Ismael e Ismael - Externato das Escravas do Sagrado Coração de

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Ismael e Ismael
Chamem-­‐me Ismael. Constantino, apesar de ser o meu verdadeiro nome, não condiz comigo. Lembra-­‐me as figuras históricas, sempre com nomes complexos, que tanto trabalho dão aos pobres estudantes para decorar. Apesar de ter nascido em 1980 e de já ter quinze anos, sonho ser como Ismael, o protagonista do meu livro predileto. Ambos possuímos cabelos cor de limão, que se desfazem em revoltos caracóis, e olhos azulados, que refletem a luminosidade das águas do mar. Nos dias de tempestade, escurecem um pouco e perdem brilho, mas, quando chega o verão, a luz solar ilumina-­‐os. Passamos os nossos dias entre as rochas da praia e nas dunas, sonhando com o que está do outro lado do oceano. Somos sagazes e destemidos, não nos deixando afundar nem pela onda mais encrespada. Certo dia, em que as ondas bailavam sempre ao som da mesma cantiga, desmaiando em branquíssima espuma, acordei com o coração a bater descompassado, estendido no chão do meu quarto e banhado em suor. A janela estava entreaberta, dando passagem à luz do sol, que trazia consigo o calor matinal. Contudo, enregelado, sentia-­‐me tremer como se estivesse na Dinamarca, perdido entre abetos revestidos por uma espessa camada de neve. O pesadelo que tivera parecera demasiado real. Nunca permitiria à minha imaginação criar tal cenário. Ismael em perigo… no mar alto… numa jangada frágil… sozinho… perdido… retirado do verdadeiro lugar a que pertence… Depressa me dirigi à estante. O velho e o mar, Titanic, A vida de Pi. Em qual deles teriam prendido Ismael? A única forma de descobrir era aventurando-­‐me em cada história e deixando todas as palavras fluir dentro de mim, transportar-­‐me para um outro mundo. Debrucei-­‐me sobre O velho e o mar. Um homem velho, já com a cara enrugada pelo tempo, lutava no alto-­‐mar, com todas as suas forças, contra um enorme espadarte e recusava deixar-­‐se vencer. Apesar disso, lá ia eu, na canoa que baloiçava cadenciadamente nas águas serenas, auxiliar o pobre homem indefeso, prestes a mergulhar na escuridão do oceano. Coloquei toda a minha força nos remos. Fi-­‐los rasgar as águas com movimentos rápidos que fizeram o pequeno barco, em poucos segundos, atingir o batel do velho pescador. Logo me lancei em seu auxílio, espetando vezes sem conta um arpão nas escamas suaves do peixe, fazendo-­‐o, ao fim de bastantes tentativas, contorcer-­‐se até ficar imóvel. Santiago, o pescador já de idade avançada, agradeceu-­‐me e convidou-­‐me para jantar com ele, como recompensa. Não pude aceitar. Não podia atrasar-­‐me, pois isso podia significar perder o meu amigo. Desta maneira, delicadamente, respondi-­‐lhe: – Companheiro, ficará para outra vez. Voltarei cá, prometo. Quem sabe que rumo daremos à sua história! Obrigado por me deixar entrar no seu mundo. Por aqui as tempestades não têm sido frequentes, pois não? – Não, meu filho. O mar tem estado muito sereno. Espero que continue desta maneira, pois já há tantas tempestades na vida que não precisamos de mais. Que Deus me proteja e a ti não te desampare. Adeus. Aqui Ismael não estava. Tinha de me apressar, perante o perigo iminente. Tinha-­‐me perdido completamente com o velho Santiago, entre páginas e páginas. Agora, Titanic era a 1 palavra que estava escrita no retângulo de papel, com letras grandes e sugestivas. Mergulhei num novo oceano, desta vez tremendamente agitado. Um vendaval gélido fez-­‐me arrepiar. O meu chapéu voou e não o consegui agarrar. A minha canoa era instável e quebradiça, pois usara-­‐a nas minhas aventuras durante anos a fio. Facilmente seria engolida pelo oceano, tal como eu. Subitamente, avistei uma enorme embarcação com milhares de pessoas alarmadas. Um icebergue!... Tinha que correr. “Força, Ismael, tu consegues”. O meu subconsciente animava-­‐me para continuar, sem olhar para trás por um segundo que fosse. Porém, o icebergue também já estava bastante próximo do barco. Tinha de ser mais rápido. Avancei sem vacilar e gritei a plenos pulmões: “CUIDADO! ICEBERGUE, ICEBERGUE! NÃO AVANCEM!” Nem consegui acreditar no que vi: barco desviou-­‐se e continuou o seu percurso. No meio daquela tempestade, sentia-­‐me verdadeiramente feliz e realizado. Tinha conseguido! Mesmo que Ismael não estivesse ali, salvara milhares de vidas. Por trás da imagem de cada pessoa, havia uma história que eu não permiti que se afogasse. A embarcação parou junto da minha canoa e o comandante, agradecido, veio ter comigo e, tal como o velho pescador, não tinha palavras. Perguntei àquele homem de barba espessa e grisalha se o meu amigo ia a bordo. Ele disse-­‐me para ver pelos meus próprios olhos. Assim fiz. Bebés choravam no colo das mães desesperadas, meninos entusiasmavam-­‐se com a tempestade, homens escreviam em velhos cadernos borratados pela água, idosos conversavam amigavelmente. Exceto Ismael. Mergulhei, então, noutro mundo. A vida de Pi. Uma família que possuía um jardim zoológico decidira mudar-­‐se para o Canadá, a bordo de um grande cargueiro. Subitamente, uma tempestade fez com que a embarcação naufragasse e Pi viu-­‐se num pequeno barco salva-­‐vidas, apenas na companhia de uma zebra, um orangotango, uma hiena e um tigre feroz e corpulento, longe da família que não conseguiu livrar-­‐se dos perigos. A minha canoa enferrujada não conseguia mover-­‐se perante a agitação do oceano. Temi o pior. E se Ismael se tivesse afogado juntamente com a embarcação? Não podia pensar desta maneira: ele é valente e enérgico, nunca permitiria que as águas do mar o engolissem. Além disso, nada muito bem, pelo que conseguiria vencer a maré implacável. Continuei a remar com todas as minhas forças. Senti-­‐me enfraquecido, mas não podia parar. É a vida de Ismael que está em jogo. A canoa ia cortando o impetuoso oceano indignado, já quase a quebrar-­‐se ao meio. “PI! ESPERA POR MIM!”, gritei. Contudo, não obtive qualquer resposta. O ruído das ondas abafou a minha voz. Gritei enquanto manobrava a canoa. Não via Ismael em lado nenhum! Onde é que ele se meteu? Mergulhei nas águas transparentes, observando as profundezas do oceano. Tubarões ameaçadores, pequenos peixes coloridos, algas verdes flutuando. Ismael não está neste mundo inaudito em que se movem todas as variedades de seres aquáticos. Tinha que alcançar Pi e os seus companheiros de bordo. Num ato inconsciente, comecei a nadar velozmente. Os meus braços cortavam a água e as minhas pernas batiam ininterruptamente. Neste momento, facilmente seria confundido com um verdadeiro peixe. Para meu espanto, ao fim de pouco tempo, algo me impediu de continuar os meus movimentos. Consegui! Agarrei-­‐me à borda do pequeno barco e usei as forças que ainda me restavam para me erguer. Quando levantei a cabeça, um orangotango simpático cumprimentou-­‐me à sua maneira. De súbito, o tigre rugiu, assustando-­‐me de tal forma que me fez mergulhar de novo no oceano. Umas mãos fizeram-­‐me emergir das águas profundas. 2 Pi. É ele. Só ele e os animais. Nada de Ismael. Tenho que sair daqui. Pi é um rapaz perspicaz e valente, ele conseguirá desembaraçar-­‐se dos perigos. Saí deste mundo em pânico. Onde estará Ismael afinal? Procurei em todos os locais onde o meu amigo poderia estar, mas em vão. Finalmente, confuso e exausto, acordei e olhei através da janela do meu quarto. Um terrível vendaval fazia as palmeiras adejar freneticamente. Alguém me chama! Como é que não percebi? Depressa me lancei sobre as areias da praia, correndo tão rápido quanto as minhas pernas me permitiam até ao mar. Bem ao fundo, avistei um ponto escuro. Ismael. É agora! Nadando rápida e eficazmente, fui ao encontro o meu amigo, que havia sido levado para aquele lugar por uma baleia, Moby Dick. Mal o vi, percebi que se tratava do meu irmão gémeo. Na verdade, não o somos de sangue, mas a amizade sincera é mais forte que todos os genes. Ismael existe mesmo, não é apenas uma personagem de um livro arrumado na minha estante. É o amigo que, saído dos livros e dos sonhos, me veio ajudar a crescer. Também eu passei a ser Ismael. Ana Catarina Manso, n.º 3, 8.ºA 3 BIOGRAFIA Ana Catarina Manso nasceu a 15 de janeiro de 2001, na cidade do Porto, e frequenta o Externato das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Desde os primeiros passos, desenvolveu uma paixão pela leitura, fascinada pelas personagens que saíam das histórias que os pais lhe liam, enquanto ia crescendo e aprofundando o gosto pelas letras. Foi com a avó que, aos três anos, começou a aprender a ler, saboreando a beleza das palavras. A escrita é uma arte que também a maravilha, pois em cada palavra, aparentemente simples, encontra escondidos milhares de mistérios. A primavera reinventa as cores dos jardins, anteriormente cinzentos e despidos. Da mesma forma, na primavera da vida, Ana sente-­‐se renascer em cada leitura. O verão é igualmente muito especial, mas, apesar de adorar construir castelos na areia, por vezes, não é capaz de os terminar antes que uma onda surja e os leve consigo. Assim, procura estar sempre rodeada de amigos que a auxiliem a manter de pé todos os “castelos” erguidos e a caminhar para o verão da sua existência. Também é uma grande apreciadora de música, pois acredita que, ao som do violino, qualquer artista consegue, de forma mais inspirada e confiante, mudar o mundo. Com música, cor, amabilidade e alegria vai, tijolo após tijolo, construindo os alicerces da sua existência, que espera ser digna e feliz. 
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