A ORIGEM JUSNATURALISTA DOS DIREITOS HUMANOS: O HORIZONTE HISTÓRICO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS DE 1948. THE NATURAL HUMAN RIGHTS ORIGIN: THE HISTORICAL HORIZON OF 1948 HUMAN RIGHTS UNIVERSAL DECLARATION. Wilson Engelmann RESUMO Ao completar 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, continua mostrando a importância de se valorizar as pessoas na construção de uma sociedade justa. Busca-se mostrar como a caminhada histórica desse documento deve servir de aprendizado, tendo em vista o sofrimento e a violência provocados nos humanos para o seu nascimento. Esse horizonte deverá ser revisitado e colocado na ordem do dia do mundo civilizado, preocupado em dar efetividade a uma sociedade global focada no respeito aos direitos naturais-humanos. As experiências históricas, presentes nesta Declaração, querem mostrar a importância da tradição e, ao mesmo tempo, marcar um horizonte para a caminhada humana na construção de um futuro onde a “aldeia global” possa representar um espaço de livre e fraterna convivência para as pessoas, respeitadas as suas diferenças. PALAVRAS-CHAVES: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE 1948; DIREITOS HUMANOS; DIREITOS NATURAIS; SOFRIMENTO; DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ABSTRACT Once turning 60, Human Rights Universal Declaration, keeps showing how important is apprising people on building, fair society. Showing how this document historical walk must be used for learning, considering all suffering and violence attempted to humans on their birth. This horizon should be revisited and placed into the day of civilized world, concerned about making a global society based on the respect to natural human rights. The history experiences, presents in this declaration, want to show the importance of the tradition and, in the same breath, to flag a skyline to the human walk in a build of a future where the “Global village” can represent a space of freedom and fraternity companionship of people, be respecting theirs differences. KEYWORDS: 1948 UNIVERSAL DECLARATION, HUMAN RIGHTS, NATURAL RIGHTS, SUFFERING, HUMAN BEING DIGNITY. 6309 1 INTRODUÇÃO É objetivo deste artigo recuperar alguns pressupostos históricos que sustentam a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Para isso, o problema que se propõe, desdobrado em duas questões, é: os direitos naturais são os antecessores substanciais dos direitos humanos? A dor e o sofrimento, que estão neste caminho, são condição de possibilidade para o surgimento e o desenvolvimento dos chamados “Direitos Humanos”? Para tanto, são propostos três modelos voltados a mostrar como a solução para esse problema se enlaça à constante busca de efetividade para os direitos humanos. A caminhada histórica procura resgatar a memória da tradição que ensina e mostra determinadas atitudes como inaceitáveis, posto que atentam contra princípios humanos mais essenciais. Portanto, a efetivação dos direitos humanos, como um espaço de diálogo e mediação, deve verificar as experiências do passado, extraindo delas a aprendizagem para progredir no efetivo reconhecimento de alguns pressupostos voltados ao desenvolvimento humano pleno. As tragédias que os humanos já provocaram deverão permanecer vivas na lembrança de cada pessoa, justamente para que elas não venham a se repetir. Investigar o percurso da construção dos pilares que sustentam os direitos humanos visa ao ato de trazer à memória tal aspecto. Não se busca reavivar a memória com o intuito do mero resgate. Pelo contrário, trazer os fatos à memória tem como foco principal sua não reprodução, ou seja, um ponto de retorno que deverá ser evitado. 2 A dor e o sofrimento no rastro dos Direitos Humanos Os Direitos Humanos no Século XXI representam o resultado histórico de lutas e conquistas que os humanos vêm desenvolvendo ao longo de sua trajetória. As pessoas “civilizadas” de hoje encontram-se vinculadas a essa caminhada, sendo o seu produto ideológico. Na análise da afirmação da pessoa como destinatária de algumas normas e prerrogativas, chamadas de direitos humanos, é possível constatar que todas são os resultados de lutas e, especialmente, muito sofrimento. Não há nenhuma possibilidade de retorno para minorar esses sofrimentos e mortes em nome dos quais posteriormente se criaram normas para evitá-las. Cabe observar a seguinte idéia de Heidegger: “(...) Ninguém pode assumir a morte do outro. De certo, pode-se ‘morrer por outrem’. No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo outro ‘numa coisa e causa determinada’. Esse morrer por ..., no entanto, jamais pode significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada. (...)”.[1] A experiência da morte sempre será daquela pessoa, impossível existencialmente a substituição. No entanto, todos aqueles que morreram e sofreram, como vítimas de atrocidades, barbáries e desumanidades, legaram para os tempos atuais a memória, que deverá servir de orientação para que a humanidade não retorne a estes caminhos e nem repita tais violências. 6310 Essa é a verdadeira herança dos Direitos Humanos. No entanto, não é necessário olhar muito longe para perceber-se que a experiência de dor e sofrimento ainda não foi suficientemente apreendida pelos humanos. De certa forma, os sacrifícios das pessoas deram-se pela causa da humanidade, ou seja, para que os humanos percebessem determinados limites em sua forma de atuação. 3 OS DIREITOS HUMANOS LIMITANDO A ATUAÇÃO DO GRUPO SOCIAL A concepção de limite – para a atuação em nome próprio ou em nome dos outros – acompanhou a luta travada pelos e em nome dos Direitos Humanos, embora nem sempre tenham recebido esse nome. 3.1 O PRIMEIRO MODELO: DA SACRALIZAÇÃO À DESSACRALIZAÇÃO DO DIREITO Dentro dessa perspectiva, é importante registrar que no reino davídico (996 a.C. 963 a.C), segundo constatação de Fábio Konder Comparato, tenha surgido a “proto-história dos direitos humanos”. A peculiaridade do reino de Davi foi o estabelecimento do reisacerdote, “o monarca que não proclama Deus nem se declara legislador, mas se apresenta como o delegado do Deus único e o responsável supremo pela execução da lei divina”.[2] Nessa condição, a atuação do rei sofre determinadas limitações, dada a existência de uma “autoridade divina” acima dele. A experiência assim inaugurada inspirou as primeiras instituições democráticas em Atenas (século VI a.C.) e, no século seguinte, projetou a fundação da república romana.[3] A busca pela convivência das pessoas, que deveriam observar alguns limites, faz nascer a lei, com características próprias, mas antecessora da lei moderna. Aristóteles refere à necessidade da vida focada em atitudes boas, abstendo-se da prática daquelas consideradas más. Para isso, no entanto, o papel da “autoridade” é fundamental, em condições de exercer a “compulsão” a este comportamento. Segundo o filósofo “a lei tem este poder de compulsão, e ela é ao mesmo tempo uma norma oriunda de uma espécie de prudência e de razão”.[4] A junção da prudência e da razão, reunidas na lei, serviram de modelo normativo planejado para organizar, limitar e possibilitar a convivência das pessoas. A lei assim apresentada foi exercida em nome da autoridade divina ou em atenção a um paradigma racional, forjado dentro da metafísica tradicional, onde os fins já estavam dados, bastando aos humanos descobrir os meios para acessá-los. Para os limites deste trabalho, tem-se o arcabouço correspondente ao primeiro modelo. Para os gregos, a lei era o nómos, considerado “o meio de limitar o poder da autoridade, porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino.”[5] Fica destacada a constante preocupação com a limitação da atuação dos particulares e do exercício da liberdade política. Já se vislumbra um aprofundamento da limitação do poder pelo império da lei, em substituição à autoridade divina. O povo grego marca a laicização do Direito, a partir do momento em que “a promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino: 6311 são assuntos humanos.” Isso não significa dizer que os gregos não eram religiosos e nem afastava esse viés da condução política. No entanto, o Direito não tinha a sua validade vinculada à revelação divina e nem era necessária a invocação da vontade dos deuses para que uma lei fosse criada.[6] Vivencia-se, assim, o verdadeiro marco inicial da dessacralização do Direito, onde o poder divino começa a ser substituído pelo poder dos humanos e no exercício da liberdade para a criação das leis consideradas mais apropriadas. Outro aspecto que merece ser sublinhado encontra-se ligado à experiência multicultural experimentada pelos gregos: desenvolvendo uma civilização voltada para o mar, os gregos entram em contato com a diversidade das culturas de outros povos. O espírito de comparação leva-os, portanto, a indagar o que afinal é comum entre todas as ‘nações’. Há alguma coisa que pertença por natureza ao gênero humano? Qual é? As próprias diferenças entre as cidades gregas colaboram para que se compreenda o direito com um espírito comparativo e flexível.[7] O multiculturalismo hoje debatido tem origem nessa comparação realizada pelos gregos, a partir das características de cada ‘nação’ conhecida por eles. Apesar da constatação das diferenças, havia algo de comum entre todos os povos, vinculadas ao “gênero humano”. Essa constatação aponta para os direitos humanos, ou seja, haviam determinadas características e necessidades que se encontravam em todas as pessoas, independente da sua ‘nação’ de origem. A caracterização da humanidade nas relações entre as pessoas e os povos nascia a partir desse momento. Começa a ser gestado o contorno dos direitos humanos como um parâmetro a ser respeitado. Além do mais, verifica-se uma nítida corporificação dos direitos naturais, pois não criados, mas percebidos, ou seja, os gregos se deram conta – já estavam inseridos neste contexto – de que haviam determinadas “regras” que naturalmente devem ser observadas. Veja-se que nesta época histórica, os gregos perceberam que as normas criadas pelos humanos precisariam ser flexíveis para viabilizar a adaptação aos contornos multiculturais próprias do gênero humano. Esse cenário mostra para as discussões do Século XXI que os direitos humanos têm uma nítida fundamentação nos direitos naturais e apontam para o respeito aos contornos multiculturais de cada grupo social. Todo esse horizonte histórico será decisivo à construção das condições de possibilidade para a elaboração da Declaração Universal de 1948, emergindo com bastante força a partir do término das duas Guerras Mundiais. Esses conflitos provavelmente tenham sido provocados pelo esquecimento humano da experiência deixada a partir da linha histórica acima desenhada. Uma síntese histórica do primeiro modelo é encontrada na obra de Sófocles, quando a protagonista Antígona, responde a Creonte: (...) É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas imutáveis dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram sempre, e ninguém sabe quando surgiram. (...).[8] 6312 Assim, Antígona aponta para a querela que acompanhará a evolução do próprio Direito representado pelo Direito Natural e o Direito Positivo. Portanto, a obra de Sófocles, como se verá, serve também para caracterizar o segundo modelo. A percepção da heroína deixa marcado que a criação deste estava claramente subordinada àquele, anterior e superior e não gerida pelas pessoas, mas de origem divina. Tem-se, com isso, um limite para a atuação humana. Será considerado metafísico para muitos, mas um marco importante e que não deverá ser esquecido ou suplantado. Veja-se que não é um limite impeditivo. Pelo contrário, um marco regulatório que acompanha o agir humano, a fim de continuar sendo qualificado como tal. Representa um aprendizado legado pela história, também fruto de sofrimento, lutas e contradições. Na mesma obra de Sófocles, Hêmon – filho de Creonte – dialoga com seu pai: (...) Não tenhas pois um só modo de ver: nem só o que tu dizes está certo, e o resto não. Porque quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma língua ou um espírito como mais ninguém, esse, quando posto a nu, vê-se que é oco. Mas não é vergonha que um homem, ainda que seja sábio, aprenda muita coisa, e não distenda demasiado a corda. (...).[9] A modernidade tem muito a aprender com ambas as passagens. Entretanto, o mais significativo é a abertura para sempre continuar aprendendo. Nunca se sabe tudo e nem demais. Vale dizer, os humanos deverão continuar olhando para a história que antecede e envolve os direitos humanos, a fim de não ignorar a dor, o sofrimento e a morte de todos aqueles envolvidos em violências e atrocidades. 3.2 O SEGUNDO MODELO: DO ESTADO NATURAL AO ESTADO CIVIL Entretanto, mais tarde, na era moderna (aqui considerada a partir de René Descartes: 1596-1650), a lei passa a expressar a vontade do detentor do poder ou do representante da maioria, que caracteriza o segundo modelo: onde se verifica o processo de legitimação da autoridade e da criação da lei, será desenvolvido a partir das contribuições de Thomas Hobbes. No Estado Natural prevalecia a igualdade entre as pessoas expressa em três planos: igualdade de fato, escassez de recursos e no direito sobre tudo.[10] Esses três fatores não permitem a construção da superioridade de uma pessoa em relação a outra. A dúvida assim gerada impulsionava cada um dos integrantes do Estado de Natureza à constante vigilância e, na dúvida, ao ataque de um provável inimigo, porque projetava uma superioridade em potencial. Isso gera a “guerra de todos contra todos contra todos.”[11] Para se locomover neste estado, cada pessoa emprega a razão, entendida como um cálculo dos meios necessários para sobreviver neste “mundo de iguais”, regrado pela lei do mais forte. 6313 Esta mesma razão abria o caminho para acessar a lei natural, responsável pela indicação dos caminhos a seguir para a implementação dos objetivos pretendidos, dentre os quais a busca pela paz. A lei natural era definida como “um ditame da reta razão sobre as coisas a fazer ou omitir para garantir-se, quanto possível, a preservação da vida e das partes do corpo.”[12] Ela contém, portanto, uma espécie de catálogo de conselhos prudenciais, desenvolvidos à própria sobrevivência do homem.[13] A prudência, nesse contexto, aponta para um saber prático que orienta a ação, procurando indicar uma resposta razoável para a indagação: como agir para atingir o fim visado que é a sobrevivência? A resposta e a ação estão focadas na preservação de determinados direitos naturais, onde a vida é o mais significativo. A formação do Estado Civil, como um resultado da evolução do Estado de Natureza, está alicerçada na manifestação de vontade das pessoas, sem violência e por intermédio da concordância recíproca. Com isso, o Estado Civil apresenta-se como um Estado artificial, que se mostra como a “síntese de vontades”, onde a conotação propriamente política tem no consenso o princípio de sua legitimação.[14] Desta forma, haverá uma verdadeira submissão da vontade de todos à vontade daquele que os represente, e das suas decisões à sua decisão. Neste Estado, o Direito (lei civil) encontra-se limitado à vontade estatal, pois cabe ao Estado determinar as condutas a serem observadas pela sociedade. O referido monopólio é justificado pela necessidade da manutenção da concórdia social que seria ameaçada se houvesse outro poder com tais características. A lei natural e a lei civil formam uma única lei, já que uma está contida na outra. Como dito anteriormente, a lei natural representa apenas um conjunto de conselhos, que recebem verdadeiro caráter coercitivo após a instituição do Estado, momento em que se transformam em leis civis, mediante a interferência do soberano. Portanto, segundo Hobbes, “a lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da lei, uma das quais é escrita e se chama civil, e a outra não é escrita e se chama natural.”[15] Ao soberano cabe a tarefa de dizer, por intermédio das leis civis, o que é justo e injusto, as quais representam “a execução coativa das leis naturais.”[16] O “gigante Leviatã”, que foi idealizado por Hobbes, encontra um limite na sua atuação: o direito natural à vida é inalienável, já que o direito de defender-se não poderá ser transferido pelo homem através do pacto.[17] Com isso, nasce um limite ao poder soberano, a saber, o súdito tem o direito de resistir às ordens do Estado quando colocam em risco a vida do homem. O poder do Estado é preservado enquanto seja capaz de assegurar a proteção ao homem. Evidencia-se, desse modo, que o rompimento do dever de obedecer ao soberano não está alicerçado no abuso, mas no não-uso, isto é, não é o excesso, e sim a escassez de poder.[18] As considerações assim sucintamente esboçadas[19] demonstram a localização do pensamento hobbesiano dentro dos contornos do jusnaturalismo, quando reconhece a existência do direito natural e em nível superior ao direito positivo; mas as suas idéias também se inserem no positivismo jurídico, tomando em consideração a forma como aborda essa superioridade. A função do direito natural é justificar a legitimidade e a obrigatoriedade do ordenamento jurídico positivo em seu conjunto, e não em cada norma individualmente considerada. Dessa forma, Hobbes enfatiza que o poder civil, na sua constituição, está fundado no direito natural, mas as normas separadas oriundas 6314 desse poder não dependem mais do direito natural, mas apenas da autoridade do soberano.[20] Com esses caracteres, verifica-se uma síntese do segundo modelo e o fortalecimento da dicotomia entre o direito natural e o direito positivo. No entanto, apesar disso, o elemento motivador subjacente à passagem do Estado de Natureza para o Estado Civil é ainda o sofrimento das pessoas. A vida naquele, pela ausência de qualquer espécie de limitação externa às pessoas, gerava o sofrimento, como decorrência da constante guerra. Aí já se verifica a necessidade de uma autoridade legitimada para comandar a todos e fazer-se respeitar pela edição de normas de conduta comuns a todos, independente de sua força física. O nascimento dessa organização já carrega consigo um limite natural, ditado pelo respeito ao direito natural à vida. Quer dizer, esse direito aponta para o sofrimento e atrocidades anteriores e formam o contexto da experiência que norteou a estruturação do Estado e poder civis. A reunião desse aprendizado legado pela experiência mostra-se fundamental para a opção de mudança. No fundo, eram os humanos buscando normas comuns e, ao mesmo tempo, a preservação do direito natural à vida como um trunfo contra o não exercício da proteção estatal, um limitador para a sua atuação. Por tudo isso, o pensamento hobbesiano é um marco importante na caminhada, especialmente na faceta positivista, onde mostra claramente o aspecto voluntarista da criação do Direito, que independe do conteúdo fornecido pelo direito natural. Essa possibilidade gera um fascínio nos detentores do poder, dada a grande possibilidade de criar normas obrigatórias para os outros, ligados exclusivamente à sua vontade. A única condição para o nascimento de novas normas jurídicas e a observância dos aspectos formais. Entre as diversas características do direito natural encontram-se a imutabilidade; a universalidade; o acesso a ele, dependendo do período histórico, pela razão, intuição ou revelação e servir de elemento de qualificação do conteúdo das normas positivas, provocando uma aproximação entre norma e valor ou, mais especificamente, entre Direito e a Moral.[21] O mencionado fascínio gerou o esquecimento da experiência alcançada pela caminhada histórica que foi apresentada. Especialmente nos Séculos XIX e XX o único Direito reconhecido era o Direito Positivo, que tinha essa característica em atenção ao aspecto eminentemente formal. Vale dizer, o paradigma de qualificação do Direito Natural em relação ao Direito Positivo foi esquecido. O Direito deixou de ter a característica de qualificar as condutas, convertendo-se num “papel técnico-instrumental de gestão da sociedade ao permitir, proibir, comandar, estimular e desestimular comportamentos.”[22] 4 O ESQUECIMENTO DA TRADIÇÃO: A NÃO PROTEÇÃO DO DIREITO À VIDA E OS MARCOS HISTÓRICOS DE RETOMADA DOS DIREITOS NATURAIS-HUMANOS O velamento do conteúdo em detrimento da forma na criação do Direito provoca, inevitavelmente, uma paralela onda de sofrimento às pessoas. E mais, com isso também era abandonada a experiência histórica iniciada, especialmente, a partir do povo grego. Tais movimentos provocam desvios e descontroles no exercício do poder político no 6315 seio do Estado Civil. Assim, surgem movimentos que buscam resgatar o horizonte histórico esquecido e, ao mesmo tempo, denunciam atrocidades cometidas pelos representantes do Estado, violando, inclusive, o direito à vida. Essa não proteção legitima, de certa forma, a revolta e a revolução, pois constitui, no seu nascedouro, a única alternativa para o não cumprimento das normas de direito positivo. Um desses marcos históricos foi a Declaração de independência dos Estados Unidos da América do Norte. Merece destaque que em 07/06/1776, a partir de um texto elaborado por Richard Henry Lee, houve a comunicação formal ao monarca inglês e a toda GrãBretanha da pretensão de independência das então colônias norte-americanas. No entanto, o texto da Declaração de independência foi aprovado pelo Congresso Americano em 04/07/1776, e que pretendia justificar a independência frente à humanidade. Esse documento nasce, ao lado de sua importância política para o desenvolvimento da soberania popular, como um marco de evidência de “direitos inerentes a todo ser humano, independente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura ou posição social.”[23] O sofrimento, como um elemento que motiva e justifica as mudanças, aparece no texto aprovado pelo Congresso Americano: (...) Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. (...) Toda vez que alguma forma de governo torna-se nociva à consecução dessas finalidades, é direito do povo alterá-la ou aboli-la, e instituir uma nova forma de governo baseada nesses princípios. (...) Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, (...) revela o desígnio de submetê-los a um despotismo absoluto, é seu direito e seu dever livrar-se desse governo. (...) Tal foi o paciente sofrimento destas colônias. (...). [24] Esse documento é o desaguadouro de todo o percurso histórico desenvolvido até o momento: o sofrimento como uma justificativa para as mudanças e a busca pela efetividade dos direitos naturais-humanos. Eles são auto-evidentes justamente pelo fato de não serem criados por nenhum documento. Pelo contrário, eles compõem o modo de ser das pessoas. Aí um nítido contorno de direitos naturais. Vislumbra-se, de certa forma, a continuidade histórica da preocupação em proteger determinados direitos naturais, os quais, pelas características examinadas, não tem força para se fazer respeitar. Dessa forma, eles assumem o conteúdo dos Direitos Humanos e surgem nessa época na Declaração de Virgínia de 12 de junho de 1776 que representa o seu nascimento com essa denominação. A confirmação dessa incorporação dos direitos naturais fica evidenciada no artigo primeiro deste documento quando refere a igualdade e a liberdade de todos os seres humanos, por sua natureza, os quais são titulares de certos direitos inatos que não podem ser renunciados por nenhum documento de organização pelo ingresso no estado de sociedade.[25] Isso é uma comprovação da hipótese lançada inicialmente de que os direitos humanos são uma decorrência histórica dos direitos naturais, os quais recebem tal categorização muito antes da Declaração de 1948. Outro marco histórico é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Fica claro no seu preâmbulo o percurso histórico dos direitos naturais e as justificativas para que não se observem as normas positivas, pois “a ignorância, o descuido ou o 6316 desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos”. Lembrando a liberdade e a igualdade no artigo primeiro, refere expressamente no artigo segundo: “a finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. (...).”[26] O reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão nada mais é do que a confirmação expressa dos direitos naturais. Simone Goyard-Fabre confirma essa constatação: “a idéia dos direitos do homem não nasceu ex nihilo com a Declaração solene de 1789. Ela constitui mesmo um filosofema chave, no século XVII, na obra dos jurisconsultos da escola do direito natural; (...). Os direitos naturais de cada um necessitam da mediação do direito para adquirir um valor jurídico que não possuem por si só.”[27] A transformação dos direitos naturais em direitos humanos é uma decorrência histórica do seu crescente reconhecimento pelo Direito[28]. No imaginário das pessoas, sob a influência da onda do positivismo jurídico, os direitos (subjetivos), aí incluídos os direitos naturais-humanos, foram recebendo uma gradativa valorização, mediante a inclusão nas Declarações que foram surgindo nesta época. É necessário observar que a Declaração de 1789 reconheceu a liberdade e a igualdade. No entanto, a fraternidade não foi contemplada, inclusão que ocorreu em 1948, com a Declaração Universal de Direitos Humanos. O andar dos fatos e “o sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens”[29], provocou uma evolução sem precedentes em direção à proteção dos direitos humanos. Esse caminhar abriu espaço para a inclusão – além dos dois valores já consagrados anteriormente – da fraternidade, depois reconhecida pela chamada “dignidade da pessoa humana”. 5 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E O TERCEIRO MODELO: O DIREITO BUSCANDO SEU FUNDAMENTO AXIOLÓGICO Os direitos humanos – como a expressão histórica dos direitos naturais – representam um espaço constantemente aberto à discussão e desenvolvimento de um conjunto de condições humanamente necessárias ao pleno desenvolvimento de homens e mulheres. Por isso, no seio da Carta das Nações Unidas, especificamente em seu artigo 55, são estabelecidas as diretrizes gerais para a elaboração de uma declaração universal, preocupada em possibilitar condições de estabilidade e bem-estar, “baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos”, ou seja, “o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Este conteúdo da Carta das Nações Unidas está lastreado na memória das atrocidades e maldades cometidas pelos “humanos” contra os humanos. Auschwitz parece ser um exemplo para a consolidação do conjunto de fatos históricos que estão subjacentes à criação das Nações Unidas e, posteriormente, para a construção da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Reyes Mate refere algumas particularidades de Auschwitz destacando que as investidas realizadas neste espaço estavam preocupados em apagar a própria memória, pois ali “não foi apenas uma gigantesca fábrica de morte, mas também um projeto de esquecimento. Tudo já estava pensado para que não ficasse nenhuma pista, por isso, todos tinham que morrer e os cadáveres deveriam ser queimados, os ossos moídos e logo aventados”.[30] Apesar desta tentativa, a memória 6317 não se apagou por completo e continua viva, mesmo que tenha sido jogada ao vento, como se ele não fosse capaz de produzir ecos permanentes nas pessoas e gerações que se seguiram. Dentro deste arcabouço e com o intuito de tais violências não se repitam, em 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprova o documento da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Durante esse período, o documento tem gerado polêmica, pois recomenda a observância de um conteúdo preocupado com o atendimento qualificado de condições humanamente necessárias. Assim, mesmo que seja uma recomendação, ela deverá ser tomada como se fosse uma ordem dada aos humanos para que haja um respeito mútuo. Além disso, que o gênero humano observe os parâmetros da Declaração como verdadeiro imperativo (na linguagem kantiana), preocupado em legitimar e validar as decisões que venham a ser tomadas. Tal situação foi percebida por Adorno quando apresenta a necessidade de um novo imperativo categórico a partir de Auschwitz: “Hitler impôs aos homens um novo imperativo categórico para seu atual estado de escravidão: o de orientar seu pensamento e sua ação de modo que Auschwitz não se repita, que não volte o ocorrer nada semelhante”.[31] Adorno pretendeu com a incorporação própria do imperativo de Kant, criar uma espécie de barreira para que a situação de atrocidade não se repita, protegendo os humanos de suas próprias investidas anti-humanas. Este o papel da Declaração de 1948. Cabe observar que dentro do paradigma positivista, onde muitos juristas ainda concebem o modo de fazer Direito, o documento parece não apresentar força vinculante, eis que apenas recomenda. Tal perspectiva é equivocada: “reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não.”[32] Esse é o modo mais razoável de compreensão da matéria e reflete a essência jusnaturalista, que comungando da mesma estrutura, não necessita de nenhuma norma objetiva para ser respeitada. A Declaração de 1948 é uma síntese da universalidade dos direitos humanos, onde semelhanças e diferenças se associam em nome do gênero humano. Além disso, ela abriu o caminho para o desenvolvimento de outros documentos, voltados ao aprofundamento do seu propósito: “a este fenômeno da diversidade de meios e identidade de propósito há que agregar a gradual superação de objeções clássicas como a pretensa competência nacional exclusiva ou domínio reservado dos Estados, e a concomitante asserção da capacidade de agir dos órgãos de supervisão internacionais.”[33] A partir do documento de 1948, a matéria relativa aos direitos humanos provocou mudanças na atitude dos particulares, assim como nos representantes dos poderes públicos e dos Estados, que abriram espaço para a incorporação desse conteúdo. O documento de 1948 também começou a fazer parte do modo de produção do Direito, especialmente a partir de uma construção hermenêutica preocupada em resolver razoavelmente os conflitos envolvendo humanos e assuntos correlatos. Ele passou a ser buscado como condição de validade de decisões judiciais não apenas no plano externo, mas também pelos tribunais dos Estados. O tema dos direitos humanos tem provocado uma verdadeira simbiose entre o Direito Internacional e o Direito Interno, onde o primado de um sobre o outro é colocado de lado, dando preferência pela norma que 6318 melhor protege os direitos humanos, “da norma mais favorável às supostas vítimas.”[34] A concepção sobre os direitos humanos, a qual, segundo Antônio Augusto Cançado Trindade[35], é tão antiga quanto a própria história das civilizações, apresenta-se como a confirmação da hipótese inicial: a origem jusnaturalista dos direitos humanos. Tomando-se os pressupostos históricos examinados, é possível constatar a existência de direitos anteriores e independentes da estrutura do Estado. A caracterização da universalidade é fruto dessa origem jusnaturalista, surgindo com força especial na Declaração de 1948 e nos dois pactos de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Políticos. Ela também foi uma das marcas fundamentais das duas Conferências Mundiais de Direitos Humanos (Teerã, 1968 e Viena, 1993). O conteúdo do citado artigo 55 da Carta das Nações Unidas retrata a universalidade dos direitos humanos. No entanto, além disso, abre caminho para outra caracterização, hoje correlato, a da chamada multiculturalidade. Não há direitos humanos na unidade. Pelo contrário, é a diversidade o verdadeiro espaço para o seu desenvolvimento. Tal preocupação está na essência dos diversos documentos relativos aos direitos humanos que surgiram especialmente a partir de 1948. Nessa linha, merece destaque o Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa[36], assinado em 29 de outubro de 2004, em Roma (esse documento é contestado por alguns países europeus). Esse documento refere em seu preâmbulo que a Europa está “unida na diversidade” e “oferece as melhores possibilidades de, respeitando os direitos de cada um e estando cientes das suas responsabilidades para com as gerações futuras e para com a Terra, prosseguir a grande aventura que faz dela um espaço privilegiado de esperança humana”. Ao lado da pretensiosa certeza assim esboçada, fica registrada uma flagrante discriminação: a Europa se apresenta como o único espaço geográfico onde as pessoas terão condições de viver melhor. Mostra a flagrante europeização, em detrimento dos outros povos e Estados, seja ocidentais ou orientais. Ao lado disso, o preâmbulo do texto desta Constituição se inspira “no patrimônio cultural, religioso e humanista da Europa, de que se emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana”. Aqui fica registrada a construção jusnaturalista dos direitos humanos – embora parciais, pois inspirados apenas na Europa – da qual se mostrou a contextualização histórica. Outro aspecto relevante, e que conforta a idéia do sofrimento como o motor dos direitos humanos, refere-se ao convencimento “de que a Europa, agora reunida após dolorosas experiências, tenciona progredir na via da civilização, do progresso e da prosperidade a bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos, (...).” Aqui aparece o reconhecimento expresso do sofrimento e da experiência histórica que ela legou para o desenvolvimento de mecanismo à proteção dos direitos humanos. Nesse cenário, cujo documento precursor completou em 2008 seus 60 anos, abre-se a possibilidade para o fortalecimento do terceiro modelo. Cabe observar que não é um modelo novo e com contornos inéditos. Trata-se de um arcabouço esquecido ao longo da construção da história recente, mas já conhecido pelos antigos, especialmente a história greco-romana. Ele é revisitado por John Mitchell Finnis: os direitos humanos 6319 são sinônimos de direitos naturais e representam os direitos morais fundamentais e gerais ou direitos morais particulares ou concretos.[37] É o resgate da velha sabedoria grega, norteada pela razão prática na construção da resposta mais razoável para a satisfação dos requisitos peculiares de cada caso concreto. A partir do princípio de que “todos têm direito à igualdade de consideração e respeito”, Finnis apresenta os bens humanos básicos[38] e os requisitos da razoabilidade prática[39] como a expressão dos direitos naturais-humanos. A partir desses dois conjuntos, torna-se possível a formulação de padrões morais gerais que representam os direitos humanos ou direitos naturais. Não se pensa em direitos humanos absolutos, mas em “aspectos do real bem-estar de indivíduos de carne e osso.”[40] Com a inclusão desses ingredientes, marca do terceiro modelo, o elemento substancial (de conteúdo) passa a ser preponderante sobre o instrumental (a forma). Além disso, as decisões sobre os direitos humanos deverão nortear-se pela razoabilidade prática a fim de apontar decisões adequadas e outras que não deverão ser praticadas, posto contrárias ao pleno florescimento humano. Para dar conta das múltiplas facetas assim apresentadas, os direitos humanos passam a abrigar os direitos individuais e os sociais, econômicos e culturais devidamente harmonizados. “Esta concepção parte dos direitos humanos como uma unidade indivisível e busca o equilíbrio e a harmonização entre eles.”[41] A proposta de John Finnis deverá ser examinada em seu conjunto, formando uma unidade, onde se busca uma constante harmonização. O desafio que se desenha frente a esse quadro e o respeito ao multiculturalismo é o equilíbrio e a harmonização, a fim de serem respeitadas as diferenças regionais e locais. Isso se mostra, segundo Martín Risso Ferrand, ainda muito primitivo em termos latinoamericanos, onde prepondera um enfoque parcial, esquecendo-se da sua globalidade. No caso da Europa, a concepção sobre os direitos humanos já está mais preocupada com um sistema único e indivisível, graças a diversos fatos históricos: as duas guerras mundiais; a Guerra Fria e a divisão da Europa; o processo de consolidação continental originando a União Européia; a queda do império soviético, a divisão da URSS e a queda do muro de Berlim. Essa experiência produziu uma visão acerca dos direitos humanos mais sólida e um conteúdo especialmente relevante. Já no espaço Latino-americano, os anos oitenta tiveram uma significativa importância, pois representaram o momento de substituição das ditaduras pelo modelo democrático. Com isso, ficaram evidenciadas as consequências violentas provocadas pelos regimes ditatoriais e as flagrantes violações dos direitos humanos. Novamente fica marcado “que a associação dos direitos humanos com um passado mais ou menos recente, trágico e injusto, e sua formulação como um reclamo de justiça.”[42] O sofrimento surge como um elemento motivador para a mudança e a valorização do conteúdo dos direitos humanos. A falta de um horizonte histórico mais aprofundado provoca na América Latina uma visão muito centrada nas violações do passado. Com isso, são esquecidos alguns aspectos importantes, tais como: “(a) a visão global e total dos direitos humanos e b) a projeção sobre o presente e o futuro dos direitos humanos.”[43] A visão multicultural dos direitos humanos deverá aproximar as histórias da Europa e da América Latina, provocando um enriquecimento recíproco. Embora se tenha dois territórios distintos, com características peculiares, a preocupação 6320 com os direitos humanos é única, eis que as pessoas são essencialmente iguais. Portanto, o projeto de sua efetivação passa pelo mesmo caminho. Apesar dos seus 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reflete a ambiguidade da modernidade, que expressa os avanços e retrocessos em relação ao tema.: eles surgem como uma resposta mais forte às atrocidades e violações cometidas, especialmente, a partir da Primeira Guerra Mundial e, “ao mesmo tempo, constituem-se em ethos político e jurídico de liberdade, que em sua universalidade e seu espírito emancipacionista,”[44] representam a marca característica desse período histórico. Apesar disso, é necessário evitar exageros na busca pela sua implementação efetiva e promover “a desistência de qualquer extrapolação ideológica progressista dos direitos humanos.”[45] Os exageros provocarão malefícios semelhantes aos experimentados nos diversos momentos em que os direitos humanos foram desconsiderados. Esse é o horizonte histórico projetado pela Declaração de 1948 e que deverá influenciar a caminhada da humanidade no século XXI, a fim de evitar as atrocidades e barbáries já cometidas pelos homens e mulheres contra seus semelhantes. A universalidade e o multiculturalismo serão os dois orientadores para o desenvolvimento dos direitos humanos. No entanto, o perigo que ronda essa perspectiva é o imperialismo cultural, focado somente no lado ocidental e nele na Europa e os Estados Unidos da América. Existe uma forte tendência desse fenômeno, notadamente em termos latino-americanos. Muitas vezes a importação de comportamentos culturais europeus e norte-americanos se dá sem a devida precaução e adaptação (quando possível), como se fosse possível transplantar comportamentos e culturas de um lugar para outro sem dificuldades. Otfried Höffe alerta para o que ele chama de “europeização”, provocando um verdadeiro etnocentrismo. Isso já ocorreu em outros momentos históricos, tais como, na Antigüidade, o caso dos gregos e, mais tarde, dos romanos; já na era Moderna, com as potências colonizadoras.[46] Portanto, o desafio que se tem é a construção da efetiva identidade da universalidade dos direitos humanos. Vale dizer, cada pessoa, cada humano, é convocado a efetivar o que já existe há 60 anos: Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não se trata de uma Declaração para o Ocidente. Pelo contrário, ela se diz “Universal”, isto é, sem distinção de nenhuma espécie. Entretanto, como a implementação e a gradativa conquista dos direitos humanos é movida pelo sofrimento, tudo indica que a americanização e a europeização representam no século XXI uma peculiar forma de tirania cultural, econômica, política e social (não necessariamente nessa ordem). Esses fenômenos representam uma sofisticada forma de violência, que gerará atrocidades de muitas espécies. Vislumbra-se, portanto, uma nova forma, muitas vezes velada, de sofrimento, cujo enfrentamento é um desafio coletivo (universal) para que se possa chegar a uma sociedade onde o elemento comum – as pessoas – seja respeitado na sua integralidade, sem considerações particulares. Esse horizonte projetado para o hoje e o futuro deverá merecer a influência do contexto histórico e da experiência já vivenciada. Vale dizer, verificou-se a origem jusnaturalista dos direitos humanos e, com isso, o horizonte histórico necessário, mas não suficiente, para a condução dos humanos a um espaço temporal aonde cada pessoa venha a ter respeitado seus direitos mínimos por ser pessoa, independente de sua origem, raça, sexo, cor e credo. Não se pensa numa sociedade platônica, mas num contexto real e capaz de abrigar as pessoas com suas diferenças e semelhanças, onde a dignidade seja o princípio vetor. 6321 CONCLUSÃO O enlaçamento dos três modelos permite que se responda positivamente ao problema formulado inicialmente. Vale dizer: a concepção atual dos direitos humanos é uma decorrência histórica da expressão dos direitos naturais. O gradativo desenvolvimento de cada um dos modelos mostra que os direitos humanos sempre procuraram proteger os direitos naturais, destacando-se o direito à vida e a dignidade humana. John Finnis mostra uma síntese dos modelos, destacando a necessidade de aliar o direito e a mora, a forma com o conteúdo. A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 procurou refletir essa experiência histórica, a fim de evitar novos sofrimentos, como aqueles produzidos especialmente durante os dois grandes conflitos mundiais. Portanto, o sofrimento é o elemento motivador principal da fala dos direitos humanos. No entanto, apesar disso, não foi ainda o elemento suficiente, pois muitos povos ainda são menosprezados por outros; muitas pessoas não têm respeitado a sua dignidade; as guerras (não mundiais, mas graves conflitos armados); a superioridade econômica de alguns Estados em detrimento da falta de recursos financeiros para o atendimento dos integrantes do bem comum de outros; as perseguições por motivos religiosos, raciais e culturais; a dicotomia entre o ocidente e o oriente. Tudo evidencia que os direitos naturais-humanos ainda têm um longo caminho a percorrer até que os humanos se dêem conta da necessidade de respeitar alguns limites. A experiência histórica que desembocou na Declaração de 1948, mostrando algumas lições e sofrimentos, ainda não receberam a suficiente atribuição de sentido para gerar o aprendizado de não repetição de algumas condutas. O tempo ainda deverá continuar irradiando os efeitos, a fim de que se possa construir um espaço adequado para a efetividade dos direitos humanos. A racionalidade prática apresenta-se como uma possibilidade, a partir das contribuições de John Finnis, para trazer os direitos naturais na construção de suportes para a implantação dos direitos humanos. E, além disto, é fundamental dar ouvidos à proposta do imperativo categórico apresentada por Adorno, dentro da sua forma de concebê-los. Vale dizer, os humanos devem olhar para a luz da tradição, ouvindo-lhe os ensinamentos, colocando em prática a aprendizagem, a fim de valorizarem cada pessoa pela sua dignidade. Nenhuma pessoa é uma coisa, por isso não tem preço. Cada ser humano tem na sua essência a dignidade. Quando as pessoas perceberem tal composição, estarão respeitando a humanidade de cada humano, independente de suas características físicas, sociais, culturais, econômicas ou políticas. REFERÊNCIAS 6322 ADORNO, Theodor W. Negative Dialektik. Jargon der Eigentlichchkeit. IN: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Druck Beck’sche Buchdruckerei, 1998, Band 6. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 2001. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Tradução de Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo; Unisinos, 2000. BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4. ed. Tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991. BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. 1. reimpres. São Paulo: Brasiliense, 1996. COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. DOUZINAS, Costas. O ‘FIM’ dos Direitos Humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. ENGELMANN, Wilson. Crítica ao Positivismo Jurídico: Princípios, Regras e o Conceito de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001. 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Ser e Tempo. Traduzido por Márcia Sá Cavalcante Schuback. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, Parte II, § 47, p. 20. [2] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41. [3] Ibidem, p. 42. [4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: UnB, 2001, 1180a. [5] GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de António Manuel Hespanha e Manuel Luís Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1995, p. 75-6. [6] LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: Lições Introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 39-40. [7] LOPES, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 40. [8] SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas Maria Helena da Rocha Pereira. Brasília: UnB, 1997, 450-455, p. 45. 6324 [9] SÓFOCLES. Antígona. 685-720, p. 54-5. [10] BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4. ed. Tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 34. [11] HOBBES, Thomas. De Cive – Elementos filosóficos a respeito do cidadão. Tradução de Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 55. [12] Idem. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1999, p. 113. [13] Conforme estudo preliminar desenvolvido por Miguel Angel Rodilla, inserido em HOBBES, Thomas. Diálogo entre un filósofo y un jurista y escritos autobiográficos. Tradução de Miguel Angel Rodilla. Madrid: Tecnos, 1992, p. XVI. [14] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. 1. reimpres. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 38-9. [15] HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 208-9. [16] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia Política Moderna, op. cit., p. 49. [17] HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 178. [18] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo, op. cit., p. 51. Interessante observar a interpretação para essa postura dada por José Reinaldo de Lima Lopes: “apenas em nome da paz e da ordem (segurança) pode-se contestar a autoridade, ou seja, é quando a autoridade se torna incapaz de manter um mínimo de ordem que ela deixa de ser autoridade. Em poucas palavras, a perda de eficácia significa perda de legitimidade”. O Direito na História, op. cit., p. 192. [19] Para aprofundamento, sugere-se ENGELMANN, Wilson. Crítica ao Positivismo Jurídico: Princípios, Regras e o Conceito de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.174p. [20] BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes, op. cit., p. 139-50. [21] LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. 6. reimpres. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 35-6. [22] LAFER, Celso, op. cit., p. 47. [23] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, op. cit., p. 99-107. [24] Ibidem, p. 109. 6325 [25] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, op. cit., p. 50. [26] Ibidem, p. 158. [27] GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXX-XXXV. [28] Sobre este tema, consultar: DOUZINAS, Costas. O ‘FIM’ dos Direitos Humanos. Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. 417 p. [29] COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 56-7. [30] MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política. Tradução de Antônio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 7. [31] ADORNO, Theodor W. Negative Dialektik. Jargon der Eigentlichchkeit. IN: Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Druck Beck’sche Buchdruckerei, 1998, Band 6, p. 358. [32] COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 226-7. [33] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Direito Internacional em um Mundo em Transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 637-8. [34] Ibidem, p. 642. [35] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, vol. I, p. 33-6. [36] Jornal Oficial nº C 310 de 16 de dezembro de 2004, Disponível em http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C2004:310:0003:0010:PT:PDF. Acesso em: 22 jan. 2009. [37] FINNIS, John Mitchell. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 195-6. [38] A vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a amizade, a razoabilidade prática e a religião. [39] Um plano coerente de vida, não dar preferência a valores e pessoas, eficiência dentro dos limites do bom senso, o bem comum. [40] FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 219-20. [41] FERRAND, Martín Risso. Los derechos humanos como concepto mítico. IN: Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Montevidéu: Konrad Adenauer Stiftung, 2008, p. 143. 6326 [42] Ibidem, p. 144-5. [43] Ibidem, p. 145. [44] BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Tradução de Dankwart Bernsmüller. São Leopoldo; Unisinos, 2000, p. 41. [45] Ibidem, p. 47. [46] HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Tradução de Rafael Sevilla. Barcelona: Gedisa, 2000, p. 63-4. 6327