A Responsabilidade pelo pagamento das

Propaganda
30
ANÁLISE JURÍDICA DIREITO IMOBILIÁRIO
Outubro 2015
A Responsabilidade pelo pagamento das
Quotas de Condomínio no Âmbito da Locação
Financeira Imobiliária
Filipe Pereira Duarte · [email protected]
O contrato de locação financeira
encontra-se regulado pelo Decreto-Lei
(DL) n.º 149/95, de 24 de Junho, sendo
a sua alteração mais recente de 25 de
Fevereiro de 2008.
Nos termos legais, a locação financeira pode ter como objecto bens móveis
ou imóveis, resultando, em ambos os
casos, para locador e locatário, obrigações decorrentes das distintas posições
jurídicas que assumem. Tratando-se de
uma locação financeira imobiliária e,
portanto, nos casos em que o objecto
da locação é uma fracção autónoma,
quem é o responsável pelo pagamento
das quotas de condomínio?
Os tribunais portugueses têm sido
“convidados” a pronunciar-se sobre
esta problemática, em consequência
dos pleitos que opõem condomínios,
locadores e locatários, e as decisões
não têm sido unânimes. De um lado,
aqueles que defendem que a responsabilidade do pagamento das despesas do condomínio é do proprietário
do imóvel, do locador, do outro lado,
os que sustentam que o pagamento
daquelas despesas compete, exclusivamente, ao locatário. Quid Juris?
A locação financeira começou a ser
regulada pelo sistema legal português
em 1979, com o DL n.º 135/79, de 18 de
Maio, sobre as sociedades de locação financeira, e, DL n.º 171/79, de 6 de Junho,
sobre o contrato de locação financeira. No
inicio dos anos 80 começaram a surgir as
primeiras entidades de locação financeira,
que têm vindo a aumentar desde então,
normalmente associadas às instituições
financeiras, o que também explica, como
adiante veremos, a natureza deste instituto, isto porque, a actividade destas empresas não é a comercialização de bens,
mas o financiamento. Este financiamento, na locação financeira, ao invés de se
caracterizar pela entrega de uma quantia
em dinheiro, consubstancia-se na posse
e utilização de determinados bens pelo
locatário.
A locação financeira é
uma figura complexa,
que é composta por um
financiamento, uma relação
de locação e uma possível
compra e venda.
O legislador define a locação financeira
como “(...) o contrato pelo qual uma das
partes se obriga, mediante retribuição, a
ceder à outra o gozo temporário de uma
coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período
acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples
aplicação dos critérios nele fixados”, art.
1.º do DL n.º 149/95. É, portanto, uma
figura complexa, que é composta por um
financiamento, uma relação de locação e
uma possível compra e venda. De resto,
a opção de compra do bem locado, pelo
locatário, mediante o pagamento do valor
residual acordado, é um pressuposto fundamental da locação financeira.
Do contrato de locação financeira resultam obrigações reciprocas para ambas as
partes (contrato sinalagmático), obrigando-se o locador a proporcionar o gozo do
bem e o locatário a pagar as rendas acordadas. Uma análise ao DL n.º 149/95, revela que o legislador quis atribuir ao locatário
um vasto leque de direitos e obrigações,
que se encontram inscritos, nomeadamente, no art. 10.º, n.º 1. Muitos autores
caracterizam mesmo o locatário, como
sendo o proprietário económico da coisa
locada, considerando que é ele o utilizador exclusivo do bem. O Prof. Doutor Rui
Pinto Duarte, na sua obra, O Contrato de
Locação Financeira – Uma Síntese, refere
que o locatário “(...) comunga da <<propriedade económica>> da coisa desde o
início do contrato e que a sua parte nessa comunhão vai crescendo ao longo do
contrato.”
Conforme refere este autor, esta “propriedade económica” do locatário manifesta-se de várias formas, isto porque, não
só é o utilizador exclusivo do bem locado,
conforme já referido, como também:
• de uma perspetiva contabilística, tem
que o integrar no seu activo imobilizado;
• tem que efectuar o seguro do bem locado, art. 10.º, n.º1, j) do DL n.º 149/95;
• o risco da perda ou deterioração do
bem locado corre por sua conta,
art.12.º do DL n.º 149/95;
• pode exercer contra o vendedor ou o
empreiteiro todos os direitos relativos
ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada, art. 13.º do DL n.º 149/95;
DIREITO IMOBILIÁRIO ANÁLISE JURÍDICA
• é ele, normalmente, que recebe do
fornecedor o bem locado;
• é equiparado ao proprietário na locação financeira de veículos, para efeitos
da aplicação da legislação relativa ao
licenciamento e utilização dos veículos
e seus reboques, DL n.º11/84, de 7 de
Janeiro;
• é, ainda, responsável pelo pagamento,
em caso de locação de fracção autónoma, das contribuições para o condomínio, art. 10.º, n.º1, b), do DL n.º 149/95.
Não foi inusitada a indicação em último
lugar, com sublinhado, desta obrigação
atribuída ao locatário, pelo DL n.º 149/95,
visto que, assume especial relevância
nesta discussão. Conforme já mencionado anteriormente, a legislação sobre a
locação financeira surgiu em Portugal em
1979, com o DL n.º 171/79, de 6 de Junho, tendo sido revogado pelo actual DL
n.º 149/95, que teve como um dos principais propósitos, nos termos do preâmbulo, enunciar “(...) mais completamente
os direitos e deveres do locador e do locatário, de modo a assegurar uma maior
certeza dos seus direitos e, portanto, a
justiça na relação.” O crescente interesse pela locação financeira e consequente aumento da celebração deste tipo de
contratos, motivou o legislador a intervir
e a regular de forma mais rigorosa. Isso
mesmo confirmou-se, precisamente, com
a introdução daquela última disposição legal, sobre as despesas do condomínio,
pelo DL n.º 265/97, de 2 de Outubro, com
o objectivo de criar um regime uniforme
para a locação financeira, independentemente do objecto.
Ora, considerando o que aqui foi exposto sobre o DL n.º 149/95, encontrando-se
expressamente prevista, neste diploma
legal, a obrigação do locatário pagar as
despesas do condomínio, art. 10.º, n.º1,
b), poderíamos pensar que não restariam
dúvidas sobre esta matéria, contudo, não
é assim, sendo necessário articular o regime da locação financeira, com o regime
da propriedade horizontal.
Os que defendem que o
locatário é exclusivamente
responsável pelo
pagamento do condomínio,
argumentam que o regime
especial da locação
financeira prevalece sobre
o regime geral do art. 1424.º
do CC, ou seja, tem eficácia
erga omnes, impondo-se ao
condomínio.
A propriedade horizontal é caracterizada
por dois tipos de propriedade: a propriedade exclusiva sobre determinada fracção
autónoma, e a compropriedade em relação
às partes comuns, isto mesmo resulta do
n.º 1, do art. 1420.º do Código Civil (CC),
“Cada condómino é proprietário exclusivo
da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.”
Aqueles que defendem o locador como
responsável pelo pagamento das quotas
de condomínio, articulam esta norma,
enquanto definidora do locador como proprietário e, consequentemente, condómi-
Outubro 2015
31
no, com o n.º 1 do art. 1424.º do CC, “Salvo disposição em contrário, as despesas
necessárias à conservação e fruição das
partes comuns do edifício e ao pagamento
de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do
valor edifício e ao pagamento de serviços
de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor”. Para tal,
atribuem a esta norma uma natureza real,
oponível erga omnes, sendo a obrigação
de contribuir para estas despesas, imposta por esta norma legal, um exemplo de
obrigações propter rem, ou seja, conexas,
dependentes e acessórias de um direito
real. O Prof. Henrique Mesquita define
estas obrigações “(...) como vínculos jurídicos em virtude dos quais uma pessoa,
na qualidade de titular de um direito real,
fica adstrita para com outra (titular ou não,
por sua vez, de um ius in re) à realização
de uma prestação de dare ou facere”, Obrigações Reais e Ónus Reais. Como tal, entendem que estas normas do Código Civil,
não são incompatíveis com as normas do
DL n.º 149/95, pelo contrário, articulam-se
com estas, visto que, estas últimas, têm
natureza obrigacional, portanto, apenas
eficácia inter partes, ao contrário do art.
1424.º do CC. Nestes termos, perante o
condomínio, o locador seria o responsável
pelo pagamento das quotas, com direito
de regresso sobre o locatário.
No lado oposto, os que defendem a
tese do locatário como exclusivo responsável pelo pagamento das contribuições do condomínio, argumentam que
o regime especial da locação financeira
prevalece sobre o regime geral do art.
1424.º do CC e, como tal, tem eficácia
erga omnes, impondo-se ao condomí-
32
Outubro 2015
nio. 1 Neste sentido, decidiu o Tribunal
da Relação de Lisboa, no Acórdão (AC)
de 3/11/2011, no âmbito do processo n.º
3160/09.1 TBALM-A.L1-6 “ (...) foi propósito do legislador estabelecer uma
regulação normativa específica em matéria da propriedade horizontal, não contemplada no Código Civil. Tratava-se, por
isso, da fixação de uma regime especial
que tinha como efeito derrogar o regime geral, nos termos do qual cabia aos
condóminos, considerados como tal os
titulares do direito de propriedade sobre
as fracções autónomas do edifício em regime de propriedade horizontal, suportar
as despesas necessárias à conservação
e fruição das partes comuns (...).” Esta
posição encontra sustento, também, em
decisões do Supremo Tribunal de Justiça
(STJ), v.g., AC de 10/07/2008, processo
n.º 08A1057, AC de 6/11/2008, processo
n.º 08B2623 e AC de 2/3/2010, processo
n.º 5662/07.5YYPRT-A.S1, disponíveis em
www.dgsi.pt.
A posição que defende
que a obrigação do
pagamento das despesas
do condomínio recai sobre
o locatário parece ser mais
equilibrada, atendendo
às características da
locação financeira, em
conjugação com o regime da
propriedade horizontal.
A este argumento acrescentam alguns,
ainda, que o art. 1424.º do CC tem um
ANÁLISE JURÍDICA DIREITO IMOBILIÁRIO
carácter supletivo, pelo facto de ressalvar, logo no inicio, a sua aplicação “Salvo
disposição em contrário (...)” e, portanto,
podem prevalecer disposições especiais,
em detrimento daquela regra geral.
Mais, foi referido atrás, que a obrigação de contribuir para as despesas do
condomínio, imposta pelo art. 1424.º do
CC, surge como um exemplo de obrigação propter rem. Na doutrina tradicional,
estas obrigações têm sido identificadas
como obrigações ambulatórias, isto é,
acompanham as vicissitudes do direito
real e, portanto, mantêm-se, apesar de
alterações na titularidade daquele direito. Não se concordando na íntegra com
este entendimento, mas, perfilhando-se
o raciocínio do Prof. Henrique Mesquita,
na obra supracitada, “Se há obrigações
em que a ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, que devem
considerar-se intransmissíveis, por ser
essa a solução que melhor se harmoniza
com os vários interesses a que importa
conferir tutela adequada”, em virtude das
características do contrato de locação financeira imobiliária, não se vê motivos
para não considerar a ambulatoriedade
da obrigação e, assim, imputar a obrigação do pagamento das quotas de condomínio ao locatário, que é o proprietário
económico da coisa locada, explorando-a
e usufruído dela. Aliás, é o próprio locatário que escolhe o bem locado, e o locador só o adquire com o fim de o entregar
àquele, “A propriedade desempenha um
papel fundamentalmente instrumental
do financiamento, não sendo um fim em
si mesmo”, AC STJ, de 2/3/2010, processo n.º 5662/07.5YYPRT-A.S1. Por esse
motivo, no termo do contrato, por regra,
verifica-se a aquisição da coisa pelo locatário,
A obrigação de contribuir
para as despesas do
condomínio, imposta pelo
art. 1424.º do CC, surge
como um exemplo de
obrigação propter rem obrigação ambulatória,
isto é, acompanha as
vicissitudes do direito
real e, portanto, mantémse, apesar de alterações
na titularidade daquele
direito.
Pelo exposto, esta última posição aqui
vertida, no sentido de interpretar que a
obrigação do pagamento das despesas
do condomínio recai sobre o locatário, parece ser mais equilibrada, atendendo às
características da locação financeira, em
conjugação com o regime da propriedade
horizontal. De facto, este tem sido o entendimento maioritário dos tribunais portugueses, nomeadamente nas decisões
mais recentes, e, com especial relevo, no
Supremo Tribunal de Justiça.
NOTAS
1 Sobre este aspecto, de referir que a obrigatoriedade do
registo da locação financeira, favorece este entendimento.
Download