a crise do positivismo jurídico

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A ORIGEM JUSNATURALISTA DOS DIREITOS HUMANOS: O HORIZONTE
HISTÓRICO DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
DE 1948.
THE NATURAL HUMAN RIGHTS ORIGIN: THE HISTORICAL HORIZON
OF 1948 HUMAN RIGHTS UNIVERSAL DECLARATION.
Wilson Engelmann
RESUMO
Ao completar 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, continua
mostrando a importância de se valorizar as pessoas na construção de uma sociedade
justa. Busca-se mostrar como a caminhada histórica desse documento deve servir de
aprendizado, tendo em vista o sofrimento e a violência provocados nos humanos para o
seu nascimento. Esse horizonte deverá ser revisitado e colocado na ordem do dia do
mundo civilizado, preocupado em dar efetividade a uma sociedade global focada no
respeito aos direitos naturais-humanos. As experiências históricas, presentes nesta
Declaração, querem mostrar a importância da tradição e, ao mesmo tempo, marcar um
horizonte para a caminhada humana na construção de um futuro onde a “aldeia global”
possa representar um espaço de livre e fraterna convivência para as pessoas, respeitadas
as suas diferenças.
PALAVRAS-CHAVES: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DE 1948; DIREITOS
HUMANOS; DIREITOS NATURAIS; SOFRIMENTO; DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA.
ABSTRACT
Once turning 60, Human Rights Universal Declaration, keeps showing how important is
apprising people on building, fair society. Showing how this document historical walk
must be used for learning, considering all suffering and violence attempted to humans
on their birth. This horizon should be revisited and placed into the day of civilized
world, concerned about making a global society based on the respect to natural human
rights. The history experiences, presents in this declaration, want to show the
importance of the tradition and, in the same breath, to flag a skyline to the human walk
in a build of a future where the “Global village” can represent a space of freedom and
fraternity companionship of people, be respecting theirs differences.
KEYWORDS: 1948 UNIVERSAL DECLARATION, HUMAN RIGHTS, NATURAL
RIGHTS, SUFFERING, HUMAN BEING DIGNITY.
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1 INTRODUÇÃO
É objetivo deste artigo recuperar alguns pressupostos históricos que sustentam a
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Para isso, o problema que se
propõe, desdobrado em duas questões, é: os direitos naturais são os antecessores
substanciais dos direitos humanos? A dor e o sofrimento, que estão neste caminho, são
condição de possibilidade para o surgimento e o desenvolvimento dos chamados
“Direitos Humanos”? Para tanto, são propostos três modelos voltados a mostrar como a
solução para esse problema se enlaça à constante busca de efetividade para os direitos
humanos.
A caminhada histórica procura resgatar a memória da tradição que ensina e mostra
determinadas atitudes como inaceitáveis, posto que atentam contra princípios humanos
mais essenciais. Portanto, a efetivação dos direitos humanos, como um espaço de
diálogo e mediação, deve verificar as experiências do passado, extraindo delas a
aprendizagem para progredir no efetivo reconhecimento de alguns pressupostos
voltados ao desenvolvimento humano pleno.
As tragédias que os humanos já provocaram deverão permanecer vivas na lembrança de
cada pessoa, justamente para que elas não venham a se repetir. Investigar o percurso da
construção dos pilares que sustentam os direitos humanos visa ao ato de trazer à
memória tal aspecto. Não se busca reavivar a memória com o intuito do mero resgate.
Pelo contrário, trazer os fatos à memória tem como foco principal sua não reprodução,
ou seja, um ponto de retorno que deverá ser evitado.
2 A dor e o sofrimento no rastro dos Direitos Humanos
Os Direitos Humanos no Século XXI representam o resultado histórico de lutas e
conquistas que os humanos vêm desenvolvendo ao longo de sua trajetória. As pessoas
“civilizadas” de hoje encontram-se vinculadas a essa caminhada, sendo o seu produto
ideológico. Na análise da afirmação da pessoa como destinatária de algumas normas e
prerrogativas, chamadas de direitos humanos, é possível constatar que todas são os
resultados de lutas e, especialmente, muito sofrimento.
Não há nenhuma possibilidade de retorno para minorar esses sofrimentos e mortes em
nome dos quais posteriormente se criaram normas para evitá-las. Cabe observar a
seguinte idéia de Heidegger: “(...) Ninguém pode assumir a morte do outro. De certo,
pode-se ‘morrer por outrem’. No entanto, isso quer dizer sempre: sacrificar-se pelo
outro ‘numa coisa e causa determinada’. Esse morrer por ..., no entanto, jamais pode
significar que a morte do outro lhe tenha sido, de alguma maneira, retirada. (...)”.[1] A
experiência da morte sempre será daquela pessoa, impossível existencialmente a
substituição. No entanto, todos aqueles que morreram e sofreram, como vítimas de
atrocidades, barbáries e desumanidades, legaram para os tempos atuais a memória, que
deverá servir de orientação para que a humanidade não retorne a estes caminhos e nem
repita tais violências.
6310
Essa é a verdadeira herança dos Direitos Humanos. No entanto, não é necessário olhar
muito longe para perceber-se que a experiência de dor e sofrimento ainda não foi
suficientemente apreendida pelos humanos. De certa forma, os sacrifícios das pessoas
deram-se pela causa da humanidade, ou seja, para que os humanos percebessem
determinados limites em sua forma de atuação.
3 OS DIREITOS HUMANOS LIMITANDO A ATUAÇÃO DO GRUPO SOCIAL
A concepção de limite – para a atuação em nome próprio ou em nome dos outros –
acompanhou a luta travada pelos e em nome dos Direitos Humanos, embora nem
sempre tenham recebido esse nome.
3.1 O PRIMEIRO MODELO: DA SACRALIZAÇÃO À DESSACRALIZAÇÃO
DO DIREITO
Dentro dessa perspectiva, é importante registrar que no reino davídico (996 a.C. 963
a.C), segundo constatação de Fábio Konder Comparato, tenha surgido a “proto-história
dos direitos humanos”. A peculiaridade do reino de Davi foi o estabelecimento do reisacerdote, “o monarca que não proclama Deus nem se declara legislador, mas se
apresenta como o delegado do Deus único e o responsável supremo pela execução da lei
divina”.[2] Nessa condição, a atuação do rei sofre determinadas limitações, dada a
existência de uma “autoridade divina” acima dele.
A experiência assim inaugurada inspirou as primeiras instituições democráticas em
Atenas (século VI a.C.) e, no século seguinte, projetou a fundação da república
romana.[3] A busca pela convivência das pessoas, que deveriam observar alguns
limites, faz nascer a lei, com características próprias, mas antecessora da lei moderna.
Aristóteles refere à necessidade da vida focada em atitudes boas, abstendo-se da prática
daquelas consideradas más. Para isso, no entanto, o papel da “autoridade” é
fundamental, em condições de exercer a “compulsão” a este comportamento. Segundo o
filósofo “a lei tem este poder de compulsão, e ela é ao mesmo tempo uma norma
oriunda de uma espécie de prudência e de razão”.[4] A junção da prudência e da razão,
reunidas na lei, serviram de modelo normativo planejado para organizar, limitar e
possibilitar a convivência das pessoas. A lei assim apresentada foi exercida em nome da
autoridade divina ou em atenção a um paradigma racional, forjado dentro da metafísica
tradicional, onde os fins já estavam dados, bastando aos humanos descobrir os meios
para acessá-los. Para os limites deste trabalho, tem-se o arcabouço correspondente ao
primeiro modelo.
Para os gregos, a lei era o nómos, considerado “o meio de limitar o poder da autoridade,
porque a liberdade política consiste em não ter que obedecer senão à lei. Mas a lei é
humana e laica; já não tem nada de religioso, de divino.”[5] Fica destacada a constante
preocupação com a limitação da atuação dos particulares e do exercício da liberdade
política. Já se vislumbra um aprofundamento da limitação do poder pelo império da lei,
em substituição à autoridade divina. O povo grego marca a laicização do Direito, a
partir do momento em que “a promulgação da lei e sua revogação nada têm de divino:
6311
são assuntos humanos.” Isso não significa dizer que os gregos não eram religiosos e
nem afastava esse viés da condução política. No entanto, o Direito não tinha a sua
validade vinculada à revelação divina e nem era necessária a invocação da vontade dos
deuses para que uma lei fosse criada.[6] Vivencia-se, assim, o verdadeiro marco inicial
da dessacralização do Direito, onde o poder divino começa a ser substituído pelo poder
dos humanos e no exercício da liberdade para a criação das leis consideradas mais
apropriadas.
Outro aspecto que merece ser sublinhado encontra-se ligado à experiência multicultural
experimentada pelos gregos:
desenvolvendo uma civilização voltada para o mar, os gregos entram em contato com a
diversidade das culturas de outros povos. O espírito de comparação leva-os, portanto, a
indagar o que afinal é comum entre todas as ‘nações’. Há alguma coisa que pertença por
natureza ao gênero humano? Qual é? As próprias diferenças entre as cidades gregas
colaboram para que se compreenda o direito com um espírito comparativo e flexível.[7]
O multiculturalismo hoje debatido tem origem nessa comparação realizada pelos
gregos, a partir das características de cada ‘nação’ conhecida por eles. Apesar da
constatação das diferenças, havia algo de comum entre todos os povos, vinculadas ao
“gênero humano”. Essa constatação aponta para os direitos humanos, ou seja, haviam
determinadas características e necessidades que se encontravam em todas as pessoas,
independente da sua ‘nação’ de origem. A caracterização da humanidade nas relações
entre as pessoas e os povos nascia a partir desse momento. Começa a ser gestado o
contorno dos direitos humanos como um parâmetro a ser respeitado. Além do mais,
verifica-se uma nítida corporificação dos direitos naturais, pois não criados, mas
percebidos, ou seja, os gregos se deram conta – já estavam inseridos neste contexto – de
que haviam determinadas “regras” que naturalmente devem ser observadas.
Veja-se que nesta época histórica, os gregos perceberam que as normas criadas pelos
humanos precisariam ser flexíveis para viabilizar a adaptação aos contornos
multiculturais próprias do gênero humano. Esse cenário mostra para as discussões do
Século XXI que os direitos humanos têm uma nítida fundamentação nos direitos
naturais e apontam para o respeito aos contornos multiculturais de cada grupo social.
Todo esse horizonte histórico será decisivo à construção das condições de possibilidade
para a elaboração da Declaração Universal de 1948, emergindo com bastante força a
partir do término das duas Guerras Mundiais. Esses conflitos provavelmente tenham
sido provocados pelo esquecimento humano da experiência deixada a partir da linha
histórica acima desenhada.
Uma síntese histórica do primeiro modelo é encontrada na obra de Sófocles, quando a
protagonista Antígona, responde a Creonte:
(...) É que essas não foi Zeus que as promulgou, nem a Justiça, que coabita com os
deuses infernais, estabeleceu tais leis para os homens. E eu entendi que os teus éditos
não tinham tal poder, que um mortal pudesse sobrelevar os preceitos, não escritos, mas
imutáveis dos deuses. Porque esses não são de agora, nem de ontem, mas vigoram
sempre, e ninguém sabe quando surgiram. (...).[8]
6312
Assim, Antígona aponta para a querela que acompanhará a evolução do próprio Direito
representado pelo Direito Natural e o Direito Positivo. Portanto, a obra de Sófocles,
como se verá, serve também para caracterizar o segundo modelo. A percepção da
heroína deixa marcado que a criação deste estava claramente subordinada àquele,
anterior e superior e não gerida pelas pessoas, mas de origem divina. Tem-se, com isso,
um limite para a atuação humana. Será considerado metafísico para muitos, mas um
marco importante e que não deverá ser esquecido ou suplantado. Veja-se que não é um
limite impeditivo. Pelo contrário, um marco regulatório que acompanha o agir humano,
a fim de continuar sendo qualificado como tal. Representa um aprendizado legado pela
história, também fruto de sofrimento, lutas e contradições.
Na mesma obra de Sófocles, Hêmon – filho de Creonte – dialoga com seu pai:
(...) Não tenhas pois um só modo de ver: nem só o que tu dizes está certo, e o resto não.
Porque quem julga que é o único que pensa bem, ou que tem uma língua ou um espírito
como mais ninguém, esse, quando posto a nu, vê-se que é oco. Mas não é vergonha que
um homem, ainda que seja sábio, aprenda muita coisa, e não distenda demasiado a
corda. (...).[9]
A modernidade tem muito a aprender com ambas as passagens. Entretanto, o mais
significativo é a abertura para sempre continuar aprendendo. Nunca se sabe tudo e nem
demais. Vale dizer, os humanos deverão continuar olhando para a história que antecede
e envolve os direitos humanos, a fim de não ignorar a dor, o sofrimento e a morte de
todos aqueles envolvidos em violências e atrocidades.
3.2 O SEGUNDO MODELO: DO ESTADO NATURAL AO ESTADO CIVIL
Entretanto, mais tarde, na era moderna (aqui considerada a partir de René Descartes:
1596-1650), a lei passa a expressar a vontade do detentor do poder ou do representante
da maioria, que caracteriza o segundo modelo: onde se verifica o processo de
legitimação da autoridade e da criação da lei, será desenvolvido a partir das
contribuições de Thomas Hobbes.
No Estado Natural prevalecia a igualdade entre as pessoas expressa em três planos:
igualdade de fato, escassez de recursos e no direito sobre tudo.[10] Esses três fatores
não permitem a construção da superioridade de uma pessoa em relação a outra. A
dúvida assim gerada impulsionava cada um dos integrantes do Estado de Natureza à
constante vigilância e, na dúvida, ao ataque de um provável inimigo, porque projetava
uma superioridade em potencial. Isso gera a “guerra de todos contra todos contra
todos.”[11] Para se locomover neste estado, cada pessoa emprega a razão, entendida
como um cálculo dos meios necessários para sobreviver neste “mundo de iguais”,
regrado pela lei do mais forte.
6313
Esta mesma razão abria o caminho para acessar a lei natural, responsável pela indicação
dos caminhos a seguir para a implementação dos objetivos pretendidos, dentre os quais
a busca pela paz. A lei natural era definida como “um ditame da reta razão sobre as
coisas a fazer ou omitir para garantir-se, quanto possível, a preservação da vida e das
partes do corpo.”[12] Ela contém, portanto, uma espécie de catálogo de conselhos
prudenciais, desenvolvidos à própria sobrevivência do homem.[13] A prudência, nesse
contexto, aponta para um saber prático que orienta a ação, procurando indicar uma
resposta razoável para a indagação: como agir para atingir o fim visado que é a
sobrevivência? A resposta e a ação estão focadas na preservação de determinados
direitos naturais, onde a vida é o mais significativo.
A formação do Estado Civil, como um resultado da evolução do Estado de Natureza,
está alicerçada na manifestação de vontade das pessoas, sem violência e por intermédio
da concordância recíproca. Com isso, o Estado Civil apresenta-se como um Estado
artificial, que se mostra como a “síntese de vontades”, onde a conotação propriamente
política tem no consenso o princípio de sua legitimação.[14] Desta forma, haverá uma
verdadeira submissão da vontade de todos à vontade daquele que os represente, e das
suas decisões à sua decisão.
Neste Estado, o Direito (lei civil) encontra-se limitado à vontade estatal, pois cabe ao
Estado determinar as condutas a serem observadas pela sociedade. O referido
monopólio é justificado pela necessidade da manutenção da concórdia social que seria
ameaçada se houvesse outro poder com tais características.
A lei natural e a lei civil formam uma única lei, já que uma está contida na outra. Como
dito anteriormente, a lei natural representa apenas um conjunto de conselhos, que
recebem verdadeiro caráter coercitivo após a instituição do Estado, momento em que se
transformam em leis civis, mediante a interferência do soberano. Portanto, segundo
Hobbes, “a lei civil e a lei natural não são diferentes espécies, mas diferentes partes da
lei, uma das quais é escrita e se chama civil, e a outra não é escrita e se chama
natural.”[15] Ao soberano cabe a tarefa de dizer, por intermédio das leis civis, o que é
justo e injusto, as quais representam “a execução coativa das leis naturais.”[16]
O “gigante Leviatã”, que foi idealizado por Hobbes, encontra um limite na sua atuação:
o direito natural à vida é inalienável, já que o direito de defender-se não poderá ser
transferido pelo homem através do pacto.[17] Com isso, nasce um limite ao poder
soberano, a saber, o súdito tem o direito de resistir às ordens do Estado quando colocam
em risco a vida do homem. O poder do Estado é preservado enquanto seja capaz de
assegurar a proteção ao homem. Evidencia-se, desse modo, que o rompimento do dever
de obedecer ao soberano não está alicerçado no abuso, mas no não-uso, isto é, não é o
excesso, e sim a escassez de poder.[18]
As considerações assim sucintamente esboçadas[19] demonstram a localização do
pensamento hobbesiano dentro dos contornos do jusnaturalismo, quando reconhece a
existência do direito natural e em nível superior ao direito positivo; mas as suas idéias
também se inserem no positivismo jurídico, tomando em consideração a forma como
aborda essa superioridade. A função do direito natural é justificar a legitimidade e a
obrigatoriedade do ordenamento jurídico positivo em seu conjunto, e não em cada
norma individualmente considerada. Dessa forma, Hobbes enfatiza que o poder civil, na
sua constituição, está fundado no direito natural, mas as normas separadas oriundas
6314
desse poder não dependem mais do direito natural, mas apenas da autoridade do
soberano.[20]
Com esses caracteres, verifica-se uma síntese do segundo modelo e o fortalecimento da
dicotomia entre o direito natural e o direito positivo. No entanto, apesar disso, o
elemento motivador subjacente à passagem do Estado de Natureza para o Estado Civil é
ainda o sofrimento das pessoas. A vida naquele, pela ausência de qualquer espécie de
limitação externa às pessoas, gerava o sofrimento, como decorrência da constante
guerra. Aí já se verifica a necessidade de uma autoridade legitimada para comandar a
todos e fazer-se respeitar pela edição de normas de conduta comuns a todos,
independente de sua força física. O nascimento dessa organização já carrega consigo um
limite natural, ditado pelo respeito ao direito natural à vida. Quer dizer, esse direito
aponta para o sofrimento e atrocidades anteriores e formam o contexto da experiência
que norteou a estruturação do Estado e poder civis. A reunião desse aprendizado legado
pela experiência mostra-se fundamental para a opção de mudança. No fundo, eram os
humanos buscando normas comuns e, ao mesmo tempo, a preservação do direito natural
à vida como um trunfo contra o não exercício da proteção estatal, um limitador para a
sua atuação.
Por tudo isso, o pensamento hobbesiano é um marco importante na caminhada,
especialmente na faceta positivista, onde mostra claramente o aspecto voluntarista da
criação do Direito, que independe do conteúdo fornecido pelo direito natural. Essa
possibilidade gera um fascínio nos detentores do poder, dada a grande possibilidade de
criar normas obrigatórias para os outros, ligados exclusivamente à sua vontade. A única
condição para o nascimento de novas normas jurídicas e a observância dos aspectos
formais.
Entre as diversas características do direito natural encontram-se a imutabilidade; a
universalidade; o acesso a ele, dependendo do período histórico, pela razão, intuição ou
revelação e servir de elemento de qualificação do conteúdo das normas positivas,
provocando uma aproximação entre norma e valor ou, mais especificamente, entre
Direito e a Moral.[21] O mencionado fascínio gerou o esquecimento da experiência
alcançada pela caminhada histórica que foi apresentada. Especialmente nos Séculos
XIX e XX o único Direito reconhecido era o Direito Positivo, que tinha essa
característica em atenção ao aspecto eminentemente formal. Vale dizer, o paradigma de
qualificação do Direito Natural em relação ao Direito Positivo foi esquecido. O Direito
deixou de ter a característica de qualificar as condutas, convertendo-se num “papel
técnico-instrumental de gestão da sociedade ao permitir, proibir, comandar, estimular e
desestimular comportamentos.”[22]
4 O ESQUECIMENTO DA TRADIÇÃO: A NÃO PROTEÇÃO DO DIREITO À
VIDA E OS MARCOS HISTÓRICOS DE RETOMADA DOS DIREITOS
NATURAIS-HUMANOS
O velamento do conteúdo em detrimento da forma na criação do Direito provoca,
inevitavelmente, uma paralela onda de sofrimento às pessoas. E mais, com isso também
era abandonada a experiência histórica iniciada, especialmente, a partir do povo grego.
Tais movimentos provocam desvios e descontroles no exercício do poder político no
6315
seio do Estado Civil. Assim, surgem movimentos que buscam resgatar o horizonte
histórico esquecido e, ao mesmo tempo, denunciam atrocidades cometidas pelos
representantes do Estado, violando, inclusive, o direito à vida. Essa não proteção
legitima, de certa forma, a revolta e a revolução, pois constitui, no seu nascedouro, a
única alternativa para o não cumprimento das normas de direito positivo.
Um desses marcos históricos foi a Declaração de independência dos Estados Unidos da
América do Norte. Merece destaque que em 07/06/1776, a partir de um texto elaborado
por Richard Henry Lee, houve a comunicação formal ao monarca inglês e a toda GrãBretanha da pretensão de independência das então colônias norte-americanas. No
entanto, o texto da Declaração de independência foi aprovado pelo Congresso
Americano em 04/07/1776, e que pretendia justificar a independência frente à
humanidade. Esse documento nasce, ao lado de sua importância política para o
desenvolvimento da soberania popular, como um marco de evidência de “direitos
inerentes a todo ser humano, independente das diferenças de sexo, raça, religião, cultura
ou posição social.”[23] O sofrimento, como um elemento que motiva e justifica as
mudanças, aparece no texto aprovado pelo Congresso Americano:
(...) Consideramos as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os
homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis,
entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. (...) Toda vez que alguma
forma de governo torna-se nociva à consecução dessas finalidades, é direito do povo
alterá-la ou aboli-la, e instituir uma nova forma de governo baseada nesses princípios.
(...) Mas quando uma longa série de abusos e usurpações, (...) revela o desígnio de
submetê-los a um despotismo absoluto, é seu direito e seu dever livrar-se desse governo.
(...) Tal foi o paciente sofrimento destas colônias. (...). [24]
Esse documento é o desaguadouro de todo o percurso histórico desenvolvido até o
momento: o sofrimento como uma justificativa para as mudanças e a busca pela
efetividade dos direitos naturais-humanos. Eles são auto-evidentes justamente pelo fato
de não serem criados por nenhum documento. Pelo contrário, eles compõem o modo de
ser das pessoas. Aí um nítido contorno de direitos naturais.
Vislumbra-se, de certa forma, a continuidade histórica da preocupação em proteger
determinados direitos naturais, os quais, pelas características examinadas, não tem força
para se fazer respeitar. Dessa forma, eles assumem o conteúdo dos Direitos Humanos e
surgem nessa época na Declaração de Virgínia de 12 de junho de 1776 que representa o
seu nascimento com essa denominação.
A confirmação dessa incorporação dos direitos naturais fica evidenciada no artigo
primeiro deste documento quando refere a igualdade e a liberdade de todos os seres
humanos, por sua natureza, os quais são titulares de certos direitos inatos que não
podem ser renunciados por nenhum documento de organização pelo ingresso no estado
de sociedade.[25] Isso é uma comprovação da hipótese lançada inicialmente de que os
direitos humanos são uma decorrência histórica dos direitos naturais, os quais recebem
tal categorização muito antes da Declaração de 1948.
Outro marco histórico é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
Fica claro no seu preâmbulo o percurso histórico dos direitos naturais e as justificativas
para que não se observem as normas positivas, pois “a ignorância, o descuido ou o
6316
desprezo dos direitos humanos são as únicas causas das desgraças públicas e da
corrupção dos governos”. Lembrando a liberdade e a igualdade no artigo primeiro,
refere expressamente no artigo segundo: “a finalidade de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. (...).”[26] O
reconhecimento dos direitos do homem e do cidadão nada mais é do que a confirmação
expressa dos direitos naturais. Simone Goyard-Fabre confirma essa constatação: “a
idéia dos direitos do homem não nasceu ex nihilo com a Declaração solene de 1789.
Ela constitui mesmo um filosofema chave, no século XVII, na obra dos jurisconsultos
da escola do direito natural; (...). Os direitos naturais de cada um necessitam da
mediação do direito para adquirir um valor jurídico que não possuem por si só.”[27] A
transformação dos direitos naturais em direitos humanos é uma decorrência histórica do
seu crescente reconhecimento pelo Direito[28]. No imaginário das pessoas, sob a
influência da onda do positivismo jurídico, os direitos (subjetivos), aí incluídos os
direitos naturais-humanos, foram recebendo uma gradativa valorização, mediante a
inclusão nas Declarações que foram surgindo nesta época.
É necessário observar que a Declaração de 1789 reconheceu a liberdade e a igualdade.
No entanto, a fraternidade não foi contemplada, inclusão que ocorreu em 1948, com a
Declaração Universal de Direitos Humanos. O andar dos fatos e “o sofrimento como
matriz da compreensão do mundo e dos homens”[29], provocou uma evolução sem
precedentes em direção à proteção dos direitos humanos. Esse caminhar abriu espaço
para a inclusão – além dos dois valores já consagrados anteriormente – da fraternidade,
depois reconhecida pela chamada “dignidade da pessoa humana”.
5 A DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS E O
TERCEIRO MODELO: O DIREITO BUSCANDO SEU FUNDAMENTO
AXIOLÓGICO
Os direitos humanos – como a expressão histórica dos direitos naturais – representam
um espaço constantemente aberto à discussão e desenvolvimento de um conjunto de
condições humanamente necessárias ao pleno desenvolvimento de homens e mulheres.
Por isso, no seio da Carta das Nações Unidas, especificamente em seu artigo 55, são
estabelecidas as diretrizes gerais para a elaboração de uma declaração universal,
preocupada em possibilitar condições de estabilidade e bem-estar, “baseadas no respeito
ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos”, ou seja, “o
respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para
todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”.
Este conteúdo da Carta das Nações Unidas está lastreado na memória das atrocidades e
maldades cometidas pelos “humanos” contra os humanos. Auschwitz parece ser um
exemplo para a consolidação do conjunto de fatos históricos que estão subjacentes à
criação das Nações Unidas e, posteriormente, para a construção da Declaração
Universal dos Direitos Humanos de 1948. Reyes Mate refere algumas particularidades
de Auschwitz destacando que as investidas realizadas neste espaço estavam preocupados
em apagar a própria memória, pois ali “não foi apenas uma gigantesca fábrica de morte,
mas também um projeto de esquecimento. Tudo já estava pensado para que não ficasse
nenhuma pista, por isso, todos tinham que morrer e os cadáveres deveriam ser
queimados, os ossos moídos e logo aventados”.[30] Apesar desta tentativa, a memória
6317
não se apagou por completo e continua viva, mesmo que tenha sido jogada ao vento,
como se ele não fosse capaz de produzir ecos permanentes nas pessoas e gerações que
se seguiram.
Dentro deste arcabouço e com o intuito de tais violências não se repitam, em 10 de
dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas aprova o documento da
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Durante esse período, o documento tem
gerado polêmica, pois recomenda a observância de um conteúdo preocupado com o
atendimento qualificado de condições humanamente necessárias. Assim, mesmo que
seja uma recomendação, ela deverá ser tomada como se fosse uma ordem dada aos
humanos para que haja um respeito mútuo. Além disso, que o gênero humano observe
os parâmetros da Declaração como verdadeiro imperativo (na linguagem kantiana),
preocupado em legitimar e validar as decisões que venham a ser tomadas. Tal situação
foi percebida por Adorno quando apresenta a necessidade de um novo imperativo
categórico a partir de Auschwitz: “Hitler impôs aos homens um novo imperativo
categórico para seu atual estado de escravidão: o de orientar seu pensamento e sua ação
de modo que Auschwitz não se repita, que não volte o ocorrer nada semelhante”.[31]
Adorno pretendeu com a incorporação própria do imperativo de Kant, criar uma espécie
de barreira para que a situação de atrocidade não se repita, protegendo os humanos de
suas próprias investidas anti-humanas. Este o papel da Declaração de 1948.
Cabe observar que dentro do paradigma positivista, onde muitos juristas ainda
concebem o modo de fazer Direito, o documento parece não apresentar força vinculante,
eis que apenas recomenda. Tal perspectiva é equivocada: “reconhece-se hoje, em toda
parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua declaração em
constituições, leis e tratados internacionais, exatamente porque se está diante de
exigências de respeito à dignidade humana, exercidas contra todos os poderes
estabelecidos, oficiais ou não.”[32] Esse é o modo mais razoável de compreensão da
matéria e reflete a essência jusnaturalista, que comungando da mesma estrutura, não
necessita de nenhuma norma objetiva para ser respeitada.
A Declaração de 1948 é uma síntese da universalidade dos direitos humanos, onde
semelhanças e diferenças se associam em nome do gênero humano. Além disso, ela
abriu o caminho para o desenvolvimento de outros documentos, voltados ao
aprofundamento do seu propósito: “a este fenômeno da diversidade de meios e
identidade de propósito há que agregar a gradual superação de objeções clássicas como
a pretensa competência nacional exclusiva ou domínio reservado dos Estados, e a
concomitante asserção da capacidade de agir dos órgãos de supervisão
internacionais.”[33] A partir do documento de 1948, a matéria relativa aos direitos
humanos provocou mudanças na atitude dos particulares, assim como nos
representantes dos poderes públicos e dos Estados, que abriram espaço para a
incorporação desse conteúdo.
O documento de 1948 também começou a fazer parte do modo de produção do Direito,
especialmente a partir de uma construção hermenêutica preocupada em resolver
razoavelmente os conflitos envolvendo humanos e assuntos correlatos. Ele passou a ser
buscado como condição de validade de decisões judiciais não apenas no plano externo,
mas também pelos tribunais dos Estados. O tema dos direitos humanos tem provocado
uma verdadeira simbiose entre o Direito Internacional e o Direito Interno, onde o
primado de um sobre o outro é colocado de lado, dando preferência pela norma que
6318
melhor protege os direitos humanos, “da norma mais favorável às supostas
vítimas.”[34]
A concepção sobre os direitos humanos, a qual, segundo Antônio Augusto Cançado
Trindade[35], é tão antiga quanto a própria história das civilizações, apresenta-se como
a confirmação da hipótese inicial: a origem jusnaturalista dos direitos humanos.
Tomando-se os pressupostos históricos examinados, é possível constatar a existência de
direitos anteriores e independentes da estrutura do Estado. A caracterização da
universalidade é fruto dessa origem jusnaturalista, surgindo com força especial na
Declaração de 1948 e nos dois pactos de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Políticos.
Ela também foi uma das marcas fundamentais das duas Conferências Mundiais de
Direitos Humanos (Teerã, 1968 e Viena, 1993).
O conteúdo do citado artigo 55 da Carta das Nações Unidas retrata a universalidade dos
direitos humanos. No entanto, além disso, abre caminho para outra caracterização, hoje
correlato, a da chamada multiculturalidade. Não há direitos humanos na unidade. Pelo
contrário, é a diversidade o verdadeiro espaço para o seu desenvolvimento. Tal
preocupação está na essência dos diversos documentos relativos aos direitos humanos
que surgiram especialmente a partir de 1948.
Nessa linha, merece destaque o Tratado que estabelece uma Constituição para a
Europa[36], assinado em 29 de outubro de 2004, em Roma (esse documento é
contestado por alguns países europeus). Esse documento refere em seu preâmbulo que a
Europa está “unida na diversidade” e “oferece as melhores possibilidades de,
respeitando os direitos de cada um e estando cientes das suas responsabilidades para
com as gerações futuras e para com a Terra, prosseguir a grande aventura que faz dela
um espaço privilegiado de esperança humana”. Ao lado da pretensiosa certeza assim
esboçada, fica registrada uma flagrante discriminação: a Europa se apresenta como o
único espaço geográfico onde as pessoas terão condições de viver melhor. Mostra a
flagrante europeização, em detrimento dos outros povos e Estados, seja ocidentais ou
orientais.
Ao lado disso, o preâmbulo do texto desta Constituição se inspira “no patrimônio
cultural, religioso e humanista da Europa, de que se emanaram os valores universais que
são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana”. Aqui fica registrada a
construção jusnaturalista dos direitos humanos – embora parciais, pois inspirados
apenas na Europa – da qual se mostrou a contextualização histórica. Outro aspecto
relevante, e que conforta a idéia do sofrimento como o motor dos direitos humanos,
refere-se ao convencimento “de que a Europa, agora reunida após dolorosas
experiências, tenciona progredir na via da civilização, do progresso e da prosperidade a
bem de todos os seus habitantes, incluindo os mais frágeis e os mais desprotegidos,
(...).” Aqui aparece o reconhecimento expresso do sofrimento e da experiência histórica
que ela legou para o desenvolvimento de mecanismo à proteção dos direitos humanos.
Nesse cenário, cujo documento precursor completou em 2008 seus 60 anos, abre-se a
possibilidade para o fortalecimento do terceiro modelo. Cabe observar que não é um
modelo novo e com contornos inéditos. Trata-se de um arcabouço esquecido ao longo
da construção da história recente, mas já conhecido pelos antigos, especialmente a
história greco-romana. Ele é revisitado por John Mitchell Finnis: os direitos humanos
6319
são sinônimos de direitos naturais e representam os direitos morais fundamentais e
gerais ou direitos morais particulares ou concretos.[37] É o resgate da velha sabedoria
grega, norteada pela razão prática na construção da resposta mais razoável para a
satisfação dos requisitos peculiares de cada caso concreto.
A partir do princípio de que “todos têm direito à igualdade de consideração e respeito”,
Finnis apresenta os bens humanos básicos[38] e os requisitos da razoabilidade
prática[39] como a expressão dos direitos naturais-humanos. A partir desses dois
conjuntos, torna-se possível a formulação de padrões morais gerais que representam os
direitos humanos ou direitos naturais. Não se pensa em direitos humanos absolutos, mas
em “aspectos do real bem-estar de indivíduos de carne e osso.”[40] Com a inclusão
desses ingredientes, marca do terceiro modelo, o elemento substancial (de conteúdo)
passa a ser preponderante sobre o instrumental (a forma). Além disso, as decisões sobre
os direitos humanos deverão nortear-se pela razoabilidade prática a fim de apontar
decisões adequadas e outras que não deverão ser praticadas, posto contrárias ao pleno
florescimento humano.
Para dar conta das múltiplas facetas assim apresentadas, os direitos humanos passam a
abrigar os direitos individuais e os sociais, econômicos e culturais devidamente
harmonizados. “Esta concepção parte dos direitos humanos como uma unidade
indivisível e busca o equilíbrio e a harmonização entre eles.”[41] A proposta de John
Finnis deverá ser examinada em seu conjunto, formando uma unidade, onde se busca
uma constante harmonização. O desafio que se desenha frente a esse quadro e o respeito
ao multiculturalismo é o equilíbrio e a harmonização, a fim de serem respeitadas as
diferenças regionais e locais. Isso se mostra, segundo Martín Risso Ferrand, ainda muito
primitivo em termos latinoamericanos, onde prepondera um enfoque parcial,
esquecendo-se da sua globalidade. No caso da Europa, a concepção sobre os direitos
humanos já está mais preocupada com um sistema único e indivisível, graças a diversos
fatos históricos: as duas guerras mundiais; a Guerra Fria e a divisão da Europa; o
processo de consolidação continental originando a União Européia; a queda do império
soviético, a divisão da URSS e a queda do muro de Berlim. Essa experiência produziu
uma visão acerca dos direitos humanos mais sólida e um conteúdo especialmente
relevante.
Já no espaço Latino-americano, os anos oitenta tiveram uma significativa importância,
pois representaram o momento de substituição das ditaduras pelo modelo democrático.
Com isso, ficaram evidenciadas as consequências violentas provocadas pelos regimes
ditatoriais e as flagrantes violações dos direitos humanos.
Novamente fica marcado “que a associação dos direitos humanos com um passado mais
ou menos recente, trágico e injusto, e sua formulação como um reclamo de justiça.”[42]
O sofrimento surge como um elemento motivador para a mudança e a valorização do
conteúdo dos direitos humanos. A falta de um horizonte histórico mais aprofundado
provoca na América Latina uma visão muito centrada nas violações do passado. Com
isso, são esquecidos alguns aspectos importantes, tais como: “(a) a visão global e total
dos direitos humanos e b) a projeção sobre o presente e o futuro dos direitos
humanos.”[43] A visão multicultural dos direitos humanos deverá aproximar as
histórias da Europa e da América Latina, provocando um enriquecimento recíproco.
Embora se tenha dois territórios distintos, com características peculiares, a preocupação
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com os direitos humanos é única, eis que as pessoas são essencialmente iguais.
Portanto, o projeto de sua efetivação passa pelo mesmo caminho.
Apesar dos seus 60 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos reflete a
ambiguidade da modernidade, que expressa os avanços e retrocessos em relação ao
tema.: eles surgem como uma resposta mais forte às atrocidades e violações cometidas,
especialmente, a partir da Primeira Guerra Mundial e, “ao mesmo tempo, constituem-se
em ethos político e jurídico de liberdade, que em sua universalidade e seu espírito
emancipacionista,”[44] representam a marca característica desse período histórico.
Apesar disso, é necessário evitar exageros na busca pela sua implementação efetiva e
promover “a desistência de qualquer extrapolação ideológica progressista dos direitos
humanos.”[45] Os exageros provocarão malefícios semelhantes aos experimentados nos
diversos momentos em que os direitos humanos foram desconsiderados. Esse é o
horizonte histórico projetado pela Declaração de 1948 e que deverá influenciar a
caminhada da humanidade no século XXI, a fim de evitar as atrocidades e barbáries já
cometidas pelos homens e mulheres contra seus semelhantes.
A universalidade e o multiculturalismo serão os dois orientadores para o
desenvolvimento dos direitos humanos. No entanto, o perigo que ronda essa perspectiva
é o imperialismo cultural, focado somente no lado ocidental e nele na Europa e os
Estados Unidos da América. Existe uma forte tendência desse fenômeno, notadamente
em termos latino-americanos. Muitas vezes a importação de comportamentos culturais
europeus e norte-americanos se dá sem a devida precaução e adaptação (quando
possível), como se fosse possível transplantar comportamentos e culturas de um lugar
para outro sem dificuldades. Otfried Höffe alerta para o que ele chama de
“europeização”, provocando um verdadeiro etnocentrismo. Isso já ocorreu em outros
momentos históricos, tais como, na Antigüidade, o caso dos gregos e, mais tarde, dos
romanos; já na era Moderna, com as potências colonizadoras.[46] Portanto, o desafio
que se tem é a construção da efetiva identidade da universalidade dos direitos humanos.
Vale dizer, cada pessoa, cada humano, é convocado a efetivar o que já existe há 60
anos: Declaração Universal dos Direitos Humanos. Não se trata de uma Declaração para
o Ocidente. Pelo contrário, ela se diz “Universal”, isto é, sem distinção de nenhuma
espécie. Entretanto, como a implementação e a gradativa conquista dos direitos
humanos é movida pelo sofrimento, tudo indica que a americanização e a europeização
representam no século XXI uma peculiar forma de tirania cultural, econômica, política e
social (não necessariamente nessa ordem). Esses fenômenos representam uma
sofisticada forma de violência, que gerará atrocidades de muitas espécies. Vislumbra-se,
portanto, uma nova forma, muitas vezes velada, de sofrimento, cujo enfrentamento é um
desafio coletivo (universal) para que se possa chegar a uma sociedade onde o elemento
comum – as pessoas – seja respeitado na sua integralidade, sem considerações
particulares.
Esse horizonte projetado para o hoje e o futuro deverá merecer a influência do contexto
histórico e da experiência já vivenciada. Vale dizer, verificou-se a origem jusnaturalista
dos direitos humanos e, com isso, o horizonte histórico necessário, mas não suficiente,
para a condução dos humanos a um espaço temporal aonde cada pessoa venha a ter
respeitado seus direitos mínimos por ser pessoa, independente de sua origem, raça,
sexo, cor e credo. Não se pensa numa sociedade platônica, mas num contexto real e
capaz de abrigar as pessoas com suas diferenças e semelhanças, onde a dignidade seja o
princípio vetor.
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CONCLUSÃO
O enlaçamento dos três modelos permite que se responda positivamente ao problema
formulado inicialmente. Vale dizer: a concepção atual dos direitos humanos é uma
decorrência histórica da expressão dos direitos naturais.
O gradativo desenvolvimento de cada um dos modelos mostra que os direitos humanos
sempre procuraram proteger os direitos naturais, destacando-se o direito à vida e a
dignidade humana. John Finnis mostra uma síntese dos modelos, destacando a
necessidade de aliar o direito e a mora, a forma com o conteúdo.
A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 procurou refletir essa experiência
histórica, a fim de evitar novos sofrimentos, como aqueles produzidos especialmente
durante os dois grandes conflitos mundiais. Portanto, o sofrimento é o elemento
motivador principal da fala dos direitos humanos.
No entanto, apesar disso, não foi ainda o elemento suficiente, pois muitos povos ainda
são menosprezados por outros; muitas pessoas não têm respeitado a sua dignidade; as
guerras (não mundiais, mas graves conflitos armados); a superioridade econômica de
alguns Estados em detrimento da falta de recursos financeiros para o atendimento dos
integrantes do bem comum de outros; as perseguições por motivos religiosos, raciais e
culturais; a dicotomia entre o ocidente e o oriente. Tudo evidencia que os direitos
naturais-humanos ainda têm um longo caminho a percorrer até que os humanos se dêem
conta da necessidade de respeitar alguns limites.
A experiência histórica que desembocou na Declaração de 1948, mostrando algumas
lições e sofrimentos, ainda não receberam a suficiente atribuição de sentido para gerar o
aprendizado de não repetição de algumas condutas. O tempo ainda deverá continuar
irradiando os efeitos, a fim de que se possa construir um espaço adequado para a
efetividade dos direitos humanos. A racionalidade prática apresenta-se como uma
possibilidade, a partir das contribuições de John Finnis, para trazer os direitos naturais
na construção de suportes para a implantação dos direitos humanos.
E, além disto, é fundamental dar ouvidos à proposta do imperativo categórico
apresentada por Adorno, dentro da sua forma de concebê-los. Vale dizer, os humanos
devem olhar para a luz da tradição, ouvindo-lhe os ensinamentos, colocando em prática
a aprendizagem, a fim de valorizarem cada pessoa pela sua dignidade. Nenhuma pessoa
é uma coisa, por isso não tem preço. Cada ser humano tem na sua essência a dignidade.
Quando as pessoas perceberem tal composição, estarão respeitando a humanidade de
cada humano, independente de suas características físicas, sociais, culturais, econômicas
ou políticas.
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[1] HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Traduzido por Márcia Sá Cavalcante
Schuback. 10. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, Parte II, § 47, p. 20.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 5. ed.
rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 41.
[3] Ibidem, p. 42.
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 4. ed. Tradução de Mário da Gama Kury.
Brasília: UnB, 2001, 1180a.
[5] GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. Tradução de António Manuel
Hespanha e Manuel Luís Macaísta Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian,1995, p. 75-6.
[6] LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: Lições Introdutórias. São
Paulo: Max Limonad, 2000, p. 39-40.
[7] LOPES, José Reinaldo de Lima, op. cit., p. 40.
[8] SÓFOCLES. Antígona. Introdução, versão do grego e notas Maria Helena da Rocha
Pereira. Brasília: UnB, 1997, 450-455, p. 45.
6324
[9] SÓFOCLES. Antígona. 685-720, p. 54-5.
[10] BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. 4. ed. Tradução de Carlos Nélson Coutinho.
Rio de Janeiro: Campus, 1991, p. 34.
[11] HOBBES, Thomas. De Cive – Elementos filosóficos a respeito do cidadão.
Tradução de Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 55.
[12] Idem. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil.
Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova
Cultural, 1999, p. 113.
[13] Conforme estudo preliminar desenvolvido por Miguel Angel Rodilla, inserido em
HOBBES, Thomas. Diálogo entre un filósofo y un jurista y escritos autobiográficos.
Tradução de Miguel Angel Rodilla. Madrid: Tecnos, 1992, p. XVI.
[14] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia
Política. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 4. ed. 1. reimpres. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p. 38-9.
[15] HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 208-9.
[16] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na Filosofia
Política Moderna, op. cit., p. 49.
[17] HOBBES, Thomas. Leviatã, op. cit., p. 178.
[18] BOBBIO, Norberto e BOVERO, Michelangelo, op. cit., p. 51. Interessante
observar a interpretação para essa postura dada por José Reinaldo de Lima Lopes:
“apenas em nome da paz e da ordem (segurança) pode-se contestar a autoridade, ou
seja, é quando a autoridade se torna incapaz de manter um mínimo de ordem que ela
deixa de ser autoridade. Em poucas palavras, a perda de eficácia significa perda de
legitimidade”. O Direito na História, op. cit., p. 192.
[19] Para aprofundamento, sugere-se ENGELMANN, Wilson. Crítica ao Positivismo
Jurídico: Princípios, Regras e o Conceito de Direito. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 2001.174p.
[20] BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes, op. cit., p. 139-50.
[21] LAFER, Celso. A Reconstrução dos Direitos Humanos: um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. 6. reimpres. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
35-6.
[22] LAFER, Celso, op. cit., p. 47.
[23] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, op.
cit., p. 99-107.
[24] Ibidem, p. 109.
6325
[25] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos, op.
cit., p. 50.
[26] Ibidem, p. 158.
[27] GOYARD-FABRE, Simone. Os Fundamentos da Ordem Jurídica. Tradução de
Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. XXX-XXXV.
[28] Sobre este tema, consultar: DOUZINAS, Costas. O ‘FIM’ dos Direitos Humanos.
Tradução de Luzia Araújo. São Leopoldo: Unisinos, 2009. 417 p.
[29] COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 56-7.
[30] MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz: atualidade e política. Tradução de Antônio
Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 7.
[31] ADORNO, Theodor W. Negative Dialektik. Jargon der Eigentlichchkeit. IN:
Gesammelte Schriften. Frankfurt am Main: Druck Beck’sche Buchdruckerei, 1998,
Band 6, p. 358.
[32] COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 226-7.
[33] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. O Direito Internacional em um Mundo
em Transformação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 637-8.
[34] Ibidem, p. 642.
[35] TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos
Direitos Humanos. 2. ed. rev. e atual. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003,
vol. I, p. 33-6.
[36] Jornal Oficial nº C 310 de 16 de dezembro de 2004, Disponível em http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:C2004:310:0003:0010:PT:PDF.
Acesso em: 22 jan. 2009.
[37] FINNIS, John Mitchell. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes.
São Leopoldo: Unisinos, 2007, p. 195-6.
[38] A vida, o conhecimento, o jogo, a experiência estética, a amizade, a razoabilidade
prática e a religião.
[39] Um plano coerente de vida, não dar preferência a valores e pessoas, eficiência
dentro dos limites do bom senso, o bem comum.
[40] FINNIS, John Mitchell, op. cit., p. 219-20.
[41] FERRAND, Martín Risso. Los derechos humanos como concepto mítico. IN:
Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano. Montevidéu: Konrad Adenauer
Stiftung, 2008, p. 143.
6326
[42] Ibidem, p. 144-5.
[43] Ibidem, p. 145.
[44] BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos Direitos Humanos. Tradução de Dankwart
Bernsmüller. São Leopoldo; Unisinos, 2000, p. 41.
[45] Ibidem, p. 47.
[46] HÖFFE, Otfried. Derecho intercultural. Tradução de Rafael Sevilla. Barcelona:
Gedisa, 2000, p. 63-4.
6327
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