Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. ATRIBUIÇÃO DE GÊNERO E CONCORDÂNCIA NOMINAL-GÊNERO NO PORTUGUÊS BRASILEIRO ORAL E ESCRITO Tânia Ferreira REZENDE SANTOS1 RESUMO O presente artigo trata das formas variáveis de expressão da noção de gênero e da relação sintática que a envolve, em variedades lingüísticas coloquiais do português brasileiro. Diferentemente das abordagens tradicionais do fenômeno, nesta discussão, considerando-se os processos sóciohistóricos de formação do português brasileiro, para além de uma relação estritamente morfossintática, leva-se em conta a relação semântica, de caráter cultural, entre os constituintes oracionais. PALAVRAS CHAVE: gênero, concordância, variação linguística, relação sintática. As concordâncias variáveis no interior do sintagma nominal e entre sujeito e verbo têm sido tratadas, no português brasileiro (doravante PB), principalmente, como erro gramatical, variação sociolingüística, ou como um dos universais de aquisição de segunda língua. De forma geral, pressupõe-se que tal fenômeno resulta do contato entre as línguas nacionais e a língua portuguesa (LP), durante a colonização do Brasil. Considerando-se, pois, o contato entre povos falantes de distintas línguas, entende-se que a expressão linguística das noções de número e gênero possa advir de relações semânticas, que, por sua vez, produzem diferentes formas de expressão lingüística das relações sintáticas. Assim, parte-se, inicialmente, da hipótese de que a atribuição de gênero aos nomes e a concordância nominal-gênero, por falantes que têm o PB como segunda língua, refletem a relação entre o uso da língua e o sistema de referência da comunidade de fala. Para desenvolver tal raciocínio, proponho, neste trabalho, analisar a atribuição de gênero aos nomes e a concordância nominal-gênero, no uso do PB, na escrita e na 11 Professora do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. Doutora em Estudos Linguísticos. E-mail: [email protected]. 56 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. oralidade. O objeto principal da análise é a escrita de professores indígenas de Goiás e do Tocantins, para os quais o PB é a segunda língua. Para efeito de comparação, tomase a escrita de professores indígenas de outras etnias, que tenham adquirido o PB como primeira língua, e de alunos da graduação em Letras da Universidade Federal de Goiás. 1 A relação sintática de concordância no PB 1.1 Princípios lógicos subjacentes às relações sintáticas Nas línguas naturais, as relações sintáticas são concebidas e analisadas de acordo com princípios formais sustentados em uma lógica dicotômica, dita clássica. Desta maneira, qualquer relação estabelecida de acordo com outros princípios lógicos, pertencentes a outras culturas, é vista como ilógica. No que concerne à sentença, sua estrutura e seus constituintes, algumas relações são estabelecidas e consideradas pelas propostas formalistas de descrição linguística como uma relação hierárquica. Há a relação de constituição da sentença, em que se observa e descreve a natureza dos elementos constituintes e da relação entre eles; e há a relação de dependência, tanto entre os constituintes de uma sentença (sintagmas verbal e nominal) quanto entre os constituintes de um sintagma (sintagma nominal). Para a presente discussão, me interessa tão somente a relação entre os elementos constituidores do sintagma nominal. Lyons (1981, p. 115 ss., destaques do autor) entende a concordância como “uma relação assimétrica existente entre um regente, ou controlador, e um ou mais dependentes.” Equivale a dizer que em um grupo linguístico relacional (sintagma), há um elemento regente – o núcleo, hierarquicamente superior – e elementos regidos, às margens e hierarquicamente abaixo do núcleo. Enfim, trata-se, para o autor, de uma relação de regência. De acordo com esta linha de raciocínio, há na estrutura sintática uma subordinação de determinados elementos sintagmáticos ou sentenciais a outros, geradora de regras de estruturação linguística das sentenças, em conformidade com a lógica ocidental, tomada como metamodelo de estrutura linguística. 57 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. 1.2 A relação de concordância na LP e no PB Na LP e no PB, a concordância entre os constituintes de uma sentença ou de um sintagma é concebida como uma relação sintática de regência (ou dependência). A regência é entendida como a vinculação assimétrica ou hierárquica entre sintagmas ou entre constituintes, reflexo da organização lógica do pensamento. Nessa concepção, as variações na expressão da concordância são tradicionalmente entendidas como desvio lógico ou erro gramatical. Outra forma de interpretação do fenômeno concebe a concordância como o resultado de uma regra de harmonização sintática, em que as formas do verbo, por exemplo, são alteradas para harmonizá-lo com o sujeito da oração. Perini (2004, p. 45) apresenta algumas objeções à proposta da regra de harmonização sintática e propõe a possibilidade de um filtro de compatibilidades que inspeciona as estruturas, excluindo aquelas que não estão de acordo com determinadas condições. Assim, o filtro de compatibilidade pode admitir algumas regras variáveis de concordância, principalmente de número. Na tradição funcionalista (cf. DECAT, 1983, dentre outras/os), a concordância é analisada em termos de tópico/comentário, em que, defende-se, o tópico é o controlador da concordância na LP e no PB. Nessa linha, defende-se também que a concordância é um fenômeno advindo da relação de proximidade entre os termos relacionados. De acordo com Saraiva & Bittencourt (1990, p. 103), “no discurso oral e escrito o SN anteposto, linearmente mais próximo ao verbo, independentemente de seu nível hierárquico, é o candidato mais provável a comandar o processo de concordância verbal”. Todas as propostas elencadas anteriormente podem ser adequadas para a descrição e apreciação formal do fenômeno de concordância no PB. Todavia, nenhuma delas é suficiente para uma compreensão mais ampla da concordância variável do PB, principalmente em situação de aquisição de segunda língua para povos indígenas, uma vez que não aprofundam na análise dos aspectos sociais e culturais das comunidades de 58 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. fala, de modo a entender a estrutura linguística como um fenômeno também sociocultural.. Propõe-se, então, para a presente discussão, um tratamento lógico, considerando as diferenças sociais e culturais das comunidades sob estudo, tendo em vista que: 1. admite-se que a linguagem possua uma organização lógica, reflexo da organização sociocultural da sociedade onde é usada, que deve ser considerada nos estudos linguísticos de qualquer natureza; 2. defende-se, nesta proposta, que não há apenas uma lógica e as línguas refletem a lógica de sua comunidade de falantes; ou seja, a organização lógica da linguagem é cultural; 3. a lógica de uma dada comunidade de fala reflete os sistema de referência dessa comunidade; 4. nesse sentido, a relação estabelecida pela concordância pode ser tanto sintática quanto semântica. 1.3 Tipos de concordância na LP As relações sintáticas entendidas como concordância na LP são de dois tipos: número e gênero. A primeira decorre da expressão linguística da noção de número e da relação entre os elementos dos sintagmas nominal (1) e predicativo (2), e entre o sujeito e o verbo (3) de uma sentença, no que se refere à categoria gramatical ‘número’. (1) oS freguesES; aS boaS açÕES; aS codornaø; aS portaø abertaø; essaS estradaø novaø; doø meuS paiS; (2) as coisas TÃO muito caraS, né?/as coisaø TÁ muito caraø; (3) eleS ganhaM demais da conta ~ eleS ganhaø demais da conta. FONTE: NARO, A. J. & SCHERRE, M. M. P. Origens do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2007, p. 50. A segunda advém da expressão linguística da noção de gênero, das regras de atribuição de gênero aos nomes e da relação sintática entre os elementos dos sintagmas nominal (4) e predicativo (5), com relação à categoria do gênero. 59 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. (4) gente bobA ~ gente bobO; (5) As coisa TÃO muito carO (baseado no exemplo de Naro & Scherre, 2007, p. 50). Nesta discussão, tratarei somente da concordância de gênero, entendendo-a como um fenômeno variável do PB e como resultado da confluência entre distintos sistemas de referência dos falantes, no processo de atribuição de gênero ao nome e no estabelecimento da relação sintática de concordância nominal-gênero. 2. Formas de interpretação dos padrões variáveis de concordância no PB As formas variáveis de concordância nominal-gênero no PB têm sido tratadas sob diferentes concepções e aparatos teóricos. Para o momento, não julgo necessária uma revisão de todas as propostas e teorias. Portanto, levanto e apresento apenas aquelas discussões que considero relevantes à fundamentação dos argumentos que pretendo desenvolver. 2.1 Hipóteses fundamentadas no contato linguístico 2.1.1 Sóciohistória de formação do PB A interpretação sociohistórica do fenômeno sob análise considera que os padrões variáveis de uso do PB resultam de um processo de dialetação da LP no Brasil, em contato com as línguas indígenas e africanas, nos períodos colonial e imperial, e, além destas, com as línguas das colônias européias, asiáticas e orientais, no período republicano. Pressupõe-se (cf. AMARAL, 1920; MELO, 1944, 1975, 1981; CÂMARA JR., 1979; 1986; SILVA NETO, 1950) que o contato linguístico e as condições de uso das línguas em contato, durante o período colonial do Brasil, formaram diferentes padrões de uso linguístico, resultando nas línguas gerais do Sul e do Norte e no dialeto caipira. Para os citados autores, a escolarização dos aloglotas, poderia resultar na normalização do falar brasileiro, tendo por base o uso que se fazia da LP em Portugal, à época. 60 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Atualmente, apesar da escolarização dos falantes e da normalização do PB, principalmente na escrita, permanecem muitos padrões linguísticos variáveis, alguns considerados pan-brasileiros, presentes na oralidade e na escrita; outros são tratados como regionais ou sociais e são típicos da oralidade. 2.1.2 Crioulização da LP Muitos dos padrões variáveis de uso do PB, especificamente aqueles, cujos usos são desencorajados pela gramática normativa, são considerados, na literatura pertinente, como indícios e/ou resíduos da crioulização prévia da LP no Brasil, durante os períodos de aloglossia. As concordâncias variáveis, verbal e nominal – gênero e número – constituem um dos fenômenos tidos como evidência de crioulização linguística no Brasil. Todavia, o entendimento da concordância variável de gênero como um traço de crioulização da LP no Brasil, em decorrência do contato com as línguas autóctones, relega a participação das línguas indígenas e africanas na formação do PB a um papel secundário e inferiorizante, uma vez que ainda não se encontrou evidências cabais da existência e uso de crioulos no Brasil. Além do mais, dado que o uso dos referidos padrões variáveis, em geral, são condenados pela gramática normativa, associa-se aos aloglotas, africanos, indígenas e seus descendentes, apenas e tão somente, regras estigmatizadas, combatidas pela escola por constituírem erros gramaticais. 2.1.3 Deriva acelerada Outra forma de abordar as mudanças linguísticas ocorridas no PB é por meio da deriva linguística. A língua, afirma Sapir (1980), segue um curso que lhe é próprio. Ás vezes, em ritmo mais lento, às vezes, em ritmo mais acelerado. Serafim da Silva Neto (1950) propõe que, em virtude do intenso e múltiplo contato entre povos e entre línguas diferentes, durante o período colonial brasileiro, a deriva natural da LP, neste contexto, pode ter sido acelerada. Nesta perspectiva, os padrões variáveis de uso linguístico no PB resultam da deriva acelerada na LP no Brasil. 61 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. O problema com essa abordagem aos padrões variáveis de uso do PB é que seus seguidores buscam sempre e somente no latim – metamodelo de estruturação linguística das línguas românicas – as explicações para as variações no PB, legitimando o pressuposto que se estiver no latim não é crioulização, então é permitido, para justificar o emprego de construções divergentes do padrão eleito como culto da LP. 2.1.4 Aquisicionismo linguístico A hipótese aquisicionista atribui ao processo de aquisição da LP, principalmente como segunda língua, por adultos, a fixação de padrões variáveis, não recomendáveis pela norma gramatical oficial. Com base em regularidades encontradas na oralidade e na escrita de indígenas adultos, em processo de aquisição do PB como segunda língua, os defensores desta hipótese elencam universais da aquisição da linguagem e da aquisição de segunda língua. A aquisição de uma língua por adultos, ou mesmo de segunda língua por crianças que já se encontram mais adiantadas no processo de aquisição da primeira língua, favorece a postulação de regras variáveis, mas não é o único responsável nem pela postulação nem pela fixação dessas regras. Outros fatores convergem para a sua sistematização. Cabe ao linguista indeficar, apontar e descrever tais fatores. Considerando, cautelosamente, os pressupostos apresentados, proponho para a presente discussão que a interação entre diferentes sistemas de referência e distintas formas de organização social e cultural leva à emergência e sistematização de regras variáveis de uso de uma mesma língua por falantes de línguas nativas diferentes, em contexto de interculturalidade. 3. Regras variáveis de concordância de gênero nos dados 3.1 A categoria gramatiacal ‘gênero’ na LP O ‘gênero’ dos nomes, antes de ser uma categoria linguística, é uma categoria biossocial que se relaciona com o sexo dos seres nomeados. A distribuição dos nomes de objetos inanimados, por não possuírem designação nem distinção de sexo, nas 62 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. subclasses de feminino e masculino, é aleatória e convencional, embora em alguns casos haja motivação explícita. Dada sua relação com a natureza do objeto nomeado, o gênero é uma classe confusa na LP e a classificação do nome quanto ao gênero observa ora critérios semânticos, entendendo o gênero como uma categoria conceitual, ora critérios gramaticais, entendendo o gênero como uma categoria mórfica. Na descrição gramatical, não há consenso entre os estudiosos (cf. CÂMARA JR., 1986; SANDMANN, 1991; 1992; BOTELHO, 2004) quanto à natureza morfológica da categoria ‘gênero: trata-se de flexão ou de derivação? Não temos por escopo, no momento, discutir tais problemáticas, embora elas sejam da máxima relevância para o nosso estudo. Por isso, nos deteremos nas formas de atribuição do gênero ao nome, entendendo que na LP a categoria ‘gênero’ é descrita morfologicamente, no âmbito da expressão do gênero nos nomes, e sintaticamente, no âmbito da relação entre o nome e seus adjuntos. 3.2 A atribuição de gênero ao nome na LP e no PB A atribuição de gênero ao nome sempre foi confusa nas línguas românicas. Na língua latina, que serve de metamodelo de estruturação das línguas românicas, o gênero é uma categoria conceitual e a classificação do nome quanto ao gênero se faz por critérios semânticos. Os latinistas (cf. MAURER JR., 1959; ALMEIDA, 1995) mostram que na língua latina há três gêneros, masculino, feminino, neutro, e não existe artigo para designar gênero. Este é reconhecido ou pelo gênero natural ou pelo gênero gramatical. O gênero natural é válido para todas as declinações: são masculinos os substantivos que designam homens, povos, rios e ventos; e são femininos os substantivos que designam mulheres, árvores, cidades, terras e ilhas. Gênero gramatical são as regras particulares a determinadas declinações e grupos de palavras. Maurer Jr. (1959) destaca que o gênero neutro em latim era uma categoria préhistórica, vazia de sentido e de expressão para os romano, e sua perda constitui a maior inovação latina quanto à categoria gênero. 63 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. A LP segue o mesmo padrão observado na língua latina. Em Cunha e Cintra (2001, pp. 188-189), encontra-se que na LP: a) há dois gêneros, o masculino e o feminino; b) o masculino é a forma não marcada e o feminino a marcada pela terminação -a; c) “o gênero de um substantivo não se conhece, de regra, nem pela sua significação, nem pela sua terminação”; d) “pertencem ao gênero masculino todos os substantivos a que se pode antepor o artigo o; e) pertencem ao gênero feminino os substantivos a que se pode antepor o artigo a; f) quanto à significação, são geralmente masculinos os nomes de homens ou de funções por eles exercidas, os nomes de animais do sexo masculino, os nomes de lagos, montes, oceanos, rios e ventos, nos quais se subentendem as palavras lago, monte, oceano, rio e vento, que são masculinas, e os nomes de meses e dos pontos cardeais; são geralmente femininos os nomes de mulheres ou de funções por elas exercidas, os nomes de animais do sexo feminino, os nomes de cidades e ilhas, nos quais se subentendem as palavras cidade e ilha, que são femininas; g) quanto à terminação, são masculinos os nomes terminados em o átono e são geralmente femininos os nomes terminados em a átono; dos substantivos terminados em -ão, os concretos são masculinos e os abstratos femininos. Ora, para antepor a um nome o artigo o ou o artigo a (recomendações em (d) e (e)), uma vez que, de regra não se pode conhecer o gênero de um substantivo (constatação em (c)), o falante precisa saber se o nome é masculino ou feminino. Esta distinção (regras de (a) a (g)) é adquirida, quase imperceptivelmente, durante a aquisição da linguagem, no interior do processo de aquisição do repertório lexical da comunidade de fala, à qual o falante pertence, mas pode se tornar um problema, dependo de como for tratado, no processo de aquisição de uma segunda língua. Mais uma vez, o metamodelo fornece as explicações. Em latim, o gênero neutro não se distingue formalmente do masculino e, mesmo no latim clássico e na escrita mais culta pode-se perceber a confusão entre o neutro e o masculino. No latim vernacular acirra-se a confusão entre o neutro singular/masculino e o neutro plural/feminino. Nas línguas românicas, como no latim vernacular, perde-se o gênero neutro (MAURER JR., 1959). Informa ainda Maurer Jr. (LOC. CIT.) que no substantivo, o consenso das línguas românicas revela a passagem de todas as classes de nomes neutros para o gênero 64 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. masculino. Observa-se ainda a associação entre nomes genéricos e nomes de gênero neutro com o masculino. Faz parte do processo de aquisição da linguagem e, no interior deste, o de aquisição do repertório linguístico da comunidade de fala, a internalização do gênero dos nomes, dado que a categoria gramatical ‘gênero’ na LP é sistematizada. Dessa maneira, o falante adquire a competência necessária para atribuir e para inferir adequadamente o gênero dos nomes na LP. Dado que não há regras linguísticas gerais, a atribuição do gênero masculino ou feminino a um dado nome segue regras socioculturais históricas. Enfim, cada sociedade, ou comunidade linguística, organiza regras de atribuição de gênero de acordo com sua cultura. Desta maneira, o mesmo sistema linguístico, usado em territórios/nações diferentes, por comunidades linguísticas diferentes, pode ter determinados nomes com gêneros distintos. Em situação de interculturalidade, em que línguas de tipos distintos, faladas por comunidades diferentes, estão em uso em um mesmo espaço, o falante tende a seguir as regras do sistema de referência de sua cultura na atribuição do gênero, fazendo emergir, não raro, novos critérios de atribuição de gênero ao nome e novas as regras de relação entre os constituintes de um sintagma e entre sintagmas, como as concordâncias de número e de gênero, na LP. 4. Apresentação dos dados: concordância nominal-gênero No PB, assim como em todas as línguas românicas, há formas de expressão da noção de gênero, as quais levam ao estabelecimento de relações sintáticas entre o nome e seus adjuntos, no interior do sintagma nominal, ou entre o sujeito e seu predicativo, estabelecendo a relação entre dois sintagmas. No geral, o PB padrão, escrito apresenta as mesmas regras gerais de relação sintática das línguas românicas. Entretanto, na 65 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. oralidade e na escrita de comunidades de fala etnicamente diferenciadas, depreendem-se regras específicas de relação sintática, distintas das românicas canônicas. Em Goiás e no Tocantins, é comum a alternância entre o masculino e o feminino de sucuri, por exemplo, embora a gramática normativa recomende a preferência pelo feminino, por se tratar de uma cobra. O mesmo ocorre com juriti, uma ave: (6) Uma criança desapareceu às margens do rio Araguaia ontem à tarde. A versão consensual entre os presentes é que ela tenha sido arrastada e engolida por UMA sucuri (Jornal Anhanguera, 2ª. Edição, do dia 10/07/2009) (7) T. dê uma olhada nas fotos... Precisa ver como O sucuri é FAMOSO lá... e o tanto de serra que tem!!!! Tão diferente o local.... abraços (mensagem enviada por uma mulher de +/- 45 anos de idade, com Mestrado completo, do norte de Goiás) (8) Eu vô contá a história dO sucuri (graduanda Xerente, +/- 30 anos de idade, curso superior incompleto) (9) Tempos atrás que O sucuri morava em uma floresta bem longe, na beira de um rio (graduanda Xerente, +/- 30 anos de idade, curso superior incompleto). Em geral, sucuri é interpretada como cobra e, assim, recebe a atribuição do gênero feminino. Cunha e Cintra (2001, p. 197) apresentam uma lista dos substantivos de gênero vacilante e recomendam que sucuri e juriti sejam usados no feminino. Para muitas comunidades de fala goianas e tocantinenses, sucuri (assim como juriti) é um bicho, sem subclassificação, recebendo, então, a atribuição do gênero masculino. 4.1 Concordância nominal-gênero na escrita em português dos indígenas Os dados apresentados nesta subseção foram colhidos de textos dos professores indígenas dos estados de Goiás – banco de dados escritos do Núcleo Takinahakỹ de Formação Superior de Professores Indígenas/UFG, produzidos pelos graduandos do 66 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Curso de Licenciatura Intercultural de Formação de Professores Indígenas/UFG, e Tocantins – textos produzidos por professores indígenas. Alguns dos professores são falantes nativos de PB e outros o adquiriram como segunda língua; uma parte é graduanda na UFG e outra não. (10) Segundo o vendedor C. de O. de 28 anos dizem que esta planta se encontra no Estado de Minas Gerais dentro da reserva indígena. E esta planta são conhecidO pelos índios no cerrado, não são plantadAs na lavoura mas são vendidOs por índios. (graduando Xerente/Port. 2ª. língua) (11) Este remédio serve para combater dor de cabeça, pressão baixO (...). (graduando Xerente/Port. 2ª. língua) (12) MEU opinião (Prof. X. Krahô/Port. 2ª. língua) (13) ... fazer coisa erradO (Pof. W. Krahô/Port. 2ª. língua) (14) Ensinar o processo próprio de aprendizado, a nossa realidade, a nossa cultura, A históriO dos nossos ancestrais e a nossas línguas tradicionalidade e etc. (Prof. H. Krahô/Port. 2ª. língua) (15) Ensinar a leitura nos nossOs propriOs escritAs (Prof. H. Krahô/Port. 2ª. língua) (16) O aprendizagem não tem como objetivo de competir para estar no mercado de trabalho, más sim, um preparo de um individuo dentro da SUA propriO realidade para encarar a vidA cotidianO (Prof. Y. Krahô/Port. 2ª. língua) (17) A língua maternO coisas do ante passado (...) (Prof. P. Krahô/Port. 2ª. língua) (18) Contam-se os mais velhos que nos tempos passados acreditavam-se que existia dois mundos distintos. Entre si: Que era do bem e o do mal. Eles eram representados pela coam e A beija-flor. (graduanda Tapuia/Port. 1ª. língua) 4.2 Concordância nominal-gênero na escrita dos professores não indígenas 67 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Os dados apresentados nesta subseção foram colhidos de produções escritas de professores não indígenas de Goiás e do Tocantins, que atuam em escolas indígenas, durante os cursos de formação docente. Nenhum dos autores dos textos sob análise cursou faculdade e todos são falantes de PB como primeira língua. (19) Como foi tomado primeiramente o exemplo da língua portuguesa, é sugeridO A confecção de um livro ou apostila (...) (Profª SOL) (20) (...) Nesse contexto, faz-se necessáriO umA educação bilíngue e intercultural, pautada na construção do conhecimento (Prof. KALIL) (21) É necessáriO e urgente A confecção e distribuição de livros didáticos específicos para os Krahô (Prof. GERGEM) (22) (...) então, é usadO A transdisciplinaridade (Prof. GILDO) 4.3 Concordância nominal-gênero na escrita e na oralidade em português em situações formais Os dados orais e escritos, ora apresentados, foram produzidos por alunos e professores da Faculdade de Letras, da Universidade Federal de Goiás, em GoiâniaGoiás, em contexto de formalidade acadêmica. (23) Ademais acredito plenamente no quanto será proveitosO A oportunidade de cursar a disciplina” (jovem +/- 22 anos, residente em área urbana metropolitana de Goiás, com curso superior completo) (24) ...depois foi feitO umA interp/ umA leiturA mais cuidadosA, né... (Professora, com doutorado completo, +/- 55 anos de idade) (25) ... foi prorrogadO A datA... (Professora, com doutorado completo, +/55 anos de idade) (26) Nessa reunião foi feitO umA propostA, né... 68 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. 4.4 Concordância nominal-gênero na escrita e na oralidade da sociedade em geral 5. (27) Quando sair favor fechar tudo e deixar A luz apagadO (cartaz afixado na parede do Salão Comunitário de Itacajá-TO) (28) ... Passa a véia feia, passa beja-florzinhA (Morador de Trindade-GO, +/65 anos de idade) (29) Mais cumé que tem gente bobO desse jeito (S. B. C. homem quilombola/50 anos de idade/ Pombal-GO). (30) Umas coisa a gente cunserta, otAs tá pirdidO (Prefeito de uma cidade do interior de Goiás, na abertura da convenção do partido/+-60 anos de idade). (31) Foi feitO umA espécie de vila olímpica (Programa esportivo da Rede Globo de televisão, edição de 15/11/2009) Interpretação dos dados Na escrita dos professores indígenas, está clara a relação entre a atribuição de gênero aos nomes e o sistema de referência de cada comunidade de fala. Os enunciados Meu opinião, em (12), a histório, em (14), nos nossos próprios escritas, em (15), sua próprio realidade e vida cotidiano, em (16), língua materno, em (17), refletem o proceso de aquisição de segunda língua, quando o sistema de referência e o corpo lexical da língua em aquisição ainda não é conhecido. Mostra o falante elaborando hipóteses na outra língua. Ao lado das ocorrências apresentadas em (10)-(18), há outras ocorrências de concordância nominal-gênero conforme o cânone gramatical, que são objeto de análise em outro artigo. A relação sintática de concordância de gênero, no interior do sintagma nominal e entre o sintagma nominal e o sintagma predicativo, não parece ser um padrão observado pelos professores indígenas. Na escrita dos professores não indígenas, a atribuição de gênero aos nomes segue mais a relação com um sistema de referência semelhante ao dos indígenas e a regra de concordância de gênero que emerge tem a ver com essa relação. Observa-se, 69 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. entretanto, um padrão emergente nesta escrita: a concordância variável (i) entre o nome e seu modificador na forma de particípio passado, como em (19) e (22), ou (ii) entre o nome e seu modificador anteposto ao núcleo, como em (20) e (21). Esse padrão é encontrado também na escrita dos professores indígenas, conforme evidenciam os enunciados (10) e (13). Os enunciados (11), (16) e (17) mostram que, na escrita dos professores indígenas, não são apenas os particípios passados que ficam no masculino, seguindo um núcleo no feminino. Nos dados orais e escritos em situações formais, como a escrita acadêmica e a direção de reuniões oficiais das instituições, percebe-se a ocorrência de adjetivo masculino anteposto ao nome núcleo feminino, como no enunciado (23), e a recorrência do padrão particípio passado masculino seguindo nome núcleo no feminino, como em (24), (25) e (26). Os enunciados (18), escrita dos professores indígenas, e (28), escrita de um morador da área urbana de Goiás, mas de origem rural, trazem beija-flor e beijaflorzinha no feminino, diferentemente do padrão geral do PB, em que beija-flor é masculino. No enunciado (29), gente bobo, da fala do quilombo de Pombal, apresenta um padrão cada vez mais frequente em Goiás: nomes femininos genéricos ou coletivos seguidos de modificador no feminino. Os dados de (27), (30) e (31) apresentam o padrão de atribuição do masculino ao particípio passado, independentemente do gênero do nome núcleo. Os padrões nome seguido de particípio passado, modificador anteposto ao nome núcleo e nome genérico seguido de modificador, em que o gênero do modificador é o masculino independentemente do gênero do nome núcleo, são comuns a todos os dados. A relação sintática entre nome e particípio passado e entre adjetivo anteposto ao nome e nome núcleo não parece ser realidade para os goianos e tocantinenses, além de o particípio passado estar sendo interpretado como um adjetivo genérico ou neutro em relação à categoria gênero. Uma vez que os modificadores de nomes genéricos ficam no masculino e que o particípio passado está sendo interpretado como genérico, parece que o falante de PB sob análise tende a associar todos os genéricos com o masculino. Esta associação é uma 70 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. tendência das línguas românicas, conforme mencionado anteriormente, com base em Maurer Jr. (1959). Estas são apenas questões que carecem de uma investigação mais refinada, que pretendemos desenvolver futuramente. 6. Hipóteses propostas com base nos dados analisados Com base nos dados analisados, propomos algumas hipóteses interpretativas para a concordância variável de gênero na escrita em português nos estados de Goiás e Tocantins, Brasil: 1. Alguns fenômenos variáveis são próprios do processo de aquisição do português, como segunda língua, conforme evidenciado pelos enunciados (12), (14), (15), (16) e (17); 2. Fenômenos, tais como a não concordância em estruturas constituídas de particípio passado na função de modificador nominal, apontam para um processo de mudança na língua, e têm a ver com a tendência românica a associar formas neutras e genéricas com o masculino. 3. Outros fenômenos apresentam uma relação linguístico-cultural e indicam a possibilidade de a atribuição de gênero ao nome refletir uma relação com o sistema de referência da comunidade de fala. Neste contexto, a relação sintática entre o nome e seus adjuntos ou entre o sujeito e seu predicativo pode ser de uma forma diferente da relação de concordância românica. As questões propostas em (1)-(3), juntamente com as reflexões desenvolvidas e as questões levantadas ao final da seção (5), serão a matéria de encaminhamento da pesquisa sobre atribuição de gênero ao nome na escrita e na oralidade em Goiás e no Tocantins. 7. Referências ALMEIDA, N. M. de. Gramática Latina. São Paulo: Saraiva, 1995. 71 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. AMARAL, A. (1920, 1982). O dialeto caipira. São Paulo-SP: Hucitec/INL-MEC. BOTELHO, J. M. O gênero dos substantivos – derivação ou flexão? 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