Truth structured like fiction

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DUNKER, C. I. L. - Discurso e Narrativa na Construção do Saber Sexual. Educação,
Subjetividade & Poder.v.1, p.137 - 160, 2005.
Discurso e Narrativa na Construção do Saber Sexual
Christian Ingo Lenz Dunker 1
1. Introdução
As relações entre análise de discurso e psicanálise estiveram marcadas,
em um primeiro momento, pela semântica e pelo privilégio concedido ao
conteúdo. Surge daí o uso da psicanálise como uma espécie de hermenêutica
capaz de nos informar sobre o verdadeiro significado que subjaz um
discurso, uma manifestação da cultura ou da arte. Significado, remete, nesta
tradição, ao encontro de uma intencionalidade sexual e infantil que moveria
tanto o processo produtivo quanto à recepção do fato discursivo analisado.
Tal uso, cedo mostrou suas limitações. Ele pouco contribui para
a
formulação ou reformulação de problemas metapsicológicos relevantes e
redunda, em última instância, em comprovação ilustrativa ou didática do que
a própria teoria psicanalítica já afirmava com anterioridade.
Isso não quer dizer que a análise da forma discursiva tenha sido
deixada de lado por Freud. Se tomamos por referência textos como A
Interpretação dos Sonhos e principalmente Chistes e sua Relação com o
Inconsciente encontraremos uma preocupação com a análise dos processos
formais de construção lingüística estreitamente ligados ao inconsciente. É
importante lembrar que tais textos e principalmente o que eles indicam em
termos metodológicos, passaram por uma verdadeira submersão diante da
primazia da análise do texto como revelação de suas camadas se sentido
1
Psychoanalist, lecture in Psychoanalitic Theory at University São Marcos – Brazil. [email protected]
1
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tendo por objetivo o desvendamento de uma espécie de subtexto
psicanalítico. Esta tendência encontra um similar na análise clássica da
ideologia, de inspiração marxista, que também trabalha com a superposição
entre infra e superestrutura do texto.
Coube a Lacan, mas antes dele a Jacobson, mostrar que se poderia
extrair da psicanálise uma teoria da análise de discurso que privilegiasse
aspectos formais. No entanto o encaminhamento epistemológico tomado por
Lacan acabou por dirigir sua pesquisa em torno da noção de discurso sem
uma preocupação com distinções quanto aos seus possíveis gêneros. Não
encontramos em Lacan análises que levem em conta, por exemplo, se o texto
é ficcional, referencial ou histórico 2 . Mesmo quando o gênero trágico é
tematizado, no quadro de reflexão sobre a ética da psicanálise, o que
encontramos é justamente uma abordagem inusualmente não formal.
Genericamente falando poderia se dizer que encontramos em Lacan de um
lado micro análises de discurso, como por exemplo a leitura estrutural do
chiste, do sonho e do sintoma, e também macro análises de discurso, quando
o assunto é o discurso em sua estrutura mais geral. É claro que se
estendemos a noção de narrativa de forma que esta inclua toda forma de
relato expressivo o problema deixa de existir. No entanto a experiência com
a fala de pacientes em análise nos autoriza a postular um uso mais restrito da
noção de narrativa, qual seja, pequenas histórias, relatos do cotidiano, que
geralmente encontramos no início da sessão analítica e marcam sua abertura.
Também há utilidade para a noção de narrativa quando pensamos nas
lembranças evocadas ao modo de histórias e no trabalho de rememoração
que se opera sobre elas. Vê-se assim que as narrativas fazem parte do
discurso da sessão psicanalítica, e que o próprio tratamento psicanalítico, em
seu conjunto, pode ser pensado como a construção de uma grande narrativa.
Mas quando diluímos a noção de narrativa na noção de discurso, perdemos
alguma especificidade.
2
Todorov, T. – A origem dos gêneros, in Os Gênreso de Discurso, Martins Fontes, São Paulo,1980.
2
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Barthes 3 dividia a narrativa entre a sua história, composta pela sintaxe
dos personagens e sua ação e o discurso, composto pelos tempos, modos e
aspectos da narrativa. Sabemos que parte do programa crítico lacaniano
implicou em reduzir o privilégio conferido à história, substituindo-o pela
importância do discurso. A verdade ou pertinência da história lembrada, o
realismo da lembrança, como se ele por si só jogasse um papel decisivo na
cura, foi afastado. Ganha-se com isso uma versão menos essencialista de
subjetividade. O que não justifica abrir mão da narrativa mas convida a
abordá-la por uma via discursiva. Esta lacuna já foi apontada por Derrida 4 e
mais atualmente por Major 5 , no que diz respeito à análise do texto da Carta
Roubada. Para estes autores Lacan teria incorrido em uma exclusão
neutralizante do narrador. Ao chamar a atenção para os lugares que os
personagens ocupam na trama Lacan teria deixado de lado a relação entre
personagens e narrador o que acarretaria uma sensível redução na leitura.
Com isso quero chamar a atenção para a possibilidade de
investigarmos, a partir da psicanálise lacaniana, níveis intermediários do
discurso, como é o caso, por exemplo da narrativa. Tal projeto deveria levar
em conta as extensas reflexões de Lacan sobre a ficcionalidade, a função da
referência e sobre a própria história. Por outro lado devemos tornar
compatível a teoria geral dos discursos com uma possível teoria da narrativa,
sem
perder as propriedades específicas da narrativa. Seria interessante
verificar, ainda, como tal abordagem pode incluir desenvolvimentos
posteriores da análise estrutural e do pós estruturalismo, uma vez que é de
tais fontes que Lacan partiu. Nesta medida objetivo desta comunicação é
indicar alguns elementos para uma teoria da análise de narrativas inspirada
no pensamento de Lacan.
3
Barthes, R. – Introdução à análise estrutural da narrativa. In Análise Estrutural da Narrativa, Vozes,
Petrópolis, 1976.
4
Derrida, J. – El Concepto de Verdad em Lacan, Homo Sapiens, Buenos Aires, 1977.
5
Major, R. – Lacan com Derrida, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2002.
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2. Narrativas Freudianas
Costuma-se definir a narrativa como um “texto referencial com
temporalidade representada” 6 . Admite-se que uma narrativa exige uma
seqüência de pelo menos três proposições no curso das quais há pelo menos
uma transformação dos atributos de seu agente.
Os estudiosos da narrativa
tem se deparado com inúmeras dificuldade em isolar seus tipos
fundamentais. Isso deriva da dificuldade de encontrar princípios realmente
formais que organizem o nível narrativo do discurso o que acaba deslocando
o problema para a antigas controvérsias literárias em torno da noção de
gênero. Desta maneira a análise da narrativa acaba por se concentrar em
estratégias de argumentação ou exposição (encadeamento, entrelaçamento,
encaixamento) e estratégias de construção da intriga, baseada no destino
(ação, tragédia,apologética), no personagem (maturação, recuperação,
prova), ou no pensamento (educação, revelação, afetiva). Logo se vê que a
análise da narrativa converte-se no campo quase ilimitado das possibilidades
de construção de estórias, da lógica da construção de heróis e vilões, como
se vê, por exemplo em Bakhtin 7 .
Muitas abordagens de narrativas acabam por se confundir com uma
espécie de análise sintática ampliada, que permite redescrever a forma e a
estratégia do texto Isso certamente contribui para o aprofundamento da
compreensão e interpretação de textos, útil sobretudo na educação e na
transmissão da língua. No entanto esta perspectiva é bastante parcial se
consideramos que o interesse da análise narrativa pode exigir ou ser
intencionado pela transformação do narrador. Este é o caso específico da
clínica bem como da análise de discurso criticamente inspirada. Trata-se
aqui de estudar a narrativa para intervir sobre ela, eventualmente mudar seu
6
Todorov, T. & Ducrot, O – Dicionário Enciclopédico de Ciências da Linguagem, Perspectiva, São Paulo,
1972
7
Bakhtin, M. – Estética da Criação Verbal, Martins Fontes, São Paulo, 2000.
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curso ou alterar a posição do narrador ou do narratário. Intervir sobre a
narrativa durante seu próprio processo de formação. Infelizmente as
perspectivas pragmáticas, ou combinadas ao pragmatismo, não conseguiram
nos desprender plenamente da perspectiva da redescrição do texto.
Voltemos, desta forma, aos breves esboços que podemos encontrar em Freud
sobre a análise de narrativas. É claro que se tomamos narrativa no sentido
mais genérico e ampliado toda a obra de Freud se dedicou à análise de
narrativas: do
Édipo aos sonhos, dos casos clínicos ao exame de
manifestações literárias, da análise dos sintomas à psicopatologia da vida
cotidiana; mesmo o chamado material clínico refere-se sempre a narrativas.
O drama da vida das pessoas tal qual é contado pelas próprias pessoas, é
disso que a psicanálise trata. Como observou Politzer, trata-se do discurso
em primeira pessoa.
Mas se tomamos narrativa em um sentido um pouco mais restrito,
conservando alguma importância para a noção de gênero e para a análise da
forma, nosso campo se vê rapidamente limitado. Destacamos assim duas
formas narrativas que Freud explorou brevemente: as teorias sexuais infantis
e o romance familiar do neurótico.
Vejamos como tais exemplos se
comportam à luz da teoria lacaniana dos discursos. Isso nos servirá para
mostrar certas convergências com categorias da análise de narrativas e ao
mesmo tempo explicitar a própria noção lacaniana de discurso, tal como se
encontra desenvolvida no seminário sobre o Avesso da Psicanálise.
3. O Lugar do Agente
O discurso deve ser considerado basicamente como um sistema de
circulação e repetição. Isso significa que das infinitas possibilidades de
expressão e criação, oferecidas pela linguagem, poucos são os lugares
necessários para delimitar sua estrutura. Temos então a idéia de que o
discurso é composto por lugares que se relacionam logicamente e por
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elementos que ocupam posições dentro destes lugares. Só se pode pensar o
discurso se levamos em conta a mútua dependência entre estes lugares. Ora,
essa dependência implica em relações entre os lugares, por exemplo, só
existirá agente de um discurso se houver um destinatário a quem este se
endereça, só existirá destinatário se houver algo que se produza neste
destinatário, um efeito de discurso. Igualmente só podemos falar em agente
se supomos algo que causa sua ação no discurso.
Comecemos pelo lugar do agente. A escolha não é arbitrária pois é
justamente esta a primeira pergunta que costumamos fazer diante de um
discurso: quem fala ? Era assim que Benveniste definia o discurso, ou seja,
“a língua assumida pelo homem que fala”. Ressaltemos que a definição
remete ao ato de assumir, de tomar para si ou de se apropriar da língua. Ora,
este ato, daí a noção de agente, pode ser feito de diferentes maneiras,
principalmente se observamos que o homem fala antes que este homem fale
e venha a assumir seu lugar como agente. Ou seja os discursos, como rede
sócio simbólica, pré existem em relação aos seres que dele se apropriam.
Não se pode propriamente assumir um discurso sem ocupar o lugar de
agente. Althusser 8 viu como esta assunção reserva um lugar prescrito, um
lugar determinado. Ao assumir tal lugar o sujeito encontra-se portanto
assujeitado por uma dada ideologia de produção de sujeitos. Greimas 9 notou
que o lugar de agente pode ser assumido ao modo de um papel, mas também
ao modo de um ator ou ao modo de um actante, quando se considera
especificamente a narrativa. Pode-se sempre perguntar diante de um discurso
se no lugar de agente encontramos um personagem, um ator ou um autor.
Tais posições correspondem a níveis distintos de apropriação do discurso.
É justamente esta função de autoria que verificamos nesta empreitada
investigativa que Freud chamou de teorias sexuais infantil 10 . Entenda-se por
isso uma narrativa, encontrada habitualmente nas crianças, e que procura
8
Althusser, L. – Aparelhos Ideológicos de Estado, Graal, Rio de Janeiro, 1986.
Rector, M. – Para Ler Greimas, Francisco Alves, São Paulo, 1979.
10
Freud, S. – Teorias sexuais infantis (1908). In Sigmund Freud, Obras Completas, Amorrortu, Buenos Aires,
1988.
9
6
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responder e integrar questões como : De onde vem as crianças ? Qual a
natureza da diferença entre os sexos ? Como as crianças vão parar na barriga
da mãe ? Como elas saem de lá ? Qual a participação do pai neste
acontecimento ? Dizemos que esta investigação da sexualidade é uma
narrativa pois ela responde à três condições lingüisticas 11 :
(a) A narrrativa procura estabelecer dependências temporais entre um elemento e
outro. Por exemplo, a criança ao ouvir barulhos no quarto dos pais liga tais
ruídos à aparição posterior de uma nova criança.
(b) A narrativa se caracteriza pela predominância de verbos de ação. Por
exemplo, ao teorizar sobre a natureza da diferença entre o sexos a criança se
vê obrigada a introduzir uma operação que justifique tal diferença; a ação de
castração, segundo a hipótese freudiana.
(c) A narrativa se caracteriza pelo emprego do tempo perfeito. Por exemplo,
certas crianças imaginam que os pais se encontram sexualmente apenas uma
vez, sendo gerados todos os filhos nesta ocasião.
Mas além destas características a aparição das teorias sexuais infantis
marca uma ruptura da criança em relação ao saber que os adultos lhes
impigem acerca da sexualidade. Surge uma atitude de recusa ou de incerteza
e a procura por estabelecer a sua própria versão sobre os fatos. Isso decorre
do reconhecimento de que, especialmente em relação à sexualidade, os
adultos mentem, ou pelo menos contam apenas uma parte da verdade. Diante
da afirmação de que as crianças são trazidas pela cegonha a criança se
insurgirá na objeção de que ela sabe que não é a cegonha ... mas a garça.
Freud assinala o caráter refratário às explicações fornecidas pelos
adultos. Ou seja, os esclarecimentos, mal ou bem conduzidos pelos adultos
simplesmente se integram e se submetem à lógica investigativa da criança.
Como se ela precisasse encontrar a verdade para o enigma nos termos em
que ela mesma coloca. Isso assinala uma nova posição discursiva, a criança
11
Perroni, M.C. – O Desenvolvimento do Discurso Narrativo, Martins Fontes, São Paulo, 1992: 20.
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não é apenas agente deste discurso no sentido de ocupá-lo como um
personagem, nem como ator, mas fundamentalmente como autor.
Como exemplo disso Freud apresenta a primeira teoria sexual
infantil, qual seja, a de que todos os seres possuem indistintamente falo.
Diante da própria constatação perceptiva do corpo feminino a resposta da
criança será algo como: “o dela ainda é pequeno, mais tarde vai crescer.”
Diante de uma asserção de que de fato as mulheres são privadas de pênis a
resposta da criança pode ser algo como: “mas elas um dia tiveram o seu, e
este lhes foi tirado”. Ou seja, a criança confronta o discurso do adulto em
uma investigação própria. Uma investigação da qual ela se faz agente. Daí a
estreita ligação entre a aparição das teorias sexuais infantis e a criação de
narrativas pela própria criança, que inicialmente as reproduz a partir da fala
dos adultos. Os contos de fadas e narrativas congêneres são portanto
parasitados pela criança. Eles se transformam vivamente na medida em que a
criança pode ser agente-autor do discurso. Dois recursos são usados
ostensivamente para isso: a paráfrase e a polissemia.
Ao escutar que a mulher engravida pois o homem coloca um ovo
dentro dela uma criança interpreta polissemicamente ovo por testículo. O
homem deposita seu testículo na barriga da mãe. Coloca-se em seguida o
problema da renovação contínua dos testículos. Problema que pode ser
resolvido, por exemplo, através de uma paráfrase de uma história infantil.
Assim a criança, que antes relacionava-se com uma história pela
identificação com seus personagens ou se fazia ator desta história, repetindo
a versão dos adultos, torna-se agora autor ou narrador de uma ficção.
3. O Lugar do Outro
Poderia-se ler neste movimento um gesto de autonomia e criação,
mas isso se vê contrabalançado pelo fato de que só há discurso para o outro.
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Só há narrador se houver narratário. De certa forma é o outro que
sobredetermina o que pode ser dito na posição de agente, ou melhor como
algo deve ser dito para que se reconheça nisso um agente em posição de
narrador. Lyotard 12 ressaltou que a função primeira da narrativa é conferir
legitimidade às instituições sociais e isso decorre da utilização de regras que
fixam sua pragmática.
Temos então a posição do outro. Ela é decisiva para que passemos do
nível do enunciado, no qual a criança pode repetir, como agente-ator, as
histórias que escuta, para a posição de enunciação onde ela é reconhecida
como agente-autor. O Outro, diz Lacan, é o lugar de onde o sujeito recebe
sua própria mensagem de forma invertida. Outra maneira de entender este
lugar é pensá-lo como narratário, aquele que supostamente acompanha e
adere à posição prescrita pelo narrador. Assim como o lugar do agente é
indissociável do ato de assumir, o lugar do outro é indissociável do ato de
supor.
A narração começa com a possibilidade desta suposição. Aliás,
suposição ou hipótese remete à palavra latina fictio, de onde vem ficção. Só
há propriamente narração quando suponho que posso mentir ao outro, posso
enganá-lo. A aparição das teorias sexuais infantis tem por precedente a
descoberta, pela criança, que os adultos podem mentir, e que portanto ela
mesma pode usar a linguagem para se separar do outro, criando intimidade e
segredo. A análise de discurso inspirada nos trabalhos de Pecheaux 13
reconhece três relações possíveis do agente com o outro: o discurso
autoritário (polissemia contida), o discurso polêmico (polissemia controlada)
e
o
discurso
lúdico
(polissemia
aberta).
Podemos
localizar
o
desenvolvimento das teorias sexuais infantis como um discurso polêmico,
baseado em conjecturas e refutações que se situam entre a ludicidade da
fantasia e a autoridade do esclarecimento sexual.
12
13
Lyotard, J.F. – A Condição Pós Moderna, José Olympio, São Paulo, 19997:37-38.
Orlandi, E. – Análise de Discurso, Pontes, Campinas, 1999.
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Ao descartar os pais e adultos em geral, como encarnação da
autoridade legítima sobre a sexualidade a criança abre-se para o campo de
uma alteridade anônima. Ela coloca-se a questão do reconhecimento de seu
saber para além da invectiva da autoridade pessoal e eleva seu interlocutor à
condição de uma espécie de oráculo.
Supor é antecipar, conjecturar, prefigurar minha própria mensagem
desdobrada fora de mim, em um lugar que é como o meu (isotopia) e que no
entanto é diametralmente diferente (paratopia).
4. O Lugar da Produção
Mas a relação entre agente e outro só se sustenta e se transforma pelo
que se produz como efeito da circulação do discurso. Isto compõe um
terceiro lugar, o lugar da produção ou do efeito de sentido. Para Lacan este
lugar encontra-se sob uma barra. Isso nos diz que a localização daquilo que
um discurso produz nem sempre é evidente. Se no lugar do Outro o que
temos é sempre um trabalho, o trabalho de interpretação por exemplo, no
lugar do produto temos o que se pode chamar de valor deste trabalho. No
caso do discurso capitalista este lugar é ocupado pela mercadoria. No caso
do discurso da universidade este produto é o saber. No caso da investigação
sexual infantil o seu produto é muito especificamente uma forma de gozo.
Assim como um chiste se define por seu produto, representado pela eficácia
do riso, cada passo da narrativa infantil organiza, delimita e prescreve
modificações na forma de gozo da criança. Por exemplo, uma criança
convicta de que os bebês nascem em decorrência de algo que a mãe come e
são expelidos ao modo de excrementos rapidamente se orientará para tais
objetos extraindo deles uma nova forma de satisfação. Inversamente isso
pode se associar a certas formas de anorexia infantil onde comer, torna-se
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perigosamente incestuoso. Como observou Manguenau 14 , todo discurso tem
um corpo, que define seu ethos próprio. Isso é muito convergente com a tese
de Lacan de que os discursos são aparelhos de gozo.
Chegamos então à idéia de que o progresso da teoria sexual infantil
produz o encontro com possibilidades inesperadas para o próprio narrador.
Possibilidades de gozo que podem alterar o ritmo e continuidade da narrativa
ao ponto de estancá-la. Mas há também a possibilidade de que tais
descobertas alterem o estatuto do narrador. Para Genette e Reuter 15 podemos
considerar o narrador em posição heterodiegética, quando ele aparece como
onisciente, controlando os personagens, o tempo e os acontecimentos da
narrativa. Inversamente se dirá que o narrador é homodiegético quando ele
se identifica com a perspectiva de um personagem ou de um grupo de
personagens. Imaginemos agora uma criança cuja teoria sexual infantil reza
que os filhos são concebidos quando os pais mostram suas nádegas um para
o outro. O efeito desta narrativa poderá implicar dificuldades na hora do
banho ou ainda curiosidade em ver as nádegas dos outros. Suponhamos que
a narrativa prossiga até o tempo em que ela colide com a impossibilidade de
explicar a natureza da diferença entre os sexos, posto que eles são
razoavelmente indistintos do ponto de vista das nádegas. Isso terá por efeito
reduzir a satisfação suposta na mútua exposição. Mas isso desloca também o
narrador da posição heterodiegética, onde seu acesso ao modo de gozo do
outro é irrestrito, para a posição homodiegética, onde se revela que a
suposição acerca do gozo do outro nada mais é do que a efetivação do
próprio gozo do sujeito. A reversão da posição do narrador deve se
acompanhar da reversão no lugar do outro. Em outras palavras, a criança que
antes recusava o saber do adulto e contestava sua autoridade encarnada,
desloca-se agora para uma suposição generalizada de saber. Passa-se assim
do narrador onisciente para o narratário onisciente. Esta posição corresponde
ao que Lacan chamou de sujeito suposto saber. Esta passagem habilita a
14
15
Maingueneau, D. – O Contexto da Obra Literária, Martins Fontes, São Paulo, 1995.
Reuter, Y. – A Análise da Narrativa – o texto, a ficção e a narração, Difel, São Paulo, 2002.
11
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formação de transferências e o ingresso da criança no universo mais formal
da cultura e da sociedade através da sua inscrição nas narrativas disponíveis.
Isso seria coerente com o sentido da relação entre o lugar da produção
e o lugar do sujeito segundo a formulação de Lacan. Há um vetor orientado
que permite a passagem do lugar da produção para o lugar do agente, mas
não do lugar do agente ao lugar da produção. A única exceção a isso se
verificaria no caso do discurso capitalista, definido que está pela
identificação entre o agente e o produto, no processo de fetichização.
5. O Lugar da Verdade
Mas se todo discurso tem um lugar para aquilo que ele produz a
novidade da teoria lacanina dos discursos é supor que o produto do discurso
não equivale à sua verdade. Assim como a verdade da mercadoria está em
outro lugar, na mais valia extraída pelo trabalho do outro. Aqui Lacan
introduz um elemento semântico em sua concepção. Elemento que costuma
ficar de fora nas teorias lingüísticas da narrativa. Isso ocorre porque o
conceito de verdade costuma ser associado ao problema do referente, ou
seja, aquilo ao qual as palavras, as proposições e os discursos se referem em
uma relação de adequação ou correspondência. Lacan tomará outra vertente.
Para ele a verdade de um discurso corresponde mais ao ponto de
incompletude do discurso em relação a ele mesmo. Ou seja, a verdade de um
discurso é o impossível que ele não consegue dominar.
Essa idéia vem da análise do mito tal qual proposta por LéviStrauss 16 . Para este autor o mito deve ser entendido como uma espécie de
máquina lógica que procura integrar perguntas distintas, que admitem
respostas contraditórias, mas todas verdadeiras.
É pelo recurso à verdade como porção não integrável ao discurso,
como representação, que podemos entender o progresso da investigação
16
Lévi-Strauss, C. – A estrutura dos mitos. In Antropologia Estrutural I, Forense Universitário, Rio de
Janeiro, 1988.
12
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infantil. Por exemplo, ao produzir uma corporidade ficcional a criança
produz e dá forma à modos de gozo específicos, decorrentes de articulações
específicas com o Outro. Mas a cada passo desta narrativa ela torna possível
um tipo de transgressão, gerado em uma forma particular de intriga. Intriga
de ação, no caso da fantasia da cena primária, intriga de personagem, como é
o caso da fantasia de sedução e intriga de pensamento, como é o caso da
fantasia de castração. Ora, o que a intriga faz é tornar possível e
representável um acontecimento logicamente impossível. O incesto, em
psicanálise, deve ser assim considerado. Ele é o produto de um mito ou de
uma narrativa: um gozo completo suposto no outro pela sua absorção ao
sujeito. A verdade tem estrutura de ficção. Tal afirmação de Lacan só pode
ser compreendida à luz de sua teoria dos discursos. Isso decorre do fato de
que a verdade jamais se comunica diretamente com o lugar do Outro. Ela,
enquanto lugar, apresenta um vetor dirigido ao sujeito e um segundo vetor
dirigido ao Outro. Se o produto gerado por uma narrativa pudesse ser
reduzido ao lugar da verdade a narrativa não seria mais uma narrativa.
Um bom exemplo disso é a própria teoria sexual infantil que toma
como premissa a existência universal do falo. Ao supor que todos os seres
possuem falo a criança não distingue inicialmente o nível da ficção do nível
imaginário. Posteriormente a narrativa da universalidade do falo colide com
a sua ausência imaginária no corpo feminino. Este evento que nega a
universalidade do falo é a castração. Mas observemos que a castração,
enquanto ficção estruturante, é ao mesmo tempo negação do universal e
negação do falo particular imaginarizado pela criança.
Como observou o crítico literário Wolfgang Iser “o fictício compele o
imaginário a assumir forma, ao mesmo tempo que serve como meio para
manifestação deste” 17 .
Ou seja, a verdade em estrutura de ficção é
indissociável do imaginário dotado de forma. A narrativa, como história, é o
melhor exemplo do exercício desta ficcionalidade.
17
Iser, W. – Teoria da Ficção, Uerj, Rio de Janeiro, 2002.
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6. Mestre, Sujeito, Saber e Objeto
Voltemos agora ao lugar primeiramente examinado do agente. Vimos
que ele pode ser assumido narrativamente pela posição de personagem, ator
ou autor. Vimos ainda que a criança ao se introduzir nas teorias sexuais
infantis autoriza-se na função de narrador. Isso muda sua posição de
impotência inicial diante do Outro culminando no reconhecimento da
impossibilidade de reunir o produto da narrativa à sua verdade história ou
ficcional.
Para encerrar esta comunicação poderíamos mencionar que ao longo
do trajeto narrativo vários elementos vem a ocupar o lugar de agente do
discurso. Inicialmente há a transferência da autoridade do outro para a
criança. Momento em que ela assume o discurso na posição de mestre. Ela
descobre-se senhora da língua na medida em que é capaz de introduzir como
agente de discurso um significante insensato: o falo. É a função de uma
premissa em termos lógicos, ou seja, uma afirmação indiscutida, assumida
como verdadeira para o desenvolvimento da argumentação ou demonstração.
O segundo passo na constituição do discurso narrativo das teorias
sexuais infantis ocorre quando a ação de tal significante mestre se vê
questionada pelos efeitos de gozo que ele mesmo produz. Isso faz aparecer
na posição de agente, não mais uma premissa, mas um sujeito. A melhor
ilustração disso é a fase das perguntas que se desencadeiam à partir de então.
Perguntas que põe em marcha a investigação sobre os meios e fins da
sexualidade, até então estabilizada pelo significante mestre. Podemos dizer
que o discurso da criança passa por uma histericização.
Finalmente o terceiro momento lógico corresponderia à descoberta de
que o saber construído ao longo desta investigação possui um ordenamento
próprio, que se impõe ao próprio sujeito. O saber é o próprio agente da
ficionalidade, saber no lugar de agente que permite a socialização escolar da
14
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criança. Aqui o discurso da criança se aproxima do que Lacan chamou de
discurso universitário, que se caracteriza por ter o saber no lugar do agente.
15
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