NOTA DE ABERTURA I nvestigar sobre o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição continua a ser um desafio que vale a pena levar a cabo, em especial quando Portugal guarda riquíssimos fundos documentais sobre a instituição. O propósito da pesquisa desenvolvida insere-se no interesse que nos últimos anos tenho desenvolvido relativamente à utilização de documentos produzidos pela Inquisição para o estudo de temáticas que não as vítimas ou os crimes, questões naturalmente fulcrais, mas que têm tido mais atenção. Assim, este livro pretende oferecer de forma clara e rigorosa, mas não exaustiva, as múltiplas vivências do quotidiano dos presos que passaram pelos cárceres do Santo Ofício português. Utilizando documentação variada, quer manuscrita quer impressa, nomeadamente processos de crimes diversos dos vários tribunais, denúncias registadas nos cadernos do promotor, correspondência, visitas às Inquisições e aos cárceres, determinações e contas do Conselho Geral do Santo Ofício e dos tribunais de distrito, sem esquecer os regimentos, e recorrendo ainda a muitos estudos credíveis já realizados, visei apresentar e explicar situações variadas nas quais o quotidiano dos presos foi o fio condutor. Sem perder o rigor de que toda a investigação e exposição de resultados carecem, optei, para maior inteligibilidade de todos os que possam não estar particularmente familiarizados com o léxico dos séculos passados, por atualizar a grafia do português arcaico nas citações e traduzir todas as frases escritas em línguas estrangeiras. Eis que o leitor encontrará nas páginas que se seguem retalhos de muitas vidas, por vezes apenas nesgas de um passado pessoal e secular cujo conhecimento apenas chegou ao presente em resultado de alguém ter acusado 12 VIVER E MORRER NOS CÁRCERES DO SANTO OFÍCIO determinadas pessoas que, na maior parte dos casos, foram penitenciadas. Se bem que não se tenham desprezado os motivos que levaram os réus à prisão, optou-se, em especial, por explicar como se vivia diariamente dentro dos cárceres, tanto mais que, na maior parte dos casos, nada sabemos da vida dos réus antes da prisão, a não ser as questões específicas que os levaram ao Tribunal, e pouco ou nada sabemos das vivências após o cumprimento das penas. Assim, vamos assistindo a um constante desfile de homens e mulheres, gentes do litoral e do interior, pobres e abastados, prolixos ou contidos nas respostas que deram aos inquisidores, arrependidos ou pertinazes, mas sempre em busca de um objetivo, muitas vezes não alcançado: a saída rápida do cárcere e o recomeço de uma nova vida. A investigação agora apresentada foi inserida no projeto Muçulmanos e Judeus em Portugal e na diáspora: Identidades e Memórias (sécs. XVI - XVII). Referência PTDC/HIS-HEC/104546/2008, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. Como em qualquer trabalho de natureza científica, ao longo do processo de elaboração deste texto fui contando com apoios e ajudas diversificados. A todos os que contribuíram com os seus incentivos, envio de textos próprios e alheios em livros, fotocópias e digitalizações; comentários, comunicação de dados e conhecimentos, expresso a minha profunda gratidão. Permito-me destacar Ana Cristina Duarte Pereira, Elvira Azevedo Mea, Florbela Veiga Frade, João Henrique Martins, Lina Gorenstein, Manuel Fernández Chaves, Maria Antónia Lopes, Marie-Noëlle Ciccia, Paulo Tremoceiro, Ricardo Pessa de Oliveira e Teresa Rebelo da Silva. À parte e sempre em lugar de destaque, o Paulo, pelo que vivemos no passado, pelo que vivemos agora e pelo que esperamos viver no futuro. Lisboa, janeiro de 2013 Isabel Drumond Braga ESTADO DA QUESTÃO N os últimos anos têm proliferado os trabalhos sobre o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, mormente através de dissertações académicas, da apresentação de conferências e de comunicações em congressos no país e no estrangeiro e na publicação de artigos em revistas especializadas, permitindo um maior e melhor conhecimento da instituição que, em Portugal, funcionou quase ininterruptamente, mas de forma muito diferenciada, entre 1536 e 1821. Se os delitos e a repressão em geral têm sido objeto de vários estudos, quer por autores nacionais quer por estrangeiros, muito ainda há para investigar, analisar e interpretar, especialmente em algumas áreas, tais como as relações entre o Santo Ofício e os outros poderes régios e eclesiásticos, as carreiras inquisitoriais, o Conselho Geral, a atuação dos qualificadores, sem esquecer o profícuo potencial da utilização das fontes inquisitoriais para estudos de outra natureza, nomeadamente questões relativas à alfabetização, à cultura material, às redes comerciais, à conflituosidade entre vizinhos, entre tantas outras. Por outro lado, sínteses rigorosas e trabalhos destinados a um público mais generalista não são comuns1. A instituição nunca foi pacífica – ao longo de toda a Época Moderna teve defensores e atacantes2 – posteriormente, muitos historiadores foram ostensivamente tendenciosos ora radicalizando o discurso, comparando a atuação dos inquisidores à dos nazis, ora branqueando a imagem do Tribunal qualificando-o de meramente persuasor3. Naturalmente que quem empreende este tipo de abordagens não contribui para o avanço do conhecimento e mais não faz do que tornar clara a incapacidade de desempenhar 14 VIVER E MORRER NOS CÁRCERES DO SANTO OFÍCIO o ofício de historiador, devido quer a falta de formação quer a preconceitos políticos e religiosos. No que se refere à bibliografia específica sobre quotidiano nos cárceres importa referir, para os tribunais de Castela e Aragão, alguns capítulos em obras gerais sobre o Santo Ofício, caso, por exemplo, das que se referiram ao de Valencia4 e, muito especialmente, a obra de Michèle Escamilla-Colin com um enorme capítulo sobre os cárceres inquisitoriais de Madrid, Cuenca e Sevilha5, a par de alguns artigos produzidos em especial sobre as visitas ordenadas pelo Consejo de la Suprema com vista a controlar os tribunais de distrito, nomeadamente os de Cuenca, Toledo e Sevilha6. Importa ainda referir a análise de um tratado da autoria de Tomás Cerdán de Tallada, um magistrado quinhentista muito atento à necessidade de fazer face aos abusos e que refletiu sobre a função da prisão, propondo reformas orientadas pelos princípios cristãos, sendo de destacar não apenas as questões morais e políticas como as que se referiam às condições gerais de bem-estar, higiene e salubridade dos cárceres de Valencia7. Com informações sumárias para os cárceres das Inquisições de Castela e do espaço italiano, cite-se o artigo de M. S. Messana8. Para o caso português, podem referir-se algumas obras sobre a atuação do Santo Ofício em determinados espaços, nomeadamente as que se referem aos tribunais de Coimbra9 e Évora10 e à atuação da Inquisição de Lisboa nos Açores11, por exemplo. Entre os estudos específicos sobre o tema, cite-se o de Maria Leonor García da Cruz, acerca dos escritos de aviso, no tribunal de Lisboa, ainda no século XVI, aparecido em 198912. Seguiu-se o de Elvira Cunha de Azevedo Mea, relativo ao tribunal de Coimbra, publicado em 199913. Mais recentemente, Maria Luísa Braga deu a conhecer, com base em processos, alguns dados acerca das prisões de Coimbra14, Nathan Wachtel dedicou um capítulo às cenas da vida carcerária do Santo Ofício de Lisboa15 e, em 2011, Marco Antônio Nunes da Silva publicou uma contribuição relevante, mais uma vez sobre a comunicação nos cárceres, realizada a partir dos cadernos do promotor do tribunal de Lisboa16. Nesta obra pretende estudar-se a vida quotidiana dos presos penitenciados pelo Santo Ofício recorrendo à microanálise. Isto é, partindo de casos particulares de homens e mulheres comuns que, em algum momento das suas vidas, foram confrontados com a prisão, procura conhecer-se as condições de sobrevivência no cárcere, comparando-o, sempre que possível com as prisões régias e eclesiásticas da época. A privação da liberdade, as condições de encerramento, as práticas médicas e alimentares, a ocupação do tempo, as tentativas de comunicar com o exterior, o nascer e o morrer no cárcere ESTADO DA QUESTÃO 15 por parte de indivíduos que foram únicos mas também afins a outros do seu grupo social, é o que está em causa. A alternância de escalas de observação e de análise permitirá estudar o singular e o plural sem cair no anedótico. Os casos únicos, eventualmente destituídos de interesse por si mesmos, não o são se tivermos em conta que têm representatividade, num tempo, num espaço e num grupo social. O fundamento desta posição metodológica já há muito foi levada a efeito, podendo apresentar-se como expoentes bem conhecidos, a obra clássica O Queijo e os Vermes, de Carlo Ginzburg, focada no moleiro Menocchio17 e alguns estudos muito recentes, como Traição. Um Jesuíta a serviço do Brasil Holandês processado pela Inquisição, de Ronaldo Vainfas, sobre Manuel de Morais18 e Roma 1564. La Congiura contra il Papa, de Elena Bonora, acerca de um grupo de homens que tentou matar o Papa Pio IV19. Muitos outros exemplos, de historiografias de diversos países, se poderiam aduzir, porém sem interesse para fundamentar o que já ficou explicitado.