Faculdade Santa Marcelina Danilo Bruno Barbosa O Rei e seus padrões de sucesso Trabalho apresentado como requisito parcial para a conclusão da pós-graduação lato sensu Canção Popular: criação, produção musical e performance sob orientação do Prof. Dr. Cacá Machado. São Paulo 2015 O Rei e seus padrões de sucesso Danilo Bruno Barbosa (FASM – Faculdade Santa Marcelina) Resumo: O cenário musical mundial é cercado de tendências e elementos extra musicais. Alguns artistas se destacam ao ponto de influenciar gerações e atingir o mainstream. Ao colocarmos o foco no Brasil é incontestável que Roberto Carlos é o cantor mais bem-sucedido da história da nossa musica popular ao ponto de conquistar os mais consagrados músicos da MPB: “Foi ele quem abriu o caminho em minha mente para o entendimento que eu futuramente viria a ter da arte pop” diria Caetano Veloso (1997, pg. 112). Mas será que há alguma formula exclusivamente musical para tal destaque? Este artigo então analisa e destaca alguns princípios padronizados dentro de três dos seus grandes sucessos, “As Curvas da Estrada de Santos”, “Detalhes” e “Emoções”. Estes recursos replicados e somados a outros conceitos mercadológicos contribuíram para o auge do Rei. Palavras-chave: música. roberto carlos. massa. análise. popular. Abstract: The world music scene is surrounded by trends and extra musical elements. Some artists stand out to the point of influencing generations and reach the mainstream. Putting the focus in Brazil there is no doubt that Roberto Carlos is the most successful singer in the history of our popular music to the point conquer the most acclaimed musicians of the BRAZILIAN POPULAR MUSIC: "He's the one who paved the way in my mind to the understanding that I would be the future of pop art" like Caetano Veloso (1997, pg. 112). But is there any music formula to such prominence? This article then analyzes and highlights some standardized principles in three of its big hits, "As Curvas da Estrada de Santos", "Detalhes" and "Emoções". These replicated resources and added to other marketing concepts contributed to the peak of the King. Keywords: music. roberto carlos. mass. analysis. popular. 1 – Dr Luke, o rei das paradas americanas Há quem diga que existe fórmula para o sucesso. Lukasz Gottwald é um destes, coescritor e co-produtor de mais de 30 Top 10 singles desde 2004 se tornou um dos maiores hitmakers da história da música pop ao lado de Phil Spector, Os Beatles e Michael Jackson. Todo o processo é feito em parceria com seu mentor Max Martin, quem trabalhou com Backstreet Boys e Britney Spears, junto a sua editora Prescription Songs, composta por uma equipe de mais de quarenta profissionais das mais distintas especialidades: É uma combinação de artistas, produtores, profissionais de ponta, criadores de batidas, pessoas das melodias, pessoas da vibe, e pessoas apenas das letras. Pessoas da vibe sabem como fazer uma musica acontecer, entender a energia, e para onde a musica está indo, mesmo se elas não puderem tocar um acorde ou uma simples nota. (SEABROOK, 2013). Entretanto, Dr Luke trata o processo como um plano de negócio e prefere não garantir a glória, mas sabe que, aliada a decadência dos álbuns1, lhe da grande vantagem entender todos os caminhos para fazer uma musica irresistível, na sua criação, produção, promoção e vendas. Ao se concentrar no processo de construção da música, ele deixa claro um conceito pré-estabelecido: Eu acho que há um jeito para se fazer clássicos e produzi-los eletronicamente e acho que os anos oitenta fizeram muitos. Se você escutar Tears for Fears, eles tinham grandes melodias e trechos copiados menos rígidos. Meu problema com as músicas dos anos oitenta é que elas demoram muito para chegar ao refrão. (SEABROOK, 2013). Fica claro o foco do produtor nas paradas de sucesso, o mesmo conceito que é explicitado por Roberto Carlos segundo Oscar Pilagallo (2008, p.10): “Na cultura de massa, porém, o que se busca é algo com potencial para agradar ao maior numero possível de pessoas. Essa é a regra do jogo que Roberto Carlos sempre jogou – e é dessa perspectiva que deve ser avaliado”. O que de maneira alguma diminui o valor da obra: Sociólogo, Marcelo Coelho identifica na “Jovem Guarda” um movimento de massa, e, ao deixar de pé uma única pedra no castelo do rei do iê-iê-iê, conclui: “Nenhum triunfo de massas é ruim em si”. Para quem achava o programa um “lixo”, o que se salvaria? O fato de ter aberto caminho para o tropicalismo, aspecto que antecipa um dos argumentos dos primeiros avalistas de Roberto Carlos. (PILAGALLO, 2008, p.57) Porém, ao entrarmos nesta comparação faz se necessário enfatizar a gama de recursos diferentes entre as profissões produtor e cantor, ampliada pela evolução tecnológica dada o auge da carreira de ambos. Roberto não possuía voz potente como a dos demais cantores de auditório da época, o que o fez olhar com mais atenção para João Gilberto, revolucionário na música brasileira no final dos anos 50 e que possuía todos os princípios que valorizam o minimalismo vocal do jovem cantor no inicio da sua carreira. Tais características são citadas em seu depoimento: “A forma de ele cantar, a colocação da voz, a emissão, a afinação, a divisão, tudo ali era perfeito. Quando ouvi João Gilberto eu fiquei parado, porque aquilo era algo simplesmente maravilhoso”. (ARAÚJO, 2006, p. 65). 1 Roberto Carlos também teria se favorecido pela televisão segundo Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello. A Canção do Tempo(São Paulo: Editora Luzeiro, p.3) 2- Romantismo que atingiu as nuvens Apesar da admiração pelo pioneiro criador da bossa nova, o Rei brasileiro se firmou no iê-iê-iê, a versão abrasileirada do rock na época da Jovem Guarda, transitou pelo soul e se consagrou na música romântica. Jà dizia Chico Buarque: “Roberto é o mais moderno dos cantores românticos latinos”. (Folha de São Paulo, 10/12/1993). Em 1950 teve sua estreia como calouro na Rádio Cachoeiro cantando um bolero, “Amor y Mas Amor”, do porto-riquenho Bobby Capó, uma verdadeira declaração de amor. Mas Cachoeiro de Itapemirim se tornara pequena para seu talento e após seis anos tocando no mesmo programa decidiu ir para o Rio de Janeiro onde a radio Nacional projetava grandes artistas nacionais. Da partida, ele se recordaria 30 anos mais tarde, ao compor ”Aquela Casa Simples”, uma balada em tom menor, cuja profunda melancolia é sublinhada pelo lamento dos violinos. A letra descreve a ida à estação de trem com o pai, o relojoeiro Robertinho, que olha para o filho “com ternura / a lágrima molhar meu paletó de brim”. (PILAGALLO, 2008, p. 20). Logo que chegou ao Rio começou a fazer parte da banda The Sputniks junto ao grande Tim Maia (1942-98). Ambos se conheceram num bar chamado Divino, ponto de encontro de jovens que veneravam a cultura pop americana. Fato é que desde o inicio já surgiam as primeiras discórdias entre eles, desde os dois tocarem violão até o repertório: “Roberto gostava mais do romântico e topetudo Elvis, e Tião (Marmiteiro, Sebastião Maia) preferia o negro, gay e escandaloso Little Richard”. (MOTTA, 2007, p. 30). Ao menos a banda justificou o encontro com Carlos Imperial, apresentador do primeiro programa de televisão dedicado ao gênero: “Clube do Rock”, quem o escalou para o programa seguinte apresentando-o como o “Elvis Presley brasileiro”, motivo do desentendimento final com Tim Maia e fim da banda. Em abril de 1958, Roberto Carlos e outros principiantes do programa teriam a oportunidade de abrir o show do maior difusor do rock Bill Haley no Maracanãzinho. “Hound Dog”, sucesso gravado por Elvis dois anos antes, foi a música escolhida apesar de ainda não ter decifrado a letra em inglês2. Tal motivo o levou até outro fã de Elvis, aquele que viria a se tornar seu grande amigo e parceiro Erasmo Carlos. 2 Roberto Carlos não apresentou seu número impedido pelo Juizado de Menores. No mesmo ano, enquanto Chico e Caetano se trancavam no quarto decifrando os segredos de João Gilberto, Roberto Carlos, ainda menor de idade mas com vasta experiência musical, dava os primeiros passos de sua carreira profissional nas boates da moda do Rio3, agora distante do rock e influenciado pela bossa nova, ou por Carlos Imperial. “Bossa Nova” é uma etiqueta imprecisa para o compacto, sobretudo no caso de “Fora do Tom”, que está mais para paródia. [...] “João e Maria”, que tem coautoria de Roberto Carlos, também não chega a ser bossa nova. A letra, que até tem a coloquialidade do gênero, narra uma versão de almanaque do casal do título. [...] Embora também tivesse se deixado fascinar pela bossa nova, o astuto e oportunista Imperial via polêmica como filão a ser explorado pelo seu protegido. (PILAGALLO, 2008, p. 27). Junto a Erasmo dariam inicio ao que se tornaria o iê-iê-iê com a gravação de Splish Splash em 1963. A gravação traria grandes mudanças na sonoridade do artista que abandonara o acompanhamento dos músicos da orquestra da gravadora CBS por uma banda: Renato e seus Blue Caps. “O contraste com as gravações do ano anterior não poderia ser maior. A levada pulsante da guitarra, a marcação vigorosa da bateria, a interpretação descontraída de Roberto Carlos, tudo isso fazia a gravação um marco”. (PILAGALLO, 2008, p. 36). Dois anos depois surgia o programa de TV “Jovem Guarda” onde se tornaria de fato Rei. “Tal como Orlando Silva, que foi o primeiro ídolo de massa criado pelo radio no Brasil, Roberto Carlos seria o primeiro criado pela televisão”, afirmam Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello (2006, p.90). O seu carisma e visual dominavam o programa que tinha a moda e comportamento disputando lugar com a música. O programa era comandado também por Wanderléa e Erasmo, além da apresentação de vários artistas da época, porem nenhum deles recebiam tamanha tietagem como aquele rapaz com paletó sem gola e calças justas ao estilo Beatles. Eis então que surge o hino do programa “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”. Luiz Tatit detalha o fenômeno popular: Enquanto a voz abaritonada inspirava respeito e um romantismo platônico, fundado em versos e ditos poéticos, a voz jovem se manifestava como extensão direta do corpo do cantor, transpirando sensualidade e insinuando um contato físico que a tevê da época reforçava a cada programa. (TATIT, 2002, p.189) 3 Em 1959 teve seu primeiro contrato com a boate Plaza e faria sua primeira gravação num compacto com duas músicas: “João e Maria” e “Fora do Tom”, ambas de Carlos Imperial. E Oscar Pilagallo (2008, p. 48-49) complementa: O clímax melódico roça o pico da tessitura (“quero que você me aqueça”) e descreve a seguir uma curva com sentido ascendente (“neste inverno”), num movimento de tensão passional que Tatit considera um dos mais bem-sucedidos na canção brasileira. [...] A rebeldia da letra, a melodia contagiante, a interpretação convincente, a modernidade do arranjo4, tudo isso fez com que o maior hit dos anos 60 provocasse um impacto na sociedade que foi muito além do universo adolescente e do âmbito musical. Tal transgressão na letra, apesar de se tratar de uma historia de amor, causava algazarra tanto religiosa – devido à palavra “inferno” – quanto política: tratada como uma critica metafórica ao regime militar. Nelson Motta (2000, p. 102) receia: “Tudo pretexto para poder gostar de Roberto Carlos sem parecer simplório nem alienado”. O que, de certa forma, coloca mais ainda o artista na “boca do povo”. Segundo o crítico José Ramos Tinhorão há sim uma ligação, senão um interesse, entre o artista e a política: A mobilização dessa massa de jovens, no sentido do culto frenético de ídolos fabricados pela indústria do lazer [...], revela-se a calhar para os objetos do poder militar recentemente instaurado. [...] A concordância do cantor para essa encenação artístico-comercial foi fácil de obter, pois Roberto Carlos, então com 22 anos [...] apresentava uma qualidade pessoal indispensável para o sucesso do empreendimento, inclusive no campo ideológico, que era no momento o que mais interessava ao poder militar: alheio em principio à política por seu individualismo, era por isso mesmo com os conservadores e oportunistas que mais se identificava. (TINHORÃO, 1998, p. 336 e 338). O disco homônimo a música e os dois próximos lançados, Roberto Carlos (1966) e Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1967), são recheados de grandes canções sentimentalistas como “Gosto do Jeitinho Dela”, “Escreva uma Carta, Meu Amor”, ”Nossa Canção”, “Esqueça”, “Eu Estou Apaixonado por Você”, “Por Isso Corro Demais” e “Como É Grande o Meu Amor por Você”. Este ultimo LP antecedeu o primeiro filme de uma trilogia dirigida por Roberto Farias. Após o lançamento deste, o artista seguiu para o festival de San 4 Erasmo, em encontro com o organista Lafayette Coelho Vargas Limp, quem sugeriu a substituição do tradicional piano por um órgão, assim como as bandas The Doors e The Animals já faziam. (SANCHES, com base em citação no site Senhor F, p. 38. E ARAUJO, p 116, 117 e 166). Remo, cantando em italiano “Canzone Per Te”, onde além de ganhar o festival concorrendo com ninguém menos que Louis Armstrong voltaria ao seu país como verdadeiro ídolo. A revista O Cruzeiro de 2 de março de 1968 descreve: “Na volta ao Brasil, a recepção ao cantor foi comparável à que haviam tido as seleções de futebol campeãs do mundo, em 1958 e 1962. Milhares de pessoas se aglomeraram durante horas no aeroporto de Congonhas, em São Paulo, para vê-lo desembarcar. Bombeiros o carregaram nos ombros.” E conclui Tatit (2002, p.188): “Resultou daí uma obra latinizada, simples e contagiante, sobretudo do ponto de vista afetivo, com um poder persuasivo fulminante, que invadiu [...] todas as faixas etárias e sociais”. Em 1969 era lançado o filme Roberto Carlos e o Diamante Cor-de-Rosa promovendo a música “As curvas da estrada de Santos” 5 que pertencia ao segundo disco da trilogia soul do cantor, agora influenciado por Ray Charles e o rei do gênero James Brown, ambos citados em entrevista a revista Veja (10/12/1969). “Eu Te Amo, Te Amo, Te Amo” demonstra perfeitamente essa fusão do “novo” estilo com a característica romântica do Rei. “Detalhes” (1971) fixaria a imagem de Roberto Carlos como cantor e compositor romântico. “O que faz da música uma obra-prima do romantismo é a capacidade de sugerir certa melancolia, quando o tom afirmativo (“ Não vá dizer meu nome sem querer / à pessoa errada”) poderia parecer de uma arrogância despropositada.” (PILAGALLO, 2008, p.73). Após vaguear pela música brega assim como o pioneiro Odair José e se apresentar por diversas temporadas no Canecão (RJ), deixando sua banda RC-7 de lado e agora acompanhado por uma grande orquestra com regência do maestro Chiquinho de Moraes, eis que surge o ponto mais alto da carreira, com direito a uma citação musical da canção acima, o fox “Emoções” (1981) faz referencia, mesmo que ambígua, ao próprio Canecão: “Quando eu estou AQUI / Eu vivo este momento lindo”. Lembrando-se dos Rolling Stones, Roberto Carlos mandou pintar um avião com o nome da música e excursionou pelos céus do Brasil. “O disco vendeu mais de dois milhões de copias – um recorde na indústria fonográfica brasileira.” (PILAGALLO, 2008, p. 81). A partir de 1982 o compositor se mostra exaurido e suas composições já não possuiriam a mesma qualidade quando comparadas aquelas até seu auge. Em contrapartida o cantor não se entregaria e manteve a sua autoexigência de lançar um disco por ano. 5 Posteriormente regravada por Elis Regina que abriria mão do preconceito a Roberto Carlos, e ao iê-iê-iê, encadeado pelos invejosos músicos da MPB na época de “Jovem Guarda”. A audição de Roberto Carlos indica claramente o momento de ruptura de um padrão. Embaladas em arranjos pasteurizados e harmonias burocráticas, melodias indistintas contribuíram para relegar ao esquecimento boa parte da produção de Roberto Carlos a partir dessa época. Ao longo deste livro, foram citados versos de dezenas de músicas. É provável que, em muitos casos, o leitor tenha entoado mentalmente as melodias ao ler o texto. A partir de meados dos anos 80, no entanto, isso mudou. Quantas canções dessa safra ficaram na memória do brasileiro? “Você Não Sabe” (1983), “Caminhoneiro” (1984), “A atriz” (1985) – talvez não mais do que uma por disco, se tanto. (PILAGALLO, 2008, pg. 85). Vale ressaltar que “Caminhoneiro”, a canção mais importante do álbum de 1984, é uma canção sertaneja e prenunciaria a explosão do gênero na década seguinte. O cantor chegou a gravar segunda voz, como uma dupla caipira: “Pus a segunda voz mesmo para ficar com esse ar brejeiro de música sertaneja” disse em entrevista para a primeira edição da revista Caminhoneiro (jan./fev. 1985). 3- Os padrões Através de uma análise das partituras escritas por Luciano Alves serão expostos alguns elementos encontrados nas músicas de Roberto Carlos sobre os conceitos da musica tonal. Dentre as várias maneiras de se distinguir os diferentes níveis de compreensão de um texto musical, podemos nos reportar às noções emprestadas da análise da música tonal, principalmente nos conceitos derivados da análise schenkeriana. Um de seus preceitos é que entre a partitura analisada e as estruturas subjacentes podem ser encontrados diferentes níveis ou planos estruturais que permitem a compreensibilidade. No caso das músicas tonais escritas, a primeira remissão é ao sistema tonal, que Schenker sintetiza na noção de Ursatz, cuja tradução literal é enunciado primordial5 (Ur significa primordial, Satz é frase, sentença, sujeito de fuga, etc..). A superfície é o que pode ser chamado de nível “não interpretado” e caberia à análise, através de processos de eliminação de elementos ornamentais, alcaçar níveis mais estruturais. A interpretação destes níveis levaria finalmente à essência da música tonal que é seu sistema de referência. (GUBERNIKOFF, 2015, pg. 2). Assim tornando possível: ...neste estudo se sugere que seja possível reconhecer uma lógica dentro desta manipulação, quando aplicada em algumas músicas populares, e que, a partir disso, seja possível uma sistematização (padronização) desta lógica, indicando assim a possibilidade de se extrair algumas ferramentas de aplicação para a composição, improvisação e análise, que nos ajude a entender a concepção de um determinado músico, e quiçá, de um estilo em particular, de um período, ou de um movimento musical. (BERTON, 2005, pg. 22). Ao fazermos um paralelo com a musica erudita, Roberto faz uso de cadencias nãoconclusivas durante os versos e a conclusiva Cadencia Autentica Perfeita (CAP) é usada apenas no que popularmente chamamos de refrão do tema. Esta estrutura caminha junto à letra: os versos expõem toda uma situação que se conclui ao final do refrão, e esta sensação de resolução do ponto de vista musical é agradável ao ouvido. A cadencia é classificada como autentica perfeita (CAP) quando o V grau – em estado fundamental, com ou sem 7ª – se resolve no I grau, em estado fundamental. Como condição decisiva, a fundamental do I grau deve estar no soprano ou na voz mais aguda do acorde. [...] A cadencia autentica perfeita tem caráter conclusivo e seu uso normalmente está vinculado à ideia de final de período, final de musica ou finais de frases modulantes. [...] A cadencia autentica imperfeita tem caráter não conclusivo. Sua suspensividade tem origem mais em aspectos melódicos do que harmônicos. É empregada em finais de frases intermediárias, isto é, aquelas que não marcam finais de períodos ou de peça. [...] Cadencia Suspensiva: com caráter completamente suspensivo, tal cadencia marca os finais de frases sob a harmonia da dominante, isto é, a frase termina no V grau. [...] A cadencia plagal ocorre quando o IV grau resolve no I grau. (LIMA, 2008, pg. 94-103). Em “Emoções” podemos visualizar as CAI nos compassos 11 e 19 do verso (Figura 1) e a CAP aparecendo apenas no final do refrão no compasso 35 (Figura 2). Figura 1 – Verso: “Emoções” de 1981 (ALVES, 1998, pg. 74). Figura 2 – Refrão: “Emoções” (ALVES, 1998, pg. 75). O mesmo é demonstrado em “As curvas da estrada de Santos” nos compassos 4 (CAI), 14 (Cadencia Plagal) e 18 (Cadencia Suspensiva) do verso (Figura 3) e novamente a CAP aparecendo apenas no final do refrão no compasso 50 (Figura 4). Figura 3 – Verso: “As curvas da estrada de Santos” de 1969 (ALVES, 1998, pg. 90). Figura 4 – Refrão: “As curvas da estrada de Santos” (ALVES, 1998, pg. 91). Este recurso foi evidenciado também em “Como é Grande meu amor por você” de 1967 (Figura 5) e “Quero que vá tudo para o inferno” de 1965 (Figuras 6 e 7). Figura 5 – “Como é grande o meu amor por você” (ALVES, 1997, pg. 13). Nesta canção acima temos CAI nos compassos 8, 12, 16 e a resolução na CAP do compasso 20 culminando com o título da música (Figura 5). Figura 6 – “Quero que vá tudo para o inferno” (ALVES, 1998, pg. 30). Figura 7 – “Quero que vá tudo para o inferno” (ALVES, 1998, pg. 31). Já em “Quero que tudo vá para o inferno” as Cadencias Imperfeitas são substituídas por Cadencias Suspensivas, vide compassos 10 (Figura 6), 14, 16, 18 e 20. A CAP aparece no final do refrão no compasso 29 (Figura 7). Em “Detalhes” (1971) o processo de resolução na fundamental também ocorre, porém a harmonia se “adapta” fechando na fundamental do acorde de bVII e novamente no compasso seguinte no V grau de uma Cadencia Suspensiva, compassos 18 e 19 respectivamente. Ambos com o mesmo contorno melódico: um movimento ascendente seguido de dois descendentes. Tal contorno é usado em todas as respostas de frase, compassos 7 e 11 (Figura 8). Figura 8 – “Detalhes” (ALVES, 1997, pg. 90). Estas repetições de contornos também são vistos na segunda peça de uma maneira um pouco diferente. No verso da musica o cantor usa constantemente o contorno AscendenteAscendente-Descendente-Ascendente inserido nas frases (Figura 3). Ao projetarmos esta visão mais profunda, circunscrevendo as frases, há sempre um diálogo, uma espécie de pergunta e resposta trabalhadas através de contornos e resoluções melódicas descendentes: em movimentos de quartas ou quintas justas e segundas (grau conjunto). Em “As curvas...” os saltos de quartas justas descendentes estão presentes em boa parte das frases, Mi para Si e Ré para Lá (Figuras 3 e 4). As notas que fecham cada uma das três primeiras frases – “Se você pretende (Si) / Saber quem eu sou (Mi) / Eu posso lhe dizer (Lá)” formam uma sequencia de movimentos de quinta justa, soando como uma espécie de cadencia II-V-I. Neste mesmo tema, a nota Si se torna ponto de referencia, seja em meio ou final de frases, e da um sentido de tensão/repouso ao mover-se para a nota Lá –movimento de grau conjunto – ao final dos versos, demarcados por barras duplas, porém o sentido de conclusão novamente só é dado ao atingir a nota Sol ao final do refrão. Na repetição do verso a melodia é alterada mas o movimento de quarta para a nota Si ainda é mantido. Em “Detalhes” a nota Mi tem esse papel referencial: o motivo principal começa e fecha nela, vide compasso 7 (Figura 8). Além disso, todas as frases partem dela, a exceção da ultima do refrão no compasso 19. Sugere-se aqui que, quando estes intervalos são mais estáveis (ou seja, maior é o número de coincidências ocorrentes entre os harmônicos gerados na simultaneidade das tais notas), não é sentida pelo ouvido ocidental treinado a necessidade de qualquer altura deste intervalo (ou ambas) movimentar-se para uma outra nota, o que geraria um outro intervalo. Por isto, esta sensação estática, inerte, inerente a este estado, será denominada repouso. Da mesma forma, quanto mais instável (ou seja, menor é o número de coincidências ocorrentes entre os harmônicos gerados pelo intervalo de duas notas simultâneas), o mesmo ouvinte tende a sentir a necessidade de que estas notas movam-se para um estado de repouso (um intervalo estável) na combinação intervalar seguinte, seja pela movimentação de qualquer uma das alturas envolvidas. Esta sensação dinâmica, instável e movediça, será então aqui denominada tensão. Indo mais além na manipulação destas sensações, podemos arbitrar que quanto mais adiada for a resolução, ou seja, mais intervalos instáveis se seguirem - tensão / tensão em vez de tensão / resolução - maior será a necessidade de o ouvido treinado querer sentir a resolução, a conclusão do adiamento, criando assim níveis diversos (cores) de estabilidade e instabilidade. (BERTON, 2005, pg. 25). Se em “Detalhes” a harmonia se adaptou a melodia do final do refrão, em “Emoções” o processo é inverso. A frase no segundo sistema (Figura 1) se repete de forma similar no sistema seguinte modulada um tom abaixo. O mesmo acontece do terceiro para o quarto sistema. Tal ferramenta é usada em alguns trechos dessas três canções, porém em “Detalhes” ela é mais desenvolvida: o motivo musical – fonte melódica – dado na primeira frase da música “Não adianta nem tentar” é explorado durante toda a peça (Figura 8). No terceiro sistema ele é estendido com mais um grupo de tercinas. Na apresentação seguinte a primeira nota é mantida e o mesmo modula uma sexta menor acima e desce em graus conjuntos a cada reexposição. Outro contexto geral observado em todos os temas é evidenciado através das pausas entre frases, com os motivos muito bem pontuados. O cantor parece conversar com o arranjo e com o ouvinte. Propõe ideias melódicas e com essas pausas, muitas vezes longas, oferece tempo para que o motivo seja bem absorvido e interpretado. Tamanha é a quantidade de elementos que se repetem, como se fossem padrões, sejam eles em diversas músicas ou dentro de uma mesma. Segundo Bonnie McKee (SEABROOK, 2013), uma das escritoras da empresa de Dr. Luke, “Pessoas gostam de escutar musicas que soem como algo que elas já escutaram antes, [...] pessoas ainda gostam de ouvir sobre amor e festas”. A magnifica habilidade de falar de amor de forma singular, já embasada por diversos críticos dentro deste arquivo, aliada a reincidência de registros musicais, sejam eles uma nota enfocada durante toda a composição ou toda uma estrutura melódica alicerçada ou não por uma harmonia, pode gerar essa sensação prazerosa descrita por McKee. Luiz Tatit exprime exatamente essa ligação entre letra e música ao descrever um trecho da canção “Detalhes”: “Quando a letra enuncia a falta que faz a ex-parceira – “detalhes tão pequenos de nós dois / são coisas muito grandes pra esquecer” – a melodia atinge o ponto mais agudo, transmitindo toda a tensão passional do texto.” (PILAGALLO, 2008, pg. 73). A análise musical convencional sabe que não pode retraçar as intenções dos compositores no momento da criação, mas que pode estabelecer um aprendizado através da decifração da lógica interna e eventualmente, externa, das composições. Esta decifração estabelece sentidos para quem analisa que devem ser testados e confrontados entre si e com outras interpretações. (GUBERNIKOFF, 2015, pg.3). A intenção deste nunca foi encontrar a formula do sucesso na música do Rei, mas demonstrar algumas características concomitantes em suas composições. Através do estudo foi possível ver que o cantor sempre focou a massa através de referencias de qualidades, portando riqueza musical capaz de contornar o preconceito “bossanovistico” e astucia comercial natural, propriedades que, como diria Dr. Luke, fazem de Roberto Carlos uma pessoa de vibe. Referências PILAGALLO, Oscar. Folha explica Roberto Carlos. São Paulo: Publifolha, 2008. ARAÚJO, Paulo Cesar de. Roberto Carlos em Detalhes. São Paulo: Editora Planeta, 2006. VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. MOTTA, Nelson. Noites Tropicais – Solos, Improvisos e Memórias Musicais. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000. MOTTA, Nelson. Vale Tudo: o Som e a Fúria de Tim Maia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. ALVES, Luciano. O Melhor de Roberto Carlos – vol. I. São Paulo: Irmãos Vitale,1997. ALVES, Luciano. O Melhor de Roberto Carlos – vol. II. São Paulo: Irmãos Vitale,1998. SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A Canção no Tempo, 85 Anos de Músicas Brasileiras – Volume 2: 1958-1985. São Paulo: Editora 34, 2006, 5ª ed. SANCHES, Pedro Alexandre. Como Dois e Dois São Cinco – Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa). São Paulo: Boitempo, 2004. TATIT, Luiz. O Cancionista – Composição de Canções no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002, 2ª ed. TINHORÃO, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. LIMA, Marisa Ramires Rosa de. Harmonia: uma abordagem prática: parte I. São Paulo: 2008, 1ª ed. SEABROOK, John. The Doctor is in – A technique for producing No. 1 songs. Estados Unidos: The New Yorker, 14 out. 2013. Disponível em: http://www.newyorker.com/magazine/2013/10/14/the-doctor-is-in. Acesso em: 21 maio 2015. BERTON, Cesar Gabriel. INVENTIVIDADE MELÓDICA: Uma outra abordagem das técnicas de análise, composição e improvisação em música popular. Campinas: UNICAMP, 2005. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000385601. Acesso em: 1 abr. 2015. GUBERNIKOFF, Carole. Metodologias de Análise Musical para Música Eletroacústica. Revista eletrônica de musicologia, Volume XI, Set. 2007. Disponível em: http://www.rem.ufpr.br/_REM/REMv11/10/10-Carole-analise.pdf. Acesso em: 30 jun. 2015.