O SISTEMA URBANO DE CAICÓ NO PERÍODO TÉCNICO-CIENTÍFICO-INFORMACIONAL: REFLEXÕES EM TORNO DO CONCEITO DE ESPAÇO BANAL Diego Salomão Candido de Oliveira Salvador Mestre em Geografia pela UFRN Professor do Departamento de Geografia da UFRN - Caicó [email protected] Brasil 1 INTRODUÇÃO Na atualidade, cada vez mais, os geógrafos latino-americanos se conscientizam de que a cidade dos países subdesenvolvidos deve ser analisada tomando como fundamento a história desses países e não modelos urbanos importados dos países desenvolvidos, de modo descontextualizado. Nessa perspectiva, a elaboração de uma teoria urbana referente à realidade dos países subdesenvolvidos considera o espaço como sendo o lócus de todos os agentes sociais, hegemônicos e não hegemônicos, e de todas as atividades econômicas, superiores e inferiores, sem exceções, o qual pode ser denominado de espaço banal. Atentando especificamente para o território potiguar, propomos analisar o espaço banal de uma cidade de destaque no Seridó Norte-Rio-Grandense: Caicó. Essa é marcada por um expressivo circuito superior, perpassado por empresas e por serviços modernos que atraem diariamente a população de várias cidades vizinhas, assim como por um extenso e dinâmico circuito inferior, que abriga grande parte dos trabalhadores caicoenses e também contribui para que a citada cidade exerça seu papel de centro regional no âmbito do Rio Grande do Norte. Diante desse cenário, objetivamos compreender o sistema urbano de Caicó no período técnico-científico-informacional, considerando os diferentes usos do território que são explicitados nessa cidade. Para isso, estamos desencadeando (docentes e discentes do curso de Geografia da UFRN - CERES/Caicó) pesquisas: bibliográficas sobre a cidade dos países subdesenvolvidos; em dados secundários acerca da estrutura socioeconômica de Caicó na atualidade; documental sobre o sistema urbano caicoense; e de campo, observando criticamente a totalidade de tal sistema urbano. 2 BREVES ANÁLISES SOBRE O SISTEMA URBANO DE CAICÓ NO PERÍODO ATUAL Nos dias atuais, em que o espaço é cada vez mais marcado, em sua formaconteúdo, pelas variáveis técnica, ciência e informação (SANTOS, 1997), podemos considerar a cidade, sobretudo a dos países subdesenvolvidos, como o lócus em que convivem diferentes e desiguais agentes sociais e atividades econômicas. Nela, nos deparamos com variados usos do território, desencadeados pelos agentes sociais hegemônicos, que o usam como um recurso, e pelos agentes não hegemônicos, que usam o território como um abrigo para sua sobrevivência (SANTOS, 1996). Geralmente, aqueles trazem à tona atividades econômicas superiores, caracterizadas pelo grande conteúdo de capital e pela pouca mão de obra ocupada; e estes colocam em baila atividades econômicas inferiores, que se caracterizam pela pouca necessidade de capital empregado e pela intensa ocupação de pessoas, sem que haja necessidade de qualificação profissional. Assim sendo, tomando como alicerce a teoria dos dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos (SANTOS, 1979), consideramos a cidade desses países como um espaço banal, isto é, um espaço que é marcado por todos os agentes sociais e por todas as atividades econômicas, que convivem de maneira desigual, contraditória e combinada. Destarte, coadunamos com o pensamento de Souza (1997), quando diz que a principal dimensão da cidade é a coexistência. É com essa perspectiva teórico-metodológica que pretendemos estudar o sistema urbano de Caicó-RN no período técnico-científico-informacional, atentando para os diferentes subsistemas existentes no âmbito de tal sistema urbano. Mas por que estudar justamente o sistema urbano de Caicó? Caicó (figura 01), cidade da Região do Seridó, distante 296 quilômetros de Natal, capital do Rio Grande do Norte, é, no âmbito do estado, um centro regional, influenciando vários municípios que a rodeiam, tanto no território potiguar quanto no paraibano. Tal influência ocorre devido a Caicó se destacar, em relação às cidades vizinhas, no que concerne aos serviços oferecidos, à dinâmica comercial e à infraestrutura urbana (MORAIS, 1999). Figura 01: Município de Caicó no âmbito do território potiguar Fonte: IBGE, 2010. O circuito superior da economia urbana é evidente e dinâmico no sistema urbano caicoense (figura 02), apresentando grandes empresas que comercializam automóveis, motos, eletrodomésticos, alimentos, roupas; instituições educacionais de renome no contexto potiguar; e serviços especializados. Podemos dizer que essas características garantem luminosidade a Caicó na escala do Seridó, reservando-lhe a função de centro regional ou de cidade-núcleo (SANTOS, 1965) de tal região. Figura 02: Fotos do circuito superior em Caicó Fonte: Pesquisa de campo, 2010. Entretanto, não há apenas luminosidade no sistema urbano de Caicó. De acordo com Morais (1999), o crescimento urbano dessa cidade vem ocorrendo por meio de um processo de periferização, tanto do ponto de vista geográfico quanto social. A maioria das pessoas que vêm para Caicó nos dias atuais, em busca, geralmente, de trabalho e de melhores condições de vida, instala-se em novos bairros que ficam distantes do centro da cidade, ampliando as fronteiras urbanas e caracterizando sua periferização geográfica. Além disso, essas pessoas, frequentemente, não conseguem emprego nas atividades do circuito superior, devido a sua baixa especialização profissional e ao fato desse circuito ser anoréxico em relação aos empregos gerados (SILVEIRA, 2007, 2004), tendo, assim, que procurar outras atividades para garantir sua sobrevivência, quando não ficam desempregadas. Com isso, Morais (1999) destaca que muitos desses novos bairros são caracterizados pela pobreza e, até mesmo, pela miséria da população residente. As desigualdades e as contradições sociais existentes em Caicó podem ser sintetizadas nos dados apresentados por essa autora, referentes à renda média mensal dos moradores de dois bairros da cidade: no bairro Penedo (zona leste), a maioria dos moradores declarou receber, em 1998, mensalmente, mais de 20 salários mínimos; já no Conjunto Santa Costa (zona sul), a maior parte dos moradores declarou não ter renda mensal. Outrossim, frisamos as palavras da autora no tocante aos bairros Frei Damião e João Paulo II (ambos da zona oeste): “(...) as condições de vida podem ser classificadas como miseráveis” (MORAIS, 1999, p. 304). A precária situação de vida em que se encontra significativa parcela da população de Caicó também pode ser evidenciada a partir das seguintes estatísticas: em 2000, 34,2% da população caicoense vivia em situação de pobreza e 10,9% vivia em situação de indigência (IDEMA, 2010). Tal situação não se limita apenas aos bairros Frei Damião e João Paulo II. Isso é evidenciado quando nos remetemos a um problema que marca essa cidade desde meados do século XX: o desemprego. De acordo com Fernandez (1988) e Morais (1999), a urbanização de Caicó, intensificada a partir da década de 1970, quando a economia agrícola do binômio gado-algodão entra em decadência, não ocorre atrelada à industrialização, mas sim à terceirização. Já na década de 1980, Fernandez (1988) destacava que as poucas indústrias existentes na cidade estavam em decadência, não atendendo, significativamente, à demanda por emprego da maioria da força de trabalho caicoense, que enfrentava a situação do desemprego. Mais contemporaneamente, Morais (1999) coloca que os empregos gerados em Caicó são escassos, devido existirem poucas indústrias no local e ao funcionalismo público não demonstrar condições de gerar tantos empregos quanto demanda a sociedade. Nesse contexto, Morais (1999) evidencia que a economia urbana de Caicó passa por uma crise, questionando: como pode continuar acontecendo o crescimento da cidade diante dessa situação de crise? Esse questionamento nos leva a atentar para a outra face da economia urbana de Caicó: a do circuito inferior. As atividades desse circuito são, nos dias atuais, cada vez mais marcadas pelas variáveis modernas informação, finança e consumo (SILVEIRA, 2009), oferecendo a seus clientes novos serviços que antes só eram disponibilizados no circuito superior, o que demonstra que o circuito inferior também é dinâmico. Vale destacar que as atividades inferiores possuem determinadas particularidades em relação às superiores: não exigem grandes quantidades de capital para serem desencadeadas, mas sim criatividade e disposição, frequente, para o trabalho (funcionando, por vezes, em tempo integral, dependendo da demanda dos clientes); são flexíveis quanto aos estoques (que são mínimos), aos preços (se aceita a pechincha) e ao pagamento (o crédito pode ser pessoal ou até mesmo financeiro); no geral, ocupam muitas pessoas, sem que haja a necessidade de haver qualificação profissional. As atividades do circuito inferior são, geralmente, de pequeno porte, ocupando poucas pessoas, quando consideradas individualmente, mas uma imensidão, quando tomadas em conjunto. Asseveramos que, em geral, tais atividades ocupam as pessoas na perspectiva de relações de trabalho sem garantias trabalhistas. Os agentes do circuito inferior, dessa forma, não trabalham com carteira de trabalho assinada, sem ter direito a férias, a 13° salário, a seguro desemprego, dentre outros benefícios. É por isso que Santos (1979) diz que tais atividades colocam as pessoas numa situação de subemprego ou de ocupação precária, associando o circuito inferior à pobreza. Esse autor frisa, ainda, que o referido circuito não existiria no âmbito de um paradigma social ancorado na paridade e não na desigualdade social, só se fazendo presente na realidade urbana dos países subdesenvolvidos devido ao circuito superior existir e desempregar uma multidão de trabalhadores, que, sem grandes possibilidades, se veem necessitados a se abrigar nas atividades inferiores, mesmo que em condições precárias. Assim sendo, afirmamos que, na contemporaneidade, são as atividades inferiores que ocupam os desempregados pelo circuito superior em Caicó (figura 03), os quais desempenham ações referentes à produção, à transformação e à comercialização. Morais (1999), referindo-se à urbanização terciária de Caicó, cita algumas das principais ocupações exercidas pela maioria dos trabalhadores locais: agricultores, carroceiros, cabeceiros, feirantes, lavadeiras, serventes de pedreiro, padeiros, domésticas, cambistas, mototaxistas, motoristas, vendedores ambulantes ou não, bordadeiras etc. Em seus estudos, tanto Fernandez (1988) quanto Morais (1999) fazem questão de destacar o papel vital que tais atividades têm na economia urbana de Caicó. Esse destaque é feito devido a boa porcentagem das famílias caicoenses sobreviver dessas atividades, tendo, com isso, a possibilidade de usar o território, ao lado dos agentes hegemônicos com suas respectivas atividades superiores. Figura 03: Fotos do circuito inferior em Caicó Fonte: Pesquisa de campo, 2010. Consultando os dados mais recentes disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010), podemos mensurar, de modo preliminar, a importância das referidas atividades inferiores. Vejamos: em 2008, 81% das empresas existentes em Caicó eram de pequeno porte, empregando ou ocupando de 0 a 9 pessoas, sendo que dessas 65% empregavam ou ocupavam de 0 a 4 pessoas. Tais empresas integram, frequentemente, o circuito inferior, funcionando, muitas vezes, numa perspectiva familiar. Em 2000, 72,8% dos trabalhadores caicoenses ganhavam de até ¼ a 2 salários mínimos mensais, sendo que desses 64,5% ganhavam até 1 salário mínimo. Em 2008, os trabalhadores de tal cidade ganhavam, em média, 1,6 salário mínimo mensal. Tais dados também remetem às atividades do circuito inferior, já que essas não oferecem, comumentemente, grandes ganhos aos seus agentes desencadeadores. Estes conseguem, geralmente, sobreviver com o que ganham nessas atividades, mas não acumulam capital, a exemplo do que ocorre com os agentes do circuito superior. E, em 2000, 18% das pessoas com 10 ou mais anos de idade não era alfabetizada e apenas 3,5% tinha curso superior concluído. Como sabemos, para ingressar no circuito inferior, os trabalhadores não necessitam ter alta qualificação, o que nos leva a dizer que esses dados também ajudam a compreender o peso que essas atividades têm na dinâmica atual da economia urbana da citada cidade. Assim sendo, partimos para as considerações finais, por ora, do trabalho, nas quais ratificamos a coexistência de diferentes e desiguais agentes sociais e atividades econômicas no espaço urbano caicoense e revelamos, de maneira explícita, a problemática que alicerça nossas reflexões. 3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS Portanto, diante das breves análises colocadas em baila, afirmamos ser evidente a coexistência de agentes hegemônicos e de agentes não hegemônicos, de atividades superiores e de atividades inferiores, de solidariedades organizacionais (referentes ao mercado) e de solidariedades orgânicas (referentes ao cotidiano) (SANTOS, 1999) e de divisões superpostas do trabalho (usos do território) (SANTOS; SILVEIRA, 2001) em Caicó. Essa coexistência explícita dos contrários na cidade em questão, leva-nos a propor e a justificar o estudo do sistema urbano de Caicó no período atual. Nesse ínterim, destacamos que tal coexistência ainda não foi estudada em profundidade pelos geógrafos potiguares, tanto na escala de Caicó quanto na estadual, os quais não vêm trabalhando, em seus trabalhos, com o conceito de espaço banal, privilegiando, assim, determinados usos do território. Por fim, explicitamos que todas as nossas reflexões estão sendo calcadas na seguinte inquietação: em que medida a coexistência entre agentes sociais, hegemônicos e não hegemônicos, e atividades econômicas, superiores e inferiores, marca a realidade urbana de Caicó na contemporaneidade? Desvendaremos tal questionamento em trabalhos futuros, à medida que desenvolvermos, com maior profundidade, os procedimentos metodológicos aqui trazidos à tona. REFERÊNCIAS FERNANDES, I. O setor informal de Caicó e sua relação com a dispersão da população rural. 1988. Monografia (Especialização em Geografia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Sistema IBGE de Recuperação Automática SIDRA: Caicó. Disponível em: <http://www.sidra.ibge.gov.br/bda/territorio/unit.asp?codunit=1621&z=t&o=4&i=P>. Acesso em: 07 set. 2010. INSTITUTO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E MEIO AMBIENTE DO RIO GRANDE DO NORTE (IDEMA). Perfil do seu município: Caicó. Disponível em: <http://www.idema.rn.gov.br/contentproducao/aplicacao/idema/socio_economicos/en viados/perfil_c.asp#caico>. Acesso em: 07 set. 2010. MORAIS, I. R. D. Desvendando a cidade: Caicó em sua dinâmica espacial. Brasília: Senado Federal, 1999. SANTOS, M. ; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2001. SANTOS, M. A cidade nos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. ______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1999. ______. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. 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