ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DO ART. 47 DA LI Os fundamentos que ensejaram a elaboração da Lei nº 8.245/91, também conhecida como Lei do Inquilinato (LI), são decorrências diretas do princípio da igualdade substancial. Vale dizer, buscando atenuar as diferenças existentes entre a figura do locador e a do o locatário, a LI passou a atribuir algumas vantagens ao locatário. Tal distinção de tratamento é justificada pelo grande número de pessoas que não possui casa própria – decorrência lógica da acentuada desigualdade social existente no Brasil –, o que faz com que grande parcela da população brasileira dependa, de sobremaneira, do instituto da locação. O caráter equitativo do aludido diploma legal pode ser observado, por exemplo, no seu art. 47, que dispõe ter o locador direito a denunciar o contrato de aluguel verbal ou escrito, este desde que por prazo determinado inferior a 30 meses, somente nas expressas condições elencadas nos seus cinco incisos. Ocorre que, apesar da redação do mencionado artigo impor, a priori, uma interpretação literal e restritiva – na medida em que enumera e limita as possíveis situações que permitiriam a propositura de uma ação de despejo – esta não deve prevalecer, sob pena de gerar contradições na própria estrutura da lei, desrespeitar os princípios fundamentais do direito dos contratos, além, é claro, de negar importância à hermenêutica jurídica. A hermenêutica jurídica é inspirada em vários métodos, quais sejam, o literal, lógico, sistemático, histórico e o finalístico. Estes devem coexistir de modo a auxiliar o aplicador do direito a conhecer a real vontade da norma. Ou seja, “Há uma certa tendência para confundir ‘interpretação’ e ‘interpretação complexa’ e supor que se a fonte é clara não ocorre fazer interpretação” (José de Oliveira Ascenção in Novo Curso de Direito Civil Vol I, Ed. 1ª, Cap. III, pág. 67 - Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho). Não se pode negar, pois, a utilização da hermenêutica jurídica, mesmo em se tratando de situações onde a literalidade da lei é clara. Dessa forma, faz-se mister a necessidade de analisar os demais dispositivos legais que se relacionam com o aludido art. 47 da LI. Observe que, o art. 8º da LI dispõe que durante a vigência do contrato de locação – que não possua prazo determinado e não contenha cláusula de vigência do contrato em caso de alienação, devidamente averbada – o imóvel objeto do contrato de locação poderá ser alienado, mesmo enquanto viger o contrato, tendo o adquirente o direito de denunciar o contrato de locação. Em decorrência dessa situação, o art. 27 e seguintes da LI, visando uma maior equidade na relação contratual ora estudada, garantiu o direito de preferência do locatário no caso do imóvel ser alienado através da venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou da dação em pagamento. Contudo, o art. 32 faz referência expressa aos limites do direito de preferência, que não pode alcançar os casos de perda da propriedade ou venda por decisão judicial, permuta, doação, integralização do capital, cisão, fusão ou incorporação. Nota-se, aqui, que a própria Lei 8.245/91 reconheceu outras hipóteses não previstas no art. 47, mas que também podem ser causa de uma denúncia do contrato de locação verbal ou escrito que tenha por termo um período inferior a trinta meses. Ora, se o locador pode, por exemplo, doar ou permutar o objeto do contrato de locação, tendo o seu adquirente o direito de denunciar o respectivo contrato de aluguel, não há que se falar em interpretação literal do art. 47. Nada obstante, em sentido mais amplo, ocorrendo alguma das hipóteses previstas no art. 27, vale dizer, venda ou promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de direitos ou dação em pagamento, mesmo sendo concedido o direito de preferência, ainda assim, o art. 47 pode ter sua interpretação ampliada, no caso do locatário não detiver condições de custear a compra do imóvel ou participar de uma cessão de direitos onerosa. Ademais, não pode o art 47 da LI proibir que, no caso de concretizada a alienação do imóvel objeto do contrato de aluguel, seja o adquirente obrigado a respeitar o contrato já existente, sob pena de contrariar os princípios gerais do direito dos contratos, direito esse de suma importância na regulamentação das relações privadas. Aqui, vale esclarecer a diferença entre normas princípios e normas preceptivas. A última se refere à própria lei, enquanto a primeira se sobrepõe às leis de modo a fundamentá-las, servindo de base para a elaboração de diversas leis. Por esse motivo se diz ser muito mais ofensivo, ao ordenamento jurídico, a violação de uma norma princípio do que a de uma norma preceptiva (percebe-se que ao violar uma norma princípio o indivíduo está violando, também, várias outras normas preceptivas que se sustentam naquele princípio). De igual maneira, é oportuno ressaltar que as normas princípios se diferenciam daquelas normas ideais, que mais se caracterizam pela vontade de melhoria do ordenamento, apesar, é claro, dessas influenciarem, de forma indireta, aquelas. Por essa razão, alguns princípios mais relevantes do direito dos contratos como o da autonomia da vontade e o da relatividade dos efeitos contratuais, não podem ser desrespeitados se não por força de motivos que possuam uma justificativa contundente. O princípio da autonomia da vontade estabelece que as partes devem possuir a liberdade de contratar, de estipular o contrato e de determinar o seu conteúdo. De forma complementar, o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos preconiza que o contrato só pode produzir efeitos entre as partes, não podendo um terceiro ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de uma cláusula contratual imperativa sem, ao menos, figurar como parte na relação contratual. É certo que ambos os princípios comportam certos temperamentos, porém estes não são pertinentes ao assunto em questão e, por esse motivo, não merecem uma análise mais profunda. Nesse sentido, não há que se admitir que a Lei do Inquilinato fira o princípio da relatividade dos efeitos contratuais nas relações de locação, o que, de fato, ocorreria caso o adquirente do objeto do contrato de locação alienado não possa denunciar a relação contratual pré-existente. Note-se que o adquirente, em momento algum, consentiu com a celebração do contrato de aluguel, muito menos pôde expressar sua vontade livre, que, em verdade, era inexistente à época da formação da relação contratual e, por esse motivo, não pode ter o ônus de servir como parte dessa relação. Em suma, o art. 47 deve ser interpretado extensivamente, de modo a não conflitar com as outras normas do ordenamento jurídico vigente, sendo elas normas princípios ou preceptivas. Ao que parece, em face dos argumentos analisados, o art. 47 errou ao afirmar que, nos contratos verbais ou escritos com prazo inferior a trinta meses, quando findo o prazo, somente pode o imóvel ser retomado naquelas taxativas circunstâncias, quando deveria ter dito que tais circunstâncias elencadas em seus incisos seriam causas únicas para a retomada do imóvel por parte, tão somente, do locador – e não do adquirente de uma alienação, como pode ser entendido na hipótese de se fazer uma interpretação restrita do aludido dispositivo. Cláudio Rolim Estudante do 3º ano de Direito da UNIFACS