emancipação dos pontífices, constata Robinson, pode ser percebido no número de pontífices originários de Roma no período: dos 19 papas que governaram entre 1073 e 1198, apenas 5 eram romanos (Gregório VII, Inocêncio II, Anastácio IV, Clemente III e Celestino II). Os demais pontífices provinham do sul da Itália (3), da Itália central e do norte (8), da França (2), e um da Inglaterra. Essa “internacionalização” da Ecclesia seria ainda mais fortemente sentida na composição do Colégio de Cardeais, a mais importante instituição no governo papal do século XII. 113 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO que da Suábia e imperador Frederico I, o Barba-Ruiva, em março de 1152, não contou nem com o apoio nem com a presença da cúria papal. Frederico apenas anunciou sua eleição e fez-se coroar imperador sem a presença do pontífice nem de prelados. Também não aguardou a confirmação da autoridade espiritual para assumir o trono. Tal como os Staufen que o antecederam, Frederico I recusava-se a sucumbir à pressão do gládio espiritual: com base na tradição imperial romana, argumentava ter recebido o império diretamente de Deus, não do papa. Também a sua posição privilegiada – era bem aceito pelos dois partidos alemães fortes, os Staufen e os Welf – permitia-lhe abrir mão de qualquer sanção adicional. O papa Eugênio III (1145-53) enviou, três meses depois, uma carta ao imperador, manifestando sua aprovação e boa vontade para com o eleito, mas em nenhum trecho usou a palavra confirmação. O pontífice e o imperador, por meio de seus legados, selaram uma aliança entre os dois poderes, fixada no Tratado de Constança, em 1153. Esse acordo definia sobretudo os deveres do imperador na Itália: comprometia-se a proteger a honra do papado e a não fazer a paz com os romanos nem com o rei da Sicília sem o consentimento do sumo sacerdote. Em troca, receberia a coroa imperial, o que lhe permitia restaurar as regalia de São Pedro – da competência do poder temporal. Ambos comprometiam-se ainda a não fazer alianças nem concessão de terras ao rei bizantino. O pacto durou até a morte de Eugênio III (1153) e de seu sucessor Anastácio IV, que também logo faleceu. O seu lugar foi ocupado por Adriano IV (1154-59). Cada novo pontífice recebia pressões de vários lados, mas especialmente dos romanos e do rei da Sicília. A Comuna romana erguia-se contra o papado, por meio de líderes eloqüentes como Arnoldo de Brescia. No reino 114 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS siciliano, o sucessor de Rogério II, Guilherme I, tinha assumido o título de rei sem a permissão de seu senhor feudal, o papa. Quando Adriano se recusou a reconhecê-lo como rex, em 1155, seu exército passou a atacar o Patrimônio de São Pedro. Frederico I, que desde 1154 avançava sobre o reino italiano, alcançou Roma em junho de 1155: levava como troféu ao pontífice o prisioneiro Arnoldo de Brescia, que entregou ao prefeito de Roma para execução.114 No mesmo mês, no campo de Sutri, Frederico I e Adriano IV encontraram-se: o imperador era agora oficialmente coroado. As duas versões do episódio eram bastante divergentes, como mostravam tanto os documentos do papa quanto as cartas do imperador relatando o ocorrido. A versão germânica falava de um quadro de harmonia entre a duas autoridades e enfatizava a boa vontade de Frederico em cooperar com o pontífice – como conta a carta de Frederico ao seu tio, o bispo Oto de Freising.115 Já a versão eclesiástica descrevia uma situação tensa causada pela má vontade de Frederico em respeitar a honra do papado. As duas versões tinham intenções polêmicas, argumenta Robinson: a alemã ocultava a falha do imperador em preencher os termos do Tratado de Constança, que envolvia proteger o papado da Comuna romana e do rei siciliano; a versão pontifícia pretendia culpar Frederico pela deterioração da relação entre papado e império – acentuada no fim do pontificado de Adriano. Toda a disputa, entretanto, girava em torno de um dado prévio: apesar de Lotário III ter consentido em ser chamado “vassalo do papa”, toda linhagem imperial não 114 115 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 462-3. Um minucioso estudo sobre o período – que trata sobretudo da vida e obra do bispo bávaro Oto de Freising, tio e conselheiro de Frederico I – pode ser encontrado no gigantesco trabalho de: BARBER, Malcolm. The two cities: medieval Europe 1050-1320. London, New York: Routledge, 1993. 115 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO o admitia. Frederico recusava-se a aceitar a posição de mero stratoris116 officium do prelado. Além do fato de Frederico não ter cumprido rigorosamente as cláusulas do Tratado de Constança, também o papa tomou medidas para proteger-se de seus inimigos, o que, em última instância, envolvia uma quebra do pacto por parte do cadeira pontifícia. O imperador e sua tropa retornaram à Alemanha,117 em 1155, sem ter restabelecido a autoridade papal sobre Roma e sobre o território da Igreja: não tinham sido subjugados nem a Comuna romana nem o rei siciliano. A vitória de Guilherme I da Sicília sobre o papado no ano seguinte causou perdas ao Patrimônio de São Pedro. Além disso, o rei avançou sobre as terras do sul da Itália. Pouco depois, na Concordata de Benevento (1156), o rei confirmou a suserania pontifícia sobre o reino da Sicília. Um ano mais tarde, o rei siciliano selou um acordo com o imperador de Bizâncio, Manuel I Comnenus, segundo o qual este reconhecia a titularidade de Guilherme sobre o reino da Sicília e sobre o sul da Itália. Tanto o tratado quanto a concordata pareciam à corte imperial um ataque direto contra o imperador. O capelão imperial, Godofredo de Viterbo, reclamou que Adriano IV teria rompido o Tratado de Constança não uma, mas duas vezes, fazendo a paz com os normandos e com Bizâncio. “O papa desejava ser tido como inimigo de César” ,118 escrevia o capelão. Era razão mais do que suficiente para considerar desfeito o acordo entre o papa e o imperador germânico. 116 Stratoris: aqui no sentido de “serviçal”; também “a domestic servant performing the duties of groom or the like; a personal aide or equerry”. Cf. GLARE, op. cit. 117 O retorno do imperador deveu-se sobretudo ao fato de que havia tensões e suspeitas de desagregação interna de suas tropas, de modo que sua avaliação o impedia de conduzir uma guerra em tais circunstâncias. 118 ROBINSON, op. cit., p. 465. 116 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Apesar das tentativas pontifícias de ganhar aliados na Alemanha, não havia partido contra Frederico I em território germânico no momento em que estourou a querela entre o papa e o imperador. A disputa começou por causa da concessão pelo papa do controle sobre a Igreja sueca a Esquil de Lund, que – a caminho de casa – foi preso e detido por brigadas imperiais na Borgonha. O papa apelou às armas do imperador para libertá-lo e enviá-lo com segurança de volta à Suécia. Frederico não respondeu à carta do pontífice, pois o concorrente dinamarquês de Esquil tinha sido conduzido ao trono por vontade do próprio Barba-Ruiva em 1152.119 Meses depois, Esquil foi libertado e voltou ao reino sueco. As cobranças de ambas as partes, contudo, acirraramse.120 O caso estendeu-se ainda mais com uma carta do papa, enviada a Frederico na dieta de Besançon, em setembro de 1157. No documento – lido e traduzido na reunião pelo influente chanceler Reinaldo de Dassel –, o papa lembrava ao governante temporal que este não estava cumprindo os compromissos de “honra e dignidade” a ele conferidos quando da coroação. E que o imperador não devia mostrar ingratidão para com aqueles de cujas mãos recebera os beneficia e que lhe teriam “concedido” a dignidade imperial.121 A interpretação de que Frederico teria recebido a coroa imperial com feudo (pro beneficio) do sumo pontífice causou 119 Tratava-se do rei Swein Grathe, da Dinamarca, que apoiava as pretensões do rival de Esquil ao trono sueco, Knut Magnusson. 120 Há muita polêmica histórica sobre o assunto: se o seqüestro de Eskil foi premeditado pelo papa para provocar Frederico; ou se Eskil estava usando a sua proximidade com o papado para frustrar as reivindicações legítimas de um bispo imperial leal, e assim fazer oposição à influência imperial na Dinamarca. 121 Dizia a carta de Adriano IV a Frederico I: “[...] Deves, portanto, gloriosíssimo filho, recordar quão graciosa e alegremente, no ano passado, a Sacrossanta Igreja Romana te recebeu e com quanto afeto ela te tratou, com que plenitude de dignidade e de honra te revestiu, e como conce117 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO confusão e tumulto entre os barões, legados e autoridades presentes. O imperador, em sua resposta irada, rejeitou a noção de que o império fosse um feudo do papado, e acusou o pontífice de desonrar os alemães e o Império. Argumentava que o Sacro Império (Sacrum Imperium) lhe tinha sido concedido por Deus e, por isso, não dependia do papado.122 Adriano retrucou dizendo que a carta tinha sido traduzida de maneira equivocada: quando escrevera “concedendo-te a coroa”, quisera apenas dizer que teria “colocado a coroa em sua cabeça”.123 Seja por erro de interpretação, seja pelo uso de um vocabulário feudal oriundo das concepções políticas de Gregório VII, o fato é que as disputas entre os dois poderes se agravaram.124 dendo-te muito graciosamente a distinção da coroa imperial, se empenhou em te conservar no seu regaço fertilíssimo, no ápice da tua sublimidade, certa de não ter nada que viesse a causar [sic] o mais pequeno descontentamento à tua vontade real”. In: SOUZA & BARBBOSA, Documento 19, op. cit., p. 93 – grifo meu. 122 Respondera Frederico I em circular aos bispos do império: “Tendo em vista que, pela eleição dos príncipes, recebemos o reino e o Império somente de Deus, o qual, por meio da Paixão de Cristo, seu Filho, submeteu este Orbe ao governo das duas espadas necessárias, e considerando, paralelamente, que o Apóstolo Pedro ensina a todos a seguinte doutrina: ‘Temei a Deus e honrai o Rei’, aqueles que afirmam termos recebido a coroa imperial através do Senhor Papa, ao modo de benefício, contradizem a instituição divina, bem como o ensinamento do bemaventurado Pedro, e por isso devem ser considerados mentirosos”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 20, op. cit., p. 95. 123 Cf. ROBINSON, op. cit, p. 470. 124 “Não se pode propriamente entender quão insolúvel era a tensão entre reis e papas se se falha em reconhecer o fato de que ambos os lados viam sua legitimação divina como indisputável e como um componente indispensável de sua dignidade”, escreve Gerd Tellenbach. Enquanto existisse uma monarquia cristã, prossegue, uma relação direta entre regnum e Deus continuaria a ser afirmada em face de todas as tentati118 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Frederico havia decidido dar novo sopro à política imperial. Para isso, determinou na dieta de Roncaglia, em 1158, a restauração do controle imperial sobre o reino da Itália. Mas Adriano continuava negociando com os interesses italianos, sobretudo com as cidades lombardas, que resistiam aos decretos imperiais de Roncaglia. E tudo indicava, já antes de sua morte, que a aliança papal-alemã tinha chegado ao fim. Com a morte de Adriano, em 1159, foi eleito papa o cardeal italiano Rolando, líder do “partido antigermânico siciliano” – cujas origens remontam ao acordo de Benevento de 1156 –, sob o nome de Alexandre III (1159-81). Com o endurecimento e o incremento da disputa entre regnum e sacerdotium até dentro da própria Igreja, Frederico I, incitado e militarmente sustentado por Reinaldo de Dassel, passou a sustentar um antipapa, Vítor IV (1159-64) – e seus sucessores –, agregando os cardeais contrários à hegemonia siciliana na cúria papal. O argumento formal em prol dos antipapas era o de que o Tratado de Constança deveria ser mantido e cumprido. Os romanos, em sua luta contra o pontífice oficial, também apoiaram Vítor IV. O papa legal Alexandre III, depois de passar uma semana no castelo de Sant’Angelo, foi obrigado a fugir de Roma. Depois de várias tentativas – inúteis – de solucionar o conflito com o bispo de Roma por meio de concílios, Frederico I decidiu atacar Milão – sede das cidades lombardas resistentes –, destruindo-a. Isso assustou as cidades do norte, que passaram a adotar uma posição defensiva em relação ao império. O plano imperial agora era atacar a Sicília. Enquanto isso, o papa Alexandre III tentava governar o que havia sobrado da instituição pontifícia baseado no território franvas de rejeitá-la. No fundo, argumenta o autor, a igualdade de todos os príncipes seculares em sua relação com Deus foi a base para a idéia e realidade do Estado soberano. Cf. TELLENBACH, op. cit., p. 350. 119 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO cês, sob a proteção de Luís VII e do rei inglês Henrique II e suas Igrejas. O contra-argumento de Alexandre III tinha clara inspiração na antiga “disputa pela investidura”. O imperador e seu antipapa, escreveu, não recearam “cortar a túnica inconsútil de Cristo-Deus”,125 isto é, despedaçar a unidade da Igreja. Em 1159, Vítor IV foi excomungado. Seis meses depois, em março de 1160, Frederico I também foi expulso da Igreja. Pesava contra o imperador a acusação de que pretendia sujeitar a Igreja de Deus às suas leis – e também reis e príncipes de várias regiões – por meio do controle de ambas as espadas: a material e a espiritual. Alexandre III argumentava que, se Frederico fosse bemsucedido na tentativa de impor à Igreja seu antipapa, tornarse-ia impossível prevenir a extensão de seus domínios sobre outros governantes seculares. E esse era, verdadeiro ou não, um argumento de peso. A Igreja ainda declarou nulos e evitáveis todos os seus atos até que a paz fosse refeita. Liberou também os seus vassalos do juramento de fidelidade e proibiu-os de oferecer-lhe ajuda ou conselho. Com a morte de Vítor IV, em 1164, Frederico I, ao invés de abrir negociações com o papado, logo apoiou seu sucessor, Pascoal III (1164-68), eleito pelos cardeais rebeldes. As lutas continuaram, com vai-e-vem de cada lado, até a reconciliação entre o papa Alexandre III e o Barba-Ruiva, ocorrida em Veneza, em julho de 1177. Segundo o acordado no tratado de paz, o imperador renunciava ao antipapa, reconhecia Alexandre como pontífice católico e lhe prestaria “a devida reverência”, devendo fazer o mesmo “quanto aos seus sucessores entronizados canonicamente”.126 125 A passagem consta da carta de Alexandre III aos lombardos, parcialmente traduzida em SOUZA & BARBOSA, Documento 24, op. cit., p. 102. 126 Cf. o “Tratado de paz entre Frederico I e Alexandre III”, traduzido em SOUZA & BARBOSA, Documento 23, op. cit., p. 99-102. 120 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS Os cardeais, por sua vez, absolviam-no da sentença de excomunhão e o readmitiam na unidade católica. Embora o documento imperial, confirmando a Paz de Veneza, pudesse ser interpretado por muitos como mais uma vitória do sacerdotium sobre o regnum, o texto restituía aos Staufen a noção de Sacrum Imperium e se comprometia com a manutenção da paz no Império romano. E isso era o que no fundo desejavam ambos os partidos em disputa. Durante o terceiro cisma, que durou de 1159 a 1178, Alexandre III evitou a linguagem gregoriana tanto da deposição quanto da superioridade papal sobre a imperial. O “incidente” ocorrido em Besançon – provocado pelo papa Adriano IV ao reavivar a noção gregoriana de que o imperador era mero vassalo do papa – foi a última aparição, durante o século XII, da teoria da supremacia papal sobre o império. A ênfase havia sido posta agora não mais sobre a autoridade do papa de maneira absoluta, mas sobre os crimes que o imperador teria praticado e que o levaram a ser excomungado. Ou seja, Frederico I fora excomungado não porque tivesse desobedecido ao papa – essa havia sido a ofensa de Henrique IV – , mas porque se mostrou “um violento perseguidor da Igreja”. Seus súditos foram absolvidos da fidelidade feudal não porque ele foi deposto pelo papa, mas porque, ao perseguir a Igreja, cessou de preencher a principal função de seu officium: já não era mais “o advogado e defensor da Igreja”. E, por isso, “devia ser chamado tirano, em vez de imperador”.127 O imperador, por sua vez, fundamentara suas reivindicações, durante a querela, com base em dois argumentos de peso. Recorrera à história para reclamar a anterioridade do império em relação à Igreja: por ser o primeiro uma instituição mais antiga, a Ecclesia não poderia ter autoridade sobre 127 Cf. ROBINSON, op. cit., p. 480-1. 121 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ele. E, com base no direito imperial romano – cujo estudo o Barba-Ruiva fizera questão de fomentar, sobretudo na Escola de Bolonha –, afirmara serem o reino e o império seus por graça apenas de Deus (gratia Dei) e por meio da eleição dos príncipes. Um minucioso estudo de M. Pacaut sobre Alexandre III sugere que os pronunciamentos do pontífice sobre a liberdade da Igreja, sobre a preeminência espiritual do sumo sacerdote e sobre o papel do governante secular tiveram como fonte principal o Decretum, do mestre Graciano.128 Embora os escritos de Graciano devessem muito à argumentação utilizada por Gregório VII e seus intérpretes do fim do século XI, Alexandre III não concordava com a idéia da supremacia do papa em assuntos seculares: preferia a concepção gelasiana da independência dos dois poderes, com funções distintas.129 Sua preferência, contudo, não impediu que, na última década do século XII, o Decretum viesse a se tornar o livro oficial de direito canônico da cúria papal, consultado em todas as matérias e dificuldades. A sobrevivência de Alexandre III no período em que esteve exilado, insiste Robinson, dependeu da ajuda dos reis sicilianos Guilherme I e II, do magnânimo Henrique II da Inglaterra, mas sobretudo de Luís VII da França. Todos esses reis, constata, tal como Frederico I, insistiam que seu reino tinha sido “decretado sobre a terra pelo rei dos reis”. Durante o cisma, Alexandre III – vulnerável e necessitado – nunca 128 129 PACAUT, Marcel. Alexandre III. Paris: J. Vrin, 1956. p. 320 et seq. Robinson sugere que parte do tom moderado adotado pelo papado ante o poder secular durante o cisma deveu-se à presença de importantes canonistas na cúria durante a briga em questão e à sua forte herança: os estudos canônicos baseados no Decretum. Mas o resto da explicação, argumenta o autor, pode certamente ser encontrada no fato de que a cúria papal necessitava urgentemente de apoio financeiro e político dos governantes seculares. Cf. ROBINSON, op. cit., p. 482. 122 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS esteve em posição de afirmar a primazia do papa em assuntos seculares, nem o direito papal de depor reis desobedientes, pois o pontífice dependia completamente de seus aliados seculares.130 Além disso, o pontífice jamais pretendera realmente imiscuir-se nas eleições reais. Os reis, nesse momento, não constituíam uma ameaça concreta nem ao regnum nem ao sacerdotium. Os poderes por eles detidos ainda não conflitavam com a reivindicação de supremacia das duas autoridades que de fato contavam nesse período. Diferentemente do imperador, os reis raramente haviam sido coroados pelo bispo de Roma, o que os impedia de reclamar o compartilhamento de uma ordem divina. Mas seu apoio à causa papal terminava por valorizá-los como “protetores” da Ecclesia. E, nesse período de consolidação do papado como centro organizador da instituição eclesiástica, sua ajuda tinha sido inestimável. Durante o exílio, Alexandre III residira na corte do rei normando em Terracini e Agnani. Depois, na França, migrou da proteção e residência do duque de Aquitânia para a do capeto da cidadela de Paris; e mais tarde para a proteção do conde D’Anjou. Finalmente, estabeleceu-se no território capeto de Sens. Por volta de 1165 retornou a Roma, mas logo teve de fugir novamente: em 1167 fora instaurado o novo antipapa Pascoal III (1164-68). Alexandre morou depois disso em vários reinos da Itália. Pôde retornar a Roma apenas após a Paz de Veneza (1177). A vulnerabilidade do pontífice, portanto, contribuía inegavelmente para torná-lo cauteloso e desejoso de um compromisso. No dia seguinte à sua absolvição pelo papa, Frederico I concordou com a efetivação da cerimônia de “confirmação do cargo” (stratoris officium) – aquela que tinha hesitado em realizar em 1155, sob Adriano IV. A solenidade não implicava a 130 Ibid., p. 484. 123 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO dependência feudal do imperador ao papa, mas o reconhecimento pelo governante secular do título do sumo pontífice e sua rejeição do antipapa. Um mês depois Frederico I participava de um concílio papal em que foram excomungados todos os cismáticos que se recusaram a reconciliar-se com a Igreja – incluído o último antipapa, Calixto III (1168-77), que passou a chefiar uma abadia. Apesar dos atritos entre o imperador e as cidades lombardas de Itália, aliadas do papa, as relações entre regnum e sacerdotium foram de relativa paz, mesmo depois da morte de Alexandre III, em 1181. Seus sucessores foram partidários moderados da causa alexandrina e colaboraram para a manutenção da paz entre os dois poderes. Grande importância para eles tinha adquirido a Paz de Constança, assinada em 1183 entre as cidades lombardas e o imperador, sob o pontificado de Lúcio III (1181-5). Seu resultado prático – e quase imediato – foi a transformação das cidades lombardas de liga hostil em súditos leais ao imperador. Frederico renunciou às medidas governamentais introduzidas na dieta de Constança em 1158 e reconheceu o direito de autogoverno às cidades italianas – reclamado sobretudo pelas Comunas que se fortaleciam. Em troca, elas lhe pagariam um tributo anual e reconheceriam a suserania do imperador. Também estava garantida a paz com a Sicília, não apenas pelos esforços do papa, mas também pelo casamento do filho de Frederico I, Henrique VI, com a filha do rei Rogério II, Constança. Lúcio III foi sucedido por Urbano III (1185-7). Seu pontificado testemunhou a última querela da Igreja com Frederico Barba-Ruiva. O conflito com o milanês Urbano III, cuja família havia sido vítima da dizimação da cidade por Frederico I em 1162, foi motivado mais por razões pessoais do que por disputas político-ideológicas. A uma provocação do papa, o BarbaRuiva reagiu duramente, fazendo casar-se seu filho, Henri124 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS que VI, e Constança da Sicília na catedral de Milão. Ele próprio coroou o filho co-imperador, numa cerimônia realizada pelo patriarca de Aquiléia. Frederico ameaçava com isso o direito do bispo de Roma à transmissão da dignidade imperial. O papa, em resposta, mobilizou as cidades lombardas contra o imperador, rompendo a Paz de Constança. As forças imperiais invadiram então o Patrimônio de São Pedro, sob o comando de Henrique VI. O papa, assediado, fugiu. Os conflitos e querelas aumentaram ainda mais. O pontífice decidiu então viajar de Verona a Veneza, onde excomungaria o imperador. Mas não passou de Ferrara, onde morreu numa noite de outubro de 1187. O chanceler e cardeal Alberto de Morra foi então eleito papa, sob o nome de Gregório VIII (1187). Sua missão era restaurar a paz entre império e papado, indispensável também para as pretensões do novo pontífice, reformar a Ecclesia e lançar uma cruzada em ultramar. O acordo estava prestes a ser selado quando Gregório faleceu, em 1187, depois de apenas 57 dias de pontificado. Sucedeu-o o bispo-cardeal da Palestrina, agora Clemente III (1187-91). A paz foi finalmente assinada em abril de 1189, em Estrasburgo. Em troca da promessa de coroação de seu filho, Henrique VI, como imperador, Frederico I restabelecia o Patrimônio de São Pedro ao domínio do papa. O imperador, contudo, não abriu mão do controle da Igreja alemã: pelo contrário, garantiu-o em mais uma vitória contra as pretensões do papado de libertar a Igreja no território germânico. Era o preço a ser pago pela Ecclesia, mais interessada no lançamento bem-sucedido da Terceira Cruzada: em maio de 1189, Frederico I lançou-se na Cruzada contra Saladino – era o primeiro imperador reinante a participar de uma guerra santa papal. E dela nunca mais retornou: afogou-se quando cruzava o rio Salef, na Sicília, em junho de 1190. 125 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Henrique VI, seu filho e sucessor, se encontrava a caminho de Roma para a cerimônia de coroação quando Clemente III morreu, em abril de 1191. Dado o novo cenário episcopal – o Colégio de Cardeais fora ampliado de 19 para 31 membros votantes – e os vários interesses em jogo, entre eles o medo de o reino da Sicília vir a ser anexado ao Império germânico, o nome escolhido para a sucessão papal foi cuidadosamente pensado: elegeu-se o mais velho dos cardeais, o romano Jacinto Bobo, nomeado Celestino III (1191-8), de modo a evitar um novo cisma. O cardeal já havia demonstrado ser hábil negociador, além de agradar à – agora numerosa – base romana da cúria. Um dia depois de consagrado, Celestino III coroou Henrique VI imperador e Constança imperatriz, ainda em abril de 1191. O ato mais relevante de seu pontificado, porém, foi a restauração do domínio papal sobre a cidade de Roma, após 45 anos de batalha com a Comuna romana. Henrique VI ainda precisou enfrentar mais três anos de lutas até poder tomar posse do reino, o que ocorreu no Natal de 1194, quando foi coroado rei siciliano. A coroação foi assegurada pelo filho que nasceu logo depois, o futuro imperador Frederico II. A morte prematura de Henrique VI, em 1197, pôs o problema da sucessão – que o monarca pretendia tornar hereditária – em primeiro plano, justamente no momento em que o governante enfrentava uma rebelião de parte da nobreza siciliana, conspirada também com o papa. A questão era complexa, pois envolvia diretamente o papado: o reino da Sicília era considerado nominalmente feudo papal. Em seu testamento – que muitas fontes defendem ter sido falsificado –, ele teria instruído a imperatriz e seu filho “a conferir ao papa e à Igreja romana todos os direitos dos reis da Sicília aos quais eles tinham por costume”,131 incluindo a homenagem e a feudalidade recusadas por Henrique pouco antes. 131 Cf. ROBINSON, op. cit, p. 521. 126 CAP. 1 - A QUESTÃO DAS INVESTIDURAS E SEUS DESDOBRAMENTOS No que dizia respeito ao regnum, seu filho deveria ser reconhecido imperador pelo sumo pontífice, que, em troca, recuperava as possessões ocupadas militarmente por Henrique na região de Roma e a disputada herança de Matilde,132 até então pendente. Meses depois morria também Celestino III. Para o seu lugar foi eleito o cardeal Lotário de Segni, futuro Inocêncio III (1198-216). Ganhava força agora a nova corrente hierocrática, que depois de quarenta anos de prática dualista e moderada, voltava a inflamar os ânimos dos religiosos: era o retorno das idéias de Gregório VII – com todos os poderes que ele havia reivindicado para a supremacia da espada espiritual. “A unidade dos cristãos parecia mais longe do que nunca. O novo pontífice, contudo, tentaria uma vez mais agrupar sob a direção do papado – como havia desejado cem anos antes o papa Urbano II – a cristandade dividida.”133 132 Matilde, condessa da Toscana, foi uma ferrenha defensora da causa papal gregoriana durante a querela da investidura. Foi no seu castelo em Canossa que aconteceu a penitência e a conseqüente absolvição do imperador Henrique IV em 1077. Por volta de 1110, Matilde submeteuse ao governo do sucessor, Henrique V, tornando-o herdeiro de suas terras antes prometidas à Santa Sé. Ao morrer, doou todos os seus bens à Ecclesia, fato que foi motivo de longa controvérsia entre império e papado e que só agora teria solução. Cf. LOYN, op. cit., p. 254. 133 LE GOFF, op. cit., p. 116. 127 CAPÍTULO 2 O LONGO SÉCULO XII I UMA INTRODUÇÃO AO SÉCULO DO RENASCIMENTO O incessante conflito entre regnum e sacerdotium pela pretensão de supremacia dentro da comunidade cristã foi acrescido, sobretudo ao longo do século XII, de elementos novos que forneceram munição às duas partes. Conhecido como o Renascimento do Século XII, o período foi marcado por eventos e transformações importantes que influenciariam não apenas o desenvolvimento do pensamento político, mas também toda a concepção de mundo do Ocidente cristão. Esses acontecimentos, indispensáveis para uma adequada compreensão da época, forjariam um respeitável arsenal teórico e prático que seria apropriado por velhos e novos atores sociais de maneiras diversas e, por vezes, opostas.1 Entre as principais mudanças podem-se apontar o surgimento das universidades, a recuperação do direito romano, as traduções de obras gregas e árabes para o latim e o incremento das Comunas, elementos especialmente relevantes para o desenvolvimento das idéias e das instituições políticas no Ocidente. Compreender esse movimento, portanto, é acompanhar o processo por meio do qual as modernas concepções políticas chegaram a ser o que são – esse o objetivo primeiro deste trabalho. Passemos então a elas. 1 A emergência da figura do rei e a reinterpretação da velha fórmula do rex in regno suo imperator est, por exemplo, ganham maior inteligibilidade quando analisadas nesse novo contexto. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Depois do intenso período de reformas dentro da Igreja,2 iniciadas pelo papa Gregório VII um século antes, novas formas de vida leigas e religiosas passaram a ser objeto das preocupações dos habitantes da cristandade ocidental no século XII. A significativa diversificação de modos de vida, instituições e ordens – umas de caráter mais religioso, outras mais leigas – redefiniu laços e obrigações para homens e mulheres. As batalhas recentes em prol da reforma da Ecclesia tiveram como conseqüência o fortalecimento da distinção, que depois se desenvolveria em separação clara, entre os âmbitos temporal e espiritual.3 “A formação de novas ordens religiosas e de novas Comunas urbanas, a multiplicação de diferentes tipos de produtores e comerciantes, assim como de funcionários administrativos especializados, levou a um alargamento e a um novo emprego das “imagens” recebidas 2 Recentemente, os estudiosos da Idade Média têm dividido o período em quatro subperíodos, que representariam fases distintas do pensamento e da ação: o primeiro, que iria de 1040 a 1070, diria respeito mais à reforma moral do clero, especialmente em relação à simonia e ao celibato; o segundo, que cobriria o período entre 1070 e 1100, é particularmente associado aos papas Gregório VII e Urbano II e se concentraria na liberdade da Igreja em relação ao controle leigo e à supremacia do papa dentro da Igreja; o terceiro momento, de 1100 a 1130, teria sido um período de transição que assistiu tanto ao fim da querela das investiduras quanto à crescente ênfase no monasticismo; e, por fim, o período que vai de 1130 a 1160, no qual teria sido marcante a intensa dedicação à natureza da vida religiosa e à reforma pessoal de todos os cristãos. Cf. CONSTABLE, Giles. The reformation of the twelfth century, Cambridge: University Press, 1996. p. 4. 3 Num dos textos do Decreto, de 1140, p. ex., Graciano de Bolonha defendia a existência de dois tipos de cristãos: os clérigos, que seriam os verdadeiros reis e não podiam ser forçados a qualquer tipo de ação por nenhum poder secular; depois os leigos, que cultivavam a terra, casavam-se e a quem os clérigos deviam conduzir em direção à verdade (cf. Decreto, causa 12, q. I, c. 7). 132 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII dos canais de poder e da relativa importância e distinção dos papéis na sociedade.”4 Esse movimento era acompanhado de uma progressiva tensão entre tendências – competitivas – a favor da sacralização e da secularização na definição dos postos e funções. Crescia o número de funcionários e burocratas a serviço tanto das coroas quanto do papado. Particularmente o ideal da cavalaria encontrava-se agora influenciado em ambas as direções, como se podia constatar no desenvolvimento dos rituais cavalheirescos de consagração. No início do século XII, entretanto, não havia ainda, como lembra Giles Constable, uma distinção clara entre um renascimento secular e uma reforma religiosa, ou mesmo nas atitudes de clérigos e leigos diante da reforma.5 Entre estes últimos, aliás, era possível encontrar alguns dos mais firmes apoiadores da reforma eclesiástica, como o fora um século antes o imperador Henrique IV. O período foi marcado ainda por um enorme fomento da história social da Igreja. Atitudes e instituições tradicionais foram alargadas ao máximo a fim de acomodar novas formas de vida e novos sentimentos. Era uma época de experimentos, iniciativas, flexibilidade e tolerância tanto para com os novos empreendimentos quanto para com as novas idéias. Uma preocupação comum à época era a da natureza da vida religiosa e do ideal de perfeição pessoal. Um conjunto de valores e de modos de vida, expresso em várias institui4 5 Cf. LUSCOMBE, D. E.; EVANS, G. R. The twefth-century renaissance. In: BURNS, J. H. (Ed.). Medieval political thought (c.350-c.1450). Cambridge: University Press, 1991. p. 308. Na introdução, Constable esclarece que utilizará a palavra renascimento para se referir ao período em questão no livro, com o intuito de transmitir o sentido contemporâneo do termo reforma, que era, segundo ele, o que a palavra renascimento significava na concepção de mundo do homem que vivia no século XII. Cf. CONSTABLE, op. cit., p. 3. 133 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ções, estava no coração do movimento de reforma, que podia ser vista como um esforço de “monastizar” primeiro o clero, impondo-lhe um padrão de vida antes reservado aos monges, e depois o mundo todo. Religião era, na época, explica Constable, um modo de vida, uma conversatio ou ordo, e não um sistema de crenças. E um religiosus era o homem que conduzia uma vida religiosa, que podia ser um regularis ou um claustralis, caso habitasse um mosteiro. Embora soe hoje algo estranho, a vida ascética adotada na época por monges e religiosos voltados cada vez mais para a vida monacal, fosse ela eremítica, penitente, de peregrinagem ou ainda de dedicação exclusiva aos desejos do Senhor, não era aceita com facilidade dentro da Igreja. Homens cujo comportamento se assemelhava ao da vida dos santos não cabiam facilmente nas instituições eclesiásticas estabelecidas.6 Por essa razão também, proliferavam novas casas e ordens religiosas pela cristandade afora, dentro das quais era possível viver de acordo com ideais e práticas próprios. Também a vida eremítica ganhava numerosos adeptos. Mas a instituição eclesial ganhava importância crescente não apenas entre religiosos, como também entre a população européia, fato que pode ser percebido quando se analisa a adoção de nomes cristãos e de santos para os recém-nascidos.7 6 7 A mais séria crítica feita durante o século XII aos cluniacenses e seus seguidores – sobretudo por monges cistercienses – dizia respeito ao fato de os primeiros desejarem ser “não monges, mas senhores [lords]”. A prática de referir-se a monges e cânones regulares como dominus, conta Constable, teve início no século XII e persistiu sobretudo nas ordens beneditinas, mesmo contra a reação de outros círculos monásticos. Ibid., p. 28-9. Constable mostra que, entre os séculos XI e XIV, cresceu vertiginosamente o número de crianças que recebiam nomes cristãos ou inspirados nos santos da Igreja. Entre os séculos XI e XII, p. ex., o número de nomes cristãos cresceu 16,5% na região do Lorraine, 12% no condado 134 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII Quando se examina o pensamento político do século XII, portanto, é preciso levar em consideração a diversificação de ordens e instituições na sociedade. Mas não apenas a multiplicação das fundações monásticas fornecera estrutura e material humano mais apto a pensar as novas realidades sociais. Também o crescimento das escolas urbanas passou a contribuir para a formação de mão-de-obra qualificada, capaz de discutir os trabalhos disponíveis de autoridades intelectuais. Na Bíblia, nos textos dos “Pais da Igreja” e nos escritos clássicos dos pagãos, havia uma abundância de reflexões sobre a meta da vida humana e sobre o governo da sociedade. E esse legado do pensamento era vigorosamente disseminado por uma audiência cada vez mais ampla e mais letrada.8 Essa renovação de quadros repercutiu diretamente no movimento de revisão dos clássicos: com esses novos profissionais da escrita, tornava-se possível empreender a recuperação do legado greco-romano, transmitido à cristandade pelos muçulmanos, principalmente por meio da Espanha. Entre 1120 e 1160, por exemplo, foram realizadas as primeiras traduções do árabe para o latim, sob o predomínio intelectual de João de Sevilha. Elas abarcavam sobretudo temas como astronomia, astrologia, meteorologia e matemática. Em 1141, uma visita feita pelo monge cluniacense Pedro, o Venerável, à Espanha estreitou os laços intelectuais entre tradutores árabes e latinos: surgia assim a versão latina do Corão.9 8 9 de Vendôme, 34,8% na Normandia, e 43,2% na Picardia do século XIII. Os dados, contudo, avisa Constable, nos induzem a pensar que nomes cristãos foram adotados nos quatro cantos da Europa. Mesmo tendo representado “um triunfo da religião sobre a barbárie ou sobre a conformidade social, ou ainda sobre o tribalismo medieval” dos primeiros séculos, alerta, é difícil dizer quanto esse raciocínio pode ser verdadeiro no atual estágio da pesquisa. Ibid., p. 40 et seq. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 310. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 147-8. 135 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Em 1180, sobretudo com o “toledense” Gerardo de Cremona, cresceu o interesse dos latinos pelas obras científicas e filosóficas de Aristóteles. O legado árabe ao Ocidente, argumenta Jacques Le Goff, manifestou-se, mais do que num conteúdo científico, principalmente numa “espiritualidade”, num método, que se traduzia na observação e na experiência: significava o esforço por uma verdade controlada e demonstrada pela primazia da razão.10 No fim do século XII, um certo espírito “enciclopedista” e a especialização daquelas que viriam a ser chamadas “artes liberais” e da ciência uniam-se no humanismo nascente: a cultura urbana intelectualizada firmava suas bases sobretudo nas universidades que emergiam.11 O primeiro campo a ser afetado por esse Renascimento foi provavelmente o jurídico: a lei romana passou aos poucos a substituir as normas costumeiras tribais na maior parte da Europa. Esses costumes raras vezes tinham sido reunidos e alterados conscientemente. Duas influências contribuíram para mudar a situação: em boa parte da Itália – onde os reis alemães estiveram sempre muito presentes – sobreviveu a lei romana; a outra influência, também italiana, remonta ao pontificado de Gregório VII, no qual foram produzidas numerosas leis canônicas, destiladas e compiladas depois por Graciano no Decretum (1140). Whitton chama atenção para um ponto de extrema relevância no que respeita à importância adquirida pelas escolas de direito e suas produções, que logo engrossariam os arsenais dos vários poderes em disputa. “Sua tentativa [de 10 11 Pedro Abelardo, filósofo e teólogo que viveu entre 1079 e 1142, é comumente apontado como o primeiro expoente dessa luta. Sua contribuição mais conhecida foram talvez os argumentos que desenvolveu, pela aplicação da dialética, sobre a intenção dos atos como explicação para aparentes contradições contidas nas afirmações da Bíblia. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 149-52. 136 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII Graciano] de reconciliar precedentes contraditórios, identificando os princípios subjacentes e estendendo-os aos casos análogos”, escreve ele, “indicava do modo mais claro possível que o precedente não fazia a lei, embora pudesse ajudar a justificá-la. A feitura das leis eclesiásticas era reservada ao papado, e a legislação editada por ele começava a encorajar os poderes seculares a fazer o mesmo”.12 Os contornos do que viria a ser a figura do soberano legibus solutus – que mais tarde se associaria à noção da lei como produto da voluntas princepis – começavam a se configurar. Isto é, enquanto a produção de normas e códigos legais fora atribuição exclusiva do imperador romano, não houve grandes conflitos de jurisdição e a tradição se manteve. Mas quando também o papado em ascensão passou a editar decretos vinculantes para toda cristandade, com base no modelo adotado – e pela Igreja preservado – dos antigos imperadores romanos, os nascentes reinos europeus não tardaram a perceber a utilidade de uma tal função nas disputas de poder e também passaram a reclamar para si o direito de legislar e decidir em matérias relativas ao bem comum. Dessa forma, num primeiro momento, os diferentes poderes procuraram formular suas pretensões de supremacia em termos jurídicos. Por essa razão, à época os conflitos de poder freqüentemente apareciam, de maneira imediata, como conflitos de jurisdição. A recuperação e transformação do exemplo romano, contudo, não se limitou à esfera do direito: alcançou em maior ou menor escala todos os âmbitos do pensamento e da arte. Eventos presentes ou passados eram encaixados no contexto dos eventos gerais, remontando à Criação. A moldura divi12 WHITTON, David. The society of Northern Europe in the High Middle Ages 900-1200. In: HOLMES, G. (Ed.). The Oxford history of medieval Europe. Oxford: University Press, 1991. p. 143 – grifos meus. 137 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO na incluía Roma. Também os historiadores romanos passaram a influenciar seus sucessores: a história passava a ser escrita agora em termos de feitos dos grandes homens. Suas ações deveriam ser avaliadas do ponto de vista do benefício que haviam trazido para a res publica. A exigência de racionalidade tendia a minimizar o efeito das explicações sobrenaturais. Esse novo “método” de interpretação da realidade, aliado à recuperação e valorização de textos de filosofia natural traduzidos do grego – em especial os escritos aristotélicos – do árabe e do hebraico, oferecia ao pensamento científico uma alternativa de fato: começava a ser levada a sério a possibilidade da existência de uma ordem natural das coisas na qual Deus não intervinha diretamente. Como isso podia ser afirmado sem limitar a onipotência divina era uma questão a ser resolvida e estava ainda sendo debatida. Mas não havia dúvida de que São Tomás e seus antecessores procurariam respostas para o recente problema. II O SURGIMENTO DA UNIVERSIDADE As condições contextuais do século XII foram enormemente alteradas principalmente a partir de uma transformação institucional que teve conseqüências nítidas para todas as áreas do conhecimento, e também para teoria política: a fundação das universidades. O incremento da rede de escolas, já perceptível desde o fim do século XI, constituía o embrião de uma nova forma de vivência do exercício da ciência, que vingaria sobretudo a partir do século XIII: a universidade européia, com autonomia corporativa. A universidade surgiu apenas no decorrer de um processo complexo e demorado. Mas onde ela aparecia, lá se transformavam de maneira fundamental as condições do tra138 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII balho teórico.13 Esse novo dado institucional e social que lentamente se impunha constituía os primórdios das “corporações de artes e ofícios” que iriam marcar fortemente os séculos finais da Baixa Idade Média. Também cresceram, com os novos centros de saber, as possibilidades metodológicas nas várias ciências, fato que diversificou e transformou o horizonte reflexivo. Às vezes trabalhavam na sistematização de seus respectivos livros de direito – no mesmo local e ao mesmo tempo – tanto juristas decretistas, ocupados do direito canônico, quanto legistas. Introduzia-se na Europa uma nova época: a era da cultura científica do direito. Os textos eram escritos majoritariamente em latim, tal como na Alta Idade Média. Mas era agora o latim das universidades. Mesmo com todas as diferenças e oposições, os escritos exprimiam, não resta dúvida, as expectativas e ambições, os interesses e horizontes daquele grupo de pessoas que os produziam, os liam e os utilizavam – daquela “aristocracia letrada”, como se convencionou chamar desde Dempf. Cada vez mais, esses letrados podiam ser percebidos como uma camada própria em quase toda a Europa ocidental. Um ponto relevante merece ser lembrado: a educação antiga e medieval dizia respeito não apenas ao treino da mente, mas ocupava-se também do comportamento. Por isso, era tarefa das escolas, ao menos num nível elementar, adequar os homens educados ao céu e ajudá-los a viver aquela boa vida na terra, esta última a preocupação comum aos teólogos e pensadores políticos. Assim, a ação humana correta e a errada eram tratadas em dois campos: nas adjacências terrenas – ética – que conduziam ao divino – teologia. A “boa vida” era em primeiro lugar aquela conduzida de maneira 13 Cf. MIETHKE, Jürgen. Der Weltanspruch des Papstes im späteren Mittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 351. 139 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO virtuosa. A vida do homem bom era vivida no amor a Deus e no amor ao seu vizinho como a si mesmo. “Esta era a primavera e a direção do relacionamento social, e a chave do bom comportamento como súdito ou cidadão.”14 Os textos latinos eram utilizados basicamente de dois modos: num nível mais elementar, como “livros de exercícios”, entre os quais estavam as fábulas de Esopo e Aviano, alguns dísticos etc.; num nível mais avançado, Cícero fornecia material para idéias sobre amizade e dever,15 provocando debates e sua adaptação ao contexto cristão. Outra idéia tomada de empréstimo era a afirmação ciceroniana, repetida de Platão, de que não nascemos para nós mesmos sozinhos,16 que os cristãos iriam interpretar em termos do amor a Deus e a nossos vizinhos. Cícero era lido juntamente com outros moralistas, como Sêneca etc. O uso feito desses autores clássicos, contudo, não se estendia ainda à sua reflexão filosófica como um todo, mas restringia-se freqüentemente à utilização como fonte de excertos e frases. Essa “seleção” evitava o confronto entre valores cristãos e pagãos e terminava enfatizando mais seus pontos de concordância e similaridade. O ideal de vida vir14 15 16 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 310. Os deveres podiam ser classificados em dois tipos: aqueles absolutos e ligados ao bem supremo; e aqueles menos elevados, que diziam respeito às regras concretas por meio das quais a vida prática era regulada – uma divisão não muito distante daquela noção dos cristãos monásticos, que separava a vida ativa da contemplativa. “Mas porque, como escreveu admiravelmente Platão, não nascemos apenas para nós, e a pátria reivindica parte de nosso nascimento e os amigos outra; e, como querem os estóicos, todas as coisas geradas na terra o foram para uso dos homens, a fim de que entre si se ajudassem, nisso devemos tomar a natureza por guia: dividimos ao meio as utilidades comuns pela troca de favores, dando e recebendo; e, ora pelas artes, ora pelo trabalho, ora pela competência, unamos a sociedade dos homens entre os homens” (I.VII, 22). In: CÍCERO. Dos deveres. Trad. de Angélica Chiapeta. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 14. 140 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII tuosa conduzido nos escritos clássicos era tanto privado quanto público. O indivíduo não podia ser verdadeiramente virtuoso a menos que fosse também um bom cidadão. Uma tal noção não era inteiramente contrária aos ideais cristãos. Mas adequava-se a eles apenas e somente se o cidadão em questão fosse também o cidadão do céu, isto é, se o indivíduo fosse considerado partícipe do Corpo de Cristo.17 Os escritos de Cícero forneciam ainda material para um desenvolvimento recente: o renascimento das cidades, sobretudo na região do norte da Itália. Aí as aglomerações urbanas tornaram-se civitates, isto é, comunidades autogovernadas com base nos princípios do direito civil estabelecido e aplicado dentro da própria cidade-república. No De Officiis, Cícero tinha apresentado o homem como um ser naturalmente social e cívico. E por serem os homens dotados de razão e de capacidade de comunicação, eles eram naturalmente conduzidos para um tipo específico de associação ou comunidade.18 A associação humana, assim, estava de acordo com a natureza. Nem toda união de seres humanos, entretanto, constituía um povo. Mas onde havia o consentimento à lei e um acordo acerca das vantagens da associação, um populus tinha sido constituído, ensinava Cícero no Da república.19 17 18 19 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 312. “Parece, contudo, que devemos antes investigar quais princípios da natureza são próprios da comunidade e da sociedade humana. E o primeiro é o que notamos no concerto universal do gênero humano. Seu vínculo é a razão e a palavra que, ensinando, aprendendo, comunicando, discutindo e julgando conciliam entre si os homens e agrupam-nos em uma comunidade natural” (I.XVI.50). In: CÍCERO, op. cit., p. 28. “É pois, prosseguiu o Africano, a República coisa do povo, considerando, tal não todos os homens de qualquer modo congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento jurídico e na utilidade comum. Pois bem: a primeira causa dessa agregação de uns ho141 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Tais idéias eram conhecidas, se não por outras razões, ao menos por já terem sido objeto de discussão de “Pais da Igreja”, como Santo Agostinho e Isidoro de Sevilha. Quando o texto da Política de Aristóteles, a respeito da naturalidade da polis, se tornou disponível no Ocidente, na segunda metade do século XIII, ele serviu para reforçar uma posição já familiar, oriunda de Cícero e da lei romana. A idéia estóica de que os homens e as coisas eram regulados pela lei natural encontrou respaldo, no século XII, entre os que definiam as civitates como uniões de pessoas que partilhavam uma visão comum de justiça.20 No século XII, houve muitos escritores que enfatizaram pontos comuns à filosofia pagã e à doutrina cristã. Pedro Abelardo (1079-1142), por exemplo, dizia que os ensinamentos dos antigos filósofos sobre o status rei publicae e sobre a conduta dos seus cidadãos não se opunham às Escrituras. Os preceitos morais evangélicos, sustentava, eram equivalentes à reforma da lei natural seguida pelos filósofos. Seus ensinamentos sobre a vida ativa – o modo correto de governar e de viver nas cidades – eram tão vigorosos quanto seus ensinamentos sobre a vida virtuosa. Seguindo a tradição platônica, Abelardo acreditava que os filósofos tinham conduzido os governantes das cidades a estabelecer a posse comunal 20 mens a outros é menos a sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade em todos inato: a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundância de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum” (I.XXV). In: CÍCERO. Da república. Trad. de A. Cisneiros. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 155. Adelardo de Bath (1090-150), p. ex., afirmava que os homens, por meio de seu próprio bom senso, punham de lado a vida conduzida sem o apoio da lei e eram atraídos para a vida na civitas e para a aceitação de uma justiça comunal. Cf. ADELARD OF BATH. De eodem et diverso. Ed. (H. Willner. (Beiträge zur geschichte der Philosophie des Mittelalters 4/1). Münster: Aschendorf, 1903. p. 19. 142 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII da maneira observada nos “Atos dos apóstolos”,21 mais tarde sustentada por monges cristãos. Assim como o compartilhamento das esposas na Antigüidade contribuíra para o bem da vida comunal, afirmava Abelardo, igualmente o governo da res publica devia tender em direção à communis utilitas, e os governantes de uma verdadeira civitas deviam seguir a lei do amor. De Cícero, Abelardo utilizava a definição da civitas como um concilium ou coetus hominum iure sociatus. E de Platão tomava emprestado o encorajamento dos governantes para amar e servir seu povo. A vida civil, portanto, já havia se tornado objeto de reflexão antes mesmo da entrada de Aristóteles.22 A doutrina da lei natural, entretanto, era familiar aos medievais não apenas de Cícero, mas remontava a São Paulo em sua “Epístola aos romanos”,23 ao primeiro capítulo do Digesto, e ao 5° livro das Etimologias, de Isidoro de Sevilha. Graciano de Bolonha, no Decreto, seguia Isidoro ao definir a lei natural como aquela lei comum a todas as nações – encontrada em todas as terras mais por causa do instinto na21 22 23 “A multidão daqueles que tinham abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma e ninguém considerava como propriedade sua algum bem seu; pelo contrário, punham tudo em comum”. In: Atos dos apóstolos, 4: 32. In: A Bíblia, op. cit., p. 1345. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 314. “Todos os que pecaram sem a lei perecerão também sem a lei; todos os que pecaram sob o regime da lei serão julgados pela lei. Não são, com efeito, os que escutam a lei que são justos diante de Deus; justificados serão aqueles que a põem em prática. Quando pagãos, sem ter lei, fazem naturalmente o que a lei ordena, eles próprios fazem as vezes de lei para si mesmos, eles que não têm lei. Mostram que a obra exigida pela lei está inscrita em seu coração; a sua consciência dá igualmente testemunho disso, assim como os seus julgamentos interiores que sucessivamente os acusam e os defendem. É o que aparecerá no dia em que, segundo o meu Evangelho, Deus julgará por Jesus Cristo o comportamento oculto dos homens.” In: Epístola aos romanos, 2: 12-6. In: A Bíblia, op. cit., p. 1385. 143 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tural imutável dos homens do que em razão de qualquer promulgação positiva.24 E ia além, adaptando a lei natural ao preceito divino básico do amor ao semelhante: A humanidade é regida por duas coisas: pelas leis naturais e pelos costumes. Lei natural é aquela que está contida nas Escrituras, segundo a qual cada um é obrigado a fazer para outro como quer que seja feito para si mesmo, e proibido de fazer a outro o que não deseja que seja feito a si mesmo.25 A definição de Graciano integrava assim a doutrina clássica à cristã. Moralistas e filósofos clássicos inculcaram desse modo ideais de comportamento pessoal e social. Os fatos e as lendas sobre história antiga ofereciam inspiração para a reforma política e para a restauração. Entre 1144 e 1155, a Comuna romana invocou diretamente o passado clássico com o objetivo de restaurar o modelo governamental da Roma antiga, quando das disputas tanto contra o império quanto contra o papado. Também durante a reconstrução da monarquia germânica, depois da querela pelas investiduras, procurou-se reforçar a “romanidade” do império. Frederico I, o Barba-Ruiva, tinha como objetivo uma reformatio do Império Romano, segundo ele, sagrado, independente do papado e governado de acordo com as leis do Código de Justiniano e com os costumes germânicos. Sua autoridade legislativa sustentava-se na lex regia, e não na aprovação do papado.26 24 25 26 Nos termos de Isidoro: “Ius naturale [est] commune omnium nationum, et quod ubique instinctu naturae, non constitutione aliqua habetur” (5.4). In: ISIDORO DE SEVILHA. Etymologiarum sive originum. Ed. W. M. Lindsay. Oxford: University Press, 1989 (repr. 1929). t. I. GRACIANO, Concordia discordantium canonum, D.I. In: LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 314. Ibid., p. 315. 144 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII Num tal contexto de fermentação intelectual, portanto, não é de admirar que as universidades tenham logo conquistado tamanha relevância institucional. Edward Grant, especialista em filosofia da ciência, procura mostrar em obra recente que, ao contrário do que afirmam correntes influentes de interpretação científica, as “descobertas” e avanços dos cientistas modernos, sobretudo a partir do século XVII, têm raízes profundas no pensamento medieval. Mais que isso, argumenta ele, muitos dos desenvolvimentos científicos não poderiam ter ocorrido na Europa ocidental no século XVII se o nível da ciência e da filosofia natural tivesse permanecido o que era na primeira metade do século XII, sem as traduções da ciência greco-arábica e sua adoção nas universidades nascentes. Segundo Grant, três precondições foram cruciais para o desenvolvimento da ciência moderna: 1) a tradução de obras greco-arábicas sobre ciência e filosofia natural para o latim; 2) a formação da universidade medieval; 3) a emergência dos filósofos teológico-naturalistas.27 As traduções greco-arábicas para o latim, como é de conhecimento comum, ocorreram sobretudo durante os séculos XII e XIII. Boa parte desse sucesso, aliás, deveu-se aos árabes, que já haviam traduzido do grego as obras mais relevantes para o avanço científico que se verificaria mais tarde no Ocidente. A segunda precondição foi a formação da universidade medieval, com sua estrutura corporativa e atividades variadas. Nada no mundo chinês, islâmico ou na Índia, nem mesmo no mundo antigo, diz Grant, foi comparável à instituição da universidade medieval.28 Esta tornou-se possível porque a evolução da sociedade medieval tardia, tão dividida entre 27 28 Cf. GRANT, Edward. The foundations of modern science in the Middle Ages. Cambridge: University Press, 1996. p. 171. Ibid., p. 172. 145 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO as duas espadas, temporal e espiritual, permitia a existência separada da Igreja e do Estado. As traduções viabilizavam às universidades emergentes a adoção de um extenso currículo, composto inicialmente das ciências matemáticas, lógica e filosofia natural. A incorporação de inúmeros tratados traduzidos, tanto de origem grega quanto de cientistas árabes e judeus, permitiria a institucionalização da ciência e da filosofia natural nas escolas. O currículo estabelecido para as disciplinas nas universidades medievais a partir dessas traduções manteve-se por cerca de 450 a 500 anos. Cursos de lógica, filosofia natural, geometria, aritmética, música e astronomia constituíam os objetos de estudo para o bacharelado e mestrado na faculdade de artes, a maior e mais tradicional das quatro grandes faculdades – as outras eram a medicina, a teologia e o direito – em qualquer grande universidade. Pela primeira vez na história, uma instituição havia sido criada para o ensino de ciência, filosofia natural e lógica. Também era a primeira vez que se instituía um curso extenso de quatro a seis anos de educação superior, fundamentado num currículo científico básico no qual a filosofia natural era o seu mais importante componente.29 Com a multiplicação das universidades a partir do século XIII, o mesmo currículo de filosofia lógico-científico-natural disseminou-se por toda a Europa, chegando a pontos tão remotos quanto o leste da Polônia. A base desse currículo eram os textos aristotélicos sobre ciência e filosofia natural e os comentários produzidos por árabes e judeus a partir deles.30 Tanto as faculdades de artes, voltadas para o estudo 29 30 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 351-7; cf. tb. GRANT, ibid., p.172-3. Um tal currículo, contudo, lembra Grant, certamente não teria sido implementado sem o consentimento tácito tanto da esfera espiritual quanto da temporal: as duas instâncias concederam às universidades poderes extensos o bastante para que determinassem seu próprio cur 146 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII da filosofia natural e da razão, quanto as de teologia, especializadas em religião e revelação, adotaram prontamente em seus currículos as traduções de obras pagãs e, em especial, as de Aristóteles. Afinal, a cristandade já desfrutava de alguma familiaridade com o pensamento pagão havia tempos. Nesse momento, era relativamente consensual que nada tinham a temer estudando-o.31 A terceira precondição, o aparecimento de uma classe de filósofos teológico-naturalistas, isto é, de indivíduos não apenas treinados em teologia, mas também previamente formados em artes ou nalgum equivalente, colocava à disposição profissionais bastante qualificados para o exercício do pensar. Esses intelectuais não apenas eram formados em artes seculares – e este é um ponto importante –, mas ainda consideravam essencial o estudo da filosofia natural para a elucidação da teologia.32 Os teólogos desfrutavam de um grau razoável de liberdade intelectual para lidar com problemas complexos como o poder absoluto de Deus ou a aplicação da ciência e filosofia natural à exegese sagrada. Essas reflexões eram iluminadas, já desde o século XI, por um dos acontecimentos importantes do período, que de certo modo acompanhou o desenvolvimento da filosofia natural nas universidades: a retomada e o estudo sistemático do antigo direito romano. 31 32 rículo, para regularem-se e para estebelecerem critérios relativos aos níveis de seus estudantes e de seus docentes. Cf. GRANT, op. cit., p. 173. Se os teólogos das universidades logo cedo tivessem declarado o pensamento aristotélico incompatível com a fé cristã, como de fato ocorrera no mundo islâmico, os textos pagãos certamente não teriam se disseminado nas universidades européias, nem poderiam ter permanecido em seus currículos oficiais. E, de todo modo, os ganhos provenientes desse tipo de conhecimento revelavam-se bastante superiores às eventuais perdas que dele decorressem: parecia útil a todos os atores e poderes. Era comum exigir que o estudante que desejasse se matricular no curso de teologia tivesse diploma da faculdade de artes. 147 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO III O DIREITO ROMANO E O DIREITO CANÔNICO O restabelecimento da jurisprudência, no final do século XI e início do XII, deu-se concomitantemente com a retomada das leis romanas que, mais tarde, influenciariam também outros corpos legais: primeiro a lei canônica eclesiástica, e depois as leis costumeiras feudais e locais, além da nova lei da corte real inglesa. As noções romanas de res publica e de lex ganharam destaque cada vez maior ao longo do século XII, sobretudo com a tentativa de Frederico I, o BarbaRuiva, de restaurar o ideal do império. Um de seus atos mais importantes para a jurisprudência da época foi a incorporação dos decretos de Roncaglia, que remontavam à Questão das Investiduras, ao Corpus Iuris Civilis.33 Também a redescoberta do Digesto, de Justiniano (c. 1070), contribuiu para fomentar ainda mais um reavivamento do estudo e da prática do direito civil romano. Os glosadores civilistas do Digesto, seguidores de Irnério de Bolonha – responsável pela separação, ocorrida por volta de 1080, do estudo do direito das demais artes –, haviam recriado a ciência racional do direito. No século XII, tanto a chancelaria imperial, que havia adotado a terminologia legal romana, quanto a chancelaria real ou ainda os notários do continente propagavam a nova jurisprudência como instrumento para solucionar as necessidades práticas de juízes e juristas. Os novos ensinamentos penetraram com rapidez a Europa, e também a Ecclesia, passando a ser divulgados tanto por leigos e burocratas imperiais quanto por canonistas, como o chanceler papal Aimeric e Graciano de Bolonha. Era em primeiro lugar a jurisprudência que forjava, ao lado da teologia, os novos impulsos. O direito canônico tor33 O Corpus Iuris Civilis reunia duas grandes obras principais: o Digesto (ou Pandectas) e o Codex que, por sua vez, também abrigavam outros livros de direito (cf. n. 14, cap.1). 148 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII nou-se, ao longo do século XII, uma disciplina própria, reforçada sobretudo pela compilação de cânones empreendida por Graciano, o Decretum. Os juristas da Igreja viam-se confrontados, no seu trabalho cotidiano, com as conseqüências práticas de reivindicações eclesiásticas como a da Doação de Constantino. Já os especialistas que seguiam o direito românico – os legistas – tinham um espectro de textos da Antigüidade que havia ficado por muito tempo no esquecimento e os confrontava com teoremas e concepções em parte desprezados – e de qualquer modo anacrônicos para a Idade Média. Assim, os jurisconsultos de ambos os direitos estavam especialmente preparados para se empenhar no trabalho teórico e nas questões políticas.34 Era nos enfrentamentos concretos entre prelados eclesiásticos e governantes temporais pela pretensão de supremacia, porém, que os juristas encontravam cada vez mais seu espaço. A ciência do direito, e nela sobretudo a canonística, penetrava na Igreja não apenas em termos teóricos. Juntamente com o Decretum (1140), do mestre Graciano de Bolonha, os canonistas eram os responsáveis pela reunião do novo direito que provinha da cúria pontifícia na forma de decisões e decretos papais. Esse material tinha de ser juntado, ordenado, comentado e trabalhado de forma científica. Sua ordenação requeria portanto formação específica. Aos chamados decretistas – juristas que se preocuparam sobretudo com o Decretum – somavam-se cada vez mais os decretalistas – juristas que se preocupavam com as decretais do papa e sua compilação e seguiam o mesmo método dos decretistas. Os jurisconsultos ocupados dessas tarefas acabaram formulando para a Igreja um direito constitucional ecle34 Essas novas ciências ocidentais da universidade, relata Miethke, tinham grande apoio social e político: a jurisprudência, p. ex., era subsumida, desde o século XII, junto com a medicina, sob as ciências consideradas lucrativas (scientiae lucrativae). Cf. MIETHKE, op. cit., p. 356-7. 149 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO siástico que não estava, necessariamente, interessado na posição central do papa, mas que se orientava cada vez mais em direção a ela. O conjunto de documentos compilados pelos canonistas integrariam, com o Decretum, o código normativo canônico, o Corpus Iuris Canonici. A regulamentação das ordens religiosas, dos clérigos e do exercício de seu cargo, do direito de matrimônio e das penitências eclesiásticas, entre outras, constituíam todas questões que tinham de ser esclarecidas de acordo, simultaneamente, com a tradição legada e com as decisões tomadas em tempos recentes na cúria romana. A resposta dada deveria ser capaz de resistir diante do tribunal.35 Mas o direito canônico, como meio de regulamentação, era tão eficaz que a juridificação parecia irresistível, sugere Miethke. O número das decretais papais, que correspondiam na maioria das vezes a uma requisição junto à cúria, aumentou ainda no século XII de forma antigamente inimaginável.36 A política promovida por alguns papas, pela cúria, pelos bispos e por governantes leigos não era de forma alguma apenas mera aplicação de “concepções teóricas”, mesmo que se confiasse cada vez mais no debate letrado para a percepção dos problemas e para a formulação de suas soluções. A disputa entre o papado e o poder temporal levou a Igreja e seus peritos eclesiásticos a uma elaboração cada vez mais precisa de como a instituição eclesial deveria ser organizada enquanto corporação religiosa, de como eram nela distribuídas as competências e a que tipo de exigências a liderança da Igreja podia obrigar os seus fiéis. 35 36 O princípio da não-contradição era um dos problemas do desenvolvimento do direito que qualquer sistema com normas legais fixadas pela escrita tinha de resolver. Mas aqui se apresentavam com uma urgência especial, uma vez que os cânones de direito já eram em parte muito velhos e ultrapassados e, mesmo assim, reivindicavam validade. Cf. MIETHKE, op. cit., p. 358. 150 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII A partir do século XII, também foram realizadas leituras e comentários mais sistemáticos da Bíblia, que passava agora a ser estudada fora dos mosteiros, numa busca metódica de textos que pudessem esclarecer questões de teologia especulativa e de reforma moral. O livro sagrado parecia até então ter pouco a esclarecer sobre questões políticas complexas como a relação entre regnum et sacerdotium.37 Em meados do século, contudo, os ensinamentos bíblicos passaram a ser lidos sob nova luz e aplicados a matérias relativas ao pensamento político: São Paulo forneceu talvez o mais importante argumento bíblico relativo ao dever dos cristãos de se submeterem a um poder secular, pois, diz o texto sagrado, o governante é instituído por Deus.38 Algumas alegorias políticas já tinham sido desenvolvidas durante a reforma gregoriana do século XI. A metáfora mais influente foi provavelmente a interpretação patrística das duas espadas, um dos símbolos habituais da autoridade política. Mas o poder eclesiástico era descrito ainda por uma série de motivos como a palavra (verbum), a cruz, as chaves 37 38 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 316. “Seja todo homem submisso às autoridades que exercem o poder, pois não há autoridade a não ser por Deus e as que existem são estabelecidas por ele. Assim, aquele que se opõe à autoridade se revolta contra a ordem querida por Deus, e os rebeldes atrairão a condenação sobre si mesmos. Com efeito, os magistrados não são temíveis quando se faz o bem, mas quando se faz o mal. Queres não ter de temer a autoridade? Faze o bem e receberás os seus elogios, pois ela está a serviço de Deus para te incitar ao bem. Mas se fazes o mal, então teme. Pois não é em vão que ela traz a espada: castigando, está a serviço de Deus para manifestar a sua cólera para com o malfeitor. Por isso é necessário submeter-se, não somente por temor da cólera, mas também por motivo de consciência. Este é também o motivo pelo qual pagais impostos: os que os recebem são encarregados por Deus de se dedicarem a este ofício. Dai a cada um o que lhe é devido: o imposto, as taxas, o temor, o respeito, a cada um o que lhe deveis”. In: Epístola aos romanos, 13: 1-7. In: A Bíblia, op. cit., p. 1397. 151 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO de São Pedro, a mitra e o bastão. Ao final do século XII, os reformadores da Ecclesia já tratavam os aspectos legais da reforma, baseados em estudos bíblicos, de uma perspectiva cada vez menos sobrenatural. O teólogo parisiense Pedro, o Cantador, por exemplo, condenou a prática do julgamento por meio da tortura, pois, segundo ele, constituía uma demanda flagrante por uma intervenção miraculosa para um juízo de Deus.39 A reafirmação do veto ao uso de provações pelos religiosos, ratificada no cânone 18 do Concílio de Latrão em 1215, refletia sem dúvida a poderosa influência dos ensinamentos de Pedro. Mas espelhava também um amplo movimento na direção da adoção de procedimentos legais mais racionalizados. A própria Ecclesia contribuía, desse modo, para a secularização e a burocratização de métodos e critérios legais que, direta ou indiretamente, se refletiam no âmbito do poder político. Ao lado da Bíblia, em termos de autoridade, estavam os escritos dos “Pais da Igreja”, dentre os quais se destacavam Santo Agostinho, Isidoro de Sevilha, Bernardo de Claraval, entre outros. Além de ter sido um agente importante na promoção das leis da antiga Roma, a Ecclesia havia passado agora a sistematizar seus próprios cânones interpretativos em corpos jurídicos mais ou menos coerentes. Papas juristas importantes, como Inocêncio III e IV, contribuiriam para o surgimento de um complexo de concepções sobre direito canônico que ganhava autoridade. A Igreja era entendida cada vez mais como uma corporação juridicamente constituída, cujas relações de direito centravam-se completamente no seu bispo supremo, o papa. A instituição eclesiástica, como organização legal, ganhava, além disso, um caráter cada vez mais paradigmático e modelar para outras áreas. 39 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 322. 152 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII A visão de que o papa tinha de ser reconhecido como o topo e o centro do sistema foi ganhando importância central. Colaboravam para esse movimento de concentração do poder a adoção de conceitos legais como plenitudo potestatis, o pleno poder do cargo máximo – cargo no qual se preenchia toda a competência eclesiástica. O título de successor Petri perderia, no século XIII, em grande parte, seu significado inicial: o de justificar a posição do cargo. A supremacia do bispo de Roma aparecia na liberdade de que gozavam os pontífices para alterar as leis ditadas por qualquer de seus predecessores: nenhum papa podia, na qualidade de detentor do cargo, obrigar seu sucessor. A partir do fim do século XII, com o pontificado de Inocêncio III (1198-215), o sumo sacerdote passou a monopolizar para si a denominação vicarius Christi, que antes podia ser reivindicada por qualquer padre em virtude de sua administração sacramental. Em toda a Igreja impôs-se a concepção de que apenas no uso do título restrito ao papa – e apenas nesse uso – a alta reivindicação que lhe cabia tinha uma base adequada: somente nele estava a soma e a expressão de todas as competências.40 O título transferia, assim, a abrangência desse poder pleno do Cristo como “pessoa de Deus” ao papa. 40 Em virtude de sua função súpera dentro da comunidade, recorda Ullmann, o pontífice reclamaria mais adiante o direito de declarar nulos ou inválidos os tratados entre os reis; de revogar leis seculares, como a Carta Magna; de decretar censuras eclesiásticas contra aqueles que cobrassem tributos ou cotas injustas em pontes e rios; de ordenar aos reis o envio de forças armadas em auxílio de outro monarca ou contra os pagãos e hereges; de confirmar os territórios obtidos por conquista militar como possessões legítimas; de obrigar às partes beligerantes o cessar-fogo e estabelecer conversações de paz; de obrigar a população de um reino – mediante a mera proibição ou com ameaças de excomunhão – a negar obediência a seu rei etc. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 109. 153 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O vicariato de Cristo na pessoa do papa, observa Ullmann, fazia dele o ponto de intersecção entre o céu e a terra: “as chaves do reino dos céus” haviam-se convertido nas “chaves da lei”. Por ser Deus o autor de todas e cada uma das coisas que existem sobre a face da terra, Inocêncio IV (124354) declarou que todas e cada uma das criaturas humanas – e não apenas os cristãos – estavam sujeitos ao governo do papa, que, afirmavam os canonistas, era o monarca universal de iure, embora não de facto. Como era monarca sobre a comunidade dos crentes, o papa pretendia que suas leis alcançassem a tudo e a todos.41 A reivindicação de universalidade pelo pontífice logo iria impor-se aos opositores curiais e, em especial, ao imperador. Por um longo período o papado permaneceria, na prática, sozinho no cenário jurídico com a sua reivindicação de universalidade. Entretanto, a lacuna que seria aberta – por volta de meados do século XIII – pelo enfraquecimento da posição do imperador não havia sido de forma alguma preenchida por um papado “vencedor”. Ao contrário: logo entrariam em cena novas forças, os reinos nacionais europeus em processo de consolidação, que à época estavam paulatinamente ganhando forma.42 “Do ponto de vista histórico”, escreve Ullmann, “não se pode esquecer que esses conceitos – como o de soberania, de lei, de súdito, de obediência etc. – foram gestados em um contexto exclusivamente eclesiástico”.43 A teoria jurídica da monarquia papal sobre o povo cristão – e assim, de forma indireta, sobre o mundo – não seria tão cedo abandonada. Pelo contrário: os princípios por ela colocados podiam ser transferidos com um esforço relativamente pequeno para as corporações fundamentadas no go41 42 43 Ibid., 1983, p. 101. Cf. MIETHKE, op. cit., p. 359. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 110. 154 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII verno temporal. A Igreja se constituiria assim, entre os séculos XI e XIII, num paradigma extremamente poderoso para o pensamento e para a teoria política. Um paradigma que acabaria servindo – totalmente contra as próprias reivindicações – de modelo, teórico e jurídico, para a autonomização do âmbito da dominação política secular. E esse movimento esteve intrinsecamente ligado ao progresso da jurisprudência, disciplina que contribuiria de forma nada marginal para o desenvolvimento da teoria política para muito além da Idade Média.44 IV AS TRADUÇÕES E O FOMENTO DA FILOSOFIA NATURAL É muito freqüente encontrar, entre os autores que tratam da Idade Média, a afirmação de que teria havido, por volta de 1250, uma “revolução aristotélica” – causada sobretudo pelas traduções da Ética e da Política de Aristóteles – que marcaria a ruptura entre a Idade Média e o período moderno. Alguns especialistas de área, como C. Nederman, D. Luscombe e G. Evans, já chamaram a atenção para esse “desvio de interpretação”, que leva a compartimentar a história em “blocos” demarcados, com início e fim. A leitura sustentada pelos partidários da “revolução aristotélica” é “um dos mais acalentados cânones interpretativos da historiografia intelectual medieval”, escreve Nederman.45 Entre eles, podem-se mencionar alguns nomes de peso, como Q. Skinner, W. Ullmann e M. Wilks. Ullmann, por exemplo, inicia um capítulo sobre a recuperação aristotélica nos seguintes termos: 44 45 Cf. MIETHKE, op. cit., p. 360. Cf. NEDERMAN, Cary J. Aristotelianism and the origins of “Political Science” in the twelfth century. Journal of the History of Ideas, v. 52, p. 180, april-june 1991. 155 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A influência de Aristóteles da segunda metade do século XIII para frente forjou uma transmutação no pensamento que equivale a uma revolução conceitual. De fato e em teoria, o alude aristotélico no século XIII marca o divisor de águas entre a Idade Média e o período moderno.46 Ou ainda Wilks: O que ele [o pensador leigo do século XIII] precisava não era mais uma teoria da correta distribuição do poder, mas uma concepção totalmente nova de sociedade; e esta só podia ocorrer quando uma revolução filosófica tivesse tido lugar. Essa revolução ocorreu durante o século XIII, com a redescoberta de muitos dos trabalhos perdidos de Aristóteles.47 A adoção irrestrita dessa posição traz alguns problemas. Os estudos historiográficos mais recentes permitem afirmar, por exemplo, que a Ética já estava disponível em latim desde pelo menos 1100, ou seja, 150 anos antes. Isso significa dizer que vários dos conceitos aristotélicos, como o de virtude (aretê), já eram conhecidos e utilizados desde pelo menos o início do século XII. Sua influência pode ser avaliada em textos como o Policraticus (1159), de João de Salisbury, entre outros. Já muito antes da metade do século XIII, portanto, noções centrais do sistema moral aristotélico haviam entrado em circulação, ou na forma de fragmentos e traduções indiretas, ou ainda por meio de fontes indiretas como Cícero e Boécio (480-524). Também não constituía novidade a idéia da naturalização da sociedade política. Ao contrário do que se afirmou 46 47 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 152. Cf. WILKS. M. The problem of sovereignty in the Later Middle Ages. Cambridge: University Press, 1964. p. 84; cf. tb. SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 617. 156 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII durante décadas, também o “naturalismo político” – a doutrina que sustentava emergir a associação política diretamente das exigências da natureza humana, e não da inspiração divina – não foi introduzido pela recuperação da Política de Aristóteles. A noção já era bastante conhecida das leituras de autores latinos como Cícero, Sêneca e outros moralistas, em cujos trabalhos se podiam encontrar apreciações consideráveis sobre a naturalidade das associações humanas. Nesse sentido, é possível sustentar que o naturalismo político aristotélico serviu mais para complementar do que para suplantar tradições de pensamento preexistentes. Há muito mais continuidade do que ruptura nos processos históricos. E muito mais acúmulo do que revolução na produção do conhecimento. Isso é o que se pretende mostrar aqui. Outro tema relevante que vinha ganhando espaço nas transformações em curso era o da independência de certas esferas do conhecimento. Não apenas a jurisprudência e a teologia se tornavam autônomas como campos legítimos de investigação científica, como também a ciência da política e outras tantas artes refinavam conceitualmente seus objetos. Em textos medievais de inícios e meados do século XII, já era possível encontrar relatos precisos sobre o lugar da política dentro do sistema geral do conhecimento humano.48 A ausência de um corpus filosófico sistematizado não impedia que pensadores do período se dedicassem ao exame da política, como aliás já vinha ocorrendo desde a disputa pela investidura. Entre esses autores, havia nomes importantes como Hugo de São Vítor, Guilherme de Conches, Domênico Gundisalvi e João de Salisbury. 48 “Muitos autores do século XII não só perceberam que a política era um assunto separado e distinto de investigação”, escreve Nederman, “mas também tentaram por vezes especular de modo mais genérico sobre a própria natureza do campo político, sobre o propósito e função da política, e sobre a relação entre a política e outras formas de conhecimento ‘prático’”. Cf. NEDERMAN, op. cit., 1991, p. 182. 157 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O processo de transmissão e difusão das idéias aristotélicas ocorria, portanto, de forma vagarosa, e somente aos poucos foi conquistando espaço nos círculos intelectualizados, em companhia de outros pensadores ilustres.49 O universo das idéias disponíveis era grande e variado. O que se buscava eram soluções adequadas para problemas contemporâneos. E isso vários desses autores forneciam, inclusive Aristóteles. Suas idéias eram adotadas aqui e acolá, muitas vezes sem menção à fonte, ao estilo dos medievais, e desse modo penetravam a reflexão e o dia-a-dia dos homens de letras. Assim, ao contrário do que sugerem autores importantes como Tierney50 ou Canning,51 o progresso da ciência, e com ele a autonomia da política, resultava de um lento e demorado processo de absorção e adaptação de autores “clássicos” à realidade medieval. Esse mundo cristão era, nesse momento, um corpo em transformação, recebendo influxos de vários lados. A exten49 50 51 Além disso, outros mestres da Antigüidade, como Platão, Hipócrates, Pitágoras etc., estavam sendo traduzidos para o latim, bem como pensadores árabes de peso como Al-Farabi e Ibn Sina (Avicena), ilustres comentadores dos filósofos antigos. “A Política, um dos últimos trabalhos de Aristóteles a ser traduzido”, escreve Tierney, “abriu um mundo novo de pensamento para o homem medieval. Mostrou-lhes que a teoria política não precisava ser um mero ramo da jurisprudência: ela poderia ser uma ciência autônoma com razão própria, um campo próprio de estudos para filósofos”. In: TIERNEY, B. Religion, law, and the growth of constitutional thought (1150-1650). Cambridge: University Press, 1982. p. 29. “A principal inovação do pensamento político medieval tardio”, diz Canning, “foi o desenvolvimento da idéia de Estado secular como um produto da natureza política do homem. Esse conceito foi adquirido por meio da redescoberta da Política e da Ética de Aristóteles. Aristóteles forneceu uma teoria pronta [ready-made] da política e do Estado, cuja existência se dá em uma dimensão puramente natural e mundana [this-worldly]. De fato, a idéia mesma de ciência política como uma disciplina autônoma e a noção do político como uma categoria da atividade e relação humanas foram o produto dessa nova visão”. In: CANNING, J. P. Introduction: politics, institutions and ideas. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 360. 158 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII são dos laços políticos da cristandade latina durante a época das Cruzadas havia tornado a sociedade européia mais complexa e mais unificada. No século XII, como jamais ocorrera antes, conviviam, na região do Mediterrâneo, e em especial na Península Ibérica, correntes de pensamento tão diversas como as de origens grega, islâmica, judaica e católica. Os filósofos islâmicos, por exemplo, possuíam um leque abrangente de trabalhos de Aristóteles e de seus comentadores, assim como de Platão e Galeno, todos em versões arábicas. Tinham, além disso, reflexões próprias que não devem ser subestimadas quando se que dar conta do pensamento político europeu na Idade Média. No século XII, sob o predomínio do almorávida Ibn Rushd (Averróis), ocorria um amplo restabelecimento do pensamento grego, especialmente do aristotélico. Estudiosos latinos espanhóis já haviam desenvolvido um interesse considerável pelos ensinamentos arábicos. Essas obras forneciam extenso material para debate teórico e prático. A vida intelectual da Europa cristã estava sendo profundamente afetada, nos séculos XII e XIII, pela recepção contínua das traduções para o latim de textos científicos e filosóficos de origem islâmica, grega e judaica. Nada era desperdiçado. No final da Idade Média, a cristandade ocidental disporia de uma longa tradição de uso do pensamento pagão em benefício próprio. 1. Árabes, judeus e gregos pós-helênicos: a herança do Ocidente medieval Um dos pontos ainda hoje pouquíssimo explorados por estudiosos das idéias políticas é a contribuição do pensamento de origem islâmica à cristandade ocidental na Baixa Idade Média. Sabe-se pouco a respeito desse encontro de mundos, e o material é, entre nós, escasso, quando não des159 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO conhecido. Mas um dos temas que as pesquisas recentes revelaram tem interesse imediato para a reconstrução que aqui se empreende. Trata-se da relação de cada uma dessas concepções de mundo, cristã ocidental e islâmica, com seus fundamentos teológicos e científicos, isto é, do modo como cada uma relacionava ciência e religião. No mundo árabe, predominavam basicamente dois tipos de ciência: a islâmica, baseada no Corão e nas leis e tradições islâmicas (sobretudo a sharia); e as “estrangeiras” ou pré-islâmicas, que envolviam ciência antiga grega e filosofia natural. As ciências estrangeiras foram traduzidas para o árabe principalmente nos séculos IX e X. A filosofia natural dos gregos foi largamente utilizada para defender e explicar o Corão e suas doutrinas, apesar das reivindicações de autosuficiência do livro sagrado pelos religiosos. Os teólogos muçulmanos encarregados de promover a harmonização entre razão e fé, denominados mutakallimun, usavam seu conhecimento de filosofia antiga para criticá-la. Afirmar que a filosofia grega era necessária para a defesa do Corão podia ser entendido até como blasfêmia.52 Boa parte dos teólogos muçulmanos estava convencida de que a lógica e a filosofia natural antigas – sobretudo a aristotélica – eram incompatíveis com seu livro sagrado. Um dos pontos de conflito era a explicação da criação do mundo no Corão, contrária à de Aristóteles: para o Filósofo, a eternidade do mundo – que não teria início nem fim – era uma verdade essencial da sua filosofia natural. Por afirmações como essa, a filosofia grega era vista com suspeita no mundo islâmico e raramente era discutida em público. Muitos dos cientistas muçulmanos e filósofos naturais conhecidos, entre eles Ibn Sina (Avicena), eram patrocinados pela realeza e não ensinavam nas escolas. Sem o apoio de um senhor po52 Cf. GRANT, op. cit., p. 177-8. 160 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII deroso e forte, esses estudiosos terminavam sujeitos a denúncias e ataques de líderes religiosos locais que podiam ofender-se com a propagação das idéias pagãs.53 Diferentemente da cristandade ocidental, a filosofia no mundo islâmico jamais se tornou uma disciplina independente. Havia fortes barreiras à disseminação sobretudo dos ensinamentos de filsofia natural. Pois uma disciplina colocada com freqüência em oposição ao Corão não podia ter um valor significativo para o crente. Seu estudo nunca foi institucionalizado no Islão. Se a cristandade foi disseminada lentamente, permitindo séculos de ajustamento ao mundo pagão, já a religião do Islão era transmitida com velocidade notável: em cerca de cem anos expandiu-se sobre vastas áreas, envolvendo povos diversos, da África à Ásia. A religião muçulmana, ao contrário da cristandade, jamais viveu qualquer período de ajustamento aos ensinamentos da filosofia pagã. Enquanto a cristandade havia nascido dentro do Império Romano e da civilização mediterrânea, além de ter estado numa posição subordinada dentro desse império por muitos séculos, o Islão nasceu fora do raio de influência do Império Romano e nunca esteve numa posição subordinada a outras religiões e outros governos. O Islão, diferentemente do Ocidente cristão, não teve de se acomodar numa cultura mais ampla nem de aceitar os ensinamentos gregos, que continuaram sendo vistos como estranhos e potencialmente perigosos para a fé islâmica. No Islão, à exceção dos mutakallimun 53 A lógica, p. ex., era freqüentemente caracterizada como matéria nãoteológica. Filósofos e cientistas não deviam estudar para a sua própria satisfação, mas para servir à religião. Logo, seu estudo não era recomendado. Aritmética e astronomia eram aceitas, p. ex., porque eram vistas como indispensáveis à fé: a primeira como instrumento para dividir heranças; a segunda para obter valores para os fenômenos astronômicos, essenciais para a determinação das horas em que deveriam ser feitas as cinco orações diárias. Cf. GRANT, op. cit., p. 179. 161 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO e de figuras ocasionais como Al-Ghazali (1058-111), filósofos naturais eram normalmente distinguidos dos teólogos. Filosofia natural era matéria para ser pensada privada e silenciosamente. E, de maneira mais segura ainda, sob a proteção de um rei poderoso.54 Dentro da cristandade ocidental, ao contrário, quase todos os teólogos profissionais eram também filósofos naturais, fato devido em boa medida à estrutura da universidade medieval no Ocidente. A atitude favorável da cristandade ocidental em face da filosofia natural, contudo, não derivou apenas do contato prolongado, ao longo dos séculos, com o pensamento pagão, e de uma acomodação a ele. Apesar de suspeitos, os ensinamentos greco-romanos não eram tidos como inimigos da fé cristã, e sua utilidade potencial foi reconhecida logo cedo. Embora muitos homens da Ecclesia tenham proclamado a sua superioridade em relação ao governo terreno, como Santo Agostinho, a Igreja Católica reconheceu e aceitou a separação entre os gládios material e espiritual, seja na forma de regnum et sacerdotium, seja na divisão entre os poderes temporal e espiritual, cisão que permitiu o desenvolvimento de uma filosofia natural secularmente orientada. No Islão medieval, pelo contrário, um governo propriamente secular inexistia: Igreja e Estado eram uma única coisa. A função do Estado era garantir o bem-estar da religião muçulmana de modo que todos os que viviam dentro deste Estado pudessem ser bons, isto é, muçulmanos praticantes. Como a Igreja ocidental via com bons olhos a ciência, as autoridades seculares também puderam adotar uma abordagem positiva desta. Religiões estritamente unitárias, como o judaísmo e islamismo, não precisam de assistência metafísica nem de aparatos para expor a essência de Deus, embo54 Ibid., p.182. 162 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII ra, é claro, sempre apareçam problemas que requerem algum grau de explicação filosófica. Mas os teólogos islâmicos, de fato, desencorajavam análises do Corão e evitavam o desenvolvimento de uma teologia especulativa.55 Mesmo dentro desse quadro complexo, contudo, o pensamento político-filosófico árabe desenvolveu uma abordagem própria que teria repercussões no Ocidente cristão, sobretudo no período em que o domínio árabe no sul da Península Ibérica experimentava seu auge. O pensamento político árabe era fortemente marcado pela influência platônica, que se tornou ainda mais forte depois de Al-Farabi (950). Durante o período clássico da filosofia islâmica (séculos X a XII), a filosofia política não foi atividade marginal, e sim predominante. Tratava-se, contudo, de uma filosofia política que servia sobretudo aos propósitos religiosos. No Falasifa, o respeitado compêndio de filosofia, a idéia platônica do rei-filósofo e legislador fora assimilada à noção do profeta num Estado religioso ideal. Os pensadores islâmicos incorporavam as idéias políticas gregas e transformavam-nas em parte integral de seus próprios ensinamentos gerais.56 Al-Farabi, por exemplo, entendia o “objeto” do que se pode denominar ciência política, em termos da caracterização de diferentes tipos de Estados e governantes, com base na investigação das causas da felicidade (que no Ocidente equivaleria ao papel do “bem comum”) e dos meios de alcançála pelo exercício do governo virtuoso sobre a cidade ou nação. Ele investigou os elementos que compunham a comunidade islâmica – os legisladores, a lei, os diferentes tipos de Estados – e sustentou que as funções da profecia, da legislação, da filosofia e da dominação não se diferenciavam. Por 55 56 Ibid., p. 184. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 330. 163 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO isso, deveriam estar unidas numa pessoa, um califa ideal, que seria simultaneamente profeta-legislador e rei-filósofo.57 Al-Farabi explorou ainda questões fundamentais sobre a relação e a harmonia entre filosofia, revelação e lei humana; estabeleceu o lugar da ciência política nas sociedades com religião profética revelada e objetivos espirituais; pesquisou a filosofia e o pensamento político da Grécia antiga, especialmente o de Platão. Refletiu sobre a jihad ou guerra santa; propôs a analogia entre o Estado e o corpo humano. Mas não havia traduções latinas da obra de Al-Farabi disponíveis na Europa medieval: A enumeração das ciências, por exemplo, de sua autoria, foi traduzida para o latim por Domênico Gundisalvi apenas por volta de 1150. E uma tradução completa da obra só surgiu em 1175, com o toledense Gerardo de Cremona. A mais forte influência islâmica sobre a recepção de Aristóteles no Ocidente latino, entretanto, foi provavelmente Ibn Rushd (1126-98), de Córdoba, que viveu a maior parte de sua vida na Espanha dos almorávidas e em Marrakesh e era conhecido entre os latinos pelo nome de Averróis. A influência de sua monumental tentativa de recuperar a filosofia aristotélica teve vida breve no Islão. Com a sua morte e com o declínio da influência de Al-Farabi, poucas cópias da versão arábe dos trabalhos de Ibn Rushd sobreviveram e ficaram conhecidas. Mas seus comentários sobre Aristóteles tornaram-se uma parte importante do pensamento judaicocristão. Em termos de doutrina política, Ibn Rushd era um seguidor de Platão: estudou com simpatia o Estado ideal platô57 Criava assim uma teologia política na qual religião e filosofia se encontravam. Também enfatizava o papel ativo que os filósofos deveriam desempenhar em negócios legais e políticos. E sonhava, como Dante mais tarde, com uma sociedade universal baseada na fé comum e organizada sob um único governante: o profeta-filósofo. 164 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII nico, acrescentando apenas que, para ele, esse Estado ideal era o islâmico e teria tido origem com o profeta-legislador. Quando, no século XIII, os escolásticos latinos encontraram os comentários de Ibn Rushd sobre Aristóteles, estavam bem mais interessados em seus trabalhos sobre filosofia natural, física e metafísica do que em sua ética. Por isso, seu pensamento político acabou não tendo no Ocidente divulgação tão ampla como outras partes de sua obra. A entrada triunfante de Aristóteles no Ocidente latino, lembram Luscombe e Evans, e a descoberta de que o Filósofo não era apenas um mero lógico, mas também um filósofo natural e moral, deveu-se inicialmente aos árabes.58 Também os judeus participaram desse período fecundo de convivência intelectual experimentado na Espanha muçulmana. O representante mais significativo dessa corrente de pensamento talvez seja o pensador judaico Moisés Maimônides, nascido em Córdoba em 1135 e morto em 1204, também ele um discípulo da teoria política de Platão e AlFarabi. Maimônides sustentava que o homem dependia de um Estado para sua perfeição e felicidade. Numa sociedade em que se vive de acordo com a religião revelada, dizia, o profeta assume a função política de governante e feitor da lei. Os profetas bíblicos deveriam ser vistos como filósofos dotados de qualidades especiais de imaginação, e a comunidade religiosa deveria ser considerada um Estado ideal. Como Al-Farabi, Maimônides incluía o estudo da filosofia e da religião na lista das ciências. Em seu Millot haHiggayon XIV, depois de distinguir – como Aristóteles – entre filosofia prática e teórica, ele traçava o escopo do estudo da ética, da economia e da política. E ainda introduzia um quarto tipo de filosofia prática, que denominava “o governo da grande religião ou das outras religiões”, que correspondia à 58 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 334. 165 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO lei religiosa tanto islâmica quanto judaica.59 Filósofos árabes ocidentais que escreviam na Espanha ou no Magreb, fossem islâmicos ou judeus, geralmente atribuíam alto valor aos escritos de Aristóteles. Para Maimônides, o Filósofo representava “o extremo do intelecto humano, se excetuarmos aqueles que receberam inspiração divina”. Entender Aristóteles deveria ser a mais alta ambição de um homem que raciocinava. No Guia dos perplexos, Maimônides tentava mostrar que, corretamente interpretados, não há incompatibilidade entre os ensinamentos éticos e metafísicos de Aristóteles e os textos do Talmude e a Escritura. Quando os pensadores latinos tiveram acesso aos seus textos, impressionou-os não tanto o seu débito para com a filosofia política ou prática de Al-Farabi, e sim sua adesão à doutrina aristotélica.60 A parte oriental do Império Romano, por sua vez, desenvolveu um ramo da cristandade consideravelmente diferente da sua contrapartida ocidental. No início, a parte oriental – bizantina – e a ocidental – latina – formavam um Estado unificado, o Império Romano. Dentro desse império unificado, que sobreviveu até o século V d.C., a cristandade era essencialmente una. Com o passar do tempo, o Império Romano dividiu-se em duas unidades distintas e até mesmo rivais. Por volta do ano 800, o império já se encontrava de fato dividido entre Ocidente e Oriente. O rompimento manifestou-se também lingüisticamente: enquanto no leste a língua oficial era o grego, no oeste era o latim. Essa divisão aparecia também na religião: a cristandade rachou-se em duas facções rivais, a Igreja Católica no oeste, e a Igreja Ortodoxa Grega no leste. Diferiam, é claro, no uso da linguagem litúrgica, sendo o latim utilizado no Oci59 60 Ibid., p. 332. Ibid., p. 333. 166 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII dente e o grego no Oriente. O clero oriental tinha permissão para contrair matrimônio, o ocidental não. Na Sagrada Eucaristia, ou missa, clérigos orientais usavam pão sem fermento, enquanto os católicos do Ocidente serviam pão com fermento. Na Igreja do Oriente, leigos podiam ser nomeados patriarcas.61 A diferença mais importante entre as duas instituições, contudo, remonta ao início do século VI, quando a Igreja Católica alterou o “Credo de Nicene”, de 325 a.C. Enquanto a Igreja Ortodoxa declarava formalmente que o Espírito Santo provinha apenas “do Pai”, a Igreja do Ocidente adicionou as palavras “e do Filho”. Declarava-se assim que o Espírito Santo provinha agora do Pai e do Filho, uma reivindicação que a Igreja Grega considerava objetável, porque poderia levar à afirmação de que o Espírito Santo derivava de dois deuses distintos. A formação de duas Igrejas já era uma realidade, portanto, muito antes de 1054, quando legados papais, numa missão a Constantinopla, excomungaram o patriarca e seus aliados, que, por sua vez, condenaram os enviados papais. Em contraste com Bizâncio, que era essencialmente um Estado teocrático, a cristandade ocidental admitia uma diferenciação acentuada entre regnum e sacerdotium. No mundo bizantino, o imperador era considerado o vice-rei de Deus e um líder sagrado. Nenhum debate significativo sobre os méritos e poderes relativos de autoridades seculares versus espirituais ocorreu no Oriente, como acontecera no Ocidente. O imperador bizantino não só tomava todas as decisões seculares de forma autocrática, mas ainda exercia um controle quase total sobre a administração da Igreja Grega: entre outras coisas, ele podia nomear e depor os patriarcas. Em algu61 Durante o curso do Império Bizantino, essa prática – desconhecida do Ocidente – foi utilizada 13 vezes na seleção dos 122 patriarcas de Constantinopla. 167 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mas ocasiões, os imperadores tentaram até mesmo modificar alguns dogmas da Igreja e os sacramentos, embora nunca de maneira bem-sucedida.62 Também a constante iminência da guerra fazia de Bizâncio um caso especial: as forças do império estavam constantemente em guerra, defendendo um território cada vez menor que durou mais de mil anos. Mesmo assim, Bizâncio experimentou, em meio às disputas nos campos de batalha, um grande “renascimento intelectual” durante seus dois últimos séculos de existência. De modo geral, contudo, é possível concordar com Runciman quando chama a atenção para o fato de que Teodoro Metochite, em seu Miscellanea philosophica et historica, provavelmente falava pela maioria dos filósofos gregos ao declarar que “os grandes homens do passado haviam falado tudo de modo tão perfeito que não nos deixaram nada a dizer”.63 Essa atitude contrastava com a dos islâmicos e latinos do Ocidente, que também respeitavam os antigos, mas estavam sempre preparados para ir além deles e adicionar algo à soma total do conhecimento. Além disso, em Bizâncio, filosofia natural e ciência eram atividades reservadas a uma minúscula camada de homens leigos. Ao que tudo indica, a intelectualidade bizantina parecia ser formalista e pouco inovadora. De toda maneira, recorda Grant, é relevante e apropriado reconhecer que o significado intelectual concreto dos bizantinos repousa na preservação e transmissão da tradição científica grega. Por essa contri-buição incalculável, os bizantinos foram corretamente chamados os “bibliotecários do mundo” na Idade Média européia.64 Sem eles, não resta dúvida, a história do Islão e a do Ocidente teria sido outra. 62 63 64 Cf. GRANT, op. cit., p. 187. Cf. RUNCIMAN, S. The last Byzantine renaissance. Cambridge: University Press, 1970. p. 94. Cf. GRANT, op. cit., p. 191. 168 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII 2. A cristandade latina e o naturalismo político Mas como essa herança foi apropriada pela cristandade ocidental? Os filósofos naturais medievais estavam interessados nos modos pelos quais se podia conhecer e abordar a natureza. Ou seja, naquilo que poderia ser chamado hoje de “método científico”. Procuravam explicar como se chegava à compreensão da natureza. A entrada, na segunda metade do século XIII, da tradução latina do texto da Política de Aristóteles ocorreu depois que suas idéias sobre filosofia natural tinham passado a ser correntes no Ocidente. Mesmo antes das traduções dos escritos aristotélicos, em circulação desde pelo menos um século antes, teólogos e juristas já enxergavam a natureza como um poder normativo, capaz de ditar leis aos homens. Alguns escritores do século XII já haviam construído doutrinas nas quais a ação das forças naturais e da lei natural tinham um papel central. Boa parte dessa influência tivera como base o acesso recente a antigos textos de medicina, astrologia, magia e alquimia, traduzidos de autores como Ptolomeu, Albumasar, Ibn Sina (Avicena), Al-Farabi e outros. A ordem natural não era vista pelos estudiosos de então como conflitante com a ordenação divina do mundo. “Natureza” era com freqüência um sinônimo para “Deus”. Graciano de Bolonha, por exemplo, igualava a lei natural à divina. Guilherme de Conches acreditava que os trabalhos da criação deviam ser explicados pela razão e por causas naturais, e não milagrosa ou alegoricamente. A ordem governaria o mundo – e por ordem “ele entendia a ordenação natural estabelecida por Deus”.65 A idéia de que a natureza constituía um poder criativo, com propósito, tinha sido assimilada dos escritos estóicos da Antiguidade. Textos de 65 Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 335. 169 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Macróbio e Platão deram origem ao interesse pela idéia de que o homem, como um microcosmo, refletia a estrutura do macrocosmo.66 Da tradução do Timeu, também de Platão, por Calcídio derivava a distinção entre ius naturale e ius positivum no pensamento legal, inicialmente promovida por escolásticos franceses como Guilherme de Conches,67 Hugo de São Vítor e Pedro Abelardo,68 assim como por canonistas do século XII. Essa diferenciação, entre outras coisas, apontava na direção da perspectiva de que muitas leis passavam a valer por meio de promulgação positiva, como sugere a própria etimologia do conceito.69 A proposição de que as leis eram feitas por decisões humanas conscientes tornara-se mais prontamente justificável no tempo em que a coletânea de leis romanas de Justiniano passou a estar disponível para estudo. Isto é, na época em que a legislação recente, tanto eclesiástica quanto secular, estava rapidamente se tornando uma atividade fundamental e corriqueira. Alan de Lille, filósofo-poeta, e também seu contemporâneo Bernardo Silvestre de Tours ofereciam ricas visões 66 67 68 69 A capacidade humana de controlar a natureza passaria a ser ainda mais valorizada com o desenvolvimento de técnicas agrícolas, de construção, de guerra, de navegação e de comércio. “Et est positiva [iustitia]”, escrevia Guilherme de Conches no seu Comentários ao “Timeu” de Platão, “quae est ab hominibus inventa ut suspensio [...]. Naturalis vero quae non est homine inventa ut parentum dilectio et similia”. In: WASZINK, J. A. (Ed.). Plato. Timaeus a Calcidio translatus commentarioque instructus. (Corpus platonicum Medii Aevi. Ed. Klibansky. Londinii: in aedibus Instituti Warburgiani). Leiden: Brill, 1962. p. 59. “Ius quippe aliud naturale, aliud positivum dicitur [...]”. E positiva, esclarecia ele adiante, é aquela justiça que “ab hominibus institutum”. In: ABELARDO, Pedro. Dialogus inter philosophum, iudaeum et christianum. Ed. T. R. Friedrich. Sttutgart: Frommann Verlag, 1970. p. 124-55. A palavra “positiva” relaciona-se ao verbo “pôr”, em latim “ponere” – “legem ponere”, “lex posita”, “lex positiva”. 170 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII evocativas. Ambos viam o mundo material como tendo sido originalmente um estado caótico, carecendo de dignidade e forma. Mas a natureza, segundo eles, moldava e informava esplendidamente o mundo da matéria. A “Senhora Natureza”, sustentava Alan, constituía um instrumento da providência – o vigário de Deus na terra – e encarregava-se da produção das coisas viventes. Era um livro no qual se podia ler que o homem tinha sido moldado à semelhança do mundo. E o mundo era uma “máquina” criada em bom estado pela razão divina. A imagem do cosmo consistia numa magnífica unidade obediente a Deus, que se estendia do céu à terra, tendo a natureza como sua mediadora.70 O pensamento ocidental latino, portanto, apropriavase dos e desenvolvia os acréscimos recentes oriundos das traduções do grego, árabe e hebraico, muito antes mesmo de ter à disposição a totalidade do corpus aristotélico, o que só ocorreria no final do século XIII, com a contribuição de Guilherme de Moerbecke. Essa organização sistemática do conhecimento, que parecia dominar os pensadores ocidentais do século XII, conduzia recorrentemente ao debate sobre a classificação das disciplinas que compunham a filosofia ou “as ciências”. Dois modelos básicos para o arranjo do conhecimento humano estavam disponíveis à época. Uma primeira abordagem, derivada da leitura agostiniana de Platão, dividia a filosofia em três campos de conhecimento: a ética (ciência da moral), que pertenceria ao reino da ação; a física (ciência da natureza), que pertenceria ao reino da contemplação; e a lógica (ciência da razão que distingue o verdadeiro do falso), 70 Cf. LILLE, Alan de. De planctu naturae. Ed. N. M. Häring. Studi medievali, série 3ª, n. 19, 1978, p. 797-879. Cf. tb. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 337. 171 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO que pertenceria a ambos os reinos, contemplação e ação,71 com maior inclinação para o primeiro. Agostinho construía a disciplina “prática” da ação moral em termos familiares: ela dizia respeito ao fim apropriado da ação individual, à virtude pessoal.72 Nessa vertente não há menção ao campo político. Essa divisão foi amplamente divulgada, durante a Idade Média, não apenas pelas próprias obras de Agostinho, mas também pelo famoso tratado Etimologias, de Isidoro de Sevilha.73 Uma segunda estrutura classificatória, igualmente popular, podia ser identificada numa outra tradição. Essa concepção, derivada diretamente de Aristóteles, também começava com a distinção entre a investigação “contemplativa” (dedicada à busca da verdade pura) e a “ativa” ou disciplinas “práticas” (visando à conduta correta da vida).74 Nesse modelo, o conhecimento de tópicos como a física, matemática e metafísica (ou teologia) situava-se no campo da teoria, isto é, 71 72 73 74 “A [sabedoria ou ciência] ativa tem em mira organizar a vida, isto é, estabelecer costumes; a contemplativa pretende considerar as causas da natureza e a verdade pura”. E em seguida: “Uma [filosofia] é a moral e diz respeito principalmente à ação; a outra, a natural, compete à contemplação; a terceira, a racional, distingue o verdadeiro do falso. Embora necessária a ambas, ou seja, à ação e à contemplação, esta de modo primordial postula o conhecimento da verdade”. In: AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Rio de Janeiro: Vozes, 1990. v. 1, p. 305. “A última parte, a moral, chamada em grego ethiké, trata do bem supremo. Se lhe atribuímos tudo quanto fazemos, se o apetecemos por ele mesmo e não por outro e se o conseguimos, não necessitamos buscar outra coisa [senão aquilo] que nos faça felizes”. E adiante: “Basta, no momento, dizer que Platão estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita Deus, e que tal é a única fonte de sua felicidade”. In: AGOSTINHO, op. cit., p. 310-1. Cf. ISIDORO DE SEVILHA, op. cit., 2.24.3-4. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de L. Vallandro e G. Bornheim, 1177a. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 201-2. 172 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII da contemplação; e a ética, economia e política pertenciam à práxis, ou ação prática.75 O método de classificação aristotélico, diferentemente do platônico-agostiniano, abraçava explicitamente o conceito de política como um objeto próprio e distinto da investigação filosófica.76 Os autores medievais tinham apenas raramente, ao que tudo indica, acesso direto a tais textos de Aristóteles, so-bretudo àqueles nos quais afirmava a independência do político. Mas tinham em mãos inúmeras fontes intermediárias, bastante divulgadas na Idade Média, como o Comentário sobre o “Isagoge” de Porfírio, de Boécio 77 (480-524), as Instituições, de Cassiodoro78 (c.490-580), e as Etimologias, de Isidoro de Sevilha79 (c.560-636). As formas de categorização do conhecimento filosófico de Aristóteles haviam se tornado, por meio desses autores, um assunto familiar no aprendizado medieval. 75 76 77 78 79 As categorias do conhecimento prático, mesmo inter-relacionadas, eram claramente delimitadas: a arte da política, p. ex., não derivava diretamente da virtude individual nem era simplesmente uma extensão das habilidades exigidas para a administração eficiente da casa. Cf. ARISTOTLE. The politics, 1252a7-23. Ed. S. Everson. Cambridge: University Press, 1996. p. 11. Para Aristóteles, a Política era a “ciência mestra do bem”, o campo privilegiado de estudo dentro da esfera do conhecimento prático. Cf. ARISTÓTELES, op. cit., 1099b, 1992, p. 28. BOÉCIO, romano que viveu em Atenas e Alexandria, era profundo conhecedor da obra de Platão e Aristóteles e pretendia traduzir o corpus para o latim, mas morreu sem levar a cabo seu projeto. Sua influência entre os pensadores medievais, no entanto, foi imensa, e seu uso do método aristotélico bastante divulgado durante a Alta Idade Média. Cf. BOÉCIO, Anício M. T. Severino. In Isagogen Porphyrii commenta. Ed. S. Brant. New York: Johnson, 1966. v. 86 (1.3). (Corpus scriptorum ecclesiasticorum Latinorum; 48. Repr. d. Ausgate Vindobonae, 1906). Cf. CASSIODORUS. Institutiones, 2.3.7. Ed. R. Mynors. Oxford: University Press, 1977. Depois da divisão clássica entre as filosofias “inspectiva” e “actualis”, compunham a segunda as ciências “moralis, dispensativa et civilis”. Cf. ISIDORO DE SEVILHA, op. cit., 2.24.10 e 2.24.16. 173 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O monge Hugo de São Vítor, por exemplo, em seu Didascalion (1120), sustentava, usando a distinção aristotélica, a divisão das ciências em quatro reinos: contemplativo, prático, lógico e mecânico. São Vítor reconhecia que a diferença entre a política e as outras formas de conhecimento prático era de natureza qualitativa: enquanto a ética tratava das virtudes, do ponto de vista do indivíduo, e a economia das circunstâncias materiais da manutenção da casa, a política se ocupava de seu próprio fim especial, o bem da esfera pública. Por isso, explicava ele, o estudo da política requeria princípios diferentes e chegava a conclusões diversas daquelas das “ciências” da moralidade ou da administração doméstica: a política consistia numa esfera de conhecimento própria e, por isso, requeria uma investigação específica.80 Guilherme de Conches (c.1080-1154), seguidor e contemporâneo de São Vítor, utilizava no seu comentário ao Timeu de Platão a mesma tipologia de Aristóteles. Mas conferia nova dimensão a essa classificação ao igualar a polis à civitas. Explicitava assim a conexão, assumida por São Vítor, entre a “ciência política” e o governo das cidades. Se a polis era idêntica à civitas, e o termo político era derivado de polis, argumentava Guilherme, daí se concluía que o estudo da política devia se ocupar especialmente de formas urbanas da comunidade. Sustentava ainda uma hierarquia definida para o 80 Aristóteles insistia que a polis constituía a mais alta forma de organização humana. Os pensadores medievais, mesmo confrontados com a predominância de arranjos políticos geograficamente muito mais amplos, como reinos e impérios, com freqüência ignoravam esse ensinamento do Filósofo e tentavam aplicar as conclusões de Aristóteles sobre “corpos urbanos” pequenos e autogovernados às instituições da monarquia medieval. São Vítor, diferentemente dos demais, seguiu mais de perto as teses aristotélicas, defendendo que o conhecimento gerado pela ciência política era útil especialmente no governo das comunidades urbanas. Cf. SÃO VÍTOR, Hugo de. Didascalion.Washington: C. H. Buttimer, 1933. p. 131 et seq. 174 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII estudo das esferas do conhecimento. Devia-se ascender, genericamente falando, dos campos práticos de investigação ao terreno contemplativo, e não o oposto. Também havia, segundo Guilherme, uma hierarquia entre as próprias disciplinas práticas: um homem deve ser instruído primeiro em assuntos morais por meio da ética; depois na administração de seus negócios familiares por meio da economia; e, por fim, no governo [gubernatio] das coisas por meio da política. E então, quando tiver sido treinado nessas matérias até a perfeição, ele deve seguir para a contemplação.81 O raciocínio era estritamente aristotélico. Essa ordenação do reino do conhecimento prático reproduzia a insistência aristotélica de que a política era a ciência suprema do bem, subsumindo todas as outras ciências práticas sob si, já que seus fins eram superiores aos da ética e da economia. Outros autores medievais tentaram estender a aplicação das categorias aristotélicas da política para além da dimensão estritamente urbana, adaptando-a ao contexto medieval. O mestre parisiense de teologia Godofredo de São Vítor, por exemplo, em seu Microcosmus, do fim do século XII, explicava – depois de identificar os três tipos de conhecimento prático – que por meio do primeiro [ética], todo mundo está preparado para uma relação social adequada, instruindo-os [os homens] admiravelmente em ações externas; por meio do segundo [economia], a manutenção da casa é bem ordenada aos olhos dos homens que estão fora dela; pelo ter- 81 CONCHES, Guilherme de. In Boethium de Trinitate. In: JOURDAIN, C. (Ed.). Notices et extraits des manuscrits de la Bibliothèque Nationale. Paris: n. 20, 1862, p. 74. 175 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ceiro [política], um povo submetido é louvavelmente moldado por seu príncipe, como uma árvore que dá frutos foi feita para crescer em nossa terra.82 Também o De divisione philosophiae, escrito por volta de 1150, de autoria do andaluz Domênico Gundisalvi, sugeria um profundo conhecimento das idéias de Aristóteles ao longo do medievo. Gundisalvi, mais conhecido por suas traduções de textos gregos e árabes, também utilizava a distinção clássica entre conhecimento prático e teórico, e identificava o primeiro à ciência do que deveria ser feito para atingir o bem dos homens. Na esfera prática, diferenciava entre ética, economia e política: enquanto a ética respeitava à relação entre ação individual e disposições pessoais, e a economia tratava da disciplina, cuidado e instrução dentro da unidade familiar, a política buscava regular as ações propriamente ditas e visava à humanidade como um todo. Numa passagem do trabalho, Gundisalvi proclamava que o conhecimento da política pelos governantes constituía a garantia última da bondade e felicidade humanas. A boa vida na terra e a possibilidade de uma vida eterna depois dela dependeriam da existência de uma ordem política. O legislador devia ser uma espécie de educador moral e religioso, dedicado à promoção da virtude e da fé entre os membros do corpo civil. A implicação dessa visão era a de que a ciência da política, ciência mestra do bem, subordinaria a si a ética e a economia, pois estas últimas só se realizariam onde exis- 82 O valor da ciência do político estaria assim na postulação de novas doutrinas para a promoção do bem público. E o estudo da política constituía, segundo Godofredo, o instrumento mais adequado por meio do qual os monarcas podiam comandar a lealdade de seus súditos e melhorar as condições existentes em seus reinos. Cf. DELHAYE, P. L’enseignement de la philosophie morale au XIIe siècle. Medieval Studies, v. II, p. 77-99 (esp. p. 95-6), 1949. 176 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII tisse uma comunidade política bem governada. A ciência do governo das cidades, por dizer respeito à ordenação das relações entre seus habitantes, era chamada razão civil ou política, e constituía a garantia última da felicidade e bondade humanas.83 A política, tornava-se claro, tinha passado a desfrutar de um lugar fixo como tópico de discussão filosófica a partir de inícios do século XII. As categorias aristotélicas, disseminadas até então no pensamento da época, e sobretudo a distinção entre as ciências, podiam ter sua influência avaliada em textos como o Policraticus (1159), de João de Salisbury.84 Sem explicitar a divisão aristotélica entre as ciências, Salisbury sustentava que as questões políticas – este um dos pontos centrais de sua obra – deviam ser tratadas como um campo separado de investigação, sem confundirem-se com matérias morais ou teológicas, mesmo que existisse uma interconexão entre elas. 83 84 Embora provavelmente não conhecesse o texto da Política de Aristóteles, Gundisalvi o mencionava: afirmava estarem contidas nele as bases da “ciência civil” da qual estava tratando, fato que apenas ratifica a suspeita de que tais textos de Aristóteles, apesar de não estarem disponíveis em traduções latinas, eram conhecidos nos meios intelectuais. E que algumas de suas idéias básicas circulavam, direta ou indiretamente, desde os primórdios da Idade Média. Cf. GUNDISALVI, D. De divisione philosophiae. Munique: L. Baur, 1903. p. 11-6 e p. 134-9. João de Salisbury, um dos homens mais ilustrados de seu tempo, fazia uso amplo de fontes antigas em seus textos. No Policraticus, reportou-se mais aos textos clássicos do que às Escrituras e à Patrística para sustentar sua argumentação. Sua obra consistiu num tratado vasto e desconexo que forneceu material para uma variada gama de interpretações, por vezes opostas. Luscombe e Evans assim avaliam seu livro mais conhecido: “Pretende oferecer uma teoria do Estado e ser uma enciclopédia histórico-literária, assim como um trabalho didático de filosofia e uma dissertação sobre a relação entre lei e natureza”. É na verdade um trabalho sui generis numa época em que se faziam muitos experimentos com gêneros literários. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 325-6. 177 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O Estado era caracterizado, em seu livro, como um fenômeno diretamente social, parte da ordem natural, e assim como um organismo suscetível a disfunções, como a tirania. Apesar de se encontrar, como homem político, em meio a controvérsias significativas, como a que ocorreu entre o rei inglês Henrique II e o arcebispo de Canterbury Thomas Becket, João de Salisbury estava pouco envolvido em disputas objetivas e com os trabalhos dos contemporâneos sobre o governo e suas instituições: seu interesse imediato concentrava-se, sobretudo no Policraticus, em assuntos como o comportamento pessoal e a moralidade nas cortes.85 O objetivo da obra era fornecer um espelho para os governantes e seus súditos que os auxiliasse na correção de imperfeições morais por meio de instruções filosóficas e exemplos de justiça. O problema da tirania ocupou boa parte de suas reflexões políticas. Por justificar o tiranicídio, João de Salisbury tem sido apontado freqüentemente como o pensador que teria ressuscitado os valores republicanos romanos.86 Vale lembrar 85 86 A pouca disposição de João de Salisbury de analisar as tarefas concretas de governo podia ser explicada pelo fato de que o Policraticus não tencionava ser um tratado estritamente político, mas pretendia oferecer um programa moral e político abrangente para guiar cortesãos e seus governantes na direção de um conhecimento correto das letras, da filosofia e do direito, e evitar o erro, e principalmente o modo de vida, dos epicuristas (cf. VIII: 25). Salisbury, comentam Evans & Luscombe, dirigia-se ao que era mais relevante no mundo angevino de governo, no qual a vis et voluntas do governante (ou sua ira et malevolentia) eram os fatores principais num sistema de domínio pessoal. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 327. Por recorrer tão extensamente a ensinamentos morais e políticos clássicos e à história, João de Salisbury tem sido apontado como o responsável pela secularização do pensamento político medieval e pelo abandono da teologia política tradicional. Em suas reflexões sobre o microcosmo e o macrocosmo, e sobre a lei positiva e a lei natural, entretanto, ele ecoava tanto os transmissores pagãos da filosofia platônica (Cícero, Sêneca etc.) quanto o direito romano, duas grandes influências em seu pensamento. 178 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII que o direito de resistir ao tirano constituía, em seu pensamento, apenas um último recurso, pois, como ele mesmo sugeria, a justiça seria feita por Deus.87 Embora a figura do tirano refletisse fatos contemporâneos, como as disputas entre papas e imperadores pela pretensão de supremacia dentro da cristandade, João de Salisbury a utilizava mais como uma espécie de figura literária e como contrapeso para pôr em relevo a figura do bom príncipe, este sim modelo de justiça.88 O termo política em sua linguagem era claramente utilizado para denotar a comunidade política secular, na qual os indivíduos se associavam uns aos outros de acordo com as leis humanas e as normas temporais. Era próprio daqueles que lidavam com os assuntos políticos, dizia ele, viver de acordo com a lei.89 A política, para João de Salisbury, se referia essencialmente à presença e manutenção dos laços humanos na terra. Assuntos políticos, portanto, pertenciam ao melhor e mais apropriado método para organizar instituições comunais, a ciência civil. 87 88 89 Depois de descrever muitos exemplos de tiranos clássicos, João de Salisbury concluía: “De todas estas fontes, tornar-se-á logo evidente que adular tiranos tem sido com freqüência permitido, assim como enganálos, e que tem sido honroso matá-los se eles não podem ser contidos de outro modo” (VIII:18). Nos capítulos seguintes, contudo, passa a descrever detalhadamente como Deus teria castigado muitos dos tiranos que oprimiram seus povos, sem a necessidade da intervenção humana (cf. VIII: 20,21,22). Cf. SALISBURY, J. Policraticus. Ed. e trad. Cary J. Nederman. Cambridge: University Press, 1995. p. 203-16. Cf. LUSCOMBE & EVANS, op. cit., p. 328-9. “Por isso, Crisipo afirmou que a lei tem poder sobre todos os assuntos divinos e humanos, razão pela qual ela preside todos os bens e todos os males e é governante e guia das coisas assim também como dos homens. [...] É apropriado para todos os que habitam a comunidade dos assuntos políticos viver de acordo com ela [a lei]. Todos estão, por esta razão, sujeitos a impedimentos, pela necessidade de que se cumpram as leis, a menos que alguém talvez imagine ter licença para fazer o mal” (IV: 2). In: SALISBURY, op. cit., p. 30. 179 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Isso o levava ainda a constatar que a investigação política não constituía um monopólio da sociedade cristã. Aceitava que a crença numa “justiça política” – que envolvia a correta tarefa de distribuir responsabilidades e recompensas dentro da comunidade civil, assim como assegurar que cada um agisse para o bem do todo – não consistia num privilégio exclusivo dos fiéis: era possível constituir-se como matéria de qualquer povo, até dos pagãos, podendo existir independentemente do contexto religioso. A política, em seu pensamento, já era portanto um empreendimento fundamentalmente secular (cf. Policraticus, VII: 22). Essa idéia pode ser bem ilustrada na sua adoção da famosa imagem do organismo, de Plutarco, simultaneamente para identificar e descrever a cooperação entre as partes funcionais do corpo público.90 Uma metáfora que logo faria escola no pensamento ocidental. 90 “Pois a república, tal como Plutarco a declara, é uma espécie de corpo dotado de vida pelo dom da graça divina, dirigido pelo ditame da eqüidade suprema e governado por uma espécie de arranjo da razão. [...] Assim, o lugar da cabeça na república é ocupado por um príncipe sujeito apenas a Deus e àqueles que agem em Seu lugar na terra, do mesmo modo como no corpo humano a cabeça é estimulada e governada pela alma. O lugar do coração é ocupado pelo senado, do qual procedem os princípios dos atos bons e maus. As tarefas dos ouvidos, olhos e bocas são reivindicadas pelos juízes e governadores de províncias. As mãos correspondem aos oficiais e soldados. Aqueles que assistem o príncipe de modo estável são comparáveis aos flancos. Tesoureiros e notários (eu falo não daqueles que supervisionam prisioneiros, mas dos encarregados do erário real) se assemelham à forma do estômago e dos intestinos; estes, se acumulam com avidez desmesurada e retêm com excessivo empenho o que acumularam, engendram enfermidades tão inumeráveis e incuráveis que a sua infecção ameaça destruir o corpo todo. Além disso, os pés coincidem com os camponeses, eternamente pregados ao solo. Para eles, é especialmente necessária a atenção da cabeça, já que tropeçam mais freqüentemente em dificuldades enquanto caminham sobre a terra em subserviência corporal; e àqueles que erguem, sustentam e movem para frente a massa do corpo inteiro é justamente devida proteção e apoio. Retire do corpo mais saudável a ajuda dos pés, e ele não poderá prosseguir por suas próprias forças, e sim tentará rastejar vergonhosa, inútil e repugnantemente sobre suas mãos ou senão será movido com o auxílio de bestas” (V: II). In: SALISBURY, op. cit., p. 66-7. 180 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII Para João de Salisbury, os bons governantes, fossem leigos ou eclesiásticos, deviam – a fim de não se tornarem tiranos – observar o que as leis determinavam e ter sempre o objetivo de “proporcionar a todos os membros da comunidade os bens materias e espirituais” de que necessitassem. Salisbury afirmava ainda a independência dos dois poderes, temporal e espiritual, nas suas esferas próprias de ação: por serem distintos, um não devia interferir de modo algum na competência do outro, e deviam respeitar os direitos e privilégios que cabiam a cada uma das instâncias, regnum e sacerdotium (cf. IV: 3; VI: 8,9). O poder eclesiástico, contudo, gozaria de uma “autoridade e dignidade moralmente superiores ao poder temporal” pelo fato de sua missão específica ser mais relevante. Por esta razão, as leis editadas pelos potentados seculares deveriam estar em consonância não apenas com as disposições divinas, mas também com as canônicas, na função de braço armado da Igreja.91 O reino da política constituía, para Salisbury, o âmbito no qual se tomavam as decisões sobre o bem da totalidade em relação às capacidades e necessidades de suas partes. Mas – e isto importa aqui – seus argumentos e categorias para a análise dos fatos políticos, e também para a de outras esferas do conhecimento humano, partiam de premissas já bastante “naturalizadas”, com alto grau de independência em relação a uma vontade divina. Aristóteles foi assim, sem dúvida, uma influência primária na formação dos argumentos centrais da tradição medieval da teoria política.92 Mas apenas a tradução de sua Política – e isto foi o que se tentou demostrar até aqui por 91 92 Cf. SOUZA, J. A. C. R.; BARBOSA, João Morais. O reino de Deus e o reino dos homens. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997. p. 86-7. A “descoberta” recente de que a política constituía uma categoria importante da análise filosófica durante o século XII, constata Nederman, em parte desafia e em parte confirma as abordagens convencionais so181 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO meio da reconstrução de linhas gerais do pensamento político gerado ao longo do século XII – não pode ser vista como o ato revolucionário que viria modificar a compreensão da época sobre o assunto, ponto em que se concorda com Nederman, Luscombe e Evans, Grant e outros. Pelo contrário: quando, na metade do século XIII, Guilherme de Mörbeck traduziu o texto para o latim, as idéias de Aristóteles não puseram em xeque as crenças comuns a respeito da vida pública, e sim mais reforçaram e elabororam a concepção de política e seu estudo, que se tornou, a partir de 1260, matéria tradicional e incontroversa. Justamente por não ter sido uma fonte de contendas insuperáveis, a Política de Aristóteles, embora provocasse polêmica, pôde ser rapidamente assimilada e aplicada por autores medievais das mais diversas correntes intelectuais e inclinações políticas, como Tomás de Aquino, Egídio Romano ou Marsílio de Pádua, entre muitos outros. V O DESENVOLVIMENTO DA BUROCRACIA E O SURGIMENTO DA COMUNA Outras transformações de peso ocorridas no século XII – importantes para o desenvolvimento posterior tanto da teoria da soberania quanto dos nascentes Estados territoriais – foram o incremento da rede de aparatos burocráticos na Europa e o surgimento das Comunas. Esses elementos, reu- bre teoria política medieval. Não se pode negar, diz ele, que a emergência da base conceitual e lingüística dos blocos constitutivos da teoria política durante a Idade Média tenha um débito profundo com as fontes aristotélicas. Mas, uma vez disseminadas e aceitas as premissas aristotélicas, sustenta Nederman, teve início o debate teórico sobre matérias políticas puramente temporais, gerando alguns dos pilares filosóficos para a idéia do Estado secular. Cf. NEDERMAN, op. cit., 1991, p. 193. 182 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII nidos aos demais já tratados, certamente concorreram para a aceleração do processo de desagregação feudal no continente europeu, abrindo espaço para novas reivindicações sociais e políticas. A burocracia real de origem romana, vale lembrar, nunca desaparecera por completo na Inglaterra. Sua reintrodução no século XII, portanto, ligava-se mais aos povos do continente, muito mais marcados pelas instituições do direito feudal. Essa burocracia agora em processo de expansão em toda Europa era composta de um quadro regular de funcionários, nomeados para executar tarefas administrativas específicas e para levar a cabo os propósitos políticos no dia-a-dia dos negócios públicos. Esse pessoal era livremente nomeado, demissível e assalariado, além de não exercer outro cargo no feudo e operar tanto local quanto nacionalmente. Um escritório central, mais tarde denominado chancelaria, já existira na Inglaterra desde os tempos anglosaxônicos. Também os governantes normandos, que a partir de 1066 passaram a ter seu órgão administrativo no território, deram continuidade a essa prática. No século XII a dimensão da chancelaria real inglesa, que dispunha, entre outras coisas, de efêmeros mandatos judiciais em matéria fiscal, judicial e outros negócios governamentais, já era bastante considerável: algo em torno de 48 escribas estavam ligados à função sob o governo dos reis ingleses Henrique I e Henrique II.93 Já na França essa burocracia era muito menos desenvolvida e só ganharia corpo com o reinado de Filipe Augusto e Luís IX, no século XIII, os quais incentivaram a formação de um quadro permanente de servidores. Também no que se referia à administração central do fisco, a situação inglesa era bem mais adiantada do que a do resto do continente. O Tesouro, em Winchester, data com 93 Cf. VAN CAENEGEM, R. Government, law and society. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 189. 183 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO certeza de antes de 1066. Durante o reinado de Henrique I, o “ministério das finanças” começara a funcionar como um escritório de contabilidade central. A documentação tributária mais antiga são provavelmente os Pipe Rolls, os primeiros documentos fiscais oficiais, datados de 1130.94 A administração local era bastante desenvolvida sobretudo em razão da preservação, pelos reis normandos, da função do xerife, oriunda dos anglo-saxônicos. Em Flandres, por exemplo, também havia representantes locais bastante independentes, os castelães (castellani, burggraven), e também os notários, oriundos da Germânia. Na França, inicialmente figuraram entre os servidores locais os prebostos (prèvôts) e também os bailios (baillis), representantes populares diretos da Coroa.95 A importância crescente das funções ligadas à execução da justiça, ainda mais acentuada no século XII, exigia um controle cada vez mais centralizado das decisões, reduzindo o poder dos notáveis locais.96 O fortalecimento desse elemento monárquico foi um fenômeno comum a várias terras, mas assumiu for- 94 95 96 Dados legais referentes às terras da Coroa e dos grandes proprietários locais, leigos ou eclesiásticos, p. ex., já haviam sido reunidos décadas antes no livro de cadastramento iniciado em 1086 por Guilherme I. A reunião desses dados seria denominada, no século XII, Domesday Book. O documento era composto de dois extensos volumes contendo não apenas informações detalhadas a respeito das terras e seus proprietários, como também dados sobre o campesinato de cada condado e sobre os recursos naturais disponíveis à comunidade, como quantidade de moinhos, áreas florestais e pesqueiras etc., além de outros itens de interesse da Coroa. Para um aprofundamento do assunto, cf. FLEMING, Robin. Domesday Book and the Law. Cambridge: University Press, 1998. Para uma análise detalhada da situação francesa, cf. LEMARIGNIER, J.-F. La France médiévale: instituitions et société. Ed. G. Duby. Paris: Librarie Armand Colin, 1970. O status das cortes locais inglesas foi sendo lentamente reduzido por meio da possibilidade de transferência dos casos para cortes mais elevadas, em nível nacional. 184 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII mas muito diversas. O exemplo mais famoso é novamente o caso inglês, em que uma rede de cortes reais com considerável competência em primeira instância fez nascer uma lei nacional, comum a todo o reino, a Common Law, aplicada nas cortes reais. A possibilidade de qualquer homem ou mulher livre dar início a um processo na corte real – mesmo contra algum personagem poderoso do cenário local – e obter um julgamento investido da autoridade real significava, sem dúvida, um considerável freio no poder dos lordes, criando ainda uma ligação especial e direta entre o povo e o monarca.97 Também os reis locais passaram aos poucos a produzir leis, em forma de ordenações, estatutos, decretos etc. Na confecção desses documentos era utilizada a linguagem e a terminologia imperial, oriunda do direito romano. Em decretos de 1140 editados pelo tribunal superior de Ariano, por exemplo, para a defesa das posições do monarca siciliano, o tom já era ditado com as seguintes palavras: “desejamos e ordenamos que recebais estas sanções fiel e ardorosamente”.98 O rei proclamava sua vontade; os vassalos e outros súditos deveriam cumpri-la. Nos primeiros estágios desse desenvolvimento, os assuntos mais freqüentes limitavam-se a matérias criminais, fiscais e feudais. O leque de abrangência só seria ampliado mais tarde, com a consolidação das funções reais. A legislação constituía, assim, um elemento politicamente importante para a afirmação da posição suprema do governante. Essa nova realidade era percebida de maneira cada vez mais clara pelos vários poderes em disputa. Como a função primeira do governante temporal consistia em garantir a paz e a segurança de seus súditos, e para isso era preciso dispor de 97 98 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 191. CARAVALE, M. Il regno normano di Sicilia. Ius nostrum, Roma, Giuffrè, v. 10, p. 96, 1966. 185 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO meios financeiros, matérias fiscais e criminais ocupavam lugar de destaque entre as leis do período.99 O exemplo, que se tornava a cada dia mais freqüente, da produção de leis por papas e pela cúria romana com certeza encorajava e servia de inspiração às monarquias nascentes. E o pano de fundo da nova produção legal era o direito imperial romano. O primeiro tratado sobre a Common Law, o de Glanvill, explicava que o poder régio (regia potestas) precisava ser dotado de leis assim como de armas.100 A noção da união entre força e direito como base da autoridade política já constituía, nesse momento, uma realidade. Outro ponto fundamental para o desenvolvimento político do Ocidente foi a emergência, no início do século XII, de uma nova forma de associação humana, estranha à realidade feudal medieval. Tratava-se das cidades autônomas, as Comunas, surgidas sobretudo no norte da Itália e na região de Flandres, cuja expansão, entretanto, atingiria boa parte do território europeu. No século XIII, as Comunas já haviam se tornado uma realidade bastante visível e constituíam um desafio à antiga ordem. Seu surgimento alteraria visivelmente as estruturas feudais vigentes e promoveria avanços bastante concretos, tanto no pensamento político medieval quanto na nova configuração das cidades emergentes. Sem dúvida, a disputa pela investidura um século antes e o início do movimento das Cruzadas – fatores que já haviam colaborado para a aceleração do processo de desagregação do mundo feudal – influíram na afirmação desse novo tipo de associação comunal que predominou na Europa entre os séculos XIII e XIV. Nesse período, as Comunas, 99 Outros dois aspectos legislativos relevantes eram a lei feudal, que garantia a proteção dos legítimos locatários e herdeiros, e as questões de jurisdição. 100 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 194. 186 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII cujo germe residia nas transformações econômicas ocorridas desde o século XI, pipocaram incessantemente em toda a Europa. O incremento do comércio e, conseqüentemente, das trocas monetárias, tinha recolocado a Europa nos antigos caminhos romanos e nos rios navegáveis (Itália e Flandres), e tinha seu núcleo agora nas cidades, nas quais se concentravam os mercados e centros de trocas. Em oposição ao campo, surgia nas comunidades citadinas uma camada de comerciantes e artesãos não mais sujeitos aos vínculos feudais e servis: “os ares da cidade”, dizia um ditado popular da época, “tornavam as pessoas livres”. A evolução urbana levou os citadinos a criar associações de caráter corporativo, de modo a assegurar melhor seus interesses e realizar com maior segurança suas atividades. Esse processo era completamente novo – não havia similares nem na tradição germânica nem na romana – e assumia formas extremamente variadas.101 Em algumas zonas, a separação entre campo e cidade foi mais acentuada do que em outras (por exemplo, na Inglaterra, França e Itália). Uma característica comum a essas Comunas era o fato de constituírem uma coniuratio,102 isto é, uma associação privada que, por meio de um pacto interno, vinculava todos os membros da Comuna, e tinha caráter voluntário: só obrigava os que aderiam a ela espontaneamente. No início, essa estrutura não chegava a coincidir com o ordenamento jurídico da cidade, o que evitava choques diretos com a organiza101 De forma geral, contudo, podiam-se distinguir três tipos de Comunas: 1) a Comuna urbana, que se desenvolvia à sombra do poder dos bispos; 2) a Comuna do condado, que derivava do castelo feudal; e 3) a Comuna rural: associação de pequenos agricultores livres que passavam a se opor aos grandes proprietários e liberavam-se dos vínculos econômicos e jurídicos que os ligavam aos senhores feudais. Cf. SAITTA, op. cit., p. 142-3. 102 Literalmente, uma “reunião de conjurados”, de pessoas que juraram conjuntamente. 187 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ção pública feudal, episcopal ou imperial. A corporação comunal, porém, rapidamente se expandiria a ponto de coincidir com a própria civitas. A cidade-república, inicialmente dominada pela aristocracia urbana, passaria, ao longo do século XIII, a ser governada por funcionários estrangeiros, os podestà. No século XII, ocorreram desenvolvimentos econômicos e mercantis excepcionais. O crescimento das redes de mercadores, dos pequenos proprietários e artesãos superou, no período, a renda gerada pela antiga nobreza feudal. O poder das cidades passava agora a ser assegurado também pelas recém-criadas “corporações” ou “artes” que, por meio de associações econômico-profissionais, garantiam os direitos de seus membros no mercado. Essas organizações terminaram por regular toda a produção manufatureira e industrial. Essa nova camada empreendedora logo se chocaria com as associações da nobreza, que detinham o controle da justiça local. A solução encontrada para evitar a disputa de facções foi entregar as funções judicias e a administração das cidades aos podestà, magistrados que vinham de terras estrangeiras e eram nomeados anualmente.103 Paralelamente ao desenvolvimento das Comunas, começaram a emergir, no fim do século XII, os novos Estados mediterrâneos, militar e comercialmente em franco alargamento: vivia-se a agonia do milenar Império Bizantino e a expansão do Ocidente. Em 1204, Constantinopla era conquistada pelos guerreiros da Quarta Cruzada. A ajuda das “repúblicas marítimas” italianas na defesa de Bizâncio enfraquecera ainda mais a posição bizantina: o Oriente fora obrigado a criar condições cada vez mais favoráveis para Veneza, em prejuízo próprio. Era o fim das gloriosas Cruzadas, que haviam se convertido em instrumentos de conquistas políti103 Cf. SAITTA, op. cit., p. 146. 188 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII cas –104 objetivo oposto à intenção religiosa que as tinha inspirado. Com o início do século XIII, tinha lugar no território europeu uma lenta transformação do mundo feudal e de sua expressão política. Os vassalos e as cidades autônomas podiam ser utilizados tanto para colaborar com os príncipes quanto para resistir a eles. Por isso, os domínios mais sólidos tendiam a ser não os mais vastos, e sim aqueles com maior equilíbrio entre o governo central e os diferentes poderes locais. “No mundo europeu”, escreve Saitta, “em lugar da unidade [da cristandade] buscada em vão, vinha se formando uma pluralidade de organismos políticos e sociais”: Comunas, senhorios, principados, grandes unidades nacionais. “Essa pluralidade ocupa lugar proeminente na história européia, e substitui as duas forças universais que, além do mais, estiveram sempre muito longe da dominação exclusiva.”105 Juristas civilistas e canonistas procuravam mais uma moldura teórica na qual encaixar essas comunidades citadinas do que uma explicação para sua emergência. Isso levou as primeiras gerações de juristas do norte da Itália a defender, muitas vezes até contra os seus interesses, a causa do imperador dos Staufen contra as reivindicações citadinas e pontifícias.106 Pois, na tradição do direito imperial romano, a 104 A última Cruzada (a Oitava, de 1270) teve como protagonistas o imperador Frederico II e o rei Luís IX, da França: tornara-se claro que o governante podia servir-se agora de novos recursos oferecidos pelo progresso econômico e cultural, tanto para fazer prosperar a paz dentro de seu próprio reino quanto para saciar sua sede de conquistas. 105 SAITTA, op. cit., p. 156 – grifos meus. 106 O poder imperial se via ameaçado diante do florescimento das Comunas, sobretudo na Itália. Frederico I, o Barba-Ruiva, foi o primeiro a lançar mão das armas para impor seu domínio sobre as cidades-repúblicas italianas. Depois de longas batalhas, firmou-se em 1183 a Paz de 189 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO civitas era apenas uma unidade administrativa integrada ao regnum, com direitos comunais próprios pouco definidos. Do ponto de vista de sua organização política, a cidade desenvolveu, na forma da Comuna, um princípio de oposição a formas de dominação hierarquicamente estruturadas da sociedade feudal: sua organização saía grandemente do âmbito do feudo. Por outro lado, mesmo as formas constitucionais citadinas mais independentes – isto é, aquelas mais privilegiadas, como as formadas pela Liga Lombarda do norte da Itália ou as cidades livres alemãs – reconheciam a supremacia do imperador e delegavam poderes ao regnum. Essa articulação política fazia com que as cidades fossem vistas pelos contemporâneos como partes integrantes do poder monárquico imperial. Na Escola de Bolonha, o Corpus Iuris Civilis, de Justiniano, o direito imperial por excelência, fornecia matéria-prima sobretudo para a solução de conflitos no âmbito do direito privado. Nos primeiros contatos com a restauração do império, promovida sobretudo por Frederico I, já havia ficado claro que o direito romano, na qualidade de direito imperial, devia ser tomado como base para tratar o problema da legitimidade da dominação. Os letrados em direito do norte da Itália tiveram um papel importante, por exemplo, na Reunião de Notáveis (Reichstag) de Roncaglia, em 1158. Nela, a causa imediata do imperador, a nova regulamentação dos direitos do regnum sobre o norte da Itália – que nesse meio tempo tinha-se transformado quase totalmente num mundo de Comunas citadinas – ganhou fundamento legal. Entre os temas relevantes decididos no encontro estavam: a outorga à Comuna de poderes de jurisdição do imperador e o conseConstança, segundo a qual as Comunas se submetiam por juramento ao poder do imperador e à investidura dos cônsules pelo império, mas mantinham reconhecidos (e em vigor) seus direitos régios já conquistados. 190 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII qüente recebimento da investidura de todos os portadores de cargo nas cidades; e o poder de jurisdição e banimento pelo imperador. Com isso, o poder político das Comunas, baseado no juramento da corporação dos burgueses, isto é, dos habitantes do burgo, foi integrado ao âmbito de dominação da realeza e depois reunido em formas de direito feudal: os detentores de cargos públicos citadinos, denominados com a noção legal romana magistratus, recebiam o privilégio da execução da justiça e do banimento diretamente do imperador. Na qualidade de portadores do poder judicial, eram chamados de iudices: sob este termo – com exceção dos portadores de cargos tradicionais da alta nobreza, o conde e o visconde – podiam ser compreendidos, entre outros, os cônsules citadinos eleitos e os podestà investidos. O imperador proclamava assim o monopólio da distribuição de todo poder do cargo,107 conferindo um sentido prático à velha máxima romana: Omnis potestas a principe. Essa subordinação constitucional da Comuna ao regnum só seria alterada no decorrer de um processo longo e demorado. Em Bolonha, por exemplo, a situação mudou apenas depois de os doutores em direito terem sido incluídos, sobretudo como conselheiros, na vida constitucional das Comunas citadinas. A partir daí, teve início uma tendência à valorização do direito costumeiro, que logo se sedimentaria também na jurisdição da cidade, o Estatuto. Contra os velhos juristas, favoráveis ao imperador, erguia-se uma nova crítica. Mesmo o acordo que selara a paz, duramente conquistada, entre a Liga Lombarda e o imperador, em Constança (1183), já havia sido objeto de discussão política. No documento, as civitates tinham sido reconhecidas como portadoras de direito. 107 Cf. DILCHER, Gerhard. Comuna e cidadania como idéia política na cidade medieval. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 331. 191 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O direito costumeiro (consuetudo) lhes fora concedido como base para o exercício do direito supremo sobre o território (regalia), e com isso também a eleição dos cônsules. O privilégio de investir no cargo, porém, ainda tinha de ocorrer por meio do imperador, ao qual se prestava também o juramento de fidelidade. Todos os juramentos continham a promessa de lealdade ao poder do princeps, que, seguindo a concepção medieval, não era ilimitado, e sim baseava-se no direito e no costume e incluía o direito de resistência. Foi justamente a esse direito que as cidades lombardas apelaram nas lutas contra o exercício “tirânico” do poder pelos Staufen.108 A antiga constituição municipal romana sobrevivera apenas em poucas passagens da coletânea do Corpus Iuris Civilis. Mas o pensamento escolástico agora fornecia uma saída que tendia a dominar a jurisprudência: buscava-se uma retomada de conceitos genéricos (universalia), por meio dos quais se tornava possível uma harmonização entre textos conflitantes e sua aplicação prática. A noção de universitas109 como expressão da unidade humana – idéia pouco desenvolvida no direito romano e recuperada agora pelos canonistas – era tida como adequada para todas as formações corporativas, desde a universitas da cristandade até as das guildas e corporações de ofício, passando ainda pela universitas magistrorum et scolarium. 108 O conflito entre Frederico I e as cidades lombardas teve especial importância no desenvolvimento da jurisprudência civilista, pois os respectivos documentos legais, das Leis de Roncaglia até a Paz de Constança, foram anexados como leis imperiais ao Corpus Iuris Civilis. Com isso, continuaram presentes no trabalho da glosa jurídica, nos comentários e na formação conceitual e teórica ao longo de toda Idade Média. 109 Na acepção básica, “universalidade” ou “totalidade”. Vocábulo formado de “unus” + “versus” (part. pass. de “verto”), contendo a idéia de converter, transformar em todo, em algo uno. 192 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII Assim, a civitas podia também ser concebida como universitas, já que o seu nome apontava para a totalidade dos cidadãos (cives). A cidade concreta, como local murado, diferentemente, era designada com a antiga palavra romana urbs. O desenvolvimento legal do conceito de universitas na jurisprudência acabaria assim ultrapassando em muito as reflexões iniciais do direito romano e passaria a servir também para as estruturas corporativas da sociedade medieval, em especial à realidade da Comuna citadina. Entre os séculos XII e XIV, os glosadores,110 sobretudo os civilistas, haviam produzido inúmeros tratados sobre a posição da universitas no processo jurídico e sua responsabilidade penal nos diversos âmbitos legais. O problema de quem podia agir em nome da universitas – aqui então a cidade – e da maneira de agir de quem tinha domínio sobre ela não tardou a ser levantado. Isto é, passava a fazer parte do debate o problema da representação jurídica do governo da cidade e sua legitimidade. Aos glosadores parecia óbvio que o seu representante devia ser, ao mesmo tempo, a cabeça – rector (condutor) ou praeses (o que preside, presidente) – da universitas. E, como tal, teria também competências no âmbito do direito público. Para os canonistas, o princípio era transmissível de forma simples para as agremiações espirituais. Do mesmo modo, valia para as universidades que estavam surgindo como uniões de estudantes e docentes. Questões antes laterais, como a representação estamental em corporações representativas, tornavam-se agora relevantes. Um pouco mais tarde, emergiria ainda o problema da formação da vontade dessa universitas, vinculada pelos canonistas à voluntas da maioria. A elaboração do problema 110 Juristas que se ocupavam das glosas, curtas explicações de trechos importantes do direito romano. Em 1224, essas glosas foram compiladas por Acursius sob o nome de Glossa ordinaria, e ainda no século XVI eram divulgadas em textos impressos. 193 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO impunha a delimitação do âmbito corporativo comunal ante a totalidade das relações jurídicas de cada um de seus membros. Mais uma vez, o problema da circunscrição dos âmbitos público e privado era levantado, agora a partir da Comuna. Questões fundamentais do Estado constitucional moderno, como a formação de uma vontade política com a participação dos cidadãos e a proteção jurídica de cada um contra o poder político assim formado, recorda Dilcher, eram tematizadas nesse momento em seu cerne.111 O trabalho dos legistas e canonistas contribuiu para que características centrais das diversas corporações fossem elaboradas e reconhecidas em muitos aspectos como sendo do mesmo gênero. Isso valia para aproximações como a que ocorreu entre a noção romana de universitas e as cognatas societas e collegium. Não havia também diferenças importantes entre os termos communitas e commune, utilizados para designar a Comuna citadina, e a palavra corpus, freqüentemente usada pelos canonistas. A associação desses elementos permitia afirmar o surgimento de uma doutrina corporativa e pensar uma doutrina estatal medieval geral, que mostrava o caminho à concepção dogmática da pessoa jurídica do século XIX. Esse trabalho de elaboração conceitual manifestou-se na teoria política em documentos legais de direito urbano, nos quais populus, reunião do povo, Comuna e cidade eram entendidas como relações paralelas e cambiantes, além de ligarem-se a uma teoria do bem-estar comum, dentro da qual 111 No âmbito da conceituação jurídica, porém, surgiam limitações complexas: como explicar uma maioria constituída de pessoas, mas que aparecia como uma pluralidade de seres isolados (universitas ut universi)? E onde deveria ser projetada uma unidade colocada sobre a pluralidade, numa corporação ou pessoa jurídica? Pois apenas esses passos possibilitariam o reconhecimento do princípio da maioria. Um caminho se esboçava: a população das cidades já era tratada pelos glosadores quase como uma ficção jurídica. Cf. DILCHER, op. cit., p. 334. 194 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII podiam ser encontradas expressões como “communis status civitas”. Esse desenvolvimento de uma “teoria da corporação” para além da concepção inicialmente predominantemente do âmbito do direito privado acelerava-se à medida que os juristas de ambos os lados se posicionavam acerca de questões de legitimidade e de poder de jurisdição.112 A idéia de governo que nascia do poder supremo, apontada especialmente em relação ao rei da França, mas que não excluía o exemplo das Comunas, voltava as atenções para a legitimidade de uma dominação autônoma que desviava do direito romano. Esta caminhava paralelamente à maior integração de noções antigas como populus, res publica, regnum etc., à semântica jurídica e política. Da leitura aristotélica do século XIII seriam retiradas ainda as idéias de politia e civitas (no sentido de cidadania). Tais conceitos foram incorporados à reflexão dos juristas acerca da fundamentação do poder jurisdicional. A lex regia romana reaparecia para definir o direito e sua transposição ao princeps, freqüentemente associado ao rex. Nas comunidades citadinas, afirmava-se tanto a primazia do direito costumeiro quanto do direito estatutário comunal frente ao direito imperial. Ao mesmo tempo, ficava claro que nem a doutrina aristotélica da polis nem a concepção romana do Estado imperial aplicavam-se totalmente aos cenários medievais: era preciso desenvolver noções que melhor se aplicassem à realidade. A hierarquia da organização social ampliava-se em relação a Aristóteles: para além do nível doméstico e do da aldeia, que antecediam a polis, distinguia-se agora no medievo entre cidades pequenas (municipium), a cidade maior (civitas), o reino mais extenso (regnum, provincia) e o império (Imperium Romanum). 112 Ibid., p. 336. 195 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A designação res publica, que inicialmente coubera apenas à cidade de Roma e ao Império Romano, referia-se agora a todas as corporações citadas. E, por dizerem respeito ao comum, podiam deter também, em diferentes graus, direitos de jurisdição e de legislação autônomos.113 Criava-se assim um instrumental jurídico capaz de fazer a ponte entre a semântica do rex da antigüidade romana e as estruturas de dominação de fato das novas unidades de poder emergentes. O discurso teórico, entretanto, mantinha-se dentro dos limites da escolástica, referindo-se a todo o espectro conceitual da universitas. Isto é, à totalidade da Ecclesia e do regnum sobre as cidades e sobre as corporações e irmandades de todo tipo. Os autores do período, geralmente engajados nos conflitos de poder, oscilavam entre favorecer a incorporação dessas novas entidades num ordenamento de dominação hierarquizado e fundamentá-las num direito autônomo. Nesse movimento estavam sendo gestadas duas noções que teriam como base o segundo caminho: a idéia de soberania e o conceito de Estado moderno. Mas esse desenvolvimento ocorria, curiosamente, a partir de um refinamento conceitual da primeira posição, na forma da doutrina de poder hierocrática, que se tornava a cada dia mais concreta dentro da Eclesia. Esse passo seria dado somente no fim do século XIII, início do XIV, quando a sistematização filosófica dos novos elementos e idéias surgidos nos séculos XI e XII ganharia forma moderna e mais adequada à realidade do fim do medievo. Em virtude dos desenvolvimentos ocorridos até então, já havia sinais evidentes, no fim do século XII, do declínio 113 Isso valia de forma irrestrita para a cidade (civitas superiorem non recognoscens); de forma mais delimitada, devido à transposição do direito costumeiro, para a Comuna da cidade (civitas); e com restrições ainda maiores para uma pequena cidade necessariamente dependente (municipium). 196 CAP. 2 - O LONGO SÉCULO XII feudal. Em toda parte, formas modernas de organização política estavam brotando e os velhos arranjos feudais tornavam-se cada vez mais irrelevantes. Os novos reinos emergentes eram baseados menos em laços pessoais que sujeitavam os líderes locais ao governante do que na lealdade dos súditos à Coroa. Esta seria mencionada provavelmente pela primeira vez de maneira abstrata numa carta real. Nela o rei Luís VII, que partira para a Segunda Cruzada (1147), lembrava aos súditos que deviam lealdade à “Coroa”, mesmo na ausência do rei.114 Os cavaleiros, guerreiros detentores de feudos, e a base social do feudalismo, estavam perdendo rapidamente sua importância. Os monarcas haviam encontrado uma forma mais adequada, e menos onerosa, para a defesa dos interesses do reino: passaram a empregar mercenários, recriaram as antigas forças camponesas não-profissionais e fomentaram a formação de milícias urbanas. O que restou depois do feudalismo ter sido destituído de seu significado institucional e militar foi uma forma particular de posse da terra, essencialmente não muito diferente da propriedade, mas regulada por leis de herança peculiares, como a primogenitura. Nesse contexto, novas formas de organização social, muito mais sofisticadas e complexas, tomavam corpo. E com elas novos sistemas de poder, entre os quais um fadado a se expandir, sob diferentes formas constitucionais, por toda Europa: o Estado territorial moderno. 114 A afirmação aparece numa carta real de 1147, escrita por Suger, o poderoso abade de Saint-Denis, que foi regente durante a ausência do rei. Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 206-7; cf. tb. LOYN, op. cit., p. 339. 197 CAPÍTULO 3 A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO I O SÉCULO XIII E O DECLÍNIO DO FEUDALISMO O século XIII pode ser considerado o período no qual o incremento da prosperidade econômica na Europa medieval atingiu seu auge. A diminuição da fome não se deu apenas pelo desenvolvimento do comércio de grãos, mas deveu-se também ao aumento das superfícies cultivadas e da produção. A colonização germânica em direção ao leste viveu seu apogeu entre 1210-20 e 1300. O crescimento dos lucros acompanhava o aumento das terras cultivadas. Ao mesmo tempo, ocorria uma especialização dos cultivos em determinadas regiões. O progresso técnico era acompanhado de um novo incremento nas práticas agrícolas. Nesse período, surgiram na Inglaterra e na França os primeiros tratados especializados de economia agrícola do medievo.1 Em termos de desenvolvimento industrial, o setor têxtil, sobretudo o de tecidos de valor, crescia e se transformava com o surgimento de novas técnicas e invenções (tear horizontal com pedais, torno de fiar). O crescimento dessa indústria têxtil foi lento e avançou mais no noroeste da Europa, 1 Essa expansão econômica foi acompanhada de um avanço do equipamento técnico: passava-se a utilizar agora a força hidráulica na lavoura. Vários instrumentos, como o “carnet” (espécie de carretilha utilizada na construção) e o “gato” (máquina para elevar fardos) foram aperfeiçoados. A pedra substituiu as antigas construções de madeira e o ferro passou a ser utilizado em larga escala na Europa. Também foram aperfeiçoadas as técnicas de extração de sal. Acentuava-se ainda a produção de artigos de luxo e de produtos de alta qualidade. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 177. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO especialmente em Flandres e na Itália setentrional e central. “Em 1297”, contabiliza Le Goff, “segundo uma petição do Parlamento a Eduardo I, as rendas obtidas de lá [noroeste da Europa] pelos ingleses eram equivalentes à metade de toda a terra; e segundo outra avaliação o valor da lã inglesa exportada equivalia às rendas anuais de 100.000 camponeses”.2 Também a indústria da seda floresceu no território europeu, trazida inicialmente por gregos que se instalaram em Palermo. O uso do papel, aprendido dos muçulmanos da Espanha e da Sicília no século XII, propagou-se pela Europa ao longo do século XIII. O comércio terrestre conhecia seu ápice com o surgimento de novos meios de transporte e sobretudo de novas rotas e caminhos. O comércio marítimo também se ampliava com o uso da bússola e dos timões. Surgiam os primeiros mapas marinhos europeus. O tamanho das embarcações também aumentara para que as cargas transportadas pudessem ser incrementadas. A legislação comercial acompanhava esses progressos da navegação, concretizando-se em dois códigos usados em Veneza em meados do século XIII: o de Jacepo Tiepolo, de 1235; e o de Raniero de Zeno, de 1255. Também nos grandes centros comerciais urbanos começava a ser esboçada uma legislação comercial que pouco a pouco se tornava oficial.3 As feiras foram dotadas de regras extremamente sofisticadas que regulavam as relações de troca dos mercadores e lhes asseguravam a estada no local. O grande fenômeno econômico do século XIII talvez tenha sido o retrocesso da economia em espécie ante a economia monetária, evidenciada pelo aparecimento da figura do mercador. O crescimento da massa monetária em circulação na cristandade podia ser comprovado pelo incremento da atividade 2 3 Ibid., p. 182. “Durante todo o século XIII”, escreve Le Goff, “pode-se encontrar em todos os campos essa característica da preocupação com a institucionalização, com a regulamentação e a ordem”. Ibid., p. 188. 202 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO mineradora. A penetração dessa economia monetária no campo era visível no aumento das dívidas que os camponeses passaram a contrair.4 Também as rendas senhoriais em produto eram agora cobradas em dinheiro. O endividamento se dava tanto por empréstimos feitos por citadinos quanto pela pressão dos senhores, que tendiam a se converter cada vez mais em rentistas do solo. Aos poucos o dinheiro disponível tornou-se insuficiente para cumprir os contratos baseados em quantidades e valores mais elevados. Introduziu-se nessa época o “gros de prata”. Por volta de 1252, reaparecia em Gênova e Florença o “florim” de ouro; na França, o “escudo” de ouro (1269); e em Veneza o “ducado” (1284). O “dinar” muçulmano entrava nesse momento em crise e já não seria mais por muito tempo a moeda geral da cristandade. Na maior parte dos territórios cristãos, tanto nos Estados monárquicos quanto nas comunidades urbanas, o poder público se consolidava à custa do poder senhorial da aristocracia que começava a perder prestígio e fortuna.5 A partir de meados do século XIII, o endividamento e a alienação de bens e de terras aumentaram e tornaram-se especialmente problemático, sobretudo para a pequena no4 5 Na maior parte da Europa, essas novidades produziram um incremento progressivo e generalizado do endividamento dos camponeses, pois estes não conseguiam pagar todos os tributos devidos nem honrar os compromissos assumidos com as parcerias. Internamente, o campesinato se diferenciava produzindo uma camada de camponeses enriquecidos e bem-sucedidos (os “kulaks”) e, por oposição, uma categoria de servos pobres dominados pela proteção desses proprietários mais afortunados. Cf. LE GOFF, op. cit., p. 203. Lentamente, a aristocracia tanto da grande quanto da pequena nobreza cavaleiresca empobrecia. Com o progresso da economia monetária, os custos cada vez maiores dos armamentos e da vida cavaleiresca, dos produtos de luxo que invadiam as feiras e mercados e os gastos com a construção de castelos e fortalezas de pedra, além dos gastos excepcionais com as Cruzadas, acabaram por empobrecer tanto nobres quanto cavaleiros. 203 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO breza, que passou a vender paulatinamente a sua herança. A aristocracia militar e latifundiária conseguiu manter e até melhorar sua posição à custa dos senhores mais fracos que empobreciam. Tendiam, porém, a fechar-se como camada social, de modo a assegurar jurídica, política e economicamente o resto de seu poderio. A nobreza de fato tornava-se agora a nobreza de direito, isto é, uma nobreza de sangue que se afirmava em marcas hereditárias: os brasões. Também a nomeação dos cavaleiros ficava menos acessível: só poderia tornar-se um gentil-homem aquele cujo pai já tivesse sido cavaleiro: a sociedade feudal estratificava-se segundo novas condições e regras. O encerramento da nobreza nessa “casta” e a alta taxa de mortalidade conduziam à extinção ainda mais rápida de linhagens. Colocar os herdeiros em maior número possível dentro da Igreja para evitar a repartição do patrimônio passou a ser uma prática corrente. Ao defender a proibição da “degradação”, do exercício de uma atividade lucrativa, contudo, a nobreza preparava a sua extinção econômica. Ainda por cima, essa nobreza era impedida pelos burgueses urbanos corporados de exercer alguma arte mecânica ou o comércio. A manutenção de seu status isolava assim a nobreza das transformações econômicas. Em fins do século XIII, essa aristocracia voltaria a abrir-se, admitindo em suas casas e famílias burgueses enriquecidos. O auge urbano no século XIII foi impelido também por uma onda demográfica ascendente. A população européia, entre 1200 e 1300, passou de 61 milhões para 73 milhões de habitantes. A aceleração demográfica quase dobrou em França, Alemanha e Inglaterra. Ao mesmo tempo que contribuía para o crescimento das cidades, já que o campo estava saturado, esse aumento demográfico gerava também, pelo incremento da demanda, uma elevação dos preços dos produtos agrícolas, encarecendo ainda mais o custo de vida da popu204 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO lação. A espinha dorsal da sociedade urbana, no século XIII, era constituída pela emergente burguesia das corporações citadinas.6 Também o clima intelectual se transformava: a lei romana e os desenvolvimentos de filosofia natural forneciam instrumentos novos para a análise social e para uma nova abordagem política. Cada vez mais, a comunidade política era a res publica, e o princeps, seu primeiro magistrado. A emergência desses poderes urbanos alterava a realidade social, reduzindo a importância relativa da nobreza rural e da cavalaria. A sociedade européia passava a ser formada não apenas por cavaleiros e camponeses, mas também por uma rica e bem-educada burguesia e por uma burocracia pequena, mas em franca expansão. A abundância de dinheiro e o incremento das taxações mostravam que a concessão da terra estava se tornando obsoleta como técnica de gratificação de soldados. Mercenários eram mais fáceis de tratar, de recrutar e de demitir. E, se essa forma de recrutamento parecia ser um rebaixamento para os cavaleiros associados às formas mais tradicionais, o feudo mercantil oferecia a solução perfeita: o vassalo recebia agora, em vez de um feudo de terra, uma remuneração regular. O feudo não era alienável nem era mais hereditário, o que garantia aos reis uma margem ampla de flexibilidade e 6 Um pequeno número de famílias urbanas formava agora o “patriciado local”, controlando as principais fontes de poder social e político. Esse “patriciado” era formado basicamente de três grupos: os mercadores, os ministeriais e os proprietários de terras livres. Esses patrícios formariam agora as assembléias políticas que governariam as cidades. “Os abusos desta camada de mercadores ricos donos das cidades eram tais que justificavam, como em França por exemplo, a intromissão do poder real nas finanças urbanas, finanças estas que eles saqueavam e arruinavam, curvando com impostos e taxações o povo baixo”. In: LE GOFF, op. cit., p. 208. 205 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO assegurava a dependência do locatário, já que tirá-lo das terras e cortar seu pagamento tinha se tornado mais fácil.7 A emergência dos Estados modernos eliminaria boa parte das normas e valores feudais. Mesmo assim, em nossas modernas instituições políticas sobreviveria ao menos um elemento que remontava diretamente a essas origens feudais: a noção de que a relação entre governantes e cidadãos se baseava no contrato mútuo, o que significava terem os governos direitos e deveres, e ser legítima a resistência aos governantes ilícitos que quebrassem esse contrato. O rei, fosse majestoso ou ungido, era também um senhor feudal que tinha relações contratuais com seus homens e, por extensão, com a nação. Mas até que se chegasse no Estado territorial moderno, algumas transformações políticas fundamentais ainda teriam lugar, a principal delas a disputa pelo poder último de fazer cumprir a justiça, isto é, nos termos dos medievais, pelo “vicariato de Cristo” na terra. II A CONSTRUÇÃO DA TEORIA HIEROCRÁTICA DO PODER Do ponto de vista do desenvolvimento das idéias políticas, o século XIII marcava a consolidação da tendência, existente na Ecclesia desde a reforma gregoriana, ao fortalecimento do poder papal, que agora passaria a reivindicar, com mais ou menos coerência, a supremacia e o controle das duas espadas: a espiritual e a temporal. O pontífice reclamaria a jurisdição de facto e de iure sobre a comunidade cristã. A afirmação desse pensamento hierocrático – que culminaria um século depois na defesa de uma espécie de “monarquia papal absoluta” por Egídio Romano – deu-se de forma gradual e nem sem7 Cf. VAN CAENEGEM, op. cit., p. 208. 206 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO pre clara. Na tentativa de se impor ao regnum, cuja figura máxima era o imperador, a Igreja selava alianças com reis e poderosos locais e, com isso, os fortalecia indiretamente. Mas o fato realmente importante era o de que, nessa disputa, a Ecclesia, ao tentar legitimar política e juridicamente essa aspiração de se constituir como um poder supremo, capaz de regular toda a cristandade, acabou refinando o aparato conceitual disponível. Ao procurar definir em bases legais a figura e a função de seu representante maior, o sumo pontífice, a corporação religiosa criou preceitos jurídicos e políticos que consolidaram a idéia da soberania – noção que seria rapidamente apropriada por um novo conjunto de interesses e pretensões que entravam em cena, o dos Estados territorias nascentes. Antes que esse movimento se tornasse realidade, contudo, as disputas entre regnum e sacerdotium pela pretensão de supremacia ganhariam ainda alguns acréscimos teóricos e práticos, como se verá a seguir. A eleição do cardeal Lotário de Segni para o papado, em 1198, marcaria um novo avanço nas pretensões hierocráticas da Ecclesia. Sob o nome de Inocêncio III (1198-216), o novo pontífice, aluno brilhante e discípulo de Hugucião em Bolonha, assumiu o posto em meio à contenda – até então não completamente resolvida – com o império, chefiado pelo filho de Frederico I, o Barba-Ruiva, o príncipe herdeiro Henrique VI. Embora a morte prematura de Henrique tivesse proporcionado um período de trégua entre os dois poderes, Inocêncio III empenhava-se em fundamentar melhor as pretensões pontifícias. Concentrou esforços na tentativa de mostrar a superioridade do poder sacerdotal sobre o imperial, afirmação contestada por muitos poderosos, entre eles o imperador bizantino Aleixo III (1195-203).8 8 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 105. O livro oferece, no terceiro capítulo, “Hierocracia e teocracia no século XIII”, um excelente resumo dos acontecimentos e dos desenvolvimentos hierocráticos no período. 207 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Numa decretal – Solitae – dirigida ao imperador, Inocêncio III fizera uma defesa cuidadosa da primazia do sacerdócio sobre os poderes temporais e obtivera, em resposta, a contestação do governante grego. Aleixo III apoiava-se – para fundamentar sua tese da primazia da esfera temporal sobre a espiritual – na “1ª epístola de São Pedro”, que conclamava todos os fiéis a se submeter às autoridades constituídas, uma vez que elas existiam para castigar os maus e recompensar os bons, segundo a vontade do Senhor.9 Em resposta a Aleixo, Inocêncio III argumentou que, mesmo tendo os reis mandado nos sacerdotes, como conta o Antigo Testamento, agora era diferente. Pois, na época do Novo Testamento, o Cristo, Sumo Sacerdote da Nova Aliança, que redimiu os homens por meio de sua paixão e morte, teria deixado na terra um vigário – Pedro e seus sucessores – para prosseguir a tarefa que havia começado.10 O sacerdotium teria assim, segundo a decretal pontifícia, a função de salvar as almas, “bem mais relevante, pela sua finalidade e transcendência, do que a desempenhada pelo poder régio; 9 10 “Sede submissos a qualquer instituição humana por causa do Senhor: quer ao rei, porque é o soberano, quer aos governadores, delegados por ele para punir os malfeitores e louvar as pessoas de bem. Porque a vontade de Deus é que, praticando o bem, façais calar a ignorância dos insensatos. Comportai-vos como homens livres, sem usar da liberdade como véu para vossa maldade, mas procedendo como servos de Deus. Honrai todos os homens, amai vossos irmãos, temei a Deus e honrai ao rei”. In: 1ª epístola de São Pedro, 2: 13-17. In: A Bíblia, op. cit., p. 1495-6. No documento original: “No entanto, o que foi legal na época do Antigo Testamento, agora sob o Novo Testamento é diferente, pois Cristo, que se fez sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedeque, ofereceu-se como hóstia a Deus Pai sobre o altar da Cruz. Por sua morte, ele redimiu o gênero humano e realizou isto na condição de sacerdote, não como rei, e principalmente o que diz concerne à missão daquele que é o sucessor do Apóstolo Pedro e Vigário de Jesus Cristo”. INOCÊNCIO III. Solitae. In: SOUZA & BARBOSA, Decretal Solitae de Inocêncio III a Aleixo III de Constantinopla (Documento 27), op. cit., p. 130. 208 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO daí outrora, os reis terem exercido um poder supremo e exclusivo sobre toda a sociedade”.11 Mais adiante, no § 4 da Solitae, Inocêncio III recorria ao “Gênesis”12 para sustentar seu ponto de vista: Deus fez, portanto, duas grandes luminárias na abóbada celestial, isto é, na Igreja Universal, quer dizer, Ele instituiu duas grandes dignidades, que são a autoridade pontifícia e o poder real. Mas a que dirige os dias [o sol], isto é, as coisas espirituais, é maior, e a que preside à noite [a lua], pelo contrário, é menor, a fim de que se saiba quão grande é a diferença que existe entre os pontífices e os reis, à semelhança do que se passa com o sol e a lua.13 No § 6 acrescentava mais um argumento: a conhecida concessão de Cristo a São Pedro, pedra fundadora da Igreja, a quem caberia o poder de ligar e desligar no céu e na terra.14 Como já expressaram adequadamente Souza & Barbosa: A Igreja é, portanto, a única sociedade a se ter em conta, pois dela, mediante o batismo, fazem parte todos os fiéis, e, por isso mesmo, tem de ser governada por uma só cabeça que, de acordo com o Evangelho, é o Papa. Trata-se, na verdade, de um organismo espiritual com uma dimensão temporal subsidiária, não de um corpo bipartido, “quase 11 12 13 14 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 106. “Deus disse: ‘Que haja luminares no firmamento do céu para separar o dia da noite, que eles sirvam de sinal tanto para as festas como para os dias e os anos, e que sirvam de luminares no firmamento do céu para iluminar a terra’. Assim aconteceu. Deus fez dois grandes luminares, o grande luminar para presidir o dia, o pequeno para presidir a noite, e as estrelas. Deus os estabeleceu no firmamento do céu para iluminar a terra, para presidir o dia e a noite e separar a luz da treva. Deus viu que isto era bom”. In: Gênesis, 1: 14-18. In: A Bíblia, op. cit., p. 11. INOCÊNCIO III. Solitae. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 27, op. cit., p. 130. Trata-se da passagem de Mateus 16: 18-19. cf. tb. Mateus 18: 18. In: A Bíblia, op. cit., p. 1213 e p. 1216. 209 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO um monstro”, para empregarmos a comparação usual entre os medievais. O único objetivo desta comunidade universal dos fiéis reside em alcançar a salvação eterna.15 Longe de terminada, a contenda entre a Igreja e o Império pelos respectivos âmbitos de jurisdição seguia adiante. Inocêncio III, na bula Venerabilem, de 1202, lembrava os príncipes eleitores germânicos de que eles de fato escolhiam livremente o seu monarca, mas que era apenas por meio da unção e coroação pelo papa – ou por seus devidos representantes – que o imperador seria sagrado. Lembrava ainda que o papa Leão III (795-816) havia feito a translatio imperii dos gregos para os germânicos, na pessoa de Carlos Magno (80014), no Natal de 800, pois naquela ocasião os bizantinos eram governados por uma mulher, Irene. Desse modo, declarava Inocêncio, o Império ficara sob a auctoritas do bispo de Roma e devia ser entendido como um beneficium eclesial outorgado pelas regras do direito canônico. O imperador seria, portanto, beneficiário (vassalo) da Igreja e teria a obrigação de defendê-la. Inocêncio III havia assim completado a inversão histórica referente aos primórdios da relação entre regnum e sacerdotium, tal como registrada no século IX e descrita por W. Ullmann.16 A matéria reabria também uma velha ferida, deixada aberta desde a morte de Henrique VI, em 1197, cujo herdeiro era ainda uma criança.17 Pela primeira vez na complexa história desses dois poderes, o pontífice reivindicava 15 16 17 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 107. Cf. Capítulo 1, p. 67-9. Depois da morte de Henrique VI, as disputas internas no reino germânico passaram a girar em torno de dois grupos poderosos e seus respectivos príncipes: o de Filipe de Staufen e seu rival, Oto, duque de Brunswick. O conflito, que já causara inúmeras mortes e a destruição de várias cidades e feudos, parecia insolúvel, pois a legislação eleitoral germânica nada previa em tais casos. 210 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO caber o exame quanto à aptidão e ao caráter do candidato ao trono imperial “ao seu consagrante, isto é, o próprio Papa, adaptando para a esfera das relações entre o Império e o Papado uma prática usual e institucionalizada no tocante à confirmação dos bispos eleitos pelos cabidos diocesanos, efetuada ou pela Metropolita ou pelo Santo Padre.”18 Nos termos do pontífice, no § 4: Mas, por outro lado, os príncipes devem reconhecer e decerto reconhecem que a autoridade e o direito para examinar a pessoa eleita rei e que será promovida ao Império nos compete, visto que nós a ungimos, coroamos e consagramos. Pois é normal e regularmente observado que o exame da pessoa compete àquele que lhe vai impor as mãos. Por conseguinte, se os príncipes, em consenso ou em desacordo entre si, escolherem como reis uma pessoa sacrílega ou excomungada, um tirano ou um idiota, ou um herege ou um pagão, nós deveremos ungir, consagrar e coroar tal pessoa? Decerto que não!19 E, mais adiante, no § 6: É evidente ainda que, numa eleição, quando os votos dos príncipes estão divididos, após uma advertência e um intervalo conveniente, podemos favorecer um dos postulantes, considerando-se que posteriormente um deles virá a ser ungido, coroado e consagrado por nós, e aconteceu freqüentemente que ambos nos pediram que fizéssemos isso. Assim, que brilhem o exemplo e o direito. (idem) Oitenta anos mais tarde, invertia-se em favor do papado o direito de resolver eleições contestadas, concedido ao impe18 19 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 108. INOCÊNCIO III. Venerabilem. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 28, op. cit., p. 131. 211 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO rador Henrique V pelo papa Calixto II no documento da Concordata de Worms, em 1122. A adoção dessa postura pelo papado sustentava-se na idéia de que a Igreja constituía a causa eficiente do império e de seu poder e que o imperador era um advocatus et protector Ecclesiae. Inocêncio também avançava na construção dos pilares de uma teoria hierocrática do poder, conferindo à Igreja o papel de sede última – de acordo com seus próprios critérios políticos e morais – de legitimação do poder temporal. Estava definitivamente estabelecida, ao menos na teoria, a primazia do sacerdotium sobre o regnum na função de juiz supremo, fosse em assuntos espirituais ou seculares. Daqui para frente, os papas reivindicariam o direito de só tratarem alguém como imperador depois de sua eleição para o cargo ter sido sancionada pela Ecclesia.20 No mesmo ano, 1202, Inocêncio III, respondendo à solicitação do conde Guilherme de Montpellier, que desejava ver reconhecidos e legitimados pelo papa seus filhos bastardos, a fim de que pudessem se tornar seus legítimos herdeiros, reafirmou na decretal Per venerabilem os princípios políticos defendidos no documento dirigido aos príncipes eleitores alemães. Inocêncio rebateu cuidadosamente os argumentos do conde, afirmando que a Igreja teria, sim, o direito de legitimá-los ou não, mesmo sendo esse um assunto temporal, em razão da superioridade do espírito sobre a matéria. Pois era natural que “a autoridade competente para legitimar na esfera superior também o fosse na inferior”, isto é, se o papa decidia em assuntos espirituais, também lhe era lícito determinar em matérias temporais. Guilherme reclamava o reconhecimento dos herdeiros com base no caso precedente do rei francês, Filipe Augusto (1180-223), cujos filhos com Inês de Meran haviam sido re20 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 108. 212 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO conhecidos como legítimos pelo mesmo papa pouco antes. Inocêncio III explicou ao conde que ao rei dos francos o pedido fora concedido em virtude de não reconhecer o rex superior algum na esfera temporal. Por isso, Filipe recorrera à autoridade pontifícia, sem que seu ato lesasse o direito de outros, o que já não cabia ao conde, subordinado legalmente pelos laços de vassalagem ao rei. Nos termos de Inocêncio: [...] Além disso, como o rei Filipe não reconhece de modo nenhum ter superior no âmbito temporal, sem nisso lesar o direito de outrem, pôde sujeitar-se e [de fato] submeteu-se à nossa jurisdição, quando talvez parecesse a alguém que ele poderia ter legitimado por si próprio, não como pai em relação aos seus filhos, mas na condição de Príncipe para com os súditos. Tu, no entanto, és conhecido como súdito de outrem. Daí que não pudesses sujeitar-te nesse aspecto, sem prejudicares assim o direito alheio, a menos que te autorizassem a fazê-lo, e ainda não gozas da autoridade para teres o direito de dispensar em tal questão. Movidos por essas razões e baseando-nos, tanto no Antigo, como no Novo Testamento, atendemos à solicitação de Filipe, tendo em mente ainda que, não só no Patrimônio da Igreja exercemos pleno direito temporal, mas também noutras regiões, dadas certas circunstâncias, exercemos casualmente a jurisdição na esfera secular. Com isso não tencionamos prejudicar um direito de outrem, ou usurpar um poder que nos seja indevido, visto não ignorarmos a resposta que Cristo oferece no Evangelho: Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. E arrematava mais adiante: Paulo, com o fito de explicar o que é a plenitude de poder, escrevendo aos Coríntios, diz o seguinte: Não sabeis que julgaremos os anjos, quanto mais as coisas do mundo? Ora, as incumbências seculares costumam ser regularmente executadas por quem exerce o poder temporal. Às 213 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO vezes, porém, e em circunstâncias excepcionais, por outrem.21 Para sustentar sua argumentação, Inocêncio apoiouse no “Deuteronômio”,22 associando-o à passagem de Mateus relativa ao mandato e primado petrinos. Com Inocêncio III, a teoria hierocrática que crescia dentro da Igreja acrescentava em seus fundamentos argumentos extraídos de uma leitura mais pragmática tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Além de um novo uso da Escritura, Inocêncio consolidava a esfera de atuação e legislação da Ecclesia, tornando inquestionáveis suas decisões no foro espiritual e ampliando seu raio de ação para assuntos temporais ligados a matérias de fé, como heresias, paganismo, “razão de pecado” e outros temas controversos. Isto é, afirmava sua plenitudo potestatis não mais apenas no âmbito espiritual, mas agora também in temporalibus. O século XIII foi marcado ainda pela construção e solidificação de um novo campo de direito, que se oporia ao ius 21 22 INOCÊNCIO III. Per Venerabilem. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 29, op. cit., p. 134-6. “Se for muito difícil para ti julgar da natureza de um caso de sangue derramado, litígio ou ferimentos – questões levadas ao tribunal de tua cidade –, pôr-te-ás a caminho para subir ao lugar que o Senhor, teu Deus, tiver escolhido. Irás procurar os sacerdotes levitas e o juiz que estiver em função naquele dia; e os consultarás e eles te comunicarão a sentença. Procederás conforme a sentença que te houverem comunicado no lugar que o Senhor tiver escolhido, e cuidarás de pôr em prática todas as suas instruções. Segundo a instrução que te tiverem dado e segundo a sentença que tiverem pronunciado, procederás, sem te desviares da palavra que te tiverem comunicado nem para a direita, nem para a esquerda. Mas o homem que tiver agido com presunção, sem escutar o sacerdote que lá estiver oficiando em honra do Senhor, teu Deus, e sem escutar o juiz, este morrerá. Extirparás o mal de Israel. Todo o povo ouvirá falar do caso, temerá, e não se tornarão mais presunçosos”. In: Deuteronômio, 17: 8-13. In: A Bíblia, p. 224. 214 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO antiquum (1150-200), baseado sobretudo nas compilações feitas por Graciano no Decretum e em comentários e glosas. Novas reflexões, assim como novos cânones e decretais, passaram a ser incluídos num novo corpo jurídico de direito canônico, denominado ius novum (1200-34), organizado pelo canonista Raimundo de Peñaforte: os Cinco livros das decretais. Com a incorporação desses documentos eclesiásticos recentes, perspectivas novas se abriam à reflexão tanto dos teóricos da Igreja quanto dos juristas civilistas, que agora se viam confrontados com novos textos e interpretações das quais tinham também de dar conta. Para os canonistas mais moderados, o poder eclesiástico podia intervir em assuntos temporais apenas em casos excepcionais.23 Já a corrente mais extremada defendia não apenas a intervenção ocasional dos moderados, mas ainda assegurava ser o pontífice o detentor “dos dois gládios”, aquele que conferia o poder temporal ao príncipe mais adequado. Segundo estes canonistas, o papa tinha o direito de intervir em assuntos seculares, mesmo fora do Patrimônio de São Pedro, legislando e julgando em outros casos: quando se tratasse de causas conexas, ligadas a um dos sacramentos; de causas anexas, ou de algo anexo à esfera espiritual, como a ruptura de um tratado de paz celebrado entre príncipes cristãos sob juramento; quando as autoridades seculares negligenciassem o bem-estar material e espititual de seus súditos; quando um crime considerado pecado fosse denunciado ao tribunal eclesiástico. 23 Os casos em que podia se dar essa intervenção eram: “quando o Império estivesse vacante e não fosse possível recorrer a uma instância superior; quando os juízes seculares fossem suspeitos de parcialidade; quando as causas fossem ambíguas e os juízes não estivessem seguros quanto à maneira de as julgar; e ratione peccati”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 114. 215 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO “Tudo conduzia para a consideração de que uma mesma comunidade com duas cabeças era uma espécie de monstro (quasi monstrum)”, resumem Souza e Barbosa. E o primado do espiritual sobre o material, conjugado aqui com o imperativo neoplatônico de redução da multiplicidade (dos reinos temporais) à unidade (do poder papal) viria a impor o Sumo Pontífice como chefe único da Ecclesia-Christianitas, vendo-se no Imperador o simples braço armado da Igreja, para sua defesa e advocacia.24 Embora o papado ainda não dispusesse de uma teoria organizada da supremacia do poder espiritual sobre o temporal, como aquela que seria oferecida um século depois pelo canonista Egídio Romano, por exemplo, os elementos necessários à reivindicação da plenitude de poder pelo pontífice já estavam colocados. Não havia mais dúvidas de que o papa constituía a única autoridade legítima para decidir em assuntos religiosos. A pretensão agora era mostrar que sua auctoritas se estendia também à esfera da dominação temporal. Papas, reis e imperadores pareciam cada vez mais distantes da paz e da pretendida unidade dos cristãos. Inocêncio III foi também o tutor de Frederico II (121250), filho do imperador Henrique VI e de Constança da Sicília, e neto do Barba-Ruiva. Criado sob os cuidados do pontífice, Frederico foi sagrado por ele imperador em 1215. Em troca, prometia abdicar do trono da Sicília em favor de seu filho Conrado. Com a morte do pontífice um ano mais tarde, contudo, Frederico não cumpriu o prometido. Na qualidade de rei siciliano e imperador germânico, os Hohenstaufen cercavam agora o Patrimônio de São Pedro tanto ao sul quanto ao 24 Ibid., p. 116. 216 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO norte, ameaçando assim os reinos italianos e a própria supremacia do papado sobre a Santa Sé. Além disso, Frederico prometera a dois papas organizar uma Cruzada contra os turcos seljúcidas, que haviam retirado aos latinos a Terra Santa e impediam suas peregrinações ao local. Em vez da luta pelas armas, Frederico II negociou um tratado com o sultão do Egito, Malik el Kamil, em 1229, comprometendo-se a ajudá-lo contra o sultão de Damasco e a impedir os ataques de príncipes ocidentais a seus territórios. Em troca, Malik lhe assegurava a posse do reino de Jerusalém – recebido por ele como dote de casamento com a filha de João de Brienne –, além da liberdade de trânsito para os peregrinos cristãos. Tais acontecimentos, somados às inúmeras promessas não cumpridas de realizar Cruzadas em nome da Ecclesia, levaram o então papa Gregório IX (122741) a excomungá-lo. O imperador, em represália, passou a perseguir religiosos, a confiscar os bens eclesiásticos em seus territórios e, em 1239, tentou conquistar Roma, com o objetivo de capturar o pontífice. Gregório IX, para sustentar sua posição, reintroduziu no debate sobre os dois poderes o tema da Doação de Constantino.25 De acordo com a explicação de Gregório, o imperador Constantino julgara inoportuno conceder ao pontífice apenas o governo das almas e, por isso, lhe teria concedido também jurisdição em assuntos temporais.26 O papa ressaltava o status do doador afirmando que Constantino era detentor plenipotenciário da supremacia imperial exercida sobre seu território e que, portanto, a doação constituía uma sua legítima decisão. Mencionava ainda o consensus dos en25 26 Cf. Capítulo 1, p. 79-81. “Constantino, julgando oportuno que o Vigário de Cristo não devesse governar apenas as almas e os eclesiásticos, reconheceu que ele tinha de ampliar sua jurisdição sobre os corpos e os bens materiais de todas as pessoas”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 118. 217 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO volvidos em favor da decisão.27 Tais idéias do pontífice eram resultado não só de seus conhecimentos acerca do direito romano e canônico, mas também do espaço político cada vez mais amplo reclamado pela emergente burguesia das Comunas e cidades italianas, ferrenha adversária das pretensões e do centralismo imperiais. Já os partidários do imperador defendiam que Deus, ao estabelecer os dois poderes, assim o fizera para que cada qual governasse os seres humanos em seus campos específicos de atuação, a fim de obter com maior facilidade a realização de seus fins.28 Para Frederico II, os dois poderes tinham a mesma origem divina e, por isso, estavam em pé de igualdade. Não negava, contudo, que o poder sacerdotal desfrutasse de maior dignidade, dada sua finalidade transcendente. Mas a felicidade última, a vida eterna, dizia ele, jamais seria alcançada sem que o regnum, por meio de seu titular, proporcionasse à comunidade humana a ordem, a justiça e a paz, condições necessárias para a felicidade terrena. Para tanto, eram fundamentais o respeito às leis e a reta execução da justiça, cuja transgressão pelos homens gerava sofrimento, como aquele que havia resultado do pecado original.29 27 28 29 “Em segundo lugar, Gregório IX destacou enfaticamente a importância da aquiescência dos senadores, dos romanos e de todos os habitantes do Império àquela medida tomada pelo Imperador, querendo insinuar que o consenso popular era uma garantia da legitimidade do ato de doação”. Ibid., p. 118-9. “Ambas [as luminárias, sol e lua] deviam completar-se mutuamente, mas cada uma delas tinha de proceder de tal modo no cumprimento de sua função que não atrapalhasse a outra [...]. Semelhantemente, a Providência também quis que neste mundo houvesse dois governos, o sacerdotal e o imperial, para que o homem, que tinha sido dividido em dois componentes, fosse moderado por dois governos”. In: FREDERICO II. Documento 33. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 139. Segundo Frederico, “respeitar a justiça equivalia a prestar uma homenagem a Deus. Tal respeito consubstanciava-se no cumprimento rigoroso das leis, explicitação da própria justiça e espelho visível da justiça 218 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO Frederico reforçava assim a velha máxima medieval segundo a qual a lex facit regem. O imperador, detentor da autoridade suprema neste mundo, tinha portanto o dever de intervir pessoalmente em qualquer questão sempre que a desordem se manifestasse, ou ainda por meio de seus oficiais, leigos ou religiosos, a fim de restabelecer a ordem e, deste modo, a justiça. E porque ungido com óleos divinos, o imperador era o mais apto para discernir o justo do injusto e, assim, fazer prevalecer o interesse comum sobre as aspirações individuais. Nenhum outro homem tinha competência para reivindicar o direito de interferir em seu âmbito de atuação, nem mesmo para oferecer sugestões. Considerava-se a lex animata in terris, assim como seu guardião e executor. Embora tivesse sido criado – ironicamente, e talvez até por isso – sob os cuidados de um pontífice, ele não admitia que seu poder proviesse do papa ou até mesmo de Cristo: derivava direta e exclusivamente de Deus. Afirmava ainda que a intromissão do papa na esfera temporal era a maior causadora da desordem no mundo, embora não deprezasse nem ignorasse o papel relevante exercido pelos sacerdotes, que conduziam os homens para a salvação eterna, por meio da pregação do Evangelho, cujo alcance social e político não devia ser desprezado. A base dessas reivindicações de Frederico assentavase em boa medida no Decretum, no qual se afirmava que a autoridade suprema do imperador era indivisível e inalienável, pois o imperador era a legalidade e a justiça personificaeterna. Ademais, aplicando ao mundo os princípios de causalidade e de necessidade, constatava-se que os males da humanidade tinham por causa última a transgressão da justiça; o mal passou a dominar o mundo quando os nossos primeiros pais, movidos pelo orgulho, violaram a ordem do Criador. Portanto, o desrespeito pela justiça gerava uma desordem que, pelo sofrimento dela emanado, era a antítese da felicidade”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 120. 219 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO das (lex animata). Toda criatura humana estaria sujeita à sua vontade. Mas não só os juristas leigos lhe atribuíam tal poder. Até mesmo alguns canonistas reconheciam ao imperador essa supremacia universal. João Teutônico, de Bolonha, por exemplo, sugeriu numa de suas glosas que o imperador deteria, em princípio, a supremacia sobre o universo e seria dominus mundi, com autoridade jurisdicional sobre todo rei, a menos que um rei provasse estar isento da suserania do imperador.30 Mas seria contudo a distinção entre independência de facto e de iure, introduzida por Bernardo Compostelano Antigo, que daria consistência jurídica à causa pontifícia, bem como, mais tarde, à real. Expressava-se na fórmula de que os reinos eram dependentes do império na sua estrutura política e jurídica, mas de facto podiam não reconhecer a superioridade imperial. Essa distinção entre “dependência de iure” e “não-reconhecimento de fato” facilitava o trabalho dos juristas que tinham de explicar a decretal de Inocêncio III, de 1202, na qual sustentava não reconhecer o rei franco um superior no âmbito temporal. Fortalecia também aqueles que desejavam banir o domínio universal do imperador. Ou seja, o argumento era relevante para as pretensões tanto dos reis quanto dos papas.31 Com a eleição de Inocêncio IV (1243-54), Frederico II, que havia sido excomungado e se encontrava em conflito aberto com o papado, foi chamado pelo novo pontífice para a 30 31 Cf. ULLMANN, Walter. The development of the medieval idea of sovereignty. The English Historical Review, v. 64, n. 250, p. 3, jan. de 1949. Em França, cuja situação era muito peculiar, apenas a minoria dos juristas reconhecia nestes termos a distinção entre independência de fato e de direito. A maioria dos franceses tendia a defender a “independência de fato e de direito” do rei francês. Esta segunda opinião foi a que prevaleceu na França, como se veria mais tarde. Cf. ULLMANN, op. cit., 1949, p. 5. 220 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO mesa de negociação. O imperador deveria justificar-se junto à curia romana, mas negou-se a fazê-lo. Apesar das sucessivas tentativas de ambos os lados, não foi possível um acordo entre as duas autoridades. Finalmente, no Concílio de 1245, Inocêncio IV depôs Frederico, acusado de perjúrio, sacrilégio, de manter relações amistosas com os infiéis, de violar a paz entre papado e império, de ser omisso no cumprimento de seus deveres como minister Ecclesiae e “outros crimes”, conforme consta na “Sentença de deposição do Imperador Frederico”.32 O imperador, em resposta, escreveu e divulgou em toda a cristandade a Encyclica contra depositionis sententiam, na qual se defendia. Inocêncio IV respondeu então, na bula papal Aeger cui lenia, a cada uma das críticas feitas por Frederico II. Segundo especialistas, esse pode ser considerado talvez o mais enfático documento de Inocêncio IV em favor da hierocracia.33 Nela o pontífice afirmava ser o sumo sacerdote o vigário terreno de Cristo – “Rei dos reis” – e o sucessor de São Pedro. Nessa condição teria recebido do filho de Deus uma generatis legatio, que lhe conferiria jurisdição plena sobre todos os homens, inclusive sobre os governantes terrenos, o que lhe permitia dar ordens quando e a quem desejasse.34 Apesar de todas as acusações que lhe pesavam, 32 33 34 Cf. INOCÊNCIO IV. Sentença de deposição do imperador Frederico. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 34, op. cit., p. 140-4. Cf. PACAUT, M. La théocracie. Paris: Desclée, 1989. p. 30. Transcreveu-se aqui parte da bula, traduzida por SOUZA & BARBOSA, devido à relevância atribuída por inúmeros especialistas ao documento: “[...] Na verdade, exercemos uma delegação geral sobre a terra, a qual foi recebida do Rei dos reis. Entende-se, relativamente a ela, que ninguém nem quaisquer assuntos ou negócios devem estar isentos do seu controle. Tal delegação abarca amplamente o universo, porque foi enunciada no gênero neutro, pois o Senhor atribuiu ao Príncipe dos Apóstolos e, na sua pessoa, a nós mesmos, a plenitude do poder, tanto para ligar como para desligar tudo do que está sobre a face da terra. Daí o 221 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Frederico manteve-se no trono até a morte, em 1250. Pouco antes de morrer, enviou a toda a cristandade uma carta na qual declarava a intenção de o pontífice assassiná-lo. Os sacerdotes do Antigo Testamento, argumentava Inocêncio IV, teriam recebido de Deus semelhante poder, fato que lhes tinha permitido depor os maus governantes de Israel. Como resumem, de maneira acurada, Souza & Barbosa: Assim também, o Sumo Pontífice na Nova Aliança podia agir casualiter, quando os príncipes seculares ratione Apóstolo dos Gentios, ao querer comprovar que tal plenitude de poder não devia ter limites, afirmar: ‘Não sabeis que julgaremos os Anjos? Quanto mais as coisas deste mundo?’ [...] [...] Lemos na Escritura, a respeito desse poder, que um bom número de Pontífices da Antiga Aliança o exerceram graças à autoridade divina que lhes foi concedida ao deporem do trono real muitos monarcas que se tinham tornado indignos de governar. Portanto, daí resulta que o Papa pode exercer, ao menos casualmente, o seu julgamento pontifício sobre qualquer cristão, seja ele quem for, principalmente se não houver outra pessoa capaz de reparar a falta cometida pelo mesmo ou não queira fazer justiça e, sobretudo, em razão do pecado [...]. De fato, o Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, Deus e homem verdadeiro, agindo também como autêntico rei e sacerdote, segundo a ordem de Melquisedeque, igualmente revelou de modo claro aos homens, ora usando a honorabilidade da sua majestade real, ora exercendo perante os mesmos a dignidade pontifícia, recebidas do Pai, que estabeleceu na Sé Apostólica uma monarquia não apenas sacerdotal, mas também real, ao confiar ao bem-aventurado Pedro e aos seus sucessores as rédeas dos impérios celeste e terreste, como se pode notar de modo evidente em razão da pluralidade das chaves, de maneira que através de uma recebemos o poder sobre a terra e as questões seculares e, pela outra, no céu e a respeito dos assuntos espirituais, a fim de que se entenda que o Vigário de Cristo obteve o direito de julgar. [...] Portanto, se o poder está potencialmente incluído no seu interior, ele torna-se ativo quando é transferido ao príncipe. Com efeito, aquele rito pelo qual o Sumo Pontífice apresenta a espada embainhada a César, que por ele, Pontífice, vai ser coroado, demonstra-o claramente, pois o Imperador, após a receber, a retira da bainha e brandindo-a, comprova que recebeu da Igreja o direito de usá-la [...]”. Cf. INOCÊNCIO IV. Aeger cui lenia. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 144-5. 222 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO peccati deixassem de cumprir com seus deveres para com Deus e a Igreja, pois Cristo, obedecendo ao desígnio da Providência, estabeleceu na Sé Apostólica um principado sacerdotal e real, visto Ele ser simultaneamente Sacerdote e Rei. É por esse motivo que as chaves para abrir e fechar o reino dos céus e as espadas para ferir e cortar espiritual e temporalmente se encontram na posse da Igreja e só o Papa, na condição de chefe máximo da Ecclesia-Christianitas, pode confiar as funções seculares aos príncipes, porque fora da Igreja não existe poder legítimo.35 O canonista Guido de Baysio, por exemplo, iria estender a fórmula papal a um princípio jurídico: o de que o rex detinha em seu reino os mesmos poderes que imperador em seus domínios, conferindo novo fundamento à conhecida máxima romana do rex in regno suo imperator est. O rei, portanto, desfrutaria em seu território do mesmo status jurídico e político que o imperador em seu império e teria poder supremo sobre todos os que habitavam o reino. Idéia semelhante defendia Guilherme Durando, em sua obra sobre o crime de lesa-majestade, na qual se perguntava se os barões, ao se insurgirem contra o rei da França, estariam cometendo crime de lesa-majetade. À questão Durando respondia positivamente, alegando que “o rex francorum era princeps em seu reino”. A noção do rei como majestas, tal como afirmaria Bodin séculos mais tarde, ganhava assim os primeiros adeptos.36 Inocêncio IV, seguindo a trilha de seu antecessor, defendia não apenas a independência de fato e de direito do rei dos francos em relação ao imperador, mas também sustentava que os reis detinham o poder de criar tabeliões públicos, 35 36 “A cerimônia da outorga da espada, efetuada pelo Papa ao Imperador”, completam, “comprova muito bem que ele é um minister sacerdotis e que o Império de jure et de facto está subordinado ao Papado”. In: SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 123. Cf. ULLMANN, op. cit., 1949, p. 9-10. 223 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO como o podia fazer o próprio papa. Outra questão intimamente ligada à disputa pela supremacia era a da possibilidade – ou não – de apelação ao imperador de uma sentença do rei. Segundo Durando, uma sentença do rei francês era inapelável. Mas no resto da cristandade, completava ele, o imperador era o dominus mundi, e, por isso, a apelação era possível em outros reinos. O debate, portanto, avançava na direção de uma negação da supremacia universal do imperador in temporalibus. Cinqüenta anos mais tarde, quando da querela entre o rei francês e o pontífice, a plenitude de poder do rei franco em seu território já constituía matéria indiscutível, fosse em relação ao papa ou ao imperador. Nesse momento, contudo, a causa papal ainda ganhava reforço. Henrique Bartolomeu de Susa, o Ostiense, por exemplo, sustentava que a primazia do sacerdotium sobre o regnum era apoiada também pelo direito civil romano. A Doação de Constantino não constituía apenas um fato verídico, mas era também um documento autêntico que confirmava a existência de uma só cabeça à frente da cristandade e reparava um abuso cometido por imperadores pagãos que faziam uso de um poder ilegítimo. Constantino, por inspiração divina, apenas tinha se limitado a devolver a São Silvestre um poder que de direito já lhe pertencia, dado que era vigário do Filho de Deus sobre toda a terra. Por fim, o Ostiense definia ainda os casos em que o pontífice teria o direito de intervir no governo secular: quando sua interferência fosse requerida e não prejudicasse o direito de outrem; quando se fazia justiça em favor dos oprimidos; quando um suserano tratava ou julgava injustamente o seu vassalo; e nas cidades onde não havia um juiz secular.37 A teoria gelasiana da independência das duas espadas continuaria a ser defendida ao longo do século XIII, mas sus37 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 126. 224 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO tentada agora na preeminência moral do poder espiritual sobre o temporal. De maneira geral, não havia discordância quanto à afirmação de que aos sacerdotes cabia zelar pela bem-aventurança dos fiéis e conduzi-los à vida eterna. E aos reis cabia zelar pelo bem-estar material de seus súditos, promovendo, coordenando e executando a justiça, punindo os malfeitores e libertando pela espada os oprimidos. Sob esse pano de fundo repousavam posições políticas e concepções de mundo as mais diversas, como aquelas encontradas nas obras de inúmeros pensadores ilustres do século XIII, de Alberto Magno a Tomás de Aquino. Uma bipartição que não sobreviveria por muito tempo ante as tendências de centralização do poder presentes em toda parte, fosse na Ecclesia ou no regnum. É possível assegurar com alguma convicção, portanto, que as questões vinculadas à noção de soberania eram simultaneamente políticas e jurídicas. Eram políticas porque envolviam a construção de um sistema de poder, fosse ele hierocrático ou estatal. A imagem do rex in regno suo imperator est – que viria a ser muito em breve reivindicada pelos governantes dos Estados territoriais emergentes – evocava, ao mesmo tempo, a concentração do comando territorial (relações internas) e a pretensão de independência em face de potências externas, fossem elas os não-cristãos ou os territórios vizinhos. E jurídicas porque todas as pretensões eram apresentadas como legais. O que se refazia, nesse período, não era apenas uma constelação de forças, mas toda uma ordem normativa. Uma das faces mais importantes da produção cultural, entre os séculos XII e XIV, foi indubitavelmente a reflexão jurídica. Armados com a disciplina fornecida pelo redescoberto direito romano, os juristas não se limitaram a recuperar conceitos. Repensaram o direito costumeiro, as instituições tradicionais, ordenaram e codificaram as normas comuns e cons225 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO truíram respostas para problemas novos. No campo internacional, por exemplo, a criatividade de Sassoferrato é conhecida por trabalhos como a determinação de águas territoriais. A noção de soberania era forjada, portanto, não por autores distanciados do mundo e recolhidos ao trabalho acadêmico. Era uma idéia construída polemicamente, num processo em que se misturavam o interesse no conflito imediato e a reflexão abstrata. A idéia nascente de soberania podia ser captada em suas diferentes funções: 1) como direito reivindicado e, portanto, objeto de controvérsia jurídica; 2) como atributo do poder, qualidade política que se manifestava, simultaneamente, como suprema autoridade interna e como autonomia externa. Esquematicamente, a construção da idéia de soberania ocorria em dois momentos. No primeiro, o grande tema era a distribuição das jurisdições num sentido restrito. Tratava-se de saber sobretudo quem fazia cumprir as leis. Isso envolvia tanto a questão do domínio territorial quanto a divisão da autoridade entre as esferas temporal e espiritual. A autoridade era principalmente judiciária. No segundo, emergiria o problema do poder legislativo, tal como entendido modernamente, a começar dos “clássicos”. Jurisdição, a partir daí, passaria a incluir também o direito de criar, de mudar e de revogar normas. A imagem de um legislador legibus solutus, oriunda do direito romano, já reaparecera em glosadores como o italiano Azzone e o inglês Alan, no fim do século XII. Depois da redescoberta do Digesto, de Justiniano, os juristas ocuparam-se em examinar a fonte da autoridade legislativa na comunidade e a relação entre o monarca e a velha lei. Um dos problemas relevantes era conciliar a autoridade legislativa do princeps – que agora substituía o imperador do antigo Estado romano – com o poder do costume legal. Azzone afirmava que o costume mantinha, fazia, ab-rogava e inter226 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO pretava a lei. Muitos legistas entendiam, assentados na tradição medieval da filosofia natural, que a produção de uma nova lei era função natural da sociedade. Havia também pontos de vista diferentes, como os de alguns civilistas, que definiam a lei como vontade do príncipe, promulgada por razões justas e necessárias e temperada pelo costume.38 A idéia da lei como expressão de uma vontade soberana, fonte única de validade da norma civil, só se cristalizaria, no entanto, com alguma lentidão. A noção do princeps legibus solutus deve ser entendida de forma variável entre as primeiras grandes discussões, no século XI, e sua tradução radical na obra hobbesiana. De modo esquemático, seria possível descrever esse desenvolvimento como um percurso entre dois extremos. Num deles, a lei (natural, divina, costumeira, estatuída ou positiva) se sobrepunha totalmente ao príncipe (lex facit regem). No outro, a vontade soberana era fonte criadora, tansformadora e revogadora da lei (auctoritas, non veritas, facit legem). Como todo esquematismo, esse deve ser considerado com reserva, porque o voluntarismo já apareceria no século XIV e a noção de uma ordem anterior e superior à vontade ainda seria visível na literatura política moderna. Mas aquela 38 Black recorda como os textos do direito romano foram utilizados para atender a múltiplos interesses. A lei romana era “mais específica sobre a extensão dos poderes à disposição de um princeps ou imperator”, mas deles se apropriaram os canonistas para expressar a autoridade papal. “Então, os legistas seculares, trabalhando em meios nacionais ou locais, mas empregando a linguagem da lei imperial romana, começaram a aplicá-la, firmemente, a todas as monarquias seculares existentes na Europa, começando pela França e pelo reino da Sicília. Isso acompanhou uma ampla adoção da linguagem imperial por reis e duques, que implicava que os poderes atribuídos ao imperador romano pertenciam propriamente a todo governante vis-à-vis seus próprios súditos (rex est imperator in regno suo)”. In: BLACK, Antony. Political thought in Europe 1250-1450. Cambridge: University Press, 1992. p. 139. 227 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ressalva, a da evolução, é indispensável. Ela acentua a idéia de um processo formador. Desse modo, legitima a pretensão de falar em Estado territorial moderno e em soberania, na Idade Média, desde que se saiba que não se trata nem do fato nem do conceito nas formas plenamente amadurecidas. Nas várias universidades, o desenvolvimento da jurisprudência e da reflexão jurídico-política respondia, com freqüência, a interesses opostos e, no entanto, com resultados convergentes. Alguns aspectos desse desenvolvimento podem surpreender. A formulação mais radical da idéia de poder absoluto pertenceu, provavelmente, aos canonistas. Acabou incorporada, porém, pelos mais severos defensores do poder secular, imperial ou do reino. A idéia de que a vontade do soberano, e não a justiça, constituía o elemento essencial da lei foi posta por um canonista do século XIII, Laurêncio Hispano, contra uma das mais firmes tradições da política medieval. Separando a vontade do príncipe do conteúdo da lei, Hispano tornava a lei plenamente caracterizável sem referência à moralidade ou a qualquer conceito transcendente de justiça. Esse é um exemplo de como, aos poucos, delineava-se a noção da vontade (auctoritas) como fonte da lei. Embora a idéia do predomínio da norma (e da justiça) tenha permanecido como ideologia dominante no século XIII, a questão das relações entre o príncipe e a lei já vinha sendo revista desde o século XII, como se tentou demonstrar. No final deste, os canonistas já utilizavam o termo ius positivum para indicar a lei promulgada pelo legislador humano, como indica, entre outros, Pennington.39 Desde meados daquele 39 Pennington chama atenção para a dificuldade de interpretar a relação entre príncipe e lei a partir da tradição romana. Justiniano tanto sustentara a idéia de um poder imperial absoluto (Digesto), quanto defendera a noção de um imperador que legisla mas deve subordinar-se à lei (Digna Vox, cod. I.14.4), como os governantes constitucionais. Cf. PENNINGTON, 228 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO século, quando o Decretum de Graciano havia determinado às escolas o estudo da lei canônica, havia-se intensificado o esforço de refinamento conceitual. Ao indicar a vontade do príncipe como fonte da lei, separando lei e justiça e, portanto, vontade legisladora e razão, Laurêncio Hispano abria uma perspectiva nova para a concepção do poder. No entanto, mesmo o exercício “não razoável” do poder teria de ser legal. Outros canonistas o acompanhavam, distinguindo a autoridade do príncipe da “moralidade” da lei. Mas, ao mesmo tempo, enfatizavam a obrigação do príncipe de se sujeitar à norma por ele estatuída. Dante refletia essa concepção ao fazer do monarca (o imperador, na sua proposta política) um legislador e um servo da lei.40 Embora os canonistas tenham mantido essa idéia de governo legal (apesar do poder de mudar ou revogar a lei), eles contribuíram de modo significativo, não importa o alcance de sua intenção, para aliviar a noção de plenitudo potestatis dos entraves da moralidade, da razão e dos antigos costumes. Pennington lembra que os canonistas utilizaram essas idéias para estabelecer os limites constitucionais da autoridade papal. O alcance dessa autoridade era definido pela noção de plenitudo potestatis, que em pouco tempo seria adotada também para descrever o poder legítimo – pouco depois denominado soberano – da monarquia secular. O próprio papado, em alguns momentos, contribuiu para fortalecer juridicamente as pretensões dos reis. Um bom exemplo disso era a declaração, já mencionada, do papa Inocêncio III, em 1202, de que o rei da França não reconhecia superior em questões temporais. Ele deixara, com isso, um problema para 40 K. Law, legislative authority and theories of government, 1150-1300. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 424-53. ALIGHIERI, Dante. Monarchia. Milano: Biblioteca Universale Rizzoli, 1988. Livro I, XII, p. 195. 229 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO os canonistas, que se empenharam em esclarecer o assunto. Segundo alguns, os reis não estariam sujeitos de facto ao imperador, mas sim de iure, enquanto outros afirmavam a completa independência do rei em relação ao Império. Tal como Hispano, também o Ostiense, partidário da causa papal, terminou desenvolvendo a noção de plenitudo potestatis, contribuindo para o refinamento do conceito. Também segundo ele, a vontade do princeps – em sua concepção o pontífice, como se viu – era a fonte da lei. Não se limitava pelo rigor da razão e da moralidade, e, sob certas circunstâncias, o monarca poderia violar os preceitos de justiça. Dados todos esses pontos, conclui Pennington, estavam presentes os elementos necessários para pensar o que mais tarde se chamou razão de Estado.41 Entre 1150 e 1300, legistas e glosadores fixaram as principais teorias a respeito da auctoritas do príncipe. Alguns deles mantinham a ênfase na supremacia da lei, eventualmente confundida com a supremacia da comunidade. Outros acentuavam, já, a idéia do príncipe legislador. De modo geral, porém, não se negava a idéia do governo fundado no bem público. Desses dois modelos seria possível derivar, com alguns acertos, tanto as doutrinas da monarquia absoluta quanto a do governo constitucional. Grande parte dessas noções que lentamente se desenvolviam e ganhavam refinamento conceitual já era conhecida dos autores medievais. Do mesmo modo, parte das noções aristotélicas acerca da filosofia natural e da política já circulava pela Europa, antes mesmo da completa tradução de suas obras, o que só ocorreria na segunda metade do século XIII. Mas o material que se tornou disponível depois de realizadas as traduções latinas do que havia sobrado da obra do Filósofo podia ser agora muito mais bem ordenado, a partir de uma 41 Cf. PENNINGTON, op. cit., p. 436. 230 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO leitura sistemática de seus inúmeros textos e dos de outros tantos autores antigos, gregos, árabes e judeus, agora disponíveis. Com as restrições já discutidas no capítulo anterior, pode-se dizer que apenas depois da tradução dos últimos textos de Aristóteles – entre eles a Política, que ganhou uma versão latina por volta de 1263 –, foi possível fazer uma reconstrução organizada de seu pensamento, possibilitando assim um novo uso e uma nova sistematização do material disponível. Tornava-se necessária a construção de uma filosofia que oferecesse instrumentos mais adequados para a superação dos impasses – teóricos e práticos – nos quais se encontrava mergulhada a cristandade. Afinal, a polis de Aristóteles não era parte do mundo medieval latino. E tanto Tomás de Aquino quanto seus predecessores tinham ciência disso. III O CORPUS ARISTOTÉLICO DOS LATINOS Os livros de Aristóteles sobre a ordem da natureza formavam a base da filosofia natural nas universidades medievais. Eles forneciam um fundamento adequado e sistemático para a especulação a respeito da idéia de natureza no contexto do pensamento político, assim como no da metafísica e da ciência. Era por meio deles que se pensava a estrutura e a operação do cosmo. Pelo uso de suas assunções, de seus princípios demonstráveis e aparentemente auto-evidentes, a leitura de Aristóteles impôs um forte senso de ordem e coerência sobre um mundo até então intensamente povoado por alegorias, epítetos e metáforas.42 E quais eram essas idéias? 42 Cf. GRANT, op. cit., p. 54. 231 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO 1. Filosofia natural e a base da investigação científica Um dos pilares fundamentais de toda a construção aristotélica repousava na asserção de que o mundo era eterno: não teria tido nem início nem fim. O universo físico, como explicava Aristóteles em Dos céus, era espacialmente finito, mas temporalmente infinito. Ou seja, o mundo constituía uma vasta, porém limitada, esfera que existia sem princípio e continuaria existindo sem fim, idéia que se opunha frontalmente à da criação divina do orbe.43 Se o mundo aristotélico era eterno e, por isso, suspeito aos medievais, a insistência no seu caráter único, entretanto, o colocava plenamente de acordo com as sagradas escrituras das três grandes religiões. Segundo o Filósofo, o universo era uma grande esfera finita para além da qual nada poderia existir. Toda matéria existente estava nele contida, dentro dessa imensa esfera.44 43 44 A idéia de que a matéria poderia ter um começo parecia impossível aos gregos antigos. Sem um começo, portanto, o mundo não poderia ter sido criado: esta asserção opunha o Filósofo aos teólogos das grandes religiões monoteístas (judaísmo, cristinianismo, islamismo). Por essa razão, a questão da eternidade do mundo constituía um dos temas mais complexos, para os teólogos do Ocidente medieval no século XIII, a respeito de filosofia natural e teologia. Cf. GRANT, op. cit., p. 54. Um corpo constituía sempre, para Aristóteles, a superfície mais íntima de outro corpo imediatamente circundante que estava em contato direto com o corpo contido. Um lugar era algo, um espaço, no qual um corpo deveria estar presente. De modo similar, um vazio constituía algo em que a existência de um corpo era possível, embora não atual. Finalmente, tempo era a medida de movimento. Sem corpo, não poderia haver movimento e, por isso, não poderia haver tempo. De onde Aristóteles concluía que toda a existência repousava dentro de nosso cosmo, e coisa alguma além dele. Cf. ARISTOTLE. On the heavens (I:268b11-268b26). Trad. de J. L. Stocks. In: BARNES, Jonathan (Ed.). Aristotle: the complete works. The Revised Oxford Translation. New Jersey: Princeton University Press, 1991. v. I e II, p. 448. Todas as citações oriundas de edições inglesas foram retiradas desta versão da obra completa de Aristóteles. 232 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO Esse mundo dividia-se, segundo ele, em duas circunferências radicalmente diferentes: uma terrestre, que se estendia do centro da terra até a esfera lunar; e outra celeste, que envolvia tudo o que existia entre a lua e as estrelas fixas.45 Boa parte da filosofia natural de Aristóteles constituía uma tentativa de identificar e explicar os princípios de transformação na região terrestre.46 Natureza, no reino terrestre, nada mais era do que um termo coletivo para a totalidade dos corpos existentes, compostos de forma e matéria.47 Aristóteles atribuía assim aos corpos terrestres o poder de agir de acordo com suas capacidades naturais. Este raciocínio lhe permitia supor causações secundárias: os corpos eram capazes de ação, e com isso de efeitos, sobre outros corpos.48 Aristóteles tinha uma concepção teleológica da natureza. Isto é, explicava todos os fenômenos que ocorriam no mundo por meio de suas causas finais. As causas finais, 45 46 47 48 Na região terrestre, a observação e a experiência tornavam óbvio que a mudança era incessante, enquanto na região celeste a transformação não existia. Aristóteles distinguia basicamente três tipos de transformações que podiam ser promovidas pelo movimento das quatro causas fundamentais: 1) mudança qualitativa, como quando a cor de uma folha se altera do verde para o marrom na mesma matéria subjacente; 2) mudança de quantidade, como quando um corpo cresce ou diminui, retendo sua identidade de outra maneira; e 3) mudança de lugar, quando um corpo se move de um lugar para outro. Localizava ainda um outro tipo de mudança que, contudo, não implicava movimento: a mudança substancial, onde uma forma suplanta a outra na matéria subjacente, como quando o fogo reduzia um tronco a cinzas (cf. Physics, V:225a37-225b16). Cada um desses corpos pertencia a uma espécie própria e possuía as propriedades e as características – isto é, a forma – dela. Se desimpedido, agiria em conformidade com essas propriedades. Aristóteles acreditava que cada efeito era produzido por quatro causas agindo simultaneamente: uma causa material, ou a coisa a partir da qual algo era feito; uma causa formal, ou a estrutura básica a ser imposta sobre algo; uma causa eficiente, ou o agente de uma ação; e uma causa final, ou o propósito pelo qual a ação era empreendida. 233 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO portanto, não eram menos importantes para explicar os produtos da habilidade humana. A explicação em termos de causas finais constituía, para o Filósofo, a explicação em termos do “bem”: as causas finais eram causas primeiras porque equivaliam à descrição da coisa. Ou seja, os patos, pelo fato de nadarem, exemplificava, tinham as patas palmilhadas. Então era bom – para os patos – ter patas palmilhadas, pois ser nadador era parte da essência de um pato. E uma descrição adequada do que era ser um pato requeria uma referência ao nadar. As causas finais, portanto, não se impunham à natureza por meio de considerações teóricas, e sim eram concebidas como se fossem observadas na natureza.49 Uma explicação teleológica era, portanto, uma explicação que recorria a objetivos ou causas finais. Por vezes, a teleologia de Aristóteles se resumia no lema: “a natureza nada faz em vão”. Isto é, o comportamento natural e sua estrutura devem ter causas finais, já que a natureza nada produzia em vão: fazia o melhor que podia em cada circunstância. Se as “artes eram imitações da natureza”, então também podia haver causas finais nos produtos da habilidade humana. Em várias passagens, Aristóteles falava da natureza como o artífice inteligente do mundo natural. Para isso, recorria à noção de função: associava a explicação “com o objetivo de” à função, e via função na natureza. “A natureza nada faz em vão” constituía sem dúvida um princípio regulador fundamental da investigação científica para Aristóteles: a captação da função era crucial para a compreensão da natureza.50 As ciências, portanto, se diferenciavam pelos objetivos práticos que cada uma delas perseguia. Tal como descrevia na Metafísica, o conhecimento era dividido em três tipos prin49 50 Cf. ARISTOTLE. Parts of animals (694a22-694b12). Trad. de W. Olgle. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 1081. Cf. BARNES, Jonathan. Aristóteles. Madrid: Cátedra, 1987. p. 128. 234 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO cipais: 1) as ciências teóricas ou contemplativas, que diziam respeito ao conhecimento, e tinham como objetivo a busca da verdade, contendo a maior parte do conhecimento humano (teologia, matemática, física); 2) as ciências práticas, que tratavam da ação e atuação humanas em diversas circunstâncias (ética, política, economia); e 3) as ciências produtivas, que lidavam com a feitura de objetos úteis, isto é, ocupavam-se da produção das coisas (agricultura, engenharia, arte). O conhecimento teórico ou contemplativo subdividiase em três espécies de filosofias ou ciências teóricas: A) a teologia (ou metafísica), que considerava as coisas ou substâncias puras que existiam independentemente de qualquer relação com a matéria e eram imutáveis,51 B) a matemática, que também tratava das coisas imutáveis, mas só daquelas que eram abstraídas dos corpos físicos e, por isso, não tinham existência separada, tais como números e figuras geométricas; e C) a física,52 que tratava das coisas que não somente desfrutavam de uma existência autônoma, mas eram também mutáveis e tinham uma fonte inata de movimento e descanso, e, portanto, aplicável tanto a corpos animados quanto inanimados. A ciência suprema entre todas, segundo Aristóteles, era aquela que tratava das “substâncias imutáveis”, divinas, e consistia no estudo teórico dos primeiros princípios e causas das coisas.53 51 52 53 “O seu nome”, explica Ross, “deve-se ao fato de a primeira dessas substâncias puras ser Deus”. In: ROSS, Sir David. Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987. p. 71. Do grego, physiké, que se traduz como “ciência natural”. “Therefore, if all thought is either practical or productive or theoretical [...]. There must, then, be three theoretical philosophies, mathematics, natural science, and theology, since it is obvious that if the divine is present anywhere, it is present in things of this sort. And the highest science must deal with the highest genus, so that the theoretical sciences are superior to the other sciences, and this to the other theoretical 235 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O objetivo da investigação científica era servir de instrumento para a sistematização do conhecimento de cada matéria. Partindo dessa concepção, Aristóteles percorria um longo caminho no qual tentava dar conta de uma visão do mundo. Assim como a teologia era a ciência superior entre as formas de investigação teóricas, no ramo das ciências práticas esse papel cabia ao conhecimento da política, a ciência suprema entre todas, que subordinava as demais. Essa ciência prática aristotélica também se subdividia em três partes: o estudo da ética ou das questões morais pensadas a partir do indivíduo; a economia, que dizia respeito à administração da ordem doméstica; e a política propriamente dita, ou o estudo da organização civil dos grupos humanos, que supunha a ética, já que a justiça coletiva emergia da qualidade moral da ações individuais. 2. Ética e a constituição do justo A ética, dizia o Filósofo, se ocupava das formas de excelência moral, as quais eram produzidas e destruídas pelas mesmas causas e pelos mesmos meios: pelos atos que praticamos em nossas relações com os homens nos tornamos justos ou injustos; pelo que fazemos em presença do perigo e pelo hábito do medo ou da ousadia, nos tornamos valentes ou covardes. [...] Numa palavra: as diferenças de caráter nascem de atividades semelhantes. É preciso, pois, atentar para a qualidade sciences. [...] if there is no substance other than those which are formed by nature, natural science will be the first science; but if there is an immovable substance, the science of this must be prior and must be first philosophy, and universal in this way, because it is first. And it will belong to this to consider being qua being – both what it is and the attributes which belong to it qua being.” In: ARISTOTLE. Methaphisics (VI:1025b19-1026a33). Trad. de W. D. Ross. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 1619. 236 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO dos atos que praticamos, porquanto da sua diferença se pode aquilatar a diferença de caracteres.54 Por essa razão, Aristóteles podia afirmar que a investigação no campo da ética pretendia conhecer como os homens se tornavam bons e, conseqüentemente, justos. Pois as ações determinavam a natureza das disposições morais criadas. O princípio geral a ser presumido era o de que se agiria segundo uma regra justa. Sua intenção era, portanto, estabelecer uma teoria da conduta que se detivesse nas regras gerais, e não nos casos particulares – que, como ele avisava, variavam de acordo com as circunstâncias em que ocorriam. Um médico, exemplificava, devia tratar cada paciente de acordo com as suas necessidades e condições, não podendo prescrever sempre o mesmo tratamento para todos. Da mesma forma que o vigor e a saúde, a excelência moral era constituída de modo a ser destruída pelo excesso e pela deficiência: “a temperança e a coragem, pois, são destruídas pelo excesso e pela falta, e preservadas pela mediana [mesotes]” (Ética, 1104b). No meio-termo, portanto, repousava a suprema virtude. Na Ética,55 portanto, a questão do bem era tratada do ponto de vista do indivíduo: consistia numa discussão sobre o tipo de caráter – aretê56 – que os homens “bons” deveriam cultivar a fim de atingir o “bem viver” – eudaimonia.57 54 55 56 57 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de L. Vallandro e G. Bornheim, 1103b. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 267-8. Do grego, ethika, que quer dizer “questões relacionadas ao caráter”. Por consistir num conhecimento prático, assim como a política, a finalidade da ética era afetar a ação. Em grego, aretê, significa algo como “bondade”, “excelência” ou ainda “virtude”. Optou-se aqui pela tradução de Barnes, que utiliza o conceito “excelência” para designá-la. Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 130 et seq. A palavra grega eudaimonia, geralmente traduzida por “felicidade”, é mais bem expressa pela idéia de “atividade em concordância com a excelência”, “boa vida” ou ainda “bem-estar”, “bem viver”. 237 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A excelência moral, continuava, relaciona-se com o deleite e com o sofrimento: “é por causa do prazer que praticamos más ações, e por causa da dor que nos abstemos de ações nobres” (1104b). E explicava adiante: “Essa é também a razão por que tanto a virtude como a ciência política giram sempre em torno de prazeres e dores, de vez que o homem que lhes der bom uso será bom e o que lhes der mau uso será mau” (1105a). Como o bem constituía o fim de toda ação e indagação, ele consistia no fim último ao qual todas as coisas, humanas ou naturais, visavam. Este bem, escrevia ele, era o objeto da ciência “mais imperativa e predominante sobre tudo”, a ciência da política.58 A Ética – ou o estudo de como um único homem atingia a finalidade suprema da sua existência, o bem – era anunciada portanto como uma espécie de preâmbulo ao estudo de como uma ou várias cidades atingiam esse mesmo fim, isto é, o estudo da política. O mais alto bem que poderia levar à ação era, portanto, segundo Aristóteles, a eudaimonia, ou o “bem viver”, comumente identificada – até mesmo pelas pessoas mais qualificadas – à felicidade. As divergências, explicava, se davam em torno do que realmente seria esse “bem viver”, para uns o prazer ou a riqueza, para outros a saúde ou as honrarias.59 A 58 59 “Ora, como a política utiliza as demais ciências e, por outro lado, legisla sobre o que devemos e sobre o que não devemos fazer, a finalidade dessa ciência deve abranger a das outras, de modo que essa finalidade será o bem humano. Com efeito, ainda que tal fim seja o mesmo tanto para o indivíduo como para o Estado, o deste último parece ser algo maior e mais completo, quer a atingir, quer a preservar. Embora valha bem a pena atingir esse fim para um indivíduo só, é mais belo e mais divino alcançálo para uma nação ou para as cidades-Estados. Tais são, por conseguinte, os fins visados pela nossa investigação, pois que isso pertence à ciência política numa das acepções do termo” (Ética, 1094b – grifos meus). Aristóteles admitia que virtudes como honra, prazer, razão e outras eram escolhidas porque se acreditava poder atingir por meio delas a felicidade (eudaimonia), o único fim supremo da ação. Eudaimonia sig nificava a boa vida e, como tal, era composta, e não simples. Honra, 238 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO virtude por meio da qual se podia atingir esse fim era a aretê, a excelência moral. Ser eudaimon equivalia a florescer, fazer da própria vida um êxito. Sua filosofia ética se traduzia na busca dessa eudaimonia. Pois, assegurava Aristóteles, todos desejavam florescer ou fazer as coisas bem. E todas as nossas ações, na medida em que eram racionais, dirigiam-se a essa finalidade última.60 Por essa razão ele podia dizer que a eudaimonia constituía uma “certa atividade da alma em concordância com a excelência” (1099b). O que se dizia do indivíduo, explicava o Filósofo, condizia com tudo o que valia a respeito da cidade. Isto é, “que o objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que os cidadãos sejam bons e capazes de ações nobres” (1099b). O florescimento humano, portanto, ou fazer as coisas certas de um modo excelente ou bom, requeria o exercício de certas faculdades que definiam a vida.61 Assim, um homem que as exercia ou cultivava mal não estava fazendo de sua vida um êxito. 60 61 prazer e o resto podiam ser partes da boa vida porque constituíam valores intrínsecos. Para conduzir uma vida feliz, era necessário reconhecer tanto as coisas que tinham valor quanto unificar sua busca num todo coerente. Isso requeria o exercício do que Aristóteles chamava de phronesis, “sabedoria prática”, isto é, de uma “disposição racional para agir em relação aos bens humanos” (1097a-b). Cf. BARNES, J. Introdução. In: ARISTOTLE. The politics. The politics and the constitution of Athens. Ed. S. Everson, Cambridge: University Press, 1996. p. xxviii-xxix. Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 131. Aristóteles distinguia entre duas excelências: 1) a do caráter, entre as quais se encontravam as chamadas virtudes morais (como a generosidade e a equanimidade), e também aquelas disposições a respeito de si mesmo (como um grau adequado de ostentação e de engenho); e 2) a do intelecto, que incluía coisas como o conhecimento, o bom juízo, a “sabedoria prática”. Esta requeria experiência e tempo e devia tanto seu nascimento quanto crescimento à instrução. Já a primeira, a excelência moral, era produto do hábito e nada tinha que ver com a natureza: a natureza nos dava apenas a capacidade de recebê-la; mas essa capacidade se aperfeiçoava com o hábito, tal como as artes (cf. Ética, 1103a). 239 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO “Isto é confirmado pelo que acontece nos Estados: os legisladores tornam bons os cidadãos por meio de hábitos que lhes incutem. Esse é o propósito de todo legislador, e quem não logra tal desiderato falha no desempenho de sua missão. Nisso, precisamente, reside a diferença entre as boas e as más constituições” (1103b). A excelência moral, portanto, que se caracterizava por constituir um meio-termo entre duas deficiências morais – o excesso e a falta – e visava às situações intermediárias nas emoções e nas ações, só podia ser atingida no meio-termo, o qual, admitia ele, era muito difícil se alcançar. Para atingi-lo, era preciso primeiro evitar seu extremo mais contrário, pois, de dois extremos, dizia, um induzia mais ao erro e outro menos. Se não era possível atingir o objetivo mais desejável, devia-se escolher então o menor dos males. E aconselhava: “em todas as coisas o agradável e o prazer é aquilo de que mais devemos defender-nos, pois não podemos julgá-lo com imparcialidade. A atitude a tomar em face do prazer é, portanto, a dos anciãos do povo para com Helena [...]; porque, se não dermos ouvidos ao prazer, corremos menos perigo de errar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremos mais probabilidades de acertar com o meio-termo” (1109b). O estudo desse meio-termo, quando aplicado às noções de justiça e injustiça, constituía peça fundamental para a investigação da ciência que tratava a política. A palavra injusto, segundo ele, aplicava-se tanto às pessoas que infringiam a lei quanto àquelas iníquas e ambiciosas, que desejavam mais do que aquilo a que tinham direito. Por oposição, as pessoas que cumpriam a lei e aquelas que eram corretas deviam ser consideradas justas.62 De onde concluía que todos os atos conformes à lei eram, num certo sentido, justos. Pois as leis, em seus preceitos, visavam ao interesse comum 62 “O justo é, portanto”, escrevia, “o respeitador da lei e o probo, e o injusto é o homem sem lei e ímprobo” (1129a). 240 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO de todas as pessoas.63 Por isso, devia-se nomear justos aqueles atos que tendiam “a produzir e a preservar, para a sociedade política, a felicidade e os elementos que a compõem” (1129b). A lei era aquilo que determinava como se devia agir, impondo a prática de certos atos e restringindo outros. Essa concepção lhe permitia dizer que a justiça era a virtude [aretê] completa no pleno sentido do termo por ser o exercício atual da virtude completa. É completa porque aquele que a possui pode exercer sua virtude não só sobre si mesmo, mas também sobre o seu próximo. (1130a) E era no exercício do poder que o homem se revelava, constatava o Filósofo, “pois necessariamente quem governa está em relação com outros homens e é um membro da sociedade” (1130a). Pela mesma razão, entre todas as formas de excelência moral, somente a justiça constituía o “bem dos outros”. Excelência moral e justiça, portanto, podiam ser tratadas como equivalentes, embora tivessem essências diferentes.64 A injustiça, por sua vez, associava-se geralmente ao exercício de uma deficiência moral em relação ao próximo. Justiça, definia Aristóteles, consistia naquela qualidade que nos permitia dizer estar uma pessoa predisposta a fazer, por sua própria escolha, aquilo que fosse justo.65 No sentido político, o justo se apresentava entre 63 64 65 U. Charpa chama a atenção para um ponto interessante: ao comentar o papel da ação justa em Aristóteles, o autor observa que ela não tinha seu fundamento nem nos costumes dos ancestrais nem em qualquer base divina: era um produto exclusivamente humano. Pois caracterizava-se, segundo o Filósofo, pelo fato de permitir uma reconstrução argumentativa do que deveria ser o “bom direito”, o justo de cada pessoa. Cf. CHARPA, Ulrich. Aristoteles. Frankfurt am Main: Campus Verlag, 1991. p. 96. “Aquilo que, em relação ao nosso próximo, é justiça, como uma determinada disposição de caráter e em si mesmo, é virtude” (1130a). “E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo 241 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO homens que vivem em comum tendo em vista a auto-suficiência, homens que são livres e iguais, quer proporcionalmente, quer aritmeticamente, de modo que entre os que não preenchem esta condição não existe justiça política [...]. Com efeito, a justiça existe apenas entre homens cujas relações mútuas são governadas pela lei; e a lei existe para os homens entre os quais há injustiça, pois a justiça legal é a discriminação do justo e do injusto. (1134a) Ao governante cabia, portanto, na qualidade de guardião da justiça comum, agir de acordo com as leis.66 Por estarem consubstanciadas na lei, a justiça e a injustiça existiam entre as pessoas cujas relações eram naturalmente regidas por meio da lei. Quer dizer, pessoas que alternadamente participavam do governo e eram governadas. Uma parte da justiça política era natural, outra legal: “natural aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida” (1134b7). Ou seja, havia coisas que eram tais por natureza e outras que não eram naturais, e sim legais e convencionais. Agir justamente significava escolher voluntariamente o justo, com base na excelência moral. 66 e um outro, seja entre outros dois, não de maneira a dar mais do que convém a si mesmo e menos ao seu próximo (e inversamente no relativo ao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo com a proporção; e da mesma forma quando se trata de distribuir entre duas outras pessoas. A injustiça, por outro lado, guarda uma relação semelhante com o injusto, que é excesso e deficiência, contrários à proporção, do útil ou do nocivo” (1134a). E completava adiante: “Aí está por que não permitimos que um homem governe, mas o princípio racional [a lei], pois que um homem o faz no seu próprio interesse e converte-se num tirano. O magistrado, por outro lado, é um protetor da justiça e, por conseguinte, também da igualdade. E visto supor-se que ele não possua mais do que a sua parte, se é justo [...], ele deve, portanto, ser recompensado, e sua recompensa é a honra e o privilégio; mas aqueles que não se contentam com essas coisas tornam-se tiranos” (1134a-b). 242 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO A vida feliz, dizia Aristóteles, era aquela que estava em conformidade com a aretê e requeria diligência. O caráter de uma pessoa, portanto, devia estar previamente provido de alguma afinidade com a excelência moral, amando o nobre e detestando o aviltante. Assim, para ser boa, uma pessoa devia ser acostumada e exercitada, durante toda vida, em atividades concordantes com a excelência moral, abstendo-se de praticar ações más.67 Esse objetivo podia ser alcançado sempre que as pessoas vivessem de acordo com a reta razão num sistema correto dotado de poder coercitivo. Era a lei, e não a autoridade paterna, esclarecia Aristóteles, que tinha o poder de compulsão, constituindo ao mesmo tempo uma norma originada de um tipo de sabedoria e razão prática. Por isso, o mais correto era tratar questões de educação e de trabalho como tarefas públicas (1180a). As pessoas executariam melhor essa tarefa, explicava, se se tornassem capazes de legislar. Porque o controle público é evidentemente exercido pelas leis, e o bom controle por boas leis. Que sejam escritas ou não, parece não vir ao caso, nem tampouco que sejam leis provendo à educação de indivíduos ou de grupos – assim como isso também não importa no caso da música, da ginástica e de outras ocupações semelhantes. (1180b) Era por isso que estudar como se constituíam as leis, e sobretudo as boas leis, os tipos de influências que construíam 67 “[...] pois levar uma vida temperante e esforçada não seduz a maioria das pessoas, especialmente quando são jovens. Por essa razão, tanto a maneira de criá-los como as suas ocupações deveriam ser fixadas pela lei; pois essas coisas deixam de ser penosas quando se tornaram habituais. Mas não basta, certamente, que recebam a criação e os cuidados adequados quando são jovens; já que mesmo em adultos devem praticálas e estar habituados a elas, precisamos de leis que cubram também essa idade e, de modo geral, a vida inteira; porque a maioria das pessoas obedece mais à necessidade do que aos argumentos, e aos castigos mais do que ao sentimento nobre” (1180a). 243 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO e destruíam os Estados, as boas e as más constituições e suas causas etc., era imprescindível para a construção da boa polis e da boa vida – e tarefa do estudo da arte e ciência da política.68 A justiça, fundamento de toda vida coletiva, por constituir uma relação, não podia ser praticada por indivíduos isoladamente. Tampouco podiam as excelências humanas ser exercidas por eremitas. O homem, esclarecia Aristóteles, era por natureza um animal civil (zoon politikon).69 Essa afirmação derivava de sua teoria da natureza humana, segundo a qual os animais propriamente sociais eram todos aqueles que exerciam alguma atividade particular comum, como as abelhas, os homens, as formigas etc. Ou seja, não bastava serem animais gregários: era preciso que repartissem também um objetivo comum. E a particularidade dos seres humanos residia no fato de, diferentemente dos outros animais sociais e gregários, discernirem entre o bem e o mal, o justo e o injusto. Participar dessas coisas era o que caracterizava “uma família e um Estado”. Comunidade e Estado não eram ligações artificiais impostas ao homem natural: constituíam manifestações da própria natureza humana. E isso era o que ele pretendia demonstrar na Política. 3. Da primazia do bem comum: a especificidade da política Mas, afinal, o que significava conhecer a política? Alcançar a compreensão de algo, dizia Aristóteles, era ser ca68 69 “Após estudar essas coisas”, escrevia o Filósofo, “teremos uma perspectiva mais ampla, dentro da qual talvez possamos distinguir qual é a melhor constituição, como deve ser ordenada cada uma e que leis e costumes lhe convém utilizar a fim de ser a melhor possível” (1181b). O termo abrangia, em grego, tanto a dimensão propriamente política quanto a social. 244 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO paz de fornecer certas explicações básicas para o objeto em questão: qual era sua forma, de que era feito e para que servia. No caso de um Estado, definia ele, sua forma era a constituição de que dispunha; sua matéria, os seus cidadãos; e seu propósito, o bem-estar destes. A investigação política, entretanto, diferentemente da física, por exemplo, não constituía apenas uma “ciência” (episteme), mas também uma “arte” (techne).70 Isto é, embora tivesse princípios gerais de funcionamento, tinha também de ser praticada, como a música, pois somente a experiência – ou a sabedoria prática – podia fornecer “obras de arte” como as boas leis. Assim, o pensador político devia considerar não apenas o melhor governo e de que tipo ele devia ser para mais concordar com as aspirações de seus cidadãos, mas precisava saber também qual seria o melhor tipo de Estado em circunstâncias particulares, quando estas não eram ideais. O objetivo do estudioso da política, portanto, era produzir um tipo de Estado que tornasse seus membros capazes de alcançar a eudaimonia. Para isso, precisava conhecer como os Estados funcionavam e, em particular, as causas de sua geração, preservação e destruição. Sem esse conhecimento, ele não seria capaz de produzir estruturas constitucionais que permitissem a um Estado criado sobreviver. Para dar conta desse programa de pesquisa, Aristóteles explicava que toda polis71 era uma espécie de comunidade. Como toda comuni70 71 Cf. ARISTÓTELES. Ética (1180b-1181a). Na Ética, esclarece Barnes, uma techne era definida como uma “disposição produtiva envolvendo um resultado verdadeiro” (1140a10). Isto é, adquirir a arte política equivalia a obter uma disposição para produzir algo. A aquisição dessa disposição era o resultado do processo de entendimento da relevância do objeto, razão pela qual uma arte envolvia a posse de um resultado verdadeiro. O cientista político, portanto, precisava dar conta de seu objeto, o Estado, conhecer seu significado e sobretudo seu propósito. Cf. BARNES, op. cit., 1996, p. xxxii. O termo “polis” designava a cidade-Estado grega, que se caracterizava como uma unidade política autônoma e auto-suficiente, voltada para a 245 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO dade se formava com vistas a algum bem – fim de todas as ações praticadas pelos seres humanos –, então a mais importante delas, que incluía as demais, era a polis ou a comunidade política. Para examinar como se davam a relação de mando e os elementos que compunham a polis, Aristóteles dizia que era preciso primeiro decompor o conjunto até chegar a seus elementos mais simples.72 (1252a), critério fundante de seu método explicativo. Assim procedendo, concluía que os elementos básicos da menor unidade existente, a família, eram o senhor, a mulher e o escravo.73 A comunidade de várias famílias formava um povoado, constituído para a satisfação de algo mais do que as simples necessidades diárias. À comunidade que se constituía a partir de diversos povoados e 72 73 satisfação das necessidades e interesses dos seus membros, os cidadãos. Muitos são os vocábulos utilizados para expressá-la: é freqüente encontrar a noção traduzida por “cidade”, “Estado”, “cidade-Estado”, “comunidade política”, entre outras. Neste texto, a palavra grega será mantida. Onde houver citações de outros autores, será mantido o vocábulo empregado pelo tradutor para designá-la. As citações da Política aqui constantes foram retiradas de duas edições, uma brasileira: ARISTÓTELES. Política. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1988; e outra inglesa: ARISTOTLE. The politics. Ed. S. Everson. Cambridge: University Press, 1996. A indicação das passagens, contudo, continuará obedecendo ao sistema internacional, constante em quase todas as traduções contemporâneas. Como unidades naturais, o senhor e a mulher se uniam para a perpetuação da espécie. E da união entre um comandante e um comandado naturais (senhor e escravo) – união que visava à preservação recíproca – resultava a satisfação das necessidades diárias de uma casa. De onde decorria que todos os membros dessa unidade básica compartilhavam dos mesmos interesses (1252b). A função do chefe da família se desmembrava nas partes correspondentes aos elementos que a formavam: a relação matrimonial, a de paternidade e a de posse. Os bens eram um dos elementos constituintes da família, e “a arte de enriquecer” fazia parte da função do chefe, já que os bens, entre os quais estavam os escravos, constituíam um instrumento para assegurar a vida (1254a). 246 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO se unia num único grupo completo grande o bastante para ser auto-suficiente, ele chamava polis. Além de assegurar a vida de seus membros, a polis era constituída para lhes proporcionar uma vida melhor – a “boa vida” ou eudaimonia – e constituía o estágio final do desenvolvimento natural da unidade primeira, a família (1253a). Como se podia afirmar a naturalidade da polis? O ser humano, explicava o Filósofo, era um animal naturalmente civil, a quem a natureza, que nada fazia em vão, concedeu o dom da fala. E um homem que, por alguma razão, não fizesse parte da polis, seria um monstro, dizia, ou um super-homem acima da humanidade. Pois o homem era um animal naturalmente gregário. Em comparação com outros animais, sua característica específica residia no fato de que apenas ele tinha o senso do bem e do mal, do justo e do injusto, e outras qualidades morais (1252b-1253a). A associação de seres viventes com tais sentimentos constituía unidades comuns, como a família e a polis.74 A justiça era, portanto, o laço que unia os homens em uma polis, pois a administração da justiça, isto é, a determinação do justo, constituía o princípio ordenador de uma sociedade política (1253a35). Em todas as coisas compostas, continuava, sempre haveria alguém para mandar e outro para obedecer. Essa particularidade dos seres humanos decorria da filosofia natural como um todo, pois, “mesmo em coisas que não têm vida, há um princípio dominante, como no caso da harmonia musical” (1254a). Um ser vivo, prosseguia, era constituído de alma e corpo: a primeira era por natureza dominante; o último, dominado. Mas era apenas no homem, que possuía o mais perfeito estado de ambos, que se podia distinguir a natureza do comando do senhor e o do legislador. Em todas as 74 Mas avisava: quando destituído de excelência, isto é, das qualidades morais que produziam o bem, o homem tornava-se o mais impiedoso e selvagem dos animais (1253a15). 247 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO criaturas viventes era observável uma regra despótica e outra constitucional: assim, a alma governava o corpo com uma regra despótica, enquanto o intelecto regia os apetites por meio de uma regra constitucional e real (1254b). Aquele que fosse suscetível de pertencer a outrem era escravo por natureza. Por isso, só participava da razão até o ponto de apreender essa participação, mas não ia além. A autoridade de um senhor sobre os escravos, portanto, não era comparável à autoridade do governante sobre seus súditos. Pois nem todas as formas de mando eram iguais: havia um tipo de autoridade aplicável sobre os homens naturalmente livres, que diferia daquela aplicável aos escravos.75 A autoridade do chefe de família era de tipo patriarcal, já que cada família era governada por um chefe. Já a autoridade especificamente política, aquela característica da polis, era exercida sobre homens livres e iguais (1255b). Uma das marcas distintivas dessa comunidade política, que era mais do que uma coleção de aldeias, consistia no fato de dispor de uma constituição resultante de deliberação e escolha. Nesse sentido, era mais um artifício do que uma natureza. Mesmo sendo matéria de deliberação, argumentava o Filósofo, o Estado não deixava de ser natural, pois constituía o objetivo último (telos) do processo de desenvolvimento social, cuja raiz era natural – assim como o fim da larva era tornar-se borboleta. Ou seja, o Estado plenamente constituído era natural. Mas devia ser mantido pelos homens, isto é, 75 Mas havia, por natureza, vários tipos de comandantes e comandados, já que o homem livre comandava o escravo diferentemente do modo como comandava a fêmea e a criança. Todos possuíam as várias partes da alma, mas de formas diferentes: o escravo não detinha a faculdade da deliberação; a mulher a tinha, mas sem autoridade plena; e a criança também, mas ainda em formação. “Deve-se necessariamente supor que o mesmo ocorra quanto às excelências [ou qualidades morais]: todos devem partilhá-las, mas apenas de maneira e no nível exigido de cada um para o cumprimento de sua função” (1260a). 248 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO por cidadãos que escolhiam e deliberavam, de modo a preservar ao máximo o fim para o qual existia, o bem da comunidade. Sua degeneração ou corrupção seria mais ou menos rápida de acordo com a capacidade de seus membros de cultivar a forma constitucional mais adequada ao seu Estado.76 O que determinava os atributos de uma polis era, portanto, a forma de sua constituição (1276b). Como essa polis – objeto da atividade do estadista ou legislador – era uma espécie de reunião de cidadãos sob um mesmo governo, escrevia Aristóteles, qualquer alteração na forma desse governo modificava também a configuração de sua estrutura. Os cidadãos podiam diferir entre si, mas repartiam, todos, uma preocupação: a segurança da comunidade que habitavam. E se a comunidade equivalia à sua constituição, então a excelência do cidadão deveria relacionar-se à excelência da constituição da qual ele participava. Como havia várias formas de governo (ou constituições), não podia existir apenas uma excelência que fosse a única perfeita de um bom cidadão: a bondade do cidadão não era uma só, pois a polis era constituída de pessoas dissímiles (1277a).77 76 77 A natureza de uma substância era para o Filósofo um princípio interno de mudança. Por isso ele podia dizer que o Estado era natural: porque constituía o fim do processo de desenvolvimento social. Aqui ele estava apenas aplicando sua explicação geral da transformação natural à teoria do Estado. A idéia de fim era teleológica: a transformação natural não seria propriamente explicada a menos que seu propósito se tornasse claro. O telos não era o ponto no qual o processo de crescimento terminava, e sim era o ponto que justificava todo o processo. Cf. BARNES, op. cit., 1996, p. xxi-xxiii. Como toda polis era composta de uma multidão de cidadãos (em número suficiente para assegurar sua independência), era preciso investigar primeiro a natureza do cidadão, e o tipo de pessoa que devia ser assim denominada. O cidadão no sentido estrito, afirmava, tinha como característica especial dividir a administração da justiça e o exercício das funções públicas. Isto é, participava das funções deliberativa e judicial numa comunidade. Mas essa definição de cidadão, alertava Aristóteles, 249 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Se havia diversos tipos de cidadãos, era lógico que existissem várias formas de governo. Uma constituição era definida pelo ordenamento dos magistrados de uma cidade – isto é, das diversas funções de governo –, especialmente do maior deles. O governo exercia em toda parte a supremacia na polis, e a constituição era o próprio governo. Nas democracias, por exemplo, dizia ele, o povo detinha o poder supremo.78 Já numa oligarquia apenas uns poucos e numa monarquia apenas um homem ou uma família. Daí serem as formas constitucionais diversas (1278a-b). A forma de governo de uma polis era definida, portanto, segundo o tipo de ordenamento do poder: se era exercido por um (monarquia), por poucos (aristocracia) ou por uma multidão (governo constitucional).79 Por isso, podia afirmar que constituição e governo eram dois vocábulos que tinham o mesmo significado. Os homens eram, por natureza, animais políticos e tendiam à vida em sociedade por repartirem interesses comuns, os quais permitiam a cada um deles alcançar um certo nível de bem-estar. Esse era certamente “o fim principal tanto dos 78 79 aplicava-se especificamente a uma politéia. O cidadão seria diferente sob cada forma particular de constituição da polis (1275a-b). A melhor forma de governo, argumentava Aristóteles, parecia ser aquela na qual a maioria dos cidadãos exercia o poder supremo. Pois, embora os integrantes da maioria pudessem, isoladamente, não ser bons, quando reunidos eram em geral melhores do que os poucos individualmente bons. Ou seja, porque cada indivíduo, entre os muitos, “tem uma porção de excelência e de sabedoria prática, e quando eles se reúnem é como se de alguma maneira se tornassem um só homem, o qual tem muitos pés, e mãos, e sentidos; assim também ocorre em relação ao seu caráter [ou faculdades morais] e pensamento [ou intelecto]”. Mas nem sempre a superioridade coletiva da maioria excedia em excelência os poucos homens: por isso, havia várias formas de governo que visavam ao bem comum (1281b). As perversões dessas formas, prosseguia, eram respectivamente a tirania (que visava apenas ao interesse do monarca), a oligarquia (que visava ao interesse dos ricos) e a democracia (que perseguia somente o interesse dos pobres) (1279a-b). 250 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO indivíduos quanto do Estado” (1278b). Uma polis, portanto, era formada não apenas para assegurar a vida, mas também para proporcionar a boa vida (eudaimonia). Por isso, ela constituía mais do que uma mera reunião de pessoas num lugar comum, com o objetivo de evitar ofensas recíprocas e trocar produtos. Embora fossem pré-requisitos para a sua existência, esses fins não bastavam para constituir uma polis, que devia ser perfeita e auto-suficiente. Suas instituições eram os instrumentos que a conduziam para seu fim. E, por ser essa maneira de viver feliz e enobrecedora, a sociedade política devia existir para a prática de ações nobres (1281a). Tanto as instituições quanto as ações nobres requeriam definições do “justo e do injusto”. Embora a capacidade para adquirir esse senso fosse de fato natural e inata, explicava o Filósofo, conferir-lhe efetividade requeria a participação num agrupamento cujo “princípio fundamental de ordenação” era a administração da justiça. Apenas os seres humanos, assegurava ele, partilhavam tanto as relações sociais quanto a habilidade para regular seu comportamento segundo a virtude. O melhor governo, portanto, seria aquele cujos membros estivessem mais bem equipados para saber como preencher o propósito do Estado: permitir aos cidadãos alcançar a eudaimonia. Mas, quer o governo estivesse nas mãos de uma pessoa, de poucas ou muitas, sua função era sempre a mesma. O crucial não era quem governava, mas que se governasse de maneira justa. Isto é, de acordo com o interesse comum. Para assegurar a justiça, esclarecia o Filósofo, os homens procuravam um instrumento: a lei (1287b). E as leis, que regulavam a vida de uma polis, seriam boas ou más, justas ou injustas, segundo a forma do governo. As leis tinham de ser adaptadas às diferentes constituições, de acordo com a natureza de cada uma delas.80 Quando isso acontecia, as for80 “Um povo capaz por natureza de produzir uma estirpe excelente nas qualidades necessárias ao comando político é um povo feito para a mo251 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mas verdadeiras de governo deveriam necessariamente ter leis justas, e as formas degeneradas de governo teriam leis injustas. Uma constituição era pervertida quando os governantes legislavam mais em seu próprio interesse do que no interesse dos cidadãos como um todo, o que constituía injustiça. Em todas as ciências e artes, continuava ele, o fim era um bem; e o bem supremo e mais elevado entre todos era a ciência política,81 cujo fim era a justiça comum – ou, dito de outro modo, o interesse comum (1282b). Ou seja, segundo Aristóteles, as comunidades políticas apareciam sob formas diferentes. A polis, especificamente, constituía uma reunião de cidadãos. E um cidadão se definia melhor “por sua participação nas funções judiciais e encargos políticos”. Os assuntos de um Estado deviam, sempre que possível, ser geridos diretamente pelos cidadãos, cada qual membro da assembléia ou corpo deliberativo da nação. 81 narquia; um povo cujos componentes se sujeitam, como homens livres, a ser governados por homens cujas qualidades os credenciam para o comando político é feito para a aristocracia, e o povo feito para o governo constitucional é aquele entre cujos componentes existe uma maioria combativa, constituída de homens capazes de mandar e obedecer alternadamente sob uma lei que distribui as funções de governo entre os homens de posses de acordo com seus méritos” (1288a). “It would seem to belong to the most authoritative art and that which is most truly the master art. And politics appears to be of this nature; for it is this that ordains which of the sciences should be studied in a state, and which each class of citizens should learn and up to what point they should learn them; and we see even the most highly esteemed of capacities to fall under this, e.g. strategy, economics, rhetoric; now, since politics uses the rest of the sciences, and since, again, it legislates as to what we are to do and what we are to abstain from, the end of this science must include those of the others, so that this end must be the good for man. For even if the end is the same for a single man and for a state, that of the state seems at all events something greater and more complete both to attain and to preserve; for though it is worth while to attain the end merely for one man, it is finer and more godlike to attain it for a nation or for citystates. These, then, are the ends at which our inquiry, being concerned with politics, aims” (1094a18-1094b11). 252 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO O poder político detido por um cidadão variava de acordo com o tipo de constituição de que desfrutava a sua cidade: as diferentes constituições confiavam a pessoas ou instituições diversas a autoridade de legislar e de determinar a política de governo. Uma polis, qualquer que fosse a sua constituição, devia ser auto-suficiente e conseguir alcançar o objetivo para o qual existia: a “boa vida”. A meta do Estado, o bem viver, identificava-se portanto à eudaimonia, a meta dos indivíduos.82 Esse objetivo da polis vinculava-se a outro ideal elevado: a liberdade, “princípio fundamental das constituições”, pois só um indivíduo livre era capaz de escolher e deliberar. Essa liberdade, contudo, era limitada aos cidadãos, categoria que excluía mulheres, crianças e escravos. O Estado devia regular de diversas formas a vida de seus membros, já que “todos os cidadãos pertenciam ao Estado”.83 Como cabia ao Estado fomentar a “boa vida”, este podia, com o objetivo de melhorar a condição dos homens, intervir devidamente em qualquer aspecto da existência humana e obrigar os seus súditos a tudo que os tornasse “felizes”. O bom governante, portanto, tinha de ser capaz de respeitar as circunstâncias particulares de seu povo, sem ignorar as diversas constituições nem as possíveis combinações entre elas. O mesmo discernimento político, dizia, iria permitir a um homem conhecer as melhores leis, e aquelas apropriadas às diferentes formas de governo. Pois as leis eram – e tinham de ser – moldadas com vistas à constituição, e não o 82 83 As cidades-Estados, que eram entidades naturais, tinham, como outros objetos da natureza, uma meta ou fim: a teleologia era um traço não apenas da filosofia natural de Aristóteles, mas também de sua teoria política. Cf. BARNES, op. cit., 1987, p. 135-7. “Neither must we suppose that anyone of the citizens belongs to himself, for they all belong to the state, and are each of them a part of the state, and the care of each part is inseparable from the care of the whole” (1337a30). 253 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO contrário. A forma de governo era a organização das funções dentro de uma polis e determinava o que devia ser o corpo governante e qual o fim de cada comunidade.84 As leis, contudo, alertava, não deviam ser confundidas com os princípios da constituição: elas eram as regras segundo as quais os magistrados deviam administrar a polis e proceder contra os ofensores. O legislador devia, portanto, conhecer as diferentes espécies de leis e formas de governo (1289a).85 As formas “puras” de governo, definia o Filósofo, eram: a monarquia, a mais extraordinária de todas quando visava ao interesse comum, mas que passava a ser a pior entre todas quando degenerava em tirania; a aristocracia, que, quando corrompida em oligarquia, seguia-se à tirania em matéria de mau governo; e o governo constitucional, que, quando pervertido, apresentava o desvio mais moderado: a democracia (1289b). Partindo dessas formas puras, inúmeras formas mistas podiam ser construídas, combinando elementos variados. E a razão para a existência de várias formas constitucionais repousava na diversidade que compunha a polis, formada de camadas sociais diversas. Aristóteles localizava duas classes fundamentais numa comunidade política: ricos e pobres. As demais oscilavam entre esses dois pólos.86 A 84 85 86 E eram necessárias tantas formas constitucionais quantos eram os modos de ordenamento das funções numa comunidade política (1290a). Toda forma de governo era composta de três partes que deviam sempre ser conhecidas pelo bom legislador: a deliberação dos assuntos públicos; as funções públicas; e o poder judicial. O elemento deliberativo detinha autoridade em matéria de guerra e paz e de fazer e desfazer alianças; aprovava leis, infligia a morte, exilava, confiscava, elegia magistrados e auditava suas contas (1298a). Mas, de fato, as várias polis eram constituídas basicamente de oito partes: a massa dos agricultores, a classe dos artesãos, a comercial (que comprava e vendia), a dos trabalhadores braçais, a dos defensores da cidade na guerra (militares), aquela encarregada de administrar a justiça, a dos ricos (que eram contribuintes) e, por fim, a dos servidores públicos e dos administradores (1291a-b). 254 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO predominância de cada uma dessas partes era o que determinava a forma de governo. Depois de discutir detalhadamente algumas de suas variações, Aristóteles concluía que a tirania era a menos constitucional das formas de governo. E a mais devastadora entre as tiranias, especificava, era a monarquia absoluta, pois nela a lei se submetia à vontade do monarca e visava aos seus interesses particulares.87 Seguindo um princípio básico de sua filosofia natural, Aristóteles aplicava à política a tendência à virtude do meio-termo. A moderação, dizia ele, era geralmente tida como o melhor, pois na posição intermediária era mais fácil obedecer à razão do que nos extremos, nos quais se tendia ou à não-obediência ou ao governo despótico.88 Por isso, afirmava, uma polis composta de cidadãos de classe média era necessariamente mais bem constituída no que dizia respeito aos seus elementos (1295a-b).89 Embora a condição média fosse a mais desejável, conhecer a melhor forma de governo para uma determinada 87 88 89 “E a regra da lei, argumenta-se, é preferível àquela de qualquer indivíduo. Segundo o mesmo princípio, mesmo que fosse melhor ter certos indivíduos a governar, eles devem ser apenas nomeados guardiões e servidores da lei. Pois [...] é injusto dar autoridade a um único homem quando todos são iguais” (1287a). Os governantes, embora não precisassem sempre governar segundo as normas escritas, deviam estar imbuídos do princípio geral existente na lei. Pois a lei, diferentemente da alma humana, lembrava o Filósofo, não estava sujeita às paixões humanas, sendo-lhe por isso superior (1286b). Essa era também a classe de cidadãos mais segura, esclarecia, pois não cobiçavam, como os pobres, os bens alheios, nem eram objeto da cobiça de terceiros; e, dado que não tramavam contra outros, nem outros contra eles, passavam pela vida de maneira segura (1295b). A condição média da polis era claramente a melhor também por outra razão: onde a classe média era numerosa, dizia, havia menos probabilidade de existir facções e partidos. Também por isso as democracias eram mais seguras e duradouras do que as oligarquias. Pois tinham uma classe média mais numerosa e, com isso, uma maior porção do governo (1295b1296a). 255 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO polis, insistia Aristóteles, implicava decidir primeiro qual era a forma de vida mais desejável. Para chegar a um consenso sobre ela, argumentava, era preciso começar falando da felicidade. Todo homem feliz, dizia, possuía três tipos de bens: os exteriores, os do corpo e os da alma (1323a). Os homens adquiriam e preservavam os bens exteriores graças às suas excelências (ou qualidades morais). A felicidade, consistisse ela no prazer ou na excelência, ou em ambos, era mais comumente encontrada entre aqueles mais cultivados em suas mentes e em seu caráter, e que detinham somente uma porção moderada de bens exteriores (1323b). A felicidade de cada um era assim proporcional à sua excelência e sabedoria e à sua conduta moral e sensatez. Conseqüentemente, podia-se demonstrar que a polis feliz era aquela na qual os cidadãos agiam corretamente; e eles não podiam agir de modo reto sem executar ações corretas. E nem o indivíduo nem o Estado podiam agir corretamente sem excelência e sabedoria. Portanto, a melhor vida, tanto para os indivíduos quanto para a polis, era a vida da excelência, quando esta detinha bens externos o suficiente para a prática de ações (moralmente) boas (1324a). A felicidade da polis era assim a mesma de cada homem, pois, se os indivíduos eram virtuosos em razão de suas excelências, ou qualidades morais, também a cidade moralmente mais excelente seria a mais feliz (1324a). E o bom legislador, esclarecia, devia examinar como os Estados e os “tipos” de homens e comunidades podiam participar da boa vida e da felicidade a ser alcançada. Pois a felicidade, definia Aristóteles, como a política, era atividade. E as ações das pessoas justas e sábias conduziam à realização de muitas das coisas nobres. Por isso, se existia uma pessoa superior a nós em excelência e em capacidade, capaz de praticar as melhores ações, esta era a que se devia seguir e obedecer, desde que desfrutasse tanto de capacidade para a ação quanto de 256 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO excelência moral. Pois ser bem-sucedido constituía o objetivo da felicidade. E o sucesso era fundamentalmente uma atividade, uma forma de ação (1235b). Quais eram então as bases para a constituição de uma polis que estivesse em concordância com nossos desejos?, perguntava o Filósofo. E respondia: como outros artesãos, o estadista ou legislador também precisava ter os materias adequados à sua função. O primeiro desses materiais requeridos pelo estadista era a população: era preciso considerar qual devia ser o número e a característica dos cidadãos. Uma polis constituída de poucos habitantes não poderia ser autosuficiente; mas também não seria fácil dotá-la de um governo constitucional se fosse muito grande e numerosa. Pois a lei era ordem, e boa lei era boa ordem. Uma multidão muito numerosa não podia ser mantida em boa ordem (1326a). Uma polis, portanto, só passava a existir quando atingia um número suficientemente grande de habitantes para a realização da boa vida na comunidade política. Já as qualidades naturais da população de cidadãos, constatava o Filósofo, podiam ser de vários tipos, cabendo a cada qual formas diferentes de governo. Havia povos inteligentes e inventivos, mas que careciam de coragem, vivendo por isso escravizados, como os nativos da Ásia. Outros tinham excesso de coragem, mas lhes faltava inteligência e habilidade, como no caso dos povos dos lugares frios. Outros ainda, como os helênicos, participavam de ambas as características e, por isso, conservavam-se livres e tinham as melhores instituições políticas. Mas, quando comparados entre si, também os povos helênicos apresentavam certa diversidade. Aqueles povos que o legislador poderia conduzir mais facilmente à excelência deviam ser considerados tanto inteligentes quanto corajosos (1328a). As terras, continuava, deviam pertencer aos proprietários de armas e aos detentores do direito de tomar parte no 257 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO governo. Mas, embora a terra devesse ser propriedade privada, advogava Aristóteles, seu uso devia ser comum, organizado por meio de um consenso amistoso no qual nenhum cidadão fosse privado dos meios de subsistência. Para isso, as terras deviam ser divididas em duas partes: uma pública, para uso comum; e outra privada (1330a). Desse conjunto de atributos decorria que algumas características deviam ser preexistentes à formação de uma polis – como a população – e outras deviam ser supridas pelo legislador – como a distribuição da propriedade. Ou seja, a boa polis era produto tanto da ciência da política quanto de um certo acaso (1132a). Como o estadista tinha a tarefa de tornar os cidadãos aptos para a felicidade, era preciso que soubesse neles desenvolver aquelas qualidades morais que nos levavam a chamá-los de bons.90 Como a alma dos homens dividia-se numa parte racional e noutra irracional, explicava Aristóteles, o estadista devia legislar tendo isso em vista, e assim considerar as partes da alma e suas funções e, acima de tudo, o melhor e o fim.91 Por isso, a educação devia ser necessariamente uma só e a mesma para todos. E devia ser pública, não privada. Pois o aprendizado das coisas que eram de interesse comum devia ser igual para todos. Como o cuidado das partes era inseparável do cuidado do todo, a educa90 91 Três coisas tornavam os homens bons e excelentes: a natureza, pois nasciam com certas qualidades de corpo e alma; o hábito, que os guiava; e a razão, faculdade exclusiva dos seres humanos, a qual permitia distinguir o justo do injusto. A harmonização dessas três características proporcionava a felicidade (1332a). “O mesmo princípio se aplica aos modos de vida e à escolha das ocupações”, escrevia ele, “pois um homem deve ser capaz de dedicar-se aos negócios e à guerra, mas ainda mais capaz de viver em paz e no lazer; ele deve fazer o que é necessário e útil, mas deve preferir o ótimo. Este deve ser o escopo quanto à educação dos cidadãos, seja em sua infância, seja mais tarde, quando se torna imperativo instruí-los” (1333a-b). 258 CAP. 3 - A POLÍTICA EM TRANSFORMAÇÃO ção constituía um assunto de Estado e devia ser regulamentada por lei (1337a). Mas, antes de ter cidadãos deste ou daquele tipo, portanto, uma polis tinha de ser dotada de uma constituição. Isto é, tinha de ser unificada sob um governo. Pois ser um cidadão era ser um membro de alguma polis particular.92 A polis era, portanto, anterior aos seus cidadãos, do mesmo modo que “o todo precedia necessariamente a parte”. Esse raciocínio lhe permitia sustentar que o Estado era “anterior por natureza à família e ao indivíduo” (1253a18-19). E exatamente porque o Estado constituía aquele todo que precedia as partes, era uma sua tarefa, e não dos pais, cuidar da instrução das crianças. Pois a “negligência na educação fere a constituição” (1137a12). Ou seja, para além da naturalidade, a manutenção da comunidade política dependia também da ação reguladora. Essa era uma idéia que iria inspirar fortemente tanto os pensadores políticos medievais quanto os modernos. Nas palavras de Aristóteles: E por isso só podemos desejar ser nossa polis constituída de maneira tal que seja abençoada com os bens de que dispõe a fortuna (pois reconhecemos seu poder); excelência e bondade no Estado, entretanto, não constituem uma matéria do acaso, mas o resultado de conhecimento e escolha (1332a).93 92 93 Era isso, aliás, o que explicava que aquele que era cidadão num governo constitucional amiúde não podia ser considerado tal numa oligarquia (1275a3-5). Optou-se aqui pela tradução da versão inglesa. Consta da versão brasileira: “Por isto devemos desejar que a organização da cidade seja beneficiada com aquelas qualidades das quais a sorte é a senhora (reconhecemos que ela exerce este domínio); mas não é por obra da sorte que a cidade age de acordo com as qualidades morais, e sim da ciência e da premeditação” (1132a). 259 Era esse conjunto de idéias, sistematizadas de maneira extremamente coerente, que passava a estar agora integralmente disponível – e não mais apenas de forma indireta ou em fragmentos – aos pensadores ocidentais latinos. O material não apenas permitia a revisão e ordenação das leituras feitas ao longo de toda a Idade Média, mas também fornecia, como conjunto, um sistema de pensamento mais adequado ao caminho de naturalização e secularização das idéias e argumentos em curso desde pelo menos meados do século XI. Mas era preciso também acomodar o Aristóteles grego à realidade medieval do burgo. E mais complicado ainda: adaptá-lo ao imaginário medieval, profundamente marcado pela presença e pela crença inquestionável na existência de um Deus supremo, ordenador do natural e do sobrenatural. Esse trabalho de reinterpretação – que já vinha sendo realizado tanto por teólogos como por juristas e filósofos naturais – ganharia nova síntese na obra do dominicano Tomás de Aquino, que, por ter tido à disposição não somente traduções completas do que havia restado da obra do Filósofo, mas ainda boa parte da produção científica e teológica da época, pôde conferir a esse material nova roupagem e adequálo aos cânones da época. Essa nova síntese, embora viesse de dentro dos muros da Ecclesia, não deixava contudo de contribuir de modo fundamental para a secularização e naturalização do pensamento, fosse no raciocínio dos homens comuns, fosse naquele dos teóricos da política, disciplina cujas categorias básicas encontravam-se em franco processo de autonomização. A natureza passava, paulatinamente, a se impor como mediadora entre o divino e o humano. Tornava-se a instância que operava as ações, relegando a idéia de Deus a um papel cada vez mais abstrato. Isso era o que se podia perceber, por exemplo, nos trabalhos de Alberto Magno ou de Tomás de Aquino, dois profundos conhecedores da filosofia grega. CAPÍTULO 4 TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS I OS FUNDAMENTOS ARISTOTÉLICOS DA METAFÍSICA TOMISTA O grande feito de Tomás de Aquino, escreve Ullmann, foi realizar uma síntese entre a filosofia pagã aristotélica e a cosmologia cristã, despojando a primeira daqueles elementos inaceitáveis a um crente.1 Pode haver, é claro, algum exagero na formulação. Mas a ordenação conceitual produzida por Tomás de Aquino, que incluía não apenas autores pagãos como Aristóteles, mas também as Escrituras e boa parte da tradição medieval cristã acumulada ao longo dos séculos, permitiria pôr num novo patamar de fundamentação filosófica os vários desenvolvimentos ocorridos até então nos campos da filosofia natural, do pensamento político, da jurisprudência e da própria teologia. Mais do que cristianizar os antigos, Tomás de Aquino conferiu à filosofia clássica grecoromana uma nova roupagem, apropriando-a aqui, transformando-a acolá, à moda dos mais respeitáveis pensadores medievais. A grande identificação, entretanto, é comumente associada à filosofia aristotélica: é muito freqüente entre os comentadores a designação “aristotélico-tomista” para caracterizar a filosofia produzida pelo Aquinate. Sem entrar no mérito desse debate – o que nos conduziria muito além dos propósitos imediatos deste trabalho, a discussão das categorias propriamente políticas –, cabe talvez, no entanto, 1 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 167. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mostrar de maneira cuidadosa alguns pontos relevantes em que esses estes dois corpos filosóficos se aproximam e se distanciam. À primeira vista, a doutrina do Doutor Angélico parece excessivamente próxima da do seu mestre grego. Mas há entre elas diferenças fundamentais.2 De maneira genérica, podem-se apontar primeiro algumas semelhanças mais evidentes: Tomás de Aquino utilizava a lógica formal aristotélica. Ambos os pensadores raciocinavam em termos de atualidade e potencialidade; de causas final, eficiente, material e formal; da divisão do pensamento científico entre teórico (ou especulativo), prático e produtivo. Também para os dois o objetivo supremo do esforço humano era a contemplação intelectual. A livre escolha constituía, em ambos, a origem da ação moral. Distinguiam ainda o material do imaterial, a sensação da cognição, o temporal do eterno, o corpo da alma. Ambos fundavam todo conhecimento humano naturalmente atingível nas coisas sensíveis exteriores. Os dois entendiam a cognição como um modo de ser, no qual aquele que conhecia e a coisa conhecida eram uma e a mesma coisa no que dizia respeito à realidade da cognição. Todos esses princípios são, de maneira geral, reconhecíveis tanto em Tomás de Aquino quanto em Aristóteles. Essas coincidências básicas, alerta Owens, foram suficientemente impressionantes para ocasionar uma ampla aceitação das duas filosofias como similares. “Mas quando se procura a correspondência entre pontos específicos de ambas as doutrinas acaba-se tropeçando em sérias dificuldades.” A melhor maneira de resolvê-las, entretanto, não é evitando-as, como fazem muitos autores quando rotulam uma proposição de “aristotélico-tomista”, sugere o comentador, mas sim procurando compreendê-las a partir das premissas de cada 2 Cf. o ensaio de OWENS, J. Aristóteles e Aquino. In: KRETZMANN, N.; STUMP, E. (Ed.). The Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: University Press, 1995. p. 38-59. 264 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS pensador.3 O aviso é, com certeza, útil para evitar a simplificação nebulosa e merece atenção. Para Aristóteles, por exemplo, ser e essência eram idênticos em cada caso particular. Quando muito, podia existir uma diferenciação conceitual entre eles, embora fosse mais vantajoso para propósitos práticos enxergá-los como idênticos.4 Ser e essência eram conhecidos por meio da mesma atividade intelectual. Já Tomás de Aquino reivindicava explicitamente a existência de uma distinção real, em todas as criaturas, entre a coisa e o seu esse: ser e essência (ou qüididade) seriam conhecidos por atos intelectuais radicalmente diferentes.5 Essa distinção era o ponto nevrálgico da diferenciação tomista entre Deus e as criaturas.6 3 4 5 6 Cf. OWENS, op. cit., p. 38-9. “If, now, being and unity are the same and are one thing in the sense that they are implied in one another as principle and cause are, not in the sense that they are explained by the same formula [...]; for one man and a man are the same thing and existent man and a man are the same thing, and the doubling of the words in ‘one man’ and ‘one existent man’ does not give any new meaning (it is clear that they are not separated either in coming to be or in ceasing to be); and similarly with ‘one’, so that it is obvious that the addition in these cases means the same thing, and unity is nothing apart from being; and if, further, the essence of each thing is one in no merely accidental way, and similarly is from its very nature something that is: – all this being so, there must be exactly as many species of being as of unity”. In: ARISTOTLE. Metaphysics (l. IV, 1003b23). Trad. de D. Ross. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 1585. “In the thing there are both the quiddity of the thing and its being. So in the intellect there is a double activity corresponding to those two. One activity, which is called ‘formation’ by the philosophers, is that by which the intellect apprehends the quiddities of things, and which is also called by the Philosopher in De Anima III ‘the understanding of indivisibles’. But the other activity comprehends the thing’s being, by compounding an affirmation”. In: AQUINO. Scriptum super libros Sententiarum, l. I, stç. 38, I.3. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 58. Constituía também a base para a demonstração de uma diferença real entre natureza e faculdades nas criaturas. Por isso, era essencial para a 265 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Um outro ponto merece atenção: a metafísica de Aristóteles partia da afirmação da eternidade dos processos cósmicos e da esfera celeste para então passar às substâncias separadas (ou seres espirituais) e imóveis como causas finais. Se essa substância separada era única ou uma pluralidade parecia não ter relevância para o Filósofo: era um assunto que deixava para os astrônomos. O próprio Tomás de Aquino alertava seus leitores para a firme crença aristotélica na eternidade do movimento cósmico e do tempo.7 O problema residia no fato de que a posição aristotélica não permitia considerar a criação do mundo, que para o Filósofo teria existido desde todo o sempre. Não havia menção, em Aristóteles, de uma causalidade eficiente da parte de substâncias separadas, espirituais: cada qual estava consciente apenas de si mesma e era incapaz de produzir qualquer realidade fora de si. Essa perspectiva apontava para uma diferença radical entre o pensamento filosófico de ambos – o que não impedia o Aquinate de utilizar amplamente o vocabulário do mestre grego. O sentido atribuído por cada um a esses termos e conceitos podia ser bastante diferente num e noutro corpus. 7 prova da indestrutibilidade da alma humana, em contraste com o caráter perecível da alma em outros animais e plantas. Cf. OWENS, op. cit., p. 39. Tomás de Aquino comentava essa passagem de Aristóteles nos seguintes termos: “He concludes in this way last because of the question which he will next raise. From this reasoning, then, it is evident that here Aristotle firmly thought and believed that motion must be eternal and also time; otherwise he would not have based his plan of investigating immaterial substances on this conviction”. In: AQUINO. Commentary on the Metaphysics of Aristotle (In Libros Metaphysicorum), v. 2, l. 12, lição 5, stç. 2496. Trad. de J. P. Rowan. Library of Living Catholic Thought, Chicago: Henry Regnery Co., 1961. p. 878. Todas as edições em língua inglesa dos trabalhos de Tomás de Aquino aqui citados foram retiradas da compilação feita por GRYCZ, Czeslaw Jan; DEELY, J. The collected works of St. Thomas Aquinas. Berkeley: University of California Press, 1985. 266 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS É claro que, quando levamos em consideração os diferentes contextos e épocas em que viveram os dois pensadores, um tal uso dos conceitos torna-se compreensível. Afinal, não é de esperar que a noção de polis de um autor grego do século IV a.C. possa corresponder totalmente à noção de civitas de um pensador latino do século XIII. Ou que ambos pudessem entender por “democracia” uma mesma realidade.8 Tais “equívocos” do raciocínio, justificava Tomás de Aquino, deviam ser atribuídos ao fato de que Deus, no tempo em que escreviam os antigos, ainda não havia se revelado aos homens. A tradição medieval, de Agostinho a Pedro Lombardo, aceitava a afirmação agostiniana de que toda doutrina (ou filosofia) tratava ou de coisas ou de signos. No esquema de Tomás de Aquino, as coisas deviam ser consideradas de acordo com o caminho de sua procedência de Deus como sua fonte e retornando a ele como seu fim (salvação e expiação). Esse esquema de exitus e reditus, derivado do neoplatonismo, desempenhava um papel fundamental no pensamento de Tomás de Aquino.9 A origem e o fim das coisas eram uma e a mesma: o Deus criador. Como havia movimento no universo, e todas as coisas deveriam retornar ao seu princípio, a dinâmica da realidade tinha de ser um movimento circular (circulatio). Como tudo o mais no orbe, também o movimento tinha uma causa, que deveria ser exterior ao ser que estava em movimento. Pois a algo não era possível ser simultaneamente o princípio motor e a coisa movida. Um motor devia ser impulsionado por um outro motor, e assim por diante. Essa série de causas, contudo, deveria ter um primeiro termo que causaria todos os demais. Essa causa primeira era, para o 8 9 Cf. OWENS, op. cit., p. 40. Cf. AERTSEN, Jan A. A Filosofia de Aquino em sua perspectiva histórica. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p.12-37. 267 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Angélico, Deus. E o que se dizia da causa do movimento devia ser estendido às causas em geral: nada podia ser causa eficiente de si mesmo. Desse modo, toda causa eficiente supunha outra, e assim por diante. Essas causas, contudo, não mantinham entre si uma relação acidental, alerta Gilson: pelo contrário, condicionavam-se segundo uma ordem determinada, de modo que cada causa eficiente dava conta da seguinte.10 E a primeira causa eficiente, que impulsionava as causas intermediárias e as causas finais, era Deus. Nesse raciocínio, portanto, aquilo que era necessário, o era justamente por ser necessário e existir por si mesmo, não precisando de uma causa antecedente para sua existência. O meramente possível ou contingente não continha em si mesmo a razão suficiente de sua existência. Esse ser necessário por si, não contingente, era Deus, que era para que todo resto pudesse ser. Existia uma verdade, um bem em si, um ente que era causa de todos os demais seres, e que não podia ser outro senão Deus, causa primeira de todas as coisas. O ser das criaturas, portanto, era necessariamente diferente de sua essência (ou natureza): era conferido por Deus, como causa eficiente primeira, por meio da criação, conservação e concordância na atividade de cada ser criado. Essa outorgância da existência por Deus se estendia aos mínimos detalhes. Nessa leitura, a aplicação da filosofia aristotélica à esfera do sagrado não afetava a sublimidade da essência do objeto divino. Mas Tomás de Aquino percorreu seu próprio caminho: leu no Livro Sagrado que o nome próprio de Deus era o ser – nome que distinguia a essência de Deus da essência de todas as demais criaturas. O ser, portanto, não podia proceder da natureza da própria coisa criada. Pois sem existência não haveria criatura para produzi-lo.11 Na criação, 10 11 Cf. GILSON, Étienne. La filosofía en la Edad Media. Madrid: Gredos, 1989. p. 493. Cf. OWENS, op. cit., p. 46-7. 268 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS proclamada no “Gênesis”, nada havia antes para receber a existência.12 Por isso, o ser das coisas criadas tinha de vir de alguma outra coisa: da causa eficiente primeira. Esse raciocínio constituía um desenvolvimento razoável em relação à noção de causalidade eficiente encontrada no Estagirita: Tomás de Aquino continuava reconhecendo a forma aristotélica como causa do ser, mas só sob a atividade de uma causa eficiente. Nas palavras de Tomás de Aquino: “A existência, em si, resulta da forma da criatura, suposto contudo o influxo de Deus”.13 Isso tornava a causalidade eficiente anterior a todas as formas finitas.14 ela passava a atuar agora sobre a totalidade da coisa finita e se estendia à produção tanto de matéria quanto de forma, por meio do ato criador, mais por conferir existência a algo do que por iniciar o movimento. Em Aristóteles, matéria se relacionava à forma como potencialidade à realidade. Em Tomás de Aquino, toda coisa finita era vista como uma potencialidade para sua própria existência. 12 13 14 “Quando Deus iniciou a criação do céu e da terra, a terra era deserta e vazia, e havia treva na superfície do abismo”. In: Gênesis, 1: 1-2. In: A Bíblia, op. cit., p. 11. AQUINO. Suma teológica, I, I, q. 104, 1, ad 1. Ed. bilíngüe. Trad. de Alexandre Corrêa. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora,1980. v. I-XI, p. 902. Todas as citações da Suma teológica foram retiradas dessa edição. As passagens estão indicadas segundo o padrão internacional de referência, que enuncia o número do livro, parte, questão, artigo, solução e, quando for o caso, objeção e/ou réplica. “That which is most imperfect should not be ascribed to God who is most perfect. Now existence is most imperfect like primal matter: for just as primal matter may be determined by any form, so being, inasmuch as it is most imperfect, may be determinated by all the proper predicaments. Therefore as primal matter is not in God, so neither should existence be an attribute of the divine substance”. In: AQUINO. On the power of God (Quaestiones disputatae de potentia), l. 3, q. 7, a. 2, obj. 9. Trad. dos English Dominican Fathers. London: Burns, Oates and Washbourne, 1932-4. p. 9. 269 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Para o Aquinate, o ser estava presente como essência apenas em Deus. Todas as outras coisas tinham de recebê-lo como uma atualidade que vinha de fora, de uma causa eficiente. Assim armado, Tomás de Aquino podia seguir a estrutura do raciocínio aristotélico acerca das coisas sensíveis enquanto ato e potência até chegar a uma atualidade que não dispunha de potencialidade alguma. Mas, enquanto para Aristóteles a realidade alcançada era a forma finita, para Tomás de Aquino ela era a existência infinita. Essa diferença emergia do modo pelo qual a atualidade era concebida nas coisas sensíveis: para o Filósofo, as coisas eram atuais por meio de sua forma; para o Angélico, o composto de forma e matéria era tornado atual pela existência. Nesse sentido, existência era a realidade máxima de cada coisa finita, e sempre distinta da essência da coisa.15 Por essa razão, somente em Deus a essência e a existência podiam ser uma e a mesma coisa: “Ego sum qui sum”.16 No restante das coisas criadas, a essência ou natureza era distinta da sua existência – que era recebida de Deus. Deus era, nessa perspectiva, o ato puro de existir, e não uma essência qualquer: aquilo que se chamava essência nos outros seres era, em Deus, o ato mesmo de existir. E, por consistir no puro existir, Deus era a plenitude absoluta do ser, em si infinita. Sendo Deus um ser infinito, nada podia lhe faltar que devesse adquirir e, portanto, nenhuma transformação era concebível n’Ele: era imutável, eterno e perfeito. O Estagirita não mostrava preocupação especial no que dizia respeito à existência como noção filosófica. Não havia, para ele, distinção real entre coisa e ser: ambos eram conhecidos pela mesma atividade mental. O ser de algo e o que ele era coincidiam. O problema da necessidade de um criador para fazer o mundo existir não se colocava. O movimento era 15 16 Cf. OWENS, op. cit., p. 48. Cf. Êxodo 3: 14. In: A Bíblia, op. cit., p. 72. 270 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS o motor de tudo que havia no universo: a noção de causa eficiente mais explicava a origem do movimento do que lhe conferia existência. Por ser imutável, a forma separada (ou espiritual) tinha em si e por si mesma a natureza do ser. Todas as outras coisas dependiam dela por meio de causalidade final para sua permanência e, por conseqüência, para o seu ser. Neste sentido, a forma separada era a instância primária do ser.17 Para Tomás de Aquino, a concepção do ser era profundamente diferente. Como leitor da Sagrada Escritura, o Angélico tinha de aceitar a afirmação nela contida de que Deus criou o mundo, o céu e a terra. Na linguagem filosófica, isso significava dizer que Deus era a primeira causa eficiente de todas as outras coisas. Isto é, Deus era a instância primeira do ser. Provinha de Deus a natureza à qual todos os outros entes se referiam como seres. No “Êxodo” (3: 14), Deus revelara a Moisés o seu nome: “Eu sou aquele que é” (Ego sum qui sum). Essa era, para o Aquinate, a “verdade sublime” que os cristãos conheciam sobre o ser, a própria natureza e nome de Deus.18 Em linguagem aristotélica, significava dizer que a instância primária do ser era Deus, que havia sido revelado. E que sua causalidade eficiente se estendia a todas as coisas 17 18 Cf. OWENS, op. cit., p. 45. “Nenhuma coisa cuja essência não é o seu ser”, escrevia Tomás de Aquino, “é pela sua essência, mas o é pela participação de outro, isto é, do ser. O que é por participação de outro não pode ser o primeiro ente, porque aquilo de que uma coisa participa para poder ser lhe é anterior. Ora, Deus é o primeiro ente, ao qual nada é anterior. Logo a essência de Deus é o seu ser”. E acrescentava adiante, comentando a passagem do “Êxodo”: “O Senhor se deu a conhecer pelo seu nome próprio: Aquele que é. Ora, todo nome é imposto para designar a natureza da essência de uma coisa. Donde também concluir-se que o ser divino é a sua essência ou natureza”. In: AQUINO. Suma contra os gentios, I, 22. Trad. de D. Odilão Moura O. S. B. Porto Alegre: Livraria Sulina Editora, 1990. v. I. 271 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO existentes: ele concordava, como causa primária, com todas as coisas feitas por suas criaturas e as conservava – todas – na existência. Embora esse ponto de vista não fosse, propriamente falando, aristotélico, as noções do Filósofo eram suficientemente flexíveis para se adaptarem ao conteúdo enriquecido da revelação – ao menos para o Angélico. Deus era por natureza esse: este o nome e natureza próprios a ele. Ninguém além d’Ele podia ter o ser como sua essência, já que, segundo as Escrituras, deuses estranhos não deviam ser tolerados. Filosoficamente, estava indicada a unicidade de Deus, a existência subsistente.19 A relação entre criatura e Criador, tal como proposta por Tomás de Aquino, era pensada em termos de “participação”, conceito introduzido por Platão – e duramente criticado por Aristóteles – para expressar a ligação entre as coisas sensíveis e as formas. O Angélico descrevia os platonistas como aqueles que queriam reduzir toda coisa composta a simples, a princípios abstratos. Essa, explicava Tomás de Aquino, era a razão pela qual eles postulavam a existência de formas separadas ou ideais das coisas. E aplicavam essa abordagem não apenas às espécies de coisas naturais, continuava, mas também àquelas que eram mais comuns: bom, único e ser. Sustentavam que havia um princípio primeiro, o qual era a essência da bondade, da unidade e do ser – um princípio, dizia o Aquinate, que chamamos Deus. Outras coisas podiam ser chamadas bom, único ou ser simplesmente por derivarem do primeiro princípio.20 19 20 Cf. OWENS, op. cit., p. 45-6. A discussão tomista a respeito da filosofia platônica pode ser encontrada, entre outras passagens, no 3° artigo de seu tratado Das criaturas intelectuais. Cf. AQUINO. On spiritual creatures (Quaestiones disputatae de spiritualibus creaturis), art. 3. Trad. de M. C. Fitzpatrick. Milwaukee: Marquette University Press, 1951. In: GRYCZ & DEELY, op. cit., p. 41 et seq. 272 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Tomás de Aquino rejeitava a aplicação do método platônico subscrevendo a crítica aristotélica de que os platonistas projetavam nosso modo abstrato de conhecimento no modo de ser das coisas. Mas, em relação ao primeiro princípio em si, reconhecia a legitimidade da abordagem platônica. A redução a princípios abstratos só era justificada no nível daquilo que era mais simples: ser, único e bom. Essas propriedades gerais foram chamadas, na filosofia medieval, “transcendentais”, porque transcendiam as categorias aristotélicas. O primeiro princípio “separado” (ou criatura espiritual) era, segundo o Angélico, o próprio ser: as outras coisas dele participavam ao existirem. Para ele, todas as coisas criadas eram marcadas pela relação entre essência e esse. As coisas tinham recebido sua existência daquilo que era, ele mesmo, o ser: Deus, causa primeira de todas as coisas. A relação do resto das coisas existentes com essa causa que as antecedia e criava era, assim, a de participação no ser. Tomás de Aquino precisava elaborar uma teoria da essência das “substâncias separadas” (ou criaturas espirituais), tais como os anjos, para justificar a estrutura ontológica que construíra para as substâncias finitas. Essa estrutura não podia consistir, como em Aristóteles, na composição de forma e matéria. Pois substâncias separadas, espirituais, embora fossem criaturas, eram separadas da matéria. E apesar de constituir formas puras, tais substâncias não tinham simplicidade completa. Pois recebiam o seu ser (esse) não de si mesmas, mas de outra coisa: segundo o Angélico, todas as criaturas eram marcadas pela não-identidade de sua essência e seu esse.21 21 “E porque, ademais, tudo aquilo que tem ser vindo de outro reduz-se àquilo que existe por si, como a uma causa primeira, é necessário que haja alguma coisa que seja a causa do ser a todas as demais, justamente porque tal coisa é tão-somente ser. Se assim não fosse, induzir-se-ia, nas causas, um processo ao infinito, visto que, como foi dito, toda coisa que não é somente ser, deve ter causa de seu ser. Logo, é evidente que 273 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Por acreditar na criação do mundo por Deus, o orbe tinha, para Tomás de Aquino, um início. E o problema era saber se o mundo poderia ter sempre existido. Aqui o Angélico se opunha a Boaventura e outros, que sustentavam ser a idéia de uma “criação eterna” do mundo contraditória em seu conteúdo interno: a criação a partir do nada (ex nihilo) implicava necessariamente um começo temporal, argumentavam esses autores.22 De acordo com Tomás, entretanto, criação “do nada” significava serem as coisas causadas por Deus, em seu ser completo. Mas essa dependência ontológica, contudo, não implicava necessariamente um início temporal: uma causa não necessariamente precedia seu efeito na duração, explicava, mas podia ser simultânea ao efeito. Uma criação eterna era, portanto, possível.23 Embora o mundo, para o Aquinate, pudesse ter uma duração eterna, explica Nascimento, ele dependia totalmente 22 23 a inteligência é forma e ser, e que recebe este ser do primeiro ente, que é somente ser. Este ente é a causa primeira, que é Deus”. In: AQUINO. O ente e a essência. Trad. de D. Odilão Moura. Rio Janeiro: Presença, 1981. cap. 5, p. 81-2. Tomás de Aquino punha a questão dos contemporâneos nos seguintes termos: “God can do in the creature whatever is not inconsistent with the notion of a created thing: else he were not omnipotent. Now it is not inconsistent with the notion of a created thing, considered as made, that it should always have existed, otherwise to say that creatures always existed would be the same as to say that they were not made, which is clearly false. For Augustine (De Civ. Dei xi, 4; x, 31) distinguishes two opinions, one asserting that the world always existed in suchwise that it was not made by God; the other stating that the world always was and that nevertheless God made it. Therefore God can do this so that something made by him should always have been”. In: AQUINO. On the power of God (Quaestiones disputatae de potentia), I, q. 3, a. 14, obj. 8. In: GRYCZ & DEELY, op. cit., p. 195. Replicava o Angélico: “This argument proves nothing more than that to be made and to be always are not incompatible considered in themselves: so that it considers that which is possible absolutely”. In: ibid., I, q. 3, a. 14, p. 8. 274 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS de Deus para ser.24 Por isso, tinha sido criado. O Angélico acreditava que os argumentos do Filósofo a favor da eternidade do mundo eram pouco convincentes: podia-se advogar com igual probabilidade tanto a favor da tese de que o mundo sempre existiu como a favor da tese de que o mundo teria começado a existir. Pois os argumentos aristotélicos sobre essa questão não eram demonstrativos nem conclusivos, mas apenas prováveis. E, de fato, só saberíamos que a segunda hipótese era verdadeira se aderíssemos à fé bíblica. Os antigos não haviam conhecido o Livro Sagrado e, portanto, não poderiam sabê-lo. Que o mundo teve um início, sustentava o Angélico, sabemos apenas pela revelação divina.25 Em outras palavras: dado que Deus era o existir absoluto e infinito, ele continha virtualmente o ser e as perfeições de todas as criaturas. E o modo segundo o qual todo ser emanava da causa primeira e universal chamava-se criação. Por isso, dizer que a criação provinha do totius esse significava afirmar que ela se dava a partir do nada (ex nihilo): Deus criava, por um ato livre da vontade, todas as criaturas. E essa relação entre criatura e Criador chamava-se, em Tomás de Aquino, participação. Esta expressava o laço que unia o ser criado ao Criador, tornando inteligíveis a criação e a separação: participar era ter seu próprio ser e, ao mesmo tempo, recebê-lo de outro ser. O universo, produto de uma inteligência superior e de uma vontade livre, derivava assim 24 25 Cf. NASCIMENTO, C. A. R. Santo Tomás de Aquino: o boi mudo da Sicília. São Paulo: Educ, 1992. p. 49. E solucionava: “It belongs to the notion of eternity to have no beginning of duration: while it belongs to the notion of a created thing to have a beginning of its origin but not of duration: unless we take creation according to the teaching of faith” (grifos meus). In: AQUINO. On the power of God (Quaestiones disputatae de potentia), l. 3, q. 3 a. 14, sol. 8. In: GRYCZ & DEELY, op. cit., p. 195. 275 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO de Deus. E Deus nos manifestara sua vontade por meio da revelação, na qual se fundava a fé.26 Esse era um corte filosófico básico: significava dizer que o conhecimento humano da qüididade ou essência e o da existência tinham duas origens radicalmente diferentes. Contrariamente ao princípio aristotélico, para Tomás de Aquino o ser de uma coisa e sua essência não eram entendidos pela mesma atividade intelectual. Saber o que uma coisa era jamais forneceria o conhecimento de sua existência, dizia.27 No procedimento do Angélico, o recebimento da existência pelas coisas no mundo real originava-se, em última instância, da existência que subsistia. E a existência subsistente era a natureza ou qüididade de Deus.28 O existir, nesse sentido, era pressuposto pela e incluído na noção de Deus, tal como era filosoficamente sustentada por Tomás de Aquino. Mas nenhum conjunto de raciocínios baseados no que as coisas eram podia conduzir a qualquer conclusão a respeito da existência subsistente. 26 27 28 Cf. GILSON, op. cit., p. 496-7. Essa era a razão pela qual a definição do que era Deus, para o Aquinate, não podia servir como base de raciocínio para a sua existência num argumento ontológico: ele evitava assim ter de assumir a premissa do raciocínio de Anselmo, de que Deus existia de fato. “5 – E como aquilo pelo que a coisa é constituída no próprio gênero ou espécie é também o que é significado pela definição que indica o que a coisa é (quid res est), disso se conclui a razão por que o nome da essência foi mudado pelos filósofos para o nome de qüididade (quidditas). É isto que o Filósofo freqüentemente denomina aquilo que era ser (quod quid erat esse), isto é, aquilo por meio do qual uma coisa tem o ser algo [...]. Além desses nomes, a essência é ainda designada por outro, o de natureza [...]. Segundo este sentido, por natureza denomina-se tudo aquilo que possa ser de algum modo apreendido pela inteligência. Ora, uma coisa não é inteligível senão pela sua definição e pela sua essência. E, assim, o Filósofo também afirma, no Livro V da Metafísica, que toda substância é natureza”. In: AQUINO. O ente e a essência, op. cit., p. 64. 276 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Tomás de Aquino tinha assim de dar conta de duas formas de conhecimento, uma natural, outra revelada. Para tanto, adotou do mestre grego alguns pontos importantes de sua teoria do conhecimento.29 O Angélico rejeitava a visão, corrente no medievo, de que o ser humano tinha idéias inatas. A base de todo conhecimento humano era para ele – como para Aristóteles – a experiência sensível: era natural ao ser humano atingir o inteligível por meio dos objetos do sentido, porque nosso conhecimento se originava das sensações. O caminho para a cognição intelectiva, portanto, passava da apreensão sensorial para a abstração: o intelecto separava o conteúdo inteligível das imagens sensíveis.30 Tomás de Aquino rejeitava ainda a idéia agostiniana de que as criaturas humanas precisavam de iluminação divina para atingir certo conhecimento: o intelecto humano, sustentava ele, dispunha de uma “luz natural” que era em si mesma suficiente para o conhecimento das verdades.31 Aristóteles afirmava que todos os seres humanos desejavam por natureza conhecer. Tomás de Aquino não apenas concorda29 30 31 Sobre esse assunto, cf. tb. WIPPEL, J. Thomas Aquinas’s derivation of the Aristotelian categories (predicaments). Journal of the History of Philosophy, v. 25, n. 1, jan. 1987. “[...] provendo Deus a todos, segundo a natureza de cada um, e sendo natural ao homem chegar pelos sensíveis aos inteligíveis – pois todo o nosso conhecimento começa pelos sentidos – convenientemente, a Sagrada Escritura nos transmite as coisas espirituais por comparações metafóricas com as corpóreas” (ST Ia, 1, 9). “Ora, a forma do intelecto humano é o lume inteligível, suficiente, em si mesmo, para conhecer certos inteligíveis, a saber aqueles cujo conhecimento podemos obter por meio dos sensíveis. O que, porém, é superior à sua capacidade o intelecto humano não pode conhecer senão fortalecido pelo lume da graça [...], por ser acrescentado à natureza”. E mais adiante: “[...] para conhecer qualquer verdade o homem precisa do auxílio de Deus que o move ao seu ato. Não precisa, porém, para conhecer a verdade, em todos os casos, de nova iluminação acrescentada à iluminação natural, mas só nos casos que lhe excedem o conhecimento natural” (ST I, II, 109, 1). 277 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO va com a afirmação do Filósofo, como ainda fundamentava aquilo que no Estagirita era mera asserção. O desejo natural de conhecer, segundo o Aquinate, podia ser explicado: toda coisa desejava naturalmente sua perfeição. Algo era perfeito na medida em que fosse completamente atualizado – e não quando se encontrava num estado de potencialidade. O desejo de perfeição de uma coisa consistia no anseio de realização de suas potencialidades naturalmente essenciais. O que tornava humano um ser era o fato de possuir intelecto. Por meio de seus poderes cognitivos, uma pessoa tinha acesso a todas as coisas, mas apenas potencialmente. Seres humanos não detinham conhecimento inato da realidade: conhecimento constituía a atualização das potencialidades humanas naturais, a perfeição do ser humano. Essa era a razão pela qual os seres humanos desejavam naturalmente conhecer. Baseado nesse argumento, Tomás de Aquino concluía que todo conhecimento sistemático ou científico era bom. Pois no conhecimento consistia a perfeição do ser humano como tal, o preenchimento de seus desejos naturais. Por isso, para o Angélico, o desejo humano de conhecer não era, como defendia Agostinho, uma curiosidade vã. Para Agostinho, curiosidade era a tentação de procurar conhecimento em vista de seus próprios fins. Conhecimento devia ter apenas um sentido instrumental: servir à salvação humana e ser orientado para a fé. Deus e a alma humana, dizia Agostinho, eram as únicas coisas dignas de serem conhecidas. Já para Tomás de Aquino, o desejo de conhecer era natural: provinha da natureza humana e era direcionado para a perfeição dos seres. E a perfeição de cada criatura consistia, segundo o Aquinate, na união de toda coisa ao seu princípio ou fonte. Por essa razão, podia-se afirmar que o movimento circular era, entre todos, o mais perfeito. Porque o seu término estava unido ao seu começo. No caso dos seres humanos, essa união ao seu princípio se dava apenas por meio do intelecto. “Por 278 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS isso, o ser humano deseja naturalmente conhecer”. A perfeição de um efeito consistia em retornar ao seu princípio. Aquilo do que as coisas derivavam vinha a ser o seu fim. Dessa perspectiva, fonte e objetivo, começo e fim eram idênticos. Deus, como criador, era a origem imediata de todas as coisas. E, porque era o ser mais perfeito, cada criatura naturalmente retornava para o seu princípio. O fim correspondia assim ao começo. Por essa razão, o fim último das coisas não podia ser uma substância criada, mas unicamente Deus. No processo de retorno das criaturas ao Criador, a criatura humana ocupava uma posição especial: apenas a natureza racional tinha a capacidade de voltar “expressamente” à sua origem.32 Por isso, entre as substâncias materiais, somente os seres humanos eram capazes de alcançar Deus por meio da atividade da razão. Esse retorno era promulgado no desejo humano natural de conhecer. Conhecimento perfeito, dizia Tomás de Aquino citando Aristóteles, era o conhecimento da causa primeira. E acrescentava: o motor de todas as coisas era Deus. Por isso, o fim último para os seres humanos consistia em conhecer Deus, a felicidade ou beatitude eterna.33 32 33 Deus constituía o princípio do qual procediam todas as coisas, e também o fim para o qual tendiam todas as criaturas. Nos seres inanimados, recorda Rassam, esse impulso se manifestava pelo apetite natural. Isto é, pelos movimentos próprios da natureza. Os seres vivos, por meio da captação dos bens particulares, participavam mais diretamente da bondade divina. Mas só os seres dotados de razão procuram Deus por meio do conhecimento e do amor. “Assim o homem, graças ao seu intelecto e à sua vontade, tende diretamente para Deus, como Primeiro princípio de todas as coisas”. In: RASSAM, Joseph. Tomás de Aquino. Lisboa: Edições 70, 1980. p. 46. Cf. tb. AQUINO, ST I, II, q. 1, a. 8. “No entanto, é claramente manifesto que o fim de qualquer substância intelectual, mesmo ínfima, é conhecer a Deus. Com efeito, [...] o último fim, para o qual tendem todos os entes, é Deus. Ora, o intelecto humano não obstante ser ínfimo na ordem das substâncias intelectuais, é superior a todas as coisas destituídas de intelecto. Se pois uma subs279 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A razão era assim, num certo sentido, indispensável à fé, lembra Rassam: se a razão só se efetivava “com o concurso da graça e à luz da fé”, existia no entanto um conhecimento natural de Deus que era como que o preâmbulo da fé. “Se a fé é uma graça de Deus, é também um ato do homem. [...] Para que a fé em Deus, gratuita no dom que dela nos é feito, não seja uma operação cega e perfeitamente irracional”, explica Rassam, “é preciso que a palavra de Deus tenha algum sentido para a razão. Não existe fé para um ser privado de razão, tal como não há conhecimento sobrenatural sem a possibilidade de um conhecimento natural”.34 Pois “a fé”, dizia Tomás de Aquino, “implica o assentimento do intelecto àquilo que cremos” (ST II, II, 1, 4). Ou, dito de outra maneira, se o universo tinha sido criado por uma causa inteligente e perfeita, sua imperfeição não podia ser imputada ao Criador. A criação supunha, desde o primeiro momento, uma separação infinita entre Deus e as coisas criadas: nenhuma criatura recebia a plenitude da perfeição divina. Pois as perfeições só passavam de Deus para as criaturas por meio de uma espécie de descendência, cuja ordenação era o próprio arranjo do universo. Todas as criaturas estavam nele dispostas segundo uma ordem hierárquica de perfeição, que seguia dos mais perfeitos, os anjos, para os menos perfeitos, os corpos. 34 tância mais elevada não pode ter um fim mais elevado, será Deus o fim também do intelecto humano. Ora, todo ente inteligente alcança o seu fim conhecendo-o. Logo, pela intelecção o intelecto humano atinge Deus como fim”. E adiante: “13. Com efeito, o fim último do homem, e de toda substância intelectual, chama-se felicidade ou beatitude. É isto que toda substância intelectual deseja como fim último e unicamente por isto mesmo. Logo, a beatitude e felicidade última de toda substância intelectual é conhecer a Deus”. In: AQUINO. Suma contra os gentios, III, 25, op. cit., p. 419-20 e 422. RASSAM, op. cit., p. 21-2. 280 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS No topo da criação, portanto, estavam os anjos, seres não-corpóreos e imateriais. Careciam, por isso, de um princípio de individuação. Essa hierarquia descendente dos seres marcava o homem: por ter alma, ele pertencia à espécie dos seres imateriais. Sua alma, contudo, não era uma inteligência pura, como nos anjos, e sim um simples intelecto. Ao mesmo tempo, era também corpo: constituía um composto físico que compartilhava da materialidade. O homem era assim composto de forma e matéria. Do ponto de vista da forma, por ser constituído de matéria, ocupava o último grau das criaturas inteligentes. Mas, por ter um corpo que partilhava de alma, era superior a todos os outros corpos: situava-se na linha divisória entre o reino das inteligências puras e o dos corpos. A função mais elevada do entendimento consistia na apreensão dos princípios primeiros, próximos de Deus. Mas o ser humano só podia chegar a eles a partir das espécies abstratas das coisas sensíveis. Explicar o conhecimento humano, esclarece Gilson, era definir a colaboração que se estabelecia entre as coisas materiais, os sentidos e o entendimento.35 O elemento universal dos corpos era sua forma; o que os particularizava e individualizava, a sua matéria. Conhecer consistia em separar das coisas singulares o universal que nelas estava contido: essa operação o Angélico denominava abstração. Era tarefa do intelecto cognitivo despojar a abstração de toda a materialidade e particularidade que carregava dos objetos sensíveis. O conhecimento podia nos levar à afirmação da existência de Deus, mas não nos permitia chegar jamais à sua essência. Não havia caminho direto para o conhecimento de Deus: ele só era acessível aos homens pela graça e pela revelação. 35 Cf. GILSON, op. cit., p. 498-9. 281 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO No que respeitava à cognição intelectiva, dizia Tomás de Aquino, os seres humanos dependiam da experiência sensível. Conhecimento sistemático (ou científico) se estendia apenas até os limites da cognição sensorial. Os sentidos forneciam o material indispensável a partir do qual o intelecto abstraía o conteúdo inteligível. Disso seguia-se que as criaturas humanas não podiam conhecer a essência de uma substância que não fosse perceptível aos sentidos. Dessa forma, o único conhecimento possível de Deus ao alcance dos filósofos era aquele baseado nos efeitos do Criador em nosso mundo: o conhecimento da essência divina permanecia vedado aos seres humanos. Tomás de Aquino argumentava que nossa felicidade perfeita, o preenchimento de nosso desejo natural, só podia consistir na contemplação da essência de Deus, na visão de Deus (visio Dei). A completude da vida humana, portanto, não podia ser alcançada pela filosofia: apenas pela revelação de Deus o cristão poderia ser libertado dessa sua angústia. Essa concepção do conhecimento permitia a Tomás de Aquino conceber a relação entre filosofia e teologia em termos de continuidade e harmonia: a primeira era guiada pela luz da razão natural; a segunda, pela luz da fé. Dizia o Angélico: “[...] a fé pressupõe o conhecimento natural, [assim como] a graça pressupõe a natureza, e a perfeição, o perfectível”36 (grifos meus). O conhecimento natural era portanto primeiro e fundamental, já que os dons da graça eram adicionados à natureza.37 A filosofia não devia assim ser reduzida à teologia, 36 37 AQUINO, Suma teológica, I, Q. 2, A. 2, ad 1, op. cit., p. 18. Segundo a crença cristã, somente por meio da graça divina se podia alcançar essa contemplação, e não apenas por meio do mero esforço humano. Isso significava que o objetivo mais importante era promover o ensinamento e o caráter da Igreja, e não as próprias convicções – o que era, aliás, o pecado da soberba. Nesse sentido, o trabalho de Tomás de 282 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS pois tinha sua própria função a cumprir: dirigir os homens, no seu desejo natural de conhecer, para o fim último, a contemplação de Deus. E a fé, por sua vez, constituía a perfeição do conhecimento natural: a graça, dizia o Angélico, não destruía, e sim aperfeiçoava a natureza.38 Como comentava o próprio Angélico, a água da filosofia não devia ser misturada, e sim transformada no vinho da teologia.39 O conhecimento filosófico, portanto, era essencial ao seu pensamento teológico. A força comprobatória do raciocínio filosófico, argumentava Tomás de Aquino, tinha de se basear somente em fundamentos naturalmente acessíveis à mente humana. Nenhuma premissa revelada divinamente podia ser usada para propósitos de demonstração em filosofia. Mas o que tinha sido revelado era em si bom, verdadeiro, existia e era caracterizado por outros numerosos traços naturalmente conhecíveis. E podia ser objeto de estudo sob os aspectos naturalmente acessíveis à razão: era nesse sentido que as verdades divinamente reveladas se tornavam um objeto de estudo filosófico.40 38 39 40 Aquino era o de um teólogo, e não o de um filósofo. De todo modo, era inegável que uma formação filosófica acentuada, de base fundamentalmente aristotélica, permeava todo o seu trabalho teológico. “Pois como a graça não tolhe [tollat], mas aperfeiçoa a natureza, importa que a razão humana preste serviços à fé, assim como a inclinação natural da vontade está às ordens da caridade” (ST I, q. 1, 8, ad 2). “So those who use the works of the philosophers in sacred doctrine, by bringing them into the service of faith, do not mix water with wine, but rather change water into wine”. In: AQUINO. Faith, reason and theology, Questions I-IV of the Commentary on Boethius’ De Trinitate (In Librum Boeth. de Trinitate), q. 2, a. 3, rp. 5. Trad. de Armand Maurer. Toronto: Pontifical Institute of Mediaeval Studies, 1986. p. 51. Não havia, para o Angélico, contradição entre crer e saber, diz Cassirer. Dado que a razão e a revelação eram duas expressões diferentes da mesma verdade, a de Deus, não era possível desacordo entre elas. Se houvesse qualquer discrepância, esta se deveria a causas subjetivas. E caberia à filosofia descobrir e afastar essas causas, pois a razão podia 283 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO “Um filósofo”, explica Gilson, argumenta sempre buscando na razão os princípios de sua argumentação; um teólogo argumenta sempre buscando seus princípios primeiros na revelação [...]. Nem a razão – quando a usamos corretamente – nem a revelação – dado que tem sua origem em Deus – podem nos enganar. [...] a verdade da filosofia se ajustaria à verdade da revelação por meio de uma cadeia ininterrupta de laços de união verdadeiros e inteligíveis, se nosso espírito pudesse compreender plenamente os dados da fé. Daí resulta que, sempre que uma conclusão filosófica contradiz o dogma, achamo-nos diante de um sinal correto de que tal conclusão é falsa.41 Este é, sem dúvida, um excelente resumo da relação entre filosofia e teologia, tal como a concebia o Doutor Angélico. Assim, na linguagem tomista, as coisas sensíveis eram conhecidas, do ponto de vista de suas essências, pela simples apreensão ou conceitualização. Do ponto de vista do seu ser, eram compreendidas por meio de julgamento. O primeiro desses modos de conhecimento estava no reino estritamente filosófico: não era algo revelado divinamente, mas algo disponível à razão humana por si só. O avanço de Tomás de Aquino aqui residia na maneira de explicar como as questões da essência e da existência estavam relacionadas uma à outra: a existência era vista como a atualidade da essência, a atualidade de todas as atualidades e a perfeição de todas as perfeições.42 41 42 errar, mas a revelação era infalível. A razão, contudo, deveria confiar nas suas próprias forças. “Razão e revelação, portanto, tornavam-se esferas distintas: não podia existir mais confusão entre os reinos da natureza e o da graça”. Cada qual tinha agora seus objetos próprios e seus direitos. Cf. CASSIRER, Ernst. O mito do Estado. Rio Janeiro: Zahar, 1976. p. 129. GILSON, op. cit., p. 491. Esse desenvolvimento puramente filosófico, argumenta Owens, não procurava qualquer fonte revelada para suas noções de essência e existên284 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Nesse sentido, a função da crença religiosa era comparável ao papel atribuído por Aristóteles à dialética, que conduzia aos primeiros princípios do raciocínio filosófico.43 ela permitia que se enxergassem os princípios, mas não entrava nos procedimentos demonstrativos em si. Aristóteles, entretanto, enxergava a forma finita nas coisas sensíveis como a realidade suprema. Tomás de Aquino via a existência como aquela realidade. Por causa de similaridades enganosas como essas, as duas filosofias devem ser cuidadosamente mantidas como distintas uma da outra, alerta Owens – apesar dos muitos pontos de contato entre elas. Pois a filosofia do Estagirita se fundava em essências sensíveis, enquanto a do Aquinate se baseava em existências sensíveis. Amontoá-las, diz Owens, é confundir seus procedimentos distintos e privar cada uma de sua vida característica.44 II A ÉTICA E O PRINCÍPIO DA AÇÃO MORAL Em seus trabalhos éticos, Aristóteles insistia na importância crucial do hábito para a “modelagem” do conhecimento prático das pessoas: era por meio desse hábito que se adquiria os pontos de partida – ou primeiros princípios – da filosofia moral. O restante do pensamento moral provinha 43 44 cia e suas inter-relações. Visava apenas às coisas sensíveis. Nessa visão, as essências eram conhecidas e universalizadas por meio da conceitualização, enquanto suas existências eram compreendidas em cada instância por meio de julgamento. Partindo desses aspectos, tal como conhecidos nas coisas sensíveis, esse pensamento conduzia ao ser infinitamente perfeito, que era a causa de toda e qualquer outra existência. O raciocínio não se baseava em nada além daquilo que se podia ver nas próprias coisas sensíveis. Cf. OWENS, op. cit., p. 55. “[...] for dialectic is a process of criticism wherein lies the path to the principles of all inquiries”. In: ARISTOTLE. Topics, I, 2, 101b3-4. Trad. W. A. Pickard-Cambridge. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 168. Cf. OWENS, op. cit., p. 57. 285 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO desses primeiros princípios socialmente incutidos. Também no que dizia respeito ao conhecimento teórico ou especulativo, havia bons argumentos para crer que o hábito ou o costume fossem fundamentais para o desenvolvimento das criaturas humanas, além de serem relevantes para a cumulatividade do saber: os seres, dizia Aristóteles, absorverão a instrução de acordo com os hábitos que adquirirem.45 Entre as fortes crenças aristotélicas estava a na eternidade do mundo, estranha aos pensadores cristãos medievais. O orbe encontrava-se diante dos olhos e sua existência não trazia problemas. Havia um amplo consenso sobre a tese de Parmênides de que coisa alguma poderia surgir a partir do nada (ex nihilo). Por isso, os processos cósmicos não tinham começo temporal e jamais chegariam ao fim. A perpétua ascensão e queda das civilizações assegurava assim a continuidade do treino moral requerido pela sabedoria prática. A atividade humana como um todo era direcionada para objetivos últimos realizáveis neste mundo. A ênfase sobre a felicidade a ser alcançada na terra era predominante.46 45 46 “The effect which lectures produce on a hearer depends on his habits; for we demand the language we are accustomed to, and that which is different from this seems not in keeping but somewhat unintelligible and foreign because it is not customary. For the customary is more intelligible. The force of custom is shown by the laws, in whose case, with regard to the legendary and childish elements in them, habit has more influence than our knowledge about them. [...] Therefore one must be already trained to know how to take each sort of argument, since it is absurd to seek at the same time knowledge and the way of attaining knowledge; and neither is easy to get”. In: ARISTOTLE. Methaphysics, l. 2, 994b32-995a14. In: BARNES, op. cit., 1991, p. 1572. “A felicidade humana”, resume Owens, podia ser, segundo Aristóteles, “completamente atingida no tempo de vida sobre a terra por meio da contemplação intelectual dos objetos mais elevados da mente; ou, numa versão secundária, pelo exercício das virtudes práticas que tornam essa contemplação possível”. In: OWENS, op. cit., p. 42. 286 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Já para os cristãos do medievo, o foco concentrava-se na promessa de felicidade eterna ao lado do Pai na vida post mortem. Fazia parte do imaginário cristão da época a idéia de que a felicidade humana residia na vida depois da morte. O objetivo realmente importante era o esforço de cada um na direção de uma felicidade eterna na outra vida, de acordo com os ensinamentos da fé católica. O destino sobrenatural a ser atingido no outro mundo consistia, para Tomás de Aquino, na contemplação intelectual – fim supremo da vida terrena para Aristóteles. Essas premissas marcavam não apenas a metafísica tomista, mas também sua concepção ética e política, fortemente consoante com aquela. Segundo o Filósofo, ética e política eram modos interrelacionados de conhecimento prático, asserção que Tomás de Aquino e boa parte dos medievais de seu tempo assumiam. O estudo desses campos não tinha valor por si mesmo, mas visava a algo mais: o aperfeiçoamento da ação humana tanto na esfera coletiva (tarefa da política) quanto na individual (tarefa própria da ética) – o que modernamente se denominou âmbitos público e privado. Esse objetivo exigia tanto algum tipo de teoria moral capaz de ensinar as pessoas a desenvolver características que as conduzissem à execução de atos virtuosos, quanto uma teoria do governo da cidade. E o instrumento capaz de promover esse aperfeiçoamento moral tanto dos habitantes como dos cidadãos era a idéia de legislação. Para o Angélico, a doutrina moral, tivesse ela caráter filosófico ou teológico, derivava da reflexão sobre as ações executadas pelos agentes humanos. Tomás de Aquino sustentava que os atos levados a cabo pelos seres humanos constituíam ações morais, razão pela qual o estudo a respeito deles constituía uma doutrina moral. Mas seu exame requeria a distinção entre ações dos seres humanos (actiones humanae) e atos do homem (actiones hominis). Assim, àque287 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO las atividades que, embora atribuídas verdadeiramente aos humanos, não podiam ser atribuídas apenas aos homens (comer, beber, dormir) – isto é, não eram atributos per se –, Tomás de Aquino negava o status de ações humanas. Apenas aquelas atividades executadas racional e voluntariamente, ou ainda que se ocupavam da vontade, contavam como próprias dos seres humanos. Pois os atos humanos tinham sua origem na vontade e na razão (ou livre-arbítrio), faculdade exclusiva dos seres humanos.47 Tomás, como seu mestre grego, dividia a filosofia prática em três campos: ética, economia e política. Os atos humanos (humanae), dizia o Angélico seguindo o Filósofo, constituíam a ordem moral.48 Descrevia o objeto da filosofia moral como a “atuação humana ordenada para um fim, ou ainda o homem [ser humano], na medida em que ele é um agente atuando voluntariamente para um fim”. Toda ação propriamente humana, portanto, conduzia à filosofia moral. A ação humana visava a um fim. E só se agia em consideração a um fim na medida em que se tinha uma razão para 47 48 “Das ações feitas pelo homem só se chamam propriamente humanas as que lhe são próprias enquanto homem. Ora, este difere das criaturas irracionais, por ser senhor dos seus atos. Por onde chamam-se propriamente ações humanas [humanae] só aquelas de que o homem é senhor. Ora, senhor das suas ações o homem o é pela razão e pela vontade, sendo por isso o livre-arbítrio chamado a faculdade da vontade e da razão. Portanto, chamam-se ações propriamente humanas as procedentes da vontade deliberada; e se há outras que convêm ao homem, essas podem, por certo, chamar-se ações do homem [hominis actiones], mas não propriamente humanas [humanae], pois não procedem dele como tal” (ST I, II, q. 1, 1). “The order of voluntary actions pertains to the consideration of moral philosophy. [...] it is proper to moral philosophy, to which our attention is at present directed, to consider human operations insofar as they are ordered to one another and to an end”. In: AQUINO. Commentary on the Nichomachean Ethics (CEN). (Sententia Libri Ethicorum. I, I, 3). Trad. de C. I. Litzinger. Library of Living Catholic Thought, Chicago: Henry Regnery Co., 1964. p. 7. 288 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS agir. A ação tipicamente humana procederia, assim, do intelecto e da vontade. Isto é, o agente direcionaria a si mesmo, conscientemente, para um certo fim. E o faria livremente.49 Diferentemente dos atos de um homem, os atos humanos eram aqueles sobre os quais tínhamos domínio graças à razão e à vontade. Nem todos os atos de um ser humano podiam se tornar elementos de uma ação humana nesse sentido. Mas aqueles que podiam nos mostravam a extensão da moral. Apenas na medida em que era levado a produzir algo livremente ou deixava algo ocorrer desimpedidamente, o ser humano se tornava responsável por isso. Só assim o agir dos homens podia ser levado em conta como um ato humano. Isolado do fim em razão do qual a ação era executada, esse uso de nossa liberdade era, para o Aquinate, ininteligível. Para Aristóteles, havia um bem ou fim amplo, compreensivo e último em tudo o que os seres humanos faziam. Tomás de Aquino caminhava na mesma direção, mas o fazia por uma série de passos. O primeiro deles era a afirmação de que toda e qualquer ação humana visava a algo bom como seu fim. Essa asserção era tomada como uma propriedade da ação humana, a qual emanava da razão e da vontade. A ação só podia ser um ato humano por causa do objetivo que o agente tinha em mente quando a executava. Por isso, qualquer ação individual caracterizava-se como um ato de um determinado tipo. E o tipo derivava de seu fim ou objetivo. O segundo passo consistia em mostrar que se podia falar de um fim superior em razão do qual um objetivo era 49 “3. I am talking about human operations, those springing from man’s will following the order of reason. But if some operations are found in man that are not subject to the will and reason, they are not properly called human but natural, as clearly appears in operations of the vegetative soul. These in no way fall under the consideration of moral philosophy. As the subject of natural philosophy is motion, or mobile being, so the subject of moral philosophy is human action ordered to an end, or even man, as he is an agent voluntarily acting for an end” (CEN I, I, 3). 289 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO perseguido. Muitos tipos diferentes de atos podiam ser ordenados para o mesmo fim remoto, como o do bem-estar físico (aquecer a casa no inverno, comer adequadamente etc.). Essa era a origem da noção de fim último: um objetivo ao qual os alvos das outras ações estariam subordinados. Distinguindo entre a ordem da intenção e a da execução, o Angélico avisava que em cada um desses casos era preciso visar a algo primeiro ou último. Ao se tencionar um certo fim, tornavamse claros na mente os passos que precisavam ser dados para alcançá-lo. O objetivo último projetado ordenava o pensar para o que devia ser feito. Assim também, do ponto de vista da seqüência de execução, davam-se passos cuja racionalidade provinha do fim em vista.50 Daí decorria a pergunta: existiria algum objetivo último ao qual os fins de todas as ações humanas deveriam estar subordinados? Aristóteles afirmava que havia um fim último da vida humana a ser considerado em dois aspectos. Primeiro, o de que os governantes procuravam regular o máximo possível as ações humanas numa comunidade em vista do bem comum de seus membros. E, porque era o bem comum de todos os cidadãos, ele podia coincidir com o fim último de cada um deles isoladamente. Segundo, o de que havia um nome para esse bem compartilhado: felicidade ou bem viver (eudaimonia). Tudo o que fazemos, executamos para ser felizes. Pois a felicidade constituía o fim último da vida humana. Tomás de Aquino certamente tinha o modelo de Aristóteles em mente quando discutia essa questão, mas sua abordagem era diferente. Segundo o Angélico, 50 “Ora, há dupla ordem de fins: a da intenção e a da execução, e em ambas é necessário haver algo de primordial. Pois o primordial, na ordem da intenção, é como o princípio motor do apetite, o qual eliminado o apetite por nada seria movido. E quanto à execução, é primordial o princípio que faz a operação começar, subtraído o qual, nada começaria a operar nada. Ora, o princípio da intenção é o fim último; e o da execução é o primeiro dos meios conducentes ao fim” (ST I, II, q. 1, 4). 290 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS tudo quanto o homem deseja, há-de forçosamente desejar por causa do último fim. E isso ressalta de dupla razão. – A primeira é que tudo quanto o homem deseja está compreendido na noção de bem [sub ratione boni]. E se não é desejado como bem perfeito, que é o fim último, háde necessariamente sê-lo como tendendo para esse bem; pois sempre o que é incoativo [começado] se ordena para a própria consumação, como é patente tanto nas obras da natureza como nas de arte. (ST I, II, I, 6) Isto é, algo era visto como bom – e atraía a vontade – na medida em que constituía um componente do bem perfeito e completo do agente. A afirmação tomista, explica McInerny, repousava em duas pressuposições: 1) a de que não se podia desejar algo mau ou demoníaco, pois tais coisas constituíam o oposto do desejável. Só podíamos desejar algo na medida em que o víamos como bom para nós, isto é, quando enxergávamos o ter ou fazer a coisa como preferível ao não tê-la ou não fazê-la; 2) a de que havia uma distinção entre a coisa almejada e a razão para desejá-la, o aspecto sob o qual ela era procurada. As coisas que buscávamos eram inumeráveis. Mas cada uma delas era procurada por causa de seu bem, pois era vista sob o aspecto da bondade. Nosso bem era aquilo que nos preenchia e completava. Assim, qualquer objeto da ação devia ser visto ao menos como uma parte do nosso bem abrangente: por exemplo, come-se não apenas para agradar ao paladar, mas também para o bem-estar físico, o qual é parte do nosso bem abrangente.51 Quando Tomás de Aquino afirmava que todos os agentes humanos procuravam o mesmo fim último, estava dizendo que cada agente humano, o que quer que fizesse sob a afirmação de que o que fizera era bom, ele o fazia completando o tipo de agente que era. A noção de um bem humano 51 Cf. MCINERNY, Ralph. Ethics. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 200. 291 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO estava assim implícita em qualquer ação humana. Quando um agente executava um ato propriamente humano, podiase dizer que a ação era empreendida sob a asserção implícita de que agir, nesse sentido, era perfectivo do agente (no sentido de atingir um ato perfeito). Essa era a base da qual partia o Aquinate para afirmar que todos os agentes humanos perseguiam, de fato, o mesmo fim último.52 Mas os seres humanos, percebia Tomás, estruturavam suas vidas de maneiras diferentes: ordenavam seus dias e atividades de modos diversos. As sociedades humanas também diferiam em sua organização: uns viviam de modo mais “primitivo”, outros estavam mais próximos do ideal. As pessoas, contudo, em suas ações individuais, podiam estar erradas sobre o que era bom para elas, e podiam equivocar-se quanto aos fins últimos e subordinados que escolhiam para si. Por isso, a felicidade consistia em atingir aquilo que verdadeiramente tornava efetiva a razão do bem (ratio boni). Desse modo, Tomás de Aquino podia dar conta – e este é um ponto relevante que teria reflexos na sua concepção de sociedade política – tanto de como as coisas teriam de ser quanto de como elas de fato eram. Essa separação conceitual permitiria um avanço notável das idéias políticas: a realidade humana, tal como era, deixava de ser mero fruto de um castigo imposto pelo pecado original e tornava-se um objeto legítimo da investigação sobre o mundo terreno. 52 “11. [...] [all] things by a natural desire tend to good, not as knowing the good, but because they are moved to it by something cognitive, that is, under the direction of the divine intellect in the way an arrow speeds towards a target by the aim of the archer. This very tendency to good is the desiring of good. Hence, he says [o Filósofo], all beings desire good insofar as they tend to good. But there is not one good to which all tend; this will be explained later [...]. However, because nothing is good except insofar as it is a likeness and participation of the highest good, the highest good itself is in some way desired in every particular good. Thus it can be said that the true good is what all desire” (CEN I, I, 7). 292 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Havia uma tal propensão ao fim último que nenhum agente humano podia fracassar em buscá-lo, pois ele se fundava na asserção verdadeira e auto-evidente de que nenhuma pessoa podia agir senão em razão daquilo que tomava como bom. Mas, assim como as criaturas humanas podiam se enganar sobre o bem numa instância particular de ação, também podiam estar erradas sobre o que constituía um objetivo – supra-ordenado ou subordinado – digno de seus atos.53 O agente humano, explicava o Angélico seguindo Aristóteles, era precisamente aquele que executava as ações ditas humanas em vista do bem. Quando se desejava determinar se algo ou alguém era bom, devia-se perguntar qual era a sua função. Essa tinha sido a grande contribuição aristotélica para a análise moral: dizia-se que um olho era bom se ele cumpria a sua função de enxergar bem. O órgão era dito bom por executar bem a ação que lhe era própria.54 A atividade racional consistia, num sentido primário, naquela própria à faculdade da razão. Esta era subdividida nos usos teórico (ou especulativo) e prático da ratio. Num segundo sentido, uma atividade podia ser chamada racional 53 54 Se por algum motivo as pessoas passavam a achar que não fazer A era melhor do que fazê-lo, elas aprendiam que seu julgamento estava errado. Os seres humanos, necessariamente e de fato, desejavam o que pensavam ser bom para eles. E agora viam que fazer A não era bom. E quando havia discordância, esta não dizia respeito ao fato de que os seres humanos tinham de fazer o que os completava ou aperfeiçoava, mas sim discordavam a respeito de onde essa completude ou perfeição devia ser buscada. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 201-3. Ou seja, o bem de uma ação era o fundamento da virtude. E a virtude de algo consistia em exercer bem sua função natural ou tarefa própria. O ato humano só podia ser levado a cabo pelo agente humano, como no Filósofo. O que caracterizava o agir dos homens era a atividade racional – o ter domínio sobre as ações graças à razão e à vontade. E a virtude dessa atividade tornava o agente humano bom. Aqui, o Aquinate apenas aplicava ao agir humano os princípios derivados de sua metafísica, segundo a qual todas as coisas tendiam inevitavelmente para o seu fim último, que era necessariamente bom. 293 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO por se encontrar sob o domínio da razão, mesmo que fosse um ato de uma outra faculdade humana, como o apetite.55 Se havia um conjunto ordenado de tipos de atividades racionais, e se executar bem cada um desses tipos constituía uma forma distinta de virtude, seguia-se então que o bem humano consistia nos atos de uma pluralidade de virtudes. Como o bem era objeto também do apetite,56 seguia-se que as disposições perfectivas da ação racional eram, no sentido participativo do termo, mais propriamente denominadas virtudes.57 Pois as virtudes perfectivas do intelecto especulativo – a atividade humana característica por excelência – constituíam virtudes apenas num sentido aumentado e reduzido do termo: a geometria podia aperfeiçoar nosso pensar sobre quantidades aumentadas. Mas chamar alguém de um bom geômetra não consistia numa avaliação dele como pessoa. Pois, se geometria era uma virtude intelectiva, não era contudo uma vontade moral.58 55 56 57 58 “Assim pois, para agirmos retamente é necessário, não só a razão estar bem disposta pelo hábito da virtude intelectual, mas também a potência apetitiva o estar pelo hábito da virtude moral. Portanto, assim como o apetite se distingue da razão, a virtude moral se distingue da intelectual. Logo, assim como o apetite é o princípio dos atos humanos enquanto participa, de certo modo, da razão, assim o hábito moral realiza a noção de virtude humana na medida em que se conforma com a razão” (ST I, II, 58, 2). Sobre esse assunto, cf. GALLAGHER, D. Thomas Aquinas on will as rational appetite”. Journal of the History of Philosophy, v. 29, n. 4, p. 559-84, oct. 1991. Tomás de Aquino distinguia três tipos de virtudes: as intelectuais, as morais e as teologais. As virtudes intelectuais eram: inteligência, sabedoria, ciência, técnica e discernimento. Consistiam virtudes morais: a prudência ou discernimento, justiça, coragem e moderação ou temperança. Por fim, as virtudes teologais eram: a fé, a caridade e a esperança. Cf. NASCIMENTO, op. cit., p. 74-6. “A virtude humana é um hábito que aperfeiçoa o homem para obrar retamente. Ora, os atos humanos só têm dois princípios: o intelecto, ou razão, e o apetite; estes são os dois princípios motores no homem [...]. 294 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS McInerny aponta dois sentidos em que se deveria considerar a virtude: em sentido próprio e estrito, a virtude assegurava um firme e constante amor pelo bem. Envolvia assim essencialmente a vontade: o bem constituía o objeto e o amor, o ato da vontade. Num sentido secundário do termo, a virtude apenas dotava de uma capacidade, que podia ser usada de forma boa ou má, dependendo da disposição de nossa vontade.59 Mas Tomás de Aquino dispensava duas virtudes intelectuais dessa limitação: a prudência e o intelecto. Virtudes intelectuais, por poderem ser usadas de forma boa ou má, não eram virtudes no sentido pleno do termo. Apenas os hábitos que dispunham o apetite conferiam as duas coisas: a capacidade e a inclinação para usar bem essa capacidade. A prudência (ou sabedoria prática) era uma virtude do intelecto prático, que, por se ligar também à razão, e desse modo ao intelecto especulativo, se relacionava de forma especial com as outras virtudes morais. Assim, o bem para um ser humano era formado por uma pluralidade de virtudes ou disposições intelectuais e morais. Nenhuma virtude particular poderia tornar o agente humano bom, pois o funcionamento humano não era algo unívoco. Para ser moralmente bom, era preciso ser dotado de virtudes morais, as quais dependiam daquela disposição da razão prática que Tomás de Aquino chamava de prudência. As virtudes morais permitiam a ordenação dos bens do apetite sensorial ao bem abrangente do agente. E vontade ou apetite racional era matéria da justiça.60 59 60 Por onde, toda virtude humana há-de forçosamente ser perfectiva de um desses dois princípios. Se o for do intelecto especulativo ou prático, a virtude será intelectual; e moral, se da parte apetitiva. Donde se conclui que toda virtude humana ou é intelectual ou moral”. (ST, I, II, 58, 3). Cf. MCINERNY, op. cit., p. 203. “Não há dúvida que as virtudes morais podem existir sem certas virtudes intelectuais, como a sabedoria, a ciência e a arte; não o podem 295 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A virtude moral inclinava para o fim e permitia à prudência decidir de forma eficaz sobre os meios a serem escolhidos. O julgamento da prudência era conhecimento de um tipo diferente daquele expresso em princípios.61 O pensar prático (ou razão prática) principiava com o fim buscado e visava aos meios de atingi-lo, movendo-se dos meios remotos aos próximos, chegando por último ao que se podia fazer aqui e agora. Isso era o que significava para Tomás de Aquino a ordem da intenção. Já a ordem da execução, de maneira oposta, começava pelo ato que se podia executar aqui e agora para depois passar ao alcance do fim. A análise desses atos internos conduzia a uma relação entre os atos do intelecto e os da vontade. As ações, na ordem da intenção, diziam respeito ao fim: isto é, àquilo que a mente concebia como bom e, portanto, como um objetivo a ser perseguido. Ao considerar um objeto como bom, na ordem da intenção, a mente procedia a três atos da vontade: 61 porém sem o intelecto e a prudência. Assim, não podem existir sem a prudência, por ser a virtude moral um hábito eletivo, i. é, que torna boa a escolha. Ora, para esta ser boa se exigem duas condições. A primeira é haver a devida intenção do fim; e isto se dá pela virtude moral, que inclina a potência apetitiva ao bem conveniente com a razão, que é o fim devido. A segunda é que nos sirvamos retamente dos meios, o que não pode se dar senão pela razão, que aconselha retamente, no julgar e no ordenar, o que pertence à prudência e às virtudes anexas [...]. Por onde, a virtude moral não pode existir sem a prudência. E, por conseqüência, sem o intelecto. Pois, por este é que conhecemos os princípios evidentes, tanto na ordem especulativa como na operativa. Por onde, assim como a razão reta, na ordem especulativa, enquanto procede de princípios naturalmente conhecidos, pressupõe o intelecto dos princípios, assim também a prudência, que é a razão reta dos atos” (ST I, II, 58, 4). Às vezes, observa McInerny, Tomás de Aquino opunha conhecimento geral ao tipo de conhecimento exigido pela prudência, descrevendo o primeiro como conhecimento racional (per modum rationis) e o último como conhecimento conatural (per modum connaturalitatis). Esse conhecimento da prudência pelo modo da inclinação natural equivalia à virtude. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 206. 296 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS volição (pois acreditava-se que esse objeto preencheria nossas necessidades); prazer (pois pensar em obtê-lo nos agradaria); e intenção (pois passaria a ser intencionado ou desejado, embora o caminho para tal ainda não fosse claro). Quando o ato interno passava a mover na direção da escolha dos meios, agora portanto na ordem da execução, outros três atos da vontade se manifestavam: consenso, escolha e uso.62 Tomás de Aquino havia adotado um traço da filosofia aristotélica quando afirmava existirem pontos de partida ou princípios do pensar humano acessíveis a todos. Entendia como princípios aquelas verdades mínimas encravadas no curso moral dos seres humanos. Os preceitos básicos da moralidade vinham à tona quando do confronto com outros seres que pensavam de maneira diferente da nossa, pois tornava-se necessário explicar-lhes sobre que bases pensávamos a nós mesmos. O nome conferido pelo Aquinate aos princípios subjacentes à prática moral e ao discurso que tinham implicação fora da reflexão era lei natural. Por lei o Angélico entendia uma ordenação racional para o bem comum, promulgada por aquele a quem competia o governo da comunidade. O objetivo desse constrangimento de certas liberdades dos homens residia na preservação do bem comum dos cidadãos. Estas leis, agora com caráter civil, funcionavam como guias para a ação e não podiam estar em conflito com verdades morais fundamentais, pois não eram uma matéria arbitrária. Os julgamentos morais emergiam no discurso como leis não-escritas. A mente compreendia os bens humanos como aqueles aos quais todos as pessoas eram naturalmente inclinadas. A virtude, como uma segunda na62 Como geralmente podia haver uma pluralidade de meios atraentes pelos quais podemos chegar ao fim desejado, o consenso sobre eles precederia a escolha. Cf. MCINERNY, op. cit., p. 207-8. 297 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tureza, constituía a perfeição de uma inclinação natural em direção ao bem.63 Deste modo, o julgamento sobre bens aos quais os seres humanos naturalmente se inclinavam formava os pontos de partida ou princípios do discurso moral. E o conjunto desses princípios morais constiuía o que Tomás denominava lei natural. Esses julgamentos primeiros não podiam ser recusados. Nesse sentido, eles se assemelhavam aos primeiros princípios gerais da razão, os quais não podiam ser objeto de demonstração. Na ordem moral, o equivalente desse princípio da não-contradição era a premissa básica de que “o bem devia ser perseguido e o mal evitado”,64 fundamento de toda justiça. Inclinações naturais, portanto, eram necessariamente aquelas que tínhamos: não podiam ser objeto de escolha. E a ordem moral consistia em direcionar a mente para a persecução dos objetos das inclinações naturais, fazendo-o bem.65 63 64 65 “Porque é próprio da virtude moral, que é um hábito eletivo, fazer uma eleição reta; e para isso não basta só a inclinação para o fim devido [...], mas é também preciso escolhermos diretamente os meios; e isto se realiza pela prudência, que aconselha, julga e preceitua sobre eles. E semelhantemente, a prudência não a podemos ter sem que tenhamos as virtudes morais; pois ela é a razão reta do que devemos fazer, e procede dos fins das ações, como de princípios, em relação aos quais nos avimos retamente por meio das virtudes morais” (ST I, II, 65, 1). “[...] o bem é o primeiro objeto da apreensão da razão prática, ordenada para a ação; pois todo agente obra em vista de um fim que é, por essência, um bem. Por onde, o primeiro princípio da razão prática é fundado na noção do bem, que assim se formula: o bem é o que todos desejam. Logo, o primeiro preceito da lei é: deve-se fazer e buscar o bem e evitar o mal. E este é o fundamento de todos os outros preceitos da lei natural; de modo que tudo quanto a razão prática naturalmente apreende como bens humanos, e que deve ser feito ou evitado, pertence aos preceitos da lei da natureza” (ST I, II, 94, 2). A capacidade de fazer julgamentos morais rápidos e corretos, lembra Boyle, tinha algumas condições. Uma delas era a consciência dos princípios universais da lei natural, conhecidos por todos por meio de uma 298 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Lei natural segundo a concepção do Aquinate era, assim, uma teoria que tratava do raciocínio moral: existiam certas verdades inegáveis sobre aquilo que podíamos e sobre o que não podíamos fazer. Essas verdades eram descritas como princípios conhecidos por si. Todo agente humano tinha acesso a esses princípios fundamentais da lei natural. O comportamento dos homens, para Tomás de Aquino, era marcado pelo pecado e pela perversidade. Mas a natureza não havia sido destruída pelo vício: se assim fosse, a graça nada teria para o que se dirigir. “Embora a graça seja mais eficaz do que a natureza”, escrevia o Angélico, “a natureza contudo é mais essencial ao homem, e portanto mais permanente” (ST I, II, 94, 6, ad 2). Tomás de Aquino, de modo arguto, chamava a atenção para o fato – muito útil à sua argumentação – de Aristóteles não acreditar que a noção de fim último pudesse ser completamente alcançada por agentes humanos. A felicidade humana constituía, para a maioria dos homens, apenas uma realização imperfeita da noção de fim último: a muito poucos estaria reservado atingir o ideal da contemplação perfeita, a completa eudaimonia.66 Esta idéia se traduzia, para Tomás de Aquino, numa distinção entre uma realização perfeita e imperfeita do fim último. Nesta interpretação, o ideal filosófico do mestre grego não conflitava com o cristão: ambos eram doutrinas a respeito daquilo que realizava perfeitamente o ideal humano da felicidade. 66 disposição racional que Tomás de Aquino denominava synderesis. A outra era uma base para valorar racionalmente as peculiaridades das possibilidades concretas de ação que alguém enfrentava: a pessoa precisava ser capaz de avaliar e controlar suas respostas emocionais às singularidades das alternativas disponíveis para que suas ações estivessem de acordo com o que era bom. Ser totalmente racional na ação requeria, portanto, prudência, virtude máxima da ação moral. Cf. BOYLE, J. Natural law and the Ethics of tradition. In: GEORGE, Robert (Ed.). Natural law theory. Oxford: Clarendon Press, 1995. p. 13-4. Cf. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, l. 1, 10 (1101a14-21). 299 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A percepção pelo filósofo pagão de que nosso alcance conceitual era superior à nossa compreensão prática fornecia a base para que Tomás de Aquino pudesse falar de complementaridade – mais do que de oposição – entre o filosófico e o teológico. Pelo contrário: o estudo da moral, fosse para fins religiosos ou práticos, pressupunha o conhecimento fornecido pela doutrina natural, e seria no fundo inconcebível sem um forte grau de confiança nas realizações da filosofia como método do pensar. E o mesmo raciocínio valia para o estudo da política, a ciência suprema entre as que compunham o conhecimento prático. “A estrutura do mundo moral”, escreve Cassirer comentando Tomás de Aquino, “é do mesmo tipo que a do mundo físico. Deus não é somente o criador do universo físico; é, primeiro e principalmente, o legislador, a fonte da lei moral. [...] Mas a ordem moral é uma ordem humana que só pode ser levada a cabo por uma livre cooperação do homem. Não lhe foi imposta por um poder super-humano; depende simplesmente de nossos atos livres”. A ordem social – e neste ponto Tomás de Aquino seguia de perto o Filósofo – deveria derivar de um princípio empírico. “O Estado”, na visão do Angélico, sintetiza Cassirer, nasce do instinto social do homem. É esse instinto que primeiro leva à constituição da família, e, a partir daí, por um desenvolvimento constante, às outras formas mais complexas de comunidade. Contudo, não é necessário nem possível relacionar a origem do Estado com nehum fato sobrenatural. O instinto social é comum aos homens e aos animais; mas no homem assume uma forma nova, [...] dependente de uma atividade livre e consciente. Decerto, Deus continua, num sentido, a ser causa do Estado; mas aqui, tal como no mundo físico, ele age simplesmente como uma causa remota ou causa impulsiva. Esse impulso original não liberta o homem da sua obrigação fundamental. Deve ele pelos seus próprios es300 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS forços erguer uma ordem de direito e de justiça. É através dessa organização do mundo moral e do Estado que ele prova a sua liberdade.67 Nessa concepção, a comunidade política terrena e a Cidade de Deus passavam a se relacionar e completar-se. Como “a graça não destrói a natureza, e sim a aperfeiçoa”, os dois reinos estavam agora fundidos numa unidade perfeita. Nascimento conta que M-D. Chenu chamou essa segunda parte da Suma de teologia – que trata do movimento da criatura racional na direção d’Ele – de uma “ontologia da graça”. Pois nela Tomás de Aquino não fazia moral no sentido usual de estabelecer os limites do lícito e do ilícito: “sua preocupação fundamental é descrever um organismo vivo que permite ao ser humano agir como tal e como cristão”.68 É justamente essa separação entre homem e cristão e entre cristão e cidadão que iria permitir o avanço de conceitos e noções laicas nas idéias políticas. Tomás de Aquino primeiro fundamentou essa separação no âmbito ético, ou seja, no campo da ação individual. E, somente num passo seguinte, estendeu-a ao campo da política, isto é, à ação coletiva. A explicação para as diferenças repousava agora mais na natureza do que na revelação ou castigo divinos. III LEI E DIREITO: A NATUREZA MEDIADA PELA RAZÃO Dois aspectos dessa ampla doutrina moral construída por Tomás de Aquino merecem uma observação mais deta67 68 Cf. CASSIRER, op. cit., p. 132 – grifos meus. Vale a pena reter de seu comentário a idéia de que “não é necessário” relacionar a naturalidade da comunidade política ao Criador. Pois isso era o que mostrariam em breve alguns dos leitores de Tomás de Aquino, como João Quidort ou Dante, entre outros. NASCIMENTO, op. cit., p. 79. 301 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO lhada: as noções de lei e de direito. Pois, embora fizessem parte do movimento do seres humanos na direção de Deus, as duas idéias, tal como definidas e explicadas pelo Angélico, forneciam um elevado grau de compreensão a respeito de sua visão da organização da vida coletiva na terra. Além disso, elas seriam a base dos avanços registrados nas idéias políticas, proporcionando uma nova sustentação para a teoria da lei e do direito natural que se desenvolveria nos séculos seguintes. No Aquinate, a noção de lei vinculava-se a um modo específico de conhecimento: aquele que se dava por meio da razão humana. Como já se viu, nenhuma verdade podia, do ponto de vista da razão, ser contrária à fé. Do mesmo modo, nenhuma verdade da fé podia negar a natural. Embora a verdade fosse uma só, havia, segundo Tomás de Aquino, duas vias para alcançá-la: a fé e a razão. Mas a razão, pelo fato de seus princípios operativos partirem das coisas sensíveis, não podia ter pretensões à infalibilidade – já que os sentidos podiam falhar. A fé consistia na obediência às palavras de Deus, mas exigia, para o conhecimento de suas verdades, o intelecto.69 A razão, por sua vez, era de certo modo indispensável à fé: o poder de conhecer certas verdades concernentes a Deus era inerente à natureza da razão humana.70 A fé era simultaneamente uma graça divina e um ato do homem, pois a palavra de Deus tinha de fazer algum senti69 70 A fé garantia às verdades divinas, escreve Rassam, “o equilíbrio interior sem o qual a natureza humana seria quase incapaz de usar corretamente a razão. Efetivamente, longe de alienar a razão, a fé ajuda a encontrar a sua integridade natural”. Cf. RASSAM, op. cit., p. 21. “Mas também, naquilo que de Deus pode ser investigado pela razão humana, foi necessário ser o homem instruído pela revelação divina. Porque a verdade sobre Deus, exarada [investigata] pela razão, por poucos chegaria aos homens, depois de longo tempo e de mistura com muitos erros, se bem do conhecer essa verdade depende toda a salvação humana, que em Deus consiste” (ST I, q. 1, 1). 302 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS do para a razão.71 Fé e saber, portanto, podiam existir numa mesma pessoa, ao mesmo tempo, mas sob perspectivas diferentes (ST II, II, 1, 2), do mesmo modo que uma mesma realidade era estudada por ciências diversas sob os seus diferentes aspectos. Assim, a essência da razão não era alienada sob os auspícios da fé, pois seu triunfo consistia em conservar a razão ou a eficácia própria das suas leis. A autoridade da fé, por sua vez, era aumentada, e não diminuída, pela sustentação que encontrava na luz natural da razão.72 Era por meio do conhecimento das leis que a razão ou o intelecto humano podia apreender as verdades do intelecto divino. 1. Lei: uma ordenação hierárquica da razão com vistas ao bem comum Isso era o que o Angélico mostrava ao responder às questões 90 a 108 da Suma teológica (I, II), as quais tratam da lei e compõem o livro comumente conhecido como o Tratado da Lei. Nele, como lembra o renomado medievalista Souza Neto, Tomás de Aquino dizia que continuava abordando o mesmo assunto, Deus, agora, porém, visto como princípio exterior que movia o homem na direção do bem,73 instruin71 72 73 A fé, portanto, não era contrária à razão, pois exigia a adesão do intelecto: “a fé implica o assentimento do intelecto àquilo em que cremos” (ST II, II, 1, 4). “A perfeição do intelecto e da ciência excede o conhecimento da fé, por ter maior clareza, não porém por ter mais certa a adesão. Pois toda a certeza do intelecto ou da ciência, enquanto dons, procede da certeza da fé, assim como a do conhecimento, das conclusões, da certeza dos princípios. Enquanto porém virtudes intelectuais, a ciência, a sapiência e o intelecto se apóiam na luz natural da razão, que não tem a certeza da palavra de Deus, em que se baseia a fé” (ST II, II, 5, 1). SOUZA NETO, Francisco Benjamin. Introdução. In: AQUINO. Escritos políticos. Trad. de F. B. Souza Neto. Rio de Janeiro: Vozes, 1995. p. 9. 303 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO do-o por meio da lei e ajudando-o por meio da graça.74 E o papel atribuído pelo Angélico à razão, no que respeitava à determinação da lei, era sem dúvida nada pequeno: como a lei preceituasse e proibisse, e ordenar era algo próprio da razão, concluía o Aquinate que “a lei é algo da razão” (TL I, II, 90, 1). A lei, definia Tomás de Aquino, “é certa regra e medida dos atos, segundo a qual é alguém inclinado a agir ou é afastado de certa ação”. Regra e medida dos atos humanos, a razão constituía primeiro princípio do agir dos homens. Pois cabia a ela ordenar para o fim, explicava o Angélico citando Aristóteles, que era o primeiro princípio do agir. “Com efeito, em cada gênero, o que é princípio, é medida e regra do referido gênero [...]. Donde seguir-se que a lei é algo pertinente à razão” (TL I, II, 90, 1). Por meio da vontade de alguém, a razão ordenava para um fim. À razão, portanto, resume Souza Neto, o Aquinate atribuía “a dignidade de mediadora imanente de toda legislação, sem detrimento de seu princípio transcendente, Deus”.75 Quando definia lei como “um ordenamento da razão”, Tomás de Aquino tinha em mente um tipo específico de razão, um raciocinar que era orientado para um fim: o Deus criador. E sempre que alguém desejava um fim, a razão comandava o que devia ser feito para alcançá-lo (TL I, II, 90, 1). Esse comando racional não era um mero ato da vontade, pois seria puro arbítrio. Por isso, quando a lei romana dizia 74 75 “O princípio externo a inclinar para o mal é o Diabo”, escrevia Tomás de Aquino logo no início, na introdução à questão 90. E “o princípio externo que move ao Bem”, continuava, “é Deus, que nos instrui mediante a lei, auxilia mediante a graça. Donde deve-se discorrer primeiro sobre a lei e em seguida sobre a graça” (TL I, II, 90, 1). Especificamente no que respeita ao Tratado da lei (questões 90 a 97), foi usada aqui a edição recentemente traduzida por Souza Neto, acima mencionada. As citações retiradas dessa edição serão indicadas pela abreviação (TL), seguida da codificação-padrão utilizada para a Suma teológica. SOUZA NETO, op. cit., p. 9. 304 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS que “a vontade do príncipe tinha força de lei”, devia-se entender que essa vontade tinha de ser guiada pela razão. “A vontade concernente ao que é ordenado”, escrevia Tomás de Aquino, “para que tenha a razão de lei, deve ser regulada por certa razão. É neste sentido que se entende ter a vontade do príncipe vigor e lei: de outro modo, ela seria mais iniqüidade do que lei” (TL I, II, 90, 1, ad 3). A lei, continuava, pertence ao que é princípio dos atos humanos, por ser regra e medida. Mas, como a razão é princípio dos atos humanos, há algo inerente à própria razão que é o princípio em relação a todo o restante [...]. Ora, o primeiro princípio no que concerne ao operar, o qual compete à razão prática, é o fim último. Por sua vez, o fim último da vida humana é a felicidade ou beatitude [...]. Donde ser necessário que a lei vise sobretudo à ordenação para a beatitude. De resto, dado qualquer parte ordenar-se para o todo como o imperfeito ao perfeito e ser cada homem parte de uma comunidade perfeita, é necessário que a lei vise à ordenação para a felicidade comum como o que lhe é próprio. (TL I, II, 90, 2) O objetivo da lei, portanto, dizia Tomás de Aquino, era a ordenação para o bem comum. “Ora, ordenar algo para o bem comum compete a toda a multidão ou a alguém a quem cabe gerir fazendo as vezes de toda a multidão. Portanto, estabelecer a lei pertence a toda a multidão ou à pessoa pública à qual compete cuidar de toda a multidão”. Qualquer pessoa privada, advertia, podia dar conselhos. “Mas se seu conselho não é aceito, não tem força, o que deve possuir a lei, para induzir eficazmente à virtude”. Também aquele que governava uma família podia ser autor de certos preceitos ou estatutos. Mas estes não tinham, em sentido estrito, razão de lei. “Esta força coativa tem a multidão ou a pessoa pública, à qual compete infligir as penas como se dirá adiante. Eis por que só a ela cabe legislar” (TL I, II, 90, 3 – grifos meus). 305 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Da leitura aristotélica, como se vê, Tomás de Aquino adotou a noção de governo sobre homens livres, capazes de dirigirem a si mesmos. Fundamentava ainda o princípio da representação, ao atribuir ao povo (populus) a capacidade legislativa: na multidão repousava a fonte última da autoridade. Essas eram idéias que fariam escola no pensamento político. A lei era imposta aos outros, continuava Tomás de Aquino no artigo 4°, pelo modo da regra e da medida. Para que a aplicação da lei obtivesse o vigor de obrigar, que lhe era próprio, ela devia tornar-se conhecida por meio da promulgação: “Donde ser a promulgação necessária para que a lei venha a ter o seu vigor”. E resumia: a lei “não é senão certa ordenação da razão para o bem comum, promulgada por aquele a quem cabe cuidar da comunidade” (TL I, II, 90, 4). Ou seja, a lei constituía apenas um certo ditame da razão prática no príncipe, que governa alguma comunidade perfeita. Ora, é manifesto, suposto ser o mundo regido pela divina providência, [...] que toda a comunidade do universo é governada pela razão divina. Assim pois, a própria razão do governo existente, em Deus, como príncipe do universo, compreende a razão de lei. E porque a divina razão nada concebe a partir do tempo, mas é dotada de conceito eterno, [...] segue-se que tal lei deve dizer-se eterna. (TL I, II, 91, 1) Isto é, a primeira forma da lei era a lei eterna (lex aeterna), da qual participavam as demais formas de lei, e baseava-se na razão divina. Segundo a hierarquia das leis, à lei eterna seguia-se a lei natural (lex naturalis): todo ser participava “de algum modo da lei eterna, em razão de sua natureza”. Nesse sentido, cada ente era dotado de uma lei natural, escreve Souza Neto explicando Tomás de Aquino, que era para ele regra e medida e, como certa impressão da lei eterna, fazia com que se inclinasse para seus próprios atos e fins. Essa participação ocor306 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS ria de forma específica e diferenciada. No ser humano, “criatura racional, se eleva a uma verdadeira participação na providência, na medida em que cabe à razão ser providente para o homem e os demais entes”.76 Essa participação da lei eterna na criatura racional constituía o que se chamava em sentido pleno lex naturalis77 e valia-se de uma luz própria à razão, que a levava ao discernimento natural do bem (TL I, II, 91, 2). À lei natural, seguia-se naturalmente a lei humana (lex humana), que era um ditame da razão prática e decorria do fato de seu procedimento guardar um certo paralelismo com o da razão especulativa: ambas partiam de certos princípios indemonstráveis para produzir as suas conclusões (esta das diversas ciências, aquela das disposições particulares). A lei humana, assumindo como princípios os preceitos da lei natural, “destes faz derivar disposições mais particulares, as quais, em seu conjunto, são chamadas de lei humanas, respeitadas todas as condições inerentes à razão de lei”.78 Por versar sobre obras a realizar, pertencentes portanto à esfera do singular e do contingente, a razão prática não procedia com o mesmo rigor e infabilibidade da razão especulativa nas conclusões demonstrativas da ciência (TL I, II, 91, 3, ad 3). A lei divina (lex divina) devia regular as relações entre Deus e homem pelo fato de ter o Criador se revelado às criaturas e as ter chamado a participar de sua vida eterna. Ou seja, a vocação humana à beatitude constituía o fundamento 76 77 78 Ibid., p. 10. “[...] também os animais irracionais participam da razão eterna, como a criatura racional, mas de um modo que lhes é próprio. Mas, como a criatura racional dela participa intelectual e racionalmente, por esta razão a participação da lei eterna na criatura racional chama-se em sentido próprio lei: pois é a lei algo da razão [...]. Com efeito, na criatura irracional tal participação não se faz mediante a razão, donde não pode dizer-se lei senão por semelhança” (TL I, II, 90, 2, ad 3). SOUZA NETO, op. cit., p. 11. 307 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO que exigia uma lei divina (o bem consistente na comunhão com Deus). A lei humana, dizia Tomás de Aquino historiando, “não foi suficiente para coibir e ordenar os atos interiores, mas foi necessário que para isto sobreviesse a lei divina”. E, como “a lei humana não pode punir ou proibir todos os males que se praticam, [...] para que nenhum mal permaneça sem proibição ou punição, foi necessário sobrevir a lei divina, pela qual são proibidos todos os pecados” (TL I, II, 91, 4). E à questão de haver – ou não – uma única lei divina, o Angélico respondia que, assim como o imperfeito caminhava para o perfeito, também a lei antiga (Velho Testamento), que ordenava para o bem comum terreno e sensível, se distinguia da lei nova (Novo Testamento), que ordenava para o inteligível e celeste, sendo por isso dupla.79 Por ser universal, aquilo que se estabelecia na lei era fundamental para a compreensão das relações entre governantes e governados. Tomás de Aquino afirmava, seguindo o mestre grego, que era efeito da lei tornar os homens bons, fazendo-os obedientes àquele que governava nos termos por ela prescritos. Se a lei visasse ao bem comum, ela tornava bom, na medida em que fosse observada, todo aquele que a 79 “[...] algo pode distinguir-se de dois modos”, escrevia Tomás: “como o perfeito e o imperfeito dentro da mesma espécie [...]. É deste modo que a lei divina se distingue em lei antiga e lei nova. [...] em primeiro lugar, cabe à lei ordenar ao bem comum como a seu fim, [...] e este pode ser duplo: o bem sensível e terreno e a tal bem ordenava diretamente a lei antiga: eis porque, em “Êxodo” 3: 8; 17, logo no princípio da lei, é o povo chamado a conquistar o reino terreno dos cananeus; há, em seguida, o bem inteligível e celeste e a este ordena a lei nova. [...] As promessas das coisas temporais estão contidas no Antigo Testamento, eis porque chama-se antigo; todavia, a promessa da vida eterna pertence ao Novo Testamento. Cabe à lei, em segundo lugar, dirigir o saber humano segundo a ordem da justiça. [...] Em terceiro lugar, cabe à lei conduzir os homens às observâncias dos preceitos. Isto fazia a lei antiga mediante o temor das penas; ao contrário, a lei nova o faz pelo Amor que é infundido em nossos corações pela graça do Cristo, que na lei nova é conferida, e na lei antiga era figurada” (TL I, II, 91, 5 – grifos meus). 308 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS ela se sujeitava pura e simplesmente.80 Senão, tornava o homem bom apenas na medida em que lhe incutia certa ordem: a lei tirânica, por não ser segundo a razão, não é lei pura e simplesmente, mas antes certa perversão da lei. E, todavia, na medida em que preserva algo da razão de lei, intenciona que os cidadãos sejam bons. Pois nada tem da razão de lei senão na medida em que é o ditame de alguém que preside seus súditos e intenciona que os súditos obedeçam bem à lei; nisto, são eles bons, não pura e simplesmente, mas enquanto ordenados a tal regime. (TL I, II, 92, 1, ad 4) Seu raciocínio aqui era estritamente aristotélico. Os atos da lei eram quatro: ordenar, proibir, permitir e punir. A lei eterna, razão da sabedoria divina, fazia-se conhecer por sua irradiação. Isso assegurava a vigência da lei eterna no âmbito de todas as criaturas inteligentes. E assim como toda criatura participava do ser divino, assim também todo aquele que se movia recebia de Deus a moção preliminar e, a esse título, tinha nele sua lei eterna. Nas palavras de Tomás de Aquino: 80 “[...] a lei não é senão o ditame da razão naquele que preside e por quem são governados os súditos. Ora, é virtude de qualquer súdito sujeitar-se bem àquele por quem é governado. [...] é próprio da lei induzir os súditos à virtude que lhes é própria. Sendo, pois, a virtude ‘aquilo que faz bom o que a possui’, segue-se que é efeito próprio da lei fazer bons aqueles aos quais é dada, de modo absoluto ou relativo. Assim, se a intenção de quem promulga a lei tende para o verdadeiro bem, que é o bem comum regulado segundo a divina justiça, segue-se que pela lei os homens se tornam bons pura e simplesmente. Se, porém, a intenção do legislador for algo que não seja o bem pura e simplesmente, mas o que lhe é útil ou agradável, ou o que repugna à justiça divina, então a lei não faz os homens bons pura e simplesmente, mas de certo modo, ou seja, em conformidade com um tal regime. Dessa forma, encontra-se algum bem mesmo no que é por si mal, como se diz ser alguém um bom ladrão por agir adequadamente para o seu fim” (TL I, II, 92, 1 – grifos meus). 309 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO [...] a lei importa certa razão diretiva dos atos para os fins. Ora, em todos os motores ordenados é mister que a força do motor segundo derive da força do motor primeiro [...]. Donde divisarmos em todos os governantes o mesmo, isto é, que a razão de governo deriva do primeiro ao segundo governante, como na cidade, a razão do que deve ser executado mediante o preceito deriva do rei aos administradores inferiores.81 (TL I, II, 93, 3) Só não estava sujeito à lei eterna, portanto, aquilo que era inerente à essência divina. Todo o restante lhe era submisso, fossem criaturas irracionais ou partícipes da razão. Quanto à lei natural, o Aquinate esclarecia que ela não constituía um “hábito”: “o que” alguém fazia diferia do “por que” o fazia. O hábito era aquilo “por que” uma pessoa agia. Entretanto, por estar habitualmente na razão, ela podia dizer-se hábito, já que a razão nem sempre considerava a lei natural um ato. Essa lei natural continha um único princípio: a razão prática partia do bem, que era o que ela primeiro concebia. Nele, a razão prática fundava o seu primeiro princípio: o bem devia ser praticado e o mal evitado. E deste derivava os demais princípios ou leis. Essa derivação se perfazia segundo a tríplice inclinação do homem: aquela que tinha em comum com todas as substâncias; a que repartia com os animais; e a que tinha como própria à natureza da razão, como a inclinação natural para o conhecimento de Deus e para a vida em sociedade (TL I, II, 94, 2). A lei natural prescrevia os atos de todas as virtudes, pois pertencia a tal lei tudo aquilo para o que o homem naturalmente se inclinava. Contudo, nem todos os atos das virtu81 E adiante: “Sendo, pois, a lei eterna a razão de governo no supremo governante, é necessário que todas as razões de governo inerentes aos governantes inferiores derivem da lei eterna. Ora, tais razões inerentes aos governantes inferiores são quaisquer outras leis, excetuada a lei eterna. Donde todas as leis derivam da lei eterna na mesma medida em que participam da reta razão” (idem). 310 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS des eram da lei de natureza: isto é, a lei de natureza não inclinava de imediato para as virtudes, pois alguns dos atos virtuosos eram descobertos por meio de pesquisa da razão. A razão contemplativa trabalhava com o rigor da lógica, partindo de premissas fundadas em princípios ou neles consistentes, podendo chegar por isso sem falha às mais extremas conclusões. Já a razão prática, por operar com o contingente, era sempre a mesma para todos quanto aos princípios comuns e quanto ao seu conhecimento.82 Mas podia falhar em suas conclusões (quanto à retidão da ação prescrita e às vezes até mesmo quanto ao conhecimento). Pois a força da paixão ou de um mau costume podia depravar a razão.83 Podia então a lei natural ser mudada? Tomás de Aquino admitia que sim, e explicava os dois modos pelos quais isso podia ocorrer: por acréscimo e por subtração. Mudá-la para acrescentar, desde que visasse à utilidade da vida humana, era sempre admissível.84 Já subtrair constituía uma exceção na aplicação da lei. No que respeitava aos primeiros princípios, a lei de natureza não podia ser abolida nem suprimida do coração dos homens: [...] quanto a tais princípios comuns, a lei natural de nenhum modo pode ser abolida do coração humano de for82 83 84 Cf. SOUZA NETO, op. cit., p. 14. “Assim, deve dizer-se que a lei da natureza, quanto aos primeiros princípios comuns, é a mesma em todos, tanto segundo a retidão, quanto segundo o conhecimento. [...] em poucos casos pode ela falhar, seja quanto à retidão, por causa de alguns impedimentos [...] seja quanto ao conhecimento. Isto ocorre porque alguns têm a razão depravada pela paixão, por um mal costume ou por uma disposição má da natureza, como p. ex. entre os antigos germanos o latrocínio não era reputado iníquo, embora seja expressamente contra a lei da natureza” (TL I, II, 94, 4). “Dessa forma, nada proíbe ser a lei natural mudada, pois muito foi acrescentado à lei natural, tanto pela lei divina, quanto por leis humanas para utilidade da vida humana” (TL I, II, 94, 5). 311 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ma universal. É abolida, porém, em algo de operável, na medida em que a razão é impedida de aplicar o princípio geral ao operável particular por óbice da concupiscência ou de alguma outra paixão [...]. Quanto aos preceitos segundos, entretanto, pode ser a lei natural abolida dos corações dos homens, ou por força das más persuasões, do mesmo modo que, no especulativo, ocorrem erros a respeito das conclusões necessárias, ou ainda por causa dos maus costumes e hábitos. (TL I, II, 94, 6) Ao examinar a lei humana, Tomás de Aquino insistia não só na utilidade, mas também na necessidade de o homem promulgar leis: assim como a natureza não dotou o homem de todas as coisas necessárias à sua sobrevivência, deixando muito à incumbência da razão e das mãos, também no que respeitava à virtude dotou-o de certa aptidão, mas “deixou a perfeição nesta à incumbência de certa disciplina”: à disciplina que obriga pelo medo da pena, a da lei.85 E, como era mais fácil encontrar uns poucos virtuosos para promulgar as leis do que muitos para arbitrar com fundamento na justiça, que era inerente às leis, Tomás de Aquino concluía que era necessário que “a lei determine o que deve ser julgado e deixar pouquíssimos [casos] ao arbítrio dos homens” (TL I, II, 95, 1, ad 2), confiando aos juízes apenas aquilo que não podia ser compreendido pela lei. A lei humana, entretanto, derivava da lei natural. E uma lei só podia ser verdadeiramente denominada como tal se fosse justa, tal como havia mostrado Agostinho.86 Dois modos de derivação da lei natural eram possíveis: o da conclusão que se seguia ao princípio; e o da determinação do 85 86 Cf. SOUZA NETO, op. cit., p. 15. No âmbito humano, algo só se dizia justo “por ser reto segundo a regra da razão. Ora, por sua vez, a primeira regra da razão é a lei da natureza [...]. Donde, toda lei humanamente imposta tanto tem razão de lei, quanto deriva da lei natural. Se, pois, em algo discorda da lei natural, já não será lei, mas corrupção da lei” (TL I, II, 95, 2). 312 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS que era geral.87 “Não matarás”, por exemplo, constituía um preceito que derivava dos princípios gerais da lei da natureza sob a forma de conclusão. Pois prescrevia que “não se podia fazer mal a quem quer que fosse”. Já a pena a ser aplicada a alguém era uma lei que derivava segundo o modo da determinação, a partir do princípio de “que seja punido aquele que peca”, prescrição que a lei natural deixara indeterminada. Aquilo que “pertence ao primeiro modo, está contido na lei humana não só como imposto por esta, mas tem também algum vigor de lei natural. Mas o que pertence ao segundo modo, tem vigor tão-somente por força da lei humana” (TL I, II, 95, 2). Quais eram então as condições dessa lei positiva? Aqui o Angélico, seguindo Isidoro, reduzia a três todas as suas condições: 1) “ser congruente à religião”, enquanto proporcionada à lei divina; 2) “ser adequada à disciplina”, quando proporcionada pela lei de natureza; 3) “ser proveitosa à salvação pública”, enquanto proporcionada à utilidade humana. Com efeito, a disciplina humana visa primeiro à ordem da razão, o que importa dizer-se ela “justa”. Visa em segundo lugar à faculdade dos “agentes” e deve, por isso, ser uma disciplina adequada a cada qual segundo a sua possibilidade, observada também a possibilidade da natureza [...]. Deve ser ela também conforme ao costume humano: com efeito, o homem não pode viver isolado na sociedade, sem ajustar-se aos costumes dos demais. (TL I, II, 95, 3) Assim, a lei humana derivava da natural e dava origem a dois tipos de jurisprudência: o direito das gentes e o civil. 87 O primeiro modo era semelhante à demonstração a partir dos princípios, tal como nas ciências. O segundo era semelhante ao modo de acordo com o qual, nas artes, as formas gerais eram determinadas de maneira a se produzir certa obra singular. 313 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO É, primeiro, da razão da lei humana ser derivada da lei da natureza [...]. E segundo isto o direito positivo dividese em direito das gentes e direito civil, segundo os dois modos pelos quais algo deriva da lei da natureza [...]. Pois pertence ao direito das gentes o que deriva da lei da natureza como conclusões de princípios [...]. O que deriva da lei da natureza segundo o modo de uma determinação particular pertence ao direito civil, consoante o qual cada cidade [civitas] determina o que a ela melhor se acomoda. (TL I, II, 95, 4) “Em segundo lugar”, prosseguia o Angélico, é da razão da lei humana ser ordenada para o bem comum da cidade. Em conformidade com isto, a lei humana pode ser dividida segundo a diversidade daqueles que prestam um serviço especial ao bem comum: assim, os sacerdotes, que oram pelo povo de Deus, os príncipes, que governam o povo, e os soldados, que lutam por sua defesa. (idem – grifos meus) A mesma fórmula que aqui servia para indicar as funções específicas de cada poder seria invocada, algumas décadas depois, por alguns dos mais árduos defensores da autonomia do governante secular, contra a ingerência do bispo de Roma em assuntos terrenos. Seus ecos ainda seriam ouvidos em teóricos como Hobbes. E continuava: Em terceiro lugar é da razão da lei humana ser instituída pelo governante da comunidade da cidade [...]. E, quanto a isto, distinguem-se as leis humanas segundo os diversos regimes das cidades. Desses, o primeiro é, segundo o Filósofo (Política, III, 5), o reino, no qual a cidade é governada por um só e neste caso que se fala e das constituições dos príncipes. Um outro regime é a aristocracia, ou seja, o principado dos melhores e superiores, caso em que fala dos pareceres dos prudentes e das resoluções do senado. Outro regime é ainda a oligarquia, o principado 314 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS de uns poucos, ricos e poderosos; é a esta que se atribui o direito pretório, dito também honorário. Um outro regime é também o de todo o povo e este denomina-se democracia [democratia]: são-lhe atribuídos os plebiscitos. Há ainda um outro, o tirânico, de todo corrupto, do qual não deriva nenhuma lei. Há, enfim, um regime que é a mescla de todos estes, o qual é o melhor e dele deriva a lei que os maiores por nascimento sancionaram juntamente com as plebes. (idem) “Em quarto lugar, pertence à razão da lei humana ser diretiva dos atos humanos. Em conformidade com isto, distinguem-se as leis segundo a diversidade daquilo em vista do que são promulgadas” (idem). Para Tomás de Aquino, portanto, o melhor regime consistia naquele em que um era preferido segundo a virtude e presidia a todos. Mas, sob sua autoridade, havia alguns que exerciam o principado virtuosamente. Tal principado, porém, pertencia a todos, fosse porque tais membros eram eleitos dentre todos, fosse porque ainda o eram por todos. Ou seja, o Aquinate, tal como seu mestre grego, defendia um governo misto. Em tal politia, lembra Souza Neto, “salva-se o bem da unidade, assegurado pela presidência de um único, mas também o da aristocracia, pois o principado é compartilhado por muitos, bem como o da democracia, pois respeita-se o poder do povo, na medida em que dentre os populares podem ser eleitos os príncipes e ao povo pertence a eleição do príncipe.”88 Segundo Tomás de Aquino, a lei humana devia coibir apenas os vícios mais graves, pois a perfeição pressupunha o hábito da virtude, o que a lei não podia fazer:89 ela apenas 88 89 SOUZA NETO, op. cit., p. 19. “Ora, a lei humana impõe-se à multidão dos homens, cuja maior parte é de homens não perfeitos na virtude. Eis porque não são proibidos pela lei humana todos os vícios dos quais os virtuosos se abstêm, mas só os mais graves, dos quais é possível abster-se a maior parte da multidão e 315 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tencionava induzir, gradualmente, todos os homens à virtude. A lei não preceituava os atos de todas as virtudes, mas somente aqueles que podiam ordenar-se ao bem comum. As leis humanas, quando eram justas, obrigavam no “foro de consciência”, por derivarem da lei eterna.90 Todos estavam sujeitos à competência de quem promulgava a lei, do mesmo modo como o que era regulado estava sujeito à regra. O príncipe, por promulgar a lei, dela estava isento. Mas devia observá-la voluntariamente, pois estaria sujeito à sua força diretiva diante do juízo divino. Se o príncipe julgasse últil ao bem de todos, era-lhe lícito agir contra a letra da lei. O consenso de uma multidão livre, contudo, tinha maior poder que o príncipe, pois seu poder derivava daquela. Nos termos de Tomás de Aquino: [...] se diz ser o príncipe isento da lei quanto à força coativa da lei, pois ninguém, em sentido próprio, é coagido por si mesmo; ora, a lei só tem força coativa em razão do poder do príncipe. [...]. Mas quanto à força diretiva da lei, está o príncipe sujeito à lei por sua própria vontade [...]. Seguese, pois, não estar o príncipe isento da lei quanto ao vigor 90 sobretudo os que são em detrimento dos outros, sem cuja proibição a sociedade humana não poderia conservar-se, como são proibidos por lei humana os homicídios, os furtos e outros semelhantes” (TL I, II, 96, 2). “Deve dizer-se que as leis humanamente impostas são justas ou injustas. Se justas, têm a força de obrigar no foro da consciência por causa da lei eterna da qual derivam [...]. Nesses termos, as leis que, segundo a devida proporção, impõem encargos são justas e obrigam no foro da consciência e são leis legais”. As leis injustas, continua adiante, “não obrigam no foro da consciência, a não ser, talvez, em vista de se evitar o escândalo ou a perturbação, causa também de o homem dever ceder em seu direito [...]” (TL I, II, 96, 4). Pois às leis que impõem aos súditos um encargo injusto, explica o Angélico na réplica, “não se estende a ordenação do poder divinamente concedido. Donde, não ser o homem, em tais casos, obrigado a obedecer à lei, se, como se disse, pode resistirlhe sem escândalo ou maior prejuízo” (TL I, II, 96, 4, ad 3). 316 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS diretivo desta perante o juízo de Deus, mas deve cumprir a lei voluntariamente e não por coação. Está também o príncipe acima da lei na medida em que, se for isto vantajoso, pode mudá-la e dela dispensar, segundo o tempo e o lugar. (TL I, II, 96, 3) E acrescentava a seguir: se a observância literal da lei não constitui perigo imediato, ao qual seja necessário fazer frente, não é da competência de ninguém interpretar o que é útil ou inútil à cidade, mas isto cabe apenas aos príncipes, que têm a autoridade de dispensar da lei em vista de tais casos [...] pois a necessidade não é sujeita à lei. (TL I, II, 96, 6) Mudar a lei, entretanto, esclarecia Tomás de Aquino, era tarefa complexa e exigia cautela: [...] a lei humana é corretamente mudada na medida em que por sua mudança se provê à utilidade comum. Contudo, a mudança da lei constitui em si mesma certo prejuízo das salvaguardas comuns. [...] quando se muda a lei, diminui o vigor coercitivo da mesma, na medida em que é abolido o costume. Eis porque nunca se deve mudar a lei humana a não ser quando, de um lado, se favorece tanto a salvaguarda comum, quanto de outro lado se derroga, o que ocorre, ou porque alguma utilidade máxima e evidentíssima provém do novo estatuto, ou porque é máxima a necessidade, seja por conter a lei costumeira manifesta iniqüidade, seja por sua observância ser sobremodo nociva. (TL I, II, 97, 2) Tomás de Aquino estabelecia aí um paralelo – importante – entre Deus e o príncipe, quando dizia que “[...] toda lei emana da razão e da vontade do legislador: a lei divina e a natural da vontade racional de Deus. Já a lei humana, da vontade do homem regulada pela razão”. Como a razão e a vontade do homem se modificavam ao longo do tempo, essas mudanças podiam se nos aparecer como um costume, 317 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO e até adquirirem vigor de lei. “Pois quando algo se faz muitas vezes, parece provir de um deliberado juízo da razão. E, nesses termos, o costume possui vigor de lei, ab-roga a lei e é o intérprete das leis” (TL I, II, 97, 3). E remover o costume da multidão, dizia Tomás de Aquino, era tarefa árdua: [...] deve dizer-se que a multidão, na qual se introduz o costume, pode ser de dupla condição. Se é uma multidão livre, que possa fazer a própria lei, maior é o consenso de toda a multidão quanto à observância de algo, que o costume manifesta, do que a autoridade do príncipe, que não tem poder de edificar a lei, a não ser enquanto age na pessoa da multidão. Donde, ainda que as pessoas singulares não possam instaurar a lei, pode-o contudo todo o povo [populus]. (TL I, II, 97, 3, ad 3 – grifos meus) A importância atribuída pelo Angélico à vontade do povo como fator de consentimento político seria decisiva. Ao partir dessa perspectiva, o Aquinate recolocava num novo patamar o antigo princípio da representação: o governante passava agora a “personificar” a comunidade política ou civitas. Também à questão da autoridade política uma nova base era fornecida: a noção de populus como fonte do poder. E explicava adiante: Eis porque aquele a quem cabe reger a multidão tem o poder de dispensar da lei humana, no que repousa sobre sua autoridade, ou seja, que, quanto às pessoas e em casos em que a lei é falha, dê a licença para que a lei não seja observada. Se, porém, sem esta razão, por mera vontade, dá a licença, não será fiel na dispensa, ou será imprudente; isto é, infiel, se não intenciona o bem comum, imprudente se ignora a razão de dispensar. [...] Ora, qualquer homem está para a lei divina, como o está a pessoa privada para a lei pública à qual está subordinada. Donde, assim como na lei humana pública não pode dispensar a não ser aquele de quem a lei tira a autoridade ou aquele a quem o confiar, igualmente, nos preceitos do 318 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS direito divino, que têm Deus por origem, ninguém pode dispensar senão Deus ou alguém a quem este especialmente o confiar. (TL I, II, 97, 4 e ad 3) A partir da questão 98, Tomás passava a considerar as diferenças entre a lei antiga e a lei nova e suas causas. Essa parte do Tratado da lei é geralmente pouco abordada, mas importa aqui sobretudo pela sua caracterização da noção de preceito. Iniciava a discussão definindo o objetivo da lei humana: “Ora, como sabemos, um é o fim da lei humana, e outro, o da divina. O fim da lei humana é a tranqüilidade temporal da cidade. E esse fim a lei consegue coibindo os atos exteriores, excluindo os males capazes de perturbar a paz civil”. Essa tinha sido, segundo ele, a razão pela qual Deus havia instituído a lei antiga que, por meio de seus preceitos rigorosos, deveria ordenar a convivência humana.91 A lei antiga, contudo, dizia Tomás de Aquino, obrigava apenas o povo judeu.92 Assim, entre a lei da natureza e a da graça, foi necessário ser dada a lei antiga (ST I, II, 98, 6). O tipo de comunidade para a qual se ordenava a lei humana, a comunidade dos homens, diferia daquela para a qual se voltava a lei divina, a comunidade dos crentes. 91 92 Os preceitos do decálogo, expressos pela lei antiga contida no Velho Testamento, exprimiam a intenção mesma de Deus legislador. “Pois, os da primeira tábua, que ordenam para ele, contêm a ordem mesma para o bem comum e final, que é Deus. E os da segunda, a ordem da justiça a ser observada entre os homens, de modo que, p. ex., a ninguém se lhe faça o que se lhe não deve fazer, e a cada um lhe seja pago o devido” (ST I, II, 100, 8). A partir dessa questão 98, voltaremos a utilizar a edição completa da Suma teológica (ST), acima citada, a qual contém a tradução completa do assim chamado Tratado da lei. “A lei antiga manifestava os preceitos da lei da natureza, acrescentando-lhes certos preceitos próprios. Por onde, todos estavam obrigados a observar todos os preceitos da lei antiga, que também o eram da lei natural; não por serem daquela, mas por pertencerem a esta. Mas ninguém, a não ser o povo judaico, estava obrigado a observar os preceitos que a lei antiga acrescentou” (ST I, II, 98, 5). 319 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Pois, a lei humana se ordena à comunidade civil, a[quela] constituída pelos homens entre si; e estes se ordenam uns para os outros pelos seus atos exteriores, com que se entrecomunicam. E essa comunicação pertence essencialmente à justiça, que é propriamente diretiva da comunidade humana. Por onde, a lei humana só propõe preceitos referentes aos atos de justiça; e se ordenar outros atos de virtude, não será senão enquanto se revestem da essência da justiça, como está claro no Filósofo. (ST I, II, 100, 2 – grifos meus) Como certos preceitos de qualquer lei, em virtude de um ditame da razão, tinham força obrigatória pelo fato de a razão natural ditar que fosse tal ato praticado ou evitado, esses preceitos se chamavam morais, por fundarem na razão os costumes humanos. Se portanto forem determinados preceitos morais, por instituição divina, relativos à ordenação do homem para Deus, esses preceitos se chamarão cerimoniais. Se relativos à ordenação dos homens uns para os outros, chamar-se-ão judiciais. Logo, dois fundamentos têm a razão dos preceitos judiciais: concernirem à ordenação dos homens uns para os outros; e terem força obrigatória fundada, não só na razão, mas na instituição. (ST I, II, 104, 1) Com a instituição da lei nova, decorrente da vinda de Cristo, estes preceitos teriam perdido a sua validade.93 93 “[...] os preceitos cerimoniais são figurativos, primariamente e em si mesmos, como tendo sido principalmente instituídos para figurar os mistérios futuros de Cristo. Portanto, a observância mesmo deles prejudica à verdade da fé, pela qual confessamos esses mistérios já se terem cumprido. Ao passo que os preceitos judiciais não foram instituídos para figurar, mas para dispor o estado do povo judeu, que se ordenava para Cristo. Por onde, mudado o estado desse povo, com o advento de Cristo, os preceitos judiciais perderam a força obrigatória; pois a lei era um pedagogo conducente a Cristo, como diz o Apóstolo” (ST I, II, 104, 3). 320 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS E arrematava: Ora, ao príncipe pertence não só ordenar sobre os litígios, mas também sobre os contratos voluntários dos homens entre si, e de tudo o atinente à comunidade do povo e ao regime. Por onde, os preceitos judiciais não são somente os concernentes às lides judiciais, mas todos os que respeitam à ordenação mútua dos homens, sujeita à ordenação do príncipe como juiz supremo. (ST I, II, 104, 1, ad 1) A justiça há de ser observada perpetuamente; mas a determinação do que é justo, por instituição humana ou divina, há de necessariamente variar segundo os diversos estados dos homens. (ST I, II, 104, 3, ad 1) A lei, comparava o Aquinate, assemelhava-se a uma arte, cujo objetivo era instituir e ordenar a vida humana. Ora, cada arte tem uma certa divisão nas suas regras. Portanto, toda lei deve conter uma certa divisão nos seus preceitos; do contrário, a confusão viria aniquilar-lhe a utilidade. Por onde devemos concluir que os preceitos judiciais da lei antiga, que ordenavam os homens uns para os outros, comportam uma distinção fundada na ordenação humana. Ora, em qualquer povo, podemos descobrir quádrupla ordem. Uma, a dos chefes em relação aos súditos; outra, a dos súditos entre si; a terceira, a dos indivíduos desse povo para com os estranhos; a quarta, a dos membros da sociedade doméstica, como a do pai para o filho, da esposa para o esposo, do senhor para o escravo. (ST I, II, 104, 4) Mas o que se devia entender então por populus? Para definir o conceito, Tomás de Aquino usava a citação de Túlio por Agostinho: um “populus” é associação de muitos indivíduos, baseada no consenso jurídico e na utilidade comum. Por onde, a noção de povo implica uma comunhão de homens ordenada por justos preceitos legais. Ora, há duas espécies de comunhão entre os homens. Uma fundada na autori321 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO dade do príncipe; outra, na vontade própria dos indivíduos. E como cada um pode dispor do que lhe pertence, é necessário que, pela vontade do príncipe, a justiça se exerça entre seus súditos e penas sejam infligidas aos malfeitores. Por outro lado, aos indivíduos lhes pertence o que possuem; e portanto, por autoridade própria, podem dispor disso, uns em relação aos outros, por compra, venda, doação e modos semelhantes. (ST I, II, 105, 2) Ou seja, o Angélico distinguia aqui entre uma relação que se baseava num acordo comum a respeito de certas regras de justiça, cuja garantia cabia ao princeps, e outra fundada nas trocas e acordos entre os particulares. Estavam apontados aqui os fundamentos e os elementos daquele pacto que viria a constituir a teoria do contrato social. E, por fim, por que a lei nova não havia sido dada desde o princípio do mundo? As razões, respondia Tomás de Aquino, eram três: A primeira é que, como já dissemos, a lei nova consiste principalmente na graça do Espírito Santo, que não devia ser dada abundantemente, antes de ter sido o gênero humano livrado do pecado, depois de consumada a redenção de Cristo [...]. A segunda razão pode ser tirada da perfeição da lei nova. Pois nada alcança imediatamente, desde a origem, um estado perfeito senão depois de uma certa ordem sucessiva no tempo. Assim, primeiro a criança, e depois o homem. [...] A terceira se funda em ser a lei nova a lei da graça. Por onde, era primeiro necessário fosse o homem abandonado a si mesmo, no regime da lei antiga, para que, caindo no pecado e conhecendo a sua fraqueza, reconhecesse a necessidade da graça. (ST I, II, 106, 3) Assim, o Angélico fundava todas as diferenças entre a lei nova e a velha nas idéias de perfeito e de imperfeito.94 94 “[...] a lei nova está para a antiga como o perfeito para o imperfeito. Ora, o perfeito completa o que falta ao imperfeito. E assim, a lei nova completa a antiga, suprindo-a no que lhe faltava” (ST I, II, 107, 2). 322 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Ora, para praticar tais atos [virtuosos], os imperfeitos, ainda sem o hábito da virtude, agem de um modo, e de outro os que já são perfeitos por esse hábito. [...] Por isso a lei antiga, dada para imperfeitos, i. é, que ainda não tinham conseguido a graça espiritual, era chamada lei do temor, porque levava à observância dos preceitos pela cominação de determinadas penas, e dela se diz que fazia certas promessas temporais. Os que têm virtude, porém, são levados a praticá-la por amor da mesma, e não por qualquer pena ou remuneração extrínseca. Por onde, a lei nova, que é a principal, por consistir na graça espiritual mesma, infundida nos corações, chama-se lei do amor. (ST I, II, 107, 1, ad 2) Uma vez domesticadas as paixões pelo amor à virtude ensinado aos homens pelo filho de Deus que os redimira do pecado, os seres humanos podiam ser deixados à direção de suas consciências, agora capazes de determinar por si os preceitos judiciais – e com isso a idéia geral de justiça – que deviam lhes guiar.95 2. Justiça: um critério de ordenação dos iguais com vistas ao bem comum Uma vez explicado o papel da lei no movimento das criaturas em direção a Deus, o Aquinate podia então passar 95 Por essa razão o Senhor havia deixado a aplicação dos preceitos judiciais àqueles encarregados de dirigir os homens. “Os preceitos morais deviam absolutamente permanecer na lei nova, pois em si mesmos se incluem na essência da virtude. Enquanto que os preceitos judiciais não deviam necessariamente continuar, do modo pelo qual a lei os determinou, mas foram deixados ao arbítrio humano, que os determinassem de um ou de outro modo. [...] Quanto à observação dos preceitos cerimoniais, ela desapareceu totalmente, com a aplicação da lei nova” (ST I, II, 108, 3, ad 3), nada mais tendo sido observado sobre a matéria. 323 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO à discussão sobre a justiça,96 que tinha como objeto o direito [ius], estabelecendo a diferença entre os conceitos. Assim como o artista tem na mente o plano do que faz com a sua arte, [...] assim também na mente preexiste uma idéia da obra justa que a razão determina, idéia que é como que a regra da prudência. E esta, quando redigida por escrito, chama-se lei; pois a lei, segundo Isidoro, é uma “constituição escrita”. Por onde, a lei, propriamente falando, não é o direito mesmo, mas, uma certa razão do direito. (ST II, II, 57, 1, ad 2 – grifos meus) Ou seja, a lei propunha as normas de ação humanas. A moral e o direito as reconheciam e aplicavam às várias ações dos homens.97 A justiça constituía o objeto de estudo das questões 57 a 122 da Suma teológica (II, II). Para tratar o assunto, Tomás de Aquino dividiu esse bloco em três seções, conforme aponta Nascimento: 1ª) estudava as espécies de justiça propriamente ditas: a comutativa, que regulava as relações entre particulares; a distributiva, que ordenava as relações entre o todo social e o cidadão; e a geral ou legal, que organizava as relações entre os particulares e o todo social; 2ª) estudava as partes como integrantes da justiça, que considerava ser duas: fazer o bem e afastar-se do mal (q. 79); e 3ª) estudava as virtudes anexas à justiça, em que estava em questão o relacionamento humano.98 Era próprio da justiça, escrevia Tomás de Aquino, ordenar os nossos atos que diziam respeito a outrem, pois a 96 97 98 As questões que tratam especificamente das noções de direito e justiça estão contidas naquela parte da Suma teológica que se convencionou chamar de Tratado da justiça, o qual se estende das questões 57 a 122, II, II. Cf. MOURA, D. Odilão. A doutrina do direito natural em Tomás de Aquino. In: DE BONI, L. A. (Org.). Idade Média: ética e política. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. p. 223. Cf. NASCIMENTO, op. cit., p. 78-9. 324 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS justiça implicava uma certa igualdade. “Ora, a igualdade supõe relação com outrem. Ao passo que as demais virtudes aperfeiçoam o homem só no referente a si próprio.” A virtude da justiça, diversamente, supõe a retidão na relação com o outro.99 Por onde, chama-se justo o ato que, por assim dizer, implica a retidão da justiça, e no qual termina a atividade desta, mesmo sem considerarmos de que modo ela é feita pelo agente. Ao passo que, nas outras virtudes, um ato não é considerado reto senão levando-se em conta o modo que o pratica o agente. E, por isso, a justiça, especialmente e de preferência às outras virtudes, tem o seu objeto em si mesmo determinado, e que é chamado justo. E este certamente é o direito. Por onde, é manifesto que o direito é o objeto da justiça. (ST II, II, 57, 1) O que significava então ius? O direito, dizia Tomás, implicava uma obra que se adequava a outra por algum modo de igualdade. Quando esse modo estava na natureza mesma da coisa, por exemplo, dar tanto para receber tanto, chamava-se direito natural (ius naturale). Quando uma coisa se adequava a outra, fosse por conveção ou comum acordo particular, como quando pessoas privadas firmavam entre si um pacto, ou convenção ou comum acordo público, como quando todo o povo consentia que uma coisa fosse tida como adequada à outra ou quando o princípe assim o ordenava, na pessoa do representante do povo, chamava-se então direito positivo (ius positivum). E a lei escrita continha e instituía o 99 “Assim, pois, a retidão nas obras das demais virtudes, para o que tende a operação da virtude, como seu objeto próprio, só é considerada relativamente ao agente. A retidão, porém, que implica a obra da justiça, além da relação com o agente, supõe relação com outrem. Pois, consideramos justa uma ação nossa, quando corresponde, segundo uma certa igualdade, a uma ação de outro; assim, a paga da recompensa devida por um serviço prestado” (ST II, III, 57, 1). 325 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO direito positivo, conferindo-lhe a força da autoridade, desde que não discordasse da lei natural.100 Ou seja, o direito natural era promulgado e instituído por Deus, o qual possibilitava ao homem, por meio de sua natureza racional, conhecê-lo. Já o direito positivo, firmado por convenção humana, era promulgado, anulado ou modificado, se preciso fosse, pelo homem.101 A vontade humana, em razão de um consentimento comum, podia determinar o justo em coisas que por si não repugnavam à justiça natural, tal como ocorria com o direito positivo.102 Ora, a matéria própria da justiça são os actos relativos a outrem [...]. Por onde, o ato de justiça é determinado relativamente a sua matéria própria e ao seu objecto, quando se diz: dar a cada um o que lhe pertence; porque, como 100 Escrevia Tomás de Aquino noutra passagem: “Ora, de dois modos pode uma coisa ser justa: por sua própria natureza, e tal é o justo natural; ou, por uma convenção humana, e tal se chama direito positivo [...]. Ora, as leis se escrevem para declarar o que é justo, num e noutro desses sentidos. De maneiras diversas, porém. Pois, a lei escrita contém o direito natural, mas, não institui: porque não tira a sua força, da lei, senão, da natureza. Mas, o direito positivo a lei escrita o contém e o institui, dando-lhe a força da autoridade. Por onde, é necessário que o juízo seja feito de acordo com a lei escrita; do contrário se desviaria ou do justo natural ou do justo positivo” (ST II, II, 60, 5). 101 Para compreender a doutrina do direito natural de Tomás de Aquino, avisa Moura, é preciso levar em conta sua premissa: “o reconhecimento da existência de uma natureza humana essencialmente estruturada por Deus e regida por preceitos dela originados, segundo disposição divina. O direito natural, conseqüentemente, obedece a dois princípios: o divino, por ser participação da lei eterna pela qual o criador dirige todas as coisas; e o humano, enquanto necessariamente vinculado à criatura racional”. Cf. MOURA, op. cit., p. 225-6. 102 “Por isso, o Filósofo diz, que o justo legal é o que, ao princípio, pode ser indiferentemente de um modo ou outro; mas, uma vez estabelecido, deve permanecer no que é. Mas, o que em si mesmo repugna ao direito natural não pode a vontade humana torná-lo justo. Por exemplo, se estuísse que é lícito furtar ou adulterar” (ST II, II, 57, 2, ad 2). 326 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Isidoro diz, chama-se justo aquele que observa a justiça. [...]. E quem quisesse reduzir essa definição à sua forma devida, poderia dizer: a justiça é um hábito pelo qual, com vontade constante e perpétua, atribuímos a cada um o que lhe pertence. (ST II, II, 58, 1) Como nada podia ser igual a si mesmo, mas apenas a outrem, e como era próprio da justiça retificar os atos humanos, então era necessário que essa relação com outrem exigida pela justiça dissesse respeito a agentes que podiam agir diversamente. Por isso, a justiça que atribuía a cada parte do homem o que lhe convinha, de maneira universal, era chamada metafórica.103 Era próprio da justiça tornar bons o ato humano virtuoso e o agente que o praticava. “Pois, os actos humanos são bons por se sujeitarem à regra da razão, que os retifica. Por onde, a justiça, retificando as ações humanas, é claro que as torna boas” (ST II, II, 58, 3). Isso permitia a Tomás de Aquino dizer que o sujeito da justiça não era o intelecto ou a razão, o qual só constituía uma potência cognitiva, e sim o ato de vontade.104 103 “Por onde, a justiça propriamente dita exige diversidade de supostos e, portanto, não pode ser senão de um homem para com outro. Mas, por semelhança, admitimos, num mesmo homem, diversos princípios ativos, como se fossem agentes diversos; assim, a razão, o irascível e o concupiscível. Por onde, metaforicamente, dizemos que há justiça, num mesmo homem, quando a razão governa o irascível e o concupiscível e quando estas potências obedecem à razão. E universalmente, quando a cada parte do homem é atribuído o que lhe convém. Por isso, diz o Filósofo, que essa justiça é chamada metafórica” (ST II, II, 58, 2). 104 “[...] como somos considerados justos por agirmos retamente, e o princípio próximo do agir é a potência apetitiva, necessariamente a justiça tem nalguma potência apetitiva o seu sujeito. Ora, há um duplo apetite, a saber: a vontade, que se funda na razão, e o sensitivo, conseqüente à apreensão sensível, que se divide em irascível e concupiscível [...]. Ora, dar a cada um o que lhe pertence não pode proceder do apetite sensitivo, porque a apreensão sensitiva não pode chegar até a consideração da proporcionabilidade entre uma coisa e outra, o que é próprio da razão. Por isso, a justiça não pode ter como sujeito o irascível ou o concupiscível, mas só a vontade” (ST II, II, 58, 4). 327 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A justiça, portanto, constituía uma virtude geral, pois ordenava para o bem comum. E, como ordenar para o bem comum cabia à lei, essa justiça era chamada justiça legal. Pois “por meio dela, o ser humano se harmoniza com a lei que ordena os atos de todas as virtudes para o bem comum”.105 A justiça legal consistia assim, em sua essência, numa espécie de virtude particular cujo objeto era o bem comum. Movia, por comando, todas as outras virtudes e, por isso, era denominada geral. Essa virtude se encontrava, como principal e de maneira arquitetônica, no princeps; e, de maneira secundária e como ministra, nos súditos. Nas palavras do Angélico: Ora, por tudo o que é, a parte pertence ao todo; por onde, qualquer bem da parte se ordena ao bem do todo. Portanto, assim sendo, o bem de qualquer virtude, quer o da que ordena o homem para consigo mesmo, quer o da que o ordena a qualquer outra pessoa singular, é referível ao bem comum, para o qual a justiça ordena. E, a esta luz, os actos de todas as virtudes podem pertencer à justiça, enquanto esta ordena o homem para o bem comum. Por onde, a justiça é considerada uma virtude geral. E como o próprio da lei é ordenar o homem para o bem comum, [...] daí resulta que essa justiça geral [...] chama-se justiça legal, porque, obedecendo-lhe, o homem procede de acordo com a lei, ordenadora de todos os atos para o bem comum. (ST II, II, 58, 5) E acrescentava mais adiante: “E assim, está no chefe, como principal e arquitetonicamente; nos súditos, porém, secundariamente e como ministra” (ST II, II, 58, 6).106 Ao dis105 NASCIMENTO. A justiça geral em Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 213. 106 No original: “Et, sic, est in principe principaliter et quasi architectonice; in subditis autem, secundario et quase ministrative”. Mais adiante, repetia essa distinção nos seguintes termos: “A justiça, no chefe, é a virtude como que arquitetônica, quase a que ordena e manda o que é justo; nos 328 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS cutir a perversão de um juízo usurpado, entretanto, Tomás de Aquino inseria a figura do príncipe na totalidade do seu sistema a partir do princípio de que as coisas terrenas se ordenavam do imperfeito ao perfeito, como já foi dito. Esse raciocínio o levava a afirmar que o poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo à alma. Por onde, não é usurpado o juízo do prelado espiritual que se intromete com as coisas temporais, na medida em que o poder secular lhe está sujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada desse poder. (ST II, II, 60, 6, ad 3) Esclarecido esse ponto, considerava então as demais virtudes morais, as quais regulavam principalmente as paixões. A justiça legal ordenava o homem imediatamente para o bem comum da cidade, mas não para o bem privado.107 “Pois uma é a noção do todo e outra a da parte”. Assim, constituía matéria da virtude moral – que era definida pela razão reta – tudo aquilo que podia ser retificado pela razão (ST, II, II, 58, 7 e 8). Tratava ainda do juízo e das partes da justiça, à qual dedicou uma longa seção. Nascimento mostrou com notável clareza a distinção entre Tomás de Aquino e Aristóteles, no que respeitava às partes integrantes da justiça. Para isso, usou um esquema didático, que resume de maneira precisa as duas concepções e que será reproduzido aqui. Nele pode-se ver como o Aquisúditos, porém, é virtude como que executiva e serviente. Por onde, o juízo, implicado na definição do justo, é próprio da justiça, enquanto existente, de modo principal, no chefe” (ST II, II, 60, 1, ad 4). 107 Enquanto a justiça e o direito visavam ao bem do outro, as outras virtudes morais visavam ao bem do próprio homem. A diferenciação entre direito e moral, lembra Moura, vigorava não apenas no plano da sociedade juridicamente estruturada dos povos civilizados, mas também entre os povos primitivos. “Por isso, jamais o direito positivo anulará o direito natural”. Cf. MOURA, op. cit., p. 222. 329 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO nate ampliou a noção aristotélica de justiça, definida da seguinte maneira na Ética a Nicômaco, l. V: | GERAL – idêntica ao conjunto das virtudes JUSTIÇA | | DISTRIBUTIVA | PARTICULAR | | | COMUTATIVA Este esquema, diz Nascimento, foi ocultamente transformado por Tomás de Aquino no seguinte: | GERAL – idêntica ao conjunto das virtudes: toda | JUSTIÇA virtude é uma forma de justeza ou retidão | | GERAL (legal) – ordenação do homem | | imediatamente ao bem comum; | ESPECIAL | | | PARTICULAR (cardeal) | DISTRIBUTIVA | | – ordenação do homem | | | a bens particulares | COMUTATIVA Ou seja, o Aquinate incorporou uma forma particular de justiça, como explica Nascimento, que tem por objeto o bem comum da coletividade e pode mobilizar em vista deste qualquer virtude que se ocupa de um bem que é parte deste bem comum. Essa caracterização da justiça geral ou legal permite que ela seja relacionada coerentemente com a lei (“ordenação da razão em vista do bem comum”) e com as funções da autoridade e dos membros da coletividade.108 108 NASCIMENTO. A justiça geral em Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 217. 330 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Assim, matar um malfeitor só seria lícito se esse ato se ordenasse à salvação de toda comunidade. Como zelar pela comunidade cabia ao governante, somente a ele competia a execução da pena: fazê-lo pertence só àquele que foi incumbido de zelar pela conservação da comunidade, assim como ao médico pertence amputar um membro gangrenado, quando estiver incumbido de zelar pela conservação de todo o corpo de alguém. Ora, cuidar do bem comum pertence ao chefe investido da autoridade pública. Logo, só a eles é lícito matar os malfeitores, e não aos particulares. (ST II, II, 64, 3) Tudo aquilo que era possuído em comum se fundava no direito natural, enquanto tudo o que se possuía em separado se fundava numa convenção humana e dizia respeito ao direito positivo (ST II, II, 66, 2, ad 1). As determinações do direito humano, que era inferior, não podiam abolir as do direito natural: As disposições de direito humano não podem derrogar as do direito natural ou do direito divino. Ora, pela ordem natural, instituída pela providência divina, as coisas inferiores são ordenadas à satisfação das necessidades humanas. Por onde, a divisão e a apropriação das coisas permitidas pelo direito humano não obstam a que essas coisas se destinem a satisfazer às necessidades do homem. E portanto as coisas que possuímos com superabundância são devidas, pelo direito natural, ao sustento dos pobres. (ST II, II, 66, 7) Por fim, o bem, apenas como correlato da noção de dever, era propriamente objeto da justiça especial. Se se trata do bem e do mal em geral, fazer aquele e evitar este é próprio a todas as virtudes. E, assim sendo, não podem fazer parte da justiça, salvo se esta for considerada como a virtude total. [...]. Mas, a justiça, enquanto 331 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO virtude especial, visa o bem considerado como um dever para com o próximo. E sendo assim, da justiça especial é próprio fazer o bem, considerado como um dever relativo ao próximo, e evitar o mal oposto, i. é, o que lhe é nocivo; ao passo que da justiça geral é próprio fazer o bem, como um dever relativo à comunidade ou a Deus, e evitar o mal oposto. (ST II, II, 79, 1) E esclarecia em seguida: E esses dois atos são considerados como partes integrantes da justiça geral ou da especial, porque ambos os exige a perfeição do ato de justiça. Pois, a esta pertence estabelecer a igualdade nos atos relativos a outrem [...]. Porque ao mesmo princípio constitutivo de uma coisa compete também conservá-la. Ora, a igualdade da justiça nós a constituímos fazendo o bem, i. é, dando a outrem o que lhe é devido; e conservamos a igualdade da justiça já constituída desviando-nos do mal, i. é, não causando nenhum dano ao próximo. (idem) A posse e o exercício dessa justiça legal proporcionavam a amizade civil que, do mesmo modo que para Aristóteles, fortalecia a solidariedade entre os membros da comunidade, fomentando a “boa vida”. Mas e o direito divino, como se enquadrava nesse esquema? Para o Angélico, não havia, propriamente falando, um direito divino.109 Pois o direito fundamentava-se “na igualdade do que é devido pelo devedor com a satisfação exigida pelo outro [...]. Não havendo possibilidade de igualdade entre o homem e Deus, disto resulta a negação de um direito divino”. O direito natural concebido por Tomás de Aquino era exclusivamente natural, explica Moura, prescindindo da revelação. O pensamento tomista sobre o direito natural, con109 Cf. MOURA, op. cit., p. 231. 332 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS clui, afastava-se da vinculação com a religião e se limitava a ligá-lo a Deus como Criador.110 Talvez haja algum exagero nessa formulação. Pois, para um católico fervoroso como era o Angélico, uma desvinculação entre as duas esferas, natural e sobrenatural, não se colocava. Mas é certo que, ao conferir um elevado grau de autonomia ao mundo natural, Tomás de Aquino preparava bases firmes e sólidas sobre as quais seus sucessores, estes sim, o fariam. De todo modo, estavam dadas as condições conceituais que permitiriam conceber o mundo natural – do qual faziam parte a polis e os assuntos políticos – independentemente da existência de um Deus criador. E tanto a sua noção de lei quanto a de justiça serviam para organizar esse orbe no qual os homens estavam naturalmente inseridos. O brilho dos modernos, sem dúvida, deveu muito, neste ponto, aos pensadores medievais. IV A POLÍTICA DO DOUTOR ANGÉLICO Pode-se dizer, com algum grau de segurança, que o opúsculo De regno – ad regem Cypri e o texto Sententia libri politicorum, ambos inacabados, constituem as duas únicas obras nas quais Tomás de Aquino tematizou de maneira direta a doutrina da política. O De regno – também conhecido como De regimine principum – foi escrito a pedido do rei de Chipre, como fica claro pelo subtítulo. A parte atribuída a Tomás de Aquino parece ter sido escrita entre 1265 e 1267. O trabalho foi concluído pelo discípulo e fiel amigo, Tolomeu 110 “E por isso a lei divina não se chama propriamente direito [ius], mas fas [o lícito divino], porque basta, para Deus, o cumprirmos com o que podemos. Pois a justiça visa fazer com que o homem pague o seu débito para com Deus, o quanto pode, sujeitando-se-lhe de toda sua alma” (ST II, II, 57, 1, ad 3). 333 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO de Luca, logo depois da sua morte. Também o Sententia libri politicorum – divulgado sob o nome Comentários à “Política” de Aristóteles – ficou inacabado e foi concluído por outro discípulo, Pedro de Alvérnia. Nos Comentários Tomás de Aquino trabalhou de 1269 a 1272, chegando a abordar o início do livro terceiro. Pouco depois foi acometido de uma maladia inexplicável que o levaria à morte prematura em 1274. Já o Tratado da lei e o Tratado da justiça, comentados na seção anterior, não devem ser tomados como obras propriamente políticas, embora forneçam uma boa idéia de como o Angélico pensava e fundamentava o ideal de vida coletiva entre as criaturas humanas. Não se pode perder de vista que esses dois tratados foram escritos para compor a segunda parte da Suma teológica, cujo objetivo era explicar o movimento dos seres humanos na direção de Deus. Para desenvolver essa relação das criaturas com seu Criador, o Angélico não precisava falar especificamente da política enquanto ciência, mas apenas das formas de organização da vida coletiva dos agentes humanos, que, frisava ele, “podiam ser bastante diversas, segundo o lugar e o tempo”. Mesmo os textos especificamente dirigidos à política constituíam, de certo modo, apenas trabalhos parciais: o De regno, opúsculo encomendado, tratava sobretudo do regime monárquico e sua perversão, a tirania. O texto se inseria na tradição dos “espelhos do príncipe”, em voga à época – uma espécie de manual do príncipe virtuoso.111 E os Comentários constituíam um tipo de lectio sobre a obra política do mestre grego. Apesar disso, Tomás de Aquino escreveu para esse comentário um Prólogo bastante útil, no qual revelava e fundamentava algumas de suas posições a respeito do tipo de conhecimento no qual consistiria a política, ciência que tinha como objeto imediato o estudo da civitas. É sem dúvida 111 O gênero seria popularizado dois séculos mais tarde com o “espelho” escrito por Maquiavel, O príncipe, dedicado a Lorenzo de Médici. 334 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS por essa ausência de um corpo consistente de argumentação a respeito da política que autores conceituados, como Souza Neto, entre muitos outros, afirmam que, “em sua obra, não encontramos nenhum tratado sistemático de Filosofia Política”.112 Essa constatação não nos impede, contudo, de tratar os textos mencionados como peças importantes para a compreensão do que o Angélico concebia como sendo relativo à política. E também não diminui a importância de sua síntese conceitual para o desenvolvimento que ocorreria logo depois em quase todos os campos do saber, inclusive no do pensamento político. A vigorosa base filosófica e analítica sintetizada pelo Aquinate – cuja paternidade contudo deve ser compartilhada tanto com os mestres que o antecederam, como Alberto Magno, quanto com os inúmeros discípulos influentes e talentosos que o sucederam –, serviria como matériaprima para numerosas inovações, umas ainda por vir, como as monarquias absolutas e o movimento de reforma da Igreja, outras já a caminho, como a noção de soberania e os desenvolvimentos de filosofia natural. É essa contribuição que se pretende aqui recuperar. Paul Sigmund, outro estudioso do pensamento de Tomás de Aquino, afirma que a concepção política do Angélico foi importante por pelo menos três motivos: 1) porque reafirmava o valor da vida política, tal como defendida em Aristóteles: Tomás de Aquino argumentava serem a política e a vida política atividades moralmente positivas, que estavam de acordo com a intenção de Deus em relação ao homem; 2) porque sua visão combinava as concepções feudal e hierárquica tradicional da estrutura da sociedade e da políti112 SOUZA NETO, op. cit., p. 8. 335 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ca à emergência de noções incipientemente igualitárias e comunitariamente orientadas da ordenação social; 3) porque desenvolveu uma teoria da lei natural coerente e logicamente integrada, que continua sendo uma fonte importante de normas legais, políticas e morais. Só por isso, escreve Sigmund, já se teria de considerá-lo parte do patrimônio intelectual do Ocidente.113 Operando com a asserção básica “de que a graça não contradiz a natureza, e sim a aperfeiçoa”, o Aquinate combinou tradição, as Escrituras, práticas contemporâneas e métodos filosóficos para produzir uma síntese influente e duradoura na teoria legal. Um dos pontos centrais desse esforço foi a sua adesão à noção aristotélica de teleologia ou causas finais. Essa idéia passou a ser, no pensamento do Angélico, a formulação do propósito de Deus na essência do universo e da humanidade que Ele criara. Não se pode esquecer que Tomás de Aquino era, em primeiro lugar, um teólogo cristão que acreditava no pecado original e na Criação divina. Contudo, diferentemente dos autores de linha agostiniana – para os quais o governo temporal tinha sua ratio no pecado original, lembram Souza e Barbosa –, para o Aquinate a justificação do governo secular tinha seu fundamento na “sociabilidade natural do homem”. Ao homem, um animal social e político, era natural o viver em comunidade. Pois somente por meio de sua razão individual o ser humano não alcançaria os objetivos que tinha em vista.114 A humanidade consistia numa comunidade com um fim último neste mundo: o bem comum. Esse objetivo impunha a necessidade da existência de um governante que conduzisse para esse fim o corpo social e cada um de seus 113 114 Cf. SIGMUND, Paul E. Lei e política. In: KRETZMANN & STUMP, op. cit., p. 217. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 128. 336 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS membros. O rei e a comunidade humana constituíam apenas um meio para a fruição futura de Deus, fim último da vida humana e felicidade por excelência. Embora não fosse otimista com relação à criação de uma comunidade política ideal, o Angélico era bastante receptivo às possibilidades de uma engenharia institucional. Pois tinha noção da ampla variação das estruturas políticas das 158 constituições gregas estudadas por Aristóteles. Esse projeto de construção cabia a uma ciência específica, afirmava Tomás de Aquino seguindo o Filósofo: a ciência civil, cujo estatuto o autor definia no “Prólogo” aos Comentários sobre a “Política” de Aristóteles. “Como ensina o Filósofo no livro II da Física”, escrevia o Angélico, a arte imita a natureza. [...] Ora, o princípio das coisas que são feitas segundo a arte é o intelecto humano, que deriva segundo certa similitude do intelecto divino, o qual é o princípio das coisas naturais. Donde é necessário que as obras da arte imitem as obras da natureza, e aquelas [coisas] que existem segundo a arte imitem aquelas que existem na natureza. [...] E por isso o intelecto humano, cujo lume inteligível é derivado do intelecto divino, tem necessariamente de se formar nas coisas que faz a partir do exame das coisas que foram feitas naturalmente, para que opere de maneira similar.115 A natureza, contudo, não executava as obras da arte. Por isso, podia apenas prover aos artistas certos princípios segundo os quais eles deviam operar. Já a arte, continuava Tomás de Aquino, podia examinar as obras da natureza e usá-las para aperfeiçoar seu próprio trabalho. Por isso, as 115 Todas as passagens referentes a esse texto foram traduzidas de: AQUINO. Sententia libri politicorum (Comentários), l. 1, “Prólogo” (A 69) (minha tradução). In: AQUINO. Opera omnia (iussu Leonis XII P.M. edita). Roma: Ad Sancta Sabinae, 1971. t. 48. Uma tradução completa do “Prólogo”, acompanhada do original latino, pode ser encontrada no “Apêndice” deste trabalho. 337 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ciências que lidavam com as coisas feitas pelo homem constituíam ciências práticas ou operativas, segundo a imitação da natureza. Como a natureza em sua operação procedia do simples ao composto, nas coisas que ocorriam pela operação da natureza a mais complexa era perfeita e total, e constituía o fim das outras coisas, como se podia notar no caso de quaisquer todos em relação às suas partes. Assim também a razão humana, dizia ele, procedia imperfeito ao perfeito. A razão humana, que ordenava não apenas as coisas usadas pelos homens, mas também os próprios homens, os quais eram governados pela razão, procedia em cada caso do simples ao complexo: por exemplo, os homens construíam o navio para seu uso a partir da madeira; ou, entre si, ordenavam-se de modo a formar uma comunidade a partir da família. Entre essas comunidades existiam vários graus e ordens. A mais alta delas era a comunidade da cidade (communitas civitatis), a qual era ordenada para a satisfação de todas as necessidades da vida humana, sendo por isso a mais perfeita. E porque as coisas usadas pelo homem eram ordenadas como para o seu fim, o qual era superior aos demais, aquele todo (totum) que constituía a civitas [cidade] era por isso necessariamente superior a quaisquer outros “todos” que pudessem ser conhecidos e construídos pela razão humana. De tudo o que fora dito, prosseguia Tomás de Aquino, quatro coisas podiam ser apreendidas. Primeiro, a necessidade dessa ciência (da política). Pois, para se chegar à perfeição da sabedoria humana, a filosofia, era preciso ensinar algo sobre toda coisa que podia ser conhecida por meio da razão. Como aquele todo que constituía a civitas estava sujeito a um certo julgamento da razão, era necessário, para complemento da filosofia, instituir uma disciplina que tratasse da civitas. E essa doutrina era chamada política, isto é, ciência civil (civilis scientia). Segundo, podia-se inferir o gênero dessa ciência. Pois as ciências práticas se distinguiam das ciências especulati338 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS vas: as últimas eram ordenadas exclusivamente para o conhecimento da verdade, enquanto as primeiras, por serem ordenadas para alguma obra ou ato, tinham de ser compreendidas sob a filosofia prática, na medida em que a civitas era um certo todo que a razão humana não apenas conhecia, mas também produzia.116 Era óbvio, dizia ele, que a ciência política, que se ocupava da ordenação dos homens, não estava compreendida sob as ciências que pertenciam ao fazer ou às artes mecânicas, mas sim sob aquelas que pertenciam à ação, que eram as ciências morais. Terceiro, podiam-se inferir a dignidade e a ordem da ciência política em relação às demais ciências práticas. A civitas era a mais importante das coisas que podiam ser constituídas pela razão humana, repetia o Aquinate. Pois todas as outras comunidades humanas a ela se referiam. Se a ciência mais importante era aquela que tratava do mais nobre e perfeito, então era necessário que, entre todas as ciências práticas, a política fosse a mais importante e arquitetônica em relação às demais, na medida em que dizia respeito ao bem último e perfeito nos assuntos humanos. E essa era a causa de o Filósofo dizer, no fim do livro X da Ética, esclarecia Tomás de Aquino seguindo Aristóteles, que a filosofia que tratava dos assuntos humanos encontrava sua completude na política. Quarto, do que foi dito, podiam-se deduzir o modo e a ordem dessa ciência. Pois, como as ciências especulativas, 116 A razão produzia certas coisas, distinguia Tomás de Aquino, de dois modos: 1) pelo modo do fazer, caso no qual a operação se transformava em matéria exterior, que pertencia propriamente às artes chamadas mecânicas, como a do forjador e do construtor de navio; 2) pelo modo da ação: neste caso, a operação permanecia dentro do agente, como quando alguém deliberava, escolhia, desejava e executava outros atos similares pertencentes à ciência moral. Nas palavras do Angélico: “[...] é manifesto que a ciência política, que considera a ordenação dos homens, não está contida sob as ciências do fazer, que são as artes mecânicas, mas sob a das ações, que são ciências morais”. In: AQUINO. Sententia, op. cit., A 69-70 (minha tradução). 339 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO que consideravam algum todo, chegavam ao conhecimento do todo pela manifestação de suas propriedades a partir de um exame de suas partes e seus princípios, assim também essa ciência examinava as partes e os princípios da civitas (principia et partes civitatis), e nos fornecia um conhecimento deles pela manifestação de suas partes, das suas paixões e das suas operações. E porque era uma ciência prática, completava, ela apontava ainda o modo como cada coisa podia chegar à sua realização, como era necessário em toda ciência prática.117 A exposição feita pelo Aquinate não deixava dúvidas quanto ao fato de que ele havia tomado de empréstimo do mestre grego a concepção teleológica ou finalista da política. E também o seu status científico. Mas ia adiante quando dizia que esse fim último a ser alcançado por todas as coisas encontrava-se na esfera do sobrenatural, e não na terrena, como defendia o Estagirita. Isto é, como a razão humana recebia seus princípios do intelecto divino, era preciso distinguir entre o fim intrínseco da cidade, o “bem viver” ou a vida virtuosa (eudaimonia), e um fim exterior a ela, a visão de Deus (visio Dei). Se para Aristóteles a política era a ciência suprema entre todas as que se subordinavam ao saber prático, recorda Garcia-Cuadrado, para Tomás de Aquino ela constituía um fim último, mas numa ordem dada, já que a ciência do divino era a ciência mestra a respeito do universo todo. O fim último da ciência política visava assim, na ordem natural, à ordenação dos homens em vista do bem viver. Mas essa “boa 117 Foi consultada ainda uma versão inglesa desse texto que, por motivos técnicos, não pôde ser aproveitada nesta tradução. Cf. Commentary on Aristotle’s politics. Trad. de Ernest Fortin and Peter O’Neill. In: LERNER, Ralph (Ed.). Medieval political philosophy: a sourcebook. New York: Free Press of Glencoe, 1963. 340 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS vida” era apenas o meio para atingir uma ordem superior, a ordenação divina, que constituía a única perfeita e completa. Desse modo, a política não era a ciência do fim supremo absoluto, e sim a ciência do meio supremo para alcançar o fim último.118 A política, portanto, era simultaneamente um fim último na ordem natural e um fim relativo no que dizia respeito ao fim supremo sobrenatural: constituía o meio mais adequado para a consecução do fim último primeiro, a visão de Deus. Nesse sentido, não havia em Tomás de Aquino uma contraposição entre o fim da cidade terrena e o da cidade de Deus. Pois era precisamente na cidade terrena que o homem deveria se desenvolver em sua plenitude, de modo a estar apto para alcançar a beatitude celeste. Era por essa razão que o Angélico podia afirmar sem constrangimentos ser a ciência política principal e arquitetônica entre todas as que compunham o conhecimento prático. Essa era uma interpretação bastante nova do “lugar” da política e faria escola no pensamento político que sucedeu o Aquinate. Os princípios apontados por Tomás de Aquino constituíam uma base bem diferente daquela da qual partiam os cristãos tradicionais, no que respeitava à concepção da política: para os Pais da Igreja e para os cristãos da Alta Idade Média, a vida política havia sido corrompida pela inclinação hereditária do homem ao mal. Política era, de modo geral, associada a formas corruptas e degeneradas de existência. O regnum consistia para os cristãos medievais numa instituição coercitiva (“braço armado”) cujo objetivo era manter um mínimo de ordem num mundo pecaminoso. O governante, 118 Cf. GARCIA-CUADRADO, José Angel. Ética e política: Tomás de Aquino comenta Aristóteles. REVISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA. As relações de poder no pensamento político da Baixa Idade Média. Homenagem a João Morais Barbosa. Lisboa: Universidade Nova Lisboa, v. I, 1994. p. 102. 341 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mesmo que fosse um cristão, podia apenas se esforçar para moderar os impulsos do poder temporal humano e para impor uma justiça mínima na cidade terrena, de modo a tornar viável aos futuros membros da cidade celeste a conquista de sua recompensa eterna, a justiça perfeita ao lado de Deus. Tomás de Aquino enfrentou essa tradição ao afirmar, seguindo os passos do Filósofo, que o homem era um animal naturalmente orientado para a polis, isto é, um zoon politikon. E que a vida política constituía uma parte necessária para o seu completo desenvolvimento. Tomás ampliou a definição aristotélica, traduzindo-a para o latim nas seguintes palavras: “É o homem, por natureza, um animal sociável [gregale] e civil” (De regno, 1, 2, 2).119 Um animal que usava a sua razão e a faculdade da fala para cooperar na construção de comunidades políticas que respondiam às necessidades do grupo e dos membros que a compunham. A comunidade política, união de homens livres sob a direção de um governante, visava à promoção do bem comum. Definido dessa maneira, o governar assumia uma conotação positiva e ganhava uma justificação moral.120 Para os homens que viviam no século XIII, é preciso lembrar, o regnum não apenas constituía a melhor forma de governo, mas era também a única que estava de acordo com a intenção divina – não está em discussão aqui se a espada temporal deveria caber apenas ao imperador ou submeter-se ao papa. Também para o Aquinate a monarquia era, de modo absoluto, a melhor forma de governo, embora defendesse o governo misto. E justificava: quanto mais eficazmente um 119 No Sententia: “[...] ergo homo est naturaliter animal domesticum et civile” (Sententia A 79). 120 Sobre a contraposição das visões agostiniana e tomista a respeito da política, conferir WEITHMAN, Paul J. Augustine and Aquinas on original Sin and the function of political authority. Journal of the History of Philosophy, v. 30, n. 3. p. 353-76, jul. 1992. 342 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS governo alcançava a unidade, tanto mais útil ele era à comunidade. E quanto maior fosse a unidade dentro dele, tanto mais eficaz ele seria. Relevante em seu raciocínio portanto era o princípio, o da unidade, que se seguia de sua concepção metafísica da unicidade de Deus. Por isso podia afirmar que o governo monárquico, dada a unidade do governante, constituía, entre todas as formas justas de governo, a mais apta para dirigir a comunidade política.121 O homem era, por natureza, um animal social e político que, mais do que os outros animais, vivia em multidão por não estar apto a satisfazer sozinho todas as suas necessidades naturais.122 Diferentemente dos animais, que tinham discernimento natural inato, o homem só dispunha do conhecimento natural, tendo de partir dos princípios primeiros universais para atingir o conhecimento das coisas particulares necessárias à sua vida. Como um homem sozinho não podia abarcar todas essas coisas, era necessário que vivesse em multidão, de modo a se ajudar mutuamente e dividir o saber que cabia a cada um. “Isto se patenteia com muita 121 “Ora, em todas as coisas ordenadas a algum fim, [...] é mister haver algum dirigente, pelo qual se atinja diretamente o devido fim. [...] ora, tem o homem um fim, para o qual se ordenam toda a sua vida e ação, porquanto age pelo intelecto, que opera manifestamente em vista do fim. Acontece, porém, agirem os homens de modos diversos em vista do fim, o que a própria diversidade dos esforços e ações humanos patenteia. Portanto, precisa o homem de um dirigente para o fim. Tem todo homem, dada naturalmente, a luz da razão, pela qual é dirigido ao fim, nos seus atos. E, se conviesse ao homem viver separadamente, [...] não precisaria de quem o dirigisse para o fim”. In: AQUINO. De regno (DR), l. 1, cap.2, 2. In: AQUINO, Escritos políticos, op. cit., p. 126. 122 “Foi, porém, o homem criado sem a preparação de nada disso [dentes, chifres, velocidade para fuga] pela natureza, e, em lugar de tudo, coubelhe a razão, pela qual pudesse granjear, por meio das próprias mãos, todas essas coisas, para o que é insuficiente um homem só. Por cuja causa, não poderia um homem levar suficientemente a vida por si. Logo, é natural ao homem viver na sociedade de muitos” (DR 1, 2, 2). 343 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO evidência no ser próprio do homem usar da linguagem, pela qual pode exprimir totalmente a outrem o seu conceito” (DR 1, 2, 3). De onde Tomás de Aquino deduzia que, se era natural ao homem “o viver em sociedade de muitos, cumpre haja, entre os homens, algo pelo que seja governada a multidão”, um princípio diretivo que garantisse ao grupo, em meio a tanta diversidade, o governo daquilo que era comum.123 Para isso, era preciso que houvesse, em toda multidão, um regente capaz de assegurar que a comunidade alcançasse o fim para o qual tinha sido constituída:124 o bem-estar coletivo. Se, pois, a multidão dos livres é ordenada pelo governante ao bem comum da multidão, o regime será reto e justo, como aos livres convém. Se, contudo, o governo se ordenar não ao bem comum da multidão, mas ao bem privado do governante, será injusto e perverso o governo. (DR 1, 2, 5) A um tal governante injusto chamar-se-ia tirano, nome derivado de força, porque oprime pelo poder, ao invés de governar pela justiça [...]. Fazendo-se [o regime 123 “Que, se houvera muitos homens e tratasse cada um do que lhe conviesse, dispersar-se-ia a multidão em diversidade, caso também não houvesse algo cuidando do que pertence ao bem da multidão, assim como se corromperia o corpo do homem e de qualquer animal, se não existira alguma potência regedora comum, visando ao bem comum de todos os membros [...]. E, por certo, é razoável, pois não são idênticos o próprio e o comum. O que é próprio divide, e o comum une. Aos diversos correspondem causas diversas. Assim, importa existir, além do que move ao bem particular de cada um, o que mova ao bem comum de muitos” (DR 1, 2, 4). 124 “Assim como sucede em certas coisas ordenadas a um fim, andar direito ou não, também no governo da multidão se dá o reto e o não-reto. Uma coisa dirige-se retamente, quando vai para o fim conveniente; nãoretamente, porém, quando vai para o fim não conveniente. Um, porém, é o fim conveniente à multidão dos livres, e outro à dos escravos [...]” (DR 1, 2, 5). 344 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS iníquo], entretanto, não por um só, senão por vários, se bem que poucos, chama-se oligarquia, isto é, principado de poucos [...]. Se, porém, o regime iníquo se exerce por muitos, nomeia-se democracia, quer dizer, poder do povo, sempre que o povo dos plebeus oprime os ricos pelo poder da multidão [...]. Semelhantemente se há de também fazer distinção quanto ao regime justo. Se a administração está com uma multidão, se lhe chama com o nome comum de politia [...]. E, se administram poucos, mas virtuosos, chama-se aristocracia tal governo [...]. Pertencendo, porém, a um só o governo justo, chama-se ele, propriamente, reii. (DR 1, 2, 6) Aqui o Angélico repetia o mestre: sua divisão das formas de governo era rigorosamente aristotélica. Rex, portanto, era aquele que presidia único, buscando o bem comum da multidão. E a sociedade da multidão seria tanto mais perfeita quanto mais auto-suficiente fosse para suprir as necessidades da vida coletiva. A civitas era, entre todas, a associação mais perfeita. Também o desenvolvimento da vida social seguia em Tomás de Aquino o esquema aristotélico: o núcleo básico era a família (domus), seguida pela aldeia (vicus) e depois pela cidade (civitas). A intenção do governante reto, escrevia ele, era buscar a salvação dos súditos, do mesmo modo que competia ao piloto conduzir a nau em segurança até o porto. Como o bem da multidão associada era a conservação da unidade, útil à vida social, o intento do governante devia ser por isso cuidar da unidade, isto é, da paz. E o governo que melhor realizava essa unidade era aquele de um só: a monarquia.125 125 “Deve ser a intenção de qualquer governante o procurar a salvação daquele cujo governo recebeu. [...] Ora, o bem e salvamento da multidão consorciada é conservar-lhe a unidade, dita paz, perdida a qual, perece a utilidade da vida social, uma vez que é onerosa a si mesma a multidão dissensiosa. Por conseguinte, o máximo intento do governante deve ser o cuidar da unidade da paz. Nem é reto deliberar ele a não ser que produza a paz na multidão a ele sujeita [...]. Realmente, ninguém deli345 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO E, para sustentar sua argumentação, o Aquinate acrescentava: Mais ainda: o mais bem ordenado é o natural; pois, em cada coisa, opera a natureza o melhor. E todo regime natural é de um só. Assim, na multidão dos membros, há um primeiro que move, isto é, o coração; e, nas partes da alma, preside uma faculdade principal, que é a razão. Têm as abelhas um só rei, e em todo o universo há um só Deus, criador e governador de tudo. E isto é razoável. De fato, toda multidão deriva de um só. Por onde, se as coisas de arte imitam as da natureza e tanto melhor é a obra de arte quanto mais busca a semelhança da que é da natureza, importa seja o melhor, na multidão humana, o governar-se por um só. (DR 1, 3, 9) Recorria ainda à experiência para mostrar que o governo de muitos produzia o dissenso: um governo dos muitos, no qual o poder fosse compartilhado, degenerava com mais freqüência num regime tirânico do que o governo de um só monarca, a exemplo da república romana. E o que tornava injusto um governo, “é o tratar-se, nele, do bem particular do governante, com menosprezo do bem comum da multidão. Logo, quanto mais se afasta do bem comum, tanto mais injusto é o regime” (DR 1, 4, 11). De todas as formas de governo, a mais injusta era a tirania. Pois, assim como o bem proveniente de uma só causa era mais forte, a exemplo de Deus, também mais devastador era o mal que advinha de uma causa única.126 bera do fim que deve perseguir, mas sim do que se ordena ao fim [...]. Assim, tanto mais útil será um regime, quanto mais eficaz for para conservar a unidade da paz [...]. Ora, manifesto é poder melhor realizar unidade o que é de per si um só, que muitos, tal como a mais eficiente causa de calor é aquilo que de si mesmo é quente. Logo, é o governo de um só mais útil que o de muitos” (DR 1, 3, 8). 126 “É, pois, o governo do tirano o mais injusto. Semelhantemente se tornará evidente a quem considerar a ordem da divina providência, que tudo 346 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Até aqui, Tomás de Aquino seguia Aristóteles. Mais adiante, contudo, argumentava que, no governo de muitos, ocorria com mais freqüência o domínio da tirania: quando muitos governavam, inúmeros ódios e dissensões eram despertados, permitindo a instauração de tiranias cruéis. Por isso, insistia, melhor era o governo de um só.127 E, quando era preciso decidir entre dois governantes perigosos, deviase escolher aquele do qual derivava mal menor. E justificava adiante, recorrendo à experiência histórica: se alguém considerar diligentemente, em todo o mundo, os fatos passados e os que ora se dão, há de achar ter havido mais tiranos nas terras governadas por muitos, do que nas governadas por um só. Se, portanto, a realeza, que é o melhor governo de todos, pareça dever evitarse por causa da tirania; e se a tirania costuma dar-se não menos, porém mais, no governo de muitos que no de um dispõe pelo melhor. Pois, nas coisas, o bem provém duma única causa perfeita, congregando-se tudo aquilo que pode coadjuvar ao bem, enquanto o mal, em particular, provém dos defeitos particulares [...]. E assim é que, por modos vários, procede a feiúra de muitas causas, enquanto a beleza por um só modo e de uma só causa perfeita. E assim se dá com todos os bens e males, como que por providência de Deus, a fim de que o bem proveniente de uma só causa seja mais forte, entretanto, o mal, proveniente de muitas causas, seja mais fraco. Releva, pois, que o governo justo seja de um só, para ser mais forte. Porque, caso se afaste da justiça, mais convém seja de muitos, que entre si se atrapalhem, para ser mais fraco. Entre os regimes injustos é, portanto, o mais suportável a democracia, e o pior, a tirania” (DR 1, 4, 11). 127 “Ora, da monarquia que em tirania se converte”, escrevia Tomás de Aquino corrigindo o mestre, “segue-se menor mal do que do governo de muitos nobres, ao se corromper. Verdadeiramente, a dissensão que, o mais das vezes, deriva do governo de muitos, contraria o bem da paz, que é o princípio na multidão social, bem esse que pela tirania não se perde, mas somente se impedem alguns dos bens dos homens particulares, salvo se há excesso de tirania, que se agrave contra toda a comunidade. Portanto, há de se decidir de preferência pelo governo de um só do que pelo de muitos, se bem que de ambos decorram perigos” (DR 1, 6, 15). 347 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO só, resta simplesmente ser de mais conveniência viver sob um rei, do que sob o governo de muitos. (DR 1, 6, 15 e 16) Convinha assim que se escolhesse para a função de rei um homem com pouca probabilidade de se inclinar à tirania. E as instituições do reino deviam estar de tal forma estabelecidas, que dificultassem ao rei a ocasião de se tornar um tirano. Se contudo uma tirania se instaurasse, e não fosse excessiva, convinha mais que fosse tolerada por certo tempo do que, na oposição ao tirano, ficar-se emaranhado em muitos perigos mais graves do que a própria tirania. [...] Dá-se, por vezes, o caso de, quando a multidão expele o tirano, ajudada por alguém, este, apanhado o poder, assumir a tirania e, temendo sofrer de outrem o que fez contra aquele, oprimir os súditos em mais grave servidão. (DR 1, 7, 18) Mas, se fosse legalmente possível livrar-se do tirano, procedendo pela autoridade pública, devia então a multidão destituí-lo.128 No caso de não se obter auxílio humano contra o tirano, restava então recorrer ao rei supremo, Deus.129 Tomás de Aquino recusava o governo teocrático tradicional por acreditar que este conferia ao monarca a plenitudo potestatis: ele não tinha de dar conta a ninguém de seus atos de governo e podia colocar-se acima das leis. Isto, para o 128 “[...] não se deve proceder contra a perversidade do tirano por iniciativa privada, mas sim pela autoridade pública. Primeiro, porque, competindo ao direito de qualquer multidão prover-se de rei, não injustamente pode ela destituir o rei instituído ou refrear-lhe o poder, se abusar tiranicamente do poder real. Nem se há de julgar que tal multidão age com infidelidade, destituindo o tirano, sem embargo de se lhe ter submetido perpetuamente, porque mereceu não cumpram os súditos para com ele o pactuado, não se portando ele fielmente, no governo do povo, como exige o dever do rei” (DR 1, 7, 20). 129 “Mas, para que o povo mereça conseguir de Deus este benefício, deve afastar-se dos pecados, por isso que, em punição do pecado, recebem os ímpios o mando, por divina permissão [...]. Cumpre, por conseguinte, suprimir a culpa, a fim de que cesse a peste dos tiranos” (DR 1, 7, 21). 348 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Angélico, caracterizava a tirania, a mais repugnante das formas de governo. Um governo propriamente político existia, segundo ele, quando os poderes do governante estavam circunscritos às leis da comunidade política ou civitas. Por isso, como lembra Ullmann, a defesa de um governo monárquico por Tomás de Aquino não deve ser identificada à teocracia, já que em seu modelo o governante estava sujeito às leis da comunidade política natural e limitado à lei positiva.130 De fato, o rei de Tomás de Aquino era limitado tanto pelas leis e pelo julgamento de Deus, num certo nível, quanto, em outro nível, pelo povo, a quem cabia o direito de resistir-lhe quando seu governo degenerasse em tirania. O príncipe, instituído para realizar grandes obras, devia ter grandeza de alma, e jamais aspirar à glória humana, pois essa aspiração o privava da primeira qualidade. Além do mais, o homem bom tinha o dever de desprezar a honra, a glória e os demais bens temporais. E justificava pragmaticamente a sua oposição à tradição aristotélica: O que, porém, transparece da intenção dos sábios doutores é que não determinaram a honra e glória como prêmio ao príncipe, como devendo dirigir-se principalmente para elas a intenção do rei bom, mas sim como sendo mais tolerável buscar ele a glória do que desejar o dinheiro ou seguir o prazer. [...] Tem a paixão da glória algum vestígio da virtude, ao menos enquanto procura a aprovação dos bons e se recusa a desagradar-lhes. Uma vez, portanto, que poucos chegam à verdadeira virtude, é mais suportável, se for conduzido ao governo alguém que, embora só por temor do juízo dos homens, pelo menos se afasta dos males manifestos. (DR 1, 8, 24) Apenas de Deus devia o rei esperar seu prêmio: De fato, o servente espera do senhor a recompensa pelo seu serviço; ora, o rei, governando o povo, é ministro de 130 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 170. 349 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Deus, na asserção do Apóstolo (Rm. 13: 1.4), de que “todo poder vem do Senhor Deus e o ministro de Deus é vingador iroso contra aquele que faz o mal” [...]. Devem os reis, por isso, esperar de Deus a recompensa pelo seu governo. (DR 1, 9, 25) O prêmio da virtude, tal como estava escrito nas mentes de todos os seres dotados de razão, era a felicidade, a qual constituía o bem perfeito. E, como nada havia nas coisas terrenas que pudesse aquietar o desejo, nada do que era terreno podia fazer feliz ao rei.131 A perfeição final e o bem completo de qualquer criatura tendiam para aquele algo superior que lhes havia causado. E a única causa do espírito humano era Deus, que o fizera à sua imagem e semelhança.132 Por isso, todos aqueles que exercessem o ofício régio de maneira digna e louvável obteriam grau sublime e eminente de beatitude celeste. Pois se requeria maior virtude daquele que governava a cidade ou o reino do que daquele que governava apenas a si mesmo ou a sua família.133 Daí ser o prêmio 131 “Nada havendo de permanente nas coisas terrenas, nada há de terreno que possa aquietar o desejo. Assim, nada do que é terreno pode fazer feliz, para poder ser prêmio conveniente do rei” (DR 1, 9, 26). 132 “Até as próprias coisas corpóreas tornam-se melhores pela junção de melhores, e piores, se se misturam com piores. [...] Ora, estão abaixo do espírito humano todas as coisas terrenas: mas, a felicidade é a perfeição final e o bem completo do homem, a que desejam todos chegar; logo, nada há de terreno que ao homem possa fazer feliz; pelo que, nada de terreno é prêmio bastante do rei. [...] Com efeito, o desejo tido por qualquer coisa tende para o seu princípio pelo qual o seu ser foi causado. Ora, é causa do espírito humano somente Deus, que o faz à sua imagem. Logo, só Deus é quem pode aquietar o desejo do homem e fazêlo feliz e ser recompensa conveniente ao rei” (DR 1, 9, 27). 133 “[...] se cabe à virtude tornar boa a obra do homem, parece próprio da virtude maior fazer com que se opere um bem maior. Ora, o bem da multidão é maior e mais divino que o de um só; por essa causa, tolerase às vezes o mal de um só, se aproveita ao bem da multidão; por exemplo, mata-se o ladrão, para dar paz à multidão. [...] E, se ao ofício do rei 350 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS do rei a bem-aventurança. E, para não perderem a possibilidade da beatitude celeste, os reis deviam governar diligentemente e cuidar para não se tornarem tiranos. Pois os que abandonavam a justiça, privavam-se de tal prêmio. Do amor do rei pelos seus súditos advinha a estabilidade do governo. Pois, por ele, os súditos se expunham a qualquer perigo. Por essa razão também, não era fácil perturbar o senhorio de um príncipe amado por seu povo. O domínio dos tiranos, ao contrário, não podia durar muito por ser odioso à multidão e se sustentar apenas no temor.134 Deus só permitia que tiranos governassem para punir os pecados dos seus súditos. Mas, aplacada a sua ira, Ele os depunha. Dois séculos mais tarde, Maquiavel pouco acrescentara à idéia do consentimento e adesão do povo como base da autoridade política estável e duradoura. Como a arte imitava a natureza, e desta última recebíamos a capacidade de operar segundo a razão, daí decorria que a função régia era derivada da forma de governo natural: havia, nas coisas naturais, o governo universal e o particular. O universal competia a Deus, que tudo conhecia e podia. O particular, o microcosmo, achava-se no homem. Mas, como a parte estava para o todo, também no microcosmo se verificava a forma do governo universal. Como corpo e alma eram regidos pela razão, essa existia no homem na mesma proporção em que Deus estava para o universo. Do mesmo modo pertence procurar diligentemente o bem da multidão, por isso mesmo ao rei se deve maior prêmio pelo bom governo, do que ao súdito pela ação correta” (DR 1, 10, 29). 134 “Resta, portanto, que o governo do tirano só se sustente pelo temor, razão por que procuram, com toda intenção, fazer-se temidos pelos súditos. O temor é, contudo, fundamento débil. Pois, os que se submetem somente pelo temor, se ocorrer uma ocasião na qual possam esperar impunidade, se insurgem contra os que presidem, tanto mais ardentemente, quanto mais contra a vontade eram coagidos unicamente pelo medo. [...] Não pode, por conseguinte, ser de longa duração o domínio do tirano” (DR 1, 11, 35). 351 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO era a multidão mais bem governada pela razão de um só homem.135 E, adiante, comparava a função do bom rei à de Deus, numa formulação que nada deixaria a desejar aos mais ardorosos defensores daquilo que viria a ser chamado de direito divino dos reis: “Saiba, por conseguinte, o rei que recebeu estes múnus a fim de ser no reino como a alma no corpo e Deus para o mundo. Se diligentemente observar isso, acender-se-á nele, por um lado, o zelo da justiça, ponderando ter sido destinado a exercer no reino o julgamento em lugar de Deus; por outro lado, adquire, ao certo, a suavidade da mansidão e da clemência, considerando cada um dos subordinados ao seu governo, como seus próprios membros” (DR 1, 13, 40). A metáfora do corpo como representação do poder político, amplamente divulgada nos séculos XI e XII, ganhava aqui um depositário concreto e indiscutível: o bom rei, que governava no reino como a alma no corpo. Invocando a criação do mundo por Deus,136 Tomás de Aquino estabelecia, por similitude de funções, a instituição do reino pelo príncipe.137 135 “Ora, na natureza das coisas, há o governo universal e o particular. O universal é aquele segundo o qual tudo se sujeita ao governo de Deus, que com sua providência governa todas as coisas. O governo particular, muitíssimo semelhante ao divino, acha-se no homem, que por isso se chama microcosmo, porque nele se encontra a forma do governo universal. [...] sendo o homem [...] animal naturalmente social, que vive em multidão, acha-se nele a semelhança do governo divino, não somente quanto ao fato de que a razão governa as demais partes do homem, mas também no ser a multidão regida pela razão de um só homem, o que compete sobretudo à função régia” (DR 1, 13, 40). 136 “[...] duas obras de Deus no mundo se hão de considerar, em geral: uma, pela qual Ele cria o mundo; outra, pela qual governa o mundo criado. Estas duas operações, tem-nas a alma no corpo. Primeiro, com efeito, é o corpo formado pela virtude da alma; depois, é o corpo regido e movido pela alma. Destas duas obras, a segunda é que pertence mais propriamente à função real” (DR 1, 14, 41). 137 “Ora, a razão da instituição do reino se há de coligir do exemplo da instituição do mundo no qual se considera, em primeiro lugar, a produ352 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Assim como a fundação da cidade ou do reino deriva convenientemente da forma da criação do mundo, assim também é do governo divino que se há de derivar a ordem do governo. [...] governar é conduzir convenientemente ao devido fim o que é governado. [...] Se, portanto, alguma coisa está ordenada a um fim exterior a ela, como o navio ao porto, caberá ao ofício do governo, não só conservar perfeita a própria coisa, mas, além disso, conduzi-la ao fim. (DR 1, 15, 43) O fim último da multidão na terra era a boa vida segundo a virtude, meio pelo qual podia chegar à fruição divina, seu fim último no céu. Mas como essa visio Dei só podia ser atingida por meio da virtude divina, conduzir a esse fim último cabia não ao regime humano, mas ao governo divino.138 Ficava claro, nessa concepção, quanto o Angélico havia avançado em relação à formulação aristotélica: partindo dos mesmos princípios, estendia também ao sobrenatural a noção de governo, fornecendo assim munição para a revisão da teoria gelasiana das duas espadas, como faria pouco depois, por exemplo, Egídio Romano. Desse governo divino, continuava ele, derivava o sacerdócio real: ção das próprias coisas, depois a distinção ordenada das partes do mundo” (DR 1, 14, 41). 138 Nas palavras de Tomás de Aquino: “Parece, no entanto, ser fim último da multidão congregada o viver segundo a virtude. Pois, para isto se congregam os homens: para em conjunto viverem bem, o que não pudera cada um, vivendo separadamente. Ora, boa é a vida segundo a virtude; portanto, a vida virtuosa é o fim da associação humana. [...] Visto que, porém, o homem, vivendo segundo a virtude, é ordenado a um fim ulterior, o qual consiste na fruição divina, como acima dissemos, cumpre seja o mesmo o fim da multidão humana, como o de um só homem. Não é fim último da multidão associada viver segundo a virtude, mas sim, pela vida virtuosa chegar à fruição divina. [...] Como, porém, o homem não consegue o fim da fruição divina por virtude humana, senão divina, [...] conduzir àquele fim último não cabe ao governo humano, senão ao divino” (DR 1, 15, 45). 353 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A fim de ficar o espiritual distinto do terreno, foi, portanto, cometido o ministério desse reino não a reis terrenos, mas a sacerdotes e, principalmente, ao Sumo Sacerdote, sucessor de Pedro, Vigário de Cristo, o Romano Pontífice, a quem importa serem sujeitos todos os reis dos povos cristãos, como ao próprio Senhor Jesus Cristo. Assim, pois, como já foi dito, a ele, a quem pertence o cuidado do fim último, devem submeter-se aqueles a quem pertence o cuidado dos fins antecedentes, a ser dirigidos por seu comando. (DR 1, 15, 46 – grifos meus) Depois de fazer a defesa explícita da supremacia da espada espiritual sobre a temporal, entretanto, Tomás de Aquino se via obrigado a explicar os argumentos dos defensores do regnum, que se apoiavam, entre outros, no Antigo Testamento, para afirmar a superioridade do imperador sobre o sumo pontífice, e a antiguidade do reino em relação ao sacerdócio. Deus havia prometido, na lei antiga, justificava o Aquinate, bens terrenos ao povo religioso. Como o sacerdócio dos gentios e todo culto das coisas divinas se ordenavam à conquista de bens temporais, deviam os sacerdotes se submeter, naqueles tempos, ao rei, que a todos ordenava para o bem comum da multidão. Mas a vinda de Cristo, que instaurou a lei nova e redimiu os pecadores por meio da graça, criou um sacerdócio mais alto, “pelo qual os homens são levados aos bens celestes; daí, na Lei de Cristo [Novo Testamento], os reis deve[re]m estar sujeitos aos sacerdotes” (DR 15, 47). Essa formulação oferecia um argumento a mais – e de peso – aos defensores do sacerdotium. Saranyana observa num de seus textos que o De regno estava “contaminado” pela doutrina guelfa ou papalista, surgida como um desenvolvimento unilateral da doutrina gelasiana das duas espadas.139 Essa posição podia de 139 “Segundo os guelfos”, esclarece Saranyana, “toda autoridade, inclusive aquela dos reis e imperador, deriva da autoridade do papa. Por isso, podem os pontífices depor os governantes, como havia ocorrido em 1245, 354 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS fato ser encontrada não apenas no opúsculo, mas em vários dos escritos do Angélico. Na Suma teológica, por exemplo, quando o Aquinate considerava o domínio ou governo já existentes, admitia que governantes infiéis podiam governar justamente. Pois domínio e governo eram obras do direito humano, enquanto a distinção entre crentes e não-crentes constituía matéria da jurisdição divina. Como o direito divino não eliminava o humano, o governo dos reis infiéis podia existir. Mas a Ecclesia, lembrava ele, por receber do próprio Deus sua autoridade, podia ou não eliminar esse domínio ou governo. Ou seja, a autonomia do governante temporal não era absoluta. Esse era, no fundo, o argumento clássico dos defensores da primazia do sacerdotium sobre o regnum. Nas palavras do Aquinate: [...] devemos notar que o domínio e o governo [dominium et praelatio] foram introduzidos por direito humano, ao passo que a distinção entre fiéis e infiéis é de direito divino. Ora, o direito divino, fundado na graça, não elimina o direito humano, fundado na natureza racional. Logo, a distinção entre fiéis e infiéis, em si mesma considerada, não elimina o domínio e o governo dos infiéis sobre os fiéis. Pode porém justamente, por sentença ou ordem da Igreja, que tem de Deus a sua autoridade, ser eliminado esse direito de domínio ou governo. Porque os infiéis, como castigo da sua infidelidade, merecem perder o governo dos fiéis, transformados em filhos de Deus. Mas isto a Igreja faz umas vezes e, outras, não. (ST II, II, 60, 6, ad 3) O pensamento de Tomás de Aquino acerca da relação entre a Ecclesia e os poderes temporais nem sempre era muito quando Inocêncio IV depôs Frederico II. Pois para os guelfos o papa havia recebido as duas espadas e delegava uma delas aos governantes civis, conservando o direito de lhes retirar tal poder quando considerassem oportuno em razão de causas graves”. Cf. SARANYANA, Josep-Ignasi. La ciencia politica de Tomás de Aquino. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 242. 355 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO claro para quem toma os seus escritos isoladamente: na passagem acima, ele defendia a supremacia papal sobre todos os governantes temporais,140 conferindo ao papa, inclusive, o poder de destituir aqueles governantes que não considerasse “adequados” ao cargo, de acordo com a boa tradição dos papas hierocráticos. Noutros lugares, contudo, ele asseverava estar o governante civil isento e acima da lei, devendo contudo subordinar-se à sua força diretiva.141 À primeira vista, o Angélico parecia oscilar entre a defesa de uma autonomia do governante temporal em matérias concernentes ao bem comum e a atruibuição ao papa, como representante máximo de Deus, de uma supremacia moral que o colocava acima dos poderes seculares e lhe permitia deles dispor como e quando lhe conviesse. Uma resposta para o problema talvez possa ser parcialmente encontrada no capítulo 16, do De regno, no qual o Aquinate tentava explicar a diferença entre os fins últimos e os intermediários: 140 “O poder secular está sujeito ao espiritual, como o corpo à alma. Por onde, não é usurpado o juízo do prelado espiritual que se intromete com as coisas temporais, na medida em que o poder secular lhe está sujeito, ou que lhe são confiadas coisas da alçada desse poder” (ST II, II, 60, 6, ad 3). 141 “No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que se diz ser o príncipe isento da lei quanto à força coativa da lei, pois ninguém, em sentido próprio, é coagido por si mesmo; ora, a lei só tem força coativa em razão do poder do príncipe. Assim, pois, o príncipe diz-se isento da lei porque ninguém pode pronunciar contra ele um juízo condenatório, se vier a agir contra a lei [...]. Mas quanto à força diretiva da lei, está o príncipe sujeito à lei por sua própria vontade nos termos em que se diz [...] ‘Todo aquele que estatui um direito para outrem, deve usar o mesmo direito’. [...] Segue-se, pois, não estar o príncipe isento da lei quanto ao vigor diretivo desta perante o juízo de Deus, mas deve cumprir a lei voluntariamente e não por coação. Está também o príncipe acima da lei na medida em que, se for isto vantajoso, pode mudá-la e dela dispensar, segundo o tempo e o lugar” (TL I, II, 96, 5, ad 3). 356 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Assim como à vida feliz que esperamos no céu se ordena, como ao fim, a vida pela qual os homens vivem bem aqui, igualmente se ordenam à boa vida da multidão, como ao fim, quaisquer bens particulares que o homem procura [...]. Se, pois, como foi dito, quem cuida do fim último deve ter prioridade sobre os que têm o cuidado do que é ordenado ao fim e dirigi-los pelo seu comando, do que vai dito se põe claro que o rei, assim como deve se sujeitar, como ao Senhor, ao governo que se administra pelo ofício sacerdotal, assim também deve presidir a todos os ofícios humanos e ordená-los com o comando do seu governo. (DR 1, 16, 48) Ou seja, assim como o ferreiro devia fazer bem a espada de modo que conviesse à luta e o construtor devia edificar bem a casa de modo que pudesse ser habitada com segurança, assim também, sendo a beatitude celeste fim da vida presentemente bem vivida, pertence à função régia, por essa razão, procurar o bem da vida da multidão, segundo convém à consecução da beatitude celeste, isto é, preceituando o que leva à bem-aventurança celeste e interdizendo o contrário, dentro do possível. (DR 1, 16, 48) O caminho para a verdadeira beatitude se conhecia pela lei divina, explicava Tomás, cujo saber e ensinamento pertenciam ao ofício dos sacerdotes. Assim o monarca, depois de coroado, devia aplicar-se ao esforço principal de governar instruído pela lei divina, “isto é, como viva bem a multidão a ele sujeita; esforço esse que se divide em três partes: primeira, a instauração da boa vida na multidão a ele sujeita; segunda, a conservação dessa vida já instaurada; terceira, o melhoramento dessa vida conservada”. Para que um homem pudesse alcançar a boa vida, continuava, duas coisas eram necessárias: 1) agir segundo a virtude, pois a virtude era aquilo pelo qual se vivia bem; 2) a suficiência dos bens corpóreos, cujo uso era necessário ao exercício das virtudes (DR, 1, 16, 49). 357 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Mas a unidade do homem constituía uma inclinação da natureza, enquanto a unidade da multidão, a paz, devia ser buscada pela indústria do governante. Assim, pois, três condições se exigem para instaurar a boa vida da multidão. Primeira, que a multidão se estabeleça na unidade da paz. Segunda, ser essa multidão, unida pelo vínculo da paz, dirigida a proceder bem. [...] Terceira, requerer-se que, por indústria do dirigente, haja abundância suficiente do necessário para o bem viver. Por onde, constituída a boa vida na multidão por obra do rei, segue-se que deva tratar da sua conservação. (DR 1, 16, 49) Três cuidados devia ter o rei para garantir tais objetivos: zelar para que os que sucediam àqueles que vinham a faltar conservassem o bem da multidão subordinada; desviar os súditos, por meio de sanções e recompensas, da iniqüidade e induzi-los a obras virtuosas; e, por fim, assegurar a boa vida da multidão a ele sujeita contra os inimigos externos. Para que o governante temporal pudesse dar conta de todas essas tarefas, portanto, era preciso conceder-lhe um razoável grau de autonomia. E o Angélico, pragmático que era, sabia bem disso. Assim, desde que visassem ao bem da comunidade, as decisões do governante dispunham não apenas de força coativa, mas eram ainda sustentadas pelo assentimento divino. Contudo, se o governante se opusesse à “razão do bem”, determinada em última instância pelo supremo pontífice, cessava a legitimidade de seu governo, agora transformado em tirania. E, se insistisse em conservar seu domínio, a “ira de Deus” se abateria sobre ele até que capitulasse. Dito de outro modo: pode-se afirmar, com alguma certeza, que, para Tomás de Aquino, a função de qualquer governante devia ser a ordenação dos súditos à boa vida. Isto valia tanto para os governantes fiéis quanto para os infiéis. 358 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS Até aqui, Tomás de Aquino era rigorosamente aristotélico: a comunidade humana reunida na civitas continha, na sua natureza, os princípios de sua operação. Mas o rei cristão, por ser instruído de acordo com a graça divina, e compartilhar assim um fim superior, tinha a obrigação de tornar esse fim terreno, a boa vida da multidão, um meio exeqüível para atingir a felicidade celeste ou beatitude eterna, fim último de toda e qualquer comunidade cristã. Por essa razão, os governantes temporais da cristandade estavam sujeitos à autoridade última do sumo pontífice. Aos reis cristãos cabia buscar e manter a boa vida da comunidade humana, de acordo com as regras do direito natural e do ius humano. Quando esses governantes ultrapassavam a “reta razão” das leis e se tornavam injustos, cabia ao sumo sacerdote, como instância moral máxima, alertá-los e, se necessário, puni-los, destituindo-os da função de governo. Isso significava que, na prática, o sucessor de Pedro podia legitimamente intervir em assuntos temporais em “razão do pecado”. Pois aquele que agia contra a justiça agia contra Deus e, por isso, merecia castigo. Dessa perspectiva, a decisão do lícito e do ílicito era da competência de um só homem: o vigário de Cristo na terra e seu representante direto, o romano pontífice, como havia sido determinado pela lei nova. Somente a ele cabia definir tal “razão de pecado”. Pois ninguém conhecia melhor a lei divina do que o representante de Deus. Os governantes infiéis, de seu lado, deveriam ser “conquistados” pela cristandade, no melhor espírito das Cruzadas. Aqueles pagãos que governavam justamente, acabariam conhecendo a verdade de Deus, pois a “reta razão” os levaria à apreensão das normas do Senhor, e seriam assim retirados de seu “estado primitivo na natureza”. Já os infiéis que governavam injustamente experimentariam, cedo ou tarde, a ira do Senhor, que lhes subtrairia o poder: era justamente essa promessa que os cruzados vinham tentando, com maior ou menor sucesso, cumprir havia dois séculos. 359 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A idéia unitária, escreve Ullmann ao comentar as bases da doutrina hierocrática, pressupunha também um mando unitário para a corporação cristã, cuja cabeça era o papa, que se situava acima dos povos e nações, e de cuja jurisdição poucas coisas ou pessoas escapavam. Aos olhos da Ecclesia, o governante temporal era designado pela divindade, que o reconhecia por intermédio do papa. E, se aquele governava cumprindo de fato a finalidade da Igreja, podia até chegar a ser “a imagem da divindade”. A vontade do rei, nessa perspectiva, dependia da “lei de Deus”, dado ser a lei uma “dádiva divina e imagem da vontade do Senhor”.142 Em Tomás de Aquino essa idéia se expressava na noção de que a lei natural era um “espelho da razão divina”. E, por derivação imperfeita, também a lei dos homens. A lei, portanto, devia materializar a idéia de justiça. Mas o problema, como constata Ullmann, permanecia: na medida em que o princeps era a fonte da lei e a vontade do príncipe proporcionava às leis seu caráter vinculante, não havia recurso constitucional legal para derrotar o tirano.143 Essa perspectiva, contudo, expressa apenas parte do problema. Segundo o Aquinate, todas as associações humanas que visavam a algum fim tinham como decorrência a criação de uma figura de autoridade. Do mesmo modo, o agrupamento numa civitas exigia a instauração de um governante a quem cabia proporcionar à multidão a boa vida segundo a virtude, preparando-a para a felicidade eterna ao lado de Deus.144 Ou seja, a felicidade terrena constituía apenas uma felicidade imperfeita, pois a perfeição estava na felicidade celeste ao lado do Criador. O mesmo raciocínio podia ser usado para explicar o papel do príncipe e sua relação com a lei positiva. Cabe an142 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 118. Ibid., p. 119. 144 Sobre esse assunto, cf. STORCK, Alfredo C. O indivíduo e a ordem política na dimensão da civitas. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 323-30. 143 360 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS tes, contudo, uma observação ao comentário de Ullmann: para Tomás de Aquino, a tirania, em sentido absoluto, constituía um regime incompatível com a lei.145 Pois baseava-se no puro arbítrio do governante, e não na razão: depô-lo era uma questão de justiça, e não de direito. Mas a lei positiva era, de fato, posta pelo governante, cujas disposições legais tinham caráter obrigatório. Ora, ao definir a polis como condição indispensável à plena realização do homem, Aristóteles se referia à essência do homem e à essência da polis, e não ao que caracterizava o homem e a polis em qualquer circunstância. Embora o fim natural coincidisse, em Aristóteles, com o bem, o discurso descritivo e o normativo não se misturavam. A teleologia explicava o movimento e a transformação como causados por finalidades naturais, constitutivas da essência dos seres. Assim, a árvore era a perfeição da semente porque, ao tornar-se árvore, a semente havia completado o seu ciclo de desenvolvimento. Mas nem toda planta se desenvolvia por completo, nem todo coração bombeava o sangue com a eficiência necessária, nem todo animal se tornava adulto e nem todo grave realizava a condição de cair no rumo do centro do mundo. Isso não nos impedia de classificá-los como planta, coração, animal e grave. Tomás de Aquino fazia o mesmo raciocínio quando afirmava que, nas coisas terrenas, tudo caminhava do imperfeito ao perfeito. Da mesma forma, o próprio da lei era ser uma ordem racional e uma medida do justo; e o próprio do governante era realizar o bem comum, na qualidade de instrumento da comunidade política. Mas a sua imperfeição não os privava de sua natureza de lei e de governante. Por essa razão Tomás de Aquino podia afirmar sem problemas que 145 “Há ainda um outro [regime], o tirânico, de todo corrupto, do qual não deriva nenhuma lei” (TL I, II, 95, 4). 361 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO é da razão da lei humana ser ordenada para o bem comum da cidade. Em conformidade com isto, a lei humana pode ser dividida segundo a diversidade daqueles que prestam um serviço especial ao bem comum: assim, os sacerdotes, que oram pelo povo de Deus, os príncipes, que governam o povo, e os soldados que lutam por sua defesa. (TL I, II, 95, 4) E adiante: Em terceiro lugar é da razão da lei humana ser instituída pelo governante da comunidade da cidade [...]. E, quanto a isto, distinguem-se as leis humanas segundo os diversos regimes das cidades. [...] Em quarto lugar, pertence à razão da lei humana ser diretiva dos atos humanos. Em conformidade com isto, distinguem-se as leis segundo a diversidade daquilo em vista do que são promulgadas. (idem) Mesmo na hipótese de condições constantes, porém, a alteração da lei podia convir, porque “à razão humana era natural ascender gradualmente do imperfeito para o perfeito”. O mesmo valia assim para a lei humana posta pelo governante, a quem cabia, na ordem terrena, alterá-la, interpretá-la ou derrogá-la segundo sua conveniência. Assim, por ser a comunidade política um produto natural e a Igreja um produto sobrenatural, a civitas nada mais era senão uma associação de homens, diferenciando-se da Ecclesia, que consistia na associação dos crentes. Desse ponto de vista, a comunidade política era uma entidade que dizia respeito apenas ao homem ou ao cidadão: suas origens e seu funcionamento nada tinham a ver com a autoria eclesiástica. Sua finalidade era o bem viver de seus membros: constituía um corpo político com fins morais, que devia levar em conta os hábitos e costumes dos seus componentes. E por ser a civitas um produto da natureza, também as suas regras dela tinham de derivar: as leis da comunidade política 362 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS constituíam os canais por meio dos quais a lei natural encontrava uma expressão articulada. O Angélico superava o abismo existente entre a natureza e a graça divina, explica Ullmann, articulando o mundo natural ao sobrenatural. A lei natural, tal como a concebia, era dotada de eficácia natural. Pois podia atuar sem qualquer revelação, graça ou ajuda divina: o homem podia chegar a ela apenas por meio do uso da razão. No sistema tomista, escreve ele, a dicotomia entre graça e natureza cedeu lugar a “uma hierarquia de diferentes ordens, de modo que os dois termos em oposição se apresentavam como duas ordens de coisas situadas hierarquicamente em níveis distintos, o natural e o sobrenatural”.146 Os dois termos passavam a se apresentar agora como complementares, já que “a graça aperfeiçoava a natureza”. Ao homem na esfera individual correspondia o cidadão na esfera pública. E ambos pertenciam à ordem natural terrena. O complemento no âmbito sobrenatural era o crente cristão e sua congregação, a Igreja. Tanto a Ecclesia quanto a civitas constituíam manifestações de uma ordenação divina, uma no nível do natural, outra no do sobrenatural. Esse dualismo colocava a discussão sobre as duas espadas num novo patamar. A civitas, obra da natureza, estava, como tal, impregnada da ordem divina. Por essa razão, Tomás de Aquino não podia condenar os governos e povos infiéis. Pois, se a comunidade política era uma entidade natural, esses governantes exerciam legitimamente seu domínio. A fonte do poder e da autoridade, comenta Ullmann, já não eram mais as chaves de Pedro, e sim a própria comunidade natural, ainda derivada, em Tomás de Aquino, de Deus.147 Faltava pouco para que surgisse o indivíduo livre, portador de direitos inalienáveis. 146 147 ULLMANN, op. cit., p. 173-4. Ibid., p. 174-5. 363 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Wilks argumenta que, ao admitir a legitimidade do governo temporal numa época sacra, Tomás de Aquino dava início a um processo de secularização que iria, ao final, destruir o poder ideológico e intelectual da Igreja Católica.148 Essa formulação talvez esteja hoje um pouco envelhecida: o processo de secularização do pensamento cristão e, com ele, o da política já vinha ocorrendo pelo menos desde o século XI. Foi paralelo, portanto, à consolidação política e jurídica da Ecclesia na Europa ocidental, e não oposto a ela. Mas é certo que, a partir de uma rica tradição de conhecimento acumulada ao longo dos séculos precedentes, o Aquinate pudera sintetizar um novo aparato conceitual para pensar as transformações de seu tempo, fornecendo material para a defesa de pretensões e interesses tão variados quanto aqueles dos defensores de uma monarquia papal absoluta e os do governo constitucional, como se veria a seguir com Egídio Romano e João Quidort. Aristóteles já havia fornecido uma justificação racional para o governo diferente daquela da revelação. A separação conceitual entre mundo natural e sobrenatural operada por Tomás de Aquino, embora, no seu pensamento, não visasse jamais à independência total de uma esfera em relação à outra, acabaria permitindo aos pósteros a interpretação de que a Igreja constituía apenas um corpo místico, como diria mais tarde por exemplo Marsílio de Pádua. Tomás de Aquino repunha com clareza a idéia de que os fatos políticos eram naturais. Paulatinamente, a razão humana consolidava sua jurisdição nas controvérsias políticas. Pouco faltava para que fossem cortados os laços entre Deus e natureza e surgisse uma teoria da lei natural suficientemente autônoma para prescindir de qualquer noção cristã de divindade – ou, ao 148 Cf. WILKS, M. The problem of sovereignty in the Later Middle Ages. Cambridge: University Press, 1964. p. 118-48. 364 CAP. 4 - TOMÁS DE AQUINO, LEITOR E COMENTADOR DOS ANTIGOS menos, capaz de torná-la secundária e tão pouco funcional que não conferisse ao papel do Deus criador mais do que um caráter meramente figurativo. Quando se levam em conta todas as ponderações feitas aqui, talvez não seja excessivo admitir o comentário de Lorca a respeito de certos aspectos do pensamento político do Aquinate: Reticente a toda idéia de Império universal, [Tomás de Aquino] não só silencia aqui [no De regno], como em outros escritos, a figura política do Imperador, como também observa com lucidez como o poder do príncipe tem vigência unicamente dentro das fronteiras de seu Estado ou reino. O mosaico dos nascentes reinos europeus do medievo encontra assim uma acertada expressão jurídico-política.149 Feitas as devidas ressalvas, pode-se dizer que Tomás de Aquino tinha uma boa idéia do que significava a fórmula ‘rex in regno suo imperator est’ quando escrevia: “Assim, os que são de uma cidade ou reino não estão submetidos às leis do príncipe de outra cidade ou reino e nem ao seu domínio” (TL I, II, 96, 5). Filipe, o Belo, rei da França, deve ter lido com muita atenção essa passagem. 149 LORCA, Andrés Martínez. El concepto de “civitas” en la teoria política de Tomás de Aquino. Veritas, Porto Alegre, n. 150, v. 38, p. 258, jun.1993. 365 CAPÍTULO 5 A HORA DOS REIS Com Tomás de Aquino, ficava bem estabelecido, portanto, um conjunto essencial de idéias que iriam moldar, na filosofia política e na jurisprudência, a noção de soberania e outros conceitos modernos. Muito do que ele produziu foi habilmente incorporado pelos polemistas do fim do século XIII e do início do XIV. João Quidort constituiu um bom exemplo de como o aristotelismo, não só o dos árabes, mas sobretudo aquele recuperado pelos filósofos naturais latinos e por Santo Tomás, podia servir de arma nas grandes disputas da época. Esse aristotelismo se mesclava, na herança tomista, com a noção de que o povo era a fonte imediata da autoridade temporal. Todo poder vinha de Deus, mas não chegava diretamente aos governantes, como defendiam os partidários do regnum. Os governados passavam a constituir agora uma instância intermediária na transmissão do poder. Se o povo era livre e capaz de legislar, então o costume podia sobrepor-se à autoridade do chefe e derrubar a lei estabelecida. Se o povo não tinha essa liberdade, ainda assim convinha ao chefe observar suas práticas e levá-las em conta ao cuidar da lei. Esse ponto de vista ficou conhecido como “teoria do poder ascendente”. Foi um dos dois grandes modelos de legitimação presentes nos debates políticos medievais. O outro era o do poder “descendente”. Essas teses básicas apareciam, nas discussões, combinadas com outros critérios, como o da anterioridade histórica do governo secular ou do governo eclesiástico. As duas teses coexistiram, com predominância de uma ou de outra segundo a época. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A teoria do poder ascendente era a mais antiga. Ullmann, citando Tácito, lembra ter sido baseada nessa idéia a forma de governo das tribos germânicas. O povo elegia chefes para a guerra e para outras funções públicas e o líder tinha apenas o poder concedido pela assembléia eleitoral. Era considerado representante da comunidade e responsável perante a assembléia popular. Como conseqüência, existia um direito de resistência ao governante. Isso explicava a facilidade com que se depunha e se afastava um rei, se, na opinião do povo, tivesse deixado de representar sua vontade. Segundo a concepção oposta, o poder residia originalmente num ser supremo, identificado pelo cristianismo com a divindade. “Não há maior poder que o de Deus”, havia dito São Paulo. Donde a conclusão: todo poder na terra só podia ser delegado. Logo, a eleição pelo povo não constituía um requisito de legitimidade. A doutrina do poder descendente, porém, tinha mais de uma versão. A rigor, a idéia de Deus como fonte do poder era funcional para mais de uma pretensão política: 1) na versão tradicional, mais útil aos papas, o sucessor de São Pedro era o transmissor da autoridade concedida por Deus. Esse era o sentido da sagração dos governantes seculares pelo papa; 2) numa versão alternativa, o poder era concedido por Deus diretamente aos governantes. Essa doutrina, cujas raízes remontavam à idéia da teocracia régia dos antigos, constituiria a base teológica do absolutismo nos séculos XVI e XVII, mas derivava, claramente, das pretensões dos imperadores e dos defensores do regnum. Mesmo na doutrina do poder ascendente a idéia da origem divina era bastante importante, já que o poder era concedido por Deus ao povo e deste aos reis ou imperadores. Essa doutrina foi retomada por autores do século XIV e reapareceria, nos séculos XVI e XVII, como uma das armas do 370 CAP. 5 - A HORA DOS REIS clero contra os monarcas absolutos, depois da Reforma. Era a noção sustentada, por exemplo, por autores de inspiração tomista como Bellarmino e Suarez e contestada por Filmer. A maioria dos conflitos de legitimidade, portanto, podia ocorrer sem necessidade de recurso a uma teoria ascendente pura, que fizesse do povo a fonte absoluta do poder. Era mais funcional, ideologicamente, contestar as pretensões do papado sem negar a noção de Deus como fonte original do poder. No fundo, a grande questão era identificar o primeiro comissário de Deus. A questão de quem representava Deus, como primeiro portador do poder na terra, estava posta antes mesmo de discutir o problema da autoridade legislativa. Enquanto se tomava a lei como dada, o sentido da autoridade necessariamente tinha de ser vinculado à idéia de comissão. Isto é, a autoridade seria um atributo daquele que pudesse fazer cumprir a lei, não em nome próprio, mas em nome do Legislador, que era Deus. Essa noção explica bem, aliás, a posição do Aquinate sobre a relação entre a Ecclesia e os governantes temporais. Quando se passou a discutir o sentido e o alcance da lei humana, o significado da noção de autoridade se ampliou. Passaria a indicar não só a atribuição de impor uma ordem, mas também a de construí-la. I DESENVOLVIMENTOS DO PROCESSO DE CENTRALIZAÇÃO MONÁRQUICA Para enfrentar as grandes controvérsias do século XIV, os escritores políticos disporiam de um arsenal de idéias amplamente renovado. De um lado, estavam os desenvolvimentos filosóficos forjados por Tomás de Aquino e seus contemporâneos; de outro, o pensamento jurídico, enriquecido no século XIII pelos estudos do direito romano e pelas tentativas de articular esse direito e as formas tradicionais de le371 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO gislação. A idéia de uma jurisdição nacional, com o rei como instância superior de legislação e de justiça, acima dos barões e das cortes locais, aparecia na década de 1270 nos escritos de Phillipe de Beaumanoir. Em seus Coutumes de Beauvaisis já se empregava a palavra souverain, para designar dois níveis de autoridade.1 Por outro lado, existia todo o aparato filosófico e científico renovado com a recuperação dos pensadores antigos. O aparecimento de estudiosos dos costumes, como Henry de Bracton na Inglaterra e Beaumanoir na França, indicava mais do que um novo interesse teórico. Eles contemplavam o direito costumeiro, isto é, a variedade, a partir do ponto de vista da unidade política e legal, a unidade do reino. Eram, em geral, profissionais treinados no direito romano e recrutados para o serviço da Coroa. Quando Bracton escrevia o De legibus et consuetudinibus Angliae, entre 1220 e 1230, o poder já estava centralizado, na Inglaterra. A questão não era, mais, a afirmação da supremacia real. O jurista inglês manteve a concepção do príncipe como subordinado à lei (lex facit regem): havia uma definição legal das funções e da autoridade reais, e, embora o rei não tivesse par no seu reino, seu poder era constitucionalmente limitado. Havia entre lei e rei uma relação de mútua dependência: “atribua o rei à lei”, escrevia Bracton, “aquilo que a lei lhe atribui, a saber, dominação e poder”.2 Para governar de modo reto, nos tempos de paz e de guerra, escrevia o jurista no início de seu livro, o rei necessitava de duas coisas, “a saber, armas e leis”. Leis, para ele, 1 2 BEAUMANOIR, Philippe de. Coutumes de Beauvaisis. Paris: J. Picard, 1970. v. 2, p. 1283. No original: “attribuat rex legi, quod lex attribuit ei, videlicet dominationem et potestatem”. In: BRACTON, Henry de. De legibus et consuetudinibus Angliae. Ed. George E. Woodbine. New Haven: Yale University Press, 1922. v. II, p. 33. 372 CAP. 5 - A HORA DOS REIS eram não somente as normas escritas, mas também os costumes: “Nela torna-se direito tudo aquilo que vem do nãoescrito e que o uso comprovou”.3 O costume era entendido como uma espécie de “segunda natureza”, razão pela qual tinha força de lei. O costume, porém, seria corretamente chamado lei quando aprovado pelo consenso dos poderes do Estado ou tivesse sido anteriormente definido como justo pelo príncipe. Essa ressalva estabelecia uma relação bipolar entre a função de governo e a “base” social. O uso era a fonte da lei, mas a lei era a norma reconhecida como tal pelas instituições de governo (rei publicae). Hobbes desequilibraria aquela relação bipolar, pondo toda a ênfase no reconhecimento como marca da soberania. A ênfase na legalidade fez da obra de Henry de Bracton uma referência fácil para o liberalismo e, mais geralmente, para o pensamento constitucionalista.4 O que interessa ressaltar neste momento era, no entanto, a idéia de unidade política em contraste com a diversidade dos costumes. Usos diferentes ganhavam um caráter comum como leges Anglicanae. O elemento unificador era a instituição. Uma única ordem jurídica englobava a Coroa, as funções públicas e os costumes. Também na França, no século XIII, a reflexão sobre o direito costumeiro acompanhara a afirmação do poder central. A Coroa não se opunha ao costume: continuava a respeitá-lo. Normas locais ainda seriam mantidas em vigor durante séculos. Mas a corte real iria assumindo, com amplitude crescente, o papel de última instância judicial e, quando necessário, o de fonte primária da lei. Um dos aspectos 3 4 “In ea quidem ex non scripto ius venit quod usus comprobavit”. Ibid., p. 19. Locke mencionava o jurista medieval no capítulo 19 (“Da dissolução do governo”) do Segundo tratado sobre o governo, ao discutir as circunstâncias que justificavam a resistência ao governo. 373 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mais importantes do trabalho de Beaumanoir foi o exame das competências. No condado de Clermont, onde ele era juiz, os senhores feudais tinham a jurisdição imediata. Acima desse nível estava a justiça do conde. Em vários casos podia-se passar do nível local ao do condado: apelo por falta de direito, por falso julgamento, por petição de um nobre, por se tratar de assunto de interesse do rei, do conde ou do próprio juiz ou por se tratar de questões relativas a tréguas.5 A jurisdição final era a do rei, pois era “soberano acima de todos”.6 Morral lembra que é importante notar o uso feito por Beaumanoir da noção de soberania: não se tratava ainda de uma designação exclusiva da autoridade pública,7 como ocorreria mais tarde com a consolidação do Estado moderno, e sim de uma jurisdição exercida nos moldes feudais e amparada tanto pelo direito canônico quanto pelo costumeiro.8 Tanto na França quanto na Inglaterra, no século XIII, o controle real sobre as Igrejas do território já constituía a norma, até porque o papa precisava do apoio dos reis locais para sustentar sua luta contra o império. Mesmo a taxação do clero local pelos monarcas era geralmente consentida pelo papa, apesar das disposições canônicas em contrário. A extensão dos poderes também era diversa: tanto o papado quanto o império tinham pretensões de domínio universal. Nesse 5 6 7 8 Cf. BEAUMANOIR, op. cit., §§ 295-308, p. 146-52. No original: “Voirs est que li rois est souverains par dessus tous et a de son droit la general garde de tou son royaume, par quoi il puet fere teus establissemens comme il li plest pour le commun pourfit, et ce qu’il establist doit estree tenu [...]. Et pour ce qu’il est souverains par desseur tous, nous le nommons quant nous parlons d’aucune souveraineté qui a li appartient.” In: BEAUMANOIR, op. cit., § 1043, p. 23-4. Cf. MORRAL, John D. Political thought in medieval times. Toronto: Medieval Academy of America, 1980. p. 61. Segundo Beaumanoir, “en tou les lieu la ou li rois n’est pas nommés, nous entendons de ceus qui tienent en baronie, car chascuns barons est souverain en sa baronie”. In: BEAUMANOIR, op. cit., p. 23. 374 CAP. 5 - A HORA DOS REIS ponto, não havia conflito imediato com os poderes locais (barões, instâncias judiciais etc.) nem com os nascentes Estados modernos.9 Um conflito aberto entre o poder real e o sumo pontífice só ocorreria no final do século XIII, quando Filipe, o Belo, rei da França, decidiu taxar o clero local à revelia do bispo de Roma. Ao longo do século XIII, ainda, o papado havia se concentrado na defesa de uma política de centralização por meio da extensão de sua jurisdição, desenvolvendo-se amplamente como instituição legal e governamental. A longa tradição de pontífices com forte formação jurídica apontava para a transformação do papado num ofício legal sustentado em pretensões monárquicas, no qual a cúria funcionava como a sua corte: exercia funções executivas, financeiras, administrativas e judiciais e já constituía, desde o século XII, provavelmente o corpo governamental mais desenvolvido da Europa.10 A partir do século XIII, o papado assegurou o direito de escolher os ocupantes dos cargos eclesiásticos mais elevados – prerrogativa antes compartilhada com o imperador e com os grandes senhores locais –, o que tornou ainda mais eficaz o controle de Roma sobre o clero local.11 9 10 11 E, apesar das tentativas de controle sobre poderes reais por meio da vassalagem papal, como por exemplo sobre o reino da Sicília, nominalmente feudo do papado, a tentativa pontifícia de imiscuir-se nos assuntos temporais raramente floresceu entre os governantes locais. Um texto bastante instigante a respeito do desenvolvimento do papado como instituição de governo pode ser encontrado em: CANNING, J. A state like any other? The fourteenth-century Papal Patrimony through the eyes of Roman Law Jurists. In: WODD, Diana (Ed.). The church and sovereignty (c. 590-1918) : essays in honour of Michael Wilks. Oxford: Basil Blackwell, 1991. A partir de Clemente V (1304-14), também a concessão de patriarcados, arcebispados e bispados passou a ser direito exclusivo da Santa Sé. Essa crescente intervenção pontifícia em assuntos temporais conduziria a Igreja ao Grande Cisma, no qual o papado seria acusado de obscurecer a sua missão espiritual. 375 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Assim, quando se fala na emergência de Estados modernos no final da Idade Média, o que se pretende afirmar é o surgimento de comunidades politicamente organizadas em territórios específicos e definidos, dentro dos quais os governos ou governantes haviam desenvolvido um controle jurisdicional interno e externo com maior ou menor grau de independência, que variava de acordo com os arranjos locais e com a relação – nem sempre de completa submissão – de cada uma dessas unidades com os dois “poderes universais” da Europa ocidental. No Estado moderno, tal como definido por Hobbes, a autoridade soberana teria, em seu território, o monopólio da feitura da lei e todos os cidadãos deveriam se sujeitar a ela. Mas até que se chegasse a essa formulação, as comunidades políticas que então emergiam teriam de se enfrentar com instituições e diferentes esferas de governo que reivindicavam jurisdições competentes entre si (por exemplo, a feudal e a eclesiástica). O completo controle e subordinação das várias esferas jurisdicionais ao poder secular era ainda incipiente. A mudança de rumo e a afirmação desse novo tipo de poder, entretanto, se tornavam a cada dia mais visíveis. Também o sentimento de pertencer a um povo, componente fundamental na noção de Estado moderno, naquele sentido definido por Strayer, crescia com rapidez. No século XIII, tanto a Universidade de Bolonha quanto a de Paris passaram a ser consideradas instituições nacionais, fomentando ainda mais os laços de lealdade à Coroa. Ullmann chama a atenção para um fato significativo: durante boa parte da Idade Média, o imperador foi chamado de Imperator romanorum; também os reis medievais eram associados ao seu povo (Rex francorum, rex anglorum etc.). A partir de fins do século XIII, início do XIV, essa denominação – que entre os bispos e cardeais já remontava ao século VII – passou a referir-se não mais ao povo sobre o qual a 376 CAP. 5 - A HORA DOS REIS jurisdição era exercida, e sim ao território: rex angliae, rex franciae etc.12 As leis e sua ordenação tornavam-se também matéria específica de um povo sobre determinado território, como pode ser percebido no título da obra de Henry de Bracton. Essa transformação conduzia a uma negação da idéia de “império universal”, noção fundante para a organização da sociedade medieval até então: “ser inglês” ou “ser francês” passava a fazer sentido. Outro passo essencial para a construção de uma clara noção de poder político secular fora a autonomia crescente da esfera da natureza. Para isso contribuíram não apenas os desenvolvimentos filosóficos, como aquele operado por Tomás de Aquino, mas também os avanços na jurisprudência, agora constituída de vários ramos. O estudo da lei canônica, por exemplo, era essencial tanto para elaborar as compilações legais oferecidas pelos decretos papais cada vez mais numerosos, como também para sofisticar os argumentos políticos e jurídicos das várias pretensões em conflito. Entre as inúmeras noções surgidas desses desenvolvimentos, pode-se apontar a de um Estado secular, produto da natureza política do homem. O próprio conceito de natureza, recorda Canning, se alterava: passava a incluir a idéia de uma esfera autônoma, dotada de capacidade de desenvolvimento, independente de Deus e de sua intervenção, mesmo admitindo-se ainda ter sido Deus o criador do mundo natural. Para fins práticos, a vida política podia agora ser analisada dentro de uma dimensão civil puramente natural.13 O reconhecimento de um âmbito político natural facili12 13 Cf. ULLMANN, W. Zur Entwicklung des Souveranitätsbegriffes im Spätmittelalter. In: Scholarship and politics in the Middle Ages. London: Variourom Reprints, 1978. p. 23. Cf. CANNING, J. P. Introduction: politics, institutions, ideas. In: BURNS, op. cit., 1991, esp. p. 355-66. 377 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tava, entre outras coisas, uma distinção mais clara entre Ecclesia – identificada cada vez mais com a esfera puramente espiritual – e os poderes temporais, cuja natureza era essencialmente secular. Falar numa jurisdição eclesiástica, portanto, só fazia sentido quando a Igreja era entendida como instituição governamental. Contudo, a adesão crescente à crença de que a Ecclesia constituía um corpo místico dos fiéis unidos em comunhão espiritual poria cada vez mais em xeque sua reivindicação de uma plenitudo potestatis no âmbito temporal. Marsílio de Pádua, por exemplo, afirmaria que apenas o “legislador humano” podia ter jurisdição em sentido pleno. Também contribuiriam para a compreensão da Igreja como corpo unicamente espiritual movimentos religiosos como os dos franciscanos, que defendiam a pobreza evangélica.14 Não se deve, contudo, tirar conclusões precipitadas sobre a secularização do mundo em fins da Idade Média, alerta Canning. Idéias como a naturalização do poder político secular conviviam e coexistiam com a noção de uma fonte divina do poder: alcançar o mundo divino para seus súditos, tal como havia escrito Tomás de Aquino, continuava a ser um dever do governante cristão.15 Foi ainda dos juristas, canonistas e civilistas, que vieram algumas das mais importantes fórmulas que sustentariam as pretensões de domínio e jurisdição territorial das nascentes monarquias européias. No início do século XIII, o canonista Azo já havia desenvolvido a conhecida máxima de que o rex in regno suo est imperator regni sui, fornecendo assim uma base jurídica à reivindicação de reconhecimento da autoridade máxima do rei sobre seu território. A elaboração legal dessa autoridade real ganhou contornos ainda mais claros com a fórmula canônica do rex qui superiorem non 14 15 Para um bom resumo desse assunto, cf. COLEMAN, Janet. Property and poverty. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 607-48. Cf. CANNING. Introduction. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 362-3. 378 CAP. 5 - A HORA DOS REIS recognoscit, incorporada pelo papa Inocêncio III na decretal Per venerabilem16 (1202) e utilizada na defesa do rei da França Filipe Augusto contra o imperador. A combinação desses dois princípios, desenvolvida pelos juristas franceses e napolitanos, passou a constituir o núcleo legal para a defesa da tese de que o rex era a autoridade máxima em seu território.17 Exatamente porque o rei nada podia desejar que não fosse racional e útil – dado que o fim último de sua função consistia em assegurar o bem comum da comunidade –, sua vontade podia, em caso de necessidade ou emergência, sobrepor-se à lei, como já afirmava a antiga máxima de Ulpiano (lex regia), constante também no Digesto, de Justiniano, e citada por Tomás de Aquino: Quod principi placuit, legis habet vigorem. A figura do rei ia lentamente sendo igualada à do princeps dos juristas romanos, fazendo emergir uma superioritas real, componente importante da noção de soberania que então se construía. Na França, por exemplo, a identificação do princeps perfeito com os sucessores de São Luís constituiu um elemento fundamental para a “sacralização” da figura do rex. Os publicistas reais e os defensores da Coroa se esforçaram para ligar – com sucesso – a idéia da “perfeição” do rei à emergente nação francesa. Também a desobediência ao rei, ou mesmo a insubmissão, passava a ser reprimida com castigos cada vez menos morais ou espirituais, tornando-se mais e mais um crime a ser punido neste mundo: passava a cons16 17 Na bula papal, Inocêncio III afirma: “quum rex [Francorum] ipse superiorem in temporalibus minime recognoscit” (In: Per venerabilem, X.4.17.13). Cf. tradução brasileira do documento em SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 134. Bartolo de Sassoferrato, por exemplo, aplicaria esse último princípio às cidades-repúblicas italianas, as quais não reconheciam superior: “civitas quae superiorem non recognoscit”. E com isso concluiria: “civitas sibi princeps”. Cf. CANNING, J. P. Law, sovereignty and corporation theory, 1300-1450. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 471, nota 58. 379 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tituir o que os juristas iriam denominar “crime de lesa-majestade”. O monarca francês passava a desfrutar agora de majestas. Nesse processo, concretizava-se também a idéia de que, em matéria de lei, não havia direito de apelação além do monarca.18 A consolidação dessa pessoa pública nos moldes agora requeridos obrigava os juristas e pensadores políticos do período a rever os vínculos e as obrigações do monarca. Um desses contextos óbvios aos quais se podia ligar a figura do rei era o da Coroa, que desde de meados do século XII passara a ser associada ao reino como um todo. A diferenciação entre as terras privadas do rei e aquelas do fisco (ou Coroa), por exemplo, passou a abranger todos aqueles bens, poderes e direitos reais herdados, e devia ser passada em seu conjunto para a próxima geração. Aos olhos dos juristas, a Coroa constituía um conjunto de prerrogativas do rei – seus direitos jurisdicionais, poderes financeiros, assim como suas terras e riquezas –, as quais deveriam ser mantidas intactas contra as reivindicações de qualquer outra parte ou mesmo contra um possível excesso de liberalidade por parte do próprio monarca. Conta Dunbabin que uma lenda surgida por volta de 1290 na França dizia terem se reunido em Montpellier os reis da cristandade para declarar que a prescrição contra direitos reais deveria ser declarada inválida. Também quaisquer alienações prévias feitas por governantes que tivessem causado prejuízos aos direitos reais e às terras da Coroa de18 Embora a imagem do rei como autoridade suprema estivesse lentamente ganhando terreno, alerta Dunbabin, estava ainda bastante longe de deter a força de que dispunha o soberano hobbesiano. Coagir nobres e barões a mando do rei, por exemplo, poucas vezes era possível – e nem mesmo era usual. Em geral, o rei era obrigado a negociar em termos muito menos favoráveis do que aqueles sugeridos pelos discursos de seus juristas. Cf. DUNBABIN, Jean. Government. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 497. 380 CAP. 5 - A HORA DOS REIS viam ser, do mesmo modo, anuladas. Verdadeira ou não, a lenda oferecia um fundamento sobre o qual construir uma noção distintiva do poder real: o princípio imperial romano da inalienabilidade da Coroa e seus bens.19 A associação desses poderes reais àquela noção do que viria a ser chamado “domínio público” servia assim para reforçar e consolidar a estrutura dos emergentes Estados nacionais. A aceitação do caráter público da autoridade real justificava ainda a necessidade de constituição de uma burocracia real, capaz de auxiliar e dar suporte às decisões do monarca em cada estágio do processo político. Ou seja, ficava claro que para governar bem (taxar, julgar, legislar etc.) os reis precisavam da ajuda de expertos. Pôr em relevo a utilidade de governar com conselheiros, ministros e outras formas de compartilhamento do poder não apenas contribuía para maior eficiência das atividades governamentais, como também era útil ainda para tornar constitucionais certos poderes monárquicos: determinadas regras de organização da vida coletiva deixavam de ser vistas como prerrogativas da pessoa do dominador e passavam a ser entendidas como um atributo do cargo e, mais tarde, da instituição. Também avançava velozmente, desde pelo menos meados do século XII, a noção de que a autoridade última do rex repousava no consentimento do povo, e não na figura do imperador. Os costumes e as instituições, expressões do consentimento popular, não requeriam autorização superior. E o exercício desse consentimento pelo povo podia levar até mesmo ao não-reconhecimento de um superior, como argumentaria Bartolo de Sassoferrato. Sassoferrato tinha em mente não o caso do rei inglês, mas a defesa da autonomia das cidades-repúblicas italianas, expressa na sua conhecida 19 Quanto mais os juristas exaltavam os atributos legais da Coroa, alerta Dunbabin, mais eles os subordinavam a ela, processo mais evidente no caso inglês. Cf. DUNBABIN, ibid., p. 501. 381 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO fórmula civitas quae superiorem non recognoscit. A emergência de uma noção mais complexa tanto da cidade quanto do reino acabava fornecendo elementos para o desenvolvimento de uma teoria da corporação, cujas origens remontavam à metáfora do corpo como organismo auto-suficiente formado por seus membros. Nessa perspectiva, o poder político secular – inicialmente a civitas, mas depois também os emergentes Estados territoriais – organizado em suas diferentes formas passava a constituir um corpo composto de uma pluralidade de seres humanos e, ao mesmo tempo, uma entidade unitária abstrata perceptível apenas por meio do intelecto. Esses componentes humanos não constituíam meros indivíduos isolados, singulares, e sim homens corporados: isto é, homens unidos de uma maneira específica num todo corporativo – uma imagem que mais tarde ilustraria uma das mais conhecidas representações do Estado moderno, o Leviathan hobbesiano. O dado novo, portanto, era o de que a civitas ou o reino territorialmente delimitado passavam a ser identificados a uma entidade abstrata, distinta dos seus membros. De um lado, enquanto corporação, essa entidade agia por meio de seus membros físicos, os homens como tais. De outro lado, ela era tomada como imortal e, nesse sentido, de um modo distinto de seus componentes humanos, o que lhe permitia ser concebida como uma persona legal.20 A projeção dessa ficção jurídica aos nascentes Estados territoriais, concebidos como entidades corporativas abstratas, permitiria dotá-los de uma personalidade legal. Ou seja, essas unidades teritoriais, enquanto pessoas propriamente jurídicas, podiam ter existência legal e capacidades distintas daquelas de seus membros. Baldo de Ubaldis, por exemplo, associou essa entidade abstrata, capaz de agir e consentir por meio de 20 Cf. CANNING, J. P. Law, sovereignty and corporation theory, 1300-1450. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 474-5. 382 CAP. 5 - A HORA DOS REIS seus membros mortais organizados numa estrutura de conselhos e funcionários eleitos, ao regnum, o qual podia ser identificado aos seus membros também na forma de uma universitas. Essa corporação perene instituía um ofício real imortal e abstrato (ou uma dignitas) operado por cada indivíduo enquanto governante. Nos termos de Baldo: E a pessoa do rei é órgão e instrumento daquela pessoa intelectiva e pública; e a pessoa intelectiva e pública é aquela que de modo principal fundamenta a execução, porque maior atenção é conferida ao vigor do principal do que ao vigor do órgão.21 Ao rei passava a ser concedido assim agir em nome dos súditos, do ofício real e, em última instância, do próprio reino. Marsílio, por exemplo, iria aplicar essa idéia à sua noção de “universitas civium”, que constituía para ele uma entidade corporativa diferente dos cidadãos singulares. II BONIFÁCIO VIII E FILIPE, O BELO: PRINCÍPIOS EM DISPUTA A consolidação da autoridade real constituía, dessa perspectiva, um processo tanto de força quanto de legitimação. De um lado, o rei mobilizava recursos militares e um discurso jurídico adequado às suas pretensões. De outro, havia uma recomposição do quadro das lealdades, um dos fatores 21 “Et persona regis est organum et instrumentum illius personae intellectualis et publicae; et illa persona intellectualis et publica est illa quae principaliter fundat actus, quia magis attenditur virtus principalis quam virtus organica” (Consilia, I.3.59, 1490, fol. 109v). In: CANNING, J. The political thought of Baldus de Ubaldis. Cambridge: University Press, 1987. p. 216 e p. 268. 383 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO fundamentais apontados por Strayer. Esses elementos, a força, a autoridade legitimada internamente e o novo sentido de lealdade se manifestaram plenamente no conflito entre Filipe IV, o Belo, rei da França, e o papa Bonifácio VIII.22 A reunião desses fatores torna esse caso especialmente significativo quando se pretende examinar a constituição das unidades de poder características do mundo moderno. A controvérsia entre Filipe, o Belo, e Bonifácio VIII foi deflagrada com a taxação do clero francês pelo rei, contestada pelo papa na bula Clericis laicos, em 1296. O papa foi derrotado nessa disputa. Filipe acabou usando a força contra ele, mas esse não era o aspecto politicamente mais importante. Mais significativo foi o apoio obtido pelo rei não só entre os súditos civis, mas também entre o clero. Os padres acabaram assumindo o comportamento de padres franceses e aceitaram a tributação como justa. A defesa da posição papal, no entanto, enriqueceria a literatura política. A sustentação da supremacia papal por Egídio Romano constituiu o último grande esforço de atribuir ao papa o controle das duas espadas, a temporal e a espiritual. A origem do confronto, recordam Souza e Barbosa, remontava à disputa, que já ocorria desde 1294, entre Filipe IV e o rei inglês Eduardo I pelo controle dos territórios da Gasconha, Flandres e outras regiões nominalmente sob a suserania do rei francês. Para financiar a guerra, os monarcas passaram a exigir do clero o pagamento de imposto à Coroa, do qual estes eram isentos, de acordo com um cânone do IV Concílio de Latrão (1215). O pontífice inicialmente ignorou o fato, mas as constantes reclamações do clero francês levaram-no a promulgar, em 1296, a bula Clericis laicos, na qual proibia os prelados e as pessoas eclesiásticas – religiosas ou 22 Para uma análise pormenorizada do conflito, cf. PASSOS, J. A. M. B. Bonifácio VIII e Filipe o Belo, de França, 1972. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. 384 CAP. 5 - A HORA DOS REIS seculares – de pagar qualquer tipo de contribuição ao rei sem a expressa autorização da Santa Sé, sob pena de excomunhão. O documento vedava ainda aos príncipes e seus auxiliares qualquer tipo de taxação sobre o clero e suas propriedades. “Se esse procedimento continuasse a ocorrer”, comentam Souza e Barbosa, “o Papado ficaria numa situação financeira delicada, pois seus projetos e obras pias de natureza diversa não poderiam ser levados a bom termo”.23 De fato, do ponto de vista do pontífice, usar os impostos clericais para financiar uma guerra entre dois governantes cristãos era escandaloso: no raciocínio papal, esse dinheiro poderia ser, sem dúvida, mais bem empregado se fosse aplicado numa Cruzada para a recuperação da Terra Santa. Filipe IV, por sua vez, mais interessado na conservação das terras francesas, respondeu ao papa proibindo a saída de qualquer soma em dinheiro e metais preciosos, como ouro e prata, do território franco, medida que causou enormes perdas para as rendas papais. Também expulsou os banqueiros italianos sediados em seu reino, os quais eram responsáveis pela arrecadação e transferência do óbolo de São Pedro para Roma: com tais decisões, Filipe havia embargado os dízimos cobrados pela Igreja de Roma e os benefícios eclesiásticos existentes. Sucederam-se então avanços e recuos em ambas as posições. Filipe também mobilizou para sua causa importantes juristas franceses, especialistas em direito romano, e publicistas do reino, que trataram de incendiar a disputa, produzindo documentos e panfletos anônimos em defesa do monarca.24 23 24 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 151 et seq. Sobre o tema, cf. FINKE, Heinrich. Aus den Tagen Bonifaz VIII. Funde und Forschungen. Münster, Druck und Verlag der Aschendorffschen Buchhandlung, 1902. Reimpr. Roma: Ediz. Anastatica: Bardi Editore, 1964. 385 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Esses juristas e assessores reais, em grande parte oriundos da burguesia local emergente, enfatizam Souza e Barbosa, tinham especial interesse na centralização do poder político nas mãos do monarca, em razão de seus interesses econômicos, voltados sobretudo para a produção manufatureira, para o comércio e para as finanças. Pois, para essa camada, a nobreza feudal e o clero constituíam graves entraves à expansão de suas atividades. Um dos caminhos para essa centralização do poder era sobrepor juridicamente os interesses nacionais aos de particulares tomados isoladamente ou em grupo. Noutras palavras, o direito do reino devia estar acima tanto dos costumes e direitos feudais quanto do canônico. Esse processo começou com Filipe Augusto (1180-223), a quem Inocêncio III (1198-1216) reconheceu, de acordo com o que o próprio monarca tinha afirmado, que em seu reino não havia ninguém com autoridade superior à sua. São Luís (1226-70) prosseguiu na obra centralizadora de seu avô.25 A base principal da argumentação dos juristas franceses, apoiados sobretudo no Código de Justiniano, e na Ética e na Política de Aristóteles, assentava-se no princípio, enunciado no Digesto, segundo o qual o rei devia ser princeps, fonte e origem de toda lei (Quod principi placuit, legis habet vigorem) e, como chefe da comunidade política, dispunha dos meios apropriados para proteger o interesse, a honra, o bem e a liberdade de todos os seus súditos. Dado que o poder real provinha diretamente de Deus, sem o intermédio da Igreja, sustentavam os doutos com base no modelo do governante teocrático romano, não podia haver limite ao poder do rex nem no âmbito judiciário nem em quaisquer outras questões ligadas ao governo das coisas temporais. Como esse princípio havia sido aplicado até então apenas aos imperadores, os juristas franceses se esforçavam em 25 SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 152. 386 CAP. 5 - A HORA DOS REIS desvincular a França de uma subordinação ao Sacro Império Romano Germânico. Ao mesmo tempo, adotaram o postulado, agora já popular, de que o “rex in regno suo imperator est”. Desse modo, o rei era colocado no vértice da pirâmide de poder existente no reino e, abaixo dele, estavam os barões e a alta nobreza local, também soberana em seus domínios como o rei no reino, tal como havia notado Beaumanoir três décadas antes. Uma outra frente de batalha adotada pelos propagandistas e estudiosos da corte residia na denúncia de que o pontífice procurava estender sua esfera de atuação a áreas sobre as quais não tinha competência nem autoridade legítima: aos assuntos seculares. Era preciso estabelecer uma clara delimitação da esfera específica de atuação do poder eclesiástico, ao qual devia caber somente as atividades religiosas. Para isso, uma das táticas amplamente utilizadas pelos defensores do reino consistiu em ressaltar as características fundamentalmente terrenas, profanas e legais do poder secular, como ilustrava bem um documento anônimo da época, a Disputatio inter clericum et militem. O texto, segundo Lewis, teria surgido na corte real francesa em 1296 ou 1297, como reação à bula papal Clericis laicos.26 Num dos diálogos, o religioso argumentava que o pontífice teria o direito de julgar questões acerca do pecado e da 26 Uma tradução acessível e cuidadosa do diálogo – que consiste numa disputa entre um soldado e um clérigo sobre o direito do rei francês de taxar o clero – pode ser encontrada em: LEWIS, Ewart. Medieval political ideas. London: Routledge & Kegan Paul, 1954. v. 2, p. 567-4. Uma versão parcial traduzida para o português está disponível em SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 181-4. O texto original pode ser encontrado na versão – atribuída a Guilherme de Ockham – editada por GOLDAST, Melchior (Ed.). Monarchia sancti romani imperii. Reimpr. da ed. frankfurtiana de 1614. Graz: Akademische Druck u. Verlaganstalt, 1960. v. 1, p. 13-8. Antes disso, há notícias do texto na edição de SACHARD, Simon. De jurisdictione autoritate et praeeminentia imperiali ac potestate ecclesiastica. Basel, 1566. p. 677-87. 387 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO injustiça, por terem elas caráter teológico. O soldado rebatia a afirmação insistindo na diferenciação das funções sacerdotais e temporais com o seguinte argumento: o fato de os sacerdotes possuírem a cognitio de peccato, dizia ele, não lhes dava competência pleno iure para proferir um iudicium acerca do que era justo e injusto. Por isso, os clérigos deveriam restringir seu âmbito de atuação exclusivamente às transgressões ligadas aos preceitos morais e religiosos encontrados nos Dez Mandamentos. Ressaltava ainda, com base nas Escrituras, a anterioridade do reino em relação à Igreja, e a humanidade de Cristo, cujo poder, enquanto homem, “não era deste mundo”. E continuava o soldado adiante: como Pedro e seus sucessores não haviam recebido poder ou jurisdição no âmbito secular, os papas, ao se intrometerem em assuntos exclusivamente temporais, como a taxação dos súditos pelo rei, estariam cometendo um grave abuso e causando dano a todos os fiéis. O rei, argumentava o soldado, por governar para todos dentro de seu reino, tinha a obrigação de proteger também o clero das ameaças e ataques de terceiros. Por isso, nada mais justo do que eles também contribuírem para a defesa do reino e de seus habitantes pagando impostos, como fazia o povo.27 O clero era assim igualado aos demais membros da comunidade política e subordinado ao poder secular, a quem cabia a guarda do reino e de seus súditos.28 Estabelecer taxas e cobrar impostos constituía uma prerrogativa do rei em território franco já desde o início do 27 28 Cf. SOUZA & BARBOSA, Documento 40, op. cit., p. 183. Avaliando o documento, Souza & Barbosa escrevem: “De fato, é o Rei e as leges humanae que determinam o que é justo e injusto, de modo que apenas ele, monarca, soberano, legislador e juiz, pode em seu reino estatuí-las e aplicá-las de acordo com as circunstâncias e necessidades que se apresentarem. Compete-lhe ainda o direito de modificá-las ou até mesmo revogá-las se for o caso, e todos os súditos, eclesiásticos ou leigos, têm o dever de respeitá-las”. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 156. 388 CAP. 5 - A HORA DOS REIS século XIII.29 Esse direito o monarca o tinha em razão da tuitio regni, isto é, da responsabilidade de assegurar os “interesses do reino” e sua defesa. Tais “necessidades” eram definidas exclusivamente pelo monarca. Ullmann chama atenção para o fato de que o princípio da utilitas publica tendia a adquirir, na França, um caráter monárquico que, na Inglaterra, caberia à Common Law, e não ao rei. Esse traço constitucional era, segundo ele, um dos aspectos relevantes que diferenciariam a teocracia real francesa – na qual o vínculo jurídico entre o monarca e a comunidade era tênue – da realeza feudal inglesa, que se caracterizava por uma estreita colaboração entre o rei e os barões locais.30 Ao longo da querela houve avanços e recuos por parte tanto do papa quanto do rei: em dezembro de 1297, atendendo a um pedido do clero francês, que solicitava ao pontífice autorização para pagar auxílio ao monarca, Bonifácio VIII cedeu e permitiu então o pagamento de uma certa quantia ao rei, já que este se encontrava em disputa aberta com o rei inglês pela defesa do território franco. Dentro da Igreja, en29 30 A sustentação jurídica dessa prerrogativa era fornecida sobretudo pelo Digesto, segundo o qual o estabelecimento de leis fiscais constituía um direito do rei. Ullmann mostra que o desenvolvimento constitucional francês diferiu fundamentalmente do inglês: enquanto no primeiro caso o acento recaía na realeza teocrática, no segundo a tônica estava na nobreza feudal: “Em Inglaterra, forçou-se o rei a se reduzir de fato ao seu marco feudal, o que trouxe como conseqüência a cooperação no funcionamento do governo no que diz respeito aos ‘negotia regni’: este esforço conjunto constituía a realização prática do contratualismo feudal. Sobre esta base, o desenvolvimento posterior colocou a comunidade do reino em primeiro plano, como órgão que assimilaria facilmente a idéia de representação sem repercussões violentas”. Como o direito era resultado dessa atividade conjunta, ele era comum ao rei e à comunidade do reino. Esse modelo impedia a instauração de qualquer forma “absolutista” de governo, como ocorreria na França. Cf. ULLMANN, W. Principios de gobierno y política en la Edad Media. Madrid: Alianza Editorial, 1985. p. 210-1. 389 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tretanto, surgiam dissidências e disputas, principalmente entre a família do pontífice, os Gaetani, e a de cardeais importantes, os irmãos Colonna, que acusavam o sumo sacerdote de favorecimento ilícito aos seus familiares, denúncias essas com ampla sustentação nos fatos. A cúpula da Igreja, que apoiava Bonifácio VIII, começou a rachar internamente, chegando à insurgência por parte de alguns dos membros da cúria romana contra o papa. Filipe IV, por sua vez, como precisasse cada vez mais de dinheiro para as despesas de guerra, aumentou progressivamente a taxa cobrada dos clérigos sem a autorização papal, violando o acordo com o bispo de Roma, que decidiu então revogar os privilégios fiscais concedidos à Coroa francesa, proibindo o clero de pagar-lhe qualquer imposto. Convocou ainda os prelados de toda a cristandade para uma reunião na qual se discutiria o assunto. Filipe IV, em resposta, proibiu os religiosos, em abril de 1302, de se ausentar do reino sem a expressa autorização real e incitou a opinião pública francesa contra o papa e sua pretensão de jurisdição temporal sobre o rei e sobre o povo francês. O conflito de interesses e de posições irrompia agora com clareza, gerando uma literatura que procurava sustentar as duas pretensões em conflito. Entre os vários textos produzidos, dois são de especial significado para uma história do pensamento político: o De ecclesiastica potestate, escrito em 1302 por Egídio Romano, em defesa do sumo pontífice e da idéia de “monarquia papal”; e o De regia potestate et papali, elaborado no fim do mesmo ano por João Quidort, em defesa do rei francês e de uma monarquia de caráter constitucional, como se verá a seguir. A última disputa entre os dois protagonistas foi provavelmente a mais grave, mas também a mais significativa: Filipe acusou o bispo francês Bernardo Saisset, partidário do 390 CAP. 5 - A HORA DOS REIS papa, de traição e crime de lesa-mejestade e levou-o a julgamento diante do tribunal régio, que o condenou e ordenou sua prisão. A atitude do monarca era inaceitável para o papado, já que segundo as leis canônicas um bispo não podia ser julgado numa corte leiga. Em resposta ao desafio real, Bonifácio VIII editou, em dezembro de 1302, a bula Ausculta fili charissime, na qual advogava ser-lhe o rei franco subordinado e não dispor de autoridade para julgar pessoas eclesiásticas. Consta que o jurista real Pierre Flotte, ao receber a bula, destruiu-a e falsificou um novo documento, Deum time, no qual se afirmava explicitamente deter o pontífice jurisdição temporal sobre o rei e sobre todos os súditos franceses. Flotte e seus colegas, entre os quais o assessor do rei, Guilherme de Nogaret, ordenaram aos funcionários da Coroa a divulgação da falsa “bula” em todo o território, com o objetivo de voltar a opinião pública francesa contra o sumo pontífice. A querela abarcava, de fato, duas visões conflitantes: para o rei francês, não era possível exercer um controle adequado sobre seu território se não lhe fosse lícito, num caso de emergência nacional, taxar seu clero ou levar um bispo local a julgamento. Para o papa, a autonomia da Igreja não poderia ser preservada se os governantes leigos pudessem taxar o clero ou julgar bispos em cortes reais quando bem entendessem. Os conselheiros do rei reclamaram, pouco depois, um concílio geral da Igreja, a fim de depor o bispo de Roma por heresia. O sumo sacerdote refugiou-se então no castelo de Anagni. Emissários do rei francês, sob o comando de Nogaret, foram enviados à fortaleza com ordens de deter o papa: era agosto de 1303.31 O desfecho é conhecido e ilustra bem a vitória das armas. Preso o pontífice, o apologista real, Pierre 31 Cf. MIETHKE, Jürgen. Der Weltanspruch des Papstes im späteren Mittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 372 et seq. 391 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Flotte, respondendo aos protestos indignados de Bonifácio, teria dito: “O seu poder é verbal; o nosso, contudo, é real”. Dias depois, morria Bonifácio VIII, provavelmente em razão dos maus-tratos: começava a desmoronar o edifício construído pela política papal hierocrática. Sucedeu-o Benedito XI (13034), que faleceu logo em seguida. Diante da ameça de Filipe IV de proceder a um julgamento póstumo de Bonifácio no concílio geral, Clemente V (1304-14), o novo papa, anulou todas as medidas de seu predecessor contra o rei francês. Mas os frutos dessa acirrada contenda haveriam de atravessar os séculos: nenhum escritor político podia mais ignorar a nova força política que se afirmava na paisagem. III EGÍDIO ROMANO E AS RAÍZES DO ABSOLUTISMO MONÁRQUICO A defesa da centralização do poder supremo nas mãos de um único governante constituía uma reivindicação que, sem dúvida, encontrava respaldo nos antigos textos pagãos agora disponíveis. Entretanto, uma das mais sólidas defesas da monarquia como a melhor forma de governo viria não de um defensor do reino, e sim de um árduo militante do partido eclesiástico: o canonista Egídio Romano. A obra de Egídio Romano, contudo, não constituía um elemento destoante na paisagem: era muito mais o resultado visível de um longo processo de consolidação e centralização do poder pontifício. A teoria egidiana, minuciosamente exposta em seu Sobre o poder eclesiástico,32 segundo a qual a Igreja subsumiria em sua plenitudo potestatis todos os poderes inferiores, seria 32 ROMANO, Egídio. Do poder eclesiástico (DPE). Ed. L. A. De Boni, Petrópolis: Vozes, 1989. As citações ao livro de Egídio Romano neste texto foram todas retiradas dessa edição brasileira. Para consulta foi utilizada também a versão bilígüe (alemão-latim) produzida por R. Scholz. 392 CAP. 5 - A HORA DOS REIS apropriada e amplamente adaptada aos interesses de uma formação política emergente, as monarquias absolutas européias e seus defensores.33 A defesa da centralização do poder nas mãos de um único governante não representava uma novidade, como já foi visto: os canonistas insistiam, desde pelo menos o século XII, que um corpo com duas cabeças constituía uma monstruosidade. E, embora o papado operasse teoricamente com o princípio gelasiano das duas espadas, alerta Watt, esse princípio dualista “era tão fundamentalmente condicionado por outro axioma, o da superioridade do poder espiritual, que acabava sendo, de fato, substituído por uma visão unitária dos dois poderes”. Nessa lógica, continua Watt adiante, deixava de haver espaço para uma autoridade leiga autônoma.34 E Egídio Romano expressava com clareza essa concepção. À primeira vista, escreve De Boni na introdução ao livro, Egídio Romano parece “reeditar” a antiga querela das investiduras entre o papa e o imperador. Mas essa impressão é enganosa, diz ele. 33 34 É curioso notar que o “espelho do príncipe” (De regimne principum) de Egídio Romano, escrito para o futuro rei francês, Filipe IV, o Belo, entre 1277-9, quando o religioso trabalhou na corte real como preceptor do infante, seria uma das obras – entre as do gênero – mais lidas e amplamente traduzidas de que se tem notícia, e haveria de inspirar inúmeros partidos em disputa. Miethke conta que dele restaram 284 manuscritos em latim, além de 78 manuscritos traduzidos para o vernáculo em diversos idiomas. Mas não é nesse texto de juventude que se vai encontrar a sua mais poderosa argumentação em favor da plenitude de poder do papa em assuntos temporais, e sim no De ecclesiatica potestate, escrito em 1301-2. Deste seu texto, contabiliza Miethke, restaram apenas seis manuscritos. Cf. MIETHKE, op. cit., p. 373. WATT, J. A. Spiritual and temporal powers. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 368 e 389. Também R. Stanka chama atenção para o fato de que a reivindicação do controle das duas espadas por Bonifácio VIII mudara de foco, passando a se concentrar agora na superioridade da autoridade espiritual sobre a temporal. Cf. STANKA, R. Die politische Philosophie des Mittelalters, Band II. Viena: Verlag A. Sexl, 1957. p. 169 et seq. 393 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Os argumentos e os exemplos são os mesmos, mas o mundo é outro: a questão posta não é mais a da relação entre o papa e o imperador dentro de uma única cristandade; trata-se agora de definir qual a relação entre o poder eclesiástico e o civil na constituição de novos estados soberanos; é necessário redefinir competências entre a autoridade religiosa supranacional e as autoridades civis nacionais que neste momento se afirmam. Se as roupas do De ecclesiastica potestate são velhas, estão puídas, e já mesmo carcomidas pelas traças que estavam destruindo a Idade Média, contudo não deixa de ser verdade que as longas questões sobre o poder, a soberania, o direito dos súditos, a propriedade etc. estavam abrindo caminho para o debate sobre o Estado moderno, e o renascimento. Não deixa também de ser verdade”, arremata De Boni lembrando opiniões de Carlyle e Scholz, “que Egídio ‘compôs o primeiro tratado completo sobre o absolutismo’”.35 Se Egídio tinha ou não uma noção clara das transformações em curso não cabe aqui discutir. O que o Doctor Fundatissimus parecia saber muito bem, contudo, era localizar o inimigo e o terreno no qual ele se movia. Ullmann alerta para o fato de que a teoria desenvolvida por Egídio Romano em defesa da hierocracia, ao concentrar-se na idéia de renascimento pelo batismo como noção legal, isto é, na noção da graça como fundamento do direito, tornava claro seu objetivo de conter o avanço do naturalismo político. A regeneratio batismal defendida por ele servia, antes de mais nada, para reafirmar os vínculos que implicava: apenas os homines renati, seguindo as normas da “vida nova” concedida pela autoridade divinamente instituída, tinham direito ao domínio e à propriedade legítimos. Nesse esquema, o elemento humano, no estado puramente natural, não tinha papel algum a desempenhar: o homem natural permanecia relegado 35 DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 13. 394 CAP. 5 - A HORA DOS REIS ao papel subordinado dentro do qual sempre se movera na cosmologia cristã.36 Essa consciência Egídio Romano, bom conhecedor de Aristóteles e de Tomás de Aquino, certamente tinha: nascido nos arredores de Roma em meados do século XIII, de família sem posses, iniciou seus estudos em 1258, ingressando na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho. Logo foi enviado à Universidade de Paris para prosseguir os estudos. Lá provavelmente freqüentou as aulas de Tomás de Aquino e pôde ampliar seu contato com os escritos averroístas e aristotélicos.37 Envolveu-se nos debates acadêmicos que agitaram Paris à época, chegando a tomar a defesa do mestre por ocasião das condenações do bispo parisiense Estêvão Tempier.38 Com esse episódio, teve sua carreira interrompida e foi obrigado a regressar à Itália. 36 37 38 A secularização do pensamento e a naturalização da política, possibilitada sobretudo pela recuperação dos antigos textos pagãos, argumenta Ullamnn, tornavam desnecessária a autoridade pontifícia, e também a figura da Ecclesia, na condução dos assuntos terrenos. Cf. ULLMANN, Die Bulle Unam sanctam: Rückblick und Ausblick, VI: p. 45-77. Cf. tb. ULLMANN, Boniface VIII and his contemporary scholarship, VIII: p. 58-87. In: ULLMANN. W. Scholarship and politics in the Middle Ages. London: Variorum Reprints, 1978. (Collected Studies). Sobre a influência averroísta de Egídio, cf. MCALEER, G. J. Disputing the unity of the world: the importance of res and the influence of Averróis in Giles of Rome’s critique of Thomas Aquinas concerning the unity of the world. Journal of the History of Philosophy, v. 36, n. 1, p. 29-55, jan. 1998. Essa censura eclesiástica, dirigida principalmente às teses averroístas e aristotélicas, ficou conhecida como “As condenações de 1277”, quando Tempier censurou 219 proposições sustentadas pelos professores da Faculdade de Artes. Várias dessas condenações ligavam-se, direta ou indiretamente, às teses desenvolvidas por Tomás de Aquino. Sobre o tema, cf. DE BONI, L. A. As condenações de 1277: os limites do diálogo entre a filosofia e a teologia. In: DE BONI, L. A. (Org.). Lógica e linguagem na Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. 395 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Retornando à França, pouco depois, foi convidado por Filipe III para ser preceptor de seu herdeiro, Filipe IV, futuro rei francês. Para seu pupilo Egídio Romano escreveu, entre 1277-9, o De regimine principum, no qual, seguindo Tomás de Aquino e Tolomeu de Luca, fazia a defesa da forma monárquica de governo. Em 1287, intelectual já influente e íntimo de figuras importantes como Benedito Gaetani, futuro papa Bonifácio VIII, Egídio tornou-se mestre em teologia pela Universidade de Paris e, em 1292, foi eleito superiorgeral da sua ordem. Três anos mais tarde era nomeado por Bonifácio VIII (1294-1303), com a aquiescência do rei franco, seu antigo aluno, arcebispo de Bourges e primaz da Aquitânia. Nesse momento, as divergências entre o bispo de Roma e o rei francês se acirravam e as acusações de ambas as partes sucediam-se. Bonifácio VIII – que assumira o trono pontifício em meio à polêmica sobre a legalidade da renúncia de Celestino V (1294), seu antecessor,39 – não tardou a recorrer ao auxílio, que se mostraria precioso, de seu protegido. A seu pedido, Egídio comentava textos e produzia pareceres que serviam de suporte para as decisões papais.40 Também sob encomenda do pontífice – que nesse momento precisava de munição contra a decisão de Filipe IV de taxar o clero francês sem autorização papal –, o Doutor Fundatíssimo produziu o De ecclesiastica potestate, escrito entre 1301 e 1302. O livro era dedicado a mostrar que, assim como ao espírito cabia comandar o corpo, competia à Igreja o direito de zelar, em última instância, não só pela salvação espiritual como também pela vida comunal dos homens. O texto de Egídio 39 40 Para uma descrição minuciosa dos eventos, cf. SOUZA, J. A. C. R. A eleição de Celestino V em 1294 e a crise da Igreja no final do século XIII. Veritas, Porto Alegre, v. 39, n. 155, p. 481-98, set. 1994. Um resumo das obras de Egídio pode ser encontrado no verbete de MERLIN, N. Gilles de Rome. In: VACANT, A.; MANGENOT, E. Dictionnaire de théologie catholique. Paris: Librarie Letouzey, 1920. p. 1358-66. 396 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Romano acabaria sendo usado pelo papa na confecção da bula Unam sanctam,41 de 1302. Para a defesa de suas posições, o Doutor Fundatíssimo, profundo conhecedor das doutrinas tomista, averroísta, aristotélica e agostiniana, utilizou toda a tradição de pensamento disponível à época: da Sagrada Escritura ao direito canônico, passando por Hugo de São Vítor, Dionísio, Agostinho, Aristóteles etc., nada foi desperdiçado.42 A organização do poder temporal só aparece nessa obra de forma marginal. Mas não apenas está ausente como tema – dado que o objeto imediato do tratado era o poder eclesiático – como ainda, quando aparece, está subsumida na ordem de dominação da Igreja. Apesar do silêncio a respeito do poder secular aqui, pode-se apontar entre essa obra e seu “espelho do príncipe”, escrito duas décadas antes, um traço comum: a defesa da 41 42 Sobre este assunto, cf. BOER, Nicolas. A bula Unam sanctam de Bonifácio VIII sobre as relações entre a Igreja e o Estado. In: SOUZA, J. A. C. R. (Org.). Pensamento medieval. X Semana de Filosofia da UnB. São Paulo: Loyola, 1983. p. 125-44. Para uma comparação entre o texto da bula e as passagens de Egídio, confere a “Introdução” de De Boni ao livro de Egídio Romano citada acima, p. 26-28, notas a) e b). Uma tradução do documento pode ser encontrada em SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 202-4. Cf. tb. a versão integral inglesa, que contém ainda vários outros documentos do período, em HENDERSON, Ernest F. (Ed.). Selected historical documents of the Middle Ages. Repr. of 1892. New York: AMS Press, 1968. p. 435-7. Richard Scholz, o grande tradutor moderno de Egídio, enumerou as citações das autoridades mencionadas no De ecclesiastica potestate, chegando ao seguinte resultado: cerca de 238 citações provêm da Bíblia com suas glosas; Agostinho é mencionado 41 vezes, o direito canônico cerca de 33 vezes, Aristóteles e o Pseudo-Aristóteles trinta vezes, Hugo de São Vítor 16 vezes, Pedro Comestor nove, Dionísio o Areopagita sete, Bernardo de Claraval cinco, Averróis duas vezes, Isidoro de Sevilha uma vez e o direito romano também uma única vez. Cf. SCHOLZ, R. “Einleitung”, p. IX. In: ROMANUS, Aegidius. De ecclesiatica potestate. Ed. R. Scholz, Weimar: Hermann Böhlaus, 1929. Uma tal estatística nada pode oferecer além de uma visão superficial da obra. Mas ajuda a ilustrar o grau de preocupação do autor com certos pensadores. 397 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO monarquia como a forma excelente de governo político. Nesse ponto há mais continuidade do que ruptura entre as duas obras. O esquema do tratado De ecclesiastica potestate produzido por Egídio Romano pode ser resumido, grosso modo, num princípio orientador e quatro pares de opostos: o fundamento que guiava todo o seu raciocínio repousava na afirmação – que remonta a Platão e Aristóteles – de que todo o universo, e tudo o que nele se encontrava, se ordenava do inferior ao superior, estando por essa razão as coisas inferiores subordinadas às superiores. Os pares de opostos utilizados para sustentar sua teoria sobre a correta ordenação do mundo eram: imperfeito/perfeito, corpo/alma, particular/universal e poder temporal/poder eclesiástico. A partir da identificação entre imperfeito, corpo, particular e poder temporal à ordem dos objetos inferiores, em oposição a perfeito, alma, universal e poder eclesiástico à ordem do superiores, Egídio Romano podia construir o edifício sobre o qual reivindicava a plenitude de poder do papa sobre todas as coisas, materias e espirituais, e a primazia do governo sacerdotal sobre o secular. Contudo, essas duas esferas – a superior, próxima da perfeição divina, e a inferior, lugar das imperfeições terrenas – não seriam mais descritas como dois âmbitos autônomos, cada qual contendo em si os princípios de seu próprio funcionamento, mas passariam a ser tratadas dentro de um único universo: a “cidade de Deus” deixava de ser um ideal situado numa outra esfera cósmica e passava a existir na mesma dimensão da “cidade dos homens”, constituindo, ambas, partes de um todo hierárquico devidamente ordenado, no qual toda multiplicidade era reduzida à unidade, ao elemento uno, que era Deus. Tal construção envolvia, contudo, além de poderosas vigas, andaimes bastante intrincados, como se verá a seguir. 398 CAP. 5 - A HORA DOS REIS 1. Do poder do príncipe eclesiástico O Livro I era dedicado a mostrar que toda autoridade temporal justa se subordinava à eclesiástica. Isto é, que a autoridade – o dominium, quando diz respeito à relação entre homens – pontifícia era superior às demais. Depois de oferecer a obra ao “santíssimo Padre e senhor” Bonifácio VIII, Egídio introduzia o assunto dizendo que compete ao sumo pontífice e à sua plenitude de poder dispor o símbolo da fé e estabelecer as coisas que se relacionam com os bons costumes, porquanto, se surgir uma questão, quer de fé, quer de costumes, compete a ele dar uma sentença definitiva e estabelecer, como também dispor firmemente, o que os cristãos devem crer e que aspecto os fiéis devem evitar daquelas coisas de onde se originam os litígios. (DPE, p. 37) E adiante: “compete dirimir querelas e resolver questões somente àquele que atingiu o ápice de toda a Igreja; e como somente o sumo pontífice é reconhecido como tal, somente a ele caberá determinar sobre tais questões surgidas e outras semelhantes”. E, para que não restasse dúvida a respeito de sua afirmação, Egídio Romano especificava que o poder espiritual do sumo sacerdote incluía também sua jurisdição sobre todas as coisas temporais. Porque ao poder mais perfeito competia a plenitude de poder e a jurisdição sobre as coisas.43 Como o espírito fosse superior à matéria, e 43 “As sentenças dos santos e dos doutores proclamam comumente que há uma dupla perfeição: a pessoal e a de acordo com o estado. Parece que estas duas perfeições se diferenciam pelo fato de que a perfeição pessoal consiste na serenidade e pureza da consciência, enquanto a perfeição do estado e principalmente do estado dos prelados e de todos aqueles que no último dia, quando estiverem perante o tribunal de Cristo, prestarão contas das almas dos fiéis, consiste na jurisdição e na plenitude do poder, de tal modo que é um estado mais perfeito aquele ao qual corresponde um poder mais amplo e jurisdição mais plena” (DPE, p. 38). 399 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO a alma ao corpo, explicava, e dado que o corpo tendia ao vício e aos maus costumes, seguia-se daí que ao poder espiritual, maior em perfeição, cabia julgar a todos e por ninguém ser julgado. Para fundamentar essa opinião, o autor distinguia a perfeição pessoal daquela conferida pelo estado de graça, única capaz de gerar a plenitude de poder: De acordo, portanto, com a dupla perfeição e a dupla espiritualidade, dizemos que há dupla elevação. Aquele que é espiritual e pessoalmente perfeito está elevado acima do mundo e acima dos outros conforme o brilho da consciência. E como está elevado acima do mundo poderá julgar o mundo, isto é, os homens mundanos, afirmando que suas obras são más. [...] Mas quem é perfeito e santo e está espiritualmente de acordo com o estado, principalmente de acordo com o estado prelatício [statum prelatorum], é elevado segundo a jurisdição e a plenitude do poder. [...] Tal é o sumo pontífice, cujo estado é santíssimo e espiritualíssimo. [...] Se o estado do sumo pontífice é santíssimo e espiritualíssimo e tal espiritualidade consiste na eminência do poder, foi bem dito que o sumo pontífice, sendo de todo espiritual segundo o estado e a eminência do poder, julga e domina tudo e ele mesmo não poderá ser julgado, dominado e igualado por ninguém. (DPE, p. 39-40) Até mesmo a autoridade temporal era instituída pelo poder espiritual, afirmava Egídio Romano seguindo Hugo de São Vítor. Pois o sacerdotium constituía o único poder capaz de plantá-la, julgá-la e extirpá-la. Para sustentar essa reivindicação, ele recorria à Doação de Constantino – segundo a qual o império havia sido trasladado para a Igreja – e à lei da divindade (lex divinitatis) de Dionísio (o Pseudo-Areopagita), segundo a qual as realidades inferiores se reduziam às superiores por meio das intermediárias: Como ficou claro através de Hugo, a autoridade espiritual tem poder de instituir a terrena e de julgá-la se é 400 CAP. 5 - A HORA DOS REIS boa, o que não seria possível se não pudesse plantá-la e extirpá-la. [...] Neste assunto não só os acontecimentos concordam com a autoridade, porquanto Hugo afirma isto, e a Igreja, transferindo o império, não só o fez de direito, mas de fato. [...] Podemos, com efeito, declarar tranqüilamente que, pela ordem do universo, a Igreja deve ser constituída sobre nações e reinos, pois, segundo Dionísio [...], é lei da divindade reduzir as coisas ínfimas às supremas passando pelas intermediárias. (DPE, p. 44-5) Os argumentos utilizados por Egídio Romano sustentavam a existência de uma hierarquia na ordem universal dos seres, tal como se encontrava no Pseudo-Dionísio: as realidades inferiores, de acordo com o grau hierárquico em que se situavam, seriam também mais materiais do que as que lhes eram superiores. Ao Uno correspondia o supremo grau de espiritualidade. Dele emanavam as realidades superiores. As outras realidades delas provinham e a elas deviam reduzir-se pela conversão da multiplicidade à unidade e da materialidade à espiritualidade. Assim, cada hierarquia continha previamente em si, num grau superior, as inferiores que, ao se lhe reduzirem, eram por elas reconduzidas a outra hierarquia superior na ordem da unidade e da espiritualidade e, por meio deste processo de conversão, as hierarquias intermediárias se reduziriam à hierarquia suprema, que era Deus.44 Como as coisas inferiores se reduziam às superiores não imediatamente, mas por meio das intermediárias, para que o universo pudesse estar corretamente ordenado era preciso constatar que essas duas autoridades, espiritual e temporal, provinham imediatamente de Deus, causa primeira de todas as coisas.45 Como todas as coisas no universo a Ele se 44 45 Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., p. 164-5. Rezava a bula Unam sanctam, promulgada por Bonifácio VIII em novembro de 1302: “De fato, segundo o bem-aventurado Dionísio, é lei da divindade que as realidades ínfimas se reduzam à superiores mediante 401 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ordenavam, também no que respeitava aos poderes era preciso que um gládio se reduzisse ao outro: “Conseqüentemente o gládio temporal, enquanto inferior, deve ser reduzido, passando pelo espiritual, como se passasse pelo superior, e um deve ser estabelecido sobre o outro, de modo que o inferior esteja sob o superior” (DPE, p. 45). Por essa razão, dizer que reis e príncipes estariam submetidos ao poder espiritual apenas nas coisas espirituais equivalia a não compreender a força do argumento. E aqui Egídio investia pesado contra o dualismo clássico: Pois se só nas coisas espirituais os reis e os príncipes estivessem sujeitos à Igreja, não haveria gládio sob gládio; não haveria coisas temporais, sob coisas espirituais, não haveria ordem nos poderes, não se reduziriam as coisas ínfimas às superiores passando pelas intermediárias. [...] Ora, quem por direito simplesmente domina no espiritual, por certa excelência também tem domínio sobre as coisas temporais. Se alguns, porém, por temor dos príncipes seculares escreveram de outra maneira, não se deve admitir a autoridade deles. A Igreja pode, pois, admoestar os príncipes nas coisas seculares, uma vez que o gládio temporal está sob o gládio espiritual. (DPE, p. 46) A conclusão lógica dessas premissas, como lembram Souza e Barbosa, consistia na integração plena de todo e qualquer poder na suprema autoridade da Igreja.46 Se o papa não utilizava diretamente o gládio material, deixando seu emprego a cargo dos príncipes, dizia Egídio, 46 as intermediárias. Segundo a ordem do universo, não todas as realidades igual e imediatamente, mas as ínfimas pelas intermédias, as inferiores pelas superiores, devem ser reduzidas à ordem. Que a espiritual ultrapassa em dignidade e nobreza qualquer poder terreno, somos obrigados a crer e igualmente proclamar com grande clareza, da mesma forma que o espírito supera a matéria [...]; porque, segundo testemunha a verdade, o poder espiritual institui o secular e deve julgá-lo se não for bom”. Cf. SOUZA & BARBOSA, op. cit., Documento 50, p. 203. Ibid., p. 165. 402 CAP. 5 - A HORA DOS REIS não era por não ter direito ao seu uso, mas para não ter de se ocupar de um excesso de funções. O papa, segundo Egídio Romano, tinha a espada temporal “à sua disposição”. “E, como é muito mais excelente e importante o domínio sobre quem exerce o gládio do que o poder sobre o próprio gládio, fica claro, da parte do próprio poder, que é mais perfeito e mais excelente ter o gládio material à disposição do que para uso” (DPE, p. 66). Do mesmo modo também, o fim último daquele que exercia o gládio temporal – induzir os homens à virtude dispondo os cidadãos a obedecer ao poder espiritual – subordinava-se ao fim superior do poder sacerdotal, a salvação dos homens. 2. Dominium e coerção: o dom de Deus e o próprio dos homens Expostos os princípios básicos de sua doutrina a respeito da superioridade da autoridade espiritual sobre a temporal, impunha-se a Egídio a tarefa de elaborar uma teoria capaz de sustentar a legitimidade da reivindicação de uma plenitude de poder do pontífice em ambas as esferas de dominação. O Livro II, a parte mais inovadora da obra, tratava da relação entre o poder eclesiástico e as coisas temporais: nele Egídio Romano pretendia mostrar que o sumo pontífice tinha também o dominium – segundo ele, a relação do superior para com o inferior – sobre as coisas temporais. O primeiro ponto abordado, se era ou não lícito à instituição eclesiástica possuir bens, constituía uma resposta tanto a questões internas da Igreja (entre elas, a discussão acerca da pobreza evangélica, encabeçada pelos monges franciscanos) quanto às investidas dos poderes temporais sobre os negócios religiosos, especialmente por parte do rei francês. Para justificar a posse de temporalia pela Igreja, Egídio precisava encontrar uma solução convincente para as passagens 403 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO bíblicas contraditórias sobre a questão. Para isso, recorria a uma adequação histórica destes diferentes momentos – tal como fizera Tomás de Aquino para justificar a preeminência da lei nova sobre a lei antiga. Cristo, nosso médico, esclarecia Egídio Romano, havia concedido e retirado aos apóstolos, segundo as necessidades de cada momento, o direito de levarem bolsa e alforje: em tempos de paz ordenava-lhes nada portar; na guerra, aconselhava-os a munirem-se de proventos, como se podia ler nas Sagradas Escrituras.47 Também para que a Igreja não fosse vilipendiada pelos leigos, convinha que pudesse ter bens, embora a posse de coisas terrenas não devesse constituir o fim da existência humana nem tampouco dos poderes instaurados sobre o mundo.48 Também “historicizada” era a sua argumentação a respeito da constituição do poder político temporal e da posse do justo dominium pelo poder eclesiástico. A construção 47 48 “Em nenhum tempo, portanto, as posses temporais foram em si mesmas lícitas aos clérigos, mas, conforme as circunstâncias, às vezes foram proIbidas, às vezes concedidas. [...] Digamos, portanto, que o auxílio divino em si mesmo é bom, mas a retirada dele, temporariamente, pode nos ser útil. Assim, as coisas temporais são boas, mas a proibição delas, temporariamente, pode nos ser de auxílio. [...] Mas, como ambos [os tempos] são bons, nenhum deles devia ser perpetuamente proIbido ou permitido. Por isso, deve haver um terceiro tempo, no qual agora estamos, em que tanto as coisas temporais são concedidas aos homens da Igreja como a mão do Senhor está colocada por baixo. Neste tempo, a Igreja está dotada de ambos, porquanto goza de subsídio das coisas temporais e do auxílio divino, para que se possa conduzir e conservar no seu estado. Com efeito, antes a Igreja teve início, depois incremento, agora porém tem a perfeição e estado” (DPE, p. 82-3). “Portanto, são coisas a que todos estamos obrigados: não apegar o coração às riquezas (isto é, não buscá-las como coisa principal, e como coisa que seria um fim em si) e renunciar a tudo que possuímos, não pondo nas riquezas nossa intenção final. Contudo, ter tais posses para o domínio e para o sustento da vida é lícito tanto aos clérigos como aos leigos” (DPE, p. 74). 404 CAP. 5 - A HORA DOS REIS egidiana sustentava-se em alicerces originais. Egídio Romano desenvolvera, em vários pontos de sua reflexão, uma interpretação própria, que desfrutava de razoável grau de independência em relação às suas fontes inspiradoras. Isso valia também para a sua noção de dominium, utilizada tanto para designar a propriedade – na relação de superioridade entre os homens e as coisas – quanto o senhorio, isto é, a dominação de um homem sobre outro.49 Segundo Agostinho, no estado de inocência não havia existido autoridade política coercitiva de um ser humano sobre outro: tal como Boaventura, Agostinho associava coerção à instituição da autoridade política e localizava sua aparição na queda da humanidade em pecado. Já para Tomás de Aquino, o poder coercitivo também constituía uma característica intrínseca da autoridade política, como para Agostinho. Mas, dado que essa autoridade política era natural à condição humana, como havia ensinado Aristóteles, o poder coercitivo de um homem sobre outro – ou o dominium – tinha, portanto, de ter existido já no estado de inocência. Egídio Romano, tal como Agostinho, defendia não ter existido, antes do pecado original, autoridade política coercitiva (dominatio). Mas concordava com a afirmação tomasiana de que teria havido senhorio (dominium) no estado de inocência. Para fundamentar essa sua posição, Egídio Romano argumentava, concordando com Tomás de Aquino, que a noção de dominium não incluía necessariamente a idéia de servitus. Isto é, não havia, segundo Egídio Romano, uma ligação intrínseca entre autoridade política e poder coercitivo, como haviam sustentado Agostinho e Boaventura. Para o Doutor Fundatíssimo, havia dominium – isto é, senhorio ou relação 49 Ullmann já chamava atenção para uma mudança semântica do termo dominium. Com esse termo, observava o historiador, Egídio Romano “quer dizer não tanto propriedade, mas governança ou senhorio (lordship)”. Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 220. 405 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO de comando – onde quer que houvesse uma relação entre um inferior e um superior. Mas, como Agostinho, identificava o exercício do poder coercitivo, a dominatio, ao deleite de Adão ao comer do fruto da árvore proibida do bem e do mal. Ou seja, ligava a instauração da coerção ao pecado original. McAleer, recorrendo aos comentários de Egídio às sentenças,50 ajuda-nos a elucidar os termos dessa diferenciação levada a cabo por Egídio Romano.51 Na distinção 21, o Doutor Fundatíssimo explicava que, no estado de justiça original, Deus – que era dominus – governava seus filhos por meio da caridade e da graça. Nesse paraíso originário havia dominium do Senhor, mas não existia a coerção (dominatio), pois Deus e suas criaturas encontravam-se em perfeita harmonia. Adão, por sua vez, fora instituído como governante e exercia seu poder na caridade e no amor. Neste estado de inocência, explicava o Doutor Fundatíssimo, havia relação de superioridade de um homem sobre outro (dominium). Mas esse senhorio de Adão, por ser exercido no amor (in dilectione), não teria sido coercitivo (dominatio). Segundo Egídio, assim, o estado de inocência existira todo sob uma certa sujeição, que consistia num domínio exercido no amor.52 O próprio Adão teria sempre governado como 50 51 52 Trata-se das distinções elaboradas por Egídio Romano, reunidas na obra In secundum librum sententiarum, surgida por volta de 1309. Uma reunião desses textos pode ser encontrada na edição de WIELOCKX, R. (Ed.). Aegidii romani opera omnia. Firenze: L. S. Oschki, 1985. Não há no Brasil traduções disponíveis dessas distinções, e o texto latino é de difícil acesso. Por isso, foi utilizada aqui uma fonte indireta, o trabalho de MCALLER, Graham. Giles of Rome on political authority. Journal of the History of Ideas, v. 60, n. 1, p. 21-36, jan. 1999. “Ideo ait Gregorius loquens de isto statu quod omne mandatum de sola dilectione est, quia quicquid praecipitur in sola charitate solidatur. Igitur quia illa status totus erat in quandam subiectione et in quandam iustitia ideo tunc dilectio ex tali subiectione et ex tali iustitia oriebatur”. In: MCALLER, op. cit., p. 30, n. 52. 406 CAP. 5 - A HORA DOS REIS um servo obediente aos preceitos de Deus. Por ter sido instituído na justiça original, Adão tinha uma vontade perfeitamente repleta de caridade.53 A generosidade de seu governo levara os súditos a obedecer voluntariamente àquela autoridade e lhes permitira alcançar o bem comum. E governar para o bem comum conduzia à satisfação do desejo da “grandeza da paz” (magnitudo pacis), que por si só podia conceder legitimidade a um governo.54 Como não existia senhorio sem poder, esse dominium instituído no estado de inocência incluía o governo político (principatus politicus), o real (principatus regius) e o despótico (principatus despoticus): o primeiro desses reinados dizia respeito àquele de Adão sobre Eva; o segundo se relacionava ao mando de Adão sobre seus filhos; e o último à forma pela qual Adão dispunha e governava sobre seu próprio corpo, que antes da queda no pecado o servia em completa obediência. Tal dominium devia ser exercido por meio da graça (dominari per gratiam), como queria o Senhor. Adão teria pecado, segundo Egídio, ao desejar um governo “per naturam”, isto é, ao pretender reinar por meio de um poder coercitivo, exercido egoísta e despoticamente, ao invés de continuar dominando pela graça. Esse poder era necessariamente coercitivo, explicava Egídio, porque o desejo humano bom e puro só podia ter uma única fonte de preenchimento, Deus. Egídio Romano relacionava o pecado de querer governar per naturam ao desejo de comer da árvore proibida do bem e do mal (distinção 22). Adão não havia desejado conhecimento especulativo ou iluminação, mas sim o conhecimento moral necessário ao 53 54 “Ad quod dici potest quod totus ille status erat in subiectione quod inferiora essent subiecta superioribus. [...] Et quia hoc est iustitia quod inferiora sint subiecta superioribus, ideo totus ille status erat in quandam tali iustitia sed iste status totus est in dilectione”. In: MCALLER, op. cit., p. 26, n. 25. Cf. MCALLER, op. cit., p. 26. 407 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO exercício do poder coercitivo. Desejar o conhecimento moral do bem e do mal significava querer reinar e dominar com algum poder anexo55 (potentia annexa). Ao abandonar o modo de governo de Deus (per gratiam), negando aos seus súditos a verdadeira felicidade, Adão agia egoisticamente e precisava recorrer à força para reger os súditos. Com isso, passava a reinar violentamente e tornava-se um governante despótico. Ou seja, a natureza do poder de Adão teria mudado quando ele decidira governar independentemente da graça de Deus. No estado de justiça original, Adão havia desfrutado de autoridade política, razão pela qual governara aqueles que lhe eram sujeitos, mas não dispusera de poder coercitivo. A proibição era, no fundo, comenta McAleer, o presente de Deus a Adão: ele não precisava reinar por meio do poder coercitivo, já que um tal modo de governar corrompia os corações daqueles que estavam no poder. O problema maior da queda em pecado, dizia Egídio, não tinha sido o rompimento da proibição, como haviam defendido Agostinho e Boaventura, e sim o desejar comer da fruta que era em si má. A árvore proibida a Adão era justamente o governar pela coerção. E Adão desejara esse modo de reinar porque se deleitara na experiência de coagir outros no momento em que comia a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal. Esse desejo de coagir não derivava, contudo, da natureza do homem, tal como ocorria com o diabo, mas havia se instaurado com o comer da árvore proibida (propter esum ligni vetiti).56 55 56 “Verum quia nullus est principatus sine aliqua potentia. Si primus homo appetiit scientiam boni et mali ut ex hox haberet quandam gubernationem rerum et quandam principatum quia hoc esse non poterat sine quandam potentia coercendi sibi subiecta. Directe non videtur appetivisse illuminationem vel scientiam speculativam sed magis scientiam boni et mali quae est scientiam gubernandi et principandi cum aliqua potentia annexa”. In: MCALLER, op. cit., p. 27, n. 36. Cf. MCALLER, op. cit., p. 27-8. 408 CAP. 5 - A HORA DOS REIS O poder com o qual Adão passou a reinar depois da queda dependia de uma usurpação: seu governo injusto roubava de seus súditos a capacidade e a liberdade para desejar, obedecer e amar a Deus.57 O governo adamita per naturam substituiu o seu reinar per gratiam e impediu, com isso, o acesso às leis de Deus, forçando outros a desejar de modo inadequado à sua natureza profunda. E era justamente o desejo de governar de maneira coercitiva que, segundo Egídio, marcava a existência política herdada pela posteridade de Adão.58 Esse reinar por meio da natureza era sempre egoísta: fomentava o bem privado às expensas do bem público,59 marca da tirania e do despotismo e raiz de todo pecado. Por essa razão, nossa história política era também marcada, ao menos até certo ponto, por um caráter despótico ou tirânico. Dominium nos dias atuais, explicava Egídio, podia até ter como objetivo a regra da caridade, mas não obtinha mais o mesmo grau de pureza que havia desfrutado quando fora exercido no estado de justiça original. Mesmo existindo reis caridosos, dizia ele, um tal reinado era sempre combinado com o governo secular introduzido pelo pecado de nossos pais primordiais, que nos obrigava a viver numa servidão corporal a essa regra temporal. O batismo podia até limpar nossas almas, sustentava Egídio, mas não podia nos libertar do domínio coercitivo da autoridade secular. O único gover57 58 59 A coerção na qual Adão sentira deleite constituía um pecado de primeira magnitude, pois havia gozo em negar a outros a capacidade e a liberdade para reagir obedecendo à lei de Deus. A marca do amor de Deus consistia na aptidão de obedecer ao Senhor. “Adam ergo peccante et appetente propriam excellentiam et proprium dominium, quod non debebat, perdidit dominium quod habebat”. In: MCALLER, op. cit., p. 29, n. 46. “Nam isti sunt duo amores secundum Augustinum Super Genesim: Privatus et publicus qui faciunt duas civitates Diaboli et Dei et bene secundum eundem ibidem dicitur amor privatus quia privatus est omni bono”. In: Ibid., p. 29, n. 43. 409 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO no compatível com a liberdade era aquele da caridade, no qual todo desejo consistia na devoção a Deus, que governava por meio do amor.60 A ressurreição, explicava Egídio, constituía o momento no qual toda dominação seria expurgada e deixaria de ser egoísta, passando a ser assumida completamente por Deus. Na distinção 44 tornava explícita a sua formulação de que o exercício do poder não significava necessariamente dominação e coerção. O termo dominari, oriundo de dominus, em sentido amplo, argumentava Egídio, estava presente onde quer que houvesse um comando. Mas nem toda superioridade era dominação, sustentava ele. Já em sentido restrito, entretanto, referia-se a servo: dominari constituía nessa acepção o principado dos servos (principatus servorum) – aqueles que eram sujeitos corporalmente. A obediência do inferior ao superior, portanto, supunha o governo do superior, mas não tinha necessariamente de ser dominatio. Um prelado, por exemplo, não dominava pela coação, e sim por meio da virtude ou caridade, por servir à felicidade.61 Essa distinção permitia a Egídio manter a sacralidade da ordenação política fundada divinamente, como aquela de Adão no paraíso e, ao mesmo tempo, afirmar a naturalidade 60 61 O poder tinha de ser expurgado justamente porque era uma regra secular coercitiva que endurecia os corações e tornava incapaz de caridade. O primeiro dos pecados de Adão e Eva repousava naquela ilação que sentiram ao comer do fruto proibido, e não na ingratidão ou na desobediência propriamente dita. O mesmo orgulho experimentado por nossos pais originários podia ser encontrado nos reis e príncipes. E aquela experiência comum de poder coercitivo era o que corrompia e conduzia à cegueira do coração, o qual deixava de exercer o poder no amor da caridade. Cf. MCALLER, op. cit., p. 31. “Propter primum sciendum quod obedientia est inferioris ad superiorem vel servi ad dominum. Magis tamen large accipitur, ut est inferioris ad superiorem, quia non omnis superioritas, proprie loquendo, dicitur dominatio. Nam praelatus non debet existimare se potestate dominantem, sed virtute vel charitate, et serviente felicem”. In: MCALLER, op. cit., p. 33, n. 63. 410 CAP. 5 - A HORA DOS REIS do mundo civil, sintetizando tradições tão diversas quanto o agostinianismo, o aristotelismo e o tomismo. Ao desvincular dominium de dominatio, Egídio fornecia um modelo bastante útil de interpretação da autoridade política, o qual lhe permitia atribuir ao pontífice, sem descontinuidade, a plenitude de poder tanto em assuntos espirituais quanto temporais, tal como já havia demonstrado anos antes, quando escrevera o De ecclesiastica potestate. O papa podia, nessa lógica, dispor de dominium (ou senhorio) sobre tudo e todos, tal como tivera Deus sobre os homens no paraíso e Adão sobre seus súditos no estado de justiça original. Mas não precisava e, no fundo, nem devia exercer a dominatio, isto é, o “juízo de sangue”, que era a marca do pecado e do afastamento de Deus. Por essa razão também podia afirmar, sem prejuízo de seu argumento a favor da primazia da autoridade do sumo sacerdote, que somente aos poderes temporalmente instituídos cabia o exercício da coerção, ou, em termos modernos, o “monopólio legítimo da violência”. Ou seja, o papa podia julgar e decidir em assuntos temporais, em virtude de seu dominium, já que ele, cujo poder era mais sublime, constituía aquela autoridade que instaurava a ordem legal e detinha, por isso, jurisdição universal. Mas ao pontífice jamais cabia a execução direta do poder, a dominatio, fruto da queda em pecado. Isso explica também a sua insistência em afirmar que aos religiosos não convinha “banhar as mãos em sangue”. Bastava agora retirar à idéia de dominium a intermediação eclesiástica para que emergisse o príncipe moderno. O argumento era forte, mas chegava em tempos de acelerada laicização:62 uma tal secularização do poder coercitivo 62 Sobre esse tema, cf. o clássico de LAGARDE, Georges de. La naissance de l’esprit laïque au declin du Moyen Age. Paris-Louvain: BéatriceNauwelaerts, 1956-63. v. I-V. 411 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO acabaria servindo, certamente contra a vontade de Egídio, mais aos interesses daqueles que pretendiam submeter o poder do pontífice às armas do rei – como demonstraria a prisão de Bonifácio VIII um ano mais tarde pelos agentes do monarca francês – do que àqueles dispostos a se colocar sob os ditames da espada eclesiástica. Um elemento fundamental desse seu raciocínio seria, no entanto, amplamente desenvolvido: a noção de que havia um dominium natural, anterior à instauração de qualquer poder terreno, e ao qual todas as criaturas, como filhos de Deus, tinham acesso: João Quidort, por exemplo, derivaria daí a anterioridade da propriedade privada. O avanço conceitual, entretanto, era inegável, e inúmeros autores fariam bom uso do aparato disponível. O recurso às distinções egidianas serve também para uma melhor compreensão dessa “nova teoria da origem do poder”, aperfeiçoada por Egídio Romano na segunda parte do De ecclesiastica potestate, cuja proposição básica era a de que somente por meio da Ecclesia se podia, no mundo terreno, obter um dominium justo sobre as posses e as pessoas. Para sustentar essa posição, o Doutor Fundatíssimo recorria, mais uma vez, a uma “história da sociabilidade humana”. No início do mundo, escrevia, não houvera possuidores de iure a ponto de se poder dizer “isto é meu”: na natureza, tudo era possuído em comum, a humanidade vivia em paz e reinava a justiça natural. A convivência dos primeiros grupos humanos gerou uma ocupação inicial das terras e apropriação de seus frutos que, contudo, só ocorria por convenção e pacto. Com o tempo, os homens multiplicaram-se, gerando assim a necessidade de ampliar também os pactos e convenções, para que a posse pudesse se dar não apenas por repartição, mas também por compra, doação, troca ou qualquer outro modo que contasse com o consentimento dos ânimos (consensus animorum). 412 CAP. 5 - A HORA DOS REIS O fundamento de todo esse edifício sobre o qual se podia fundar o “meu e o teu” era, segundo Egídio Romano, a comunicação recíproca entre os homens, da qual nasciam as partilhas, as doações, as trocas e as compras. Esses acordos, de caráter particular, contudo, em razão da tendência do homem ao egoísmo, tornaram-se insuficientes. Foi preciso instituir então o poder temporal, o qual fazia com que essas convenções e pactos passassem a ser regulados por um instrumento superior que tinha na lei positiva o seu vigor:63 ao egoísmo humano Egídio opunha o poder coercitivo, capaz de obrigar os homens ao cumprimento dos pactos.64 Ou seja, para regular adequadamente essas relações, foram instituídos os reinos e seus reis, a quem cabia decidir sobre assuntos temporais. Mas, como esses reinos não se constituíram por meio da justiça, e sim pela rapina e violência, os mais fortes terminaram por submeter os mais fracos e os escravizaram. Como vivessem sem justiça, tais reinos se transformaram em latrocínios e seus governantes, em usurpadores. Tais poderes seculares eram ilegítimos e só podiam recuperar sua justiça por meio de um poder superior, o eclesiástico, capaz de conferir-lhes, por meio da graça, legitimidade. O pecado, continuava Egídio seguindo Agostinho, nos havia tornado indignos de todo domínio e posse, tanto aquele original cometido por Adão e Eva, quanto o atual, quando pecávamos por nós mesmos,65 já que em ambos os casos os 63 64 65 “Depois que os homens começaram a dominar sobre a terra e se tornaram reis”, escrevia, “sobrevieram leis que tanto continham essas coisas como acrescentavam outras. Mandam as leis que se observem os pactos, as convenções e os contratos lícitos; por estes pactos, convenções e contratos alguém pode dizer: isto é meu, isto é teu” (DPE, p. 138). Esse raciocínio se repetiria anos mais tarde nos seus comentários às sentenças, tal como se viu acima. “Assim também se diz que somos privados com justiça da herança eterna ou pelo pecado de Adão, que se chama pecado original, porque é um 413 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO homens não estavam sujeitos a Deus, vivendo pois sem justiça.66 E ia buscar no antigo direito imperial romano seu modelo de monarca: o crime de lesa-majestade, explicava o Fundatíssimo, tornava digno de morte e indigno da vida e de toda posse aquele que o cometera. “Ora, por antonomásia, a majestade se reserva a Deus e quem não se sujeita a ele é indigno de si mesmo e de toda a posse” (DPE, p. 113).67 Se os homens não fossem pecadores, o poder secular seria desnecessário. Mas, como o pecado residia na origem da vida temporal, era preciso que os governantes terrenos dispusessem e preparassem a matéria para o príncipe eclesiástico, de modo que os súditos pudessem atingir o fim últi- 66 67 pecado que contraímos desde a nossa origem, ou pelo pecado próprio, que se chama atual, que é um pecado que cometemos por nossa própria culpa” (DPE, p.111-2). “Com efeito, Deus dera a Adão certo dom sobrenatural, que se chamava justiça original, pela qual Adão estava sujeito a Deus, e todos os seus inferiores estavam sujeitos a ele. Este dom não foi dado a Adão como pessoa singular, mas como cabeça de toda sua posteridade. Chamavase justiça original porque, se Adão não pecasse, passaria por origem para todos os seus pósteros [...]. Mas tendo Adão pecado e se afastado de Deus, com justiça perdeu tal dom e assim não pôde transmitir aos pósteros, porque já não o tinha. [...] Portanto, os filhos de Adão e todos nós, com o pecado de Adão, nascemos sem tal justiça e afastados de Deus. Por isso diz o Apóstolo (Efésios 2: 3) que por natureza nascemos filhos da ira e indignos da herança eterna, pois embora não tenhamos nascido dignos de uma pena dos sentidos, porque pelo pecado não nos é devida uma pena sensível, contudo nascemos dignos da pena de dano, porque nascemos dignos de ser privados da vida eterna. Portanto, por natureza, pelo pecado original, nascemos filhos da ira, e não sujeitos a Deus, mas antes afastados dele, e, conseqüentemente, indignos da herança eterna” (DPE, p. 112). E adiante: “E se é retirada a posse do possuidor indigno, e o domínio do dominador indigno, nada pode ser considerado mais digno e nada mais justo. Por isso, se pelo pecado original alguém nasce já separado de Deus e pelo pecado mortal atual alguém se torna separado de Deus, segue-se que tanto o pecado original como o atual o tornam um possuidor indigno das coisas” (DPE, p. 113). 414 CAP. 5 - A HORA DOS REIS mo de todas as coisas, a vida na caridade de Deus. Nos termos de Egídio Romano: Fica claro que o poder terreno e a arte de governar o povo dentro dos limites do poder terreno é a arte que põe a matéria à disposição do poder eclesiástico. [...] Do mesmo modo a arte de dominar, dentro dos parâmetros do poder terreno, e o próprio poder terreno, devem de tal maneira estar sujeitos ao poder eclesiástico que coloquem a si mesmos e todos os seus órgãos e instrumentos a serviço e ao capricho do poder espiritual. (DPE, p. 104-5) Entre tais instrumentos a serem submetidos, estavam as leis e as armas.68 Porque a justiça não era algo do corpo, e sim da alma – “Quem me julga é o Senhor” (1 Cor. 4: 4), dizia o Apóstolo. Como constituísse uma qualidade do apetite intelectivo, ela competia ao espírito.69 “Se se considerar bem o que se diz”, alertava Egídio Romano, o poder terreno, e tal é o poder real ou o imperial, não poderá julgar o que é justo e o que não é, a não ser enquanto age em virtude do poder espiritual, pois se a justiça é coisa espiritual e é uma qualidade da alma e não do corpo, caberá ao poder espiritual julgar a respeito da justiça. (DPE, p. 126) Como havia mostrado Agostinho, a justiça era aquela virtude que distribuía a cada um o que era seu. Só poderia 68 69 “Os órgãos e os instrumentos do poder terreno são: o poder civil, as armas de guerra, os bens temporais que tem, as leis e as constituições que cria; por isso deve ordenar a si mesmo e todas essas coisas como seus órgãos e instrumentos a serviço e sob a vontade do poder eclesiástico” (DPE, p. 105). “Com efeito, a justiça não é coisa do corpo, mas da alma, e não é uma perfeição de coisas corporais, mas é uma qualidade do apetite intelectivo, que não pode ser chamado nem de algo corporal, nem de algo orgânico” (DPE, p. 126). 415 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO haver verdadeira justiça se a cada um fosse dado o que lhe cabia. Donde concluía não haver dominium algum, nem útil (como por exemplo o domínio frutífero), nem potestativo (como é, por exemplo, o domínio que tem jurisdição), que se possua com justiça, se o possuidor não estiver sujeito a Deus e que ninguém pode estar sujeito a Deus, se não o for pelos sacramentos da Igreja. Segue-se que, como dizíamos, és mais Senhor de tua posse e de tudo que tens, por seres filho espiritual da Igreja, do que por seres filho carnal de teu pai. A tua herança e todo teu domínio e toda tua posse deves reconhecer como vindos antes da Igreja e através dela e por seres seu filho, do que vindos de teu pai carnal e através dele, e por seres seu filho. Também segue-se que, se o pai, enquanto viver, é mais dono da herança do que tu, a Igreja, que não morre, é mais dona das tuas coisas do que tu. (DPE, p. 110) Por isso, somente a Ecclesia, por ter de Deus o poder de “ligar e desligar”, podia tornar o homem renatus, justo possuidor: Conclui-se que, pelo sacramento do batismo, que é o remédio direto contra o pecado original e, pelo sacramento da penitência, que é o remédio contra o pecado atual, te tornas digno dominador, senhor e possuidor das coisas. Mas estes sacramentos só se distribuem na Igreja e pela Igreja. [...] Ninguém, pois, torna-se dominador ou digno senhor, ou possuidor das coisas, senão sob a Igreja e por ela. (DPE, p. 113-4) Daí se podia deduzir que todo dominium justo só podia derivar do sacerdotium. Sem a regeneração por meio da Igreja não era possível suceder com justiça na herança paterna nem obter o justo domínio sobre as temporalia.70 70 “Ora, [...] o suceder na herança paterna, por ser alguém gerado por um pai, é justiça iniciada, mas o suceder em tal herança, por ser alguém renascido pela Igreja, é justiça perfeita e consumada. E a tal ponto esta 416 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Mas como o príncipe eclesiástico transmitia o justo dominium aos fiéis? Depois da paixão de Cristo, explicava Egídio Romano, caducaram os preceitos legais da lei antiga e passaram a valer aqueles instituídos pelo Cristo redimido (Novo Testamento). A Ecclesia dele havia recebido a universalidade e a tarefa de administrar os sacramentos: aqueles que não tomassem o batismo não alcançariam a salvação.71 A reconciliação com o Senhor, portanto, podia se dar apenas por meio da Igreja, católica, senhora plena e universal, a única a conferir o batismo, porta de todos os outros sacramentos. A dominação universal da Igreja estava descrita na Escritura: Dominarás do mar até o mar, do rio até o fim do universo (Sl. 71: 8). “A terra inteira”, explicava Egídio, “está envolta pelos mares; portanto, dominar de mar a mar é dominar sobre a terra inteira” (DPE, p. 133). Assim, a Igreja tirava do rio, isto é, do batismo, o poder de dominar até as fronteiras do orbe. Mas por que do rio? Com efeito Cristo, batizado no Jordão”, esclarecia o Doutor Fundatíssimo, pelo contato de sua puríssima carne conferiu às águas uma força regenerativa, de tal modo que, a partir de então, as águas tivessem a virtude de, 71 justiça que chamamos de perfeita e consumada é mais fecunda e mais universal que a outra, que, se esta faltar, aquela é tirada. Se alguém fosse gerado carnalmente por um pai e não renascesse também espiritualmente pela Igreja, não poderia possuir com justiça o domínio da herança paterna” (DPE, p. 106). “Ela [a Igreja] recebeu esta universalidade e este sacramento a partir da paixão de Cristo e depois dela. Antes da paixão, corriam as coisas legais e os evangelhos, a ponto de se salvarem os circuncisos e também os batizados, mas, depois da paixão de Cristo, as coisas legais morreram de tal maneira que, a partir de então, ninguém se salva se não for batizado. Por isso se diz que a Igreja foi formada do lado de Cristo, porque os sacramentos têm eficácia a partir da paixão [...]. Quando Cristo padeceu, a Igreja passou a ser universal, de modo que ninguém se salvaria, senão através dos sacramentos dela” (DPE, p. 108). 417 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO atingindo o corpo, lavarem também a alma. Ora, as águas não podem ter esta força e esta virtude a não ser através do batismo feito na forma da Igreja. Cristo, pelo fato de conferir tal virtude às águas, é chamado Senhor de toda terra. A Igreja confere o batismo e nela se realiza o batismo, porque só através do batismo é que estas águas poderiam exercer a virtude de lavar almas humanas e de regenerar homens. Segue-se, pois, que a Igreja, a quem cabe administrar o batismo, e em cuja forma ele é administrado, que ela também tenha do rio, isto é, do batismo, o poder de dominar até os confins da terra; e porque ela exatamente por isso é católica e senhora universal, segue-se também que o universo e todos os que habitam nele sejam seus. A Igreja obteve de Cristo tal forma de batizar, porque tem de Cristo o poder de dominar deste modo. (DPE, p. 134-5) A Igreja era portanto aquele organismo capaz de fazer com que alguém ficasse privado da comunhão dos homens, isto é, do fundamento do qual todas as interações humanas derivavam. Essa excomunhão privava também dos bens: “O excomungado, por estar privado da comunhão dos fiéis, está privado de todos os bens que possui, enquanto fiel. E ficaria ainda muito mais privado, se se tornasse infiel e estivesse entre eles, já que os infiéis são indignos de toda posse e domínio” (DPE, p. 140). Dado que todo direito, incluindo o de propriedade, se baseava na comunhão dos homens, fundamento dos pactos e das leis, aquele que fosse excluído dessa comunhão, e toda sua descendência, ficava necessariamente privado de suas posses, bens e domínios.72 Pois a Igreja também era senhora e mestra de todos o bens temporais. 72 “Já que tudo o que a Igreja ligar sobre a terra será ligado também nos céus, no sentido em que os assim ligados estão privados da comunhão com os outros, e já que sobre tal comunhão se baseiam todos os direitos de propriedade, concluamos dizendo que, pelo poder geral, de ligar, os excomungados, por estarem privados deste fundamento, não devendo comunicar-se com os outros, estão privados de seus bens, posses e domínios, a ponto de não poderem dizer que algo é seu” (DPE, p. 141). 418 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Todas as coisas temporais se colocavam, portanto, sob o domínio e poder da Igreja. “Nem por isso”, avisava Egídio, “pretendemos subtrair ao poder terreno e aos príncipes seculares seus direitos, mas antes conservá-los” (DPE, p. 834). E justificava: É preciso que as coisas temporais se disponham às espirituais; [...] porque, uma vez que estas são transitórias e efêmeras, em nenhuma delas deve ser buscada a felicidade; e uma vez que são bens extrínsecos e que não podem saciar a alma, a nossa felicidade não poderia estar na posse de tais bens. (DPE, p. 84) A felicidade, esclarecia ele baseando-se em Averróis, devia ser buscada nos bens espirituais que podiam habitar a alma e saciá-la. “Logo”, concluía, “se o nosso fim ou a nossa felicidade não deve ser buscado nas coisas temporais, mas nas espirituais, é preciso admitir que as coisas temporais não são boas, a não ser enquanto se ordenam às espirituais” (idem). As posses temporais, portanto, deviam ser consideradas “instrumentos de apoio” úteis à consecução dos bens espirituais. Quando não estavam a serviço desse fim, argumentava ele, as coisas temporais deixavam de ser boas. E, embora continuassem a ser boas em si (dado que tudo o que existia era bom pelo simples fato de existir), não o eram em relação aos homens, já que estes deviam estar corretamente ordenados ao bem supremo espiritual. Daí seguia-se que o príncipe ou qualquer homem que tenha coisas temporais, se não as ordenar às espirituais, essas coisas temporais não lhe serão boas, porque não lhe são para a salvação, mas para a condenação da alma. Por isso, as coisas temporais, de per si, se ordenam às espirituais e devem submissão a estas, servindo-as. E o sumo pontífice que, no Corpo Místico, domina totalmente as coisas espirituais, é manifesto que domina também todas as coisas materiais, uma vez que estas se sujeitam às espirituais. (DPE, p. 85) 419 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Também o poder pertencia ao gênero das coisas boas, dizia Egídio, já que tudo o que vinha de Deus era em si bom. O uso que se fazia dele, contudo, podia não ser bom. Por essa razão, Egídio Romano podia falar num poder ordenado (aquele dos bons) e noutro permitido (o dos governantes maus ou infiéis): essa separação era o que distinguia os que mandavam de iure, isto é, por ordem do Senhor daqueles que dominavam apenas de facto, por meio da coerção e da violência, porque não usavam bem o poder que Deus lhes concedera, o qual, embora justo na raiz, se tornava injusto pelo mau uso. O poder temporal, sustentava Egídio Romano, não vinha diretamente de Deus para o governante terreno, como queriam muitos, mas sim de Deus, causa primeira, para o sumo sacerdote, que, na qualidade de causa intermédia, por sua vez, instituía o poder secular justo.73 E, se os príncipes terrenos estavam sob o dominium do poder eclesiástico, dizia, seguia-se que também as temporalia sobre os reinos seculares estavam sob o senhorio da Ecclesia. E declamava no melhor estilo tomista: Nunca de duas coisas em ato se faz uma coisa, nem de duas em potência, mas uma coisa sempre se faz de uma potência e de um ato, como se demonstra amplamente 73 “Erram os que dizem que o sacerdócio e o império, ou o sacerdócio e o poder real [potestas regia] vieram tanto um como o outro diretamente de Deus, pois, por ordem de Deus, o primeiro rei no seio do povo fiel foi constituído através do sacerdócio. De fato, inicialmente o povo judeu, que era então o povo fiel e ao qual sucedeu o povo cristão, era regido através de juízes, que eram instruídos pelos sacerdotes. [...] A estes juízes, quanto às causas temporais entre as pessoas leigas, sucedem o imperador, os reis e os príncipes terrenos. Era porém o poder sacerdotal e eclesiástico que constituía estes juízes, porque Moisés, retendo para si o poder sobre as coisas que se referem a Deus, com o que se quer significar o poder eclesiástico, constituiu tais juízes, que exerciam o ofício do poder terreno (Ex. 18: 25s) e Samuel (1 Sm 8: 1) constituiu seus filhos como juízes sobre Israel” (DPE, p. 91). 420 CAP. 5 - A HORA DOS REIS na física natural. Se, pois, da alma e do corpo se faz uma coisa, se constitui o homem, é preciso que uma coisa esteja sob a outra, que uma coisa se aperfeiçoe graças a outra, que uma se sujeite à outra. Assim, o corpo está sob alma, se aperfeiçoa graças a ela e está ordenado para servir à alma. (DPE, p. 93) Egídio conferia assim novo sentido à máxima tomista de que “a natureza era apefeiçoada pela graça”: a relação entre as duas deixava de ser de complementaridade e passava a ser de subordinação. E concluía, distanciando-se do mestre: Consta que o sumo pontífice não tem poder sobre as almas separadas dos corpos. A Igreja pode, é verdade, rezar em favor das almas que estão no purgatório, com as quais está em comunhão pela caridade, mas tem poder direto e jurisdição direta só sobre as almas unidas, que presidem os corpos, ao mando das quais os corpos se movem. [...] Segue-se que, assim como a autoridade espiritual se exerce sobre as almas, enquanto presidem os corpos, assim esse poder [espiritual] se exerce de tal maneira sobre as almas que todo o corporal e terreno está sujeito a elas, e o poder espiritual possui de tal maneira seu gládio que o gládio material está sujeito a ele, embora não para o uso, mas à sua disposição. Disso ficam bem claro que todas as coisas temporais [temporalia] estão colocadas sob o domínio [sub dominio] da Igreja. (DPE, p. 94) A Ecclesia, que tinha dominium sobre todas as coisas, embora confiasse a terceiros os assuntos temporais, podia, quando a causa fosse justa, retomar o rigor: Assim também a Igreja, quanto ao domínio [dominium], possui tudo, mas deve ser tão grande a sua preocupação com as coisas espirituais, a ponto de confiar aos outros a preocupação das coisas temporais, para que ela, quanto à preocupação, não tenha bolsa nem alforje, e no que tange a tal preocupação, seja como se nada possuísse. 421 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO [...] Conclui-se, pois, que o rigor do plano de conduta eclesiástica é libertar-se do cuidado e preocupação das coisas temporais, para que possa exercer melhor o cuidado espiritual. Contudo, surgindo causa justa, segundo a lição de Beda, pode pôr-se de lado este rigor, para que a Igreja se preocupe também das coisas temporais. (DPE, p. 95-6) Tal poder de dominar sobre todas as coisas existentes, entretanto, não derivava da pessoa do sumo sacerdote, esclarecia Egídio Romano, mas do cargo (ex officio), pois o pontífice de agora era o mesmo, embora não fosse o mesmo homem.74 Nessa separação residia um importante avanço operado pelo pensamento hierocrático: a diferenciação entre o cargo e seu ocupante.75 A força vinculante das decisões papais não provinha da pessoa do pontífice, mas constituía um atributo da função, cuja autoridade derivava de Deus: por ser o vigário de Cristo na terra, toda consideração de natureza pessoal era excluída e toda jurisdição lhe era devida. Justamente porque o papado constituía uma instituição política, lembra Ullmann, “ era evidente que recorresse à lei e à jurisdição. Não podia existir governo algum dentro da ordem se a validade objetiva de seus decretos e medidas de 74 75 “E assim como Pedro obteve diretamente de Cristo o governo da Igreja, assim também o sumo pontífice de agora tem reconhecidamente tal poder que recebeu diretamente de Deus ou de Cristo, que era verdadeiro Deus. [...] Segue-se disto que de corpo e de alma, com tudo que têm, os fiéis estão sujeitos ao império do sumo pontífice” (DPE, p. 87). “Se o sumo pontífice julga tudo e este julgamento não é apenas devido a uma qualidade pessoal mas devido a seu ofício e por exigência de seu estado”, escrevia Egídio adiante, “segue-se que julga tudo porque tem autoridade e jurisdição em tudo. Mas quem diz tudo, não excetua nada. Então o universo e os que habitam nele, como dizíamos, é todo seu. Tem, pois, jurisdição e poder sobre todos os possuidores e posses, já que os possuidores e as posses estão computados dentro da palavra tudo, e não julgaria todos, a menos que tivesse jurisdição sobre todos” (DPE, p. 137). 422 CAP. 5 - A HORA DOS REIS governo tivessem de depender do caráter subjetivo e pessoal do agente que criave as leis, ou seja, neste caso, de que o papa legislador fosse moralmente uma pessoa boa ou má”.76 Dentro em breve essa distinção eclesiástica seria utilizada para fundamentar os “dois corpos do rei”. Além disso, segundo a ordem do universo, acrescentava Egídio, tudo estava ordenado do imperfeito ao perfeito; assim também as coisas imperfeitas às mais perfeitas. E porque ninguém duvida que as coisas divinas são mais perfeitas que as humanas, e as celestes que as terrenas, e as espirituais que as corporais, nada mais conveniente do que o poder real, que é poder humano e terreno e que atua sobre coisas corporais, sujeitar-se e estar ordenado ao serviço do poder sacerdotal e, principalmente, do poder do sumo pontífice, que é o poder até certo ponto divino e celeste e que atua sobre coisas espirituais. (DPE, p. 88) O poder, definia Egídio, nada mais era do que a qualidade pela qual se dizia ser alguém poderoso. Também os poderes, que podiam ser de quatro gêneros,77 deviam ser ordenados dos inferiores aos superiores,78 do imperfeito ao 76 77 78 ULLMANN, op. cit., 1983, p. 123. “Distinguem-se, pois, quatro gêneros de poderes: um gênero são as forças naturais, outro são as artes, o terceiro são as ciências, e o quarto são os principados e os governos dos homens. E qualquer um destes poderes consiste em certa disposição e proporção, assim o poder natural está proporcionado à produção dos efeitos naturais; o poder artificial é a reta razão ou a proporcionada produção das coisas factíveis artificialmente; o poder científico é a reta razão das considerações especuláveis; e o poder dos principados é a proporcionada e reta razão do governo dos homens” (DPE, p. 98). “E nos três primeiros gêneros [de poder] indicamos três razões e causas da sujeição e da dominação. Nas forças naturais, porque dominam as forças celestes, indicamos como razão e causa a generalidade e a con423 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO perfeito. O principado temporal, do mesmo modo, deveria se sujeitar ao espiritual por três razões: “tanto porque é mais particular, como porque dispõe e prepara a matéria, como porque o poder terreno não se aproxima tanto da perfeição e não a atinge, quanto o poder espiritual” (DPE, p. 100). Como já havia dito Isidoro, emendava ele, a Igreja era chamada de católica, isto é, universal, e por isso o seu poder era mais universal do que o terreno. “Portanto, a Igreja é santa e católica, isto é, universal; e não seria verdadeiramente universal, se não estivesse totalmente à frente de tudo” (DPE, p. 101). A Igreja só podia ser chamada católica, explicava Egídio Romano, se tivesse dominium tanto sobre os fiéis quanto sobre os seus bens. Aos senhores terrenos cabia reconhecer a particularidade de seu governo diante do eclesiástico, e preparar a matéria para o espírito, as temporalia para as spiritualia. Assim, é tarefa do poder terreno fazer justiça sobre essas coisas [temporais], para que ninguém prejudique ninguém, tanto no corpo como nas coisas, e que qualquer cidadão [civis] e qualquer fiel goze dos bens. A tarefa do poder terreno é, pois, preparar a matéria, a fim de que o príncipe eclesiástico não fique impedido de agir nas coisas espirituais, visto que o corpo foi feito para servir à alma e as coisas temporais para serem úteis ao corpo. [...] Conseqüentemente, todo o ofício do poder terreno é governar e reger estes bens exteriores e materiais de tal maneira que os fiéis não se sintam entrevados na paz da consciência e da alma, como também na tranqüilidade da mente. (DPE, p. 103) tração: as forças celestes dominam porque são gerais, e as forças inferiores se sujeitam porque são contraídas e particulares. Nas coisas artificiais indicamos como razão e causa a preparação da matéria, pois a arte de talhar a pedra se sujeita à de construir casas, e a de fazer freios à militar, porque lhes preparam e dispõem a matéria. Nas ciências, indicamos como razão e causa a maior aproximação da perfeição: aquela que atinge mais de perto a perfeição [a Teologia] domina, enquanto que as outras se sujeitam” (DPE, p. 100). 424 CAP. 5 - A HORA DOS REIS O dominium da Igreja sobre as coisas temporais era portanto universal e superior, enquanto o dos fiéis era particular e inferior.79 E assim como a substância corporal se regia pela espiritual, também as coisas temporais se subordinavam ao seu poder, e a força inferior se sujeitava à superior.80 “Portanto como o gládio espiritual pode julgar todas as coisas temporais, tem ele um domínio universal jurisdicional e potestativo sobre as temporais; e porque pode colher de todas as coisas temporais, tem um domínio universal útil e frutífero” (DPE, p. 125). Ora, quem tinha o poder de julgar sobre as coisas superiores, dizia Egídio, podia também com maior propriedade julgar as inferiores, dado que o temporal se ordenava ao espiritual. Por isso, a Igreja, repetidas vezes, interpunha seu gládio espiritual – a censura eclesiástica – contra os usurpadores e aqueles que detinham indevidamente as coisas, principalmente quando estes perturbavam a paz e o bem públicos. Estava fundamentado assim o dominium de iure da Igreja sobre os demais poderes. Era difícil negar, numa época de profunda devoção religiosa, a força da argumentação egidiana. 79 80 “Contudo, deve-se observar que, embora digamos que a Igreja é mãe e dona de todas as posses e de todas as coisas temporais, nem por isso privamos os fiéis de seus domínios e de suas posses, porque, como se esclarecerá abaixo, tanto a Igreja tem tal domínio, como também os fiéis o têm: mas a Igreja tem domínio universal e superior, enquanto os fiéis, particular e inferior. Damos portanto o que é de César a César e o que é de Deus a Deus, porque atribuímos à Igreja um domínio universal e superior das coisas temporais, enquanto que aos fiéis prodigalizamos um domínio particular e inferior” (DPE, p. 110). “Com efeito, quem julga as coisas espirituais, pode muito mais julgar as materiais, pois quem vê e julga as coisas mais subtis, as mais rudes não lhe devem ficar escondidas, nem lhe podem escapar ao juízo. E assim como quem julga as coisas espirituais pode julgar as materiais, assim também quem semeia coisas espirituais, pode colher tanto as carnais como as temporais” (DPE, p. 124). 425 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A conclusão lógica dessas premissas era a completa subordinação dos poderes terrenos à esfera de atuação do poder eclesiástico: Por este motivo todas as leis imperiais e as do poder terreno devem ordenar-se aos cânones eclesiásticos, para que deles obtenham vigor e também solidez. Todas as leis publicadas pelo poder terreno, para que tenham vigor e firmeza, não podem contradizer as leis eclesiásticas, mas antes devem ser confirmadas através do poder espiritual e eclesiástico. A justiça é coisa espiritual, por ser uma certa retidão só perceptível pela mente. (DPE, p. 126-7) A tradicional hierarquia das leis – eterna, divina, natural e humana – que vingara até então era agora acrescida de uma nova ordem, a canônica, que se interpunha entre a natural e a humana, numa hierarquia descendente e sem ruptura. As antigas reivindicações dos papas hierocratas ganhavam desse modo um aparato jurídico e filosófico consistente. O papado era, nesse modelo, um organismo capaz de transformar a pura doutrina em leis obrigatórias para os fiéis. A catolicidade da Igreja, comenta De Boni, “converte-se, assim, de universalidade da salvação em universalidade da posse. O aforisma patrístico ‘Extra Ecclesia nulla salus’ transforma-se em Extra Ecclesia nullum dominium.”81 Esse sistema, contudo, logo seria posto em xeque: João Quidort, por exemplo, daria largos passos na direção de afastar a intermediação da Ecclesia na vida temporal. Também a idéia de um indivíduo autônomo, portador de direitos inalienáveis já dava, antes mesmo de Guilherme de Ockham, os primeiros sinais de vida. Não se pode dizer, contudo, que o poder temporal, para Egídio, não tivesse papel algum: seria, no mínimo, uma redução grosseira da construção egidiana. Embora se subordi81 DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 24. 426 CAP. 5 - A HORA DOS REIS nasse ao sumo sacerdote, explicava Egídio Romano, isso não significava dizer que o poder terreno fosse inútil:82 para que o poder sacerdotal pudesse dedicar-se mais intensamente aos assuntos do espírito, instituiu, para sua conveniência, o poder temporal para agir em seu nome. Os cristãos deviam se subordinar, voluntariamente e de bom grado, tanto ao poder espiritual quanto ao temporal. E isso era necessário para que se pudesse ordenar devidamente o corpo dos fiéis, de acordo com as funções específicas de cada estado, “já que os poderes espirituais não têm diretamente e por si mesmos o juízo de sangue, mas exercem tal juízo por meio de outros ministros e através dos poderes seculares” (DPE, p. 43). A cada um dos poderes cabia tarefas específicas e cada qual julgava de acordo com seus instrumentos: Os poderes espirituais requerem que os sirvamos de mente e de vontade, mas os poderes seculares, se não os servimos de vontade e de mente, forçam-nos pelo juízo de sangue e também pela morte, que é o fim de todas as coisas terríveis, como se diz na Ética a Nicômaco (l. 3, c. 6; 1115a). Os prelados eclesiásticos exercem o poder pela censura eclesiástica e pela excomunhão, nunca pelo juízo de sangue; [...] não que agir assim seja pecado, pois manda o Senhor (Ex. 22: 18), [...] mas porque a Igreja não deve ter mancha, nem ruga, nem inconveniência alguma. Haveria certa inconveniência no fato de que o chefe espiritual exercesse por si mesmo o juízo de sangue. Por isso, tais juízos se exercem pelos poderes seculares. (idem) 82 Esse raciocínio não excluía, contudo, a obrigatoriedade da sujeição dos súditos ao governante temporal: embora, na ordem do universo, o âmbito temporal estivesse subordinado ao espiritual, a esfera secular, quando considerada apenas em si mesma, tinha na figura do príncipe o seu governante máximo, ao qual todos os súditos, fiéis e infiéis, deviam estar submetidos: “Portanto, sob ambos, tanto sob o príncipe bom como sob o mau, podemos progredir: sob o bom, porque por ele somos nutridos, e assim nos aperfeiçoamos e progredimos; sob o mau, porque por ele somos tentados, e temos provações e nos purificamos” (DPE, p. 42). 427 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O poder terreno devia usar seu gládio, portanto, da maneira que conviesse à Igreja, sem intrometer-se jamais nos assuntos espirituais superiores.83 Para demonstrar a convivência entre as diferentes ordens existentes no universo, Egídio recorria à hierarquia dos anjos, que seria semelhante àquela encontrada no mundo dos homens:84 Os anjos estão coordenados e são divididos para nossa salvação e para o nosso bem, nem ficam sobrando para o regime do universo os anjos inferiores por existirem os superiores. Muito mais devem ser distintos os principados e os poderes entre os próprios homens, porque se há anjos distintos e ordenados para o bem dos homens, os próprios homens, para o seu bem, com muito maior razão, devem ser divididos e ordenados. Não vai ficar sobrando o poder e o gládio inferior por haver o poder e o 83 84 “O mesmo acontece no regime e no governo dos homens, que são compostos de ambas as substâncias, espiritual e corporal: aquele poder que é espiritual, é geral e se estende também às coisas corporais, enquanto que aquele que está especialmente ordenado para as coisas corporais, é particular e restrito e, de per si e enquanto tal, não se poderá intrometer no campo das coisas espirituais. Entretanto, pelo fato de existir o poder espiritual, que é geral, não se torna supérfluo o poder terreno, que é restrito e particular, tal como dizíamos no caso das ciências” (DPE, p. 150-1). “O mesmo acontece nesta questão: no governo do mundo e no regime do universo há anjos que, unidos a Deus e nos vestíbulos dele, conhecem a bondade dele, de que maneira quer que se reja o universo; são a primeira hierarquia que contém três ordens: os diletos, os sábios e os que divulgam decisões. Diletos são os serafins, sábios os querubins, e divulgam as decisões aos tronos. [...] Os serafins sendo os diletos de Deus, e porque conhecem primeiro os segredos divinos [...] iluminam os querubins a respeito desses segredos [...]. Por sua vez os querubins, já iluminados pelos serafins e já conhecendo os segredos e as decisões de Deus, iluminam os tronos, para que eles anunciem aos outros e os iluminem a respeito das decisões e dos segredos divinos. Diz-se, portanto, que Deus está sentado sobre os tronos e que promulga neles as suas decisões, porque eles anunciam às hierarquias inferiores as decisões de Deus a respeito do regime do universo” (DPE, p. 156-7). 428 CAP. 5 - A HORA DOS REIS gládio superior, muito embora tudo que pode o gládio inferior, possa também o superior. (DPE, p. 159-60) Nesse modelo nada era supérfluo: o gládio espiritual podia, junto com o material, algo que não poderia sem ele, do mesmo modo que o ferreiro podia algo com o martelo que não poderia sem ele. Pedro havia sido proibido pelo Senhor de usar o gládio material, devendo guardá-lo na bainha. Isso não significava contudo que a Igreja não tivesse o gládio temporal:85 a eficácia da espada espiritual, argumentava Egídio, não era visível aos olhos corporais. Ela contudo existia e feria: “O gládio desembainhado, pelo fato de ser desembainhado, tornou-se visível, e assim considerando, representa o gládio material, que é visível e faz feridas visíveis. Enquanto que o gládio não desembainhado, que por causa disso estava oculto e invisível, representa o gládio espiritual, que não pode ser visto por olhos corpóreos; é a ele que cabe ferir e golpear a alma, cujas feridas os olhos corporais não podem ver” (DPE, p. 173). 3. Da plenitude de poder e da jurisdição do governo eclesiástico Por ser senhora de direito de tudo quanto havia no mundo, residia na Ecclesia – que tinha no sumo pontífice o 85 “A Igreja tem ambos os gládios: Pedro é o porta-chaves do reino terreno e celeste; todo poder que o poder terreno tem, tem também o eclesiástico. Não há nenhum poder no gládio material que não haja no espiritual, mas há no material de um modo que não há no espiritual, porque o gládio material pode exercer diretamente o juízo de sangue, o que o espiritual não pode, isto é, não convém que exerça. Logo, não é que o gládio material possa o que não pode o espiritual, mas pode de um modo que este não pode. Por isso alguns doutores observaram que a Igreja tem ambos os gládios enquanto autoridade primária e superior, e por isso mais a Igreja que o poder terreno é que tem o gládio material, porque ter alguma coisa baseado em autoridade primária e superior é algo mais do que em autoridade secundária e inferior” (DPE, p. 166). 429 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO seu representante máximo – a plenitudo potestatis, dizia Egídio no Livro III. Por isso, pertencia a ela criar leis, publicálas aos povos, explicá-las e interpretá-las.86 Aqueles que diziam ter o imperador o mesmo poder porque “o que apraz ao príncipe tem força de lei”, como estava dito nos Instituta, exortava Egídio, tinham de compreender que havia um gládio sob outro, um principado sob outro. Do mesmo modo, era preciso que as leis se sujeitassem às leis. Pois o poder da Igreja, e portanto o do sumo sacerdote, que a representava, era sem peso, número e medida.87 Mesmo assim, o pontífice devia se impor limites e procurar viver de acordo com as leis estabelecidas, já que convinha àquele que criava as leis observá-las.88 86 87 88 “Ora, a quem pertence instituir leis, pertence também promulgá-las e interpretá-las. Se variam as sentenças dos juízes, seja por causa da condição da lei, ou pela amplitude de sua abrangência ou por causa de sua interpretação, tudo caberá ao sumo pontífice” (DPE, p. 220). Somente o papa detinha todo o poder que havia na Igreja, dizia Egídio. Por isso, “o sumo pontífice ordena em si mesmo, [por]que é número sem número, peso sem peso e medida sem medida. Ele é número sem número quanto às ovelhas que lhe são confiadas, porque não lhes foram confiadas estas ou aquelas, mas foram-lhe confiadas todas. [§] [...] Em segundo lugar, também o sumo pontífice é peso sem peso, se se considerar o modo segundo o qual lhe foram confiadas as ovelhas: foram-lhe confiadas de tal maneira que pudesse administrar os sacramentos da Igreja, que pudesse absolver de todo peso dos pecados. O seu modo de presidir pesa, pois, mais que todo peso dos pecados. Há então nele peso sem peso, porque se fosse um peso ponderado, não pesaria mais que todo peso. [§] [...] Em terceiro lugar, o sumo pontífice é medida sem medida, se se considera a pessoa dele, a quem as ovelhas foram confiadas, porque nele há sem medida o poder no qual está todo poder da Igreja” (DPE, p. 239-40). “Embora o sumo pontífice seja alguém sem limite e freio, um homem acima das leis positivas, contudo ele deve impor-se limites e viver de acordo com as leis estabelecidas, e, a menos que surjam certos casos e certas causas exijam, deve observar as leis que constituiu, porque, como se transmite em outra ciência, quem cria as leis, deve observá-las” (DPE, p. 222). 430 CAP. 5 - A HORA DOS REIS E porque as leis se sujeitavam às leis, Egídio podia afirmar sem maiores problemas que a criação das leis remete, pois, a jurisdição temporal ao sumo pontífice, ou casualmente, nos casos não suficientemente determinados pelas leis; ou não só casualmente, mas considerando certas causas, nas quais as leis não devem ser observadas. Portanto, se há casos não previstos pelas leis, ou porque considerando certas causas as leis não devem ser observadas (casos que pertencem à criação das leis), ou se as leis falam ambiguamente (casos de interpretação), a Igreja exercerá jurisdição temporal baseada na plenitude do poder que nela reside. (DPE, p. 222) Mas em que consistia a plenitude de poder? A essa questão Egídio respondia dizendo que a plenitude existe num agente quando este pode efetuar, sem causa segunda, tudo o que pode com a causa segunda. Se algum agente não tem tal poder, segue-se que não tem pleno poder, porque não tem o poder no qual se concentra todo o poder. [...] no próprio Deus há plenitude de poder, porque tudo o que pode com a causa segunda, pode sem ela, a tal ponto que o poder de todos os agentes se concentra no primeiro agente que é Deus. [...] E embora possa tudo, administra as coisas deixando-as seguir seus próprios rumos. Contudo, às vezes Deus faz milagre ou mesmo milagres, quando age fora do rumo comum da natureza e não segundo as leis comuns dadas a ela. (DPE, p. 223) Do mesmo modo, o sumo sacerdote, quanto ao poder que havia na Igreja, tinha a plenitude de poder,89 podendo sem a causa segunda tudo o que podia com ela. 89 “Para que não fiquem supérfluas as obras de sua sabedoria, Deus age quase sempre de acordo com as leis que deu às coisas, e quase sempre observa as leis para que o efeito dos agentes segundos aja mediante os agentes segundos. [...] Assim também o sumo pontífice, porque lhe cabe estabelecer as leis de como a Igreja deve ser governada, e deve governar 431 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Sendo a causa justa e racional, podia o sumo pontífice usar livremente esse poder. Pois onde existia intenção santa havia também liberdade. Mas, como ao papa cabia criar e dar leis a toda Igreja, ele estava por essa razão acima de tais leis, pois havia nele a plenitude de poder. Era do mundo natural, entretanto, que Egídio tirava seu exemplo: Assim estão assinalados os dois modos de plenitude do poder. Um quando pode sem causa segunda o que pode com a causa segunda, e assim é que Deus pode sem os agentes naturais tudo que pode com eles. Também o sumo pontífice pode sem quaisquer pessoas tudo que poderia com elas. Pelo outro modo, Deus dá leis naturais às coisas naturais como, por exemplo, dá esta lei ao fogo de que esquente, à água que esfrie; há contudo nele a plenitude do poder, porque pode agir fora dessas leis. Do mesmo modo o sumo pontífice dá às pessoas leis positivas e morais; entretanto há nele plenitude de poder, porque pode agir fora destas leis. (DPE, p. 227-8) Embora reconhecesse que o sumo pontífice não se igualava ao “céu sensível”, havia, segundo Egídio, semelhanças entre os dois poderes.90 O senhor temporal, mesmo tendo justo dominium sobre as coisas – obtido somente da Ecclesia 90 a Igreja conforme essas leis, deve permitir que os cabidos façam suas eleições e os prelados exerçam suas ações, e que os demais membros da Igreja realizem seus trabalhos de acordo com a forma que foi dada a eles. Contudo, por motivo racional, pode agir fora destas leis comuns, sem os outros agentes, porque se concentra nele o poder de todos, pois nele está o poder todo de todos os agentes da Igreja, a ponto de se dizer que nele reside a plenitude do poder” (DPE, p. 224). “Podemos referir cinco coisas do céu que podem ser aplicadas ao poder do sumo pontífice; primeiro, o céu quanto ao ser é cheio de forma; segundo, quanto à posição, ou seja, quanto à ordem, está sobre tudo; terceiro, quanto à grandeza, ou à capacidade de conter, contém tudo; quarto, quanto à ação age e influi em tudo; quinto, quanto à passividade, não é tocado por ninguém e não sofre nada de ninguém, uma vez que toca tudo e age em tudo” (DPE, p. 229). 432 CAP. 5 - A HORA DOS REIS por meio do renascimento batismal e da purificação pela confissão –, o tinha de um modo diferente do que o possuía a Igreja: “porque estão [as coisas temporais] sob a Igreja como sob aquela que tem o domínio superior primário, que é principal e universal; e sob o domínio temporal como sob o dono que tem domínio inferior e secundário, que é direto e executório” (DPE, p. 234). Em razão desse domínio superior e primário, dizia Egídio, devia-se à Igreja o dízimo e as oblações de todas as coisas temporais; e, por causa do domínio inferior e secundário, eram devidos aos poderes terrenos outras utilidades e emolumentos provindos das coisas temporais.91 O dominium que a Igreja tinha sobre as coisas, portanto, era superior ao de César. Por isso, o direito de César devia ordenar-se àquele da Igreja. Assim, tanto o domínio útil quanto o domínio potestativo de César sobre as pessoas ou as coisas temporais, dos quais não devia ser privado de forma alguma sem culpa e sem causa, estavam sob a Ecclesia: Fica claro também que nenhuma coisa temporal está sob César que não esteja sob a Igreja, porque nada foge do direito superior e primário desta. E se algum sumo pontífice doasse algum direito, o seu sucessor poderia revogálo, já que tal direito não pode ser confirmado por um superior, uma vez que o papa não tem nenhum superior e o sucessor poderia revogar porque um igual não tem domínio sobre outro igual. Mas a Igreja pode ter algumas coisas temporais sobre as quais César não tem nenhum direito, porque César pode dar à Igreja todo o direito que tem sobre tais coisas, e isso pode ser confirmado pelo 91 “Voltemos pois à questão e digamos que sobre as coisas temporais a Igreja tem o seu direito e César o seu, e ambos os direitos são de algum modo úteis e de algum modo potestativos. [...] Com efeito, depois que são dados à igreja os dízimos, tributadas as oblações e apresentadas as coisas que se devem às igrejas, o resto é de César, isto é, do senhor temporal. Assim, portanto, se dá à Igreja o que é da Igreja e a César o que é de César” (DPE, p. 235). 433 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO papa, de modo que o sucessor de César não poderá revogar, porque César, ou qualquer senhor secular, agiria acima do seu âmbito, ao querer revogar o que foi confirmado pelo papa. (DPE, p. 237 – grifos meus) Os futuros monarcas absolutos disporiam de material suficiente, mas sobretudo autorizado, para se inspirar. Egídio reivindicava para o pontífice, portanto, uma plenitudo potestatis que continha todos os poderes sacerdotais e reais. O poder que a ele não se submetesse não seria exercido legitimamente. A noção de dominium deslizava, portanto, da indicação de posse, típica do direito privado,92 para a de superioridade numa relação entre pessoas. Senhorio, em sentido estrito, podia referir-se, segundo Egídio Romano, tanto à propriedade – quando a coisa material se encontrava sujeita a um senhor – quanto ainda, em sentido amplo, à sujeição de um homem a outro – quando se podia falar da autoridade política. Em qualquer caso, posse material ou relação de comando, Egídio apontava como indispensável a condição de legalidade. Pois o exercício desse poder fundava-se num direito. Esse direito ao dominium podia ser obtido apenas por meio da graça divina, que operava pelos sacramentos conferidos pela Ecclesia, mediadora entre Deus e os homens e, portanto, dominadora universal. Como conseqüência, era possível dizer que os infiéis jamais poderiam gozar de poderes nem autoridade legítimos: se detinham algum, era então de maneira ilegítima e por usurpação. Tal dominium tampouco se obtinha por herança ou conquista, mas apenas por meio 92 Dominium, no direito romano, tanto podia indicar a posse, genericamente, quanto designar formas de propriedade, como o dominium ex iure Quiritium, a propriedade quiritária, direito exercido por um romano sobre um imóvel romano ou itálico. Cf. CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Rio De Janeiro: Editora Rio, 1977. p. 229-30. 434 CAP. 5 - A HORA DOS REIS da regeneração, que supunha o batismo. A autoridade de operar os sacramentos, matéria do espírito, derivava dos poderes de “atar e desatar” conferidos a São Pedro. Por essa razão podia o sumo pontífice, detentor de iure das duas espadas, instituir o poder terreno: como sumo sacerdote delegava o cuidado do gládio material ao “ministro temporal”. O poder como tal, mostrava Egídio, diferenciava-se de sua execução. A fórmula evangélica da sagração de São Pedro (“tudo que ligares na terra será ligado no céu, tudo que desligares na terra será desligado no céu”) era invocada, mais uma vez, para afirmar a jurisdição tanto religiosa quanto secular da Santa Sé. O papa, portanto, cujo poder derivava diretamente de Deus, era a fonte autêntica de todos os poderes inferiores, já que nenhum outro era mais perfeito do que ele. Pelo mesmo motivo podia o bispo de Roma prescindir das leis, se assim o aconselhasse a situação. Deus, quando operava milagres, argumentava Egídio, às vezes deixava de lado as leis naturais. Da mesma forma, podia o pontífice dispensar da regra positiva e ir além dela. A jurisdição papal, flexível e modificável, observa Ullmann, estendia-se a todo o mundo: fundamentava-se assim juridicamente o princípio da supremacia universal da Ecclesia sobre a comunidade civil.93 Essa combinação do supremo poder temporal e espiritual na pessoa do dominus mundi, que, como recorda Canning, adquiria sentido prático no governo pontifício exercido sobre o Patrimônio de São Pedro, acabaria inaugurando o Estado moderno, especialmente aqueles dos monarcas absolutos.94 Pois, também no modelo de Egídio, a instituição eclesiástica constituía mais do que um mero corpo místico ou 93 94 Cf. ULLMANN, op. cit., 1983, p. 121-2. Cf. CANNING, J. A state like any other? The fourteenth-century papal patrimony through the eyes of roman law jurists. In: WOOD, Diana. (Ed.) The Church and sovereignity c. 590-1918: essays in honour of Michael Wilks. Oxford: Blackwell, 1991. p. 245-60. 435 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO sacramental: era um corpo governamental que tinha no sumo pontífice o seu princeps. Suas decisões tinham implicações terrenas bastante definidas, já que constituía a única fonte legítima de organização da vida civil dos cristãos neste mundo, além de monopolizar a garantia da sua salvação no mundo post mortem. “Ao tentar espiritualizar o mundo, apelando para uma concepção agostiniana de sociedade”, comenta De Boni, “Egídio acabou mundanizando a Igreja, esvaziando o conceito de justiça e politizando os sacramentos”.95 Conscientemente ou não, Egídio Romano erguia com a sua teoria mais um pilar no vigoroso edifício que constituiria a soberania no Estado territorial moderno. IV JOÃO QUIDORT E OS PRINCÍPIOS DA MONARQUIA CONSTITUCIONAL A resposta imediata ao tratado de Egídio Romano foi escrita por João Quidort ou João de Paris. Retomando a noção do rei como “um imperador dentro de seu reino”, João Quidort escrevia ao mesmo tempo contra os defensores do sacerdotium e contra os do imperium. Do confronto entre esses dois universalismos, nascia, depois de um longo processo de gestação, o poder político secular propriamente dito, tal como manifesto nas monarquias cada vez mais nacionais. João Quidort, entretanto, embora partidário do rei, não era um defensor incondicional da causa real: às pretensões absolutistas do monarca francês Filipe IV o autor opunha o populus, o novo intermediário tanto do poder temporal quanto do eclesiástico, como já havia ensinado Tomás de Aquino. 95 E termina: “Dois séculos mais tarde, Lutero, outro monge agostiniano, deverá fazer o caminho oposto, na tentativa de reespiritualizar a Igreja”. In: DE BONI. Introdução. In: DPE, p. 25. 436 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Marsílio de Pádua, por exemplo, faria amplo uso desta recente inovação conceitual. Um dos fatores que certamente contribuíram para essa nova abordagem sobre a fonte do poder foi a adoção sistemática, por João Quidort, de argumentos estritamente lógicos, princípio interpretativo que dificultava grandemente a proliferação da uma eclesiologia estrito senso. Formado em artes pela Universidade de Paris, João Quidort, nascido provavelmente em 1270, esteve ativamente envolvido nas disputas intelectuais de sua época. Iniciou sua carreira entre os dominicanos, como teólogo mendicante, e logo se tornou um expoente da ordem. Autor de inúmeros tratados e comentários utilizados por seus confrades, como o De principio individuationis e o Tractatus de formis, João de Paris só foi elevado à cátedra de teologia em 1304.96 No ano seguinte tornou público seu tratado sobre a eucaristia, o Determinatio de modo existendi corporis Christi in sacramento altaris, escrito que lhe rendeu uma acusação de heresia e acabou sendo julgado por uma comissão de prelados, da qual fazia parte, entre outros, Egídio Romano, com quem ele se dabatera publicamente anos antes. Depois de ter seu trabalho condenado e censurado pela comissão, e de ter sido afastado do magistério, João Quidort apelou ao sumo pontífice. Seu processo terminou sendo examinado pelo papa Clemente V (1304-14), a quem ele solicitara nova audiência. Quando estava prestes a ser recebido pelo bispo de Roma, João Quidort faleceu, em setembro de 1306. Conhecido também, por sua aparência, como surdus, ou ainda praedicator monoculus, João Quidort havia partici96 Para uma análise detalhada da obra de João Quidort, cf. GRABMANN, M. Studien zu Johannes Quidort von Paris. In: Sitzungsberichte der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, Phil.-philologische und historische Klasse, 3. Abhandlung, München: Verlag der Bayerischen Akademie der Wissenschaften, 1922. 437 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO pado de vários debates públicos que envolviam a causa real e a papal: defendeu o mestre Tomás de Aquino das críticas dos franciscanos e também o rei francês Filipe IV quando da querela com Bonifácio VIII. Em 1303 João Quidort assinara, em conjunto com outros colegas residentes no convento de SaintJacques, um documento apoiando a convocação de um concílio geral da Igreja para julgar o pontífice morto. Participou ainda da elaboração de textos anônimos, como aquele surgido no meio acadêmico francês por volta de 1302, a Quaestio in utramque partem, no qual se podia identificar inúmeras passagens assumidas por João Quidort em seu tratado De regia potestate et papali. Também é atribuído a ele o texto anônimo Quaestio de potestate papae (ou Rex pacificus Salomon),97 escrito provavelmente no auge do conflito entre o papa e o rei.98 Sendo ou não de sua autoria o Rex pacificus, é de todo modo sabido que João Quidort, intelectual engajado e apreciador da coragem cívica, ocupou-se da redação de vários textos desafiadores da plenitudo potestatis papae in temporalibus. Consultado pelo rei sobre o assunto, quando o conflito com o sumo pontífice ainda não apontava para um desfecho trágico, João Quidort produziu seu tratado político mais contundente, intitulado Sobre o poder régio e papal, publicado no final do 97 98 Paul Saenger, num artigo polêmico, sustentou, a partir de um manuscrito encontrado na Bodleian Library, em Oxford, ser esse tratado de autoria de João Quidort. Cf. SAENGER, P. John of Paris, principal author of the Quaestio de potestate papae. Speculum, v. 56, n. 4, oct. 1981. Outros estudos respeitáveis, no entanto, defendem a produção coletiva do texto, como era comum à época. Cf. SCHOLZ, Richard. Die Publizistik zur Zeit Philipps des Schönen und Bonifaz’ VIII. Sttutgart: Verlag von Ferdinand Enke, 1903. p. 252-75. Para uma abordagem do conflito e do papel do tratado, cf. GARFAGNINI, G. C. Il Tractatus de potestate regia et papali di Giovanni da Parigi e la disputa tra Bonifacio VIII e Filipo il Bello. In: Conciliarismo, stati nazionali, inizi dell’Umanesimo, Atti del XXV convegno storico internazionale. Spoleto: Centro italiano di Studi Sull’Alto Medioevo, 1990. p. 147-80. 438 CAP. 5 - A HORA DOS REIS ano 1302, contra as pretensões absolutistas tanto do monarca franco quanto do bispo de Roma, que teria repercussões significativas para o pensamento político posterior. O texto era sucinto e, apesar de denso, extremamente claro. João de Paris recorria, para fundamentar seus argumentos, tanto aos corpos filosóficos disponíveis – entre outros, aos escritos de Aristóteles, Cícero e Tomás de Aquino – como ainda a passagens bíblicas e textos jurídicos. Como todo filósofo medieval, recorda De Boni, João Quidort tomava a palavra das Escrituras como sagrada, atribuindo-lhes uma autoridade primária. Sua inovação, contudo, estava na maneira como a interpretava: “O realismo aristotélico”, escreve De Boni, leva-o a procurar, em primeiro lugar, o sentido literal do texto, cotejando-o geralmente com outras passagens bíblicas, e apresentando a leitura que dele foi feita pela patrística. [...] Na linha da exegese tomista, João Quidort nega aos argumentos alegóricos e místicos qualquer valor probatório [...]. Com isto, por primeiro, leva os resultados da nova exegese para o campo da disputa política, e invalida todo o discurso baseado em recursos alegóricos bíblicos como os dois luminares criados por Deus, ou os dois gládios aos quais refere-se Lc. 22: 38.99 1. Da força da palavra e o poder das armas João Quidort apontava já no Proemium o que considerava serem os dois erros cometidos pelos que pretendiam opinar sobre o poder das autoridades eclesiásticas: o equívoco dos valdenses; e o dos herodianos.100 Os primeiros erravam, dizia João Quidort, quando procuravam sustentar, com 99 DE BONI, L. A. (Ed.) Introdução. In: QUIDORT, J. Sobre o poder régio e papal. Petrópolis: Vozes, 1989. p. 16-7 100 Cf. QUIDORT, João. Sobre o poder régio e papal (SPRP). Ed. L. A. DE BONI. Petrópolis: Vozes, 1989. Todas as citações em português constantes no 439 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO base nas Escrituras, ser vedados ao papa a posse de bens materias e também todo e qualquer domínio temporal. O erro oposto, esclarecia o autor, era aquele cometido pelos herodianos, que, ao ouvirem dizer que Cristo, o rei, havia nascido, supuseram que ele seria um rei terreno. Desse erro proviria a opinião de alguns contemporâneos, segundo a qual o pontífice, enquanto representante de Cristo na terra, possuiria dominium e jurisdição (iurisdictionem) sobre todas as coisas temporais101 (temporalia). O caminho correto para a consideração da matéria, sustentava João Quidort, residia na adoção de uma via media,102 isto é, de um meio-termo entre essas duas posições: aos prelados da Igreja não é proibido ter a posse e a jurisdição nas coisas temporais, contra a primeira opinião; mas isto não cabe a eles de per si, em razão de seu estado e por serem vigários de Cristo e sucessores dos apóstotexto foram retiradas dessa edição. Utilizou-se ainda como referência e para fins de consulta a consagrada edição crítica bilíngüe (alemão-latim) de BLEIENSTEIN, Fritz (Hrsg.). Johannes Quidort von Paris: Über königliche und papstliche Gewalt (De regia potestate et papali). Stuttgart: Ernst Klett Verlag, 1969. Para consulta e referências, cf. tb. o trabalho clássico de LECLERQ, Jean. Jean de Paris et l’ecclésiologie. Paris: J. Vrin, 1942. 101 “O erro oposto foi o de Herodes que, ouvindo dizer que Cristo, o rei, havia nascido, supôs que este seria um rei terreno. Provém evidentemente deste erro a opinião de alguns modernos, [...] afirmando que o senhor papa, como representante de Cristo na terra, possui o domínio bem como a jurisdição sobre os bens temporais dos príncipes e barões. Dizem também que este poder sobre as coisas temporais o papa o possui em proporção maior que o príncipe, pois o papa o tem como autoridade primária, diretamente de Deus, enquanto o príncipe o tem mediatamente de Deus, através do papa” (SPRP, p. 42). 102 Uma rica e longa discussão sobre a via media em João Quidort e no período e sua relação com o nacionalismo francês e com o imperialismo gibelino pode ser encontrada em RIVIÈRE, Jean. Le problème de l’église et de l’état au temps de Philippe le Bel. Paris-Louvain: Honoré ChampionSpicilegium sacrum lovaniense, 1926. Esp. p. 272-340. 440 CAP. 5 - A HORA DOS REIS los, e sim por concessão ou permissão dos príncipes, quer porque estes por devoção lhes oferecem algo, quer porque de algum outro modo o obtiveram. (SPRP, p. 43-4) João Quidort invertia dessa forma a proposição de Egídio Romano: não era o pontífice quem concedia as temporalia aos poderes temporais, e sim os governantes seculares, que por sua generosidade, ou ainda para sua conveniência, permitiam ao poder eclesiástico ter dominium e jurisdição sobre certas coisas terrenas. Depois de esclarecer que, com suas opiniões, não pretendia aviltar nem a fé nem os bons costumes, e menos ainda a “reverência devida à pessoa e à posição do sumo pontífice”, João Quidort passava a tratar da natureza e origem dos dois poderes, o real e o papal (cap. I-VI). Seu primeiro passo consistia em definir o que denominava regnum: “reino é o governo de uma multidão perfeita, ordenado ao bem comum e exercido por um só indivíduo”103 (SPRP, p. 44). Esse governo monárquico de uma comunidade humana auto-suficiente que visava aos interesses do coletivo104 era derivado, segundo João de Paris, do direito natural e do das gentes. 103 No original: “Regnum est regimen multitudinis perfectae ad comune bonum ordinatum ab uno”. In: QUIDORT. De regia potestate et papali. Ed. Bleiensten, op. cit., p. 75. 104 “Nesta definição o ‘governo’ está como gênero; ‘multidão’, porém, acrescenta-se para diferenciá-lo do regime no qual cada um governa-se a si mesmo, quer pelo instinto natural, como nos brutos, quer pela própria razão, como naqueles que levam vida solitária. ‘Perfeita’ é colocada para diferenciá-lo da multidão doméstica, que não é perfeita, porque não é suficiente a si mesma a não ser por pouco tempo, e não por toda a vida, como a cidade, conforme diz o Filósofo (Política, l. 1, c. 2; 1252b). ‘Ordenado para o bem da multidão’ é dito para distingui-lo da tirania, da oligarquia e da democracia, nas quais [...] o governante procura apenas seus próprios interesses. Por um só indivíduo é dito para diferenciá-lo da aristocracia [...] [e] da policracia [...]. Somente é rei aquele que domina sozinho, como diz o senhor através de Ez. 34: 23: Meu servo Davi será rei sobre todos e seu único pastor” (SPRP, p. 44). 441 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Partindo da premissa aristotélica de que o homem era um animal naturalmente político ou civil, João Quidort podia afirmar ser-lhe necessária a vida em comunidade. Mas não aquela existente na família ou na aldeia, e sim a da cidade ou do reino. E, para que não houvesse dispersão dos objetivos, essa unidade política devia ser governada por uma única autoridade capaz de ordenar a todos para o bem comum.105 E justificava: Esta unidade de governo é, pois, necessária, visto que o próprio não é igual ao comum: segundo o que é próprio, diferenciam-se os homens entre si, segundo o comum, unem-se. As coisas, porém, que são diferentes, possuem também causas diferentes, pelo que é necessário que, além das forças que movem para o bem próprio de cada um, haja também algo que mova ao bem comum de muitos. (SPRP, p. 45) Tanto no interesse da unidade do poder, caso em que a virtude era maior, quanto no da garantia da paz, explicava o autor, a monarquia constituía a forma excelente de governo político. Além disso, vemos que na ordem natural todo o governo tende a reduzir-se à unidade, como, por exemplo, no corpo misto, onde há um elemento dominante; no corpo humano heterogêneo, um é o membro principal; no conjunto do homem, a alma conserva a unidade de todos os elementos. Também os animais gregários, como as abelhas e os grous, aos quais é natural viver em sociedade, submetem-se naturalmente a um único rei. (SPRP, p. 45-6) 105 “[...] é necessária ao homem a vida em multidão, e em tal multidão que lhe seja suficiente à existência, o que não é o caso da comunidade doméstica ou da aldeia, mas só da cidade ou do reino. [...] Contudo, toda a multidão, na qual cada um persegue seu próprio interesse, acaba por dissolver-se e dispersar-se em diversas direções, a não ser que seja ordenada para o bem comum por uma só pessoa, a quem foi confiado o cuidado pelo bem comum, do mesmo modo como o corpo do homem se decomporia, se nele não existisse uma certa força comum, que visasse ao bem de todos os membros” (SPRP, p. 45). 442 CAP. 5 - A HORA DOS REIS E, porque o homem era um animal civil, ou político e social (animal civile seu politicum et sociale), podia-se dizer que um tal governo era derivado do direito natural (a iure naturali). Mas essa passagem da vida selvagem para a vida em comunidade sob um único governante não havia se dado pela adesão livre e imediata de todos, e sim por um processo de convencimento racional, como já havia ensinado Cícero: E como os homens, pela comunidade das palavras, não conseguiam passar da vida animal para a vida em comum correspondente à sua natureza, como foi visto, então alguns homens, que faziam maior uso da razão e sofriam sob a falta de rumo de seus semelhantes, empreenderam a obra de, através de argumentos persuasivos, convencer aos demais a partir para uma vida comum ordenada, sob a direção de um único chefe, conforme narra Cícero. Os que concordaram foram ligados por certas leis relativas à vida em comum, que aqui são chamadas de direito das gentes. Assim fica claro como este regime procede tanto do direito natural como do direito das gentes. (SPRP, p. 46 – grifos meus) Nederman chama atenção para a idéia de que vários dos pensadores medievais tardios tendiam a fundir duas tradições, a aristotélica e a ciceroniana, quando precisavam explicar a transformação do homem numa criatura comunitária. A utilização do pensamento ciceroniano como forma de complementar as noções aristotélicas, esclarece Nederman, justificava-se porque Cícero deixava lugar para a noção cristã da pecaminosidade humana, enquanto de Aristóteles se retinha o princípio básico de que as relações sociais e políticas eram naturais aos seres humanos.106 106 Cf. NEDERMAN, C. Nature, sin and the origins of society: the ciceronian tradition in medieval political thought. Journal of the History of Ideas, v. 49, n. 1, p. 3-26, jan-mar. 1988. 443 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO João Quidort, por exemplo, depois de constatar a naturalidade da condição humana e da tendência à vida numa comunidade auto-suficiente, empenhava-se em estabelecer a relação entre o bem particular e o bem-estar da comunidade. Em Aristóteles, o fim do indivíduo coincidia com o fim do coletivo, a boa vida segundo a virtude. A natureza se realizava somente dentro da totalidade cívica, a polis. Já o homem descrito por João Quidort, entretanto, era entendido nos termos do cristianismo tradicional: isto é, como um ser egoísta e auto-interessado, fruto da queda da humanidade em pecado, cuja preocupação primária consistia na perseguição do bem-estar pessoal e da salvação. Na ausência de um estímulo externo, os homens adotavam um estilo de vida apropriado à sua condição depravada e pecadora e viviam num estado animalesco comparável ao das bestas. Essa era a situação dos seres humanos depois do pecado original, quando renunciaram à fraternidade do paraíso e se voltaram para uma existência baseada apenas nos próprios benefícios. A fala, dom comum a todos, não era capaz de unir, sozinha, tais seres em comunidade. Pois a natureza não comunicava por meio dela seus princípios inerentes de movimento: não havia a garantia de que os homens iriam necessariamente reunir-se somente porque esse era um traço de sua natureza. Como a natureza humana se tornara defectiva pelo pecado original, a vida coletiva só pôde ter lugar quando alguns homens, mais sábios e racionais, que “sofriam sob a falta de rumo de seus semelhantes”, procuraram conduzi-los, por meio de argumentos persuasivos, para a vida coletiva ordenada sob um governante. Pois, se os homens individualmente não se propunham a obedecer às regras do bem viver em comum, era preciso que se nomeasse um guardião da utilidade pública. Ou seja, apesar de enfraquecido pelo pecado e pouco disposto à benevolência para com os semelhantes, o homem retinha a capacidade de convencer os seus iguais a perseguir voluntariamente seus objetivos particulares por meio da instituição de um administrador do bem comum. 444 CAP. 5 - A HORA DOS REIS A adesão a essa comunidade política, portanto, não era inevitável, apesar da aptidão humana para tal, e sim requeria uma indução ativa. O reconhecimento da necessidade de um governo dependia assim de uma apresentação convincente – baseada em argumentos razoáveis – dos benefícios da lealdade ao princípio da utilidade pública e sua encarnação real. Por isso também, a instituição de um governo não podia ser vista como uma imposição forçada da coerção sobre a multidão. Aqueles que haviam aceitado a argumentação de seus pares passaram a estar ligados por certas leis gerais relacionadas à vida comum, “leis estas que não eram evidentes por natureza – que não pertenciam, portanto, ao direito natural –, mas que formaram o fundamento do que, em linguagem posterior, seria chamado pacto social, e que, na terminologia medieval, provinham do direito das gentes: aquelas normas [...] que permitem o consenso entre todos e possibilitam a vida em comum”.107 A autoridade pública era instituída assim com o objetivo de servir de freio aos aspectos auto-interessados da criatura humana. O governo do rei só era legítimo quando estabelecido por um processo consensual, segundo o qual os homens concordavam em serem governados dentro dos limites estabelecidos pelas regras do bem comum. Mas, como os homens não respeitavam as regras comuns por vontade própria, o monarca, que incorporava o bem público, devia ser dotado de poder coercitivo, de modo que pudesse impor a necessitas ao coletivo.108 João Quidort partia da societas perfecta de Tomás de Aquino, mas acabava construindo muito mais a multitudo nominalista, como já apontou De Boni: 107 108 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 18. Sobre os temas da coerção e do consenso em fins da Idade Média, cf. MONAHAN, A. P. Consent, coertion and limit: the medieval origins of parliamentary democracy. Leiden: Brill, 1987. Cf. tb. NEDERMAN, op. cit., 1988, p. 16 et seq. 445 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O nominalismo, defrontando-se com a economia monetária e a acumulação de capital, faz com que a naturalidade tomista ceda terreno ao positivismo contratual. Se conserva a noção de bem comum e de eqüidade na distribuição dos bens, como fundamento da ordem social, passa, apesar disto, a considerar que a aquisição dos bens e a defesa da propriedade são o motivo pelo qual foi instituído pelo povo um príncipe.109 Mas a vida do homem não visava apenas a um fim natural – o viver segundo a excelência moral –, continuava João Quidort, e sim também a um outro sobrenatural, a vida eterna, fim último de toda multidão (tota multitudo) que vivia segundo a virtude. Por isso, era preciso que existisse um outro ser capaz de dirigi-la na direção da virtude divina.110 Pois esta não poderia ser alcançada pela simples força da natureza humana, cujo controle cabia ao rei, mas apenas por meio daqueles responsáveis pela condução das coisas sagradas, isto é, os sacerdotes, ministros de Cristo e administradores dos sacramentos.111 Por essa razão, dizia o Surdo, o sacerdotium podia ser definido como aquele “poder espiritual confe109 DE BONI, L. A. João Quidort: o tratado De regis potestate et papali e o espaço para o poder civil. Veritas, Porto Alegre, v. 38, n. 150, p. 288-9, jun. 1993. 110 “Por isto, é necessário que exista algum indivíduo que dirija a multidão para este fim. Se fosse possível atingir tal fim pela força da natureza humana, pertenceria necessariamente ao ofício do rei terreno orientar os homens para ele, pois chamamos de rei àquele a quem foi confiado o cuidado supremo do governo nas coisas humanas. Mas como o homem não consegue a vida eterna pela virtude humana, mas pela divina [...] levar ao fim sobrenatural não é obra de governo humano, mas de governo divino. [§] Este governo pertence, portanto, àquele rei que não é somente homem, mas também Deus, Jesus Cristo, que faz dos homens filhos de Deus e assim os introduz na vida eterna, sendo por isto chamado rei” (SPRP, p. 47). 111 E adiante: “como Cristo haveria de subtrair da Igreja sua presença corporal, foi necessário instituir alguns auxiliares, que ministrassem aoshomens estes sacramentos, auxiliares estes que são chamados de sacerdotes, porque dão coisas sagradas, ou são guias (duces) sagrados, 446 CAP. 5 - A HORA DOS REIS rido por Cristo aos ministros da Igreja para dispensarem os sacramentos aos fiéis” (SPRP, p. 48). A Igreja, explicava João Quidort, havia sido instituída para reparar aquela injúria causada ao Senhor quando do pecado comum da humanidade. Cristo, oferecendo-se em sacrifício a Deus, tinha removido, por meio de sua morte, o pecado original, obstáculo universal à salvação espiritual do homem. Depois disso, foi necessário introduzir outros remédios, como os sacramentos, para que os benefícios de Cristo pudessem ser aplicados a todos os homens. Tais sacramentos, argumentava ele, deviam pertencer à ordem dos sentidos, de modo que pudessem encontrar as necessidades da natureza humana. Pois apenas por meio das coisas sensíveis podia o homem ser levado ao entendimento das coisas espirituais e intelectuais. Por essa razão, foi necessário instituir ministros que administrassem esses sacramentos. Tais ministros eclesiásticos, voltados para o culto divino, ordenavam-se a um único superior, seu chefe supremo.112 Já os fiéis leigos não têm uma determinação de direito divino que, nas coisas temporais, os coloque sob um só monarca supremo. Pelo contrário, por um instinto natural, que provém de Deus, são levados a viver na comunidade civil e, para bem viver em comum, elegem chefes, que variam em quantidade segundo o número das comuou docentes de coisas sagradas, pelas quais são intermediários entre Deus e os homens” (idem). 112 Ao identificar o governo civil à ordem natural e o eclesiástico à graça, João Quidort encontrava uma justificativa para a relativização do governo civil, esclarece De Boni: “Por uma determinação divina – não por exigência da razão – a unidade dos homens na mesma fé deve ser protegida e garantida por uma unidade na direção da comunidade dos fiéis, e por este motivo o povo cristão tem como dirigente maior na terra o sucessor de Pedro na sé de Roma. Já a organização política dos homens fundamenta-se em princípios da razão, não da revelação, e a razão não apresenta nenhum argumento em favor da unidade dos homens sob um único governante”. Cf. DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 25. 447 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO nidades. A colocação de todos sob um único monarca supremo, nas coisas temporais, não se fundamenta nem na inclinação natural, nem no direito divino, e nem lhes convém da mesma forma como aos ministros eclesiásticos. (SPRP, p. 49) Para justificar a diversidade das formas de governo terrenas, João Quidort assumia a argumentação aristotélica acerca da variedade das constituições políticas e, tal como o Filósofo, explicava-a em termos “antropológicos”. Mas esse seu enunciado precisava dar conta de um elemento adicional, a ordenação ao sobrenatural, estranha ao Estagirita. Para isso, recorria ao argumento tomista da unidade do gênero humano: 1. Nos homens há uma grande diversidade quanto aos corpos, mas não quanto às almas, visto que todas estão constituídas no mesmo grau de ser, devido à unidade da espécie humana. Do mesmo modo, devido às condições geográficas e diferenças raciais [complexionum diversitatem], o poder secular possui maior diversidade que o espiritual, que não varia tanto nestes assuntos. Daí, pois, não ser necessária a mesma diversidade em um e em outro. (SPRP, p. 49) O segundo argumento utilizado por João Quidort para sustentar a multiplicidade de comando no que respeitava às coisas temporais repousava num certo realismo político: a dificuldade da imposição do gládio material, que supunha a força sobre povos distantes, enquanto ao poder espiritual era mais fácil tal controle dado serem as suas penas somente verbais: 2. Não é tão fácil a um só dominar [ad dominandum] todo o mundo nas coisas temporais, assim como um só é suficiente para dominar nas espirituais. O poder espiritual pode facilmente transmitir a todos, próximos e distantes, as suas penas, por serem elas verbais. Já o poder tempo448 CAP. 5 - A HORA DOS REIS ral não pode fazer que com facilidade o peso de seu gládio, por ser manual, possa ser sentido nos que estão distantes. De fato, é mais fácil à palavra que à mão atuar à distância. (SPRP, p. 49-50 – grifos meus) Hobbes, Locke e outros tantos pensadores políticos ecoariam por séculos os termos dessa formulação. Por fim, para que a unidade da fé não fosse destruída, era necessário que houvesse nas coisas espirituais uma só autoridade superior cujas sentenças obrigassem a todos os fiéis.113 Já a vida política não supunha a convivência de todos os seres humanos numa única comunidade política comum a todos: Devido à diversidade de climas, de línguas e de condições dos homens, pode haver diversos modos de viver e diversas comunidades políticas, e o que é virtuoso em um povo não o é noutro, como o Filósofo diz das pessoas singulares, ao anotar que algo pode ser demasiado para um e pouco para outro. (SPRP, p. 50) Por todos os argumentos apresentados, portanto, não era possível deduzir nem do direito natural nem do direito divino a necessidade de um governo universal – como o do imperium – sobre as coisas terrenas, insistia o Pregador. Com base nesse raciocínio, João Quidort opunha-se às pretensões de domínio temporal tanto do imperador quanto do sumo pontífice. E recorria a Agostinho para sustentar que a república (res publica) era mais bem governada, e de modo mais pacífico, “quando as fronteiras do reino de cada um coincidiam com as de sua cidade” (SPRP, p. 50). A idéia do Estado 113 “Então, para que a unidade da fé não seja destruída pela diversidade das controvérsias, é necessário, como ficou dito, que nas coisas espirituais haja uma só autoridade superior, por cuja sentença estas controvérsias sejam dirimidas” (SPRP, p. 50). 449 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO territorial moderno já ganhava com nitidez os seus contornos,114 nesse momento bastante bem delineados em unidades concretas como a França, Inglaterra, Espanha e Portugal, entre outras. A comunidade política assim organizada não se opunha, segundo João Quidort, à religiosa, mas simplesmente desempenhava funções diferentes e operava com instrumentos distintos daqueles encontrados na ordem natural, que em si mesma tinha um fim: o viver segundo a virtude. Essa tarefa da autoridade temporal englobava a possibilidade de administrar o bem comum de maneira justa, independentemente do recurso a regras ou preceitos divinos. E, como tal gestão era racional, fundada em argumentos razoáveis aceitos no processo de convencimento, todo discurso que não se fundamentava numa racionalidade mundana podia ser re114 Ullmann chama atenção para um dado relevante: segundo ele, o componente “impessoal” da noção de soberania, isto é, aquele que se refere à soberania externa, espacialmente delimitada por fronteiras bem demarcadas, foi assumido oficialmente pelo papa Clemente V, em sua bula Pastoralis cura, de 1314. Nela o pontífice fazia a defesa de Roberto de Nápoles, rei da Sicília, afirmando a jurisdição do monarca sobre seu território e liberando-o de responder à acusação de crime de lesa-majestade contra o imperador Henrique VII. Os argumentos utilizados na bula para sustentar a autonomia territorial do rei siciliano não vinham da imaginação do pontífice, esclarece Ullmann, e sim da antiga lei canônica, constante nas compilações legais da Ecclesia. A base da argumentação papal, segundo o autor, repousava na lei diocesana – oriunda por sua vez do antigo direito público romano – que regulamentava a jurisdição dos bispos em suas dioceses de acordo com o princípio territorial: seus domínios se estendiam aos limites geográficos de cada diocese. A determinação era antiga, lembra Ullmann, e havia sido sancionada no I Concílio Ecumênico de Constantinopla, em 381. Agostinho, que certamente conhecia as resoluções da reunião provavelmente as tinha em mente quando escrevia sobre as “fronteiras do reino”. Mais uma vez, noções surgidas no seio da Igreja eram utilizadas para sustentar as pretensões dos poderes estatais emergentes. Cf. ULLMANN, op. cit., 1978, p. 17-9. 450 CAP. 5 - A HORA DOS REIS jeitado. Também a idéia de um governo temporal universal opunha-se agora à razão e à força determinantes dos costumes e da diversidade. Como a comunidade política já não se baseava mais numa instituição divina, fosse do imperium ou do sacerdotium, era preciso definir seus traços. A coisa pública (res publica), insistia João Quidort adiante, de fato não podia ser governada sem a noção de justiça. Isso não equivalia a dizer, no entanto, que somente a Ecclesia fosse capaz de gerar tal virtude: Deve-se observar que as virtudes morais podem ser perfeitamente adquiridas sem as teologais, e nem são aperfeiçoadas por estas a não ser de um modo acidental [...]. Portanto, também sem a direção de Cristo pode haver a justiça verdadeira e perfeita que se requer para o reino, pois o reino ordena-se a viver segundo a virtude moral adquirida que, posteriormente, pode ser aperfeiçoada por outra virtude qualquer. (SPRP, p. 111) Ao conceder à natureza autonomia diante do sobrenatural, recorda De Boni, João Quidort tornava possível falar das ciências práticas e da ação humana independentemente de uma moral de origem sobrenatural. Ora, a política, enquanto ciência do agir social, constitui um fim em si mesma. João Quidort concede sem hesitar que a política não é o fim último do homem e que, para o cristão, ela se ordena a um fim superior. Mas isso não quer dizer que ela simplesmente exista em função desse outro fim, como se não tivesse bondade ou finalidade em si mesma.115 Viver segundo a virtude, continua De Boni adiante, não implicava o atrelamento do poder político ao religioso, “como se coubesse a alguma autoridade fora e acima do Estado – e 115 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 21. 451 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO da constituição racional deste – indicar o que é virtude. O Estado é uma construção da natureza racional do homem e, como tal, pode ser pensado e realizado com empenho único e exclusivo da razão”. E se concedia alcance ilimitado ao poder espiritual, já que este se fundava na palavra, isto é, na fala, dom comum a todo gênero humano, ao poder temporal contudo o autor delimitava fronteiras bastante concretas: sua extensão dependia da capacidade de implementar a coerção física sobre um determinado espaço geográfico. Ou seja, definia-se sobretudo pela capacidade de fazer cumprir a lei neste ou naquele território. Tanto a realidade quanto a teoria revelavam o surgimento daquela noção tão fundamental à ciência política: os modernos Estados territoriais. Também a “societas perfecta do Estado deixa sempre mais de ser entendida como aquela harmonia à qual tendem naturalmente as pessoas”, aponta De Boni lembrando a emergência do nominalismo, “para ser encarada como a multitudo de interesses divergentes, que só se mantém coesa graças à força da autoridade: que paga impostos devido aos fiscais e às multas; que observa as leis por temor dos castigos; e que um dia lutará pela pátria porque arrastada compulsoriamente para o campo de batalha”.116 Também nas Escrituras se podia ler, argumentava João Quidort, que a instituição do regnum legítimo havia precedido temporalmente à instituição do verdadeiro sacerdotium, quando se tomava o sacerdócio em sentido próprio e estrito, como mostrara Cristo.117 Como o que era posterior no tempo costumava preceder em dignidade, como era o caso do per116 117 Ibid., p. 21-2. “[...] desde Abraão – antes de cujo nascimento houve reis dos assírios, dos siciônios, dos egípcios e outros mais – até Cristo decorreram dois mil anos, ou aproximadamente isto segundo outros. Portanto, temporalmente, antes do verdadeiro sacerdócio houve verdadeiros reis, cujo ofício é preocupar-se com as necessidades da vida terrena dos homens” (SPRP, p. 52). 452 CAP. 5 - A HORA DOS REIS feito com relação ao imperfeito e do fim com relação àquilo que se ordenava, dizia João Quidort seguindo Tomás, “dizemos que o poder sacerdotal é maior que o real e o supera em dignidade”. E concedia: O reino, como foi visto, está constituído com a finalidade de que a multidão reunida viva segundo a virtude; isto, porém, ordena-se posteriormente a um fim mais elevado, que é a fruição de Deus. A missão de levar a este fim foi confiada a Cristo, de quem os sacerdotes são vigários e ministros. Portanto, o poder sacerdotal é mais digno que o secular. (SPRP, p. 53) O fato de dispor o sacerdote de maior dignidade do que o príncipe, entretanto, esclarecia o Pregador, não o tornava superior a ele em todas as coisas. E respondia aqui a Egídio, e aos partidários da hierocracia, rejeitando a cadeia causal por ele suposta para a ordenação dos poderes. Pois o poder temporal, embora menor do que o espiritual, não provinha deste do mesmo modo que o poder do procônsul derivava do imperial. Por essa razão, dizia João Quidort, o poder secular era superior ao espiritual nas coisas temporais, assim como o médico, cujo fim era inferior, não estava sujeito ao mestre na aplicação de remédios.118 A primazia no âmbito espiritual não podia, portanto, ser estendida ao reino das coisas seculares: tratava-se de duas esferas distintas que tinham somente uma característica comum, a origem divina. Entre elas, contudo, não havia relação necessária de causalidade nem de anterioridade lógica. Havia apenas uma 118 “Numa casa, o professor de letras ou de moral, por voltar-se ao conhecimento da verdade, ordena todos para um fim mais nobre que o médico, pois este visa a um fim inferior, que é o cuidado dos corpos. Quem diria, porém, que o médico está sujeito ao mestre na aplicação dos remédios? Isto nem está prescrito, porque o Senhor da casa, que empregou a ambos, sob este aspecto não colocou o médico como sujeito a ninguém” (SPRP, p. 54). 453 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO superioridade moral do poder espiritual sobre o temporal, isto é, o primeiro desfrutava de maior dignidade que o segundo. Nada mais do que isso. E, por ser somente moral, essa superioridade não tinha implicação concreta para as regras de funcionamento do poder temporal: suas sanções, do mesmo modo, baseavam-se apenas em preceitos de caráter normativo a serem ou não obedecidos pela consciência de cada agente moral individual. Como o poder temporal e o eclesiástico constituíam coisas diversas, continuava João Quidort, a alegação de que o pontífice, por deter um poder maior, ordenava também a respeito do menor era equivocada. E explicava: A afirmação é verdadeira em relação à maior e à menor em uma determinada ordem, como, por exemplo: se o bispo pode ordenar o sacerdote, pode ordenar também o diácono. Não é verdadeira, porém, para as coisas que são de ordem ou de gênero diferente, como, por exemplo: se meu pai pôde gerar um homem, pode gerar também um cão; ou: se o sacerdote pode absolver alguém do pecado, pode absolver também da dívida pecuniária.119 (SPRP, p. 104) Nos assuntos temporais, o poder secular em nada se encontrava sujeito ao poder eclesiástico. Pois não procedia 119 Numa passagem do texto anônimo Quaestio in utramque partem, surgido na corte francesa em meio à querela entre o rei e o papa, essa idéia era formulada nos seguintes termos: “No entanto, quando tal premissa se refere a coisas de gênero diverso, não é verdadeira; por exemplo, o fato de uma pessoa ser capaz de gerar uma outra não implica que possa gerar igualmente uma mosca. Portanto, dado que as coisas espirituais e as materiais são de gênero diverso, pelo mesmo motivo não decorre que uma pessoa que exerce um poder no âmbito espiritual também possa exercê-lo na esfera temporal”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 45, op. cit., p. 199. Uma cópia do documento original pode ser encontrada em: GOLDAST, M. (Ed.) Monarchia sancti romani imperii. Graz: Akademische Druck u. Verlaganstalt, 1960. Reimpr. da ed. frankfurtiana de 1611-4. t. II, p. 95-107. 454 CAP. 5 - A HORA DOS REIS dele: ambos os poderes, terreno e espiritual, tinham origem imediatamente em Deus, isto é, no poder divino, e só eram superiores naquelas coisas específicas que lhes cabiam.120 Ou seja, o sacerdote era superior ao princeps nas coisas espirituais, e este, de seu lado, era superior ao sacerdos nas temporais. Isso não significava negar, esclarecia o autor, que o sacerdócio de Cristo fosse superior ao poder real em dignidade. E àqueles que defendiam virem ambos os poderes de Deus, mas com uma certa ordem, João Quidort respondia que podia até haver uma certa ordem de dignidade entre eles. Mas, como o poder temporal não provinha do espiritual, não havia entre eles relação de causalidade.121 Se não havia prioridade do sacerdotium sobre o regnum na ordem das causas, muito menos poderia ter havido uma instituição do segundo pelo primeiro, como queriam alguns, escrevia João de Paris. À alegação de que as coisas temporais eram dirigidas pelas espirituais, e delas dependiam como de sua causa, João Quidort respondia, com base no mesmo raciocínio: 120 “Assim, pois, o poder secular é superior ao espiritual em algumas coisas, isto é, nas coisas temporais, e neste assunto não se encontra em nada sujeito ao espiritual, pois não procede dele, mas ambos provêm imediatamente de um só poder supremo, que é o divino, e por isso o poder inferior não está sujeito ao poder superior em todas as coisas, mas apenas naquelas em que o poder supremo o colocou sob o superior. [...] Portanto, o sacerdote é superior ao príncipe nas coisas espirituais, e vice-versa, o príncipe é maior que o sacerdote nas temporais, embora o sacerdote, pura e simplesmente, seja maior que o príncipe, assim como o espiritual é maior que o temporal” (SPRP, p. 54). 121 “Eles têm, de fato, uma certa ordem de dignidade, como foi dito, mas não de causalidade, pois um não provém do outro, assim como todos os anjos são produzidos por Deus segundo uma certa ordem de dignidade, enquanto, por natureza, um é mais digno do que outro, mas não há entre eles ordem de causalidade, pela qual um provém de outro, mas todos são criados imediatamente por Deus” (SPRP, p. 112). 455 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO O argumento, assim apresentado, falha sob muitos aspectos. Em primeiro lugar, supõe que o poder real seja corporal e não espiritual, e que tenha reservado a si o cuidado dos corpos e não das almas, o que é falso, pois, como foi dito acima, este poder ordena-se não para qualquer bem, mas para o bem comum dos cidadãos, que é viver segundo a virtude. (SPRP, p. 106) Em outras palavras: a sociedade política tinha seu fundamento em Deus tanto quanto a Igreja, mas por um vínculo próprio e independente de toda mediação eclesiástica. E completava: Em segundo lugar, o argumento é falho porque não é qualquer poder secular que é instituído, movido e dirigido por qualquer poder espiritual. Numa casa bem organizada, o professor de letras ou o mestre de costumes, que possui poder espiritual, não institui o médico, mas ambos são instituídos pelo pai de família, e o mestre não dirige o médico enquanto médico, mas só por acidente, na medida em que o médico deseja tornar-se de bons costumes ou instruir-se. Assim o papa não institui o rei, mas ambos são colocados por Deus a seu modo, e também não dirige o rei, enquanto rei, mas por acidente, na medida em que é preciso que o rei seja fiel à crença, e nisto é este instruído pelo papa a respeito da fé, mas não do governo. O rei, pois, está sujeito ao papa naquilo a que o sujeitou o poder supremo de Deus: apenas nas coisas espirituais. (idem) Dizer que havia uma hierarquia dos fins entre as coisas do espírito e as da matéria equivalia também a proceder segundo uma falha de raciocínio, sustentava João Quidort: a arte superior nem sempre e necessariamente domina sobre a inferior, movendo-a de modo autoritativo e instituindo-a, mas só a domina de modo diretivo, assim como o médico instrui o farmacêutico, e julga se o mesmo preparou corretamente os remédios, mas não o institui nem destitui. Existe, porém, alguém superior tanto ao médico 456 CAP. 5 - A HORA DOS REIS como ao farmacêutico e a quem cabe a responsabilidade de toda a ordem da cidade: é o rei ou o senhor da cidade; este, se o farmacêutico não preparar os remédios conforme o pedido do médico, pode instituí-lo ou destituí-lo. Aplicando ao nosso caso, podemos dizer que todo mundo é como que uma cidade, na qual Deus é o poder supremo, que pode instituir tanto o papa como o príncipe. (SPRP, p. 108) 2. Dominium e jurisdição: o bem privado e a justiça comum Investindo fortemente contra as reivindicações hierocráticas, materializadas naquele momento no tratado de Egídio Romano escrito pouco antes, João Quidort passava ao alvo seguinte: a reivindicação de dominium e jurisdição em assuntos temporais pelo sumo pontífice. A matéria ocupa boa parte do livro (cap. VII-XX) e constitui provavelmente a parte mais interessante da obra. A discussão se inseria no contexto mais amplo das ordens mendicantes e sua reivindicação em favor da pobreza evangélica, que atingiria seu ápice pouco depois.122 João de Paris, sempre atento às disputas de seu tempo, forneceria à questão uma nova e frutífera interpretação. Os bens eclesiásticos, dizia ele, por serem de uso comum e pertencerem à comunidade da Igreja, não eram propriedade (proprietatem) nem dominium de qualquer pessoa 122 O século XIII fora marcado por uma enorme fermentação social, que prosseguia no XIV. Multiplicavam-se as organizações, comunidades, uniões, grêmios e movimentos rebeldes formados à margem de qualquer doutrina ou norma sustentada pela Igreja. Tornava-se cada vez mais difícil manter a teoria de um mundo social ordenado de cima para baixo, fato que podia ser verificado nas inúmeras formas de manifestação popular contra os princípios sociais dominantes na cristandade. Sobre esse assunto, cf. WAUGH, S.; DIEHL, P. (Ed.). Christendom and its discontents. Cambridge: Univesity Press, 1996. 457 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO singular, e sim do grupo como um todo. Ao sumo pontífice, cabeça da Igreja universal, cabia apenas o cuidado e a administração desses bens coletivos, fossem eles temporais ou espirituais.123 Isso contudo, advertia, não o tornava senhor (dominus): tal dominium cabia somente à comunidade da Ecclesia, senhora e proprietária daqueles bens em geral, cuja posse era detida pelas igrejas e comunidades particulares, que tinham sobre eles direito de uso (ius utendi). Por essa razão, continuava o Pregador, o sumo sacerdote não podia dispor dos bens eclesiásticos como desejasse e nem seus decretos tinham vigor legal: Isto aconteceria se ele fosse senhor [dominus], mas como é apenas administrador dos bens da comunidade – e do administrador espera-se boa fé – não recebeu ele poder sobre estes bens, a não ser para a necessidade ou utilidade da Igreja em geral. [...] Assim sendo, não tem força de direito sua ação, se dispõe ad libitum e não de boa fé os bens eclesiásticos, e no caso não só deve fazer penitência pelo pecado, como se fosse por abuso de algo que fosse seu, mas, por ter agido de modo infiel, está obrigado à restituição, se possui algum bem herdado ou adquirido, já que agiu como dilapidador de bens que não são seus. (SPRP, p. 59) Ou seja, caso os atos do pontífice não se subordinassem à utilidade do corpo eclesial, ele podia ser punido e estava obrigado a devolver os bens transacionados pelo mau uso 123 “Como os fundadores de igrejas entendiam transferir domínio e a propriedade dos bens oferecidos primária e imediatamente à comunidade de um colégio, isto é, de determinada Igreja, para o uso dos que nela servem a Deus, e não tencionavam transferir ao senhor papa, é evidente que o domínio imediato e verdadeiro sobre tais bens cabe à comunidade, e não ao papa ou a qualquer outro prelado subalterno. [...] Portanto, o papa não é senhor único, mas administrador geral; o bispo e o abade são administradores especiais e imediatos; a comunidade, porém, é que tem o verdadeiro direito de posse sobre os bens” (SPRP, p. 58). 458 CAP. 5 - A HORA DOS REIS do patromônio coletivo. E, se não corrigisse seu erro, o sumo pontífice podia ser deposto pelo corpo dos fiéis.124 E assim ocorria porque a propriedade eclesiástica era conferida às comunidades, e não a pessoas individuais: apenas a congregação como um todo detinha dominium ou proprietas sobre ela. O papa, membro principal e cabeça da congregatio dos cristãos, tinha somente o direito de uso dos bens comunitários. Podia administrá-los e deles dispensar, alocando-os de acordo com a justiça proporcional e com o bem comum do grupo. Essa era a posição do bispo numa catedral que, em virtude da unidade da Ecclesia, estava subordinado ao papa, encarregado de zelar pelo bem geral da instituição eclesial. Por isso, o pontífice constituía o dispensator de todos os bens eclesiásticos, temporais – como o Patrimonium Petri – e espirituais. Ele não era, contudo, dominus, senhor desses bens, pois apenas a comunidade universal da Igreja podia sê-lo, já que eram comuns e a propriedade deles geral. Os bens dos leigos, pelo contrário, dado serem adquiridos individualmente por meio do esforço de cada um, não constituíam posses coletivas. Por isso, o dominium sobre eles – e isto é relevante – não podia caber nem ao pontífice nem ao princeps, mas somente ao seu proprietário: deve-se considerar que os bens exteriores dos leigos não pertencem à comunidade, como os bens eclesiásticos, mas são adquiridos pela arte, o trabalho e a habilidade própria de cada pessoa, e as pessoas individualmente, e enquanto 124 “O mosteiro pode depor o abade, e a Igreja particular, o bispo, se for constatado que dissipam os bens do mosteiro ou da Igreja, tomando-os infielmente não para o bem comum, mas para seu interesse particular. Do mesmo modo, se se constatar que o papa dissipa infielmente os bens da Igreja, não os usando para o bem comum – sobre o qual, na qualidade de pontífice supremo, cabe-lhe vigiar – pode ser deposto se, admoestado, não vier a corrigir-se” (SPRP, p. 59). 459 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO indivíduos, possuem o direito, o poder e o verdadeiro domínio sobre eles, e, por ser senhor [dominus], cada um pode por si ordenar, dispor, distribuir, reter e alienar qualquer bem ad libitum, sem com isto lesar a alguém. Tais bens não possuem, pois, ordem e conexão entre si, nem para com um chefe comum, a quem caiba dispô-los e distribuí-los, pois cada um é ordenador de suas próprias coisas assim como bem o entende, e nem o príncipe nem o papa tem direito de posse [dominium] ou de administração [dispensationem] sobre tais bens.125 (SPRP, p. 60 – grifos meus) João Quidort utilizava dessa maneira a tese tomista da individuação corpórea existente entre os homens que compreendiam uma espécie para explicar a propriedade tanto privada quanto pública. À diversidade dos corpos, no entanto, ele opunha a unicidade da alma, dado que todas as criaturas humanas eram constituídas do mesmo grau essencial, segundo a unidade da espécie. Nesse ponto, João Quidort nada mais fazia do que seguir as pegadas do Aquinate e sua doutrina da unicidade substancial da forma e da matéria, como já foi visto. Mas ia além do mestre ao relacionar explicitamente a posse material ao trabalho: isto é, cada ser individualmente era dominus, senhor da sua propriedade pelo fato de tê-la adquirido por meio do esforço e indústria próprios. Por essa razão também, cada indivíduo era o administrador de seus bens, podendo fazer com eles tudo o que desejasse. 125 No original: “Ad quod declarandum considerandum est quod exteriora bona laicorum non sunt collata communitate sicut bona ecclesiastica, sed sunt acquisita a singulis personis arte, labore vel industria propria, et personae singulares, ut singulares sunt, habent in ipsis ius et potestatem et verum dominium, et potest quilibet de suo ordinare, disponere, dispensare, retinere, alienare pro libito sine alterius iniura, cum sit dominus. Et ideo talia bona non habent ordinem et connexionem inter se nec ad unum commune caput quod habeat ea disponere et dispensare, cum quilibet reisuae sit ordinator pro libito. Et ideo nec princeps nec papa habet dominium vel dispensationem in talibus”. In: QUIDORT. De regia potestate et papali, E. Bleienstein, op. cit., p. 96-7. 460 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Os homens tinham, portanto, sobre tais bens exteriores obtidos pelo esforço pessoal de cada um, direito de propriedade e verdadeiro dominium, de modo que cada qual podia “ordenar, dispor, distribuir e alienar” como quisesse, sem danos para terceiros. Essa propriedade não dependia de outros homens nem estava a eles condicionada. Tampouco ligava os homens entre si (“não possuem ordem e conexão entre si”). Com base nesse raciocínio, João Quidort podia negar, tanto ao príncipe quanto ao sumo pontífice, qualquer poder sobre o dominium verdadeiro. Isso permitia ao Pregador falar do dominium (senhorio) de cada indivíduo como um direito inalienável: John Locke, leitor de João Quidort, pouco teria a acrescrentar a essa formulação. O princeps só podia dispor dos bens privados de cada uma dessas unidades em caráter excepcional, quando estava em jogo o interesse do bem comum, a utilitas publica. Uma nova forma de interpretar o mundo estava sendo gestada. Os representantes da teoria do valor-trabalho, por exemplo, encontrariam, séculos mais tarde, justamente nessa idéia um bom motivo para a reivindicação de um novo mundo. Mas, como a posse privada de bens era freqüentemente fonte de conflitos entre os seres humanos, justificava João Quidort, foi preciso instituir a populo um governante, a fim de que essas querelas fossem solucionadas de forma justa: Seguidamente, porém, acontece que por causa destes bens exteriores a paz comum é perturbada, pois um rouba o que é de outro; outras vezes, porque os homens, apegando-se por demais às próprias coisas, não as distribuem conforme o exige a necessidade ou a utilidade da pátria (utilitati patriae). Por isto foi instituído pelo povo um príncipe, que como juiz preside nestes casos, discernindo entre o justo e o injusto, punindo a apropriação indébita e determinando a quantidade certa de bens que deve receber dos cidadãos para prover à necessidade e utilidade comum. (SPRP, p. 61) 461 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Mas por que instituir um príncipe? Depois da queda em pecado, contava João Quidort, os homens, proprietários individuais, administravam suas posses de maneira egoísta e auto-interessada, sem consideração para com os demais seres humanos. De Deus as criaturas haviam recebido o instinto natural, por meio do qual apreendiam que lhes podia ser útil a vida em comunidade, de modo a evitar a reprodução infinita dessas experiências violentas. Mesmo que, em princípio, os homens não precisassem uns dos outros para administrar suas propriedades, parecia razoável que, a fim de impedir que a paz do todo fosse perturbada por causa dos conflitos – roubo, amor excessivo do seu etc. – gerados pelos bens exteriores, fosse estabelecido um príncipe que agisse como um juiz em tais situações, distinguindo o justo do injusto. O governante, portanto – punidor das injúrias e injustiças e distribuidor dos prêmios –, era aquele que media a justa proporção do bem comum a ser concedida a cada proprietário individual. Tais governantes, explica Coleman, não destruíam a propriedade privada dos indivíduos, nem o seu direito natural a ela, e sim organizavam-na de modo que servisse à utilitas publica, cujo cuidado era incumbência do príncipe: devia ele assegurar o bem comum do todo, impedindo a desintegração daquela multidão de indivíduos à procura de seus interesses pessoais.126 Pois na ausência de um poder comum dentro dos corpos que os inclinasse na direção do bem coletivo, argumentava João Quidort invocando o mestre, o corpo do homem sofreria um colapso. Por isso, um tal rector do governo das coisas constituía uma necessidade. O bem individual, como já havia explicado o autor, não equivalia ao bem do coletivo: os homens diferiam no que lhes era próprio enquanto indivíduos e uniam126 Cf. COLEMAN, J. The dominican political theory of John of Paris in its context. In: WOOD, op. cit., p. 211. 462 CAP. 5 - A HORA DOS REIS se naquilo que lhes era comum. Pois um princípio de unidade era requerido para que os indivíduos se juntassem sob a comunidade da espécie. E porque causas diferentes tinham efeitos diversos – como já demonstrara ele a respeito do poder temporal e do espiritual – então necessariamente o que movia cada indivíduo para o bem próprio era diferente daquilo que o movia na direção do bem comum dos muitos. Por essa razão, a garantia da boa vida em comunidade consistia em subordinar o interesse privado ao comum. Como não era dominus, não detinha o papa portanto direito de uso sobre os bens dos leigos, podendo cada qual deles dispor ad libitum. O único instrumento do pontífice para obter posses materiais dos leigos com vistas ao bem espiritual comum era a censura eclesiástica, que não passava de uma “declaração de direito” (iuris declaratio). Mas ter propriedade e dominium sobre bens exteriores, esclarecia o Pregador, não equivalia a ter jurisdição (iurisdictionem) – isto é, o direito de decidir o que era justo ou injusto – em relação a tais bens.127 E exemplificava: “Os príncipes têm o poder de julgar e discernir sobre os bens dos súditos, embora não tenham o direito de domínio sobre a própria coisa em questão” (SPRP, p. 62). Essa discussão tinha um importante sentido estratégico na tentativa de mostrar a incompatibilidade entre a missão eclesial e aquela do poder político. João Quidort construía sua argumentação a partir de uma teoria da propriedade e de uma concepção de governo a 127 Janet Coleman chama atenção para uma formulação relevante de João Quidort: a de que o poder (potestas), em assuntos temporais, devia ser entendido de maneira específica: isto é, como aquele senhorio sobre a propriedade material, chamado por João Quidort de dominium in rebus. Com essa restrição, diz ela, o autor restringia a utilização do termo dominium, à época de uso vasto, à esfera unicamente temporal. Cf. COLEMAN, J. Dominium in the thirteenth and fourteenth-century political thought and its seventeenth-century heirs: John of Paris and Locke. Political Studies, v. 33, n. 1, p. 77, mar. 1985. 463 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ela associada. Seu raciocínio era tão claro quanto sucinto: o dominium dos leigos sobre seus bens, porque fundado na indústria e diligência de cada um, constituía um seu “direito, poder e verdadeiro domínio”. Tal senhorio era anterior, histórica e logicamente, aos distintos modos de exercício da jurisdição, que consistia na determinação do justo e do injusto em relação aos vários usos das posses privadas e, num momento posterior, daquelas comuns. Esses bens privados, antes da instituição de um governante, não eram conectados nem ordenados mutuamente, nem dispunham de uma cabeça comum para administrá-los, pois cada qual decidia pro libito sobre o que era seu. Eleito um príncipe para reparar os agravos e satisfazer as necessidades coletivas, instaurava-se a iurisdictio – literalmente, o ato de “ditar a justiça”, o direito, a lei, o ius, que tem como verbo correlato iurare, jurar, prometer sob juramento. Ou seja, aquela capacidade de gerir os vários domini preocupados apenas com perseguir seus interesses privados. Ao decidirem, por um processo de convencimento e persuasão pelos mais sábios, se unir numa associação civil, os indivíduos renunciavam voluntariamente a boa parte de sua autonomia para viver numa comunidade pacífica, regulada pela lei, sob a direção de um rector por eles designado para proteger o bem comum e também os vários bens privados: ficava-lhes garantido que a propriedade de cada um seria preservada da guerra, da usurpação e da violência por parte de terceiros. O estabelecimento do princeps se dava por meio da livre escolha pelos singulares, que o elegiam e a ele se submetiam. A jurisdição do governante, dessa forma, era legitimada pelo fato de que fora imposta originalmente pelos indivíduos sobre si mesmos para o benefício de todos. A criação da comunidade política, nessa perspectiva, realizava a natureza gregária das criaturas humanas, isto é, tornava ato a inclinação natural dos cives à vida comum, e os afastava um 464 CAP. 5 - A HORA DOS REIS pouco, pelo incentivo da virtude, da forma pecaminosa de vida que levavam antes da instauração da iurisdictio. A reunião livre de todos nessa formação específica tornava possível o exercício legítimo da coerção em nome do bem comum e da garantia do dominium individual. Entre os instrumentos para a manutenção dessa ordem pública estavam a lei e o governo, e todas as instituições deles decorrentes. E, porque era o governante eleito livremente pelo populus com base em argumentos razoáveis, João Quidort podia adotar a velha máxima segundo a qual “o que apraz o príncipe tem força de lei”: se a vontade do príncipe não reconhecia superior, era porque ela coincidia com aquela dos súditos. O raciocínio tinha inspiração claramente aristotélica: o bem das partes correspondia, na ordem da polis, ao bem do todo. Esse era o significado último da jurisdição da autoridade pública. Não havia descontinuidade entre dominium, o próprio dos indivíduos, e iurisdictio, o direito específico daquele que geria o bem público. Ao papa, portanto, cabia somente guiar os espíritos ao seu fim último, a fruição de Deus, já que fomentar as virtudes terrenas era tarefa unicamente do princeps. João Quidort operava aqui uma clara distinção entre direito, de um lado, entendido como aquelas regras de ação acerca do justo e do injusto, reguladas pela capacidade de coagir, e cuja garantia era função exclusiva do rei; e moral, de outro lado, entendida como aquele conjunto de regras ou preceitos de ação que não implicavam o uso da força e, portanto, não tinham vigor de lei, e cuja propagação e estudo cabiam sobretudo aos prelados. Mas ia além: à diferenciação entre direito e moral – passo fundamental para a definição da idéia de soberania, que já vinha sendo desenvolvida pelos juristas canonistas e civilistas desde o século XII –, João Quidort acrescentava agora novos elementos relevantes, entre os quais a noção do exercício da coerção como fundamento primeiro da ordem legal. 465 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Seus argumentos não se limitavam, porém, às explicações naturais, esclarecia o Pregador, mas podiam ser corroborados também por uma leitura atenta das Escrituras. Contra aqueles que reivindicavam ter recebido o papa tal dominium do filho de Deus, o autor opunha a afirmação de que o próprio Cristo, enquanto homem, não tivera senhorio algum sobre os bens dos leigos, nem tampouco autoridade ou poder judicial sobre as temporalia: Cristo não possui um reino como os demais reis terrenos, mas um muito maior e mais brilhante reino nas alturas, e que não foi construído pelo homem. [...] Fica claro, pois, segundo os santos expositores, que Cristo não teve autoridade sobre as coisas temporais, nem poder judicial, mas sua missão era dar testemunho da virtude. (SPRP, p. 63) O sumo pontífice, portanto, não poderia ter recebido de Cristo algo que ele próprio não tivera.128 A realeza de Cristo, sustentava João Quidort, jamais fora deste mundo e, por isso, seu poder não era da ordem temporal. Por essa razão, nada havia a que renunciar: Cristo, ao longo de sua vida pregadora, jamais exercera direito de propriedade nem jurisdição temporal alguma. Todas as passagens das Escrituras citadas pelos defensores da supremacia papal em assuntos temporais, esclarecia João Quidort, referiam-se a um exercício, por Cristo, da jurisdição sobre os bens dos leigos enquanto Deus, e não na qualidade de homem. E quando a glosa afirmava reinar Cristo pela fé, isso não equivalia a dizer que Jesus havia pretendido dos homens que se submetessem a ele como o faziam em relação aos reis terrenos. Esse, aliás, tinha sido o erro de Herodes, 128 “Conclui-se, pois, que, como Cristo, enquanto homem, não teve domínio sobre os bens temporais, assim também qualquer sacerdote, enquanto vigário de Cristo não possui poder dado por Cristo sobre estes bens, pois não lhe transmitiu o que ele mesmo não possuía” (SPRP, p. 64). 466 CAP. 5 - A HORA DOS REIS que julgara ter desejado Cristo ser meramente um rei terreno quando na verdade pretendera reinar somente nos corações.129 Por essa razão também, afirmar que o príncipe não podia fazer as leis nem colocá-las em vigor enquanto não fossem aprovadas pelo papa, a quem competiria ditar leis vinculantes, significava repetir, uma vez mais, o erro dos herodianos, argumentava João de Paris: Dizer, porém, com tais juristas, que o papa dita leis ao príncipe, e que o príncipe só pode tomar leis de outras fontes quando elas são aprovadas pelo papa, é simplesmente destruir o regime real e republicano [regimen regale et politicum], e cair no erro de Herodes, julgando e temendo que Cristo destruísse o reino terreno, pois, segundo diz Aristóteles, [...] um governo só se chama real quando é presidido por um só, segundo as leis que ele mesmo fez; quando, porém, não é governado segundo seu arbítrio, nem segundo as leis que ele mesmo institui, mas que foram feitas pelos cidadãos, chama-se então governo civil, ou republicano [principatus civilis vel politicus]. Se, pois, uma autoridade só vier a governar segundo leis que lhe forem dadas pelo papa, ou que antes sejam aprovadas por ele, não haverá então governo real ou republicano, mas papal. Isto significaria a destruição do reino e o esvaziamento das formas antigas de governo. (SPRP, p. 109-10 – grifos meus) Gregorio Piaia sustenta que a menção ao erro de Herodes tinha uma função específica na obra do Pregador: a ele João 129 “Assim, pois, segundo a glosa, o jugo da lei e do pecado é sacudido por Cristo de seus membros. Mas não se deve entender que Cristo, pela fé, reine nos homens, como se alguém, ao converter-se à fé, venha a tornar-se súdito do vigário de Cristo nas coisas temporais, assim como soem os homens ser súditos dos reis. Se assim fosse, Cristo teria mudado o reino terreno, como Herodes temia. Mas diz-se apenas que reina pela fé, porque os homens submetem a Cristo aquilo que neles é supremo e mais importante, que é o espírito, e o entregam como cativo em obediência à fé. Este é o espírito dos santos” (SPRP, p. 67). 467 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Quidort atribuía a raiz daquele princípio teocrático – que servia para sustentar as pretensões dos modernos defensores da plenitude de poder do papa tanto em coisas espirituais como temporais – destruidor da herança aristotélica (e tomista) baseada na naturalidade dos ordenamentos políticos, fossem eles monárquicos ou democráticos.130 A hipótese parece bastante plausível, sobretudo quando se considera que a via media aplicada por João Quidort consistia quase invariavelmente numa aparente concessão inicial à posição adversária para, no momento seguinte, obrigar seus opositores a mover-se no mesmo terreno argumentativo sobre o qual ele, João Quidort, imperava. Por isso, parece sensato pensar que a exposição do Surdo fazia uso de recursos estratégicos refinados. E mais ainda quando se recorda que o tratado fora escrito, antes de tudo, para ser um instrumento de combate na luta entre o rei e o sumo pontífice. E, mesmo que Cristo tivesse desfrutado de tal jurisdição e autoridade enquanto homem, concedia adiante João de Paris, ele não a transmitira a Pedro nem aos seus sucessores: ao apóstolo Cristo transferira apenas o poder espiritual, conferindo o temporal a César.131 Os poderes, portanto, eram distintos não só quanto ao objeto, mas também quanto 130 Cf. PIAIA, G. L’errore di Erode e la via media in Giovanni da Parigi. REVISTA DA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS. As relações de poder no pensamento político da Baixa Idade Média. Homenagem a João Morais Barbosa. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, v. I, 1994. 131 “Segundo Ef. 1:22 e 5:23, Cristo é cabeça da Igreja [caput Ecclesiae]. [...] Às vezes, porém, as coisas que estão unidas na cabeça estão separadas nos membros. Assim, por exemplo, todos os sentidos estão na cabeça, mas não em qualquer um dos membros. E há uma regra geralmente válida: as coisas são mais distintas nos principiados que no princípio, nos efeitos que na causa, nos inferiores que no superior. Portanto, se Cristo, também enquanto homem, teve os dois poderes, nem por isto é necessário que tenha transmitido ambos a Pedro, a quem transmitiu só o espiritual, conferindo o temporal a César, poder este que ele recebera de Deus” (SPRP, p. 67). 468 CAP. 5 - A HORA DOS REIS ao sujeito, escrevia João Quidort: “O imperador é a maior autoridade nas coisas temporais, e não existe ninguém superior a ele, do mesmo modo como o papa o é nas coisas espirituais” (SPRP, p. 67). E àqueles que utilizavam a referência às duas espadas para sustentar a jurisdição de Cristo, João Quidort respondia, recorrendo ao Pseudo-Dionísio, que a teologia mística não tinha força probatória. Por isso, sustentava que a alegação a respeito dos dois gládios tomada de Lc 22, 38 constituía somente uma adaptação alegórica a partir da qual não se podia formular um argumento válido. E reintrepretava a tão amplamente divulgada teoria gelasiana das duas espadas: Aliás, posso dizer que por aqueles dois gládios não se entendem misticamente os dois poderes em questão, principalmente porque assim não são expostos misticamente por nenhum dos santos, cuja doutrina é aprovada e confirmada pela Igreja; pelos dois gládios todos entendem a palavra de Deus [...] que é chamada de “dois gládios” por causa do Antigo e do Novo Testamento. (SPRP, p. 114) Por dois gládios podiam-se entender ainda a palavra ou pregação e a perseguição que deveria ser suportada pelos apóstolos.132 Mesmo supondo-se que constituísse uma representação dos dois poderes, entretanto, concedia João Quidort mais uma vez, era preciso concluir dessa passagem que Pedro havia recebido de Cristo um único gládio, o espiritual: 132 “Pelos dois gládios podem-se também entender o gládio da palavra e o da perseguição implacável, da qual diz Lc. 2: 35: ‘Uma espada traspassará tua própria alma’; e em 2 Sm 12: 10: ‘O gládio não sairá de tua casa’. Estes dois gládios deviam então ser suficientes para os apóstolos: um deviam eles suportar passivamente – o gládio da perseguição; outro lhes era próprio, devendo ser desembainhado no momento oportuno – o gládio da pregação” (SPRP, p. 115). 469 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Admitindo, contudo, que por aqueles dois gládios entendam-se o poder espiritual e o temporal, embora se diga que ambos são ali existentes, não se diz que ambos são propriedade de Pedro. De fato, num deles, no secular, não tocou, pois não era seu; tocou no outro, o espiritual, o único que o Senhor disse pertencer-lhe, e contudo não devia ser imediatamente desembainhado por Pedro. Por isto foi-lhe dito (Mt. 26: 52): “Põe o teu gládio na bainha”, pois o juiz eclesiástico não deve usar incontinenti sua arma espiritual, mas só após séria deliberação e em caso de grande necessidade, a fim de não ser desprezado. Suposto então que por aqueles dois gládios entendam-se misticamente os dois poderes, o argumento fica em nosso favor, pois eram dois gládios, e entretanto Pedro teve somente um. (SPRP, p. 115) Além disso, argumentava ele recorrendo ao princípio da divisão do trabalho, como a vida coletiva fora organizada por Deus de modo a ser auto-suficiente, seria inconveniente que tarefas tão diferentes como o cargo real e o episcopal fossem atribuídas a uma única pessoa.133 E, como na transmissão do poder Cristo não colocara nenhuma restrição aos demais apóstolos com relação a Pedro, embora o tivesse apontado como o principal e a cabeça da Igreja, seguia-se daí que, entre os apóstolos, o poder que um tinha era também o poder do outro. Assim também hoje, dizia João Quidort, pelo direito comum o que podia o pontífice sobre toda a Igreja, podiam também os bispos em suas dioceses. E assim como não era possível apelar do príncipe para o bispo local ou para 133 “Pode-se também argumentar com a comparação entre a Igreja fundada por Deus e os artefatos humanos. Uma casa é visivelmente imperfeita, materialmente mal montada e não basta a si mesma na vida, se uma só pessoa deve exercer nela diversos ofícios. [...] A Igreja é chamada de casa santa de Cristo [...]. Portanto, como foi organizada por Deus com o necessário para a existência, seria inconveniente que nela fossem confiados a um só tão diversos ministérios como o ofício sacerdotal e o domínio real” (SPRP, p. 68-9). 470 CAP. 5 - A HORA DOS REIS o sacerdote em matérias temporais, assim também não se podia apelar ao papa.134 Se havia uma só cabeça na Ecclesia, considerava, tal unidade estaria, em sentido próprio, apenas em Cristo, cabeça única da qual provinham todos os demais poderes em diversos graus. O sumo pontífice, portanto, só podia ser dito caput com relação à ordenação dos ministros da Igreja, da qual ele era o minister principal: Pode-se, sem dúvida, dizer que o sumo pontífice é cabeça com relação à colocação exterior dos ministros, enquanto é o principal entre eles e de quem, como principal vigário de Cristo nas coisas espirituais, depende toda a ordenação dos ministros como do hierarca e arquiteto, do mesmo modo como a Igreja romana é cabeça das demais Igrejas. Mas o papa não é cabeça no sentido de que deve dispor sobre coisas temporais, pois nestas cada rei é cabeça de seu reino, e se houver um imperador, que governe sobre tudo, ele é cabeça do mundo [caput mundi].135 (SPRP, p. 112) Isto é, Cristo era a cabeça da Ecclesia e, portanto, do corpo místico. Na ordem terrena esse papel cabia ao rei, e, 134 “Ora, ninguém afirma que os demais bispos, enquanto são vigários de Cristo e sucessores dos demais apóstolos, tenham também poder e domínio sobre os bens temporais, e que em questão temporal se possa apelar do príncipe para o bispo local, ou para o sacerdote da paróquia – o qual, segundo alguns, possui na paróquia o mesmo poder que o bispo na diocese. Do mesmo modo, pois, não se deve dizer isto do papa com relação a todo o mundo” (SPRP, p. 70). 135 Pode-se ler o mesmo na Quaestio in utramque partem: “Todavia, admitimos que o Sumo Pontífice pode ser chamado de cabeça da Igreja, enquanto é o vigário de Cristo e principal dentre os ministros eclesiásticos, e de quem depende toda a organização da esfera espiritual, do mesmo modo como também a Igreja Romana é designada cabeça das outras Igrejas, mas o Papa não é a cabeça quanto ao governo temporal. Na verdade, cada rei é cabeça no seu reino, como o Imperador é no Império [...]”. In: SOUZA & BARBOSA, Documento 45, op. cit., p. 197-8. 471 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO quando este se subordinava a um poder maior – o que não era o caso do monarca francês –, cabia ao imperador.136 Nesse esquema, o papa era reduzido “à condição de um simples ministro, o maior de todos, sem dúvida, mas nada mais que um ministro, nunca um termo de comparação à altura do rei”.137 O sumo pontífice, embora não possuísse ambos os gládios, podia até vir a ter jurisdição nas coisas temporais quando o princeps, por devoção, assim o concedia. Assim, em seus domínios, isto é, no Patrimônio de São Pedro, dentro do qual tinha jurisdição, podia o pontífice dispensar em assuntos temporais. Mas, em qualquer outra terra que não lhe estivesse submetida, não podia o bispo de Roma fazê-lo. Pois fora de seus domínios o papa podia legitimar apenas em matérias espirituais (SPRP, p. 101-2). O patrimônio papal aparecia nesse raciocínio equiparado às demais unidades políticas: seu administrador, responsável pela gestão do bem comum sobre aquele território, tinha de arbitrar os conflitos em nome do coletivo, detendo por isso, dentro dele, jurisdição. Fora dessas fronteiras, entretanto, nada mais lhe cabia em matéria de jurisdição. O legado petrino era tratado mais e mais como uma autêntica monarquia sobre a qual reinava o bispo de Roma. 136 E repunha o argumento de Egídio Romano, expondo uma absurdidade lógica: “Há, porém, alguns que crêem poder evitar muitas destas conclusões através de uma pequena distinção. Dizem que o poder secular encontra-se no papa de modo imediato e em força de autoridade primária. Mas o papa não tem a execução imediata, que confia ao príncipe, e assim o príncipe secular, no que se refere àquele poder, necessita do reconhecimento do papa, mas quanto à execução o papa necessita do príncipe”. E respondia: “Esta evasão é totalmente absurda [absurda], e nem concorda com as palavras deles, pois se a Igreja reconhece que o poder de execução cabe primariamente ao príncipe secular, deve então o príncipe julgar da devida execução do papa, podendo retirá-la do sumo pontífice, o que eles não aceitam, pois dizem que o papa não é julgado por ninguém” (SPRP, p. 72). 137 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 27. 472 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Se essa monarquia devia ser absoluta ou constitucional, era o que se discutia. Egídio e os hierocratas propunham a primeira forma; João Quidort e os conciliaristas, a segunda. Por essa razão, dizer que a organização da Ecclesia fornecia, nesse momento, um modelo bem acabado de uma formação de poder de tipo estatal não deve constituir surpresa: era mais a conseqüência óbvia da sistematização conceitual desenvolvida por seus pensadores, teólogos e juristas, em face das disputas concretas pelo poder desde pelos menos o século XI. Os argumentos utilizados por João Quidort forneciam uma boa amostra de quão desenvolvida já estava à época a noção de pertencimento a um povo ou nação sobre determinado território, elemento fundamental para a consolidação do Estado moderno: Anote-se também que antes existiu, em si e quanto à execução, a autoridade real e depois a papal; antes houve reis da França que cristãos na França. Portanto, o poder real não depende do papa nem em si mesmo, nem quanto à execução, mas provém de Deus e do povo que elegeu e continua elegendo o rei, indicando uma pessoa ou uma família para o cargo. (SPRP, p. 73 – grifos meus) Também na Ecclesia, emendava João Quidort, o poder vinha diretamente de Deus e do povo para os prelados, e não por meio do sumo pontífice, como pretendiam alguns. Pois o apostolado não fora recebido de Pedro, e sim de Cristo.138 E concluía: “Se, pois, na Igreja vemos que o poder eclesiástico 138 “Mas o poder dos prelados não provém de Deus através do papa, e sim imediatamente de Deus e do povo que os escolhe e os aprova. Pedro, cujo sucessor é o papa, não enviou os outros apóstolos, cujos sucessores são os bispos, e nem mesmo os setenta e dois discípulos, cujos sucessores são os párocos; quem enviou a todos eles foi Cristo, de modo imediato, segundo Mt. 10 e Lc. 10. Nem foi Pedro que soprou sobre os apóstolos, dando-lhes o Espírito Santo e o poder de perdoar os pecados, mas Cristo soprou sobre eles” (SPRP, p. 73). 473 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO não provém do papa, muito menos devemos dizer que o poder real venha dele” (idem). A fonte e a origem de todo poder era o povo, “por meio do qual se realiza o costume”. Pois mais valia o consenso de toda a multidão. Com essa formulação, a discussão sobre a origem do poder mudava de eixo e teria implicações relevantes tanto para a organização interna da Igreja quanto dos reinos. Pouco depois surgiria o movimento conciliarista, que defenderia a idéia de um concílio geral para dirigir a Ecclesia, nos moldes de uma monarquia constitucional. A noção de representação, tal como conhecida modernamente, e a idéia de uma corporação capaz de agir em nome dos indivíduos ganhavam contornos ainda mais claros. Essas transformações, no entanto, como lembra De Boni, supunham uma nova visão do mundo civil: A concepção primordial que João Quidort tem da sociedade – e da Igreja – não é a de uma unidade superior, diferente do conjunto dos indivíduos. O nominalismo, que por tudo já se respira em 1300, conhece em primeiro lugar os indivíduos em sua singularidade, esvaziando os conceitos genéricos de qualquer realidade extramental superior. A sociedade é a soma de seus componentes, e a autoridade nela é concebida como provinda de uma delegação por parte dos indivíduos, aos quais cabe também, em determinadas circunstâncias, revogar seu ato primeiro e instituir a outrem como chefe.139 3. O poder político humanizado Depois de listados os argumentos a favor da tese de que o papa teria jurisdição sobre os bens temporais externos, João Quidort passava a esclarecer as premissas de sua resposta, retomando sua definição de sacerdotium: 139 DE BONI. Introdução. In: SPRP, p. 35. 474 CAP. 5 - A HORA DOS REIS Deve-se pois levar em consideração [...] que o sacerdócio nada mais é que o poder espiritual dado aos ministros da Igreja para dispensar aos fiéis os sacramentos que contêm a graça, pela qual nos tornamos aptos para a vida eterna. Mas a natureza, que não falha no necessário, não concede a ninguém uma capacidade sem dar-lhe ao mesmo tempo os meios necessários para que aquela potência passe à atividade que lhe corresponde. (SPRP, p. 83) Pois, como dizia o Filósofo, a todo ato correspondia uma potência. De tal modo isso era verdadeiro, sustentava João Quidort, que os poderes conferidos aos apóstolos, e transmitidos aos seus sucessores, os ministros da Igreja, podiam ser lidos no Evangelho. Eram eles seis: 1) o poder da consagração; 2) o de administrar os sacramentos, entre eles o da penitência, que constituía o poder das chaves ou jurisdição espiritual no foro da consciência; 3) o poder ou ofício do apostolado ou da pregação; 4) o poder de correção judicial no foro externo, por meio do qual, devido ao temor da pena, os pecados eram castigados, sobretudo aqueles que provocavam escândalo na Igreja; 5) o poder de dispor os ministros quanto à determinação da jurisdição eclesiástica, para que se evitasse confusão; e 6) como resultado dos anteriores, o de receber o necessário para um conveniente sustento da vida por parte daqueles que conferem os bens espirituais (SPRP, p. 84-7). Este era todo o poder que Cristo havia concedido aos apóstolos. Segundo os poderes recebidos, portanto, deduzia o Pregador, os prelados não tinham nenhum dominium ou jurisdição sobre as temporalia. Também segundo tais poderes, os príncipes não estavam submetidos aos sacerdotes nas coisas temporais. Pois o poder de consagrar, explicava, era puramente espiritual. Também o era o segundo poder – o das chaves no foro de consciência. Pois 475 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO por este poder não possuem [os prelados] qualquer autoridade sobre as coisas temporais, a não ser quando, no foro da consciência induzem e impõem para a satisfação do pecado uma penitência corporal, do mesmo modo como impõem outras penitências. Mas por este motivo ninguém lhes é pura e simplesmente sujeito, sendo-o apenas sob duas condições: se pecar e se quiser fazer penitência. Se alguém não tiver tal intenção, não podem coagi-lo por este poder, ao contrário do juiz secular, que pode impor multa pecuniária ou reparação mesmo a quem não quer, podendo até compeli-lo a tanto. (SPRP, p. 88) Já o poder ou autoridade da pregação não constituía dominium por não desfrutar de senhorio: consistia somente numa autoridade de magistério ou docência. A dificuldade toda residia, segundo o autor, no poder de julgar no foro externo, no qual se deveriam considerar dois aspectos: a autoridade para discernir ou julgar e o poder de coagir. E explicava com clareza: Trata-se aqui de duas chaves no foro exterior. Quanto à primeira deve-se considerar que o juiz eclesiástico, enquanto eclesiástico, não julga regularmente no foro exterior, a não ser em causas espirituais, que são chamadas de eclesiásticas, e não nas causas temporais, a não ser por motivo de pecado. Se se compreende corretamente esta afirmação, ela não é uma exceção à regra, pois a Igreja não julga sobre nenhum delito, a não ser que se deixe reduzir ao espiritual ou eclesiástico. (SPRP, p. 89) Assim, de dois modos se podia pecar nas coisas temporais: 1) usando da opinião falsa ou erro, como quando se defendia, por exemplo, não constituir a usura um pecado mortal. Como tais pecados eram regulamentados pela lei divina, dizia João Quidort, cabia ao juiz eclesiástico, única autoridade competente, decidir sobre ele. Mas esclarecia adiante: 476 CAP. 5 - A HORA DOS REIS embora caiba à autoridade eclesiástica julgar sobre o crime de usura, porque é pecado, e seja de sua competência julgar o que deve ser restituído, contudo, por ser um caso público, cabe ao príncipe impor a restituição e a reparação, pois ele é a justiça animada e o guarda do justo. (SPRP, p. 105 – grifos meus) 2) outro modo de pecar consistia na reivindicação de fato, pela qual procura-se reter ou buscar o alheio como se fosse bem próprio; o julgamento em tais casos cabe somente ao juiz secular, que julga segundo as leis civis, pelas quais fazem-se as apropriações e as reivindicações jurídicas, pois os bens necessários ao uso dos homens seriam negligenciados se fossem comuns a todos e a cada um, e se fossem indistintamente comuns a todos dificilmente se conservaria a paz entre os homens. [...] Por isso, a respeito das coisas temporais, o juiz eclesiástico não legisla e nem julga, cabendo tal tarefa somente ao juiz secular. Em caso contrário, o juiz eclesiástico recebeu para tanto concessão ou permissão de alguém outro, que não Cristo. (SPRP, p. 89) O poder de receber o necessário para o sustento da vida, prosseguia, era um poder de caráter temporal e devia ser antes chamado de “um certo direito”, que cabia aos religiosos, de obter o sustento. Esse direito não tornava os príncipes súditos daqueles, mas apenas devedores, como os demais fiéis que deles recebem dons espirituais. E embora isto lhes fosse devido, contudo os apóstolos não procuraram este direito de modo autoritativo, mas em forma de súplica. Contudo, o papa pode decidir o que se deve aos ministros da Igreja, e eles mesmos podem reclamar, como a quantia que lhes é devida dos rendimentos, e até por censura eclesiástica o papa pode várias vezes coagir os resistentes a pagar o sustento dos ministros. (SPRP, p. 94) Já o poder de correção ou de censura eclesiástica, dizia João Quidort, constituía matéria puramente espiritual, pois 477 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO não podia impor pena alguma no foro externo que não fosse espiritual, a não ser sub condicione et per accidens. Sob condição, explicava ele, pois aplica-se somente quando alguém quer arrependerse e dispõe-se a aceitar uma pena pecuniária. [...] Se não a aceitar, o juiz eclesiástico pode compeli-lo pela excomunhão ou por outra pena espiritual, que é tudo o que pode aplicar, não lhe sobrando outros meios. Digo também “acidentalmente”, porque se se tratar de um príncipe herético, incorrigível e desprezador das censuras eclesiásticas, o papa pode tomar certas medidas junto ao povo e por elas o príncipe fica privado da honra secular e é deposto pelo povo. (SPRP, p. 91 – grifos meus) Mas, assim também como o papa podia intervir junto ao povo pela deposição do governante temporal, continuava o Pregador, o príncipe podia pressionar os cardeais e o povo em favor de sua deposição: Do mesmo modo, acontecendo o contrário, e se o papa for criminoso, escandalizar a Igreja e não se corrigir, pode o príncipe indiretamente excomungá-lo e depô-lo acidentalmente, admoestando-o pessoalmente e por intermédio dos cardeais. Mas se o papa não quiser corrigir-se, pode o príncipe tomar medidas junto ao povo, a fim de obrigálo a ceder ou a ser deposto pelo povo [...]. Assim podem tanto o papa como o imperador agir um contra o outro, pois tanto um como outro possuem jurisdição universal, um em matéria espiritual, outro em matéria corporal. (SPRP, p. 91) Não restava dúvida de que Filipe IV retirara da formulação desse seu conselheiro os argumentos para pedir a deposição de Bonifácio VIII e, mais tarde, sua condenação por heresia. Do mesmo modo, se o rei pecasse em assuntos espirituais, cujo julgamento coubesse ao tribunal eclesiástico, podia o papa admoestá-lo e até excomungá-lo. Mais do que 478 CAP. 5 - A HORA DOS REIS isso, contudo, não podia a não ser por acidente, influenciando o povo a derrubá-lo.140 A tônica de João Quidort aqui parecia ser a da cooperação entre os dois poderes, cada qual agindo somente em sua esfera específica. Embora a Igreja, em seu raciocínio, desempenhasse um papel exclusivamente moral sobre os fiéis, um mundo sem a dignidade e a superioridade moral da instituição eclesiástica não era concebível para a imensa maioria dos cristãos medievais. João Quidort, oriundo da ordem dominicana, tal como seu mestre de Aquino, parecia compartilhar dessa visão. Sua estratégia argumentativa, no que se referia à relação entre os dois gládios, parecia repousar numa forte crença no papel primordial da razão natural: por serem os dois poderes relativamente autônomos, era-lhes mais racional ajudarem-se e regularem-se mutuamente, cada qual respeitando o âmbito de atuação do outro, do que se confrontarem. Por isso, dizia ele, quando o rei pecava em assuntos temporais, cujo julgamento não competia à Igreja, cabia aos barões e seus pares corrigi-lo. Esses, contudo, caso julgassem conveniente, podiam pedir auxílio à Igreja para admoestar o príncipe e proceder contra ele. Dessa relação entre os poderes, escrevia, ficava claro portanto que “os dois gládios são obrigados a ajudar-se mutuamente pela caridade comum que deve unir todos os membros da Igreja” (SPRP, p. 93). Mas o que, de fato, podia ou não o poder sacerdotal, em meio a tantos poderes que um dia já lhe haviam sido atribuídos? E ao pontífice, o que lhe era devido? Dizer que o sumo pontífice não podia ser julgado por ninguém constituía um erro grave, principalmente em se tratando de abuso do poder ou de falhas pessoais: 140 “Fica claro, de quanto foi visto, que toda a censura eclesiástica é de cunho espiritual, cabendo-lhe excomungar, suspender e interditar, e nada mais pode a Igreja, a não ser de modo indireto e acidentalmente, como foi dito” (SPRP, p. 93). 479 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Digo, pois, que onde o papa erra manifestamente, privando a Igreja de seu direito, dispersando a grei do Senhor e provocando escândalo por suas ações, pode ele ser julgado pelo que fez, e ser persuadido e repreendido por qualquer um, se não por ofício, ao menos pelo zelo da caridade, não pela imposição de pena, mas com exortação reverencial, porque o respeito que se deve à sua pessoa não fica diminuído, em razão do alto posto ao qual foi elevado. (SPRP, p. 136-7) E, se o pontífice proferisse opiniões indefinidas que pusessem em perigo a justiça ou a verdade, ou mesmo o bem público, era lícito ao príncipe e ao povo agir contra ele.141 Com base em inúmeros tipos de argumentos era possível mostrar também, dizia João Quidort, que o papa podia renunciar e até mesmo ser deposto contra a vontade. O pontífice, que tinha em vista o bem comum da Igreja e seu rebanho, presidia em função desse bem coletivo. Se, uma vez elevado papa, ele se mostrasse inapto para cumprir com sua missão, ou ainda incapaz, ou surgindo qualquer outro impedimento, devia ele retirar-se ou ser dispensado pelo povo, ou pelo colégio de cardeais, que o representava.142 141 “Se, porém, na demora [em manifestar-se] houver perigo para o bem público, como no caso em que o povo seja levado a formar uma opinião errônea, se houver o perigo de revolta, e se o papa excitar indevidamente o povo pelo abuso do gládio espiritual, e não houver esperança alguma de que ele possa ser demovido de outra maneira, creio que neste caso a Igreja deve ser mobilizada contra o papa e contra ele deve agir. O príncipe também pode repelir a violência do gládio do papa usando de seu próprio gládio de forma moderada, e nem age contra o papa enquanto papa, mas enquanto inimigo seu e da comunidade” (SPRP, p. 138). 142 “Se, portanto, após ter sido elevado à dignidade de papa, constatar por si mesmo ou os outros constatarem que é totalmente inútil e inapto para tanto, ou se surgir algum impedimento, tal como a loucura ou algo semelhante, deve então pedir sua demissão perante o povo, ou perante o colégio dos cardeais, que em tal caso está em lugar de todo o povo, e deve então retirar-se tanto se houver recebido como se não houver recebido dispensa. [...] A respeito vale a regra geral: nenhum compromisso 480 CAP. 5 - A HORA DOS REIS O poder papal, considerado em si mesmo, provinha só de Deus, que lhe havia conferido o poder de “ligar e desligar”. De outro modo, contudo, considerado neste ou naquele indivíduo, provinha de Deus da mesma forma que a Ele atribuíamos as nossas ações. Portanto, se o papado em si provém só de Deus, contudo nesta ou naquela pessoa ele existe pela cooperação humana, isto é, pelo consenso do eleito e dos eleitores, e assim também, pelo consenso humano, pode deixar de existir nesta ou naquela pessoa. (SPRP, p. 144 – grifos meus) O pontífice, admitia João Quidort, era constituído papa pela lei divina. E, embora tal lei divina fosse imutável, era contudo cambiante materialmente, neste ou naquele, em Celestino ou Bonifácio “Que o papa esteja acima de todos é lei divina e nada se pode fazer em contrário; mas que este ou aquele indivíduo seja papa é algo mutável, pois que para tanto coopera o consenso dos eleitores e do eleito” (SPRP, p. 148). Por isso, no que se referia à ordenação, as ações do pontífice eram sempre válidas. O mesmo já não se podia dizer daquelas coisas que se referiam à jurisdição, as quais podiam sempre ser removidas: O motivo pelo qual as coisas que se referem à ordem não podem ser retiradas e as que se referem à jurisdição [iurisdictionis] o podem é talvez porque as que se referem à jurisdição não se encontram acima da natureza e da condição do dever e dos homens, pois não está acima da condição dos homens que os homens governem aos homens; pelo contrário, de certo modo é até muito natural. voluntariamente assumido pode prejudicar a caridade ou o compromisso a que cada um é obrigado de tratar da salvação da própria alma” (SPRP, p. 142). 481 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Em tal condição, o que não é proibido é permitido e lícito, de tal modo que os mesmos fatores que constituíram algo, se usados de modo inverso, podem destruí-lo. Assim, pois, como pelo consenso dos homens a jurisdição é conferida, do mesmo modo também pelo consenso oposto ela pode ser retirada. (SPRP, p. 149 – grifos meus) O poder sacerdotal, porque se fundamentava no caráter indelével da concessão,143 permanecia para sempre naquelas coisas que se referiam à ordenação, mas podia abdicar da jurisdição.144 Ao sumo pontífice, portanto, era permitido renunciar, pois seu compromisso estava condicionado ao tempo que permanecia no cargo. Por isso, também, não era possível igualar o bispo de Roma a Cristo: O sacerdócio de Cristo é eterno porque Cristo vive para sempre devido a seu sacrifício, e com isto concedemos a respeito do papa que seu sacerdócio dura sempre, enquanto ele viva, porque recebeu um caráter indelével e será sempre sacerdote, podendo celebrar no altar. Mas o ofício de papa não dura necessariamente para sempre, enquanto ele viva, pois o papa pode renunciar ou, por motivo grave, pode ser deposto, visto que o papado indica 143 “As coisas, porém, que se referem à ordenação encontram-se acima da natureza e da condição dos homens, de tal modo que pela prolação das palavras consagradoras imprime-se na alma um caráter ou poder espiritual. Nestas coisas, porém, o que não é expressamente permitido, é negado. Porque está expressamente garantido que tais palavras imprimem tal caráter, acontece o que é dito. Mas como não se encontra expressamente indicado por Deus que de algum modo tal caráter pode ser tirado, por isso é indelével a concessão do caráter, sobre o qual fundamenta-se o poder sacerdotal” (SPRP, p. 149). 144 “Pelo fato, pois, de que o papa se submete à lei da esposa, permanece para sempre nela naquelas coisas que se referem à ordem, que são o sacerdócio e o episcopado, nos quais imprime-se o caráter e a plenitude do caráter. Mas quanto às coisas referentes ao papado ou sumo pontificado, como o papado nada acrescenta além de jurisdição, não é necessário que permaneça para sempre na lei da esposa, pois pode renunciar à jurisdição” (idem). 482 CAP. 5 - A HORA DOS REIS apenas jurisdição acima do episcopado e do sacerdócio, e é mutável esta jurisdição, sem a qual o papa não é papa. (SPRP, p. 150) Em resposta aos argumentos levantados em favor da plenitude de poder do pontífice in temporalibus, constantes em seus grupos de réplicas, João Quidort levantava ainda outras objeções relevantes, como aquelas em defesa do reino franco. Entre elas, algumas são de especial interesse para a argumentação política. João Quidort esclarecia, por exemplo, que o papa Zacarias jamais havia deposto o rei da França, como reivindicavam alguns de seus partidários: ele apenas teria consentido com aqueles que o depuseram.145 E todas as vezes que o poder eclesiástico se imiscuíra em assuntos temporais – casos que deveriam ser considerados situações particulares, e não a regra –, fizera-o pelo consentimento dos reis, príncipes ou barões devotos, e não porque tivesse algum tipo de direito. Segundo a boa jurisprudência, lembrava o Pregador, o excepcional não devia ser tomado como regra: “não convém que de fatos particulares, acontecidos por motivos diversos, façam-se argumentos jurídicos” (SPRP, p. 99). Do mesmo modo, prosseguia ele, não havia motivo para transformar em lei pública o que havia sido determinado por uma pessoa particular, como havia sucedido quando da transferência do Império de Constantinopla para Carlos Magno. Tal ato constituía somente uma mudança de nome, afirmava, sem nenhum sentido legal concreto. Quanto ao argumento de que podia o pontífice dispensar os soldados do juramento de fidelidade, João Quidort rebatia: Deve-se além disso considerar que o vassalo está obrigado ao seu senhor por um dúplice vínculo: em primeiro 145 Também essa passagem pode ser encontrada quase literalmente na Quaestio in utramque partem: cf. QUIDORT, SPRP, p. 97 e tb. o Documento n. 45, traduzido em SOUSA & BARBOSA, op. cit., p. 198 [XVI]. 483 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO lugar, por um vínculo natural, em vista do objeto, da coisa que recebeu de seu senhor com honra de vassalagem; em segundo lugar, sob determinada condição e com juramento. Do vínculo natural o papa não pode dispensar, embora possa declarar que em determinado caso, como, por exemplo, quando o príncipe é herético, o vassalo não está obrigado a seguir o seu senhor, mas deve livrar-se da obrigação e restituir o feudo. Em segundo lugar, há a obrigação por juramento, e dela pode o papa dispensar, caso exista um motivo sério e evidente e boa-fé, pois só sob estas condições a dispensa da obrigação tem valor ante Deus, visto que ao papa não foi dado o poder de destruição, mas de edificação [...]. No que, porém, se refere ao juramento, sempre permanece a obrigação natural que acompanha o objeto, a não ser que o feudo seja restituído. (SPRP, p. 102-3) Por isso ele podia sustentar adiante que bispos de outras regiões, no caso de terem sido convocados pelo papa e não terem comparecido por obedecerem a uma ordem qualquer do imperador ou do rei, não podiam ser repreendidos pelo pontífice, pois tais prelados estavam isentos da jurisdição papal pelo fato de terem recebido o seu feudo do príncipe.146 Aquelas pessoas eclesiásticas que haviam recebido do poder real a sua propriedade não podiam lhe negar obediência, dizia João Quidort: Assim, pois, como o poder real não pode negar o cuidado que deve a outro, de igual modo também a propriedade, mesmo que obtida por pessoas eclesiásticas, por direito não pode recusar obediência ao poder real pela proteção que lhe deve, como está escrito em Lc. 20: 25: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”. (SPRP, p. 123) 146 “Se pois, principalmente quando com conhecimento e permissão do sumo pontífice, um bispo recebe um feudo, deve obedecer mais ao senhor temporal que ao sumo pontífice, e especialmente no caso em que o príncipe lhe ordena algo relativo ao ônus do feudo é claro que se encontra isento da jurisdição do papa, tal como o monge da do abade” (SPRP, p. 122). 484 CAP. 5 - A HORA DOS REIS E dizer que os reis deviam ser privados de um tal direito por estarem prejudicando o bem espiritual, impedindo que os bispos fossem à cúria romana quando por ela chamados, ou que o rei estivesse coibindo a liberdade de movimento quando impedia que se levasse dinheiro para fora do reino, equivalia a não compreender que a causa do rei – garantir o bem comum – era maior e mais amparada no direito: proibir simplesmente e em geral a viagem, por qualquer motivo que alguém queira ir, significa de fato impedir um bem espiritual. Mas se a proibição for imposta com a exceção de que pode ser suspensa por uma causa maior acolhida pelo príncipe [ex causa rationabili de licentia principis], não se impede então o bem espiritual. Se por tais limitações é atingida a cúria romana, que deixa de receber os serviços costumeiros, nem por isso o príncipe deve ser tido como quem age injustamente e coloca-se como inimigo da Igreja, a não ser que tome tais medidas com a intenção única de prejudicar. Se fizer em proveito próprio ou de seu país, faz o que lhe é permitido, embora por conseqüência surjam danos a terceiros, pois a cada um é permitido fazer uso de seu direito. (SPRP, p. 123 – grifos meus) Em João Quidort já era clara, portanto, a prioridade relativa ao cuidado da res publica, ou regnum, ou ainda bem comum: nenhum assunto do espírito se lhe superava quando se tratava de garantir a paz e a ordem pública, mesmo que com isso pudesse causar danos a terceiros. Também a idéia de unidades políticas específicas, detentoras de direitos e prerrogativas que se sobrepunham a quaisquer outras, já aparecia bastante consolidada. Mais do que um sinal dos tempos, tratava-se aqui de uma descrição da época: nesse momento, teoria e realidade se mesclavam, exprimindo o mundo sobre o qual versavam, o Estado moderno emergente. É importante frisar que esse novo sistema de poder que despontava se construía com base em determinadas preten485 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO sões jurídicas dos detentores do poder territorial. De um lado, essas pretensões excluíam toda interferência nos assuntos do reino. Constituía-se uma oposição legal entre o interno e o externo, em sentido radicalmente novo. De outro, passavase a agir em nome de uma nova categoria de interesses. Numa passagem em que explicitava os episódios da querela entre o papa Bonifácio VIII e seu protetor, Filipe IV da França, João Quidort mencionava a possibilidade de o príncipe agir na defesa de interesses do reino, mesmo que isso causasse danos a terceiros: E mesmo que o príncipe tome tal medida com a intenção de prejudicar, mesmo assim é-lhe lícito, se previr com argumentos prováveis ou evidentes que o papa tornou-se seu inimigo ou que convocou os prelados para com eles planejar algo contra o príncipe ou o reino. É lícito ao príncipe repelir o abuso do gládio espiritual do modo como o puder, mesmo se usando para tanto o gládio material, principalmente quando o abuso do gládio espiritual converter-se em um mal para a república, cujo cuidado incumbe ao rei. Em caso contrário, não haveria razão para este levar o gládio. (SPRP, p. 124) Pode parecer curioso João Quidort utilizar, nesse momento, argumentos originários do direito privado. Ele se referia ao uso das águas, numa propriedade, com prejuízo para os vizinhos. Podia um homem elevar as águas ou desviá-las por outros canais, impedindo a irrigação de terras alheias? “Diz a lei que lhe é permitida tal ação”, respondia, “pois está usando de seu direito, embora outros venham a ser prejudicados” (idem). Há dois pontos de especial significado nesse raciocínio. O primeiro constitui a analogia, estabelecida por João Quidort, entre propriedades particulares e potências. As relações entre potências eram equiparadas, juridicamente, às relações entre unidades individuais de direito, num sentido muito próximo àquele encontrado nas teorias contratualistas. O 486 CAP. 5 - A HORA DOS REIS segundo ponto é o reconhecimento do interesse próprio como fonte absoluta de direito. Assim como o agricultor tinha o direito de usar as águas de sua fonte segundo lhe parecesse melhor, mesmo com prejuízo dos vizinhos, também o príncipe podia tomar as medidas que julgasse necessárias, “mesmo com a intenção de prejudicar”, na defesa própria ou de seu reino. Note-se a diferença entre duas questões: uma era o direito absoluto de agir, outra era a obrigação do príncipe de defender a república (“cujo cuidado incumbe ao rei”). A segunda noção fazia parte da tradição medieval: o governante era o guardião da coisa pública. A primeira era parte de uma idéia em formação: a dos Estados (regna, res publicae etc.) como sujeitos de interesses que se antepunham, por direito, a quaisquer outros. Essa seria, na forma acabada, a mais radical concepção moderna da soberania de cada potência em face das demais. Mas João Quidort não parava aí: para sustentar a idependência do reino franco, recorria ainda a um argumento do antigo direito imperial romano, a prescrição pelo costume. Assim o reino da França foi governado por reis santos durante longo tempo e de boa-fé, servindo como exemplo São Luís, canonizado pela Igreja. E a Igreja, pela canonização, reconheceu o fato. Digam, pois, alguns teólogos o que quiserem: com o direito humano [iure humano] corre sempre a apropriação das coisas e a sujeição de homens; segundo Santo Agostinho [...], podem os direitos humanos fazer com que, por motivo sério, torne-se comum ou de outro aquilo que é meu, e deste modo transfere-se o domínio [dominium]. Assim, pois, desde que os direitos imperiais determinam que após um tempo previsto algo caia em prescrição, transfere-se o domínio, e isto para a utilidade comum, em castigo do negligente e em favor do proprietário de boa-fé, a fim de que os litígios não se estendam sem fim e não se multipliquem. Um tal possuidor por prescrição não tem em mãos algo de alheio, mas de próprio, enquanto tornou-se seu por legítima prescri487 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ção. Portanto, suposto que o reino da França estivesse outrora sujeito, esta sujeição entrementes prescreveu”. (SPRP, p. 132-3) Se essa era a regra do direito, por que razão não se podia falar de uma prescrição do império romano? “Os gregos”, explicava o Pregador, tiveram de Deus o império e os romanos usaram a prescrição contra os gregos e tentaram usurpar o império expulsando os gregos. Por que não podem então outros homens aplicar a prescrição contra o império romano, e afastar-se do domínio dele, principalmente se foram a ele submetidos não livremente, mas pela violência, como se lê dos gauleses, que nunca, antes da vinda dos francos, se haviam livremente sujeitado aos romanos mas conforme as possibilidades sempre se revoltavam, vencendo umas vezes, perdendo outras? Se, pois os romanos alcançaram o domínio pela violência, não se pode, com justiça, pela violência, repelir seu domínio, ou contra ele aplicar a prescrição? (SPRP, p. 134) A resposta era óbvia: “nada foi mais forte que o reino dos romanos, e no final nada será mais débil e mais frágil” (idem). Poucos autores do período ilustraram melhor a dissolução do imperium. Por fim, a Doação de Constantino, outro fundamento longínquo das reivindicações hierocráticas, merecia sua atenção. Por toda a documentação disponível, esclarecia João de Paris, recorrendo uma vez mais à história, sabia-se que Constantino doara à Igreja somente uma província determinada, a Itália, e algumas outras partes, entre as quais não estava a França, e que transferira então o império para os gregos, fundando lá a nova Roma. Mas estava também em discussão, no que respeitava a essa matéria, um ponto ainda mais relevante: a translação do império dos gregos aos germanos, feita, como se diz, pelos romanos e o papa, na pessoa do impe488 CAP. 5 - A HORA DOS REIS rador Carlos Magno. A esse respeito deve-se observar que, pelo que consta nas crônicas citadas, não houve translação, pois o império permaneceu de fato com os gregos, e com os ocidentais apenas de nome. Ou pode-se dizer que houve uma divisão, de tal modo que dois passaram a chamar-se imperadores, o romano e o constantinopolitano. (SPRP, p. 129-30 – grifos meus) Assim narrada, a história política e jurídica da cristandade ocidental ganhava em clareza e realismo: os episódios que a caracterizavam podiam ser descritos como uma seqüência de usurpações e fantasias às quais se atribuíra valor de verdade, e que o costume perpetuara. Os romanos haviam abandonado o império grego, explicava João Quidort, por três motivos: em primeiro lugar, pela defesa da república, empreendida por Carlos Magno, enquanto o imperador Constantino não se preocupava com ela; em segundo lugar, por causa da imperatriz Irene, que mandou cegar seu filho Constantino e os filhos deste, para poder reinar sozinha; em terceiro lugar, porque se haviam indignado porque Constantino transferira o império deles para os gregos, cujo domínio suportavam com dificuldade, e por isso aclamaram como imperador ao vitorioso Carlos. (SPRP, p. 130) Dessa perspectiva, sustentava o autor, podia-se concluir que tanto a doação quanto a translação do império não conferiam ao sumo pontífice poder algum sobre o rei da França: primeiro, porque a Doação não incluía o reino francês; segundo, porque, do ponto de vista do Corpus Iuris Civilis, ela era inválida; terceiro, porque os francos jamais haviam sido submetidos ao império; e quarto, porque, mesmo que todas as afirmações anteriores fossem verdadeiras – o que não aceitava o Pregador –, ainda assim o papa nada poderia contra o rei da França, pois não era imperador. Também os motivos apontados por João Quidort para fundamentar a ilegalidade da Doação de Constantino ofereciam uma boa amostra do alcançe das transformações em 489 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO curso no período e eram assim apresentados: “O imperador é chamado de ‘semper augustus’ porque é sua missão aumentar (augere) sempre o império, e não diminuí-lo. Por isso a doação evidentemente não podia ser válida, porque era por demais excessiva e imensa”. E considerava adiante: “Tal entende-se quando a doação provém dos bens pessoais do imperador, não quando provém do erário público [de patrimonio fisci], que deve ser sempre conservado e do qual não pode dispor a não ser com moderação e em determinados casos” (SPRP, p. 130). Como o imperador era o administrador do império e da república, a doação tinha sido nula, de acordo com as leis imperiais contidas no Digesto. E, se fora transformada em lei, tal doação estaria revogada, “pois uma lei pode ser revogada pelo sucessor daquele que a promulgou, visto que entre pares um não tem poder sobre outro” (SPRP, p. 131). E, como ensinara o antigo direito romano, os bens públicos eram intransferíveis. Exatamente sobre esse raciocínio repousava a noção medieval da “inalienabilidade”: os direitos foram inicialmente chamados inalienáveis, explica Riesenberger, em relação ao bem público comum. Tal teoria logo se tornaria um princípio de direito público, como, por exemplo, em Bodin. Essa era ainda a razão pela qual reis e imperadores medievais relembravam constantemente as doações, translações etc.147 Também João Quidort precisava invocá-la e rejeitar sua validade sobre o território francês, a fim de manter a reivindicação da inalienabilidade do poder de jurisdição do rei franco. O Augustus poderia, enquanto pessoa singular, doar à Igreja tudo que desejasse. Mas isso não valia para as propriedades do fisco, as quais, tendo sido criadas para uso e benefício da comunidade política, jamais podiam perecer. Pois o 147 Cf. RIESENBERGER, Peter. Inalienability of sovereignty in medieval political thought. New York: Columbia University Press, 1956. p. 177 et seq. 490 CAP. 5 - A HORA DOS REIS imperador, como o rei, era somente um administrador do imperium e, por isso, não podia alienar o que lhe fora confiado. E como a lei romana proibia aos ocupantes de um cargo coagir seus iguais, tornava-se impossível que Constantino tivesse prejudicado legalmente seus sucessores, privando-os do que lhes era devido pelo ofício. Em nome da Coroa, João Quidort falava simultaneamente contra o papa e contra o imperador. A intrincada relação entre os dois poderes de natureza teocrática, encarnada no imperium e no sacerdotium, e que dominara o cenário nos últimos séculos do medievo, dava lugar a uma reivindicação de caráter mundano, a boa vida terrena segundo a virtude, que independia de considerações de natureza sagrada. O ponto fundamental agora era situar os dois poderes em questão – o temporal, do âmbito civil, e o espiritual, do religioso – em instituições distintas e autônomas, uma ocupada da ordem natural, a outra da sobrenatural. E, embora essa separação já fosse clara em Tomás de Aquino e João Quidort, ela logo seria tornada ainda mais explícita por autores como Marsílio de Pádua. Também o velho problema das temporalia e spiritualia, recorda Ullmann, “que havia resistido a qualquer tipo de solução razoável, resolvia-se com a correspondência entre o natural e o temporal, e o sobrenatural e o espiritual”.148 E, porque todo poder passava a ter origem apenas e tão-somente em Deus, que o transmitia para o povo, os governantes não teriam mais de prestar contas senão ao Senhor. O poder civil libertava-se assim definitivamente – tanto de iure quanto de facto – de toda tutela da Ecclesia em assuntos temporais. Desse ponto de vista, alerta Quillet, o princípio da distinção dos poderes carecia agora de objeto: ao dualismo gelasiano, que constituíra até então a base essen148 ULLMANN, op. cit., 1985, p. 264. 491 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO cial da evolução dos fatos e das doutrinas, sucedia a unificação do poder.149 Tal potestas, que passava a ser entendido como único, exclusivo e indivisível qualquer que fosse o regime, comportaria inúmeras modalidades de aplicação – o governo constitucional, a monarquia absoluta e o império habsburgo eram apenas algumas delas. Também o movimento ideológico que havia constituído a noção de soberania estava assim consolidado: uma noção de jurisdição – entendida como o governo do justo e do injusto – independente de toda lei divina ou natural, e alicerçada exclusivamente na lei humana e no “governo dos homens pelos homens”,150 havia sido, mais do que criada, fundamentada. Terminava assim um longo processo que envolvera os principais atores do medievo europeu ocidental e resultaria na junção de duas noções – uma de natureza política e outra de caráter jurídico –, que se desenvolviam paralelamente, a do Estado territorial moderno e a de soberania, numa entidade única, que teria a sua expressão mais bem acabada naquela gravura que ilustra a mais conhecida obra de Thomas Hobbes: a do Leviatã moderno. 149 Cf. QUILLET, J. Pouvoir temporel et pouvoir espirituel aux XIVe et XVe siècle: complémentarité ou conflit?. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 61-2. 150 “[...] as [coisas] que se referem à jurisdição não se encontram acima da natureza e da condição do dever e dos homens, pois não está acima da condição dos homens que os homens governem aos homens” (SPRP, p. 149 – grifos meus). 492 CAP. 5 - A HORA DOS REIS FINAL O PODER SEM PECADO 493 Os elementos necessários a uma teoria individualista já estavam presentes em João Quidort, com suas idéias a respeito da propriedade e das conseqüências políticas dela derivadas. A noção de indivíduos como átomos iguais, livres e portadores, naturalmente, de reivindicações igualmente legítimas teria reflexos no desenvolvimento da teoria dos direitos – antecipada em João de Paris – e na concepção das relações entre Estado e indivíduo, embora não fosse essencial à construção de determinados conceitos, como o de soberania. Em Bodin, por exemplo, a unidade relevante era a família (no sentido antigo), e não o indivíduo. Para ele, a relação de comando típica da vida política já estava embutida na estrutura familiar. Mas o individualismo, até por seus fundamentos cristãos, foi a concepção dominante no pensamento político moderno, pelo menos desde o século XIV até o XVIII. Com Marsílio de Pádua e Guilherme de Ockham, o indivíduo assumia de forma indiscutível uma posição central na reflexão sociopolítica. Esses autores entraram em cena durante o conflito entre o papa João XXII (1316-34) e o imperador Luís da Baviera (1314-47). João XXII tentou intervir, de Avignon, na eleição imperial. Cinco príncipes eleitores haviam votado em Luís da Baviera (da casa dos Wittelsbach) e três em Frederico da Áustria (casa dos Habsburg). Luís foi coroado em Mogúncia, no ano de 1314, e Frederico em Bonn, cada um deles por um arcebispo. Depois de dois anos de luta, apelaram ao papa, mas este decidiu não se pronunciar, atendendo aos interesses do rei de Nápoles. Estava em jogo o controle do norte da Itália, que interessava tanto a Luís quanto ao papa e a seus aliados. Luís SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO venceu Frederico em batalha, e pouco depois seus aliados passaram a controlar o norte italiano. João XXII, sem alternativa, excomungou o imperador (1324). Marsílio e Guilherme de Ockham entraram na polêmica em defesa do poder temporal, do lado de Luís da Baviera. Para ambos, o papado havia se tornado herético, ao intervir de maneira tão direta em assuntos seculares: ao clero, reivindicavam, cabia recuperar sua missão primitiva e o ideal de pobreza evangélica.1 I MARSÍLIO DE PÁDUA E A SUPREMACIA DA COMUNIDADE POLÍTICA Essa intromissão papal indevida nos assuntos seculares constituía um dos principais alvos do Defensor pacis, escrito por Marsílio de Pádua. O livro, dedicado ao imperador, foi publicado em 1324. Dois anos haviam se passado quando a obra recebeu atenção dos curialistas. Marsílio, proveniente de uma família italiana burguesa formada basicamente de funcionários públicos, fora estudante das artes jurídicas na juventude, mas acabou optando pela medicina, profissão que exerceu de maneira mais ou menos intensa até sua morte, ocorrida provavelmente no ano de 1343. Seu nome, contudo, pouco ou nada dizia até aquele momento. Em 1326, cinco teses de seu livro foram condenadas pela cúria romana, levando-o, juntamente com o amigo e interlocutor João de Jandun, a procurar refúgio na corte do imperador, que prontamente os acolheu. 1 Souza faz um comentário instigante sobre a defesa da pobreza evangélica por Marsílio: segundo ele, o pensador paduano reivindicava a defesa de um clero pobre, sem riquezas nem luxo, e dependente da esmola dos fiéis, a fim de que não pudesse exercer, em tempos de acelerado progresso econômico, influência política. Cf. SOUZA, J. A. C. R. As teses do Defensor pacis, II, XIII. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 205-27. 496 FINAL - O PODER SEM PECADO Rapidamente, a influência do pensador paduano sobre o monarca tornou-se visível e ele passou a acompanhá-lo em suas missões pela Itália, aconselhando e opinando a respeito de praticamente todas as matérias políticas. Não demorou, contudo, para que o radicalismo de suas posições começasse a interferir no bom andamento dos assuntos do Estado. Depois de uma malfadada excursão com a comitiva imperial pelas cidades itálicas, encerrada por volta de 1330, Marsílio foi enviado de volta a Munique, onde se retirou da cena pública até o início dos anos 40. Nesse período, novos exilados na corte imperial, mais inclinados à conciliação com o papado, ganharam destaque junto ao seu protetor. Entre eles, estavam os frades franciscanos Miguel de Cesena, superior da ordem, e Guilherme de Ockham, acusado de heresia pelo papa João XXII em 1328.2 O Defensor pacis, de Marsílio, constituía um exame das condições necessárias à paz, um tema de longa duração na história do pensamento político. Monarquia, de Dante Alighieri, e Leviatã, de Thomas Hobbes, por exemplo, também constituíam reflexões sobre esse tema. Uma das condições da paz, procurava mostrar Marsílio de Pádua, era a limitação das pretensões de plenitude de poder em assuntos temporais reivindicada pelo papado.3 A tese, no entanto, não era simplesmente afirmada. Marsílio circunscrevia cuidadosamente o campo da reflexão política. Os laços entre a natureza e Deus eram matéria de fé e, por isso, não podiam ser demonstrados. A ciência política devia limitar-se, portanto, a cuidar dos objetos acessíveis à razão e à experiência. 2 3 Para uma abordagem detalhada dos dados históricos que envolveram a disputa cf. MIETHKE, J. Der Weltanspruch des Papstes im späteren Mittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 399-402. Cf. SOUZA, BERTELLONI & PIAIA. Introdução. In: PÁDUA, O defensor da paz. Ed. José Antonio Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 13-63. 497 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO A manutenção da fé na comunidade dos fiéis, argumentava o autor, não dependia nem de facto nem de iure de qualquer reivindicação de plenitude do poder, fosse ela temporal ou espiritual, pelo sumo pontífice. Tais pretensões, pelo contrário, ameaçavam a paz e a felicidade humanas. A interferência do governo eclesiástico na vida secular, constatava o pensador paduano, havia trazido somente a disputa de facções e a insegurança para a comunidade dos cristãos, principalmente na Itália. Com seu tratado, Marsílio pretendia que as autoridades seculares detivessem e revertessem a expansão dos poderes terrenos do bispo de Roma. “O Defensor pacis”, escreve Nederman, “representa um chamado direto aos príncipes e cidadãos de toda cristandade latina para restaurar o papa em seu papel legal (e extremamente limitado) dentro do governo da Igreja”.4 Para que esse apelo fosse o mais abrangente possível, Marsílio construiu em sua obra uma teoria política de caráter secular bastante genérica, capaz de contemplar tanto as pretensões imperiais quanto aquelas dos reis e as das cidadesrepública italianas. A primeira parte do livro era dedicada ao estudo das origens e natureza da autoridade política temporal. Nela, a ênfase recaía na noção do consentimento popular como fundamento do bom governo, sem que uma forma constitucional específica fosse advogada: sua preocupação era estipular os arranjos institucionais necessários para sustentar a unidade e a estabilidade das comunidades políticas seculares, de modo a poder rejeitar toda interferência eclesiástica. A segunda parte do livro consistia numa investigação e refutação de várias das reivindicações de poder dos clérigos e, especialmente, do sumo pontífice. O governo da Ecclesia, sustentava o jurista patavino seguindo as pegadas de João Quidort, devia 4 NEDERMAN, C. From Defensor pacis to Defensor minor: the problem of empire in Marsiglio of Padua. History of Political Thought, v. 16, n. 3, p. 316-7, autumn 1995. 498 FINAL - O PODER SEM PECADO caber a um concílio geral formado por seus membros: ao papa caberia somente a execução de suas decisões. Homem engajado nas controvérsias de seu tempo, Marsílio usava bem os recursos e avanços disponíveis, fossem eles teóricos ou práticos. Não apenas conhecia em profundidade a literatura da época, como também a manuseava com rigor e precisão para a consecução de seus objetivos políticos. Para interpretar as transformações em curso, nada era desperdiçado: o legado greco-romano, os acréscimos da jurisprudência, a síntese tomista e as idéias de seus contemporâneos tornavam-se assim instrumentos de combate. Do mesmo modo, recorria à tradição para explicar a comunidade política: os homens, movidos pela percepção de que reunidos poderiam tirar maior proveito das habilidades de cada um e evitar os prejuízos causados por condições naturais adversas, explicava o autor acrescentando um fator “utilitário” à formulação aristotélica, agruparam-se em comunidade para melhor realizar os fins da vida temporal: o gozo pacífico dos frutos materiais e morais da existência terrena, isto é, a boa vida (DP I.4.3-5).5 Tal comunidade política perfeita, ou universitas civium, no entanto, continuava ele na mesma vertente ciceroniana também utilizada por João Quidort, só pôde ser atingida por meio do exercício continuado da razão pelos seres humanos e pelo uso de seu livre-arbítrio, que lhes permitiu consentir na associação comunal e chegar a um acordo a respeito do bem comum (DP I.13.5-8). Nesses cidadãos, portanto, sustentava ele remontando a João Quidort e ao mestre de To5 As citações utilizadas aqui foram retiradas da seguinte edição brasileira: PÁDUA, Marsílio de. O defensor da paz (DP). Ed. José Antonio Camargo Rodrigues de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997. Cf. tb. a importante edição crítica francesa: PADOUE, Marsile de. Le défenseur de la paix. Ed. J. Quillet. Paris: J. Vrin, 1968. A versão latina pode ser encontrada na seguinte edição: PADUA, Marsilius von. Defensor pacis. Ed. Richard Scholz. Hannover: Hahnsche Buchhandlung, 1932. 499 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO más de Aquino, repousava a base do consentimento, única fonte legítima da autoridade política. Ao aquiescerem, por meio da livre escolha, especificava, os homens se sujeitavam então às leis e aos governantes. Ou seja, o estabelecimento e a perpetuação da comunidade política derivavam do exercício da faculdade humana natural da razão e da volição, e não de uma concessão divina. Para que o objetivo da vida humana coletiva – a paz e a tranquilidade – pudesse ser alcançado, impunha-se a instituição de uma autoridade que subordinasse os demais membros da comunidade, de modo a preservar a unidade e a harmonia e garantir a permuta dos bens. Para tanto, era necessário um poder único que tivesse sido organizado para o fim de reger a comunidade, sem contrariar com isso as leis divina e natural. O governante, encarregado de administrar a associação política na direção desse objetivo, fosse ele a comunidade dos cidadãos (universitas civium), fosse a sua parte mais importante (valentior pars sua), tinha autoridade para dirigir todos os seus subordinados e para punir, quando necessário, quem quer que fosse, de acordo com as leis estabelecidas pelo povo que o havia instituído.6 Deus continuava sendo, nesse modelo, a causa remota de todo poder. Mas o seu depositário, como em João Quidort e Tomás de Aquino, era o povo.7 Segundo Marsílio, havia dois tipos básicos de lei: a divina, ordenada por Deus, o qual julgava de acordo com ela; e 6 7 Cf. SOUZA, J. A. C. R. Introdução. In: PÁDUA, Marsílio de. Defensor minor (DM). Petrópolis: Vozes, 1991. p. 21-3. John Morral comentou essa idéia em Marsílio, afirmando que tal transferência do poder último tanto do regnum quanto do sacerdotium para o povo soberano antevia o fim do papel político distintivo que a Europa ocidental havia concedido à Igreja em graus diversos desde a conversão de Constantino. Mesmo que Marsílio não pudesse perceber, escrevia Morral, a comunidade cristã universal criada pela Idade Média deixava de existir e um novo leitmotiv político passava a assumir o controle: o Estado moderno. Cf. MORRAL, op. cit., p. 118. 500 FINAL - O PODER SEM PECADO a humana, estabelecida pelo legislador terreno e imposta por meio daqueles aos quais esse legislador atribuiu papel judicial. A primeira tratava do que era necessário para se alcançar a salvação; a segunda do castigo e da premiação na vida presente. Lei (lex), em sentido próprio, explicava o jurista patavino, em si mesma, revelava apenas o justo e o injusto e, como tal, era chamada a ciência do direito. Sob um segundo aspecto, contudo, podia ser entendida como um comando coercitivo cuja observância se dava por meio de punição ou recompensa a ser distribuída no mundo presente (DP I.10.4). A capacidade de fazer leis vinculantes se restringia exclusivamente ao legislador humano (humanus legislator). Segundo esse raciocínio, era possível a Marsílio negar aos preceitos canônicos o caráter de lei em sentido próprio e, com isso, a aplicação de tais cânones neste mundo, tal como advogara João Quidort pouco antes. Pois, para ele, as leis humanas existiam dentro de uma perspectiva estritamente secular. Por isso, concentrava na vontade humana e no atributo da coerção os seus elementos constitutivos. Mas ia além na formulação: lei era, propriamente falando, somente a lex humana. As demais podiam compartilhar com ela o nome, mas no contexto do mundo terreno não podiam ser consideradas verdadeiras leis. Marsílio acreditava na lei divina e a aceitava como válida. Mas seu efeito, a recompensa ou castigo, dizia ele, só poderia ser sentido no outro mundo (DP I.10.3). Já a lei natural constituía um tipo de lei humana: consistia nos princípios gerais de justiça comuns aos vários povos e dedutíveis pela razão (DP II.127-8). Embora fosse da essência da lei humana ser posta, como resultado de um comando coercitivo, seu conteúdo geralmente dispunha de uma qualidade moral. O objetivo maior de Marsílio, escreve Canning, “era produzir para a lei humana uma definição econômica, que deixasse a determinação da lei secular apenas nas mãos de leigos: ignorando a lei natural no sentido tradicional, localizando os efeitos da lei divina no outro mundo e negando a validade de uma 501 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO jurisdição eclesiástica própria, ele acreditava ter limpado o terreno sobre o qual o clero podia reivindicar interferência na lei secular e no governo”.8 A “lei canônica”, explicava o pensador paduano ecoando João Quidort, só havia se convertido numa realidade graças à superstição e ignorância dos leigos, à vontade complacente de reis e imperadores e à habilidade e criatividade dos papas (DP II.15.1-20). Um tal poder coercitivo não era, obviamente, arbitrário: a lei, expressão do poder coativo, era o que mantinha coesa a comunidade política, além de ser necessária para atingir o bem público e para assegurar a continuidade do governo (DP 1.11.1 e 8). Lei, portanto, não constituía, em seu raciocínio, mera expressão de uma estrutura de poder: como uma regra coercitiva, ela era o instrumento necessário para a obtenção do bem comum, objetivo que requeria um governo firme e duradouro.9 Por essa razão, o governo supremo de um reino, lembrava o jurista patavino, devia ser apenas um em número (DP I.17.1-2). 8 9 CANNING, J. Law, sovereignty and corporation theory, 1300-1450. In: BURNS, op. cit., 1991, p. 461. Num certo sentido, o exercício do poder na forma de coerção poderia ser tomado como o núcleo fundamental da lei humana em Marsílio e como a garantia da boa ordem e do governo da sociedade, argumenta Canning. Isso, contudo, não faria do autor um “positivista legal”, alerta ele: embora o pensador patavino enxergasse as leis – enquanto preceitos coativos – como um fato da vida social, não as via como opostas a ou limitadoras da natureza humana. Pois, ao localizar o poder coativo na comunidade política e, dessa forma, no legislador humano – representação do povo ou de sua parte principal e autor das leis por meio do consentimento –, nada do que fosse proposto por esse legislador podia ser contra a natureza ou a divindade, já que a feitura da lei supunha a recta ratio e tinha como fim a paz e a tranqüilidade dos homens congregados. Isto é, porque essa comunidade política era semelhante a uma natureza animada, ela faria para si somente leis adequadas, dado que, como qualquer animal, ela buscava apenas a sua sobrevivência. Desse modo, não 502 FINAL - O PODER SEM PECADO As implicações deste raciocínio eram evidentes: Marsílio deixava para trás o mundo dualista e sua lógica dos poderes coordenados. A noção de um poder político fundado no respeito pela autonomia dos poderes temporal e espiritual perdia terreno. Caminhava-se agora na direção daquela constatação tão bem expressa por Hobbes séculos mais tarde: a de que “o governo temporal e espiritual são apenas duas palavras trazidas ao mundo para fazer os homens enxergarem duplicadamente e confundir o seu Soberano Legal”.10 No Defensor minor, escrito provavelmente entre 1330 e 1342, Marsílio retomou o problema da relação entre lei e coerção. Lá desaparecera qualquer reticência: nele o autor negava explicitamente a validade das leis positivas que infringissem normas superiores. No capítulo 8, afirmava que as leis divinas e humanas deviam ser consistentes e se reforçar mutuamente. A lei sagrada, dada por Deus, decretava obediência a toda legislação humana que não fosse incompatível com os ditames divinos. A lei humana, portanto, nada devia promulgar que contradissesse ou conflitasse com a vontade de Deus. Mais adiante, no capítulo 13, afirmava que quando surgia um caso no qual algum estatuto humano obrigava a algo que era oposto à lei divina, esta última devia ter absoluta precedência sobre a primeira: Marsílio retomava aqui, propositalmente ou não, a boa tradição cristã. O poder jurisdicional envolvia a capacidade de coerção por parte do legislador humano e, portanto, concluía o pensador paduano, constituía matéria terrena, e não das almas. Por esta razão, somente ao governante temporal cabia a reivindicação da plenitudo potestatis in temporalibus. A Ecclesia, embora pudesse ter plenitude de poder em assuntos espiri- 10 havia contradição entre as regras coercitivas e a razão humana. Cf. CANNING, J. The role of power in the political thought of Marsilius of Padua. History of Political Thought, v. 20, n. 1, p. 30-2, spring 1999. HOBBES, T. Leviathan. Harmondsworth: Penguin Books, 1988. p. 498. 503 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO tuais, nada tinha a declarar ou a exigir em assuntos mundanos. “A teoria política de Marsílio”, esclarece Canning, “era uma tentativa de mostrar que o poder coercitivo constituía a espinha dorsal do governo legítimo, e de revelar onde este poder repousava e os mecanismos por meio dos quais ele devia ser exercido. Ele tinha de fazer isso a fim de poder destruir intelectualmente as falsas reivindicações do papado e sua corte”,11 o qual ele identificava àquela “estátua horrível” vista por Nabucodonosor em seu sonho (DP II.24.17). Por não constituir aquele governante a quem cabia a imposição e o cumprimento da lei humana, fundamento da vida coletiva, o sumo pontífice – e qualquer outro clérigo – desfrutava do mesmo status que as outras partes do corpo cívico. Os sacerdotes não apenas não podiam usurpar legitimamente poderes de legislação e imposição coercitiva, mas ainda estavam sujeitos ao legislador humano em todos os assuntos relacionados às suas próprias pessoas temporais e à sua propriedade, assim como aos bens da Ecclesia. Como na comunidade política era necessária a unidade de comando, não podia haver em seu seio um poder autônomo. Como conseqüência lógica, era preciso negar à Igreja toda plenitude de poder temporal. A comunidade cívica, por outro lado, não devia expulsar a Ecclesia para fora do grupo, e sim associar-se a ela, deixando-a cumprir com a sua função: a de educar os homens para a fé no Senhor e nas Escrituras, garantindo-lhes a salvação eterna.12 Marsílio opunha-se, assim, consistentemente às pretensões papais de jurisdição terrena. O governo eclesiástico do sumo pontífice era reconhecido por ele como mero agente executivo do concílio geral e, por isso, incapaz de agir por conta própria. Esse concílio devia representar todos os fiéis cristãos, sustentava o jurista patavino, e somente ele era com11 12 CANNING, op. cit., 1999, p. 26-7. Cf. SOUZA. Introdução. In: DM, p. 27-8. 504 FINAL - O PODER SEM PECADO petente para decidir os objetivos básicos da fé e estabelecer os cargos e rituais apropriados à Igreja. No Defensor minor, Marsílio fazia uma apreciação minuciosa da natureza e operação do concílio geral da Ecclesia: seu objetivo, afirmava o autor, era a interpretação canônica da Sagrada Escritura. Como tais verdades sagradas eram fixadas para todo o sempre, a tarefa do concílio limitava-se a descobrir e articular tais verdades com referência ao Espírito Santo. Por essa razão, o concílio geral podia ser dito infalível num sentido em que sacerdotes ou prelados individuais não o eram: somente ele tinha acesso à verdade eterna. Aqui Marsílio respondia às críticas feitas por Guilherme de Ockham contra a infalibilidade conciliar uma década antes: segundo ele, o que não era possível a uma pessoa realizar podia, às vezes, ser alcançado pela cooperação de muitos.13 No caso do concílio geral, essa colaboração acontecia como resultado de discussão e da sabedoria das partes, e por meio dela um consenso sobre a verdade podia ser eventualmente estabelecido. O Espírito Santo, dizia o autor, estava infundido nos membros individuais do concílio, como resultado de sua interação recíproca, por meio de um processo semelhante àquele pelo qual as comunidades civis chegavam a um acordo sobre a legislação. Estavam lançadas as bases do movimento conciliarista que forneceria à Ecclesia um fundamento constitucional de governo.14 13 14 Cf. SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockham a favor do primado de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 473-84. No início do século XV, ecreve Oakley, já havia sido criado um certo consenso acerca da figura do príncipe eclesiástico: ele já não era mais um monarca absoluto, e sim muito mais um governante constitucional. Sua autoridade passara a ser entendida como meramente ministerial, a ele delegada para o bem da Igreja. A autoridade final repousava agora não mais em sua figura, mas na congregação dos fiéis como um todo, ou nos seus representantes reunidos no concílio geral. Sobre tais fundamentos assentava-se o movimento conciliarista que se havia imposto 505 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Apesar da infalibilidade atribuída ao concílio, a competência para fazer valer as decisões de uma tal assembléia de todos os fiéis só podia caber a um governante cuja autoridade coercitiva se estendesse por todos os rincões da cristandade. E o único governante capaz de se adequar a esse critério, constatava o pensador paduano no Defensor minor, era o imperador Romano (DM 16.4). No Defensor pacis essa autoridade havia sido nomeada por Marsílio em termos mais vagos: competia ao “legislador humano cristão, acima do qual não há nenhuma outra autoridade” (DP II.21.1). Talvez porque, depois dos infortúnios vividos durante o conflito entre o papa e o imperador, anos antes, que lhe haviam rendido anos de reclusão, Marsílio tivesse retornado à militância.15 O imperium e seu governante, no Defensor minor, eram provavelmente vistos menos como a incorporação de um ideal imperial maior, como quisera Dante, e mais como um aliado útil na batalha para conter o papado. Além disso, constituía à época a única liderança capaz de insurgir-se concretamente contra Avignon. Diferentemente do Defensor pacis, menos 15 ao Ocidente a partir de meados do século XIV e atravessaria todo o século XV. Cf. OAKLEY, Francis. Natural law, the corpus mysticum and consent in conciliar thought from John of Paris to Matthias Ugonius. Speculum, Massachusetts, The Medieval Academy of America, v. 56, p. 786-810, 1981. Depois de sua malsucedida excursão com o imperador Luís da Baviera pelo norte da Itália na década de 20, que somente havia acirrado o conflito entre imperium e sacerdotium, Marsílio atritou-se com o imperador pelo fato de que este pretendia ceder a algumas das exigências papais e retroceder um pouco em suas posições anticlericais. Ao fim de quase uma década sem aparições significativas, o pensador paduano reapareceu na cena pública para reafirmar que qualquer tentativa de reconciliação com o papado seria inútil. Para enfrentar o desafio, publicou o Defensor minor, cuja data da composição é incerta e controversa: é geralmente situada entre o final da década de 30 e o ano de 1342. Cf. NEDERMAN, C. Editor’s introduction. In: PADUA, Marsiglio of. “Defensor minor’” and “De translatione imperii”. Ed. C. Nederman. Cambridge: University Press, 1993. p. XVIII. 506 FINAL - O PODER SEM PECADO convencional, a obra posterior não introduzia uma clivagem entre a discussão do governo temporal e a da eclesiologia, entre os reinos natural e sobrenatural. Nele, Marsílio concentrou-se na relação entre jurisdição temporal e autoridade espiritual, como era comum em seu tempo. Enquanto no primeiro livro ele adotara uma abordagem genérica da comunidade política, sem privilegiar nenhum sistema constitucional, no Defensor minor procurou traduzir tais princípios gerais do poder temporal nos termos concretos de um governo imperial, e não mais nos da civitas ou do reino. Mas sua abordagem a respeito da origem do poder temporal permanecera intocada. O império, como qualquer outra unidade política terrena, reafirmava Marsílio no Defensor minor, tinha um fundamento independente: originava-se do consentimento da comunidade corporada (ou “legislador humano”). O papado, do mesmo modo que no Defensor pacis, não desfrutava de maior direito de interferência nos assuntos do império do que as outras formas de associação política. Mesmo atribuindo poderes especiais ao imperador romano, como reunir o concílio geral dos fiéis e impor suas decisões, Marsílio era cuidadoso e alertava para a contingência da reivindicação de superioridade do poder imperial romano: um tal direito não era fundado numa vontade divina nem numa necessidade da natureza, e sim fora-lhe delegado pelo povo romano e, por isso, podia ser sempre revogado pela comunidade (DM 12.3). No seu breve tratado sobre a Doação de Constantino, o De translatione imperii, escrito provavelmente entre 1324 e 1334, Marsílio já havia estabelecido que o titular do cargo de imperador romano ocupava tal posição como resultado de uma série de transferências legais do poder, e de acordo com o procedimento adequado para sua eleição. Sustentava ainda, como havia feito João Quidort, que independentemente do papel exercido pelo sumo pontífice – o qual facilitara a transferência da cadeia imperial para os francos e, posteriormente, para os germânicos –, sua função havia sido pura507 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO mente honorífica e acidental. Pois, mesmo que o costume tivesse permitido aos papas coroar novos imperadores, a fonte da autoridade imperial não era o papado, mas um processo histórico terreno externo ao controle do papa.16 Era claro, portanto, que o consenso tinha prioridade sobre as demais justificações da autoridade: mesmo o imperador romano gozava de certas prerrogativas somente porque elas lhe haviam sido concedidas por um ato de consentimento livre dos povos que se haviam submetido a Roma. A autoridade e o poder coercitivo para criar e impor as leis humanas derivadas da instituição do poder político pertenciam à universitas civium ou ao príncipe supremo – nomeado no Defensor minor o imperador romano. Mas esse apenas representava os poderes legislativos da comunidade. A transferência condicional de tais poderes ao governante romano, explicava Marsílio, somente exemplificava um modo segundo o qual as comunidades humanas escolhiam usar o consentimento civil que nelas residia. Em nenhum momento, contudo, tratava-se de abrir mão dos direitos judiciais ou legislativos delegados: por mais que os poderes transferidos ao imperador lhe conferissem jurisdição suprema, ele não podia reivindicar o monopólio sobre os poderes governamentais. A comunidade política, fosse ela o império, o reino, o principado ou a civitas, passava a ser entendida em termos puramente leigos, como uma entidade com fim próprio, vinculada às necessidades naturais do homem. Constituía um produto da ação e razão humanas e resultava da conjugação das vontades dos cidadãos, que podiam opinar diretamente ou por meio de representantes.17 Volição e ato se manifesta16 17 Ibid., p. XIII. D’Entrèves chama atenção para o que ele descreve como “germes de dois institutos que deverão assumir grande importância no Estado mo508 FINAL - O PODER SEM PECADO vam na instituição da lei e do poder. Tais idéias certamente não eram novas.18 Mas a formulação de Marsílio proporcionava clareza conceitual: “O legislador ou a causa eficiente primeira e específica da lei”, escrevia ele, é o povo ou o conjunto dos cidadãos ou sua parte preponderante, por meio de sua escolha ou vontade externada verbalmente no seio de sua assembléia geral, prescrevendo ou determinando que algo deva ser feito ou não, quanto aos atos civis, sob pena de castigo ou punição temporal. (DP I.12.3) O povo, o conjunto dos cidadãos, constituía, portanto, a origem e a fonte de todo poder terreno. E, como a função das leis era proporcionar bem-estar nesta vida, os cidadãos constituíam o grupo mais qualificado para elaborá-las, já que eram aqueles que melhor conheciam os objetivos que desejavam alcançar. As pessoas comuns, em seu raciocínio, dispunham de competência suficiente para o exercício das responsabilidades políticas.19 Por isso, a correção de governantes negligentes ou daninhos pertencia ao legislador humano – 18 19 derno”, o da representação e o da divisão dos poderes. “Remontam à Idade Média as origens das instituições que hoje chamamos representativas ou parlamentares: não se enganava Rousseau, seu feroz adversário, ao ver nelas uma sobrevivência dos tempos feudais”. Quanto à divisão dos poderes, continua, não existe como doutrina formulada, mas está “de certo modo implícita na concepção [...] do poder político como limitado à tutela e à aplicação do direito”, devendo reconhecer-se, acima do governante, uma fonte legislativa à qual todos deveriam sujeitar-se. Cf. D’ENTRÈVES, Alessandro Passerin. La dottrina dello Stato. Torino: G. Giappichelli Editore, 1967. p. 133-4. Sobre a filiação da teoria política marsiliana ao contexto especificamente medieval, cf. PIAIA, G. Marsilio da Padova, Guglielmo Amidani e l’idea di sovranità popolare. Veritas, Porto Alegre, v. 38, n. 150. p. 297-304. Chama atenção a amplitude de sua concepção de cidadania: Marsílio reivindicava igualdade de posições políticas para todos os homens adultos do sexo masculino, independentemente do status social e econômico. Se cada civis tinha o mesmo valor, concluía, não se podia estabelecer uma distinção qualitativa entre eles. 509 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO noção que incluía tanto homens de prudência e letrados quanto fabris, artesãos e outros tipos de técnicos (mechanicis) (DP I.5.4-6). E ia adiante: se essa correção tinha de ser assumida por um único segmento do corpo cívico, e não por todo o povo, dizia o jurista patavino, então era preferível atribuir essa tarefa à parte trabalhadora. Pois os homens dispunham de poderes da razão suficientes para julgarem por si mesmos se as leis ou os governantes serviam ao bem comum (DM 2.7). Isto é, não importava tanto se o poder jurisdicional era delegado “aos sábios e aos especialistas” e se nem todos participavam, todo o tempo, do comando dos assuntos políticos: o essencial, como lembra Cesar, era a vinculação do direito de legislar e de governar aos componentes do corpo social.20 Perante esse corpo o governante era responsável. A lei civil estava agora inteiramente humanizada e a vida coletiva se ordenava de forma autônoma. Somente ao princeps, fosse ele um indivíduo ou um corpo coletivo, cabia comandar aos súditos, em conjunto ou separadamente, segundo as leis estabelecidas. E ele nada devia fazer, fora dessas leis, “especialmente em se tratando de algo importante, sem a anuência do legislador e da multidão que lhe está subordinada” (DP III.3.1). 20 “Assim como a causa eficiente da lei é o que pode instituir as leis que visem ao bem comum, a causa eficiente do governante eleito é o que pode instituir o governante prudente, virtuoso, equânime e benevolente. Tal é o conjunto dos cidadãos, pelas mesmas razões por que tem autoridade para instituir a lei. Se o conjunto dos cidadãos é o legislador, então é ele que deve instituir o governante, pois quem define a forma (a lei) determina também a matéria (o governante). Pelas mesmas razões, é também ao conjunto dos cidadãos que cabe corrigir e destituir o governante.” In: CESAR, Floriano Jonas. O defensor da paz e seu tempo. 1994. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 89. 510 FINAL - O PODER SEM PECADO II GUILHERME DE OCKHAM, O INDIVÍDUO E OS DIREITOS HUMANOS O franciscano Guilherme de Ockham defendia, em política, pontos de vista aparentemente semelhantes aos de Marsílio de Pádua. Seu ataque ao papado, especialmente ao papa João XXII, foi também bastante violento. Mas sua crítica dirigia-se mais aos equívocos cometidos pelos pontífices dos últimos séculos do que à instituição eclesiástica propriamente dita. Desde muito cedo ocupado com questões especulativas e com a vida monástica, o irmão menorita, nascido em Ockham, cidade próxima a Londres, entre 1285 e 1290, ingressara ainda bastante jovem na ordem franciscana, dedicando-se ao estudo de teologia, filosofia, teoria do conhecimento, lógica e filosofia natural. Ao terminar os estudos básicos, foi enviado a Oxford, onde deveria aperfeiçoar seus conhecimentos e lecionar até estar apto a receber o título de mestre em teologia. Suas aulas e textos, no entanto, logo chamaram a atenção de alguns membros da universidade ligados à cúria romana. Sob suspeita de heresia, Guilherme de Ockham teve seus escritos submetidos a uma comissão de expertos que decidiu encaminhá-los a Roma para um estudo mais minucioso das proposições, tal como ocorrera anos antes com João Quidort. Enviado pela ordem para representá-la junto à cúria, Guilherme de Ockham instalou-se em Avignon, no ano de 1324, para aguardar a tramitação e julgamento do processo. Enquanto isso, acirrava-se a disputa entre o pontífice e os membros de sua ordem em torno do problema da “perfeição evangélica”. Três anos mais tarde seu superior imediato, Miguel de Cesena, alojou-se na cúria a fim de somar forças em defesa das teses franciscanas.21 Miguel encarregou então 21 A disputa entre o papa e os franciscanos girava basicamente em torno da noção de “direito ao uso” pelas partes: Guilherme de Ockham, por exemplo, sustentava ter a ordem franciscana usus de facto sobre as coisas temporais, sem com isso deter dominium algum. O pontífice, por 511 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO seu pupilo de estudar em profundidade a questão da pobreza e a posição do pontífice. Nascia aí a carreira política do Invincibilis Doctor. Como resultado de suas investigações, Guilherme de Ockham concluiu que o “Pseudopapa” João XXII usurpara funções que não lhe cabiam e se havia tornado herético. No ano seguinte, acompanhado de outros frades franciscanos, Guilherme de Ockham fugia para Roma, de encontro ao imperador que era agora oficialmente coroado. Recebidos por Luís IV, o Bávaro, em sua corte, à qual se juntara logo depois Miguel de Cesena e sua comitiva, os “Rebeldes” passaram a desfrutar da proteção imperial para prosseguir na sua luta pela mendicância. Junto ao poder imperial, sediado em Munique, Guilherme de Ockham exerceria durante mais de 15 anos a função de conselheiro e escreveria suas obras políticas mais relevantes – como o Compendium errorum Ioannis Papae XXII., parte significativa do Dialogus de posteste imperiali & papali, ou ainda o Breviloquium de principatu tyrannico –, sempre atento às intrigas e interesses do imperador e de sua causa, até a sua morte, em 1347 ou 1348. Boa parte desse engajamento do Menorita Inglês em matérias imediatamente políticas pôde ser traduzido em termos científicos no Brevilóquio sobre o principado tirânico, es- sua vez, defenderia na bula Quia vir reprobus, de 1329, que essa reivindicação era infundada: os franciscanos não podiam renunciar a todo dominium, ou pelo menos àquele comum, pois este fora conferido por Deus e só por ele poderia ser retirado aos homens. A resposta franciscana à bula papal foi dada na conhecida obra de Guilherme de Ockham, Opus nonaginta dierum, produzida já no exílio. Um comentário útil dessa disputa – e também o referido texto latino do Venerabilis Inceptor – pode ser encontrado num estudo comparativo de KILCULLEN, R. J. The origin of property: Ockham, Grotius, Pufendorf and some other, disponível no endereço http://www.mq.edu.au/ockham. Cf. tb. a edição inglesa da Opus nonaginta dierum em SIKES, J. G.; OFFLER, H. S. (Ed.). Guillelmi de Ockham. Opera politica. Manchester: University Press, 1940. v. 1 512 FINAL - O PODER SEM PECADO crito por volta de 1340. Nele, Guilherme de Ockham recorreu, para argumentar, a todas as fontes possíveis do direito e da lei, buscando apoio no direito natural, no direito canônico, nos ensinamentos dos grandes teólogos, no direito romano e no divino, revelado nas Escrituras. Não que tudo isso tivesse igual valor para o Venerabilis Inceptor. Ele simplesmente se empenhava em cercar por todos os lados a argumentação dos defensores do poder papal, para refutá-la ou para mostrar que as fontes às quais eles haviam recorrido podiam ser interpretadas de forma diversa e até oposta. Mesmo quando apelava para as Escrituras ou para o testemunho dos grandes teólogos, no entanto, o raciocínio de Guilherme de Ockham nunca deixava de ser estritamente crítico. Sua interpretação das Escrituras ia sempre em busca do significado mais razoável em face da cada circunstância. Sobre uma passagem de Santo Agostinho, ele declarava, sem cerimônia, que devia ser interpretada com restrições que chamaríamos de históricas: Assim sendo, a afirmação de Agostinho: “Encontramos o direito humano nas leis dos reis” deve ser entendida com relação ao tempo dele e às regiões onde habitavam ele e os hereges que desejava refutar; mas não deve ser entendida em relação ao direito humano que precedeu as leis dos imperadores e reis, o qual, no tempo de Agostinho, ao menos em grande parte estava revogado ou modificado.22 (BPT, p. 121-2) Sua doutrina afirmava a independência dos poderes temporais em relação à Ecclesia, localizava no povo a fonte 22 OCKHAM, Guilherme de. Brevilóquio sobre o principado tirânico (BPT). Ed. Luis A. De Boni. Petrópolis: Vozes, 1988. p. 121-2. Todas as citações do texto foram retiradas dessa edição. Cf. tb. as edições críticas de: BAUDRY, L. (Ed.). Breviloquium de potestate papae. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1937; e SCHOLZ, R. (Ed.). Wilhelm von Ockham als politischer Denker und sein ‘Breviloquium de principatu tyrannico’. Leipzig: Verlag Karl W. Hiersemann, 1944. 513 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO da autoridade e distinguia os verdadeiros domínio e jurisdição do domínio e da jurisdição justos: Assim, pois, embora quaisquer fiéis e pecadores sejam indignos do domínio das coisas temporais, podem contudo ter verdadeiro domínio delas. O que se diz do domínio temporal vale também para a jurisdição temporal: embora os fiéis e todos os ímpios sejam indignos de jurisdição, contudo podem ter verdadeira jurisdição tanto os infiéis como os fiéis pecadores. (BPT, p. 118) Sua posição, quanto a esse ponto, era bastante semelhante à de João Quidort e oposta à de Egídio Romano, que não reconhecia nenhum direito de domínio ou de jurisdição aos infiéis, isto é, aos não batizados. Fundamental para a construção de Guilherme de Ockham era a noção de “lei de liberdade” (lex libertatis) evangélica, isto é, aquela liberdade perfeita oferecida por Cristo aos homens, disponível no Novo Testamento. Os homens, postulava o Menorita Inglês, nasciam livres. Conseqüentemente, tinham certas liberdades, originadas da criação divina, as quais não podiam alienar por completo, fosse ao poder temporal ou ao espiritual. Isso lhe fornecia um fundamento para sustentar que o individual, ou particular, tinha de ser considerado, em primeiro lugar, com relação aos seus direitos, capacidades e liberdades.23 Ou seja, antes de analisar o conjunto dos cidadãos e sua interação, era preciso tomar os indivíduos em sua singularidade. Essa preeminência do individual no pensamento ockhamiano, alerta Coleman, estava fundada em sua teoria do conhecimento, segundo a qual universais constituíam somente nomes:24 o Princeps Nominalium havia desenvolvido de ma23 24 Cf. MCGRADE, A. S. Ockham and the birth of individual rights. In: TIERNEY, B.; LINEHAN, Peter (Ed.). Authority and power. Studies on medieval law and government. Cambridge: University Press, 1980. p. 149-66. Os universais (ou pensamentos) nada mais eram, de acordo com a teoria ockhamiana, do que nomes (nomina), isto é, conceitos primários 514 FINAL - O PODER SEM PECADO neira bastante original o nominalismo já presente em João Quidort e outros contemporâneos. Essa corrente de pensamento opunha-se ao realismo tomista: segundo Guilherme de Ockham, tal realismo destruía a possibilidade de conhecimento genuíno porque estabelecia essências universais – ou coisas não particulares – fora da mente. E isso era contrário à ciência da verdade e à razão em geral. Pois tudo quanto havia no mundo, explicava o Doutor Invencível, eram individuais contingentes aos quais os seres humanos atribuíam denominações. Esses particulares podiam ser conhecidos por meio de uma experiência determinada: a intuição cognitiva.25 Isto é, tudo o que havia na realidade eram coisas singulares, individuais e quantitativamente diferenciadas entre si. Para se referir a essa individualidade existente no mundo, os seres humanos construíam, no pensamento ou na linguagem convencional, sentenças ou proposições. O nosso conhecimento, portanto, era formado de conceitos (mentais ou lingüísticos) cujos termos eram substituídos por nossas experiências.26 A ciência do Doutor Invencível se limitava, as- 25 26 gerais naturalmente significantes (sinais naturais); de maneira secundária, constituíam os sinais convencionais (termos e proposições na linguagem) correspondentes a conceitos primários. Cf. COLEMAN, J. Sovereignty and power relations in the thought of Marsilius of Padua and William of Ockham: a comparison. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 230. Um tratamento mais abrangente da noção de conhecimento intuitivo em Guilherme de Ockham pode ser encontrada em: BOEHNER, Philotheus. Collected articles on Ockham. New York: The Franciscan Institute St. Bonaventure, 1958. A coisa que constituía o objeto do conhecimento tinha de ser a proposição mental em si, escrita ou falada, e não a substância à qual ela se referia. Essa substância individual só podia ser conhecida por meio dos termos da proposição. Ou seja, nenhuma substância corpórea externa (matéria) podia ser apreendida, naturalmente, pelos seres humanos: estes só podiam conhecer as substâncias particulares e individuais por 515 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO sim, a cuidar das relações externas entre os corpos. Não havia lugar para considerações a respeito das essências ou das propriedades “íntimas”, como aquelas que impeliam um corpo a descrever certo tipo de movimento. Como cientista, Guilherme de Ockham estava mais próximo de Galileu e de Hobbes do que de São Tomás e de Aristóteles. Ele podia ser tomista e aristotélico por seu apego ao empírico, mas não por qualquer concepção ontológica. Bem ao contrário, seu apego à experiência tinha como contrapartida uma atitude modesta em relação ao conhecimento e às possibilidades da razão. A experiência nos oferecia apenas a multiplicidade dos singulares. O entendimento podia organizar esses dados, identificar semelhanças e regularidades, mas não podia avançar além de certos limites muito estreitos. Não devia, nem precisava, construir ou supor entidades misteriosas, nem formular mais hipóteses do que as estritamente necessárias para trabalhar com os dados disponíveis. Como expressaram acertadamente Souza e De Boni: Um mundo de indivíduos iguais entre si e sem intermediários é, porém, um mundo que se desprende totalmente das agonizantes hierarquias medievais; um mundo que encontra sua própria explicação dentro de si mesmo, sem receio de qualquer questionamento; um mundo que se organiza a partir de seus membros constituintes.27 27 meio de proposições mentais, escritas ou faladas. Tais proposições eram formadas de sinais ou termos que, por sua vez, eram substituídos por categorias experimentadas fora da mente. Cf. Ockham, G. Dialogus de potestate Imperiali & Papali. livro III, cap. XVI. In: GOLDAST, M. (Ed.). Monarchia sancti romani imperii. op. cit., t. II. Cf. tb. COLEMAN, J. Ockham’s right reason and the genesis of the political as absolutist. History of Political Thought, v. 20, n. 1, p. 40-1, spring 1999. SOUZA, J. A. C. R.; DE BONI, L. A. Introdução. In: OCKHAM, G. Brevilóquio sobre o principado tirânico. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 15-6. 516 FINAL - O PODER SEM PECADO Segundo Guilherme de Ockham, o conhecimento humano podia ser alcançado por meio da experiência sensível, da razão natural e da autoridade infalível da Escritura. A vivência sensorial precedia as demais formas. A ela podia-se aplicar a razão natural. Tal procedimento permitia aos homens, por exemplo, confirmar sua crença na verdade do Evangelho, por meio da demonstração lógica de suas afirmações. Com base nesse raciocínio, o Princeps Nominalium podia sustentar, entre outras coisas, que o papado e a hierarquia eclesiástica não constituíam os únicos intérpretes de direito da palavra divina. Qualquer pessoa que experimentasse o mundo e pensasse a respeito do vivenciado – desde que sã e ilustrada – estava apta a interpretar as palavras de Deus na Sagrada Escritura. Se a reta razão constituía o leme dos homens, sua característica distintiva era, segundo o Doutor Invencível, a liberdade para desejar segui-la. Tal liberdade constituía ainda o fundamento da dignidade humana e a fonte da bondade moral e da responsabilidade individual. Se os atos cognitivos dos seres humanos eram naturais, o que devia ser objeto de julgamento era seu poder de performar ou não uma ação, isto é, sua capacidade de agir naquilo que conhecia. Seu raciocínio aqui era basicamente tomista. Essa ênfase numa escolha racionalmente direcionada constituiria um dos pilares da idéia de voluntarismo. Guilherme de Ockham aceitava, como Aristóteles e Tomás de Aquino, que as virtudes morais e intelectuais, e também a busca do prazer, constituíam valores intrínsecos: um ato podia ser dito desmedido somente quando algo que não deveria ser buscado como supremamente bom (por exemplo, matar) fosse percebido enquanto tal. Esse raciocínio permitia ao Princeps Nominalium sustentar que também os pagãos e os infiéis podiam atingir a virtude moral genuína, mesmo sem um conhecimento correto de Deus. Pois tinham ciência de alguns bens intrínsecos 517 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO ou razões para agir, podendo assim dispor de uma ética positiva ou de uma ciência da moral, como ocorrera por exemplo entre os gregos antigos.28 Por essa razão, também podia afirmar que todas as normas válidas constituíam comandos divinos, mesmo que alguns seres humanos não tivessem clareza disso. Deus, causa primeira de todas as coisas, agindo livremente, postulava o Venerabilis Inceptor, era autor e criador da natureza e, desse modo, de suas leis. Num certo sentido, portanto, a lei natural era um comando divino. Mesmo que imediatamente determinada por Deus, seu conteúdo, entretanto, devia necessariamente corresponder aos ditames da razão natural, como já havia mostrado o Aquinate. Isto é, as normas contidas nessa lei natural tinham de ser acessíveis às criaturas humanas por meios puramente naturais ou racionais.29 Estabelecia-se assim uma conexão entre a vontade divina e a moralidade natural. A obediência a Deus tornava-se, nesse modelo, um princípio prático da razão: obedecer a um comando divino era sempre racional. O único limite ao alcance das obras do Senhor era o postulado da não-contradição: Ele podia fazer qualquer coisa que não envolvesse uma oposição entre proposições. Um agente que executasse o que a reta razão ditasse, simples e precisamente porque ela o impusesse, estaria performando ao mesmo tempo uma ordem divina, sob o fundamento de que tal ato era racional. Reconhecê-lo como uma norma divina, no entanto, exigia um outro passo, pois dependia da fé e da revelação. Pagãos e infiéis, por exemplo, podiam ter domínio e jurisdição justos mesmo sem conhecer Deus. 28 29 Cf. MCGRADE, A. S. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, V. (Ed.). The Cambridge companion to Ockham. Cambridge: University Press, 1999. p. 274-5. A noção de lei natural em Guilherme de Ockham constitui matéria complexa e polêmica. Uma abordagem aprofundada do tema pode ser encontrada em: TIERNEY, Brian. The idea of natural rights: studies on natural rights, natural law and church law 1150-1625. Atlanta: Emory University Studies in Law and Religion, 1997. n. 5, p. 157 et seq. 518 FINAL - O PODER SEM PECADO Desse modo, obedecer comandos divinos, de um lado, constituía um princípio razoavelmente auto-evidente, dado que Deus constituía o bem supremo e, por isso, só ordenava coisas boas e justas. De outro lado, havia bens intrínsecos e princípios normativos que podiam ser apreendidos por uma razão natural que sabia pouco ou nada de Deus. Assim, regras morais e normas de convivência comuns podiam amiúde ser determinadas de maneira puramente racional, independentemente da referência à vontade de Deus, sem com isso invalidar a afirmação primeira de que todas as normas válidas constituíam comandos divinos. Mas nem tudo, na esfera moral, era decretado pelo Senhor: na ausência de um comando divino direto contrário, as ações performadas podiam ser consideradas boas.30 Os seres humanos eram portadores não só de uma razão natural: naturais eram ainda alguns de seus direitos, escrevia Guilherme de Ockham no pequeno tratado De imperatorum et pontificum potestate, descoberto por R. Scholz.31 E deles os indivíduos não podiam ser privados. Certas liberdades e direitos tinham sido concedidos por Deus aos homens, por meio da natureza, e nem mesmo o sumo pontífice podia negá-los. Entre esses direitos inalienáveis encontravam-se: o de usar as coisas no mundo, o de estabelecer leis e eleger governantes, o direito natural de sobreviver e de consentir. Todos eles já existiam antes mesmo da vinda de Cristo. Este e seus apóstolos, como relatavam as Escrituras, nada possuíram: apenas utilizaram o mundo para poder 30 31 O que não equivalia a dizer, alerta McGrade, que qualquer ato moral não estabelecido previamente por Deus fosse, do ponto de vista ético, neutro. Cf. MCGRADE. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, op. cit., 282. Cf. SCHOLZ, Richard. Unbekannte kirchenpolitische Streitschriften aus der Zeit Ludwigs des Bayern (1327-1354). Bibliothek des Kgl. Preuss. Hist. Instituts in Rom, Band IX. Roma: Verlag von Loescher & Co., 1911. p. 178 et seq. 519 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO sobreviver. Do mesmo modo, argumentava o franciscano, todos os homens tinham um “direito natural de uso” das coisas temporais, conferido por Deus. Este direito ao uso era anterior a todos os direitos de posse introduzidos posteriormente. Isto é, segundo o Venerabilis Inceptor, os seres humanos detinham naturalmente – ou de acordo com a reta razão – o direito de usar os bens terrenos. Mas não dispunham do direito à propriedade privada (dominium) de tais bens. Posse e propriedade nos grupos humanos, dizia ele, era fruto da queda em pecado. Sua argumentação aqui não era muito diferente daquela de João Quidort ou Egídio Romano: apropriar e dividir as coisas temporais constituía um desenvolvimento racional exclusivo da condição pós-lapsária (post lapsum). Antes do pecado original, contava o Doutor Invencível, Adão e Eva desfrutavam de um poder perfeito – que não incluía a posse privada nem a coerção – de uso sobre todas as coisas, regulando-as apenas por meio da reta razão.32 Depois da queda, entretanto, a natureza pecaminosa do homem proliferou e tornou útil a apropriação privada (BPT, p. 111-2). Assim, em vista da utilidade humana comum, contava Guilherme de Ockham, Deus decidira conceder aos homens, fiéis e infiéis, o poder de estabelecer o dominium,33 isto é, o 32 33 “O primeiro domínio, aquele comum a todo o gênero humano, existiu no estado de inocência, e teria permanecido se o homem não houvesse pecado, mas sem conceder a algumas pessoas o poder de apropriar-se de alguma coisa, a não ser pelo uso, como foi dito. E não haveria utilidade nem necessidade em ter a propriedade de qualquer coisa temporal, porque naquelas pessoas não havia nenhuma avareza, ou desejo de possuir ou de usar alguma coisa temporal contra a reta razão” (BPT, p. 111). Um resumo breve, mas útil, das idéias de Guilherme de Ockham sobre a “autorização” divina para a instauração da propriedade privada entre as criaturas humanas pode ser encontrado em: MIETHKE, J. Kaiser und Papst im Konflikt: zum Verhältnis von Staat und Kirche im späten Mittelalter. Düsseldorf: Verlag Schwann-Bagel, 1988. p. 54-5. 520 FINAL - O PODER SEM PECADO “direito” de apropriar-se privadamente das coisas temporais e de instituir chefes com jurisdição temporal, de acordo com o que a reta razão, na condição do pecado, julgasse ser necessário, útil e conveniente. Esse dominium, divinamente outorgado para limitar os efeitos do pecado, fora introduzido por Ele como possibilidade, e não em sua forma concreta. Tal concretude, de maneira geral, só foi estabelecida pela instituição da lei civil,34 embora tivesse havido concessão de domínio feita diretamente pelo próprio Deus, como quando presenteara os filhos de Israel com as terras caanitas35 (BPT, p. 116). Por isso, a jurisdição legal sobre a propriedade na comunidade política cabia somente ao governante terreno. A Igreja nada possuía e não tinha direitos sobre as coisas temporais. Posse e propriedade constituíam conclusões lógicas e seculares às quais os homens tinham aquiescido como criaturas pecadoras, acrescentando aos seus direitos naturais de uso a especificação da apropriação privada. Embora seu alvo primeiro fosse a disputa com o papado, sua conclusão servia igualmente bem às pretensões e interesses dos poderes temporais. O ideal de perfeição espiritual, respondia o Menorita Inglês, espelhava-se na lei natural, a qual informava aos homens terem eles um direito, conferido por Deus, de sobreviver e de usar o mundo, sem que fosse necessário possuí-lo ou qualquer parte sua:36 aqui Guilherme de 34 35 36 Essa diferença era importante, alerta Miethke, pois se a propriedade privada fosse instituída divinamente, somente Deus poderia efetuar mudanças no direito de propriedade. Já como acordo humano ela era historicizada: constituía uma norma legal, um direito positivo historicamente mutável. Cf. MIETHKE, J. Der Weltanspruch des Papstes im späten Mittelalter. In: FETSCHER & MÜNKLER, op. cit., p. 413. Cf. KILCULLEN, J. Introduction. In: OCKHAM, W. A short discourse on tyrannical government. Cambridge: University Press, 1992. p. xii-xiv. O modo de vida mais perfeito para um cristão consistia, segundo Guilherme de Ockham, numa existência sem propriedade nem direitos legais humanamente estabelecidos. Mas reconhecia que tal forma de vida não era possível para qualquer pessoa, nem mesmo para todo cristão. 521 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Ockham falava em nome de seu superior, Michel de Cesena, e de toda a ordem franciscana, e perfilava-se em defesa da pobreza evangélica, contra o papa João XXII. Havia espaço ainda, em sua argumentação, para a adoção do princípio aristotélico – e antiplatônico – segundo o qual as coisas comuns eram menos amadas e menos cuidadas do que as próprias. Uma sociedade que admitisse os bens próprios, escrevia, seria mais bem ordenada do que uma outra fundada na posse comum (BPT, p. 113). A propriedade, em seu raciocínio, não era apenas um direito igual a qualquer outro, mas uma condição necessária ao bem viver.37 Era outra forma de fundamentar o governo temporal nos governados, isto é, no interesse dos indivíduos. E porque papas e prelados eram em primeiro lugar homens, esclarecia o Doutor Invencível, sua relação com a propriedade tinha de estar sob as regras dos arranjos temporais (BPT, pp. 122-4). O poder do pontífice, portanto, limitava-se àquelas matérias constantes das Escrituras, acessíveis a qualquer indivíduo: lá podia-se ler que Cristo tinha conferido a Pedro não uma plenitude de poder ilimitada sobre coisas temporais e espirituais, e sim uma jurisdição limitada para administrar os sacramentos, ordenar a hierarquia eclesiástica e instruir os fiéis.38 O papa, por causa da comissão petrina, podia até ter primazia sobre os apóstolos, concedia o Venerabilis Inceptor. Mas Cristo não havia conferido a Pedro e seus 37 38 Cf. MCGRADE. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, op. cit., p. 289. Deus dera ao homem, segundo Guilherme de Ockham, “o poder de dispor das coisas terrenas, que a reta razão aponta como necessárias, convenientes, decentes e úteis não só para viver, mas para bem viver” (BPT, p. 112). Ao bispo de Roma, escrevia o autor no De imperatorum et pontificum potestate, cabia especialmente: lectio, oratio, predicatio e o cultus Dei. Cf. SCHOLZ, op. cit., 1991, p. 184. Cf. tb. BPT, p. 180. 522 FINAL - O PODER SEM PECADO seguidores jurisdição alguma sobre a existência material dos homens.39 eles continuavam detendo aquele direito natural de organizar livremente sua vida mundana. Esse direito, fruto do pecado e anterior à própria instituição da Ecclesia, era detido igualmente por fiéis e infiéis e podia ser conhecido pela experiência. A reta razão dos homens, isto é, sua vivência e sua capacidade intelectual de tirar conclusões gerais sobre o bem viver, os havia levado a estabelecer o dominium pelo consenso dos pares.40 O estado resultante dessa decisão, portanto, devia ser entendido como uma esfera de atividade autônoma e até mesmo pré-cristã. Dentro desse âmbito, a legitimidade estava assegurada sem referência alguma à Igreja. Seu raciocínio aqui tinha um fundamento epistemológico: o pensar, não menos que o falar, defendia Guilherme de Ockham, operava de acordo com uma determinada lógica que, num certo nível abstrato, acima de hábitos e costumes específicos, era a mesma para todas as mentes humanas. 39 40 Guilherme de Ockham, comenta Souza, definia o papel do religioso nos seguintes termos: “principatus apostolicus est minitrativum, non dominativus”. In: SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockham a favor do primado de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 484. “Ora, uma vez que a jurisdição é paralela ao dominium (‘o duplo poder – diz Guilherme de Ockham – de apropriar-se das coisas temporais e de instituir chefes com jurisdição temporal’), ‘o poder de instituir leis e direitos humanos (jura humana) esteve no princípio e de modo principal no povo, e o povo depois o transferiu ao imperador’. [...] A expressão [direitos humanos] é relevante para distinguir-se do mero direito positivo dos reis de fazerem as leis: são ‘direitos humanos’ tanto a possibilidade de constituir direitos, quanto os ‘costumes louváveis e úteis introduzidos pelos povos’. [...] Em suma, o ‘direito civil’ (jus civili) – aquele que não é divino nem natural [e sim humano] – vem do povo: um poder é legítimo quando é desejado pelo povo”. In: ESTEVÃO, José Carlos. Sobre a liberdade em Guilherme de Ockham. 1995. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. p. 53-4. 523 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Isto é, para além das diferenças entre povos e costumes, existia uma capacidade crítica, lógica, que permitia aos homens distinguir entre certo e errado. Tal raciocínio reto era mais completamente atingido, é claro, na comunidade dos cristãos, já que eles dispunham das verdades da Sagrada Escritura. Como as criaturas humanas nasciam livres e não sujeitas a ninguém pela lei humana, continuava o Doutor Invencível, toda civitas e todo populus podiam estabelecer a lei para si (BPT, p. 133-4). Ou seja, podiam construir comunidades políticas autônomas com ordenamentos jurídicos próprios, independentemente de sua filiação religiosa.41 Constantino, exemplificava Guilherme de Ockham, tivera verdadeiro poder tanto antes quanto depois de sua conversão. Também os direitos de seus súditos não tinham sido afetados por sua conversão, apesar de eles não terem se tornado cristãos. A cristandade não tinha, nesse modelo, papel algum na administração da justiça entre os povos infiéis.42 Os regimes políticos haviam sido instituídos para arbitrar conflitos entre os seres humanos, garantindo as permutas, e para servir à paz. O critério para a eleição do governo – como em Marsílio ou João Quidort – não era moral, e sim racional: os homens estabeleciam, voluntariamente, a regulamentação civil da vida por meio de sanções coercitivas. A forma de cada governo, como já ensinara o Filósofo, dependia da natureza dos seus cidadãos. Um imperador, para cons41 42 Isso não significava dizer, alerta McGrade, que a política estivesse relegada a uma arena amoral de combate entre vontades humanas cegas: a política secular ockhamiana operava dentro da moldura de uma lei e um direito naturais racionalmente construídos. Dentro desse espectro, havia espaço para uma escolha razoável entre uma variedade de arranjos políticos e econômicos, que dependia de circunstâncias históricas e da concordância do povo. Cf. MCGRADE. Natural law and moral omnipotence. In: SPADE, op. cit., p. 291. Cf. KILCULLEN. Introduction. In: OCKMAN, op. cit., 1992, p. xx. 524 FINAL - O PODER SEM PECADO tituir uma autoridade política legítima, não tinha necessariamente de ser um cristão. O melhor governo, dizia Guilherme de Ockham, era aquele exercido sobre uma comunidade de homens livres. Pois estes não permitiam com facilidade que o governante os reduzisse – como ocorria na lei de Moisés – à escravidão, condição contrária à “lei de liberdade”43 anunciada por Cristo no Novo Testamento: este fora instituído a fim de aperfeiçoar a antiga lei pagã e os preceitos envelhecidos do Antigo Testamento. Era função dos governantes temporais, portanto, castigar e punir malfeitores. Entre os povos cristãos, deviam ainda defender a Igreja de tais vilanias. Seu poder derivava do povo, que consentira voluntariamente em instituir uma autoridade pública. O ponto central a reter nesse raciocínio era a percepção da variedade dos povos e de suas formas de ordenação política. Por trás dessa variedade havia algo comum, e só esse fator comum podia indicar o fundamento do poder: o povo.44 43 44 Por essa razão, Guilherme de Ockham negava toda e qualquer reivindicação de plenitude de poder por um único governante em ambas as esferas de dominação. Cf. MIETHKE, J. Lordship and freedom in the political thought of the early 14th century. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 500. Para uma análise detalhada da questão, cf. Souza, J. A. C. R. O conceito de ‘plenitudo potestatis’ na filosofia política de Guilherme de Ockham. 1975. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Do ponto de vista jurídico, a idéia da anterioridade dos “povos” em relação a qualquer potência universal foi posta com clareza na obra de Baldo, segundo observa Calasso: “Diante das múltiplas dúvidas da doutrina sobre os poderes dos ordenamentos particulares existentes na órbita do Império, e que Bartolo havia superado com a gradação das iurisdictiones, Baldo revirou o problema: não era partindo do ordenamento universal que se podia chegar a construir juridicamente a vida dos ordenamentos particulares, pois estes nasceram antes daquele: ‘populi sunt de iure gentium’, não os criou nenhum outro poder”. In: CALASSO, Francesco. Gli ordinamenti giuridici del rinascimento medievale. Milano: Giuffrè, 1974. p. 275. 525 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO Disto, porém, conclui-se evidentemente que os direitos humanos não foram somente os direitos dos imperadores e dos reis, mas também dos povos e de outros, que receberam dos povos o poder de criar e constituir direitos, e além disso são direitos humanos os costumes louváveis e úteis introduzidos pelos povos. (BPT, p. 121) “Costumes louváveis e úteis”: Guilherme de Ockham não se referia aqui a nenhum povo em particular e a nenhum costume ou sistema. O ponto nodal do argumento era a idéia de cada povo como capaz de se ordenar e de produzir as próprias normas e, portanto, de ser fonte constituidora dos direitos e das leis (“os direitos humanos não foram somente os direitos dos imperadores e dos reis”). Reis, imperadores, príncipes, condes ou chefes guerreiros comandavam, mas a ordem social podia ser pensada sem eles ou com qualquer deles (“que receberam dos povos o poder de criar e constituir direitos”). A idéia de povo era auto-suficiente, mas não a de chefe. A forma de governo e o governante eram produtos do povo (como os “costumes louváveis e úteis”), e não o contrário. E a unidade à qual todo povo podia ser reduzido era o indivíduo, portador de certos direitos inalienáveis. Locke não teria formulado melhor. Ao argumentar contra a interpretação literal do “tudo que ligares na terra”, Guilherme de Ockham excluía da jurisdição papal os “direitos legítimos dos imperadores, dos reis e dos outros fiéis e infiéis, direitos estes que de modo algum se opõem aos bons costumes, à honra de Deus e à observância da lei evangélica” (BPT, p. 74). Os possuidores de tais direitos, prosseguia, “tiveram-nos antes da instituição explícita da lei evangélica, e puderam fazer deles uso lícito, de tal forma que, sem causa nem culpa, o papa não pode imediatamente perturbar ou diminuir regular e ordinariamente tais direitos, por qualquer poder que lhe foi conferido por Cristo” (idem). Este, segundo ele, deixara claro aos apóstolos, ao falar no direito de César, que não pretendia perturbar ou dimi526 FINAL - O PODER SEM PECADO nuir os poderes temporais dos governantes seculares: Jesus não pretendera ser um rei terreno, argumentava Guilherme de Ockham retomando o “erro de Herodes”. Mas, então, em que consistia o poder eclesiástico? Cristo, sustentava ele, constituía o fundamentum primarium et principale sem o qual a Igreja não poderia ter sido fundada. Era, portanto, sua causa eficiente, enquanto os apóstolos constituíam sua causa agente. Deus Pai, não desejando deixar sua Igreja acéfala, escreve Souza comentando uma passagem do Dialogus, dera-lhe “o melhor governo, isto é, o regime monárquico, em perfeita consonância com a sua e presente condição, e a confiou [a Igreja] a Pedro”.45 Pois era proveitoso para toda a congregação dos fiéis, declarava o Menorita Inglês, estar sob uma liderança fiel e prelada, subordinada ao Senhor. Uma monarquia papal adequada dependia de condições a que as teorias curialistas de alguns prelados não haviam obedecido, como o respeito pela liberdade dos súditos papais em matérias religiosas que não exigiam regulamentação pela Igreja ou o respeito pela autonomia dos governantes políticos seculares. O poder de Pedro e seus sucessores, esclarecia o Doutor Invencível, originava-se imediatamente de Deus e, por isso, não desfrutava da mesma causa eficiente que o poder secular, que tinha origem no uso da razão e na vontade humanas. E aproveitava para estabelecer uma fronteira clara entre a sua posição e aquela de seu contemporâneo e colega de luta, Marsílio de Pádua: o papado não existia por uma escolha dos cristãos, e sim por instituição divina. Cristo nomeara Pedro, e não os apóstolos, seu sucessor, e o Espírito Santo o habitara. In spiritualibus, continuava Guilherme de Ockham, o sumo pontífice tinha plenitude de poder e era autônomo 45 SOUZA, J. A. C. R. A argumentação política de Ockham a favor do primado de Pedro contrária à tese de Marsílio de Pádua. In: DE BONI, op. cit., 1996, p. 479. 527 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO em relação aos poderes temporais. Do mesmo modo, em assuntos terrenos, a plenitude de poder cabia ao princeps, e o bispo de Roma nada tinha regularmente a acrescentar.46 Entretanto, embora o sumo pontífice não detivesse poder jurisdicional algum in temporalibus, aquiescia Guilherme de Ockham retomando a tradição gelasiana das duas espadas, ele podia, sob circunstâncias excepcionais ou em caso de necessidade última, intervir em assuntos seculares para executar o que a reta razão ditasse como necessário. Tal intervenção, contudo, devia ser apenas ocasional e ainda assim, como em João Quidort, só podia vir de uma comissão dos homens, e não de um direito divino. Em situação de normalidade, contudo, não tinha o papa iurisdictio alguma sobre os negócios terrenos (BPT, p. 189). Assim, falar em plenitude de poder do papa em assuntos temporais se convertia, em sua argumentação, numa heresia. O papa, sim, podia ser julgado pelos fiéis e pelos que entendiam das coisas divinas. Mas ele mesmo não tinha jurisdição sobre os súditos de nenhum rei ou imperador: pelo rigor do direito, “não é permitido apelar do juiz civil ao papa” (BPT, p. 61). Argumentando com base na história (a anterioridade dos poderes temporais em relação à Igreja), no direito revelado e no direito natural, Guilherme de Ockham construía uma teoria do poder duplamente oposta às doutrinas da supremacia papal. De um lado, ele dispunha de argumentos “naturais” para fundar suas opiniões a respeito do indivíduo, da 46 Em assuntos espirituais que eram de necessidade, o papa tinha completa autoridade na terra, regularmente, sobre fiéis cristãos, mas não sobre os infiéis. Já em assuntos temporais, o papa não detinha regularmente autoridade alguma. Ocasionalmente, contudo, numa situação de necessidade, ou de utilidade acrescida à necessidade, como por exemplo evitar algum perigo iminente para a comunidade cristã ou para os fiéis, podia o pontífice fazer o que fosse necessário, caso os leigos não o fizessem. Também era possível o oposto, isto é, que o imperador interviesse em caso de necessidade nos assuntos religiosos (BPT, p. 187-9). Cf. KILCULLEN, J. The political writings. In: SPADE, op. cit., p. 313-4. 528 FINAL - O PODER SEM PECADO propriedade e da comunidade política. De outro, conseguia recolher dos textos sagrados material suficiente para legitimar, também do ponto de vista da religião, os poderes seculares e os direitos ditos naturais. O recurso à história não era só retórico e fornecia elementos para um ponto fundamental de sua teoria: a do povo como fonte do poder. Guilherme de Ockham, defensor de Luís da Baviera contra João XXII, no fundo importava-se pouco em demonstrar a superioridade do império. O relevante era o simples fato da transferência, qualquer que fosse a autoridade que viesse a governar. “O poder de instituir leis e direitos humanos esteve no princípio e de modo principal no povo, e o povo depois o transferiu ao imperador. Assim, os povos, os romanos, por exemplo, e outros, transferiram para outros o poder de instituir leis; às vezes, para os reis, às vezes, para outros de dignidade e poder menor e inferior. Isto pode ser demonstrado não só pela história e pelas crônicas, mas também pela Sagrada Escritura” (BPT, p. 121). O Estado constituía portanto uma criação utilitária de homens racionais que haviam experimentado a sobrevivênvia e reconheciam a necessidade de instituir regras de bem viver mais gerais, a fim de alcançar um bem comum útil a todos. Uma vez estabelecido, no entanto, o governante assumia – desde que a sua jurisdição permanecesse útil e vantajosa para a sobrevivência do coletivo – toda autoridade e raramente podia ser deposto. Por essa razão, não era possível falar num contrato entre governantes e cidadãos, nos termos propostos por Marsílio: como a comunidade política não constituía uma pessoa real, mas fictícia, uma entidade criada, advogava Guilherme de Ockham, ela não podia performar atos legais nem possuir direitos concretos sob a lei.47 47 Cf. COLEMAN. Sovereignty and power relations in the thought of Marsilius of Padua and William of Ockham: a comparison. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 240. 529 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO As ações dessa comunidade consistiam na soma dos atos desejados por seus membros individuais, ou sua maioria, em relação ao bem comum e à utilidade pública, de acordo com o que fosse mais racional em cada circunstância.48 As vontades dos indivíduos não podiam, em seu modelo, ser representadas. Pois uma vontade coletiva – reivindicava Guilherme de Ockham contra as teorias jurídicas da corporação desenvolvidas por alguns contemporâneos – não era algo real. Cada indivíduo, no exercício de seus direitos e liberdades, era responsável. Também o era em sua resistência àqueles que agiam contra a reta razão, fossem eles príncipes ou papas. Os primeiros princípios da moralidade, auto-evidentes, podiam ser inferidos da experiência até pelo mais humilde dos mortais.49 Como o poder político só podia ser adequadamente exercido sobre indivíduos livres, qualquer autoridade que exigisse dos homens um comportamento contrário àquele exigido pelas Escrituras ou pela reta razão tornava-se ilegítima. Ao reunir-se em comunidade e eleger um governante, esclarecia o Doutor Invencível, cada indivíduo abria mão de certos poderes e os transferia àquele cuja decisão eles teriam de aceitar a partir de então. Havia, contudo, determinadas prerrogativas, como apropriar-se de bens temporais, que não podiam ser transferidas ou alienadas em hipótese alguma. O governante, consentido pelo povo, não podia ignorar esses direitos intransferíveis concedidos por Deus e pela natureza 48 49 Uma abordagem proveitosa da relação entre os indivíduos e a política em Guilherme de Ockham pode ser encontrada em: MCGRADE, Arthur S. The political thought of William of Ockham: personal and institutional principles. Cambridge: University Press, 1974. Guilherme de Ockham afirmava ainda a existência de princípios mais complexos, que constituíam inferências a partir de outras inferências e requeriam intermediação e estudo. Estes deviam ser conhecidos, senão por todos, ao menos por aqueles que se dedicavam aos assuntos coletivos. 530 FINAL - O PODER SEM PECADO aos seus governados. Tanto o imperator quanto o rex in regno suo, contudo, não eram subordinados às leis postas nem tinham de julgar de acordo com elas do mesmo modo que o deviam os juízes inferiores (BPT, p. 121-2). Pois os governantes estavam submetidos aos homens apenas casualmente (BPT, p. 138). A regra valia tanto para o príncipe quanto para o bispo de Roma. Ou seja, em caso de necessidade ou em nome do bem comum e da paz, podia o príncipe se sobrepor às leis humanas ou positivas. E, porque todos deliberavam de acordo com a reta razão, era improvável que houvesse contradição entre a vontade dos súditos e a de seu rector. O raciocínio aqui era semelhante ao de Marsílio. A deposição de um governante, portanto, só podia ocorrer em casos muito especiais, como quando cometia crimes ou pecados hediondos.50 Se o governo era uma instituição a serviço da boa vida, a obrigação de obediência resultante de sua criação não podia ser absoluta. Por isso, ele não concebia plenitude de poder irrestrita nem do papa nem do governante secular. Os reis e os príncipes não têm a plenitude de poder. Em caso contrário, o principado real seria um principado despótico, os súditos do rei seriam seus servos, não havendo entre eles distinção entre livres e servos, pois todos seriam servos. (BPT, p. 54) Guilherme de Ockham consumiu a maior parte dos livros IV a VI do Breviloquium procurando mostrar que o império não proveio de Deus por intermédio do papa, mas de Deus 50 Guilherme de Ockham parecia acreditar, diz Coleman, que a maioria dos governantes, ao longo da história, tinha organizado a sociedade de maneira suficientemente racional e utilitária, de modo que, quaisquer que fossem os crimes que tivessem cometido, eles teriam sido de menor conseqüência para o bem-estar coletivo do que seria a sua remoção do governo. Cf. COLEMAN. Ockham’s right reason and the genesis of the political as absolutist. History of Political Thought, op. cit., p. 55. 531 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO diretamente ao povo e, portanto, aos imperadores por ele instituídos ou reconhecidos. A argumentação sobre o fundamento do império interessava essencialmente à polêmica entre o papa e o imperador. De modo geral, contudo, os argumentos do Princeps Nominalium eram aplicáveis tanto ao imperium quanto ao Estado territorial ou a qualquer outra forma de poder temporal. Importavam de forma especial, porém, aos interesses dos nascentes Estados europeus. O Estado territorial constituía, no tempo do Menorita Inglês, a realidade emergente tanto em Inglaterra e França quanto nos reinos ibéricos e eslavos. Os interesses a ele vinculados haviam se tornado os mais capazes de se beneficiar da defesa ockhamiana do poder temporal. Seus argumentos de inspiração aristotélica tendiam a favorecer a idéia de Estado territorial, e não de império universal, como comunidade perfeita. Num exame retrospectivo, pode-se dizer que a figura do Venerabilis Inceptor marca na história um extraordinário cruzamento. Há quem o aponte como o primeiro dos filósofos modernos. De toda forma, ele utilizava, para filosofar, um instrumental que nos remete, como leitores, mais à modernidade do que ao passado. Como polemista político, ele se envolvera, no entanto, na defesa de um império que já quase nada significava, reduzido, mais do que nunca, a uma potência entre outras e menos importante do que muitas. Embora fosse uma questão presente, a disputa entre o papa e o imperador, naquele momento, era de certo modo um anacronismo. Nessa polêmica meio fora de tempo, no entanto, ele conseguiu trabalhar com argumentos renovadores. Sua construção do político a partir dos indivíduos e da experiência dos povos (formadores autônomos de leis) independia, a rigor, de qualquer referência à idéia aristotélica de comunidade perfeita. Esta entrava no seu raciocínio como complemento, 532 FINAL - O PODER SEM PECADO não como elemento formador. Guilherme de Ockham, sem dúvida, não foi o primeiro pensador a imaginar a autonomia da esfera política. Bem antes dele, João Quidort e Marsílio já haviam advogado a idéia. Mas em sua obra a proposição aparecia com clareza incomum. Nesse momento, a idéia da norma transcendente ao poder político ainda não desaparecera, mas ganhara novo peso. O mais importante, na construção de pensadores com filiações e interesses tão distintos quanto João Quidort, Marsílio ou Guilherme de Ockham, não era mais defender a submissão do governante a uma lei (costumeira, natural ou divina), nem apontar o povo como transmissor do poder de origem divina ao príncipe. Era, sim, acentuar a capacidade do populus de produzir uma ordem normativa, independentemente de haver ou não um governo ou de sua forma constitucional. O governo, na visão desses cientistas, acabava sendo apenas um dos instrumentos que o povo podia forjar para as suas necessidades, embora fosse um dos mais importantes e o mais adequado à defesa da justiça, da paz e da propriedade. Estava realizada, já em meados do século XIV, a inversão final da perspectiva na disputa entre os defensores do poder secular e os advogados do poder religioso. Numa visão, a Igreja era o foco de legitimidade do qual dependia todo poder no universo. Na perspectiva oposta, visível nas obras de Tomás de Aquino, João Quidort, Marsílio e Guilherme de Ockham, o poder tinha de ser pensado (não importavam seus apelos a argumentos teológicos) a partir da realidade dos povos. Era fácil deslizar desse ponto para uma defesa também dos Estados contra o imperium. Os trabalhos de Guilherme de Ockham e de Marsílio, por exemplo, podem ter sido uma retribuição ao imperador. E ambos realizaram sua missão fielmente. Mas acabaram deixando muito mais do que uma apologia do poder imperial. 533 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO III A HERANÇA E O INVENTÁRIO Entre o século XI e inícios do XIV, como se viu, juristas, teólogos e filósofos fixaram as principais teorias a respeito da autoridade do príncipe. Alguns deles mantiveram a ênfase na supremacia da lei, eventualmente confundida com a supremacia da comunidade. Outros acentuaram a idéia do príncipe legislador. De modo geral, porém, não se renegava a idéia do governo fundado no bem público. Desses dois modelos seria possível derivar, com alguns acertos, tanto as doutrinas da monarquia absoluta quanto a do governo constitucional. Num caso, era preciso acentuar o papel da vontade legisladora e reduzir drasticamente, senão eliminar, a importância de qualquer norma não posta pelo soberano. Em Bodin, houve redução, e não eliminação.51 Em Hobbes, a concepção do soberano legibus solutus era radical. No outro caso, os modernos acabaram combinando a idéia da supremacia da lei com a noção de que só podia haver um soberano, o povo. Locke constituiu um paradigma desse tipo de filósofo. Passavam a estar disponíveis, portanto, em matéria doutrinária, todos os elementos indispensáveis à consagração de um novo conceito de lealdade, aquele necessário à consolidação jurídica do Estado moderno, que teria na noção de soberania, fosse ela localizada no povo ou no governante supremo, um de seus principais atributos. “Com tais doutrinas, que comprovam a autonomia do Estado e sua criação, para propósitos úteis, por homens pecadores mas racionais”, constata Coleman, “entramos efetivamente no início período moderno.”52 51 52 Ele mantinha, por exemplo, referências à lei natural e a uma norma de caráter constitucional, a Lei Sálica. Sobre esse assunto, cf. BARROS, Alberto R. A teoria da soberania de Jean Bodin. São Paulo: Unimarco, 2001. COLEMAN. Sovereignty and power relations in the thought of Marsilius of Padua and William of Ockham: a comparison. In: Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, op. cit., p. 246. 534 FINAL - O PODER SEM PECADO No meio do caminho, a figura de Tomás de Aquino constituía uma ponte indispensável. Com ele, pensamento político e pensamento jurídico se integravam de um modo novo, no trabalho de naturalização do político que já vinha acontecendo desde, pelo menos, o século XII. Aristóteles fora um fator fundamental nessa operação, mas a teoria tomista havia incorporado também o pensamento jurídico e filosófico renovados, e o resultado era muito mais que uma mera redescoberta do aristotelismo. Essa construção, porém, não atendia somente aos interesses dos novos poderes constituídos sobre os territórios. A renovação conceitual era mais ampla. Ao mesmo tempo em que se desenhava uma nova figura do governante civil – a partir de noções como ‘rex in regno suo imperator est’, ‘princeps superiorem non recognoscens’, interesse do reino etc. –, alguns autores conferiam novo sentido à idéia da base popular do poder. A doutrina do poder ascendente se desligava progressivamente da idéia da origem divina. Cada vez menos, o povo era um comissário e, cada vez mais, uma fonte original. Bellarmino e Suarez, neotomistas, ainda reivindicariam, depois da Reforma, a noção de um poder atribuído por Deus ao povo e por este aos reis. Isso era suficiente para incomodar os defensores da idéia do direito divino dos reis, como Filmer. Locke já não precisava invocar uma origem divina do poder popular. Bastava-lhe a noção de um direito natural que se materializava, por exemplo, na organização da propriedade e dos negócios da comunidade pré-estatal (até a moeda, em Locke, independia do Estado). Se a doutrina lockiana tivesse de ser inscrita numa linhagem proveniente da Idade Média, os pontos de referência seriam João Quidort e Guilherme de Ockham, muito mais do que São Tomás. Estava pronta uma herança intelectual e política que podia ser usada pelo menos de três maneiras. Uma delas era 535 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO a reivindicação, pelos monarcas, de um direito divino. O próprio Egídio Romano, ao defender o poder papal, havia deixado material para a confecção dessa doutrina. O segundo uso se dava pela proclamação de uma lei natural acessível à razão e suficiente, sem recurso à idéia de Deus, para guiar a vida política e social. O terceiro ocorria quando se afirmavam a racionalidade do Estado e a supremacia absoluta da comunidade política como única fonte da lei e do direito. James I, Locke e Hobbes realizaram uma a uma essas opções. 536 FINAL - O PODER SEM PECADO APÊNDICE 537 PRÓLOGO 1 Tradução: Raquel Kritsch2 Como ensina o Filósofo, no Livro II da Física, a arte imita a natureza. A razão disso é que assim como os princípios existem sucessivamente, do mesmo modo existem proporcionalmente operações3 e efeitos. Ora, o princípio das coisas que são feitas segundo a arte é o intelecto humano, que deriva segundo certa similitude do intelecto divino, o qual é o princípio das coisas naturais. Donde é necessário que as obras da arte imitem as obras da natureza, e aquelas [coisas] que existem segundo a arte imitem aquelas que existem na natureza. Se pois algum ordenador de alguma arte efetuasse uma obra de arte, seria preciso que o discípulo, o qual tivesse recebido a arte daquele, atentasse à obra daquele para que também ele próprio operasse à semelhança daquele. E por 1 2 3 O texto a seguir refere-se ao “Prológo”, escrito por Tomás de Aquino como introdução aos seus “Comentários” à Política, de Aristóteles. A versão latina aqui utilizada (cf. p. 545-6) foi retirada da seguinte edição: AQUINO. Prologus. Sententia libri politicorum (Comentários). In: Opera Omnia (iussu Leonis XIII P.M. edita). cura et studio fratrum praedicatorum”. Roma: Ad Sancta Sabinae, 1971. t. 48. Esta tradução contou com o auxílio generoso do Prof. Marcos Martinho dos Santos, latinista da Faculdade de Letras da USP, que comigo debateu esta versão. No sentido de ‘atos’, ‘ações’. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO isso o intelecto humano, cujo lume inteligível é derivado do intelecto divino, tem necessariamente de se formar nas coisas que faz a partir do exame das coisas que foram feitas naturalmente, para que opere de maneira similar; e daí vem que o Filósofo diz que se a arte fizesse aquelas coisas que são da natureza, de modo semelhante, operaria como a natureza. E, ao contrário, se a natureza fizesse aquelas [coisas] que são da arte, faria assim como faz a arte. Mas a natureza, todavia, não perfaz aquelas [coisas] que são da arte, mas somente prepara certos princípios e oferece aos artífices, de algum modo, um exemplo de [como] operar; a arte, em verdade, pode sim inspecionar aquelas [coisas] que são da natureza e usar destas para perfazer [uma] obra própria, perfazer [aquela], porém, ela não pode. A partir disso fica patente que das coisas que são segundo a natureza a razão humana é apenas cognoscitiva, mas das coisas que são segundo a arte [a razão humana] é tanto cognoscitiva como factiva. De onde é preciso que as ciências humanas que tratam das coisas naturais sejam especulativas,4 mas que as [ciências] que tratam das coisas feitas pelo homem sejam práticas ou operativas, segundo a imitação da natureza. Ora, a natureza, em sua operação, procede dos simples aos compostos, de modo que nas coisas [que são] feitas pela operação da natureza, aquilo que é maximamente composto é perfeito e total e [é] o fim das outras coisas, como é evidente em quaisquer todos em relação às suas partes; donde também a razão dos homens, [que é] operativa, procede das coisas simples às compostas, tal qual do imperfeito ao perfeito. E como a razão humana teria de dispor não apenas daquelas coisas que se oferecem ao uso do homem, mas ainda dos próprios homens, os quais são regidos pela razão, num e noutro caso procede dos simples ao composto: nas 4 No sentido grego de ciências ‘teoréticas’. 540 APÊNDICE outras coisas que se oferecem ao uso do homem, assim como a partir da madeira [se] constrói a nau, e a partir de madeira e pedras a casa; já nos próprios homens como quando [a razão] ordena vários homens numa única certa comunidade. E como dentre estas comunidades há diversos graus e ordens, superior é a comunidade da cidade, ordenada para as coisas autosuficientes da vida humana: donde entre todas as comunidades humanas esta é a mais perfeita. E porque aquelas coisas que se oferecem ao uso do homem são ordenadas para o homem como ao [seu] fim, o qual é anterior5 a estes que são [ordenados] ao fim, por isso é necessário que aquele todo que é a cidade seja anterior a quaisquer todos que podem ser conhecidos e construídos pela razão humana. Logo, destas coisas que foram ditas acerca da doutrina da política, a qual Aristóteles trata neste livro, podemos depreender quatro [coisas]. Primeiro, a necessidade desta ciência: com efeito, dentre todas as coisas que podem ser conhecidas pela razão, é necessário transmitir alguma doutrina para a perfeição da sabedoria humana, a qual é chamada filosofia; logo, como este todo que é a cidade está sujeito a um certo julgamento da razão, foi necessário, para complemento da filosofia, instituir uma doutrina [que tratasse] da cidade, que é chamada política, isto é, a ciência civil. Segundo, podemos depreender o gênero desta ciência. Pois como as ciências práticas são distinguidas das especulativas nisto: que as [ciências] especulativas são ordenadas somente para a ciência da verdade, mas as práticas [são ordenadas] à obra, é necessário que esta ciência esteja contida sob a filosofia prática, já que a cidade é um certo todo do qual a razão humana não apenas é cognoscitiva, mas também operativa [ou atuativa]. E mais: algumas coisas a razão opera – por meio de uma operação que se transforma em matéria 5 No sentido de ‘mais importante que’, ‘supremo’ em relação a. 541 SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO exterior – pelo modo do fazer, o qual pertence propriamente às artes que são chamadas mecânicas, como aquela do forjador, do construtor de naus e similares; outras coisas, porém, [a razão] opera pelo modo da ação, por meio de uma operação que permanece naquele que opera, tal como deliberar, eleger, desejar e, deste modo, [ações] que pertencem à ciência moral: é manifesto que a ciência política, que considera a ordenação dos homens, não está contida sob as ciências do fazer, que são as artes mecânicas, mas sob a das ações, que são ciências morais. Terceiro, podemos depreender a dignidade e a ordem da política em relação às demais ciências práticas. É pois a cidade a mais importante das coisas que podem ser constituídas pela razão humana, pois todas as comunidades humanas são referidas a ela. E mais: quaisquer todos, que são constituídos pelas artes mecânicas a partir das coisas oferecidas ao uso dos homens, são ordenados aos homens assim como ao fim; se pois a ciência mais importante é aquela [que trata] do mais nobre e do mais perfeito, então é necessário que a política, entre todas as ciências práticas, seja a mais importante e arquitetônica entre as demais, na medida em que considera o bem último e perfeito nas coisas humanas. E, por causa disto, o Filósofo diz, no fim do Livro X da Ética, que a filosofia que cuida das coisas humanas se perfaz na política. Quarto, do dito podemos depreender o modo e a ordem desta ciência. Pois assim como as ciências especulativas, que consideram algum todo, chegam ao conhecimento do todo a partir da consideração das partes e dos princípios, manifestando as paixões6 e as operações7 do todo, assim também 6 7 No sentido grego, daquilo que ‘se sofre’, como ‘reação’, em oposição à ação (num sentido passivo). No sentido ativo: ‘atos’ ou ‘ações’. 542 APÊNDICE esta ciência, ao considerar os princípios e as partes da cidade, transmite o conhecimento da própria [cidade], manifestando as partes dela: tanto as paixões como as operações. E porque é prática, manifesta em adição o modo pelo qual as coisas singulares podem perfazer-se: o que é necessário em toda ciência prática. 543 LIBER PRIMUS PROLOGUS Sicut Philosophus docet in II Phisicorum, ars operationem nature fiund, quod est maxime com- imitatur naturan. Cuius ratio est quia sicut se habent principia ad inuicem, ita proportionaliter positum est perfectum et totum et finis aliorum, 40 sicut apparet in omnibus totis respectu suarum se habent operationes et effectus; principium partium; unde et ratio hominis operatiua ex 5 autem eorum quo secundum arterm fiunt est simplicibus ad composite procedit, tanquam ex imperfectis ad perfecta. intellectus humanus, qui secundum similitudinem quandam deriuatur ab intellectu diuino qui est Cum autem ratio humana disponere habeat non 45 principium rerum naturalium: unde necesse est quod et operationes artis imitentur operationes solum de hiis que in usum hominis ueniunt, set etiam de ipsis hominibus qui ratione reguntur, in 10 nature, et ea que sunt secundum artem imitentur utrisque procedit ex simplicibus ad compositum: ea que sunt in natura. Si enim aliquis instructor 15 alicuius artis opus artis efficeret, oporteret disci- in aliis quidem rebus que in usum hominis ueniunt, sicut cum ex lignis constituit nauim, et ex lignis et 50 pulum qui ab eo artem suscepisset ad opus illius lapidibus domum ; in ipsis autem hominibus, sicut attendere ut ad eius similitudinem et ipse operaretur. Et ideo intellectus humanus, ad quem intelli- cum multos homines ordinat in unam quandam communitatem. Quarum quidem communitatum gibile lumen ab intellectu diuino deriuatur, cum diuersi sint gradus et ordines, ultima est necesse habet in hiis que facit informari ex inspectione eorum quo sunt naturaliter facta, ut similiter communitas ciuitatis ordinata ad per se sufficientia 55 uite humane: unde inter omnes communitates operetur; et inde est quod Philosophus dicit quod humanas ipsa est perfectissima. Et quia ea que in 20 si ars faceret ea que sunt nature, similiter operare- usum hominis ueniunt ordinantur ad hominem sicut ad finem, qui est principalior hiis que sunt ad tur sicut et natura: et e conuerso si natura faceret ea que sunt artis, similiter faceret sicut et ars facit. Set nature quidem non perficit ea que sunt artis, 25 set solum quedam principia preparat et exemplar operandi quodam modo artificibus prebet; ars uero inspicere quidem potest ea que sunt nature et eis uti ad opus proprium perficiendum, perficere finem, ideo necesse est quod hoc torum quod est 60 ciuitas sit principalius omnibus totis que ratione humana cognosci et constitui possunt. Ex hiis igitur que dicta sunt, circa doctrinam politice quam Aristotiles in hoc libro tradit, quatuor accipere possumus. Primo quidem neces- 65 sitatem huius scientie: omnium enim que ratione 30 na eorum que sunt secundum naturam est cognos- cognosci possunt necesse est aliquam doctrinam tradi ad perfectionem humane sapientie que philo- citiua tantum, eorum uero que sunt secundum sophia uocatur; cum igitur hoc totum quod est artem est et cognoscitiua et factiua. Vnde oportet quod scientie humane que suns de rebus natura- ciuitas sit cuidam rationis iudicio subiectum, 70 necesse fuit ad complementum philosophie de libus sint speculatiue, quo uero sunt de rebus ab ciuitate doctrinam tradere que politica nominatur, 35 homine factis sint practice siue operatiue secun- id est ciuilis scientia. Secundo possumus accipere genus huius scien- uero ea non potest. Ex quo pater quod ratio huma- dum imitationem nature. Procedit autem nature in sua operatione ex simplicibus ad composita, ita quod in eis que per tie. Cum enim scientie practice a speculatiuis dis- 75 tinguantur in hoc quod speculatiue ordinantur 1 Artist. Pbys II 4 (194 a 21-23) et 12 (199 a 15-16) 19 Phys. II 13 (199 a 12-15) 75-76 scientie practice... speculatue: cf. Metaph. II 2 (993 a 21) cum Thomas commento. 55 per se sufficientia: cf. infra 1/b, 13-25. SOBERANIA: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO 80 85 90 solum ad scientiam ueritatis, practice uero ad opus, tuuntur ex rebus in usum hominum uenientibus, necesse est hanc scientiam sub practica philosophia contineri, cum ciuitas sit quiddam totum cuius ad homines ordinantur sicut ad finem; si igitur 100 principalior scientia est que est de nobiliori et humana ratio non solum est cognoscitiua, set etiam perfectiori, necesse est politicam inter omnes operatiua. Rursumque cum ratio quedam operetur per modum factionis operatione in exteriorem scientias practicas esse principaliorem et architectonicam omnium aliarum, utpote considerans materiam transeunte, quod proprie ad artes perti- ultimum et perfectum bonum in rebus humanis. 105 net que mecanice uocantur, utpote fabrilis et nauifactiua et similes; quedam uero operetur per Et propter hoc Philosophus dicit in fine X Ethi- modum actionis operatione manente in eo qui que est circa res humanas. operatur, sicut est consiliari, eligere, uelle et huiusmodi que ad moralem scientiam pertinent: et ordinem huius scientie. Sicut enim scientie 110 manifestum est politicam scientiam que de homi- speculatiue que de aliquo toto considerant, ex num considerat ordinatione, non contineri sub factiuis scientiis que sunt artes mecanice, set sub consideratione partium et principiorum notitiam corum quod ad politicam perficitur philosophia Quarto ex predictis accipere possumus modum de toto perficiunt passiones et operationes totius actiuis que sunt scientie morales. manifestando, sic et hec scientia principia et partes Tertio possumus accipere dignitatem et ordinem politice ad omnes alias scientias practicas. 95 ciuitatis considerans de ipsa notitiam tradit partes 115 Est enim ciuitas principalissimum eorum que et passiones et operationes eius manifestans. Et humana ratione constitui possunt, nam ad ipsam omnes communitates humane referuntur. Rursumque quia practica est, manifestat insuper quo modo omnia tota que per artes mecanicas consti- omni practice scientia. singula perfici possum: quod est necessarium in 119 scientia] hic ad lin. seq. transit et litt. initialen apponit φ 107 Etbic. X 16(1181 b 14-15): «et totaliter utique de politica, ud da potentiam quae circa humana philosophia perficiatur». Cf. Thomae comm., lin. 173-179. 546 APÊNDICE BIBLIOGRAFIA 547 FONTES PRIMÁRIAS ABELARDO, Pedro. Dialogus inter philosophum, iudaeum et christianum. Ed. T. R. Friedrich. Sttutgart: Frommann Verlag, 1970. ADELARDO DE BATH. De eodem et diverso. Ed. H. Willner. (Beiträge zur geschichte der Philosophie des Mittelalters 4.1). Münster: Aschendorf, 1903. AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus. Rio de Janeiro: Vozes, 1990. v. 1 e 2. ALIGHIERI, Dante. Il convivio. Torino: Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1972. ____. Monarchy. Ed. P. Shaw. Cambridge: University Press, 1996. ____. Da monarquia. São Paulo: Ediouro, s. d. AQUINO, S. 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