A FENDA QUE SE ESBALDA NA FALA

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A FENDA QUE SE ESBALDA NA FALA
Shannya de Lacerda Filgueira
Graduanda em Letras pela UFRN
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RESUMO
No livro “Educação Sentimental” o significante organiza o significado, que parece
denotativo, calmo, translúcido. Só a princípio, pois, no fundo, eles velam outras
dimensões, outros mundos. Assim, os títulos escolhidos por Maria Tereza Horta para
compor a seleta de “Educação Sentimental” nos chegam com uma notável argúcia;
transcritos e sobrepostos num jogo de linguagem muito criativo, de cabeça e corpo,
título e corpo, autora e corpo, demonstrados que estão por meio de imagens e
metáforas. Sendo concebidos a partir de uma perspectiva que tem como ponto de
partida seu papel de escritora, os títulos emergem com uma concepção plástica e
consciente de seu lugar como pessoa, mulher e poeta, considerando-se como
diferença num mundo machista e cheio de arreios
INTRODUÇÃO
Quem sabe ensina, quem não sabe pesquisa...
Portanto deve se ter um trato desnudo com o poema.
No começo eram as mulheres escritoras contidas de palavreado castrado.
Depois veio o logro a esse universo pedante e masculino. Entretanto, para muitas,
continuava existindo a mudez social, mas, para outras, mulheres de fibra e à frente de
seu tempo principiava-se uma época um pouco mais aberta a seus casos. Uma fresta,
então, começava a se abrir num solo árido e infértil. Como já disse, certa vez, Roland
Barthes, é a língua que se encarrega de marcar a diferença sexual e social, mantendo,
paratanto, por um lado, separados os gêneros feminino e masculino, e confundindo,
pelo outro, “a servidão e o poder”1 e isso de forma complexa e intríseca.
Sendo a fala dessas mulheres audaciosas a que, com efeito, resvalava-se de
algum modo e deixavam-se, então, a esbaldar suas vozes por entre essa pequena
fenda, que se alargava concomitante ao estridar dessas vozes, cuja força fora forjando
e arrematando seus espaços, e, por conseguinte, conquistando a (s) sociedade (s) até
então seara dos autodidatas ou “magantas” da literatura. Logo, a subordinação sob o
sexo é o resultado de um imperativo discurso que intenta salvaguardar um
denominador comum, a hierarquia do macho – representação social e cultural
abrangente às classes dos ricos e brancos – sobre os mais fracos; dessa forma,
infantes ou mulheres, pobres ou negros, deveriam submeter-se e moldar seus hábitos
aos caprichos da ordem fálica dominante à sua área de convívio.
1
BARTHES, Roland. Lição. São Paulo: Editora 70, 1979.
Ao contrário do que se pensa a autora, Maria Tereza Horta, não se tornou uma
feminista, ao que ela mesma dispara “Eu sou precisamente o contrário do que as pessoas
imaginam das mulheres feministas” (Pública, 208, 21.5.00)2; longe de isso se sentir ela inserese na alcova do diabo editorial como uma escritora, poeta e ciente de seu lugar, de
seu corpo e, sobretudo, na literatura; sem, no entanto, deixar de ser cônscia de si
mesma.
Destarte, a autora lança seu livro mais instigador, Educação Sentimental
(1975). Livro em que os significantes organizam o teor dos significados, que parecem
denotativos, de um corpo calmo, translúcido. Delatando-se assim só a princípio, pois,
no fundo, eles velam outras dimensões, outros mundos.
Observando-se as emanações provenientes de suas designações devemos ter
em mente que o título corresponde a uma parte privilegiada do texto e como é o
primeiro elemento a ser processado, esse deve sugerir e despertar o interesse sobre a
obra, estabelecendo um veículo propício ao trabalho cognitivo da memória, cuja
função será elencar conhecimentos armazenados condizentes ao rumo proposto pela
informação contida no título.
Assim sendo, os letreiros escolhidos por Horta nos chegam com uma notável
argúcia; transcritos e sobrepostos num jogo de linguagem muito criativo, de cabeça e
corpo, título e corpo, autora e corpo, demonstrados que estão por meio de imagens e
metáforas. Sendo concebidos a partir de uma perspectiva que tem como ponto de
partida seu papel de escritora, os títulos emergem com uma concepção plástica e
consciente de seu lugar como pessoa, mulher e poeta, considerando-se como
diferença num mundo machista e cheio de arreios.
Isso posto, deve-se, todavia, fazer uma ressalva sobre a obra em foco, uma
vez que para muitos os escritos possam ainda soar de forma impudica. Contudo, todos
os poemas contidos nesse livro são de posse de uma idealização madura e
concebidos a partir de uma estética livre sobre o julgo do natural, do intríseco à
natureza da carne humana. Portanto, vede o pueril soberbamente imaculado e alce a
mácula geradora da mundana nação humana; guarde os santos e as peias e libere-se
das execráveis perturbações do claustro, por onde a voz aguda apenas grunhe, não a
deixando se esbaldar nem que seja por uma pequena fenda.
Feitas as devidas considerações, e observando sempre o crivo contextual da
repressão sobre a qual foram escritos os poemas, tornemos a olhar para os títulos,
peças-chaves das metafóricas estruturas que se comprovam na poética da escritora.
Para começar, tomemos por base o poema de abertura e que rendeu o
sugestivo nome à obra: Educação Sentimental, poema em que o eu lírico sugere um
aprendizado aos imaturos e impetuosos homens, cuja visualização pode ser encarada
como uma crítica aos homens que, independentemente da natureza psicológica, não
sabem ou não conseguem dar prazer às companheiras, seja por ora avançarem ou
intimidarem-se diante da carne feminil, ora pela ilusão de acharem que estão em
mesma sintonia e que o prazer que sente é o mesmo que avalancha a parceira. E na
esteira da incompletude feminina e na falta de sagacidade masculina encontramos
titulações em poemas cuja função atende aos caracteres de uma “autoajuda” a essas
2
Disponível em <http://www.mulheres-ps20.ipp.pt/Maria_Teresa_Horta%20.htm>
mulheres e homens mutilados em seu momento mais íntimo e fecundo, o sentimental
que, não obstante, pode aflorar de um relacionamento sexual, guarnecido esse de
respeito às carnes e de diálogo para com o parceiro. Paratanto, torna-se crível o grau
de “infelicidade” por não terem tido (essas pessoas) tal educação, necessitando elas
de um alento poético literário capaz de suprir o vazio instaurado devido à morgadez
insipiente e, por conseguinte, a insalubre falta de desejo sexual.
A rotulação trazida por alguns dos títulos3 se ordenadas por outra sequência
deixam entrever uma referenciação diferente dos demais escritos, mais precisamente
desse plasma sobre o constituinte organizacional das ideias quanto forma literária.
Pois vizualizam-se em todos eles o corpo, como elemento motriz à capacidade de se
educar, partindo de um componente universal – o corpo – que interage com o outro,
aprendendo de modo compartilhado o necessário a um bom entrosamento no
relacionamento amoroso.
Contudo, eles se voltam e se integram a uma unidade capaz de fazer o leitor
entender que cada parte é importante e não apenas as aclamadas e célebres
genitálias, mas todo o corpo, formando um conjunto, uma máquina cujo trabalho é feito
por partes inteiras e não por desmembramentos pretensiosos. E se formos observar
os cabeçalhos mais desveladamente teríamos outro poema versado sobre as
composições narrativas elaboradas por meio de descrições que recortam o olhar sobre
uma sequenciação discrusiva do ato ritualístico e onírico do sexo.
Já em outros títulos4 o que se encontra são metáforas às genitálias,
expressando por meio de variados rótulos formas diversas de se agradar e de se
aconchegar nos epicentros corporais decompostos pela autora. Entretanto, preocupase também com as ações e atividades que permeiam e perpassam esses centros
“vulcânicos” do prazer. E isso pode ser visto em: Sobre a fertilidade e a menstruação;
Secura; Os pulsos, que encerra no poema a alusão ao falo; As palavras pagãs,
observando que o sexo não pode ser privado por crenças, leis ou horas e que tudo
deve ser guiado pela voragem e compasso do casal; e, por último, o poema Trópicos a
aludir o corpo em especial as mamas em sonância às genitálias.
Chegado a esse fim é impossível deixar de notar que, por mais simples e
naturais, seus títulos resguardam o poderio da objetividade velado pelo subjetivo
imagético que se faz presente em seus textos.
Sendo assim, a obra Educação Sentimental de 1975 é aclamada até hoje não
por sua construção plástica encerrada nos liames dados pelos recursos técnicos ou
léxicos realísticos, mas por tratar simplesmente e literariamente de algo que assusta
grande parte das pessoas que leem textos dessa natureza, cuja ênfase é dada ao
sexo e ao corpo como instrumentos de prazer. Agora, aos notadamente competentes,
resta comprovar a eficácia de seus atos e aos ainda titubeantes na arte: daria a
sugestiva leitura de tal livro como forma de aprendizado para a vida por meio do
prazer literário.
REFERÊNCIA
3
Voragem, Domínio, O lençol, A doença, A subida, Cansaço, Tão vagarosamente, Jogo, Ágil, Só contigo, Penumbra,
O pênis – a haste, A veia do (teu) pênis, Esperma, A língua, Os cabelos, A nuca, O pescoço, Os braços, As mãos, Os
seios, A cintura, As nádegas, As ancas, O ventre, O púbis, O clitóris, A vagina, As virilhas, As pernas, Ritual do amor,
Masturbações, Modo de amar, Gozo e Os dois corpos.
4
Laranja, O silêncio, Fala e Fenda, Face a Face, A boca – os lábios, A nuca, O pescoço – o ombro e A boca do corpo.
HORTA, Maria Tereza. Poesia completa. Portugual: Litexa, 1983.
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