Português RESUMO ESTENDIDO Experiências de quase morte (EQM) e saúde mental: aspectos clínicos Ms. CARUNCHIO, Beatriz Ferrara1 São chamadas experiências de quase morte as vivências de algumas pessoas que, por motivos de complicações na saúde (como paradas cardíacas, desequilíbrio metabólicos, afogamentos, acidentes graves, entre outros), relatam haverem vivenciado um fenômeno em que suas consciências teriam deixado seus corpos e vislumbrado outras realidades. Alguns afirmam haverem observado a equipe médica trabalhando, outros descrevem conversas com familiares e amigos já falecidos ou com seres místicos, mencionam cenários como túneis, luzes, jardins, sons... Greyson (2013) aponta as seguintes características das experiências de quase morte: inefabilidade, sentimentos de paz e tranquilidade, ouvir-se declarado como morto pela equipe de saúde, ver de cima o próprio corpo (supostamente morto), estar “fora do corpo”, ouvir sons estranhos, ver um túnel escuro e uma luz muito brilhante, encontro com seres espirituais, revisão panorâmica da história de vida, experienciar um domínio onde todo conhecimento existe, experienciar cidades de luz, perceber-se em um local de espíritos desnorteados ou sofredores, experienciar um resgate sobrenatural, em certo ponto a pessoa se depara com uma fronteira ou limite (uma barreira que ela não consegue ultrapassar ou, caso ultrapasse, não haveria volta), voltar para o corpo (por ordem de um ser superior sobrenatural, por escolha ou ainda sentir-se sendo “puxado” pelo próprio corpo). É interessante observar que nenhum relato inclui todas as características, assim como não existe uma ordem mais ou menos fixas em que a experiência se processa. Assim, as experiências de quase morte são experiências místicas e, além disso, são descritas por autores como Lotufo Neto e Andrade (2003) e Greyson (2013) como 1 Psicóloga e neuropsicóloga, doutoranda do PEPG Ciências da Religião – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – [email protected] X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 1 experiências anômalas, isto é, que fogem do conjunto de experiências “convencionais”, são incomuns. Isso não significa, ressaltam os autores, que sejam indicadoras de patologia, como algumas pessoas podem supor ao se depararem com o termo “anômalo”. Ver este tipo de experiência como algo muito raro ou patológico é um preconceito, afirmam Lotufo Neto e Andrade (2003), e esse olhar preconceituoso cria dificuldades para o estudo científico dos fenômenos anômalos. Essas experiências anômalas (em que se inserem as experiências de quase morte) podem ser estudadas cientificamente como uma experiência subjetiva válida para a pessoa e que, em geral, causa impactos consideráveis em sua vida, pois coloca o sujeito face a face com o desconhecido e com o transcendente, seja na face da própria morte do sujeito, seja através do contato com um todo maior e pleno de sentido. Greyson (2007) sugere três motivos pelos quais a ciência deve se dedicar ao estudo das experiências de quase morte. Primeiro, porque desencadeiam mudanças duradouras na vida da pessoa, no plano das crenças, valores e atitudes. Segundo, por não serem caracterizadas como patologia, requerem uma abordagem distinta do profissional de saúde e, para tanto, é preciso que sejam estudadas a fundo. Por fim, o autor afirma que a compreensão clara das experiências de quase morte e de suas implicâncias no ponto de vista das neurociências nos daria uma compreensão mais atualizada da mente e do cérebro. Além disso, com o aumento contínuo da expectativa de vida e com o desenvolvimento das tecnologias médicas, o número de pacientes que passam por este tipo de experiência tende a aumentar. Desta forma, sendo a experiência mística um contato direto com o transcendente, será preciso explica-la de alguma maneira (ainda que apenas para si mesmo), conta-la de maneira linguística, ou seja, dar-lhe um sentido. Pereira (2013) afirma que a morte é um dos maiores medos do ser humano, por mais que se procure amenizar o fato. Diante disso, as religiões, com seus rituais, práticas e discursos, procuram dar ao ser humano recursos emocionais para “amenizar o sofrimento e ajudar as pessoas a lidarem melhor com ela. ” (p. 2700) Assim, somos levados à questão da dor que a morte nos causa, seja a morte do outro, seja deparar-se com a própria morte. Elias (2003) cita a definição de dor da IASP (Internacional Association for the Study of Pain): experiências sensoriais ou emocionais desagradáveis, que podem estar associadas a lesões teciduais, sejam essas lesões reais X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 2 ou potenciais, ou ainda a dor emocional que seja descrita em termos de lesão tecidual. Com base nesse conceito, Elias (2003) traz a ideia de “dor simbólica da morte”, que é a dor psíquica e espiritual que envolve o processo de morte (seja a consciência da própria finitude, como ocorre com experienciadores de EQM, seja a morte de uma pessoa querida). Para a autora, a dor simbólica da morte envolve a dor psíquica (medo do sofrimento, humor depressivo, tristeza, angústia e, algumas vezes, sentimento de culpa ou raiva frente à perda) assim como envolve também a dor espiritual (o medo da morte e do pós-morte, ideias e conceitos sobre a espiritualidade, o sentido que a pessoa atribui à vida e à morte, assim como possíveis culpas e ressentimentos que a pessoa possa ter quanto a divindade). Diante disso, as experiências de quase morte são fenômenos que marcam profundamente a história de vida. Passa a existir uma ruptura brusca na história de vida da pessoa, e em alguns casos, pode levar longos anos até que tudo se encaixe novamente. Greyson (2013) cita as seguintes consequências: alteração drástica e permanente de atitudes, crenças, valores, estilo de vida, etc.; aumento da espiritualidade, maior envolvimento com a religiosidade; maior compaixão, preocupação com o outro, dá mais valor ao amor e à convivência com pessoas queridas; aprecia mais a vida; diminuição do materialismo e competitividade, do valor dado ao status e à vida material, assim como da necessidade de aprovação dos outros; percebe a si mesmo como parte de um todo maior, benéfico e significativo; Senso de ser invulnerável; sente que tem um destino especial, senso renovado do propósito de vida, vê um sentido espiritual na existência; forte crença na continuidade após a morte; maior confiança e flexibilidade para lidar com os desafios da vida; vê a morte como algo pouco ameaçador, diminuição do medo, maior aceitação (sem possibilidade de suicídio, e sim com fortes objeções a ele). Também são mencionadas consequências mais difíceis de lidar: Angústia (pois a experiência não se integra facilmente no cotidiano); dúvidas quanto a própria sanidade mental; medo de parecer desajustado ou de ser ridicularizado ao dividir a experiência com familiares, amigos ou profissionais de saúde; raiva, depressão ou frustração por ter “voltado”; dificuldade para encaixar a EQM em suas crenças religiosas, valores e estilo de vida; sentimento de ser “anormal” pelas novas crenças, estilo de vida e valores serem muito diversos dos das outras pessoas (precisa redefinir qual é o “seu normal”); sensação de estar distante das pessoas; dificuldades em manter papéis e atitudes que já não têm o X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 3 sentido de antes; frustração com as relações humanas distantes e limitadas após experienciar um amor incondicional na EQM; conflitos familiares, rompimento de relacionamentos, taxa de divórcios relativamente alta; depressão de longa duração; interrupção da carreira; sentimento de alienação; dificuldade em estar no mundo “comum”, humano; senso de realidade alterada que persiste por muitos anos; EQM com conteúdo assustador pode gerar angústia sobre o motivo da experiência ruim, pode ter flashes e pesadelos recorrentes. Também é preciso considerar que certas populações, como crianças pequenas ou pessoas que tiveram EQM ao tentar suicídio apresentam problemas característicos desses grupos. Portanto, ao experienciar uma EQM, a pessoa se depara com esse cenário psíquico, e muitas vezes poderá precisar de cuidados psicológicos específicos para lidar com as consequências daquilo que vivenciou. Greyson (2013) aponta um dado alarmante: a forma como o profissional de saúde recebe o relato da experiência de quase morte de seu paciente é, em grande parte dos casos, determinante para a maneira como a pessoa irá lidar com a experiência (como algo que favorecerá mudanças positivas e crescimento ou como algo gerador de medo, culpa e que beira a patologia). Segundo o autor, a maioria dos experienciadores de EQM afirmam que não sentiram uma reação favorável por parte de seus psicólogos ou outros profissionais de saúde. Repensar a conduta clínica (conhecimentos, comportamentos e postura) é imprescindível. A conduta clínica adequada envolve, antes de tudo, o acolhimento do paciente que enfrentou uma EQM e de seu relato, sem julgamentos. Quanto mais o psicólogo olhar para a experiência como algo fantástico, seja no sentido de exaltar a EQM, seja de forma pejorativa, maior a dificuldade que o paciente encontrará para acomodar essa vivência em sua história pessoal e fazer as mudanças necessárias em seu estilo de vida. Não ver o sujeito como uma vítima ou como um doente permite que ele se perceba como o protagonista na organização e adaptação de um novo estilo de vida. É preciso deixar que a pessoa fale livremente sobre o que percebeu durante a EQM e como isso se reflete em sua vida, suas relações e planos, mesmo que tenha dificuldade para colocar em palavras. E ao ouvir, um experienciador de EQM será mais beneficiado com explicações de suas percepções e reações do que com interpretações do fenômeno. Nesses casos, geralmente o foco da terapia precisa ser o momento presente, não lembranças antigas, assim os resultados da EQM podem ser inseridos no X Seminário de Psicologia e Senso Religioso, Curitiba, PUCPR, 2015. ISSN 0000-0000 4 dia a dia com mais facilidade. Nos conflitos mais complicados, em que o paciente apresenta muita dificuldade para encontrar palavras, é possível recorrer a métodos como a hipnose, imaginação guiada ou recursos artísticos. Outro foco necessário no tratamento de consequências de uma EQM seria tratar problemas secundários que possam surgir. Como já mencionamos, depressão, senso de realidade alterado, sentimento de alienação ou de estar afastado das outras pessoas são frequentes e dignos de atenção. Também é preciso tratar o luto, quando presente, seja o luto por sequelas relativas ao problema de saúde ou acidente que levou à EQM, pela perda de papéis sociais, de relacionamentos, de partes de si mesmo, ou ainda o luto por ter voltado e perdido o “paraíso”. Conforme cada caso, outras condutas podem ser indicadas, como a participação em grupos de apoio a experienciadores de EQM, terapia de casal ou de família, e mesmo práticas contemplativas (oração, meditação...) Por fim, é fundamental oferecer informações diretas aos pacientes e familiares quanto à frequência e consequência das EQMs. Essas informações contribuem muito para a reorganização do paciente, bem como ajuda os familiares a compreender pelo que a pessoa está passando, quebrando expectativas fantasiosas, preconceitos e possibilitando que também eles se tornem fontes de apoio. Palavras-Chave: experiência de quase morte (EQM); fenômenos anômalos; saúde mental REFERÊNCIAS ELIAS, Ana Catarina A. Re-significação da Dor Simbólica da Morte: Relaxamento Mental, Imagens Mentais e Espiritualidade. PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2003, 21 (3),92-97 GREYSON, Bruce. Experiências de quase morte: implicações clínicas. Rev. Psiq. Clín., 34, supl 1; 2007, 116-125. _____________. Experiências de quase morte. In: CARDEÑA, Etzel; LYNN, Steven Jay; KRIPPNER, Stanley. Variedades da experiência anômala: análise de evidências científicas. São Paulo: Atheneu, 2013. 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