UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA - ISC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIAL DOS PORTADORES TRANSTORNOS MENTAIS: DISCURSOS E PRÁTICAS EM UM CAPS Suely Maia Galvão Barreto Salvador, 2009 DE 2 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA INSTITUTO DE SAÚDE COLETIVA- ISC PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIAL DOS PORTADORES DE TRANSTORNOS MENTAIS: DISCURSOS E PRÁTICAS EM UM CAPS Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Instituto de Saúde Coletiva (ISC), da Universidade Federal da Bahia, para a obtenção do grau de Mestre em Saúde Comunitária. Área de Concentração: Ciências Sociais em Saúde Mestranda: Suely Maia Galvão Barreto Orientadora: Profª. Dra. Mônica de Oliveira Nunes. Salvador, 2009 3 Suely Maia Galvão Barreto O PROCESSO DE INCLUSÃO SOCIAL DOS PORTADORES TRANSTORNOS MENTAIS: DISCURSOS E PRÁTICAS EM UM CAPS Data da Defesa: 27 de Março de 2009 Banca Examinadora: Profª. Dra. Mônica de Oliveira Nunes (Orientadora) Prof. Dr. Jorge Iriart Profª. Dra. Selma Lancman Salvador 2009 DE 4 Dedico a meu pai, Renato Galvão (in memorian), pela aquisição de valores importantes para viver a vida, e a Filipe, Lucas e Marina, minhas estrelas. 5 “E eles se deram conta de que as necessidades das pessoas com distúrbios mentais não são fundamentalmente diferentes das do resto: moradia digna trabalho, renda fixa, amigos, vizinhos receptivos e tudo o mais” Maltzman (1991) 6 AGRADECIMENTOS Escrever é, muitas vezes, um ato solitário, entretanto, para a construção das ideias, é necessário um ato coletivo. Por acreditar nisso, agradeço a todos que contribuíram nessa construção. A começar pelo estímulo que tornou possível a minha chegada até aqui, agradeço inicialmente a Mônica Nunes por vários motivos: pelo convite para fazer parte do NISAM, pois realizou um desejo de fazer pesquisa em saúde mental na lógica antimanicomial, pelo aceite em ser orientadora deste trabalho, além do aprendizado e convivência em vários espaços. Aos trabalhadores do CAPS pesquisado, a acolhida e a disponibilidade durante a minha permanência no serviço. Aos usuários e familiares do CAPS, o carinho, as boas conversas e as amizades, que confirmaram a importância de continuar trabalhando nesse caminho. Agradeço a Maurice, Vitória, Vânia, Ana Pita, Molige, Silvia, Marcos, Manuela, Fernanda, Carol, Livia, Clériston e Antonio, membros do NISAM, pela amizade e discussões, tão enriquecedoras, que ajudaram bastante nas desconstruções de saberes e construções de conhecimentos. A Vládia, uma boa amizade, companheira de tantos espaços de trabalho e discussões, pela leitura do projeto e dicas precisas. A minha “amiga de fé e irmã camarada” Ana Joaquina, por acreditar, incentivar e se disponibilizar a construir comigo o projeto de entrada no mestrado. Aos colegas da Bahiana, Ana Márcia, Francesca, Helena, Andrea, Ana Marta, Mirella, Lázaro, Eduarda e Tereza, pela construção da Terapia Ocupacional na Bahia. Aos componentes da banca, a Jorge Iriat por aceitar o convite. A Selma Lancman pelo seu aceite de pronto, sua disponibilidade em discutir o assunto e pelo norte da Terapia Ocupacional no Brasil. E, finalmente, aos de casa, Barreto, Filipe, Lucas e Marina, por suportar as minhas ausências em tantos momentos, meu stress, por ajudar no inglês e nas tecnologias da informática, digo: estarei retornando a nossa boa convivência, de corpo e alma, logo. 7 Resumo A inclusão social é colocada nas atuais políticas de saúde mental brasileiras como uma finalidade permanente, e o CAPS como um serviço estratégico na mudança de paradigma da assistência dos sujeitos enfermos mentais, no qual, esta finalidade é presente. Portanto, é objetivo deste estudo compreender como os trabalhadores de um CAPS da Bahia representam a inclusão social e quais as dificuldades e estratégias utilizadas pelos trabalhadores nos projetos de inclusão social dos seus usuários. Este estudo é parte de uma pesquisa maior do NISAM e teve como campo um CAPS da Bahia, como sujeitos os trabalhadores deste CAPS, e, como instrumentos para a coleta de dados, os grupos focais, entrevistas e observação participante. A avaliação dos dados foi realizada tendo como base a análise do discurso, através da qual percebemos alguns significados de inclusão social, como a loucura como etiquetamento, não estar internado em um hospital psiquiátrico, a participação na vida das cidades, a questão da autonomia e dos direitos dos usuários; bem como dificuldades e estratégias foram levantadas para a questão do preconceito, a inclusão através do trabalho, o lugar das famílias, as carências de recursos e as condições de vida e formas de ser dos usuários. A inclusão social dos enfermos mentais é uma questão bastante complexa, tornando-se um desafio para as equipes dos CAPS. Portanto, torna-se necessário maior investimento na capacitação dos trabalhadores para lidar com a complexidade que os projetos de inclusão social exigem, os quais envolvem conhecimentos diversificados. Descritores: inclusão social, saúde mental, cidadania, CAPS. 8 Abstract Social inclusion is placed in the current mental health policies in Brazil as a permanent purpose and, the CAPS as a service strategy in changing the paradigm of care mentally ill subject, in which this purpose is present. Therefore objective of this study is to understand how the employees of one of Bahia CAPS represent social inclusion, and what difficulties and strategies are used by workers in the projects of social inclusion of its users. This study is part of a bigger survey of NISAM, and had the field, a CAPS Bahia, as subjects the workers of CAPS, as instruments for data collection, focus groups, interviews and participant observation. Data analysis was performed, based on discourse analysis. Understand some meanings in the analysis of social inclusion as the madness as labels, not be admitted to a psychiatric hospital, participation in the life of cities, the issue of autonomy and rights of users, such as difficulties and strategies raised the issue of preconception, including through the work, the place of families, the lack of resources and living conditions and ways of being of users. The social inclusion of mentally ill is a very complex issue, making a challenge for the staff of CAPS. Therefore, it is necessary more investment in training workers to handle the complex projects that demand for social inclusion, which involve diverse knowledge. Keywords: social inclusion, mental health, citizenship, CAPS. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO PAG. 11 1. PROBLEMATIZANDO CONCEITOS 1.1. O Conceito de Exclusão/Inclusão Social 1.2. Constituição da Cidadania na Modernidade 1.3. Conceitos de (re)integração, (re)inserção e (re)inclusão social 16 16 19 24 2.CIDADANIA E LOUCURA 2.1. Aos Loucos o Hospício 2.2. Cidadania e Loucura no Modelo de Atenção Psicossocial 26 26 30 3. A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO SOCIAL 3.1. Reformas Psiquiátricas e a Direção da Reabilitação 3.2. O Processo Brasileiro de Reabilitação Psicossocial 3.3. Direções das Práticas de Inclusão Social 40 40 54 58 4. METODOLOGIA 62 4.1. A Pesquisa-Mãe: “Articulando Experiências, Produzindo Sujeitos e Incluindo Cidadãos: Um Estudo sobre as Novas Formas de Cuidado em Saúde Mental na Bahia e Sergipe” 4.2. A Pesquisa: O Processo de Inclusão Social dos Portadores de Transtornos Mentais: Discursos e Práticas em um CAPS 4.3. Instrumentos da Pesquisa 4.4. Categorias de Análise 4.5. Questões Éticas 5. CONTEXTUALIZANDO O CAMPO 5.1. O CAPS Pesquisado 63 64 67 67 70 71 71 88 6. SIGNIFICADOS DE INCLUSÃO SOCIAL 89 6.1. Loucura como Etiquetamento 95 6.2. Não estar Internado em Hospital Psiquiátrico 6.3. Participação na vida cidade (circulação, relações sociais, casa, 98 escola, trabalho) 6.4. A Necessidade de Autonomia 104 6.5. Direito a ter Direito 105 10 6.6. A Visão dos Usuários 109 7. DIFICULDADES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS PROJETOS DE INCLUSÃO SOCIAL 110 112 7.1. O Estigma e o Preconceito 118 7.2. O Difícil Lugar do Enfermo Mental no Mercado de Trabalho 7.3. A Falta ou Carência de Recursos no CAPS e Equipamentos na 120 Comunidade 122 7.4. O Território e a Cidadania 124 7.5. As Condições de Vida dos Usuários 126 7.6. As Idiossincrasias dos Sujeitos Enfermos Mentais 8. ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PELOS TRABALHADORES DE UM CAPS NOS PROJETOS DE INCLUSÃO SOCIAL 8.1. Estratégias a Partir das Atividades que Ocorrem Prioritariamente no Espaço Físico do CAPS 8.2. A Família como Parceira 8.3. Estratégias na Cidade 8.3.1. Participação nos espaços da cidade 8.3.2. O trabalho como importante recurso para a inclusão social 8.3.3. Incentivo à participação política 128 129 131 134 134 140 146 CONSIDERAÇÕES FINAIS 148 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 155 ANEXOS 11 INTRODUÇÃO No processo conhecido como “Reforma Psiquiátrica Brasileira” (RPB), a questão da inclusão social dos portadores de transtornos mentais coloca-se como uma meta na mudança de paradigma na atenção em saúde mental. Porém, tem-se observado, na área de saúde mental, uma multiplicidade de compreensões do conceito de inclusão social com significados os mais diversos, desde atividades de socialização, internas aos serviços, até a efetiva participação na vida da cidade. Isto é presente nos discursos dos trabalhadores: “[...] É à base do trabalho, a base da nossa interação” [...]”. um projeto específico de inclusão social, eu fico questionando um pouco assim se todo o nosso trabalho é nesse cunho. Mesmo no atendimento em grupo [...] (NUNES et. alli, 2009). Compreendendo que processos de inclusão social vão sendo concretizados a partir dos pressupostos que se fazem presentes nos discursos, é objetivo deste estudo compreender quais são os significados e as estratégias empregadas para viabilizar os processos de inclusão social em um CAPS, do ponto de vista dos trabalhadores. Para a compreensão dos impasses, desafios e estratégias que circundam esse processo, é necessário entender os efeitos da exclusão social sofridos pelo fenômeno da loucura. Para isso, faremos uma revisão histórica deste processo, tendo como ponto de partida a constituição da Psiquiatria, em cuja origem remonta o movimento pelo qual “num lance decisivo, o campo da loucura foi transformado no campo da enfermidade mental” (BIRMAN, 1992:73), construindo, com isso, um lugar específico para esses sujeitos, a saber, o hospital psiquiátrico, local de exclusão por excelência. Com o objetivo de evitar o uso do termo exclusão de uma forma vazia, partimos da definição de que exclusão social, rigorosamente falando, não existe (MARTINS, 1997). Assumimos então o ponto de vista de Sawaia que pressupõe que uma das contradições na exclusão é a “qualidade de conter em si sua negação, não existir sem ela, ser idêntica à inclusão” (SAWAIA 2006:8), nestes casos entendida como 12 uma inserção social perversa. Portanto, em lugar do conceito de exclusão, propõese utilizar a dialética exclusão/inclusão. Em decorrência de os termos exclusão/inclusão terem atualmente sido utilizados em uma diversidade de significados e campos, procuraremos aqui nos deter na abordagem desta no campo da saúde mental. A saúde mental vem recentemente sendo considerada um campo de conhecimento, em função de ser, segundo Amarante (2007), “um campo bastante polissêmico e plural, na medida em que diz respeito ao estado mental dos sujeitos e das coletividades que, do mesmo modo, são condições altamente complexas”. (p.19). O entendimento deste campo requer uma complexidade e transversalidade de saberes e conhecimentos de diversos campos, tais como psiquiatria, neurociências, psicologia, psicanálise, filosofia, fisiologia, antropologia, sociologia, história, geografia, como também o entendimento da cultura. Compreendendo que o processo de exclusão social dos sujeitos portadores de transtornos mentais ainda perdura até a data atual, propomos entender de que forma o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira propõe a construção de outro lugar social para a loucura, problematizando a forma de perceber esses sujeitos, o que perpassa pelo resgate da cidadania dos mesmos. Com o objetivo de compreender a problemática deste estudo, foi escolhido o seguinte percurso: no primeiro capítulo serão problematizados alguns conceitos entendidos como fundamentais para a compreensão da inclusão social dos enfermos mentais, tais como exclusão social, cidadania e as diferenças entre reintegração, reinserção e inclusão social. O segundo capítulo está dividido em dois períodos históricos. O primeiro discorre sobre o processo de constituição da psiquiatria e o contexto histórico em que os manicômios foram criados, como lugar de tratamento dos loucos. Já o segundo capítulo dá ênfase à crítica ao momento anterior e à proposição de outras formas de tratamento. 13 A falência do dispositivo do hospital psiquiátrico como local de tratamento e o movimento pela construção de outro lugar social para os enfermos mentais brasileiros são também assuntos deste capítulo. Para isto, discutimos a constituição do movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB), que possibilitou vários desdobramentos, tais como a reformulação da rede de serviços em saúde mental, o questionamento sobre o saber psiquiátrico, a ampliação da questão da loucura para a sociedade, dentre outros. No terceiro capítulo, a discussão envolve as reformas psiquiátricas em alguns países, tidas como mais importantes por, de certa forma, terem influenciado outras reformas psiquiátricas e outras maneiras de lidar com a loucura em outros países. Nas reformas, a ênfase dada é sobre o processo de reabilitação, seja ele psiquiátrico, seja psicossocial, entendida como estratégias de promoção da inclusão social da sua clientela. A escolha brasileira pela reabilitação psicossocial como estratégia para a inclusão social dos usuários e a direção que vêm tomando as políticas de saúde mental que têm como finalidade a inclusão social também são apresentadas neste capítulo. Para tanto, discutiremos também a legislação sobre o assunto. A metodologia é detalhada no quarto capítulo. Este estudo é parte de uma pesquisa maior conduzida pelo Núcleo Interdisciplinar de Saúde Mental-NISAM, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, financiada pelo CNPq, nos anos de 2006 até 2008. A pesquisa do NISAM é aqui nomeada de pesquisa-mãe. Este estudo é um recorte da pesquisa-mãe, tanto em relação ao lócus: um CAPS, em relação ao tema abordado: a inclusão social, e quanto aos sujeitos: os trabalhadores. A pesquisa para este estudo foi realizada em um CAPS tipo II, em um município do interior do Estado da Bahia. Os sujeitos desta pesquisa foram os trabalhadores do CAPS, e os instrumentos utilizados foram os grupos focais, entrevistas e a observação participante. 14 O CAPS foi eleito como campo de estudo por apresentar nos seus objetivos propostas e ações que visem à autonomia e à reinserção social dos seus usuários, bem como a construção/reconstrução de uma rede social destes. No quinto capítulo, foi realizada uma contextualização do CAPS pesquisado quanto ao seu funcionamento, organização, cotidiano, equipe e suas relações, atenção à família e as atividades que são direcionadas para a inclusão social dos seus usuários. No sexto serão analisados os significados atribuídos à inclusão social pelos trabalhadores, no qual o hospital psiquiátrico, mesmo que negativamente, ainda é colocado como referencia para se pensar a inclusão. No sétimo analisamos as dificuldades percebidas neste processo. O estigma e o preconceito aparecem como uma grande dificuldade nos processos de inclusão social, e acaba por promover a continuidade da ligação direta entre a periculosidade e a loucura, por isso necessita de maior investimento no sentido de desnaturalizá-lo. No oitavo, tendo como base os significados atribuídos e as dificuldades percebidas, são analisadas as estratégias de que os trabalhadores lançam mão para desenvolver estes processos. Estas são divididas entre as que são realizadas no espaço do CAPS e as que são desenvolvidas na cidade. A família é colocada como um ponto forte na articulação entre os espaços. As políticas públicas de saúde mental, influenciadas pelo movimento que, se convencionou chamar de Reforma Psiquiátrica Brasileira, têm possibilitado mudanças na atenção ao enfermo mental, no entanto há ainda muitos desafios a serem vencidos, sendo o preconceito um deles. Apostando no movimento da RPB, acreditamos que é necessária uma maior clareza das possibilidades de inclusão social dos sujeitos enfermos mentais, como também das suas dificuldades e limites, com objetivo de superá-los. Entendendo que as pesquisas contribuem para um melhor conhecimento da situação e da direção da implantação da política de saúde mental no nosso país, 15 este estudo pretende dar alguma contribuição para a consolidação da RPB na Bahia. 16 1. PROBLEMATIZANDO CONCEITOS 1.1 O Conceito de Exclusão/Inclusão Social Não é objetivo deste estudo realizar uma revisão exaustiva sobre a questão da exclusão social, mas apenas sinalizar a complexidade existente na mesma, com o propósito de ter uma maior clareza quanto à abordagem escolhida. O termo exclusão social tem sido usado indiscriminadamente para definir uma gama de situações. Sawaia (2006) enfatiza sua utilização de forma retórica para diferentes qualidades, “desde a concepção de desigualdade, como resultante de deficiência ou inadaptação individual, falta de qualquer coisa, até a injustiça e exploração social” (SAWAIA 2006:7). Segundo Donzelot (1996 apud OLIVEIRA, 2004), esse termo começou a se fazer presente na literatura a partir da segunda metade do século XX, trazido por René Lenoir, na França, para se referir aos “esquecidos do progresso”, os doentes mentais, deficientes, anciãos. Alguns autores (OLIVEIRA, 2004 e ESCOREL, 2006) identificam a França como o país que tem dado um “estatuto teórico” (ESCOREL, 2006:51) ao termo exclusão. Merrien (1996 apud OLIVEIRA, 2004) faz uma diferenciação dos interesses para o emprego do termo, em países diferentes, colocando que, nos Estados Unidos, o mesmo é designado para identificar indivíduos e grupos desviantes e marginais (os negros, os imigrantes), enquanto que, na França, sua acepção está inclinada ao interesse pelos processos de exclusão (a pobreza, a falta de trabalho). Escorel (2006) aponta a importância dos autores Pierre Rosanvallon (1995) e Robert Castel (1991, 1995) para a configuração no cenário social, do que eles denominaram a “nova questão social”. Várias discussões ocorreram no sentido de definir a categoria adequada que melhor a conceituasse: exclusão social, desqualificação social ou desafiliação social. 17 O contexto social na França deste período foi a mudança do processo produtivo, ocorrendo diminuição dos empregos, gerando os “inválidos pela conjuntura”. Para esses autores, “a exclusão foi então percebida como uma marca profunda de disfunção societal que assume uma multiplicidade de formas e que se caracteriza por um processo simultaneamente temporal (o excluído de hoje será o excluído de amanhã), espacial e social (o excluído é rodeado de excluídos)” (ESCOREL 2006:52). Sob a categoria exclusão social, estavam os ‘sem trabalho’, por isso a reinserção dever-se-ia dar através de perspectivas de (re) inserção ocupacional. A pobreza e a desigualdade têm sido amplamente associadas à exclusão social, porém Nascimento (1994) descreve diferenças entre os termos desigualdade e pobreza, e dessas duas em relação ao termo exclusão. O autor define desigualdade social como distribuição diferenciada, entre seus membros, das riquezas produzidas por uma determinada sociedade. Conceitua pobreza como “a situação em que se encontram membros de uma determinada sociedade, despossuídos de recursos suficientes para viver dignamente” (p. 30). Pontua que o conceito de exclusão está mais próximo ao de oposição à coesão social, “ou como sinal de ruptura, do de vínculo social” (p.30), próximo também ao conceito de estigma e de desvio. Nesta acepção, a condição de excluído é imputada do exterior à pessoa, sem que, para tal, esta tenha contribuído direta ou mesmo indiretamente. Excluído é aquele que não é reconhecido como sujeito, sendo considerado nefasto ou perigoso para a sociedade. O autor define a exclusão social em uma acepção mais ampla: Se o termo exclusão social diz respeito ao ato de excluir, de colocar à margem um determinado grupo social, o conceito sociológico, que é múltiplo, (...) refere-se sempre a um processo social de nãoreconhecimento do outro, ou de rejeição, ou, ainda, intolerância. Dito de outra forma, trata-se de uma representação que tem dificuldades de reconhecer nos outros direitos que lhes são próprios. (NASCIMENTO, 1994:31) Ainda segundo este autor, a exclusão pode se dar pelo não-reconhecimento que pode se traduzir em uma não integração no mundo do trabalho, podendo produzir efeitos de uma não inserção social. 18 Martins (1997), ao afirmar que a exclusão rigorosamente não existe, pontua que o que existe são vítimas de processos sociais, políticos e econômicos excludentes, nos quais são percebidos como privação dos meios de participação no mercado de trabalho e consumo, do bem-estar, dos direitos, de liberdade, de esperança. Este autor define que o que se chama de exclusão é o conjunto das dificuldades, dos modos e dos problemas de uma inclusão precária, instável e marginal. Por isso o que deve estar em discussão são as formas de inclusão ou reinclusão consideradas insuficientes e até indecentes, e como elas se apresentam nos planos econômico, social e moral. Escorel (2006) e Oliveira (2004) trazem Serge Paugam (1994 e 1999), que embasa suas teorias nos estudos de Castel (1991, 1995) para entender a exclusão social como processo, conferindo à expressão de exclusão social uma determinação mais precisa. Paugam (1994 e 1999) classifica as fases do processo de ‘desqualificação’ em fragilidade, dependência e ruptura e, apoiado em contribuições dos pesquisadores franceses, traz três dimensões que devem ser agregadas ao conceito: trajetória, identidade e territórios. Goffman (1980), representante da Escola de Chicago, composta pela corrente do interacionismo simbólico, traz a categoria de estigma para entender a exclusão social como interações sociais desviantes, conferindo importante substrato teórico para a análise do fenômeno em contextos urbanos e metropolitanos. (ESCOREL 2006) A questão do estigma é um aspecto citado aqui por Nascimento (1994), que quase sempre está colado com a exclusão social, principalmente quando se refere às pessoas portadoras de transtornos mentais. De acordo com Goffman (1980), o estigma é um atributo que produz um descrédito amplo na vida do sujeito; em situações extremas, é nomeado como marcas de desvantagem em relação ao outro. Para os estigmatizados, a sociedade reduz as suas oportunidades, esforços e movimentos, não lhes atribui valor. Ao atribuir o estigma a uma pessoa, colocando-a como alguém diferente em uma sociedade que determina o modelo que interessa para manter o padrão de poder, o diferente assume o caráter de estar à margem e 19 passa a ter que responder ao que a sociedade determina, ou seja, pertencer ao grupo de rechaço; logo, pertencer ao que não pertence à sociedade. (Melo 2000) Sawaia (2006) pontua que a exclusão social é complexa e contraditória, e que se faz necessário explicitar as ambiguidades existentes neste contexto. Como o objetivo deste estudo é entender o processo de exclusão/inclusão de uma determinada população, a dos portadores de transtornos mentais, é importante compreender as ambiguidades existentes para esta população. Para tanto, se faz necessário entender o processo histórico em que a compreensão da complexidade da loucura foi transmutada para o campo da enfermidade mental1, trazendo em si ‘embutido’ o fenômeno da ‘exclusão’. Esta é usada aqui no entendimento da dialética exclusão/inserção social perversa, como não reconhecimento do sujeito de direitos, e por isso como a não participação na vida social e nas relações da sociedade contratual. A exclusão dos “loucos” acontece de uma maneira mais incisiva quando, no início da época moderna, a razão se constitui como um dos seus pilares, senão o essencial. Com isso, os loucos foram identificados como desrazoados, sendo excluídos dos direitos de cidadania. A importância da compreensão da cidadania como processo e a identificação da falta de espaço do “louco” como cidadão na modernidade são os fatores que discutiremos a seguir. 1.2 Constituição da Cidadania na Modernidade O tema “cidadania dos loucos” vem a ser ponto de pauta em alguns movimentos de reforma da psiquiatria no Brasil e no mundo. No País, o movimento de reforma psiquiátrica, que acontece a partir da década de 1970, propõe como finalidade a inclusão social dos portadores de transtornos mentais na perspectiva de cidadão. Entendendo cidadania como um processo dinâmico, é necessário compreender 1 Tema a ser discutido mais adiante. 20 como a cidadania vem se constituindo historicamente, partindo da Grécia, onde a democracia foi o berço do cidadão, permitindo a sua participação na esfera pública. Para entender a evolução da cidadania, é necessário tornar mais preciso o seu conceito, tomando a Grécia como ponto de partida, pois foram os gregos antigos os primeiros a pensar em uma sociedade de homens livres e iguais e a cunhar o termo cidadania. Em certo nível, a cidadania grega funcionava como elemento homogeneizador e formador de comunidades de iguais (a dos cidadãos de uma Cidade-Estado), conferindo ao seu portador o status de cidadão, porém não extensivo a todos. Em outro nível, opera com uma lógica de classificação, ou seja, um processo de exclusão/inclusão que delimita a esfera de participação do cidadão e do não cidadão, operando com isso um reconhecimento de diferenças socialmente legitimadas (PINSKY 2003). O ideal do cidadão moderno foi construído a partir de influência da doutrina cristã, que trouxe a ideia de universalização do homem e dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Essas ideias foram importantes na modernidade, criando um novo ideal de homem, o homem da razão, capaz de participar no mundo de trocas e do contrato social. Hobbes (1588-1679) e Locke (1632-1704) foram teóricos que também contribuíram para a compreensão do paradigma moderno de cidadania no âmbito do pensamento liberal, com os conceitos de contrato social e liberdade. Estas Ideias seriam importantes na formulação das revoluções Americana e Francesa. Dessa forma, o Estado liberal2 visava a garantir a segurança de vida (Hobbes), na qual a cidadania seria resguardada por um contrato social, cabendo ao Estado soberano3 o papel de instância que salvaguardaria o direito e a liberdade dos indivíduos. Locke faz um aprofundamento das ideias de indivíduo e uma contribuição ao conceito de cidadania, colocando que as únicas qualidades inatas, atribuídas aos indivíduos no estado de natureza, são a liberdade e a razão. Estas seriam o 2 Forma de organização que potencializou o aparecimento do ideal dos direitos do homem e a separação de poderes na época moderna. 21 princípio da igualdade entre os indivíduos e são direitos da sociedade civil, interesses particulares de homens livres (LAVALLE, 2003). A obediência ao Estado se assenta em uma obrigação autoassumida, isto é, do contrato social (SANTOS 2003). O princípio da cidadania, neste período, abrange exclusivamente a cidadania civil e política, e o exercício desta última reside quase que exclusivamente no voto. Outras formas de participação política são excluídas ou, pelo menos, desencorajadas. Os direitos sociais serão erigidos mais tarde. O pressuposto da igualdade na nova ordem jurídica institucional burguesa que se instalava determinava uma nova função para o Estado/Nação. A Nova Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão estabelecia a assistência pública que seria determinada por lei, de acordo com a natureza do problema e a necessidade de intervenção (CASTEL, 1978). A cidadania era, então, um atributo dos iguais – racionais normais. Aos loucos, despossuídos de razão, e com perda do livre arbítrio, não se cogitava a cidadania, essa entendida como cidadania política liberal, de participação nas decisões sociais (OLIVEIRA e ALESSI, 2005). O conceito de cidadania, que começa a ser cunhado a partir da Grécia, ligado ao conceito de democracia, vem a ser a raiz dos direitos humanos. A obra clássica de T. H. Marshall, Citizenship and Social Class, lançada pela primeira vez em 1950, tem como ponto de partida de sua análise a história política e social da Inglaterra, a Revolução Industrial e a instituição do capitalismo, e coloca a cidadania como a base e o fundamento dos direitos civis, políticos e sociais. Nesta obra, Marshall propõe uma classificação e periodização dos direitos que viriam a compor a cidadania, separando-a em três tipos: a cidadania cívica (Sec. XVIII), a cidadania política (Sec. XIX) e a que foi designada como “cidadania social” (Sec. XX); esta última referente aos significativos direitos sociais no âmbito do trabalho, segurança social, saúde, educação e habitação por parte das classes trabalhadoras, principalmente dos países centrais. Um dos méritos de Marshall consiste na articulação entre cidadania e classe social, demonstrando as tensões existentes entre capitalismo e cidadania (Santos 2003). 3 Estado como responsável pela organização e pelo controle social de um povo em um território, pois mantém o monopólio legítimo do uso da força. 22 Na classificação de Marshall, os direitos civis são os mais universais, asseguram a vida, a liberdade e a igualdade, e estão balizados no princípio da liberdade individual, configurada como uma limitação ao poder do Estado e ao de outros indivíduos, garantidos pelo contrato. Direitos políticos seriam aqueles que dizem respeito à participação dos cidadãos na esfera decisória, inclusive na elaboração de leis. São mais tardios e de difícil universalização. Os direitos sociais são aqueles que garantem as condições de vida dos trabalhadores, além do bem-estar coletivo. Estes direitos são aplicados através das múltiplas instituições que, no conjunto, constituem o Estado-Providência. Marshall (apud SANTOS, 2003: 244) define a cidadania como “o conteúdo de pertença igualitária a uma dada comunidade política e afere-se pelos direitos e deveres que o constituem e pelas instituições a que dá azo para ser social e politicamente eficaz”. Isto nos remete a pensar a cidadania como produto de histórias sociais diferenciadas. Escorel (2006), ao interpretar Silver (1994), coloca que a “exclusão se combate a partir da cidadania, segundo a formulação de Marshall, que possibilitaria a inclusão dos “de fora” na composição igualitária da comunidade e sua plena participação nessa comunidade”. Cidadania é definida como participação social. Dallari (1998) coloca que o conceito atual de cidadania, que define como expressão de um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando em uma posição de inferioridade dentro do grupo social. Vasconcelos (2006) pontua que o princípio da universalidade da cidadania funciona não só como um dispositivo de exclusão da diferença, mas também como princípio da inclusão dos indivíduos, referindo-se aos “poderes disciplinares” desenvolvidos por Foucault em obras posteriores à História da Loucura, afirmando que: O desenvolvimento da cidadania social permitiu a institucionalização e difusão dos poderes disciplinares, que funcionam como dispositivos de normatização dos indivíduos e dos processos de subjetivação e que não se caracterizam apenas por mecanismos de efeito repressivo, negativo, mas que funcionam primordialmente de forma positiva, criadora, incentivadora de novos hábitos e prazeres, 23 moldando assim o comportamento, e das subjetividades dos indivíduos e grupos sociais (Vasconcelos 2006:179). Santos (2003) propõe uma relação entre subjetividade e cidadania como formas de expressão do individual e do coletivo. A contribuição da cidadania à subjetividade se dá ao constituir direitos e deveres, abrindo horizontes para a auto-realização. Dessa forma, Santos (2003), fundamentado em estudos de Foucault sobre subjetividade e cidadania, conclui que cidadania sem subjetividade conduz à normalização, cuja forma de dominação reside na identificação dos sujeitos com poderes-saberes que neles são exercidos. Para Foucault (apud SANTOS 2003), a cidadania termina por se tornar mais um artefato do poder jurídico político sediado no Estado do que um conjunto de direitos cívicos, políticos e sociais cedidos pelo mesmo. O pensamento liberal representou avanços nos seguintes pontos do debate sobre o conceito de cidadania: a) A esfera pública4 é apresentada como o espaço da liberdade e do exercício da cidadania; b) A liberdade e a razão são erigidas como princípios da igualdade entre os indivíduos; c) O contrato social surge como mantenedor de direitos mínimos das partes envolvidas; d) O cidadão é aquele que pode possuir o status de cidadão. Observa-se, então, que a cidadania, na concepção clássica, era hierarquizada; a concepção moderna é mais universalista, porém comporta as críticas de Foucault, apontadas acima e a seguir: O elemento de crítica desse paradigma de cidadania é que ele não dá conta da questão das desigualdades no campo social, na medida em que continua servindo como elemento que distinguirá aqueles indivíduos aptos a possuir o status de cidadão (PAIXÃO 2006). Elementos são introduzidos acerca da questão contemporânea da cidadania, possibilitando a elaboração de diversas críticas do seu paradigma moderno. Dentre eles, bem colocado por movimentos de usuários de saúde mental, a reivindicação da igualdade básica entre os homens, em nome dos direitos civis, e a garantia de direitos especiais em nome dos direitos sociais. 4 ‘A esfera pública não se confunde com a esfera do Estado. Como uma categoria histórica da sociedade burguesa, ela se formou antes em contraposição ao poder, no interesse de estabelecer um Estado de direito que assegurasse, por leis e sanções, a circulação de mercadorias e o trabalho formalmente livre, sem interferências estatais na dinâmica do mercado’. (HABERMAS APUD REPA 2007) 24 Compreender como as questões sobre a cidadania dos “loucos” foram se constituindo e como, apesar dos ideais de igualdade idealizados, a cidadania dessas pessoas não foram de fato realizadas. Esta será a discussão do próximo item. Para isso, é necessário que nos remetamos aos conceitos de reintegração, reinserção e reinclusão social. 1.3 Conceitos de (Re) Integração, (Re) Inserção e (Re) Inclusão Social Um ponto que merece nossa atenção é a conceituação dos termos inclusão social, reinserção social e reintegração social, termos que aparecem em alguns estudos e nos textos legislativos como sinônimos. Nos textos legislativos e informativos do Ministério da Saúde, sobre a saúde mental, dos documentos sobre o CAPS (2004b) e na Lei 10.216/01, (2004a), aparecem os termos integração, reinserção e/ou inclusão sem referência a alguma diferenciação dos mesmos. Escorel (2006) coloca os termos inserção e integração como conceitos vizinhos e positivos em relação ao fenômeno negativo, que seria a exclusão. Estes designam processos de coesão social cujas desintegrações promovem diferentes modalidades de exclusão. Xiberras (1993, apud ESCOREL, 2006) define inclusão como “dar um lugar” na sociedade, isto é, direitos, oportunidades e estatutos similares para todas as pessoas. Entretanto, Donzelot (1996, apud Bogado, 2003: 47) sugere uma diferenciação entre os termos “integração”, “inclusão” e “inserção”. Define que o termo “integração” refere-se a uma submissão às regras já impostas pela sociedade, sem questionar a organização da mesma; a “inserção”, por sua vez, levaria em conta a idealização de um projeto pessoal e sua posterior execução, numa negociação permanente entre o sujeito e a sociedade, sem submissão de uma das partes pela outra. E coloca que ambas, “integração” e “inserção”, poderiam ser então pensadas como “técnicas de 25 inclusão”: a opção por uma delas teria a ver com a forma pela qual se quer fazer participar da vida social os sujeitos ditos excluídos. Tykanori (1996, p.55) usa o termo reinserção social e o define como “um problema de produção de valor, referido aos pacientes”. A (re) inserção social poderia assim ser entendida como um processo de restituição do poder contratual do usuário. Saraceno (2001) aponta que é necessária uma maior problematização sobre a forma como a sociedade capitalista está organizada, que traz como consequência uma legião de excluídos da participação na mesma. Propõe como estratégia de inclusão social a mudança das regras da sociedade para que dela (a sociedade) participem fracos e fortes. A questão da inclusão, reinserção ou integração social permeia a prática de todos os novos serviços de saúde mental, porém as armadilhas por ela impostas são, ainda hoje, de difícil superação, visto que a (re) inclusão social proposta pode tornar-se apenas uma adaptação pura e simples destes sujeitos ao “mundo extramuros” do manicômio, que aqui será entendida como integração, ou, de outra forma, propor negociações para a participação dos sujeitos enfermos mentais, na cidadania, entendida como reinserção. Muitos são os desafios existentes, entretanto, no atual cenário brasileiro, transformações em relação à atenção em saúde mental já vêm ocorrendo, porém muito ainda se mantém em relação ao momento em que o louco passou a ser reconhecido como doente mental. A lógica da exclusão social ainda prevalece, mostrando a necessidade de uma mudança de cultura na sociedade para outro olhar sobre a diferença. O caminho do resgate da cidadania das pessoas portadoras de transtornos mentais coloca-se como o “eixo ordenador da assistência à saúde mental quando, exatamente, a palavra de comando é a não conformidade com a lógica manicomial” (RIBEIRO, 2003:101). 26 2. CIDADANIA E LOUCURA 2.1 Aos Loucos o Hospício Contradições e (aparentes) paradoxos se apresentam em relação à cidadania dos “loucos”. Somos levados a pensar na aquisição da cidadania pelo uso autônomo da razão e o exercício racional da autonomia. Pensando nessa lógica, Bezerra (1992) levanta as seguintes questões: como exigir cidadania aos “loucos”, cuja característica central é a de que estes não se encontram de posse de sua razão, e como articular a reivindicação de autonomia e práticas emancipatórias com intervenções terapêuticas, cuidado e proteção? (BEZERRA 1992). Para compreender como essas questões vieram a ser formuladas dessa maneira, é necessário entender como os “loucos”, ou pessoas portadoras de transtornos mentais, ou ainda enfermos mentais, foram postos no lugar de excluídos na sociedade. Na Antiguidade grega, a loucura não era considerada enfermidade e existia uma tolerância a essas pessoas, que se explica pelo fato de que as sociedades hierárquicas, não sendo igualitárias, concebiam a proximidade com o louco como não problemática, porque vista a partir de uma diferença absoluta deste para com os homens considerados ‘normais’ (VASCONCELOS 2006). Segundo Pelbart (1989), a “Antiguidade grega manteve com o louco uma proximidade de fato e uma distância absoluta de direito” (PELBART, 1989:43). Este autor continua dizendo que, mesmo que essa alteridade fosse irredutível, exterior ao sujeito e alheia a qualquer mediação apropriativa, isto não significava, de modo algum, que a loucura ocupasse um lugar contrário ao da razão. Para o autor, isso parece estranho, já que “uma desrazão não contraditória à razão é algo que nosso pensamento não está acostumado a conceber”. (PELBART, 1989:42) A exclusão, entendida como não participação social e algum enclausuramento dos “loucos”, é anterior à criação dos hospitais psiquiátricos e da loucura obter status de doença. Isto é trazido por Foucault (2004) quando relata os episódios conhecidos 27 como a “nau dos loucos” 5. Nos séculos XVII e XVIII, com a ruptura da ordem feudal, uma população indiferenciada – composta de mendigos, deficientes, crianças, velhos e doentes – migrou para as cidades, causando grave crise social. A solução encontrada foi a reclusão em instituições semijurídicas, chamadas de Hospitais Gerais, culminando no período conhecido como a “grande internação” (FOUCAULT, 2004). O Hospital Geral, como denomina Foucault (2004), foi, ao mesmo tempo, um espaço de assistência pública, acolhimento, correção e reclusão. “O Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece entre a polícia e a justiça, nos limites da lei: é a terceira ordem de repressão.” (p.50) Com o advento da Revolução Industrial, muitos dos grupos marginalizados tornaram-se mão-de-obra potencial para o trabalho, o que não ocorreu com os doentes e os insanos. Como os insanos se apresentavam inaptos ao labor e ofereciam perigo à paz e à tranquilidade social, foram encaminhados a um local específico para essa população, que viria a ser o hospital psiquiátrico. Este se configurou, desde a sua criação, como uma “prática da contradição [...] entre a finalidade terapêutica e certas funções político-administrativas” (RESENDE, 2000, p.59). Nesse sentido, o que não poderia ser contido pela polícia deveria ser assistido e controlado por outro poder. Na modernidade, a razão é tida como característica essencial do ser humano, e o “louco” percebido como aquele que não está em posse de sua razão. Em função de o “louco” ser entendido como desarrazoado, não foi permitido ao mesmo entrar na lógica das trocas sociais criadas e, consequentemente, não foi considerado cidadão. Restou ao louco a fraternidade. Na intenção de fraternidade é criada a psiquiatria, tendo como um dos expoentes o médico Philippe Pinel, que fica conhecido pelo seu gesto de libertar os insanos das correntes, tendo criado um espaço onde os mesmos pudessem ser tratados. Este gesto simboliza a criação da psiquiatria e de um lugar onde a mesma pudesse exercer seu poder, o hospital psiquiátrico. Desde a sua criação, esse espaço se apresenta contraditório, inclui para excluir. A criação de um espaço positivo, 5 Nau dos loucos era uma embarcação que levava os considerados loucos pelos mares, sem que pudesse aportar 28 inclusivo, é também espaço de marginalização e, com isto, cria-se o paradoxo: inclui para excluir, por isso marginaliza excluindo (LUZ 1994). É nesta direção que a influência de Pinel, na busca da libertação dos insanos dos grilhões e na criação da psiquiatria, vem sendo considerada como a primeira “reforma” no modo de operar sobre a loucura; porém, segundo Foucault (2004), esta “libertação” os deixou entre os muros do internamento, espaço que ficou designado como local natural da loucura. Como diretor do Bicêtre, Pinel manda desacorrentar os alienados e inscreve suas alienações na nosografia médica, esquadrinha o Hospital Geral e nele reserva um primeiro espaço rigorosamente médico para os mesmos. “A possibilidade de aglutinar os loucos num mesmo espaço, para conhecer e tratar suas loucuras, permite o nascimento da psiquiatria” (AMARANTE 1996:41), que, por sua vez, constitui a condição de enfermidade mental. A psiquiatria surge na França, após a Revolução Francesa, e institui-se sob o pano de fundo de uma nova sociedade contratual. Nesta sociedade, o louco é uma nódoa. “Insensato, ele não é sujeito de direito; irresponsável, não pode ser objeto de sanções; incapaz de trabalhar ou de servir, não entra no circuito regulado das trocas” (CASTEL, 1978 Apud AMARANTE 1996:34). É, pois, a partir da ordem moderna que a loucura se tornaria problemática, sustentada pelos ideais de igualdade, porque o louco se transforma em um ser semelhante, um cidadão com o qual podemos e precisamos nos comunicar e a quem se deve o cuidado e o tratamento. Daí a ideia de resgate desses indivíduos para uma igualdade de fato, como algo que já possuem como direito potencial (VASCONCELOS 2006). Mais um paradoxo, portanto, se faz presente no entendimento da cidadania dos loucos. Na Grécia, a loucura era vista como uma alteridade irredutível (PELBART 1989), porém, na modernidade, Pinel supõe que há uma possibilidade de restauração da razão através da reclusão no hospital psiquiátrico e do tratamento moral. Essa possibilidade parece desaparecer assim que esse sujeito recebe o em nenhum porto. Foucault (2004) 29 diagnóstico de “louco”, passando a frequentar o ‘local da loucura’. Com isso, o sujeito/louco ficava “eternamente” excluído dos direitos de cidadania. Na época moderna, a identidade com o louco é de direito, e a distância de fato, através da reclusão asilar. Alterou-se, com isso, a geografia da loucura: se antes ela era impensável por estar demasiado próxima e, ao mesmo tempo, excessivamente distante, tanto do homem como da razão, a modernidade poderá pensar a loucura “(...) porque, ao subordiná-la antiteticamente à racionalidade médica, terá consumado, no mesmo gesto, sua subjugação”. (PELBART, 1989:44) O espaço institucionalizado para o louco passou basicamente pela criação de um espaço político do desvio de comportamento, de atitude, e de desejo (LUZ 1994). A loucura, até então objeto da filosofia, que, em resumo, tratava das questões da alma, das paixões e da moral, passa, com Pinel, a ser objeto também da medicina (AMARANTE 1996). Como foi postulado anteriormente, é no contexto das revoluções Francesa e Americana do séc. XVIII que emerge a concepção moderna de democracia e de sua figura essencial, o cidadão, agora identificado a uma subjetividade fundada numa razão universal (BEZERRA 1992). Ao fundar-se a subjetividade moderna, numa tradição racionalista e universal do ser humano, postula-se uma natureza comum, pela via da razão, a todos os homens. “O peso normativo desse fundamento traz como consequência uma impossibilidade de pensar a experiência da loucura fora da oposição razão/desrazão, que desemboca em outra: inclusão/exclusão” (BEZERRA 1992:118). Descrever a loucura como negatividade de uma razão, que se impõe como normativa, é condenar o louco à condição de excluído daquilo que definiria a própria humanidade do homem. Se, na figura de doença mental, foi reconhecido ao louco o estatuto social de enfermo, com direito à assistência e ao tratamento, sob a proteção do Estado, foi com base nesse mesmo discurso de enfermidade mental que se autorizou também a exclusão social dos doentes mentais e a destituição de seus demais direitos sociais, isto é, da sua condição de cidadania plena. Estamos, portanto, confrontados com um 30 paradoxo estrutural que se inscreve na constituição histórica da figura da enfermidade mental. (BEZERRA 1992) Portanto não se trata de um não reconhecimento da condição de cidadania dos enfermos mentais, de um simples desvio de rota operando sobre um fundo reconhecido de positividade de seus legítimos direitos sociais, mas de uma positividade que nunca existiu de fato e de direito, sendo essa ilusão de positividade uma ilusão constitutiva da psiquiatria como saber no nosso imaginário social. Enfim, a exclusão social da figura da doença mental da condição de cidadania estabeleceu-se estruturalmente na tradição cultural e histórica do Ocidente quando, num lance decisivo, o campo da loucura foi transformado no campo da enfermidade mental, na aurora do século XIX”. (BIRMAN, 199:73). Isto ocorre, paradoxalmente, na modernidade, na qual, com a constituição da psiquiatria, o “dano” não é mais considerado incurável, ou seja, acredita-se que o louco pode ser curado e sua razão restaurada por meio de seu aprisionamento nos hospitais psiquiátricos. Isto é defendido por Pinel quando observa que é possível tratar, porque não haveria perda absoluta da razão ou da liberdade, mostrando a possibilidade de tratamento para a alienação mental. Porém, segundo Birman (1992), para que ocorra a recuperação da razão, ...o louco deveria ser submetido ao ‘sequestro’ asilar, com finalidades terapêuticas, para que, pelo processo de desalienação, pudesse recuperar a sua condição de sujeito de contrato social (P.75) E nesse processo cria-se um círculo vicioso, no qual, para devolver a razão, é necessário o enclausuramento, porém, quando enclausurado, o estigma cola à pessoa, impossibilitando-lhe de exercer seus direitos de cidadania. 2.2. Cidadania e Loucura no Modelo de Atenção Psicossocial Até aqui, partimos do princípio de que a loucura não é tão-somente um conjunto de fenômenos psicopatológicos, mas uma relação entre pessoas, saberes e poderes, mediada por um imaginário: o imaginário da loucura. Pensar a inclusão social desses sujeitos, logicamente, remete ao desenvolvimento da cidadania, e a cidadania, para as pessoas portadoras de transtornos mentais, ficou restrita aos direitos humanos universais e à sua inscrição no universo da razão. 31 Historicamente, os hospitais psiquiátricos, locais tidos como responsáveis pelo tratamento e restauração da razão dos ‘loucos’, não cumpriram sua função. Porém só passaram a ser alvo de críticas no período que sucedeu as grandes guerras mundiais, quando foram comparados aos campos de concentração. Naquele contexto, eles foram questionados por sua baixa eficácia terapêutica, seus altos custos, seus efeitos de violência e exclusão social (DESVIAT, 2002). Foi a partir de então que propostas de enfrentamento se fizeram mais eficazes. Por volta de meados do século XX e, portanto, decorrido um século e meio após o surgimento da psiquiatria, vários movimentos de contestação deste saber e prática instituídos se fizeram notar no cenário mundial, dos quais se destacam os movimentos denominados Psicoterapia Institucional e Psiquiatria de Setor, na França; as Comunidades Terapêuticas, na Inglaterra, e a Psiquiatria Preventiva, nos EUA. Esses movimentos se caracterizaram por visar a uma reforma do modelo de atenção psiquiátrica, com importantes inovações, mas se constituindo em rearranjos técnico-científicos e administrativos da psiquiatria. É com o movimento italiano denominado de psiquiatria democrática, a partir da década de 1960, que ocorre uma radicalidade na perspectiva da desinstitucionalização, a partir de propostas de uma mudança do tratamento psiquiátrico, em que a intenção não é mais a questão da melhoria do hospital psiquiátrico, mas sua abolição (ROTELLI, LEONARDIS, MAURI, 2001).6 O que fundamentou a proposta da Psiquiatria Democrática Italiana, que teve como expoente o médico psiquiatra Franco Basaglia, foram duas questões básicas: a radicalização da ideia de separação entre loucura (o fenômeno existencial de determinadas manifestações humanas) e doença mental (entendida como uma produção intelectual, como uma forma determinada de interpretação desse fenômeno) e uma cisão na equação louco=perigoso. Os atores desse processo colocavam que o aprisionamento nessas duas ideias terminava por justificar (em nome do risco que não se pode correr) a exclusão e a segregação, portanto a punição do adoecimento. Esse processo foi definido por Basaglia como “criminalização da doença” (BARROS, 1994). 6 Esses movimentos de reforma psiquiátrica serão mais bem detalhados em outro capítulo. 32 Basaglia, numa atitude epistêmica, propõe colocar a doença entre parênteses, o que, segundo Amarante (2007), implica a suspensão de um determinado conceito e a possibilidade de novos contatos empíricos com o fenômeno em questão, no caso, a experiência vivida pelos sujeitos. Dessa forma, a “doença entre parênteses não significa a negação da ‘doença’, não significa a recusa em aceitar que exista uma experiência que possa produzir dor, sofrimento, diferença ou mal-estar” (p.67), não é a negação da experiência, mas uma ruptura com o modelo teórico conceitual da psiquiatria, que tem como modelo de ciência o das ciências naturais. Portanto, com a doença entre parênteses, é possível deixar de se ocupar somente dos fenômenos psicopatológicos para se deparar com “o sujeito com suas vicissitudes, seus problemas concretos do cotidiano, seu trabalho, sua família, seus parentes, seus vizinhos, seus projetos e anseios” (AMARANTE, 2007:69). Essa mudança de postura no olhar do fenômeno da loucura possibilitou uma ampliação da noção de integralidade no campo da saúde mental. A influência desses movimentos de crítica à psiquiatria, principalmente o italiano, foi notada no contexto social brasileiro, principalmente a partir da década de 1980, no ocaso da ditadura militar e da aguda crise econômica que caracterizaram o período. A sociedade reencontrava as vias democráticas de expressão e reivindicação e, neste contexto, as ideias de Foucault, Goffman, Castel, Szasz, Basaglia e outros tiveram uma forte influência. A situação de precariedade em que se encontrava a assistência psiquiátrica brasileira, nessa época, marcada pela falência de um modelo privatizante que havia se instalado no setor de saúde do país, era favorável à crítica proposta por esses pensadores e por movimentos sociais (compostos de trabalhadores, usuários e familiares). Os hospitais psiquiátricos, que centralizavam a assistência e sendo praticamente únicos na oferta de serviços psiquiátricos no contexto nacional, tiveram as condições internas de maus-tratos aos internados desnudados e denunciados no processo social brasileiro de “abertura democrática” (OLIVEIRA e ALESSI, 2005). No Brasil, este movimento de críticas ao hospital psiquiátrico e a proposta de delinear um “outro lugar social para a loucura” (BIRMAN 1992:72) é chamado de Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB). Trata-se de um processo histórico que se 33 constitui pela crítica ao paradigma médico-psiquiátrico e pelas práticas que transformam e buscam superar esse paradigma no contexto brasileiro. As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas pelas mobilizações dos trabalhadores de saúde mental e da sociedade civil organizada em prol do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. O direcionamento político, inicialmente marcado pelos princípios da Declaração de Caracas, pede a retirada do hospital de seu papel hegemônico, a reestruturação da assistência ligada ao atendimento em nível primário. O respeito aos direitos humanos dos portadores de transtornos mentais torna-se presente nesta luta, orientando as 2ª e 3ª conferências de Saúde Mental. Propostas legislativas marcaram presença neste período, com as portarias publicadas a partir da década de 1990, o Projeto de Lei nº. 3.657/89, do deputado Paulo Delgado, que foi aprovado em 2001 como a Lei 10.216/01, conhecida com Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira, dentre outras (Brasil 2004a). No movimento da RPB, a questão da inclusão social se faz presente, colocando-se como uma meta na mudança da lógica na atenção em saúde mental. A RPB é definida por Amarante (2003) como um processo social complexo, que se articula em quatro dimensões: o campo epistemológico, a dimensão técnico-assistencial, a dimensão político-jurídica e o campo sociocultural. No campo epistemológico, evidencia-se a necessidade de contestação da própria ciência como produtora da verdade e, por consequência, dos seus conceitos; na dimensão técnico-assistencial, o lugar de tratamento deixa de ser o asilo e convertese no território, caracterizando a dinâmica dos serviços substitutivos como ações territoriais de penetração social; na dimensão político-jurídica, a discussão ocorre não só no aspecto da legislação (criação de leis e portarias que auxiliem o processo de reforma psiquiátrica), mas, principalmente, na rediscussão e redefinição das “relações sociais e civis em termos de cidadania, direitos humanos e sociais” (AMARANTE 2001. 105); na dimensão sociocultural, pode ser entendida como espaço para a construção de novas relações sociais entre sociedade e loucura, esta não mais vista como incapacitante. Investimentos nesse campo tornam possível a 34 inclusão social dos loucos e o resgate ou a conquista de sua cidadania. (AMARANTE, 2003). A política de saúde mental brasileira já superou o proposto pela Declaração de Caracas, e, com a influência das ideias da psiquiatria democrática italiana, propõe várias estratégias de atenção à pessoa portadora de transtornos mentais na direção do respeito de seus direitos e da sua cidadania. Portanto, é importante contextualizar sucintamente o momento por que passou e passa o campo da saúde mental no Brasil, entendendo que o movimento de reforma psiquiátrica é um processo que ainda está sendo sistematizado em nosso país7. A aprovação da Lei MS. 10.216/01, apesar das reformulações do projeto inicial (Projeto de Lei nº 3.657/89, do deputado Paulo Delgado), suscitou, no seu período de tramitação e após este, uma discussão além da assistência em saúde mental, mas também acerca dos conhecimentos que envolvem a questão da loucura, sejam eles no questionamento da ciência, da cultura, dos direitos, principalmente o direito à cidadania, da coisa social. Questionamentos esses que não são restritos ao campo da saúde mental. Esta abertura de discussões e negociações permitiu que aparecesse a complexidade do fenômeno que envolve o que se denomina como loucura. Isto possibilitou que essa discussão não ficasse restrita ao aspecto psicopatológico ou só da área psi, mas que se vislumbrasse o campo da problematização, questionando a possibilidade de convivência com a diferença. Isto foi possível, nesse momento histórico, por estarem sendo postas em discussões ideias (pré) determinadas sobre várias questões. Em relação à ciência, em várias áreas do conhecimento, têm existido questionamentos sobre a formulação do que é o conhecimento científico; no que tange as relações sociais, apesar de alguns movimentos radicais, percebem-se as mudanças nos padrões comunicacionais e relacionais, fazendo com que pessoas identificadas como “minorias” tenham maior participação na sociedade. 7 Os textos de Amarante (2007, 2003, 1997) e Vasconcelos (2008), dentre outros, aprofundam melhor sobre o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. 35 Na virada do século e do milênio, que trouxe questionamentos de várias ordens no planeta, vamos nos restringir ao Brasil, especificamente na área de saúde mental. A atenção em saúde mental no Brasil vem passando por transformações substanciais, desde a década de 1980, gerando discussões políticas e ações sobre o tema. Com isso, tem sido proposto um arcabouço assistencial centrado em serviços territoriais, baseados na proposta da construção de um “novo lugar social” para o ‘louco’ (BIRMAN 1992), que tome a direção da cidadania e da participação social. Com o movimento social e a conformação na esfera jurídica, a assistência psiquiátrica começa a ser reestruturada, desenhando outro cenário no campo da saúde mental. As propostas de mudanças trafegaram desde as novas tecnologias do cuidar até o deslocamento da assistência dos asilos para serviços territoriais. Os novos serviços propostos, conhecidos como serviços substitutivos (Centro de Atenção Psicossocial [CAPS], Serviços Residenciais Terapêuticos, Centros de Convivência, Leito Psiquiátrico em Hospitais Gerais [LPHG]), se adequaram desde seu início às diretrizes do SUS. Destes, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é colocado como estratégico na mudança do modelo de atenção. O Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é um serviço do Sistema Único de Saúde (SUS) que deve ser referência de tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais. O objetivo dos CAPS é oferecer atendimento à população de sua área de abrangência, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários (BRASIL 2004b). Estes serviços visam, dentre outras metas: Promover a inserção social dos usuários através de ações intersetoriais que envolvam educação, trabalho, esporte, cultura e lazer, montando estratégias conjuntas de enfrentamento dos problemas. Os CAPS também têm a responsabilidade de organizar a rede de serviços de saúde mental de seu território (BRASIL 2004b. 13). Dentre as metas do CAPS, inserem-se as atividades que podem ser desenvolvidas fora do serviço como parte de uma estratégia terapêutica de reabilitação psicossocial, que poderá iniciar-se ou ser articulada pelo CAPS, mas que se 36 realizará na comunidade, no trabalho e na vida social. O CAPS pode articular cuidado clínico e programas de reabilitação psicossocial de acordo com o projeto terapêutico individual/singular (PTI/S). Nesses PTI/S devem constar a construção de projetos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e os princípios de cidadania que minimizem o estigma e promovam o protagonismo de cada usuário frente a sua vida (BRASIL 2004b). O lugar que um CAPS ocupa dentro da rede de saúde, na atual política de saúde mental, é um papel estratégico tanto no sentido de mudança da lógica do cuidado quanto de articulador da rede, sabendo que essas articulações serão realizadas tendo como eixo aglutinador as pessoas, sua existência, seu sofrimento. Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) deverão assumir seu papel estratégico na articulação e no tecimento dessas redes, tanto cumprindo suas funções na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, quanto na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários, articulando os recursos existentes em outras redes: sociossanitárias, jurídicas, cooperativas de trabalho, escolas, empresas, etc. (BRASIL, 2004b: 12). O Brasil tem dado ênfase à implementação dos serviços substitutivos, principalmente dos CAPS, porém ainda tem sido considerado insuficiente quanto ao número como também ao “modo de funcionamento destas instituições e em que medida este funcionamento se aproxima do ideário da reforma psiquiátrica e, (....) quanto ao real formato da rede assumido pelos serviços de saúde mental e pelos serviços de atenção primária” (NUNES 2008:189). Sabemos que os recursos não se resumem à rede de serviços em saúde, porém a condição mínima é uma rede de saúde mental, que, no Brasil, ainda se mostra insuficiente tanto em relação à quantidade como em relação à direção que vem tomando. Para além da legislação construída, observa-se a existência de vontade política, que é demonstrada na efetivação da disponibilização dos recursos, que, no caso brasileiro, tem sido concretizada com a diminuição dos leitos em hospitais psiquiátricos, implantação dos serviços substitutivos e estratégias, como o CAPS, serviços residenciais terapêuticos, ações integradas e sistemáticas da saúde mental 37 com a atenção básica, leito psiquiátrico em hospitais gerais, espaços de convivência, inclusão pelo trabalho e a ampliação do programa “De Volta para Casa”. A redução de leitos psiquiátricos é uma realidade. Em 2002, existiam no Brasil 51.393 leitos em hospitais psiquiátricos e, em outubro de 2008, esse número era 36.797. O Ministério da Saúde recomenda que o fechamento de leitos nos estados seja feito de forma planejada e gradual a fim de garantir a assistência na rede extrahospitalar. Os números demonstram que esta diminuição dos leitos vem ocorrendo gradativamente com a expansão da rede de serviços de saúde mental (BRASIL, 2008:17). Quantitativamente, os documentos do Ministério da Saúde revelam que o “aumento da cobertura de CAPS passou de 21%, em 2002, para 53%, ao final de 2008” (BRASIL, 2008:). Atualmente, o Brasil conta com 1.290 CAPS, distribuídos desigualmente nos estados e “entre os 266 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes; 40 ainda não implantaram CAPS de nenhum tipo. A maioria desses municípios situa-se no estado de São Paulo (22), Rio de Janeiro (4), Goiás (3) e Minas Gerais (2)” (BRASIL, 2008:11). Quanto às residências terapêuticas – SRTs, estas passaram de 85, em 2002, para 502 em 2008, segundo dados do Ministério da Saúde (BRASIL, 2008). Coloca-se como dificuldade para expansão deste serviço o custeio, pois a “realocação das AIHs dos leitos descredenciados do SUS para a manutenção dos moradores na Residência Terapêutica não é automática”, ficando na dependência de pactuações entre os gestores municipais e estaduais. Os Centros de Convivência, equipamentos pensados no sentido da inclusão social, somam atualmente 51, principalmente nos estados de São Paulo e Minas Gerais. Constatou-se que as atividades desenvolvidas por estes Centros são diversificadas: “Envolvem música, artes plásticas, cinema, teatro, recreação, esporte, cerâmica, bordado, letras, culinária, modelagem, expressão corporal, atividades externas e outras” (BRASIL, 2008:13). Trabalhos intra e intersetoriais também são típicos desses equipamentos. 38 O programa De Volta para Casa teve 3.104 beneficiários em 2008. O valor do benefício, conhecido como auxílio-reabilitação, equivalia a um salário mínimo na época em que foi implantado, em 2003. Este só foi reajustado em novembro de 2008, passando a valer R$ 320,00 (BRASIL, 2008:15). Só para ter uma referência, em 2008, no Brasil, o salário mínimo era R$ 430,00. O Ministério da Saúde demonstra entender que, apesar da expansão das ações de saúde mental, É preciso ampliar ainda mais a rede CAPS (especialmente os CAPS III, CAPSi e CAPSad), os leitos em hospitais gerais, as residências terapêuticas, os centros de convivência, os programas de redução de danos, as iniciativas de inclusão social pelo trabalho, o número de beneficiários do programa De Volta para Casa e as ações de saúde mental na atenção básica. (BRASIL, 2008:4) Dimenstein (2006) aponta alguns desafios, existentes no Brasil, em relação à inserção dos portadores de transtornos mentais, e os classifica em três dimensões: a dinâmica das instituições de saúde; a falta ou precariedade na rede de serviços de saúde e de equipamentos sociofamiliares e comunitários; e os “desejos de manicômio”. Em relação à dinâmica institucional, a autora coloca duas vertentes: uma em relação à organização do processo de trabalho que envolve questões salariais, condições de trabalho e capacitação profissional que viabilizem as novas formas de cuidado em saúde mental; e a outra em relação à dinâmica do serviço, que apresenta fragilidades em termos de abrangência, de acessibilidade, diversificação das ações e qualificação do cuidado (DIMENSTEIN, 2006; ALVERGA e DIMENSTEIN 2006). Outra dificuldade é a precariedade de uma rede de serviços de saúde e de equipamentos sociofamiliares e comunitários que sirva de base de apoio, de encontro, de diversão, para que as pessoas não fiquem confinadas nas instituições e possam circular pela cidade. O terceiro ponto colocado por Dimenstein (2006), que diz respeito aos “desejos de manicômio”, termo cunhado por Machado & Lavrador (2001, Apud ALVERGA e DIMENSTEIN 2006), sendo definido como: 39 Eles (desejos de manicômio) se expressam através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar. Esses manicômios se fazem presentes em toda e qualquer forma de expressão que se sustente numa racionalidade carcerária, explicativa e despótica. Apontam para um endurecimento que aprisiona a experiência da loucura ao construir estereótipos para a figura do louco e para se lidar com ele. (p: 300) As ideias presentes no nosso imaginário social calcado no estigma, no preconceito/rejeição em relação à loucura, também se apresentam como um desafio. Fazem parte do cotidiano e indicam que, a todo momento, somos capturados pela tentação de conforto das formas e dos equilíbrios (ALVERGA e DIMENSTEIN 2006). Isso também demonstra a dificuldade na mudança de formas de pensar a vida. Mais uma razão, portanto, para que este estudo abra uma via de perspectiva em relação à humanização dos enfermos mentais, já que, em essência, a função do CAPS é desempenhar um papel diferenciado no caminho da inclusão social, pautado no estímulo e fortalecimento dos laços familiares e comunitários, nas parcerias, na garantia dos direitos de cidadania, no espaço de possibilidade para a construção de outro olhar para a loucura, que não seja o do preconceito. O que justifica a escolha do CAPS como campo de pesquisa deste estudo é a sua função como serviço estratégico na política de saúde mental brasileira e um lugar potencial para que transformações ocorram. Dentre as propostas e ações do CAPS que visem à reinserção social dos seus usuários está a construção/reconstrução de uma rede social, incentivo à autonomia, à discussão sobre o acesso ao trabalho e aos direitos de cidadania. 40 3. A REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE INCLUSÃO SOCIAL 3.1. Reformas Psiquiátricas e a Direção da Reabilitação Desviat (2002) aponta que o movimento das reformas das psiquiatrias no mundo começaram a ganhar corpo após a Segunda Guerra Mundial, num cenário de crescimento econômico, da existência de movimentos civis e de maior tolerância e sensibilidade com as diferenças e as minorias. Além disso, destacam-se questões específicas do campo da saúde mental, como a descoberta de psicotrópicos e a adoção da psicanálise e da saúde pública em instituições psiquiátricas. Segundo Desviat (2002), o que diferenciou as reformas psiquiátricas foram as características peculiares de cada país, principalmente do sistema sanitário. O tipo, a forma de organização e o grau de cobertura condicionaram o modelo adotado de atendimento de saúde e, portanto, dos serviços de saúde mental, além do papel outorgado ao manicômio. O lugar do manicômio/hospital psiquiátrico é questionado em todos os modelos de reformas psiquiátricas. Em alguns desses, pretendeu-se sua transformação em uma instituição terapêutica, como é o caso da psicoterapia institucional ou da comunidade terapêutica. Em outros, foi proposto o seu fechamento como precondição da reforma, como é o caso da psiquiatria territorial italiana ou da desinstitucionalização dos EUA (DESVIAT, 2002). Faremos uma síntese de algumas experiências de reformas que aconteceram na França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e Itália, marcantes por sua inovação e impacto, e por até hoje permanecerem influenciando as experiências contemporâneas. Destacaremos, nessa análise, a maneira que estas pensaram a inclusão social dos enfermos mentais. 41 Na França, após a Segunda Guerra Mundial, os psiquiatras franceses se reuniram em jornadas nacionais, em 1945 e 1947, quando foram produzidos 24 pontos que se converteram em um documento da nova psiquiatria francesa. Estes pontos tratavam, dentre outras questões: Do acesso universal e formas de atendimento de boa qualidade; abandono do conceito de assistência para chegar à estratégia de projetos terapêuticos individuais (PTI), considerando ao mesmo tempo a dimensão pública e coletiva dessa medida de saúde; a unidade e indivisibilidade da prevenção, profilaxia, do tratamento e do pós-cura devem ser respeitadas ao máximo (DESVIAT, 2002:27) A internação é parte dos procedimentos de tratamento que devem “ser redefinidos e aplicados com grande flexibilidade e com o máximo de iniciativa médica” (DESVIAT, 2002:27). A crítica a este ponto é o resgate do hospital psiquiátrico como o local ideal de tratamento e do pensamento de Esquirol: “Uma casa de alienados é um instrumento de cura; nas mãos de um médico habilidoso, é o agente terapêutico mais eficaz frente às doenças mentais” (ESQUIROL, 1991 apud DESVIAT, 2002). A psicoterapia institucional, fundamento teórico da política francesa de setor, é, sem dúvida, a tentativa mais rigorosa de salvar o manicômio, segundo Desviat (2002). Esta foi influenciada pela psicanálise e procurou “organizar o hospital psiquiátrico como um campo de relações significativas, de utilizar em um sentido terapêutico os sistemas de intercâmbio existentes no interior da instituição” (p.25). Já a ideia da política de setor tinha um espírito extra-hospitalar, pois o hospital deixa de ser o único lugar de tratamento e passa a ser um elemento a mais num sistema complexo de cuidados e assistência. O setor abrangia uma determinada área geográfica, que incluía leitos hospitalares e recursos extra-hospitalares. O hospital psiquiátrico era distribuído entre os setores, e, entre os recursos extra-hospitalares, havia os lares de pós-cura, oficinas protegidas e clubes terapêuticos. Na política de setor havia três princípios básicos: o da setorização; o da continuidade terapêutica (uma mesma equipe, no conjunto de cada setor, deveria fornecer o tratamento e se encarregar do paciente, nos diferentes serviços e momentos do tratamento, desde a prevenção até a cura e a pós-cura); e o 42 deslocamento do eixo da assistência, do hospital para o espaço extra-hospitalar. O paciente deveria ser atendido na própria comunidade (DESVIAT, 2002). O efeito de cronificação da instituição psiquiátrica deveria ser evitado. O Sistema Nacional de Saúde Inglês tornou-se referência mundial, o primeiro no mundo do livre mercado a demonstrar as vantagens, em equidade e eficiência, de uma política sanitária planejada. O pilar do sistema era a continuidade do tratamento, e a ideia da territorialização foi adotada em todos os dispositivos sanitários. Na Grã-Bretanha, o fechamento dos hospitais psiquiátricos não era em si mesmo um objetivo do governo, porém a política do governo inglês e dos Países de Gales tinha como objetivo conseguir para os doentes mentais serviços locais para que os tratamentos se realizassem em hospitais gerais e hospitais-dia. Tinha como pressupostos a garantia de continuidade do tratamento (desde atenção primária, generalistas, dando inclusive atendimento psiquiátrico, operando visitas domiciliares) e o controle do acesso aos cuidados especializados. A comunidade terapêutica proporcionou um meio de organizar as atividades nas instituições em tempo de escassez de pessoal. Teve em Maxwell Jones seu representante. Segundo Desviat (2002), não existia um único modelo de comunidade terapêutica, porém alguns princípios foram enunciados, como: “democratização de opiniões, tolerância, comunhão de intenções e confronto com a realidade” (p.35). Os benefícios da comunidade terapêutica se encerravam quando o paciente saía da instituição psiquiátrica, não sendo previsto um acompanhamento fora da mesma. A antipsiquiatria iniciou-se na Inglaterra e teve como seus mais ilustres representantes Ronald Laing e David Cooper. Após experiências com a comunidade terapêutica e a psicoterapia institucional, ambos perceberam que os modelos citados não tinham muito futuro. A partir daí, passaram a considerar que os ‘loucos’ eram pessoas oprimidas e violentadas, tanto dentro das instituições, como na família e na sociedade. Em função disto, elaboram a “hipótese de que o discurso dos loucos 43 denunciava a trama e os conflitos, enfim, as contradições existentes na família e na sociedade” (AMARANTE, 2007:52) Segundo Amarante (2007), a denominação antipsiquiatria não foi uma boa escolha, pois a mesma acabou sendo identificada como movimento de mera contestação e rebeldia. As experiências que ocorreram foram tidas como marginais e sem legitimação política. Entretanto, este movimento teve uma contribuição teórica, que foi a construção de uma crítica à psiquiatria, no seu marco teórico-conceitual, o modelo de conhecimento das ciências naturais. Este movimento teve ainda um impacto cultural e teórico bem maior do que organizacional. O sistema de saúde americano era e continua a ser, em que reinam os seguros privados e as desigualdades regionais. O marco para o surgimento da psiquiatria preventiva foi um censo realizado em 1955, no qual as condições precárias, de maus-tratos e de violência nos hospitais psiquiátricos foram tornadas visíveis (AMARANTE, 2007). Isto fez com que o presidente Kennedy lançasse o programa nacional de saúde mental, conhecido como saúde mental comunitária. O próprio nome já indica que a assistência comunitária deve ser central. Este programa previa a redução de leitos psiquiátricos e fechamentos de hospitais psiquiátricos, e tinha como base a psiquiatria preventiva, que teve em Gerald Caplan seu idealizador. Caplan adotava uma teoria etiológica baseada no modelo da história natural das doenças, de Leavell e Clark, que pressupõe uma linearidade no processo saúde/enfermidade e uma evolução histórica das doenças (AMARANTE, 2007). A psiquiatria preventiva nos EUA transportou conhecimentos da saúde coletiva para a psiquiatria e considerava que esta intervenção poderia ser realizada em três níveis: 1) prevenção primária: intervenção nas condições possíveis e formação da doença mental, condições etiológicas, que podem ser de origem individual e/ou do meio; 2) prevenção secundária: intervenção que busca a realização de diagnóstico e tratamento precoces da doença mental; 3) prevenção terciária: que se define pela 44 busca da readaptação do paciente à vida social, após sua melhora (DESVIAT, 2002). Os community mental health center traziam como premissa o fato de que a comunidade é competente e, como princípios, a gratuidade, acessibilidade, informação, levantamento das necessidades reais, responsabilidade perante os doentes e as famílias, e a prevenção. É nesta que ocorrem as mais contundentes críticas a esta proposta, pois partia do princípio de que as doenças mentais poderiam ser prevenidas, desde que fossem detectadas precocemente. Isto favoreceu uma “busca de suspeitos”, termo utilizado por Caplan, criando com isso uma verdadeira caça a todo tipo de suspeito mental. Os centros comunitários de saúde mental eram organizados com consultas externas, programas especializados e atendimentos de emergência. O conceito de crise foi construído fundamentalmente a partir das noções de ‘adaptação e desadaptação social’ (AMARANTE, 2007). Destacam-se alguns pontos importantes desse modelo, tais como: houve um redirecionamento do esforço do psiquiatra em dar mais atenção às questões sociológicas da clientela, o profissional vira liderança comunitária e participa como cidadão dos trabalhos de planejamento, coordenação e avaliação dos programas sociais, inclusive dos serviços de saúde. Foi proposta também a estratégia de educação em saúde dirigida ao grande público (DESVIAT, 2002). Basaglia foi, sem dúvida, o grande expoente da reforma psiquiátrica italiana. Por esta ter começado mais tardiamente que a outra, pode aprender com as experiências e os limites da mesma. Desta forma, com mais conhecimento e maturidade, pode propor uma radicalidade na perspectiva da desinstitucionalização, pautada na ideia central da abolição do hospital psiquiátrico (ROTELLI, LEONARDIS, MAURI, 2001). Basaglia começou sua experiência de gestão de hospital psiquiátrico em Gorizia, mas foi em Trieste que conseguiu que a proposta fosse implantada em sua essência. Rotelli (2001) afirma que, na experiência de Trieste, iniciada por Basaglia em 1971, não se defendeu a suspensão do tratamento quando este fosse 45 necessário, mas a construção de novas possibilidades, de novas formas de entender e tratar a loucura. Sobre a “negação da instituição” escreveu Rotelli (2001:44): “... não era a negação da doença mental nem da psiquiatria, tampouco o simples fechamento do hospital psiquiátrico, mas uma coisa muito mais complexa, que se relacionava com a recusa do mandato outorgado pela sociedade aos psiquiatras para que eles isolassem, exorcizassem e anulassem os sujeitos à margem da normalidade social”. A psiquiatria democrática italiana tinha como premissa a não existência de descontinuidade entre psiquiatria e política, entre doença mental e cidadania. Na proposta sociossanitária, os centros de saúde mental triestinos deveriam funcionar 24 horas por dia e ficar encarregados de serviços médicos ambulatoriais, hospitalização breve, centros de tratamento-dia, hospital noturno, alimentação e serviços de assistência social. Com essa estrutura, criaram-se as possibilidades de fechamentos dos hospitais psiquiátricos sem que houvesse um abandono da população crônica (DESVIAT, 2002). Os centros de saúde mental (CSM) triestinos eram regionalizados desde seu início e propunham não fazer o papel da mão dupla. Isso quer dizer que assumiam o tratamento a partir do conceito de “tomada de responsabilidade”, assumindo a integralidade do cuidado em saúde mental. São serviços territoriais que propõem reconstruir as formas como a sociedade lida com as pessoas com sofrimento mental, com o objetivo de restabelecer outro lugar social da loucura. Este que, desde Pinel, esteve relacionado ao erro, à periculosidade, à insensatez e à incapacidade (AMARANTE, 2007). Amarante (2007) e Desviat (2002) avaliam essas reformas psiquiátricas. O primeiro (2007) indica os seguintes pontos: a comunidade terapêutica e a psicoterapia institucional investiram no princípio de que o fracasso estava na forma de gestão do próprio hospital e a solução seria, portanto, introduzir mudanças na instituição; a psiquiatria de setor e psiquiatria preventiva acreditavam que o modelo asilar estava esgotado e que o mesmo deveria ser desmontado ‘pelas beiradas’; e que, na antipsiquiatria e na psiquiatria democrática, o termo reforma parece inadequado, pois ambas consideram que a questão mesma estaria no modelo cientifico 46 psiquiátrico, que é todo ele colocado em xeque, assim como as instituições assistenciais. Desviat (2002) coloca a existência de três conceitos que se fizeram presentes nas reformas psiquiátricas e que cada experiência desenvolveu, reforçou ou abandonou em seu processo de definição ao longo dos anos: em primeiro lugar, a divisão por zonas (o setor francês, o território psiquiátrico da Itália, as áreas inglesas, etc.); em segundo, a continuidade do atendimento; em terceiro, a integração dos três níveis de atendimentos. Este último foi melhor captado por Caplan, que entendeu a importância da imbricação dos diferentes níveis de prevenção. Estas reformas psiquiátricas trouxeram várias inovações para o campo da saúde mental, dentre elas a regionalização da assistência, a continuidade do tratamento e a integração nos diversos níveis de atenção à saúde. Porém, a maior contribuição dessas reformas foi a constituição da ideia de convivência com a loucura fora do enclausuramento dos manicômios, isto é, da possibilidade de inclusão social dos enfermos mentais. Segundo Amarante (2007), a psiquiatria de setor francesa contribuiu bastante ao dar o primeiro passo para fora dos hospícios, organizando as primeiras estratégias de retomada da cultura, da sociedade e da família. Também inovou ao introduzir a questão do setor. Com isso, houve um deslocamento da psiquiatria no sentido da prática dos profissionais, que se ampliaram para outras categorias, outras áreas do conhecimento. Os pacientes deixaram de ser exclusivos “do médico” para se tornarem da equipe. Isto foi certamente uma grande inovação. Algumas das experiências de reforma psiquiátrica trazidas aqui têm o objetivo de apontar a direção da inclusão social dos seus enfermos mentais, principalmente aquelas cuja intenção era a substituição do hospital psiquiátrico como forma de tratamento. A estratégia utilizada foi denominada de reabilitação psiquiátrica, atualmente denominada de reabilitação psicossocial. Segundo Desviat (2002), a reabilitação psiquiátrica origina-se nos encontros de grupo de ex-pacientes dos hospitais psiquiátricos, chamados ‘não estamos sós’, que 47 ocorriam nas escadarias da Biblioteca Pública de Nova York, na década de 1940, logo após a Segunda Grande Guerra. Já os primeiros programas de reabilitação psiquiátrica foram criados por instituições sociais privadas, autofinanciadas, sem fins lucrativos, sem orientação nem direção clínica. Estas iniciativas, por terem sido criadas como programas sociais, marcarão os programas de reabilitação, como veremos adiante. Essa estratégia de inclusão social, a reabilitação psiquiátrica, vai sendo implantada de forma desigual em vários países, se estabelecendo com a ajuda governamental ou de sociedades civis. Algumas contam com a ajuda de usuários e familiares. Estas têm como objetivo habilitar ou reabilitar os enfermos mentais incapacitados, oferecendo estruturas de transição e acomodações mais ou menos protegidas (DESVIAT, 2002). O interesse pela reabilitação, na psiquiatria, numa perspectiva mundial, nasce a partir do fenômeno da (des) hospitalização e do crescimento na afirmação dos direitos dos pacientes internados. A reabilitação vem em substituição à lógica hospitalocêntrica, porém, como adverte Saraceno (2001), esta tanto pode se apresentar como uma “reprodução da lógica de controle e contenção como representar uma melhora real na qualidade do que se oferece ao usuário” (SARACENO 2001:24). A ambiguidade e heterogeneidade da noção da reabilitação permeiam as práticas nos serviços de saúde mental que trabalham nesta perspectiva. Na reabilitação, a estratégia mais adotada em relação à inclusão social é através do trabalho. É nesta direção que vai se apresentar nas várias experiências de reformas psiquiátricas. É com a psiquiatria democrática italiana que esta questão foi problematizada e ampliada. Iremos, então, resumidamente, fazer a relação das direções de inclusão com as reformas psiquiátricas apresentadas. A relação entre a psiquiatria e o uso do trabalho remonta a Pinel. É aproximadamente em 1920 que, com a criação da terapêutica ocupacional, propõese a responsabilização pela humanização do aparato asilar através do uso do 48 trabalho. Essa herança marcou, e marca, o terapeuta ocupacional como o responsável em pôr a ordem e pela ‘ocupação’ dentro dos manicômios. A reabilitação pelo trabalho, que vem como um nível de atenção da psiquiatria preventiva, marca os primeiros programas de reabilitação americanos, sendo dois deles apontados como mais importantes: o modelo de treinamento pré-profissional e o modelo de emprego apoiado. Ambos propõem a reinserção dos pacientes psiquiátricos graves no mercado de trabalho formal, porém diferem no modo que pretendem realizar esse empreendimento, o que sugere formas diversas de compreensão do adoecimento mental grave, do seu tratamento e da própria inserção social desta clientela (LEAL, 2004). No modelo de treinamento pré-profissional, as pessoas com doença mental severa necessitam de um período de preparação antes de entrar para um emprego no mercado competitivo. Esse período de preparação pode ser realizado de várias formas: “workshops protegidos; empregos de transição em que o trabalho é oferecido por uma agência de reabilitação; treinamento de habilidades e outras atividades preparatórias” (LEAL, 2004:14-15). Esse modelo sustenta-se na crença da possibilidade de resgatar as potencialidades do indivíduo, especialmente no que diz respeito a sua capacidade de adaptação ao mercado e na eficiência da intervenção reabilitadora como instrumento para promover tal adaptação8. A intervenção para a habilitação se dá no sujeito individual, em locais protegidos, e o acompanhamento se realiza exclusivamente, no período de treinamento. Depois de devidamente habilitados, são encaminhados para o mercado de trabalho formal. O modelo de emprego apoiado também é utilizado para a reinserção de pacientes psiquiátricos graves no mercado de trabalho dos EUA. Este prescinde de treinamentos longos. O treinamento deve ocorrer nos locais de trabalho, onde terão como suporte uma espécie de ‘treinado’ ou um trabalhador especialista que o acompanhará. Os princípios centrais do trabalho apoiado são: trabalho competitivo 8 Adaptação aqui entendida como uma busca de um perfil ideal do trabalhador para determinada sociedade sem problematizar as formas de produção dessa sociedade. 49 integrado à comunidade econômica; paciente inserido no trabalho, preferencialmente sem longos treinamentos anteriores; reabilitação como um componente do tratamento em saúde mental e não um serviço separado; serviços baseados nas escolhas e nas preferências dos clientes; pagamento contínuo, baseado na experiência real de trabalho. Nesta proposta destacam-se o seguimento do acompanhamento e de suporte indefinido (LEAL, 2004). Os dois modelos são semelhantes ao reconhecerem nos sujeitos a diferença que os impede de se adaptarem da mesma maneira que as outras pessoas e na intenção em adaptar sem uma problematização do mercado. Como diferenças no modelo de emprego apoiado, a dimensão adaptativa do sujeito é tomada de modo menos linear. O treinamento ocorre em situações mais reais e sem uma necessidade de treinamentos longos em locais mais protegidos, além de considerar que a adaptação ao trabalho necessita de acompanhamento (LEAL, 2004). Os modelos de inclusão pelo trabalho anglo-saxão e francês não diferem muito do modelo americano de treinamento pré-profissional, os quais são originários de reabilitação física. A diferença aparece no uso do termo “terapia” no nome, designado de terapia profissional, que aparece no modelo anglo-saxão. Os centros de formação franceses são financiados em parte pela previdência social e em parte pelos contratadores de trabalho. Nestas propostas, quando a reinserção a curto ou médio prazo é considerada impossível, eles são reencaminhados aos seus locais de tratamento. Como críticas a esses modelos, Leal (2004:16-17) coloca que: São pouco eficazes para enfrentar as dificuldades psicológicas individuais; distancia entre o serviço de reabilitação e o mundo externo; envolve apenas o indivíduo e ignora completamente o contexto; não considera o despreparo do ambiente de trabalho para receber as pessoas com problemas mentais graves, ignorando o estigma ligado à doença mental existente nesses espaços; não consideram as enormes dificuldades de passagem da situação do trabalho ao mercado livre. Essas propostas de ações de reabilitação pelo trabalho ocorrem na fase final ou posterior ao tratamento, reforçando a separação entre terapia e reabilitação. Leal (2004) atribui essa dicotomia ao fato de a reabilitação psiquiátrica ter inicialmente se 50 constituído no campo da assistência social, e a compreensão hegemônica do cuidado médico-psiquiátrico ser predominantemente fundamentada na compreensão biológica do sujeito. O trabalho é visto nesses modelos como indicador de cura, de retorno à normalidade. Entretanto, é de conhecimento do senso comum, mas também dos trabalhadores de saúde mental, os obstáculos para a reinserção no mercado de trabalho. Por isso algumas questões são formuladas por Leal (2004:17): Como considerar a complexidade da relação existente entre o campo da saúde mental e o campo do trabalho? Como tratar o paciente não como um sujeito marcado e definido por sua incapacidade, mas por uma necessidade especial, fruto de uma diferença? Como enfrentar o desafio de promover a autonomia e a inserção social de subjetividades diferentes? Como pôr em prática o princípio de que quanto mais necessidade de proteção um sujeito requer, mais ele deve ser colocado em condição de viver mais positivamente a sua diferença? Saraceno (2001) aponta alguns questionamentos importantes para situar a inclusão pelo trabalho: a problematização do mercado de trabalho e a inflexibilidade da organização do trabalho não podem ser ignoradas; atentar-se ao contexto social, no que diz respeito ao estigma, intolerância, grau de socialização, as relações interpessoais e as expectativas; e no que se refere ao contexto pessoal, é necessário observar o trabalho como realização pessoal e o grau de auto-estima. A partir da década de 1980, a estratégia da reabilitação em saúde mental é discutida e reorientada, passando a ser nomeada de reabilitação psicossocial. Esta passa a fazer parte do discurso oficial, e é definida pela OMS como: “Um conjunto de atividades capazes de maximizar oportunidades de recuperação de indivíduos e minimizar os efeitos desabilitantes de cronificação das doenças através do desenvolvimento de insumos individuais, familiares e comunitários” (WHO, 1987 apud PITTA 1996, p.21). 51 A deficiência/desvantagem passa a ser definida pela Organização Mundial de Saúde como uma condição que não se refere só ao sujeito e a sua desabilitação, mas à resposta que a organização social dá a esse sujeito. Desse modo, a reabilitação psicossocial deveria ser o conjunto de procedimentos que procuram aumentar as habilidades e diminuir as deficiências, ou seja, não acontecerá reabilitação senão com simultaneidade das duas ações, sobre a desabilitação e sobre a deficiência, sobre o sujeito e sobre o contexto. O modelo italiano de reforma psiquiátrica constrói a ideia de empresa social, e esta parece problematizar melhor a questão da inclusão social, rejeitando a definição de um modelo de reabilitação centrado no trabalho. Este modelo defende que a inserção no mercado de trabalho seja considerada como um dos aspectos principais de intervenção, mas sem desconsiderar outros aspectos centrais da vida dos sujeitos. A principal característica desse modelo é considerar que só é possível tratar de doentes mentais graves quando se preserva, no desenho das intervenções de cuidado, a complexidade dos níveis individuais e coletivos envolvidos na produção do sofrimento humano. Para tal, é preciso uma rede complexa de serviços capaz de promover novas redes que rompam com os aspectos estritamente sanitários dos dispositivos de atenção. A cooperativa é um dos dispositivos privilegiados na criação da rede com essas características. Compreende, ao mesmo tempo, serviços de tratamento e lugares de produção, integrando sócios “normais” e “inabilitados”. A Psiquiatria Democrática Italiana denomina de empresa social aquela que faz viver o social. Traz como pressuposto a desinstitucionalização, processo por meio do, qual pode finalmente aparecer à complexidade, para que se possa, na prática, confrontar-se com a mesma. Neste entendimento, Rotelli (2006:302) define a empresa social como a “transformação de uma grande e única instituição – o manicômio – em uma rede de serviços sanitários, nos quais os direitos do cidadão vêm salvaguardados e, sobretudo, construídos”. Com isso, emerge também uma questão essencial na inclusão social, aquela de não se tratar apenas de respeitar os 52 direitos das pessoas, mas de ser, efetivamente, instrumento para a construção material de seus direitos. Consideram-se como direitos mínimos a residencialidade, a casa, a convivência, o alimento, a solidariedade. “Isso significa direito à assistência social – subsídios, dinheiro, comida, vestimentas – direitos a possibilidades mínimas da sobrevivência” (ROTELLI, 2006:302). As estratégias de empresa social italiana apostam na existência de possibilidades das pessoas, mesmo que residuais, de dar, de trocar, de ser, de produzir e de entrar no mundo da contratualidade. Mas faz uma crítica ao peso do juízo da improdutividade que está na base do direito de ser assistido e é comumente um direito que as invalida definitivamente, que destrói as residualidades, as possibilidades e potencialidades dos sujeitos (ROTELLI, 2006). Leal (2004:19) sugere que é necessário problematizar o entendimento de que “as ações de reabilitação, de inserção social pelo trabalho, configuram fase final ou posterior ao tratamento”. Segundo a autora, isso reforça a postura hegemônica presente no cuidado psiquiátrico, a separação da dimensão biológica do sujeito com outras dimensões, inclusive a social. Isto também leva a evidenciar outra dissociação constitutiva da nossa cultura: a separação da noção de indivíduo do conceito de sociedade. Na lógica acima, é comum considerarmos, sem muito questionamento, que pacientes em quadro agudo não devam participar desse tipo de atividade, ou que aqueles que não conseguem realizar o processo produtivo do modo como foi definido pelo grupo não devam permanecer na atividade, ou ainda que a avaliação da habilidade individual seja o elemento capaz de indicar aquele que deve participar. Torna-se necessária uma maior discussão sobre essas questões, principalmente no âmbito dos serviços, para que não sejam reproduzidas lógicas, sem uma compreensão dos seus pressupostos. Em resumo, as políticas de saúde mental e atenção psicossocial passaram a adotar estratégias mais específicas e concretas de criação de projetos de geração de renda 53 para as pessoas em acompanhamento na rede. Com as cooperativas ou empresas sociais, ou mesmo com os projetos de geração de renda, a questão do trabalho foi alvo de uma reviravolta. O trabalho deixa de ser uma atividade prescrita, orientada, protegida, ou uma simples ocupação do tempo ocioso, ou ainda uma forma de submissão e controle institucional, para se tornar uma estratégia de cidadania, de autonomia e de emancipação social. Atualmente, no Brasil, existem muitas iniciativas de inclusão pelo trabalho e geração de renda. (AMARANTE, 2007:92) A reabilitação psicossocial tem como finalidade, segundo Rotelli (1993), “el ejercicio del derecho de plena ciudadanía”. Na contemporaneidade, a questão da cidadania no plano sociocultural vem sendo rediscutida em função de pautas específicas reivindicadas por novos movimentos sociais e das “minorias étnicas e culturais”. O tema da equidade introduz a ‘diferença’ no campo do debate sobre a cidadania e advém do processo de lutas pelos direitos sociais: “A questão da cidadania plena abre espaço para introdução do debate acerca das cidadanias diferenciadas que surgem no período contemporâneo associada às minorias” (DEMO, 1995:25). Esta é a direção que vem permeando o movimento dos usuários, pois, quando lutam contra a segregação, tutela e estigmatização do louco, o fazem em nome da ‘igualdade básica’ entre os homens, ou seja, em nome dos direitos civis. No entanto, lutam também por ‘direitos sociais especiais’, tais como tratamento específico e suporte previdenciário, serviços de atenção psicossocial, serviços residenciais, esquemas especiais de trabalho e auxílios específicos (VASCONCELOS, 2006), que seriam em nome dos direitos sociais. A luta ocorre também pelo direito à diferença, estas expressadas nas suas produções estéticas, artísticas e nas formas de experienciar a vida. Uma contradição que se faz presente na questão é a cidadania dos “loucos” pautada na igualdade formal e na universalidade abstrata, que apontam para a desigualdade real: “A igualação abstrata de todos perante a lei impede que, no plano de direito, as desigualdades sociais se expressem” (DUMÊT, OLIVEIRA, FERNANDES 2003:41). Compreender a presença de paradoxos sobre a inclusão social na perspectiva da cidadania dos loucos que perpassam as práticas do serviço é também objetivo deste 54 estudo, entendendo que a ‘dívida’ social com a figura do doente mental se definiria pelo desrespeito a uma condição legítima de cidadania. A cidadania do paciente psiquiátrico não é a simples restituição de seus direitos formais, mas a construção de seus direitos substanciais, e é de dentro de tal construção (afetiva, relacional, material, habitacional, produtiva) que se encontra a única reabilitação possível. (SARACENO, 2001. 18) 3.2. O Processo Brasileiro de Reabilitação Psicossocial O Brasil tem adotado a reabilitação psicossocial como lógica de intervenção no processo de mudança da atenção em saúde mental. Reabilitação psicossocial é definida por Pitta (1996) como “uma atitude estratégica, uma vontade política, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de cuidados para pessoas vulneráveis aos modos de sociabilidade habituais” (PITTA, 1996, p. 21). Existem vários modelos de reabilitação na saúde mental. Alguns se concentram na habilitação dos pacientes, como, por exemplo, o modelo de treinamento de habilidades sociais e os modelos psicoeducativos. Nestes modelos, a ênfase recai na fortificação dos sujeitos sem considerar o contexto social. Tykanori (1996) e Saraceno (2001) propõem uma visão mais complexa, defendendo que a reabilitação psicossocial não é uma mera substituição da desabilitação pela habilitação, mas um conjunto de estratégias orientadas para aumentar as oportunidades de trocas. Saraceno conceitua “reabilitação como um processo que implica abertura de espaços de negociação para pacientes, famílias, comunidade e serviços que se ocupam dessas pessoas” (SARACENO 2001: 112). Esse autor sustenta que se faz necessário ter em conta as variáveis reais importantes, quais sejam: sujeito, contexto, serviços e recursos, em vez de só variáveis psiquiátricas como diagnóstico ou modelos teóricos abordados. Na proposta de Saraceno (2001), a reabilitação psicossocial é vista como um processo de reconstrução do exercício pleno da cidadania, fazendo uma crítica ao 55 se colocar a preocupação principal na busca da autonomia dos sujeitos sem uma crítica mais aprofundada à sociedade na qual estamos inseridos. O autor discute, tendo como pano de fundo a sociedade ocidental, que a ênfase deva ser dada à possibilidade de participação do sujeito na rede múltipla de negociação. Com isso, propõe que “sejam modificadas as regras do jogo, de maneira que desse participem fracos e fortes em trocas permanentes de competência e interesses” (SARACENO 2001: 113). É necessário fecundar a ideia de democracia como invenção permanente e reconhecer que produzir novos vocabulários, novas práticas subjetivas, é indispensável para a construção de uma sociedade mais tolerante. Uma sociedade em que a noção de cidadania implique não apenas o reconhecimento de direitos ou proteção de singularidade, mas um processo ativo de ampliação da capacidade de todos e de cada um agir de modo livre e participativo, e, portanto, onde a loucura não implique impossibilidade. (BEZERRA, 1992: 122) Rotelli (1993) coloca que a reabilitação psicossocial é a construção do acesso real aos direitos de cidadania e complementa dizendo que a reabilitação é um processo que deve ser realizado em três níveis de intervenções: jurídico, político e social. A modificação das legislações; a disponibilidade de recursos e o acesso real aos mesmos; e a produção da capacidade de acesso ao valor, através da formação, informação, autonomia e práticas coletivas. Portanto, no Brasil, vimos que existe movimento nesta direção, que é concretizado nas políticas de saúde mental. As mesmas, calcadas no movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, apresentam como “finalidade permanente” a (re) inserção social dos portadores de transtornos mentais na sociedade (BRASIL, 2004a). Isto significa dizer que essas políticas teriam a finalidade de “agenciar o problema social da loucura, de modo a permitir ao louco manter-se na sociedade,” (TENÓRIO, 2001: 121). Em outras palavras, possibilitar a inclusão social, de fato, dessas pessoas. Porém, como já posto anteriormente, a definição de exclusão/inclusão social é bastante complexa, o que dificulta a delimitação dos critérios para se considerar alguém como incluído socialmente. Documentos oficiais do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004b) sobre a organização e funcionamento dos CAPS propõem uma 56 delimitação do que seria a reinserção social dos usuários, entendido como acesso à educação, trabalho, esporte, cultura e lazer e exercício dos direitos civis. Neste documento, é posto que, para que isto aconteça, são convocados, em relação à configuração da rede social, “os recursos afetivos (relações pessoais, familiares, amigos etc.), sanitários (serviços de saúde), sociais (moradia, trabalho, escola, esporte etc.), econômicos (dinheiro, previdência etc.), culturais, religiosos e de lazer”, com objetivo de potencializar os esforços de cuidado e reabilitação psicossocial (BRASIL, 2004b: 11). O Brasil tem dado passos importantes no processo de modificação da legislação, que começa com o projeto de lei de Paulo Delgado, em 1989, sendo aprovada em 2001 a Lei do MS nº 10.216/01, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica. Existem críticas ao substitutivo do projeto que foi aprovado, mas não se negam os avanços na assistência em saúde mental. Paralelamente à discussão e à aprovação da lei citada acima, o debate que se deu foi muito construtivo, consolidando várias ideias, culminando em portarias editadas nas décadas de 1990 e 2000, o que possibilitou transformações na conformação da atenção em saúde mental. Várias dessas portarias tiveram como objetivo a inclusão social, dentre elas a Portaria GM nº 106/00, que legisla sobre os serviços residenciais terapêuticos (SRT) (BRASIL 2004). De certa maneira, o documento acabou com o último ponto de resistência à aprovação do projeto de lei de Paulo Delgado. Um dos empecilhos para a aprovação desse projeto de lei era a existência de pacientes de longas internações nos hospitais psiquiátricos (moradores) que, por terem perdido o vínculo familiar e social, não eram contemplados com uma política específica. Em 2002, foi atualizada a portaria que rege o CAPS (Portaria MS nº 336 e 189/02), incluindo nesta uma atenção a populações específicas, como crianças e adolescentes, e usuários de álcool e outras drogas. É também no sentido da inclusão social que, no Brasil, foi aprovada a Lei 9.867, de 1999, que instituiu as cooperativas sociais “constituídas com a finalidade de inserir pessoas em desvantagem no mercado econômico, por meio do trabalho”, e que se “fundamentam no interesse geral da comunidade em promover a pessoa humana e a integração dos cidadãos”. Embora tivesse nascido no âmbito do movimento social 57 da saúde mental e reforma psiquiátrica, ampliou-se o leque de beneficiários da lei (AMARANTE, 2007:92). Em 2003, é aprovada a Lei do MS nº 10.708/03, conhecida como Programa de Volta para Casa (PVC). Esta lei institui o auxílio-reabilitação psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de internações. Em 2005, a parceria criada entre o Ministério da Saúde com o Ministério do Trabalho e Emprego mostra o interesse de uma política de saúde mental voltada para inclusão, neste caso através do trabalho. Desta parceria nasce a Portaria GM n°1169/05, a qual destina incentivo financeiro para municípios que desenvolvam projetos de Inclusão Social pelo Trabalho para pessoas portadoras de transtornos mentais. Também na direção da inclusão social desta clientela foi publicada a Portaria SAS nº 396, de 07/07/2005, justificando, dentre outras questões, que as diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental buscam construir um efetivo lugar social para os portadores de transtornos mentais por intermédio de ações que ampliem sua autonomia e melhora das condições concretas de vida, propondo a criação de Centros de Convivência e Cultura na rede de atenção em saúde mental do SUS. No entanto, essa mudança do entendimento de outro lugar social (BIRMAN, 1992) do sujeito que sofre de transtornos mentais não é assegurada só por intermédio da legislação; fazem-se necessárias também mudanças culturais e da forma de operar nos serviços por parte dos atores sociais participantes e da sociedade como um todo. Um ponto importante que precisa ser problematizado aqui é que, geralmente, quando se sai da violência do manicômio, se entra na violência mais sutil da assistência social, pois se costuma partir de um processo de invalidação, de um processo de negação das possibilidades das pessoas, quando se afirma: “você não vale nada, você não é capaz de produzir, você tem necessidade de tudo, no entanto eu lhe assisto!” (ROTELLI, 2006). No Brasil, foi instituído um auxílio, conhecido como Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), 58 restrito às pessoas com diagnósticos de deficiências diversas, inclusive a mental, e que sejam carentes economicamente. O beneficiário “não pode ter nenhuma atividade profissional (nem mesmo as cooperativas e projetos de geração de renda ou economia solidária)” (AMARANTE, 2007: 69). É necessário problematizar a exigência para a concessão deste ‘benefício’, pois o mesmo vem sendo um obstáculo para a estratégia de inclusão social. De acordo com o nível de intervenção, na classificação proposta por Rotelli (1993), ter recursos disponíveis e um real acesso aos mesmos, são postos como importante para a cidadania social os vínculos e os recursos, portanto “la habilitacion debe sobre todo incidir sobre tales vínculos y liberar tales recursos” (ROTELLI 1993:2). 3.3 Direções das Práticas de Inclusão Social Os serviços de saúde são locais onde se espera que a produção do cuidado ocorra, seja ela individual ou coletiva, embora saibamos que nem todos os atos de saúde que produzem cuidado são implicados em “processos terapêuticos construtores de mais vida” (MERHY, 2007:30). As práticas nas instituições de saúde são realizadas pelos trabalhadores de saúde, portanto pretende-se, neste estudo, conhecer como os profissionais significam a inclusão social, pois compreendemos que os projetos de inclusão social vão sendo direcionados a partir das crenças dos profissionais. Portanto, para entender as direções tomadas, escolhemos três orientações das práticas de inclusão social do enfermo mental, quais sejam: a tutela, a autonomia e a participação social. A tutela, do ponto de vista jurídico e político, está ligada conceitualmente à hipossuficiência e ao não-direito dos que não têm capacidade civil (e postulatória) ou vontade que seja livremente determinada. Porém, nesse campo, a tutela revela um suprimento da carência privada individual em favor do próprio tutelado (FONSECA 2007). 59 Processos tutelares podem implicar expropriação dos “autocaminhares” ou da livre iniciativa dos indivíduos ou grupos. Entretanto, Merhy (2004:29), um trabalhador da área de saúde, propõe uma classificação diferenciada de tutela, definindo-a como outorgada e conquistada. Conforme o modelo de intervenção, a tutela pode se mostrar castradora ou liberadora, como sugere o quadro abaixo. Merhy (2004) agir castrador Tutela outorgada posicionamento “doativo” com processos caritativos e de vitimização Tutela conquistada posicionamento autoritário com processos autocentrados ou reacionais punitivos agir liberador os bens doados são encarados como “uma vara para produzir uma “pesca”, como ferramentas que aumentam governabilidade sobre o mundo a conquista é entendida e respeitada democrática/e como direito de cidadania, como válida e legítima, além de compreendida como base para a contratualidade social entre todos nós e os outros, iguais deste ponto de vista. Merhy (2007) coloca que a tutela outorgada pode ser um caminho para o agenciamento, para a “libertação a partir de si” (p.28), no qual a dependência pode gerar libertação. A direção dada é que vai delimitar se a tutela outorgada será castradora ou libertadora. O autor também traz que a tutela conquistada não tem, na sua constituição, que ser necessariamente democrática ou libertária. A tutela tem sua implicação na produção da autonomia dos sujeitos, que é compreendida por Merhy (2004:29) “a partir do fato de que ambas se constituem como processos relacionais e de produção, e nunca como essências dadas dos seres”. Por ser a ideia do CAPS a produção de vida, esta perpassa pela questão da autonomia dos sujeitos enfermos mentais. A autonomia que está na base da 60 constituição dos serviços substitutivos, sendo embasada nas ideias de Tykanori (1996) e de Saraceno (2001), quando colocam que esta seja entendida como a multiplicação de redes de dependências. Essa forma de entender a autonomia permite o desenvolvimento de ações que geram a produção de um maior grau de autonomia na relação do usuário no seu modo de andar a vida e estar no mundo. Saraceno (2001) faz uma crítica aos modelos de reabilitação que perseguem a autonomia de uma maneira descontextualizada dos contextos dos serviços e dos sujeitos. A reabilitação psiquiátrica entendia que os processos de inclusão se dariam a partir do melhoramento dos atributos danificados (desabilidade) a fim de que os sujeitos possam estar com os outros. No modelo da rede múltipla de negociação, põe-se, no centro das questões, não a autonomia, mas a participação, de modo que o objetivo não seja fazer com que os fracos deixem de ser fracos para poder estar no jogo com os fortes, e, sim, que sejam modificadas as regras do jogo (da sociedade) de maneira que participem fracos e fortes em trocas permanentes de competências e de interesses. (SARACENO, 2001). A participação social é entendida como as diversas maneiras de se relacionar na vida, de entrar no mundo de negociações, sejam elas afetivas, amorosas, econômicas, políticas, jurídicas, dentre outras. No CAPS, esta perpassa pelo estímulo à participação dos usuários em movimentos políticos, associações, eventos, dentre outros. Esta ampliação do entendimento sobre tutela trazido por Merhy (2007); e da autonomia, trazido por Tykanori (1996) e Saraceno (2001), leva-nos a supor que processos tutelares são importantes no trabalho no CAPS. Isto significa dizer que os trabalhadores estariam comprometidos com o cuidado dos seus usuários, porém não se deve perder de vista a finalidade das suas intervenções, estas direcionadas para a participação social. Entretanto, uma questão se coloca. No mundo globalizado, com uma conjuntura hegemonicamente neoliberal, marcada pelo empobrecimento e desemprego de 61 grandes massas populacionais, a questão da cidadania dos enfermos mentais fica mais difícil, pois “articula de forma complexa conquistas necessárias no campo social e da atenção psicossocial com desenvolvimento de processos de subjetivação que busquem o máximo de autonomia, mas necessariamente acarretando formas variáveis de normatização social” (VASCONCELOS, 2006:182). Este é o desafio do campo de saúde mental quando se tem como finalidade permanente a inclusão social dos sujeitos enfermos mentais. 62 4. METODOLOGIA Esta pesquisa adota uma perspectiva qualitativa, de inspiração etnográfica, na intenção de identificar como os atores sociais – aqui os trabalhadores de saúde mental – compreendem a questão da inclusão social dos considerados enfermos mentais, tendo como contexto um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e como cenário a Reforma Psiquiátrica Brasileira. É também objetivo identificar quais são as estratégias e dificuldades no processo de inclusão social dos usuários, entendendo que não se pretende trazer todas as possibilidades de inclusão social potenciais no CAPS pesquisado. Este estudo é um recorte da pesquisa: “Articulando Experiências, Produzindo Sujeitos e Incluindo Cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e Sergipe”, em realização pelo Núcleo Interdisciplinar de Saúde Mental – NISAM - ISC - UFBA, financiada pelo CNPQ. O recorte foi feito em relação à quantidade de CAPS, neste caso um CAPS, em relação ao tema, um aprofundamento em relação ao tema da inclusão social dos usuários do CAPS e, finalmente, em relação aos sujeitos da pesquisa, esta ficou limitada aos trabalhadores do CAPS. Cabe-nos esclarecer que a autora deste estudo é membro do NISAM e participou da pesquisa citada desde seu início, mais particularmente no CAPS que é o lócus deste estudo. Portanto, com o consentimento do NISAM, serão aqui utilizados os instrumentos e o banco de dados produzidos por esta pesquisa maior. O banco de dados utilizado foi composto das transcrições de grupos focais com profissionais e familiares; as entrevistas com usuários, familiares, trabalhadores, coordenadores de CAPS, assessor de Saúde Mental, e secretários de Saúde, relatórios finais referentes ao CAPS deste estudo, além dos diários de campo produzidos pela autora. 63 4.1. A Pesquisa Mãe: “Articulando Experiências, Produzindo Sujeitos e Incluindo Cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e Sergipe” O estudo teve como objetivos principais: 1) Avaliar o sistema de atenção à saúde mental nos Estados da Bahia e Sergipe, tomando como referência os CAPS nas suas multidimensões que refletem valores dos usuários, das famílias, dos profissionais e dos gestores; 2) Compreender quais são e como funcionam os recursos produzidos nos CAPS para articular experiências, produzir subjetividades e incluir os sujeitos na rede social (NUNES, 2006). A referida pesquisa trabalhou com metodologias avaliativa, etnográfica e participativa, e sua estratégia metodológica foi constituída de dois componentes de investigação: O componente etnoepidemiológico e o antropológico. No componente etnoepidemiológico, o objetivo foi de avaliar todos os CAPS da Bahia e Sergipe que estavam implantados até dezembro de 2006. O componente antropológico foi realizado em duas fases: a fase semiintensiva e a intensiva. Como instrumentos foram utilizadas técnicas de grupos focais e entrevistas semidiretivas específicas. Os atores sociais investigados foram os trabalhadores dos CAPS, usuários e familiares, além dos gestores (coordenadores de CAPS, coordenadores de Saúde Mental e secretários de Saúde) (NUNES, 2006). Em função de a autora deste estudo ter participado de todas as fases da pesquisamãe do NISAM, no CAPS, que é o lócus deste estudo, os dados são quase em sua completude produzidos pela pesquisa-mãe, excetuando os dados de um grupo focal, com os trabalhadores do CAPS, com o tema específico de inclusão social, que foi realizado especificamente para este estudo. 64 4.2 A Pesquisa: O Processo de Inclusão Social dos Portadores de Transtornos Mentais: Discursos e Práticas em um CAPS. Esta pesquisa teve como objetivo discutir com maior profundidade o tema da inclusão social dos enfermos mentais. Para tanto, se fez necessário dar uma direção ao campo, observando como os profissionais articulam as suas ações com a vida dos usuários, com a rede (família, serviços e equipamentos sociais, os diversos setores da comunidade local, dentre outros), e com as questões políticas que envolvem a questão da inclusão social. Foi escolhido um CAPS, dentre os pesquisados, que tenha participado de todas as fases da pesquisa do NISAM. Os dados aqui apresentados se referem a um CAPS tipo II, localizado em um município do interior do Estado da Bahia. Em relação aos sujeitos desta pesquisa, nos limitaremos ao estudo, em profundidade, das narrativas e ações dos trabalhadores deste CAPS. Entretanto, com objetivo de enriquecer algumas informações, as análises incluíram dados de outros atores sociais, tais como usuários, familiares e gestores. Dos dados produzidos sobre o CAPS em questão foram selecionados e analisados todos aqueles que tivessem alguma relação com a questão da inclusão social, nos três momentos da pesquisa-mãe. A seguir, serão detalhados os instrumentos e participantes de cada momento da pesquisa. Componente etnoepidemiológico Foram utilizados dados do componente etnoepidemiológico da pesquisa referentes à caracterização do CAPS pesquisado. Este componente teve como instrumento o questionário semiestruturado. Fase semiintensiva Esta etapa teve como objetivo conhecer os principais recursos, seu modo de funcionamento, os profissionais, usuários e familiares que compõem o CAPS. Nesta fase, a coleta de dados foi realizada através de grupos focais e observação participante, por um tempo limitado. 65 A observação participante, nesta fase, foi realizada em um período de três semanas, apenas para obter aproximação com o local, com os atores e com a instituição pesquisada. Nesta fase, compondo a pesquisa-mãe do NISAM, foram realizados dois grupos focais, sendo um com os trabalhadores do CAPS, das diversas categorias profissionais e níveis educacionais (ANEXO 1), e outro com familiares, seguindo um roteiro estabelecido (ANEXO 2). Desta fase utilizamos os dados produzidos por estes grupos referentes à caracterização do CAPS, como também aqueles referentes às questões de inclusão social, intersetorialidade e parcerias. Com o objetivo de aprofundar a questão específica da inclusão social, foi realizado mais um grupo focal, em específico sobre este tema inclusão social, (ANEXO 3) com os trabalhadores do CAPS estudado. Neste último, a técnica do grupo focal teve como objetivo compreender como as formas de comunicação sobre a questão da exclusão/inclusão dos usuários circulam e como as diversas formas de entendimento sobre esta questão são explicitadas. No quadro a seguir, serão apresentados os participantes dos grupos focais Grupo Focal 1 Tempo de trabalho no CAPS 01 terapeuta ocupacional Desde outubro de 2005. 02 psicólogo 01 - desde outubro de 2005 01- desde janeiro de 2007 01 assistente social Desde dezembro de 2007 02 enfermeira 01- desde 2006 01 – desde janeiro de 2007 01 designer Desde outubro de 2005 01 pedagoga Desde outubro de 2005 01 farmacêutico Desde outubro de 2005 01 recepcionista Desde outubro de 2005 01 segurança Desde outubro de 2005 01 técnica de enfermagem Desde outubro de 2005 66 Grupo Focal II (Específico – Inclusão social) 04 psicólogos 02 – desde 2007 02 – desde 2008 01 designer Desde outubro de 2005 01 artista plástica Desde 2008 01 enfermeira Desde janeiro de 2007 01 pedagoga Desde outubro de 2005 01 estudante de psicologia Estagiando por 18 meses Fase intensiva Nesta fase, realizou-se um percurso etnográfico no qual os dados foram coletados através da observação participante e de entrevistas semiestruturadas. Esta fase teve como objetivo compreender a dinâmica de funcionamento do CAPS, bem como perceber como os profissionais concebem e intervêm, dentre outras questões, na inclusão social dos usuários. A observação participante se justifica para que o pesquisador possa coletar dados e produzir informações através da participação na vida cotidiana do grupo em questão, por um período de tempo determinado. O pesquisador observa as pessoas para ver como se comportam, conversa para compreender as interpretações que têm sobre as situações vividas, podendo comparar e interpretar as respostas dadas em diferentes situações (Goldenberg, 1997). Nessa pesquisa, por um período de seis meses, a observação participante teve o objetivo de, além de conhecer a dinâmica de funcionamento do CAPS, observar o que as pessoas realmente fazem enquanto realizam suas atividades e a relação entre ação e representação, privilegiando o ponto de vista do outro, que será compreendido a partir de processo interativo em campo (BECKER, 1999). Foram acompanhadas especificamente as atividades que, de alguma maneira, eram direcionadas para a inclusão social dos usuários deste CAPS, como as oficinas de geração de renda, assembleias, algumas atividades realizadas fora do CAPS que 67 iriam nesta direção, como as passeatas, audiência na Câmara de Vereadores do Município, Parada do Orgulho Louco, atividades dos usuários em oficinas na comunidade, feiras, projeto Loucos por Música, além do processo de implantação da Associação Unidos Venceremos (AUV). 4.3 Instrumentos da Pesquisa Os equipamentos utilizados durante as entrevistas e observação participante foram o gravador e o diário de campo. A gravação teve como principal objetivo a preservação na íntegra das falas dos sujeitos da pesquisa. As fitas gravadas foram transcritas e revisadas por membros do NISAM. Já o diário de campo utilizado foi o da pesquisadora do NISAM, autora deste estudo. O diário de campo é definido como: O registro diário de eventos e conversas ocorridas; das anotações em campo que podem incluir um diário, embora tendam a ser mais abrangentes, analíticas e interpretativas do que uma simples enumeração das ocorrências (POLIT, HUNGLERT, 1995:3). Essa definição do autor sobre o diário de campo inclui a dimensão interpretativa das anotações, considerando que, durante a observação de um fato, o pesquisador já poderá registrar algumas análises sobre o acontecimento. 4.4 As Categorias de Análise Por ser de natureza qualitativa, procura-se seguir os princípios que caracterizam tal tipo de pesquisa, quais sejam: a não generalização de seus resultados; a compreensão profunda de certos fenômenos sociais apoiados no pressuposto da maior relevância do aspecto subjetivo da ação social; e a compreensão de signos, valores e significados de uma dada cultura. A pesquisa qualitativa tem bases nas ciências sociais e, segundo Geertz (1989), de uma forma geral, preocupa-se com a 68 interpretação da realidade social, ocupando-se da análise dos significados que os sujeitos atribuem aos fenômenos e às relações sociais que as constituem. Portanto, daremos ênfase a subjetividades, interesses, conflitos e contradições, enfim, ao potencial de sínteses e transformações constituídas no momento em que se busca concretizar a prática da atenção em saúde mental, observando se elas são condizentes, ou não, com os princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Para auxiliar a análise, foi feito uso do software NUDIST 2.0 n-vivo, além de várias leituras de cada entrevista ou grupo focal realizado. No que tange à modalidade de análise do material produzido, priorizou-se a técnica da análise do discurso. Entendendo discurso como todas as formas de fala e textos, sejam elas conversações, entrevistas ou textos escritos de todo o tipo. A análise do discurso está interessada no conteúdo, na organização do texto e no texto em si. São características da análise do discurso o entendimento de que toda linguagem é construtiva e a preocupação “com a orientação da ação, ou orientação da função do discurso” (GILLl 2002: 248). De acordo com Minayo (2007:211), o objetivo básico da análise do discurso é produzir reflexões “sobre as condições de produção e apreensão da significação de textos produzidos nos mais diferentes campos”. “Também procura compreender o ‘modo de funcionamento, os princípios de organização e as formas de produção social de sentido”. As falas analisadas foram basicamente as produzidas nos grupos focais realizados com profissionais. Com intuito de enriquecer as informações, complementamos também com o grupo focal de familiares, além de entrevistas com gestores do município. É sinalizada no próprio texto a identificação das falas como sendo de trabalhador, gestor ou familiar. Com o objetivo de garantir o sigilo dos informantes, não foram identificadas nas falas as categorias profissionais dos trabalhadores, em função de que, em algumas delas, só havia um profissional no serviço. O eixo condutor da entrada em campo, na especificidade desta pesquisa, é o entendimento da inclusão social do portador de transtorno mental na perspectiva da 69 garantia da cidadania. As categorias foram construídas entendendo que as mesmas são empregadas para estabelecer classificações, ou seja, trabalhar com categorias “significa agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de conceito capaz de abranger tudo isso” (MINAYO 2001:70). Nesta pesquisa, as categorias foram estabelecidas na fase exploratória, colocadas como categorias empíricas ou éticas, entretanto, a partir da leitura dos dados produzidos, foram acrescidas categorias analíticas ou êmicas. As categorias empíricas/éticas a serem analisadas foram os significados, as estratégias e as dificuldades de inclusão social. Para obter os significados atribuídos, analisamos os discursos dos trabalhadores do CAPS. Com objetivo de entender que práticas o CAPS utiliza em direção à inclusão social dos seus usuários, analisamos as estratégias faladas e observadas na prática. Pretende-se aqui também ter uma compreensão das dificuldades e desafios que se apresentam neste caminho. A lógica construída para pensar a análise está no quadro a seguir: DIMENSÃO DE ANÁLISE CATEGORIAS DE ANÁLISE EMPÍRICA/ÉTICA Inclusão Social na perspectiva do exercício da Cidadania SIGNIFICADO Significados de inclusão social ANALÍTICA/ÊMICA DIFICULDADES As dificuldades percebidas para a inclusão social dos usuários. Loucura como etiquetamento. Não estar internado em hospital psiquiátrico. Participação na vida cidade (circulação, relações sociais, casa, escola, trabalho). A necessidade de autonomia. Direito a ter direito. O estigma e o preconceito. O difícil lugar do enfermo mental no mercado de trabalho. A falta ou carência de recursos e equipamentos no CAPS e na comunidade. O território e a cidadania. As condições de vida dos usuários, As idiossicrassias dos sujeitos enfermos mentais 70 ESTRATÉGIAS As estratégias utilizadas pelo CAPS, com objetivo de incluir social dos usuários. Estratégias a partir das atividades que ocorrem prioritariamente no espaço físico do CAPS. Estratégias que ocorrem na cidade: Part. nos espaços da cidade; O trabalho como importante recurso para a inclusão social; Incentivo a participação política A família como parceira. 4.5 Questões Éticas Esta pesquisa propõe seguir as normas estabelecidas pela Comissão de Ética na Pesquisa do Departamento de Ética do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA, bem como todas as deliberações do Conselho Nacional de Saúde no que se refere à Resolução nº. 196, de 10 de outubro de 1996. Tratando-se de estudo que envolve seres humanos, foram seguidos os procedimentos éticos: garantia de sigilo das informações a fim de evitar constrangimentos sobre as informações a serem recebidas e assegurar que não ocorram danos morais, econômicos e de saúde para com os envolvidos. A princípio, foi previsto que não haveria risco nem possibilidade de danos na participação dos sujeitos. Para obtenção da autorização dos sujeitos, foram explicados os objetivos da pesquisa, ficando os participantes livres para se recusarem a participar em qualquer momento, sem que isso lhes trouxesse qualquer tipo de penalização ou prejuízo. Após autorização, foi assinado o termo de consentimento livre e esclarecido (ANEXO 4). Convém salientar que este estudo é um recorte da pesquisa “Articulando Experiências, Produzindo Sujeitos e Incluindo Cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e Sergipe”, realizada pelo Núcleo Interdisciplinar de Saúde Mental – NISAM- ISC – UFBA, CNPQ, o qual obteve parecer do Comitê de ética sob o nº 021-06/CEP – ISC. Em função disto, a participação já tinha sido negociada com os sujeitos (usuários e seus familiares, e trabalhadores do CAPS) que compuseram esta pesquisa. 71 5. CONTEXTUALIZANDO O CAMPO 5.1 O CAPS Pesquisado. Todas as informações sobre o CAPS pesquisado estão contidas no relatório final (NUNES et alli, 2009) acerca do CAPS, campo deste estudo. POSIÇÃO GEOPOLÍTICA DO CAPS O CAPS pesquisado situa-se em um município da região metropolitana de Salvador, com população de 150.075 habitantes (Censo de 2007). Tem o nome de um usuário baiano, importante militante na luta antimanicomial. Isto, de certa forma, sinaliza a direção que vem tomando a saúde mental no município. É um CAPS tipo II e, até 2008, o único do município. Em relação à cidade, ele está localizado mais para a periferia, com difícil acesso através do transportes urbanos. Os ônibus de linha passam a mais ou menos 1,5 km de distância, e algumas vans a 1 km. Dentre os serviços de saúde, SUS, existentes no município, existem sete distritos sanitários com 14 equipes de PSF e 5 equipes de PACS; 9 unidades básicas de Saúde; 3 unidades de referência (CAPS, Centro de referência da mulher, Centro de tratamento de DST-AIDS); 2 hospitais municipais de pequeno porte e equipes do SAMU. Dentre esses, o CAPS mantém ligação mais frequente com uma unidade básica de saúde, na qual a assistente social do CAPS trabalha com um hospital geral e com a clínica da mulher. É entendimento da equipe do CAPS a necessidade de uma maior interlocução com as equipes do PSF, porém um maior estímulo a esta interlocução por parte da equipe do CAPS foi observada pelos pesquisadores na época da gestão da 1ª coordenadora do CAPS. Na gestão do 3º e atual coordenador do CAPS, foi falou-se da intenção de uma maior articulação com o PSF e ampliação da atenção de saúde mental no município. 72 A necessidade de um CAPS já vinha sendo percebida no município, principalmente nas situações nas quais as crises dos “loucos” moradores de rua ou dos que agitavam em suas próprias casas tornavam-se um incômodo para a população, além de uma vontade política da gestão municipal: Por conta dessa demanda de não existirem serviços de saúde mental no município, nós tínhamos muito, nos momentos de crise, pessoas em via pública ou em seus domicílios, que se tornavam agressivas. Então, normalmente se buscava a Secretaria para dar resolutividade a esses casos, e aí o município foi vendo a necessidade de estar realizando ações em saúde mental. Então, na gestão anterior, a primeira ação foi a implantação da atenção de psiquiatria dentro do ambulatório, há mais ou menos um ano, isso. Chegamos até a ter algumas ações com o PSF na época de fazer mapeamento nas áreas para conhecer quem eram esses pacientes, que se identificavam muito pouco na época. Os pacientes não eram vistos, talvez por conta da cobertura do município. O CAPS foi inaugurado em 10 de outubro de 2005. Entretanto, houve dificuldades para encontrar um imóvel para o seu funcionamento em função de pendências relacionadas a questões burocráticas: estar em dia com os tributos, o tipo de casa desejada e o preconceito em alugar uma casa para um serviço que iria atender “os loucos”, como comentou uma trabalhadora: A gente cansou de ouvir: Ah, meu Deus! Como vou alugar? A árvore que eu vi crescer, que eu plantei, eu vou ver as pessoas penduradas, etc.. Existia muito estigma também. COTIDIANO O CAPS funciona de segunda a sexta, das 8:00 às 17:00 horas. Os portões são abertos a partir das 7:30 e assim permanecem até o fim das atividades do dia, indicando a liberdade de ir e vir. A grande maioria dos usuários chega a pé ao CAPS. Este serviço dispõe de uma Kombi, que é utilizada para visitas domiciliares, atividades administrativas, transporte de usuários para atividades fora do CAPS, e, segundo critérios (dificuldade financeira séria, problemas clínicos, tanto físicos ou mentais graves, dentre outros), faz o transporte de alguns usuários da casa para o CAPS. As atividades realizadas intra-CAPS são atendimentos individuais, grupos, oficinas, nos quais o núcleo de geração de renda tem uma grande relevância. As extra-CAPS 73 são visitas domiciliares, atividades externas tais como feiras, passeios, participação em oficinas fora do CAPS, como em uma ONG (SECACA) e na Secretaria da Mulher, no projeto ‘Loucos por Música’ e atividades políticas, como passeatas em comemoração ao dia 18 de maio, sessões na Câmara de Vereadores, Parada do Orgulho Louco, dentre outras. Em relação à alimentação, são servidas três refeições, o lanche da manhã e da tarde e o almoço. A alimentação vem pronta para o CAPS. É trazida por uma Kombi, que é a indicação, para quem está no CAPS, de que a ‘comida chegou’. Os lanches são servidos por trabalhadores do CAPS, através de uma janela ou porta da cozinha. O almoço é servido em uma área coberta, na parte posterior da casa. A comida para o almoço chega em grandes vasilhas, separadas por alimentos, sem aclimatação. Uma funcionária, juntamente com usuárias e familiares (estes sempre os mesmos), fica responsável em fazer os pratos, mas cada pessoa, da fila, vai dizendo o que quer comer, dentre as possibilidades. Após o prato feito, as pessoas vão sentando às mesas. Como não há mesas suficientes para todos, alguns sentam no chão e em outros lugares do CAPS. Após o almoço, a regra é que cada um lave seu prato, mas nem sempre isso ocorre e alguns familiares e usuários se encarregam da lavagem. Isto é motivo de alguns conflitos e assunto em pauta na assembleia. A comida é servida em pratos plásticos, mas não descartáveis, e os talheres são colheres descartáveis, o que também foi assunto em assembleia. Os profissionais almoçam na cozinha, com portas encostadas e com talheres “decentes”. Alguns usuários passam o dia todo no CAPS, “sem fazer nada”. Só comem e ficam no espaço. Alguns só ficam um turno. Vão embora após o almoço, principalmente os homens, talvez por existirem poucas atividades direcionadas ao sexo masculino. Às vezes, eles se juntam e jogam principalmente o dominó. Em uma visita domiciliar, um usuário que estava há algum tempo sem comparecer ao CAPS falou que não iria para lá por “não ter o que fazer lá”. Em relação ao acesso ao CAPS, foi levantado na pesquisa que 52% dos usuários acham muito difícil o acesso, enquanto a média baiana aponta que somente 26% dos usuários consideram o acesso muito difícil. Na fala dos familiares, nota-se a 74 constatação da dificuldade em chegar até o CAPS. Os que vêm de ônibus saltam na avenida principal, próximo a um supermercado, e andam uma distância de aproximadamente 1,5 km por ruas sem passeio, às vezes embaixo do sol quente. No período da pesquisa, uma usuária foi atropelada. Os familiares reclamam: A maioria das pessoas vem até o supermercado, de lá elas têm que andar até o CAPS. ...a gente vem assim por dentro do... do mato, vem dentro do mato, pelo mato, porque é contramão até mesmo vir pra cá. O CAPS funciona em uma espécie de chácara, com bastante espaço verde, gramado e árvores, estas muito usadas para os cochilos à sombra, após o almoço. Neste espaço há atualmente uma horta e um campo de areia onde se joga futebol, vôlei e se praticam outras atividades físicas. É um espaço muito agradável. No local há uma casa e uma área coberta na parte posterior da edificação. A casa tem dois andares e uma varanda agradável. Alguns espaços são exclusivos, como o local de dispensação de medicações, uma espécie de posto de enfermagem, a recepção e a administração. Alguns são espaços multiuso para atendimentos individuais, grupais, reuniões e oficinas. Outros têm uma atividade preponderante, mas, a depender da necessidade, podem ser usados com outra utilidade. Nestes espaços estão incluídas as salas do núcleo de geração de renda e a cozinha. A circulação no CAPS para os usuários e familiares é liberada em quase todos os espaços, porém existem alguns em que há restrições. O acesso ao espaço da farmácia só é permitido à farmacêutica, o 2º andar (administrativo), apesar de não ser fechado, não tem muito acesso de usuários; a copa/cozinha é o espaço dos profissionais, mas, em alguns momentos, o usuário tem acesso, como quando precisam de alguma coisa (água, por exemplo) ou na oficina de culinária. Os usuários podem entrar e sair do CAPS a hora que quiserem, os portões ficam abertos todo o dia. Em relação aos portões abertos, foi discutido em uma assembleia sobre a segurança no CAPS. O assunto apareceu em função de furtos ocorridos em bolsas de usuárias e familiares. Uma hipótese levantada é que o furto poderia ter sido praticado por alguém estranho ao CAPS. 75 A EQUIPE Na gestão de Saúde do município, entre 2006 e 2008, houve 3 secretários de saúde e três coordenadores de CAPS. Não existiu uma relação entre a mudança de secretário com a de coordenador do CAPS. Em 2008, foi criado o cargo de coordenador de saúde mental do município, que atualmente é exercido pelo coordenador do CAPS. Existe, também no município, o cargo de assessor de Saúde Mental, que tem exercido a função de articulação do CAPS com vários setores da comunidade. Neste período, houve uma considerável rotatividade em relação à composição da equipe, o que modificou a dinâmica do CAPS, inclusive perdendo-se algumas iniciativas interessantes que haviam sido implementadas, como matriciamento com a rede de saúde e atenção básica, realizados com membros da equipe, usuários e familiares, e o uso da assembleia como espaço de estímulo à autonomia e ao protagonismo, dentre outros. A princípio, os trabalhadores eram contratados por uma empresa terceirizada, porém, a partir de junho de 2008, toda a equipe foi contratada diretamente pela prefeitura. Em relação à carga horária, existem profissionais com contrato de 40 horas, 30 horas e 20 horas. A equipe de trabalhadores, em 2008, era composta de 1 terapeuta ocupacional, 3 psicólogos, 2 psiquiatras, 1 enfermeira, 1 assistente social, 1 pedagoga, 1 designer (responsável pelo núcleo de geração de renda), 1 artista plástica (oficineira), 1 administradora, 2 técnicas de enfermagem, 1 segurança, 2 recepcionistas, 1 motorista do CAPS, 1 auxiliar de cozinha e 1 auxiliar de serviços gerais. Existe, por parte da equipe, a percepção de que o trabalho é árduo e alguns sentem que o grupo de profissionais não é cuidado como deveria: “Eu acho que a equipe não é cuidada”. Mas há, em geral, uma concordância sobre o fato de que o trabalho realizado no CAPS é uma construção conjunta e contínua pelo fato de muitos não serem provenientes originalmente da Saúde Mental e também em função dos 76 desafios presentes na implementação de um serviço substitutivo. A fala a seguir nos parece exemplar nesse sentido: Diferença, a diferença, que diferença assim, a gente na verdade, nós viemos assim construindo. Eu acredito que a maioria de nós, vocês viram que não tinha uma formação em psiquiatria e isso sempre foi uma preocupação daquele grupo, daquele, não é? Então, a gente foi construindo, o que a gente ia experimentando aqui foi construído. Doutor P., ele tem experiência grande em psiquiatria, mas ele tem um jeito próprio, e isso é uma coisa mais do que visível, ele tem um jeito próprio de lidar com isso, nada tradicional. Então, assim, desse jeito próprio dele, a gente foi experimentando aqui. Então muita coisa foi assim uma construção em cima disso, do que a gente não sabia o que era e que ia aos poucos experimentando. Então, a diferença que eu digo é isso, eu acho que o que tá aqui não é nada do que tá nos livros, não é? Eu acho que todo mundo aqui concorda – não é nada do que tá nos livros. O que tá aqui foi uma coisa assim experimentada. Tinha muito quebra-pau mesmo aqui entre nós, até pra gente sentir o pé no chão, já que a gente não sabia né? Como é que a gente vai fazer uma coisa que não sabe? O trabalho em equipe faz com que os profissionais ora precisem atuar de acordo com suas especialidades, ora realizem tarefas diferentes daquelas para as quais foram preparados. A disponibilidade para experimentar novas formas de atuação vai depender das características pessoais de cada técnico. [...] Mesmo a gente tendo uma consciência de tudo isso, a gente não se dá conta, é por conta das questões pessoais de cada um. Então assim eu acho que a gente, enquanto profissional, precisa tá trabalhando, e aí entra no trabalho pessoal mesmo, para tá se questionando qual é meu papel aqui, o que é que eu preciso me especificar para chegar aos meus objetivos [....] Quanto à capacitação dos membros da equipe na área de Saúde Mental, poucos são os que têm uma capacitação específica. Em 2008, três (3) profissionais se encontravam cursando capacitação/especialização (uma terapeuta ocupacional e duas psicólogas), porém em áreas não específicas da saúde mental. Observa-se a necessidade de maior investimento na capacitação da equipe no que diz respeito à questão da clínica psicossocial, com a complexidade que a envolve. Isto se faz mais presente quando é necessária uma maior compreensão dos casos que estão no CAPS, no intuito de entender a problemática dos sujeitos e, com isso, fundamentar os projetos terapêuticos individuais/singulares. 77 ASPECTOS RELACIONAIS As relações do CAPS com diretorias da Secretaria de Saúde e com os próprios secretários são próximas, em alguns momentos com a participação destes em eventos do CAPS. Algumas reuniões do Departamento de Atenção à Saúde (DEPAS) ocorrem no CAPS. Isto pode ser um vetor de facilitação de parcerias com outros serviços de Saúde do Município. Quanto aos aspectos relacionais intra-CAPS, mesmo com as mudanças de trabalhadores e da coordenação, a gestão democrática parece já consolidada. Porém as hierarquias se fazem presentes, mas as relações entre os técnicos com os usuários e com os familiares são cordiais e atenciosas. Entre os usuários, não parece haver maiores problemas relacionais, a não ser quando alguém descompensa, embora também ocorram algumas inimizades. Estas, contudo, são raras, talvez pelo grande espaço do CAPS e pela ambiência tranquila e democrática do local. Apesar das relações entre os técnicos com os familiares e usuários serem cordiais, a cena do almoço é representativa para demonstrar a existência de hierarquia e diferenciação. O almoço dos usuários e familiares é servido na parte posterior da casa por um profissional do CAPS, geralmente pela pessoa encarregada em ajudar na copa – um familiar e uma ou duas usuárias ficam encarregados de fazer os pratos e servir aos usuários e familiares presentes. A fila se instala após a saída da Kombi que traz o alimento. Após receberem seus pratos, os usuários sentam às mesas disponíveis na área da parte posterior. Os funcionários do CAPS, por sua vez, comem na copa/cozinha, com a porta encosta, onde os mesmos fazem seus pratos. TECNOLOGIAS EMPREGADAS As tecnologias presentes no CAPS dizem respeito à admissão dos usuários e envolvem o projeto terapêutico individual ou singular, os atendimentos individuais e grupais, as visitas domiciliares, a dispensação de medicação, a atenção à crise e as atividades que são realizadas fora do CAPS. 78 No tocante às práticas de recepção, inicialmente, o usuário passava por um acolhimento individual, que era realizado todos os dias, e, depois, pelo acolhimento coletivo, no qual vários profissionais estavam presentes, bem como os usuários já matriculados que assim o desejassem. É interessante demarcar que a qualificação dessa prática como coletiva não era apenas porque os usuários estavam em uma situação “grupal”, mas porque os próprios profissionais estavam juntos para conhecer melhor aquele que chegava ao serviço. A aderência ao termo “acolhimento” em substituição ao nome “triagem” seria, segundo um dos técnicos, uma estratégia para demarcar outro modo de receber, através do qual se procuraria verdadeiramente escutar o sofrimento trazido pelo usuário, bem como seu contexto de vida, para, então, considerar se realmente o CAPS podia atender às necessidades do sujeito ou se melhor seria encaminhá-lo para outro espaço. Contudo, o aumento da demanda fez com que o mesmo se reduzisse tanto na quantidade de dias do acolhimento bem como na ideia anterior de acolhimento coletivo, sendo que a etapa individual do acolhimento passou a ser feita por um técnico apenas, segundo escala previamente definida. Devemos acentuar que sempre se tratava de um técnico de nível superior que, em sua formação, havia passado por disciplinas que o aproximavam da Saúde Mental. Em relação às atividades do CAPS, existe uma “grade” afixada na recepção, porém há uma discussão por parte da equipe entre ‘ficar preso’ às atividades da grade ou a espontaneidade do acontecer diário. Esta discussão não parece levar em conta que as atividades que comporão ‘a grade’ são pensadas e constituídas pela própria equipe, portanto não são atividades impostas. A espontaneidade tem sido mais comum na rotina do CAPS. Com isso, nem todos os turnos têm atividades estruturadas e/ou algumas previstas às vezes não ocorrem. Porém, às vezes acontecem atividades propostas pontualmente. Portanto, se faz necessária uma melhor avaliação da dificuldade em dar continuidade às atividades propostas em função de algumas iniciativas interessantes acontecerem e não permanecerem. No tempo de observação no 79 CAPS, dentre as atividades grupais existentes, a que tem tido continuidade são as oficinas do núcleo de geração de renda e as assembleias. O núcleo de geração de renda tem um funcionamento contínuo, de segunda a quinta-feira, com certa autonomia, pois este funciona, mesmo quando a trabalhadora responsável não está presente no CAPS. Alguns usuários e familiares têm acesso às chaves dos armários onde estão os materiais. Estes também ficam encarregados de organizar o material, limpar a sala e ir às feiras. Este espaço é bastante rico em relação à possibilidade de articulação, negociações, fortalecimento de redes, solidariedade e amizades, porém algumas questões têm sido levantadas, como: as atividades são artesanais, direcionadas para o público feminino; parece existir uma norma (não falada explicitamente e não escrita) de que só é aceito no núcleo de geração de renda alguém que tenha alguma habilidade; a questão da estética é muito presente; há um livro de ponto que serve de guia na redistribuição dos lucros, com a venda do produto, porém, até onde foi observado, é a coordenadora deste núcleo que decide sobre a divisão do dinheiro. Os produtos desse núcleo têm sido muito elogiados nos espaços que se fazem presentes. Porém, a forma de organização do núcleo e o lugar privilegiado que tem ocupado no CAPS têm gerado conflitos entre membros da equipe e também com diretores de órgãos da Secretaria aos quais o CAPS está subordinado. Dentre as questões postas, uma é que este tipo de atividade pode estar desvirtuando a função do CAPS, a de cuidar. As assembleias eram realizadas na primeira sexta-feira de cada mês, passando, em 2008, a ocorrer na primeira quinta-feira do mês. A princípio, os profissionais usaram como estratégia, para intensificar a frequência nessa atividade, a organização de um bazar no qual roupas, sapatos e acessórios usados e doados ao serviço fossem vendidos a um preço simbólico. Esta estratégia era utilizada com dois propósitos: atrair um maior número de pessoas, inclusive familiares, para as assembleias e arrecadar dinheiro para comprar materiais para as oficinas. 80 Algumas assembleias contavam, às vezes, com a participação de secretários de saúde e políticos com o intuito de promover articulações relevantes, como pontua uma coordenadora do CAPS: As assembleias, a gente manda pra outras secretarias pra estarem participando, a própria secretária faz convite pra os secretários virem, a própria prefeita, os vereadores, os deputados, todo mundo. Então assim, quando chega o dia da assembleia, a gente aproveita pra dizer quais são as nossas necessidades, o que é que a gente tá precisando. Então, por exemplo, na última assembleia, um vereador tava aqui, ele já fez uma doação pra gente, então assim a gente aproveita esses momentos pra tá articulando com as outras secretarias, unidades, enfim. A assembleia pode ser um dispositivo muito importante para o aparecimento e fortalecimento de protagonismo, e poderoso no processo de inclusão social. No CAPS, no início, tinha a direção neste sentido, porém, com a rotatividade dos profissionais e questões gerenciais, o uso deste dispositivo, como um espaço de fortalecimento da autonomia e protagonismo, diminuiu sensivelmente, inclusive também em relação ao encaminhamento das questões levantadas. O plano terapêutico individual (PTI), segundo os profissionais, é construído conjuntamente com os usuários, depois do acolhimento coletivo, quando ele passa a conhecer melhor o serviço. No momento de construção do PTI, os técnicos de referência estão juntos com os usuários na escolha das atividades. A equipe também faz sugestões nesse momento. No entanto, a efetivação dos planos terapêuticos individuais é bastante difusa, pois, como não há uma rotina a ser seguida nas atividades do CAPS, vários usuários vêm para passar o dia no CAPS, se alimentam e ficam, participam das atividades que ocorrem no dia, quando as mesmas ocorrem; caso contrário, ficam no espaço, sem maiores atividades, como relata um usuário: “Aqui, às vezes, a gente fica batendo papo e fica sem fazer nada.” Os que participam da geração de renda têm seus dias agendados. O CAPS dispensa medicações psiquiátricas essenciais. Há o entendimento, entre os próprios profissionais, de que, nas crises, a medicação e o psiquiatra que a prescreve são compreendidos como indispensáveis. Alguns técnicos acreditam também que, para alguns usuários e familiares, o remédio continua a ser o agente 81 principal do processo de cuidado e os mesmos percebem isso como uma falha na adesão à proposta do CAPS. Em dias de atendimento do psiquiatra no CAPS, a quantidade de usuários aumenta consideravelmente. O manejo das crises aparece como um ponto crítico no discurso dos profissionais do CAPS. Segundo um dos nossos entrevistados: “O nosso CAPS, ele não trata de emergência”. Em linhas gerais, os técnicos compartilham dessa opinião: o CAPS não seria o lugar mais adequado para tais situações. No entanto, foi percebido, em outros relatos, que, em muitas ocasiões, os profissionais, não obstante uma série de dificuldades, acolhem os surtos dos usuários durante o dia, mas ficam preocupados sobre o acompanhamento durante a noite, tanto de quem está em crise como dos familiares que precisam, muitas vezes, de suporte. Em linha geral, foi percebido o sentimento de despreparo e desamparo da equipe que coloca como elemento principal na contenção das crises o psiquiatra e a medicação: Que não é só porque é paciente que tem transtorno mental que tem que direcionar direto pro CAPS, que tem dias que o profissional psiquiatra não tá aqui, como é que a gente vai atender sem o psiquiatra? A gente não pode tá passando medicação pra ele sem o psiquiatra. Tem que ter o atendimento de emergência, né? Então, às vezes chega à emergência, a emergência do hospital encaminha pra cá. Assim, existe essa ligação, mas não é ainda a ideal. A relação com o SAMU, nesses momentos, tem sido particularmente difícil. Muitas vezes, a questão do que é considerado como prioridade para o SAMU é apresentada como razão para que o mesmo não atenda os chamados de familiares dos portadores de transtorno mental, quando estes estão em crise. Porém, em uma situação específica, em que o atendimento em um hospital geral para uma paciente em surto foi negado, o SAMU foi além do seu papel, prestando o suporte necessário. Desse modo, uma interlocução com o SAMU vem sendo realizada. Em função de crises/surtos, usuários do CAPS foram internados em hospitais psiquiátricos e alguns desses tiveram visitas dos trabalhadores do CAPS nesse período. Após saírem da internação, os mesmos voltaram a frequentar o CAPS, porém não foi observado nenhum investimento diferenciado com os mesmos. 82 Em relação às visitas domiciliares, este CAPS possui uma média pior do que a baiana. A média da Bahia afere que 61% dos usuários nunca foram visitados em casa, enquanto neste município o número sobe para 77%. Frequência de Visitas Domiciliares 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% CAPS Pesquisado Outros CAPS da Bahia Nunca foi Visitado em Casa NUNES et alli, 2009 Apesar de muitas famílias referirem nunca terem recebido visita dos profissionais do CAPS na sua residência, as visitas domiciliares fazem parte do cotidiano do CAPS. Em 2006 e início de 2007, em função da dificuldade em ter um carro todos os dias no CAPS, existiam dias programados para que as visitas ocorressem. Após a aquisição de um carro com motorista para o CAPS, não há mais um dia determinado para essas visitas, acontecendo quando as necessidades aparecem. Entretanto, no período da pesquisa, observamos que, com essa facilidade, contraditoriamente, o número de visitas domiciliares diminuiu. TERRITÓRIO Compreender o território onde se situa o CAPS analisado no município requer dois olhares: o primeiro para a região que antecede o bairro onde está localizado o CAPS, uma região muito movimentada, com grande fluxo de pessoas, comércio e veículos. O segundo é para o bairro onde está o CAPS, completamente diferente, onde a tranquilidade é marca do lugar aliado ao pouco movimento de pessoas e 83 comércio incipiente. O bairro é de moradores de classe média/alta, formado por condomínios ao longo do percurso e de robustas casas. Neste cenário de tranquilidade, salta aos olhos um pequeno bar, o mais acessado pelos frequentadores e moradores do bairro devido a sua localização, que é bem próxima ao CAPS. Este acaba funcionado como balcão de informações para quem vai à localidade, o que se alia à boa conversa do seu proprietário. Foi possível perceber que o proprietário do bar dispõe de uma boa interação com os usuários do CAPS, o que nos possibilitou colher algumas informações. Após algumas visitas ao serviço e ao estabelecimento citado, o elemento deslocamento no território nos chamou a atenção e chegamos às seguintes ponderações: a localização do CAPS não agrada aos usuários, pois fica longe demais para os mesmos. Em números, chegamos ao percentual de 52% dos usuários que identificam o acesso ao serviço como difícil. Por parte dos profissionais envolvidos e gestores, também é unânime o descontentamento com a localização do CAPS, apesar da boa estrutura do lugar. Outra informação importante é que, durante os primeiros meses de atuação do CAPS, o proprietário do comércio anteriormente citado revela que, por muitas vezes, teve que pagar o transporte dos usuários que por ali passavam e lhe pediam dinheiro: “Ficava com pena dos doidinhos e acabava pagando o transporte deles... tava vendo a hora de falir! (risos)”. Esta informação certamente demonstra o baixo poder aquisitivo dos usuários, mas também revela o poder de interação dos mesmos com os demais sujeitos dispostos no território. Usuários do CAPS que têm carteira de gratuidade no transporte coletivo sofrem constrangimentos ao entrar nos ônibus de linha que circulam pela Região Metropolitana de Salvador. As argumentações para a tentativa de impedir que os usuários usufruam do direito à gratuidade giram em torno da percepção da loucura. O entendimento de muitos motoristas de ônibus e microônibus, e também de 84 passageiros, é o seguinte: “Como é possível a um “louco” pegar ônibus e conviver pacificamente com as demais pessoas?”. Em conversas com usuários, foi relatado o constrangimento nos transportes do município. Relatam que sempre eram motivo de chacotas, e as pessoas alegavam que eles não eram portadores de doença mental, mas que estavam tentando pegar a condução sem pagar. Isto aparece nas falas de familiares: Mas nenhum deles não aceita (passe livre). Os ônibus de lá, do Costa Verde. Não é o ônibus, mas a linha de ônibus, de kombi, que não aceita. PARCERIAS O CAPS pesquisado é o único serviço de saúde mental do município. Há tentativas de colocação de psiquiatras e psicólogos em um ambulatório e projetos para a implantação de um CAPSad e CAPSi. A relação com os hospitais psiquiátricos da capital, em particular o Hospital Juliano Moreira, começava a ser construída, mas ainda com alguns entraves nas negociações. Com a atenção básica, existem iniciativas com casos isolados. Atualmente, fala-se de uma aproximação com a Estratégia de Saúde da Família (ESF), mas não existe ainda um trabalho mais sistemático. Percebe-se, no entanto, que o laço com a ESF seria crucial, inclusive no tratamento dos que têm dificuldade de vir até o serviço: Isso, na verdade isso aí não existe, tem alguns casos que o usuário ele não tem condição financeira de vir – se houvesse essa articulação PSF/CAPS, ele poderia tá sendo visto lá, a gente fazer visitas domiciliares. Esse caso Fred, né? Então, assim eu acho que isso não tá bem amarrado, não existem encontros pra gente, eh, vamos dizer assim, mostrar o que é o CAPS, tornar aquilo conhecido; então assim, é uma coisa que tá meio solta mesmo... Em relação às redes secundária e terciária de saúde, foram mencionadas articulações pontuais, tendo, por exemplo, um caráter educativo com o serviço do DST/AIDS e odontológicos, que participam de atividades no CAPS. Os encaminhamentos para consultas e exames necessários são feitos a partir de articulações pessoais, quando trabalhadores do CAPS são também trabalhadores 85 do serviço. Uma dificuldade relatada dizia respeito às barreiras apresentadas no Pronto Atendimento para prestar assistência a usuários do CAPS: [...] Também existe um PA, a gente tem tido, mas assim, temos dificuldades. Para o usuário precisar ir para o PA, a gente precisa fazer um contato com o PA, colocar o psiquiatra nosso em contato com o médico de lá ou encaminhar o usuário com a prescrição para conseguir que seja administrado e depende muito do plantonista e isso ainda... Tanto que esse mês uma das ações que a gente está fazendo é com as emergências do município. INTERSETORIALIDADE E INCLUSÃO Apesar das dificuldades em firmar parcerias com outros setores, algumas iniciativas realizadas aconteceram, principalmente no sentido de viabilizar atividades geradoras de renda para os usuários, promovendo sua inclusão. Existem algumas tentativas de investir na qualificação e inserção profissional dos usuários, tanto em projetos de profissionalização da Secretaria de Ação Social como projetos para INFOCENTRO. São feitas tentativas de inclusão no mercado formal de trabalho, nas vagas disponíveis para a deficiência, porém sem sucesso. O caso de um supermercado da região causou repercussão entre os profissionais e alguns usuários, principalmente pelo fato de que, após terem ido para a entrevista de seleção para o trabalho, os participantes não receberam nenhum retorno. Por outro lado, os próprios técnicos realizam uma autocrítica por acreditarem que, diante desse fato, eles poderiam também ter procurado a direção do supermercado para conversar sobre o que havia ocorrido, aproveitando a oportunidade para começar a desconstruir possíveis estigmas. Por outro lado, alguns usuários conseguem retornar ao trabalho ou se manter no mesmo com o suporte da equipe, mas tais casos, contudo, não se configuram exatamente como parcerias: A gente já conseguiu alguns usuários que já foram para atividades, mas, por conta deles, um que era motorista, voltou a ser..., um abriu um restaurante com a irmã, é até aqui pertinho, então alguns retornaram, alguns retomaram, mas muito por conta sua, mas não por conta de ação do serviço. Alguns já estavam no serviço, à gente conseguiu manter com uma inclusão boa. A gente tem um, que há 86 pouco tempo estava no auxílio doença e retornou, mas percebia que ele não queria que ele queria continuar no auxílio doença, esse convencimento de que é bom estar produzindo, de que é bom estar inserido, a gente também teve um acompanhamento bom de uma que estava em auxílio maternidade, é de uma fábrica daqui, então a equipe da fábrica veio aqui, a gente fez visita na fábrica, então a gente conseguiu já essa manutenção na atividade produtiva por conta de algumas intervenções. As ações intersetoriais, que têm um maior envolvimento da equipe e de usuários e familiares, partem do núcleo de geração de renda do CAPS. Nestas são realizadas várias articulações com setores diversos, públicos e civis, no sentido de viabilizar a participação em feiras, que ocorrem no município e na capital. Isso tem viabilizado certa renda para seus participantes. Existe um interesse por parte da equipe em dar uma autonomia maior a este núcleo, e as possibilidades estão sendo pensadas. Algumas articulações foram referidas, existindo tentativas em viabilizar a inclusão, a exemplo da associação de artesãos do município, além de articulações que envolvam o trabalho, o esporte e o lazer, alvos de tentativas de ações intersetoriais: E a gente tá com projeto de parceria também com a secretaria de esportes. Ano que vem, eles vão tá disponibilizando uma pessoa da área de educação física pra vim pra cá pra tá fazendo atividades com eles. Essas parcerias se dão com as instituições de ensino superior, nas quais alunos dos cursos de educação física e fisioterapia fazem estágios no CAPS. Em conversa com uma usuária do CAPS, ela coloca a necessidade de “física” para os usuários. Outra parceria para as atividades do esporte ocorre no SECACA, em dias determinados. Com a Secretaria da Cultura, a parceria se deu através do projeto “Loucos por Música”, para o qual a Secretaria de Saúde viabiliza a participação de alguns usuários, disponibilizando Kombi e motorista para levá-los ao show, já que o mesmo acontece à noite, na capital. Muitas das parcerias, no entanto, não foram pensadas no sentido de levar os usuários para fora, mas de trazer algo de novo para o serviço. Algumas delas se aproximam mais de atos filantrópicos, mas foram relatadas no contexto das ações intersetoriais, por exemplo: na preparação da festa do Natal, são ‘procurados’ 87 padrinhos em vários setores do município, sendo que cada ‘padrinho’ deve dar um presente ao ‘afilhado’ (usuário do CAPS) na festa de Natal. A exclusão social dos usuários e de seus familiares é um elemento que incomoda significativamente os trabalhadores. O incômodo é principalmente em função das carências econômicas e do fato de muitos dos usuários viverem em situações bastante precárias, habitando lugares sem saneamento algum, em barracos de plástico. Por conta dessas questões, são realizadas articulações com secretarias do município na intenção de disponibilizar cestas básicas ou até mesmo uma casa. MOVIMENTO DE USUÁRIOS E FAMILIARES Existe, neste CAPS, um incentivo à maior autonomia e participação social e política, sendo que uma estratégia criada para tal foi o movimento para criação de uma associação que inicialmente não funcionou, segundo o relato de uma trabalhadora “[...] No início, ficamos pensando na associação, mas com uma demanda nossa; para eles não funcionou”. No entanto, existe um estímulo à criação da associação, incentivada principalmente pelo núcleo de geração de renda. O incentivo passa pela disponibilidade para discussão com os envolvidos, com pessoas do município capacitadas para tal e de encaminhamentos burocráticos. Apesar de, atualmente, a associação já estar quase oficializada, falta a real participação dos interessados para que a mesma “tome vida”. Os profissionais ficam entre não tomar a frente para que os usuários e familiares realmente assumam, porém, ao não o fazer, a associação não deslancha, pois os usuários ainda não se sentem empoderados. A existência desta polêmica tem deixado a associação imobilizada. Seria interessante flexibilizar e encontrar outras estratégias no sentido de dar um caráter mais abrangente de representar os interesses dos usuários e familiares do CAPS. Além da associação local, uma usuária e uma familiar são integrantes da AMEA, a Associação Metamorfose Ambulante, órgão estadual no qual só usuário e familiar são representados. Integrantes da AMEA se fazem presentes em eventos de Saúde Mental do município em questão e de outras localidades. 88 6. SIGNIFICADOS DE INCLUSÃO SOCIAL As ciências sociais têm na fala um instrumento privilegiado de coleta de informações, sendo esta reveladora de condições estruturais, de sistema de valores, normas e símbolos, além de terem a magia de transmitir as representações grupais (MINAYO, 2007). Bakhtin (1986) considera a palavra (fala) um instrumento de comunicação através do qual podem aparecer conflitos e contradições dos contextos sociais e políticos em que se vive. Mauss (1979) traz que as representações sociais se exprimem, dentre outras, através da linguagem. Então, para o autor, são objetos das Ciências Sociais não apenas a coisa, o fato, mas também as representações. Porém, deve-se estar atento ao risco de não limitar a realidade à concepção que os homens fazem dela. (MAUSS, 1979 apud MINAYO 2007) Trazendo Weber (1985) para complementar, este coloca que a vida social é carregada de significação social: “Essa significação é dada pela ação social que se expressa tanto na base material como na expressão das ideias, dentro de uma adequação, em que ambos se condicionam mutuamente” (MINAYO 2007:223). Portanto, tendo como cenário o atual momento histórico da política de saúde mental brasileira, pretende-se, a partir dos discursos, analisar como os trabalhadores da saúde mental significam o que é estar inserido na sociedade para as pessoas que apresentam uma enfermidade mental. Este momento histórico que atravessa a saúde mental brasileira tem possibilitado a abertura de discussões e negociações que permitem o aparecimento da complexidade do fenômeno que envolve o que se denomina como loucura. Esta abertura permitiu que a discussão não ficasse restrita a uma discussão psicopatológica ou da área “psi”, mas que se incluíssem também outros campos do conhecimento. Entretanto, essas mudanças são muitos recentes e, segundo Merhy (2007), estamos ainda no “olho do furacão antimanicomial”. É um momento em que práticas e atitudes instituintes de concepções de lidar com a loucura se colocam. Algumas 89 transformações têm ocorrido, mas há ainda um longo caminho a percorrer para transformar desejos instituintes em práticas hegemônicas. Por isso se faz importante compreender o processo e a direção que a inclusão social vem tomando em cada contexto. Transformações das concepções sobre a loucura requer mudanças em vários setores da sociedade, porém nos deteremos aqui aos trabalhadores do campo da saúde mental por entender que estes se situam em lugar privilegiado, em que as mudanças podem começar a ocorrer. Com objetivo de contribuir na compreensão desse processo na Bahia, este capítulo propõe tornar mais claros os significados da inclusão social para um dos atores envolvidos, os trabalhadores de um CAPS, através da análise dos seus discursos. Embora a análise tenha se detido nos discursos dos trabalhadores, com objetivo de enriquecer as informações obtidas, acolhemos também alguns significados de outros atores, como familiares e usuários do CAPS pesquisado. Após leitura dos dados produzidos, no que dizem respeito à análise da categoria ética de significados de inclusão social, estas foram acrescidas com as categorias êmicas, quais sejam: loucura como etiquetamento, não estar internado no hospital psiquiátrico, participação na vida cidade (circulação, relações sociais, casa, escola, trabalho), ter autonomia e direito a ter direito, que serão analisadas a seguir. 6.1. Loucura como Etiquetamento No Brasil, o movimento de reforma psiquiátrica tem sido concretizado em políticas de saúde mental, as quais supõem como “finalidade permanente” a (re) inserção social dos portadores de transtornos mentais na sociedade (BRASIL, 2004a). Isto significa dizer que devem ser criadas estratégias de “agenciar o problema social da loucura de modo a permitir ao louco manter-se na sociedade,” (TENÓRIO, 2001:121), em outras palavras, criar condições que possibilitem a inclusão social, de fato, dessas pessoas. 90 Entretanto, vimos que a definição de exclusão/inclusão social é bastante complexa, dificultando a delimitação de critérios para se considerar alguém como incluído socialmente. Em documento oficial do Ministério da Saúde (BRASIL, 2004b), que legisla sobre a organização e funcionamento dos CAPS, tenta-se, com mais objetividade, delimitar o que seria a reinserção social dos usuários. Sendo entendida como ter acesso à educação, ao trabalho, ao esporte, à cultura e lazer e o exercício dos direitos civis. Procura-se, neste mesmo documento, dar as coordenadas de como fazer, definindo que, para isto, devem ser convocados, em relação à configuração da rede social, “os recursos afetivos (relações pessoais, familiares, amigos etc.), sanitários (serviços de saúde), sociais (moradia, trabalho, escola, esporte etc.), econômicos (dinheiro, previdência etc.), culturais, religiosos e de lazer”, com o objetivo de potencializar os esforços de cuidado e reabilitação psicossocial (BRASIL, 2004b: 11). Isto feito, pressupõe-se que os usuários/enfermos mentais estariam incluídos socialmente quando puderem, efetivamente, ter acesso e fazer uso, na medida da sua necessidade, dos recursos acima citados. A mudança na legislação, como pontua Rotelli (1993), é importante, mas é apenas um dos níveis de intervenção para uma mudança na maneira de lidar com a loucura. Outras questões se apresentam, em outra instância, na forma de lidar com a loucura, como o que é delimitado por Hernáez (2009), como o processo de construção de metáforas no campo das enfermidades mentais, estas carregadas de estigma e exclusão, particularmente para o que se denomina de transtornos mentais severos. Este autor aponta duas metáforas, uma de exclusão, que se encontra presente na cultura e na prática assistencial, que é a ideia de “enfermidade ubíqua”: atribuición al trastorno mental de toda conducta o acción realizadas por el sujeto, principalmente cuando estamos hablando de aquellos comportamientos que discrepan de nuestro punto de vista o que enjuiciamos como no pertinentes. (HERNÁEZ, 2009:03). A segunda metáfora apontada é a “posición de la certeza em la que se instalan tanto los sistemas expertos como los populares” (p.05). A explicação dos comportamentos/condutas diferentes é realizada pela aplicação da nosologia 91 psiquiátrica, de forma acrítica. Se elas têm uma atitude transgressora ou passiva, isto é explicado pela condição de base da enfermidade. O autor ainda pontua que são poucas as situações em que a força do etiquetamento e do estigma se coloca sempre contra o sujeito enfermo, independentemente do que ele faça (HERNÁEZ, 2009). Este entendimento de que a nosologia psiquiátrica explica todos os comportamentos e atitudes dos “loucos” se faz presente nos discursos dos trabalhadores do CAPS, quando enuncia: [...]... e a loucura, né, a depender da situação, ela é a marca maior de tudo que... claro que de uma forma mais sutil [...]. A construção da identidade do homem no mundo é realizada através das relações sociais vivenciadas, portanto um etiquetamento desse tipo pode vir a resultar (e muitas vezes ocorre) em um processo complexo de exclusão em que: juegan factores como el estigma, la marginación, la baja autoestima, la hipertutela familiar y asistencial, la falta de autonomía y la ausencia, en definitiva, de una identidad social que no sea exclusivamente la de enfermo, paciente o usuário (HERNÁEZ, 2009:3). Isto acaba por direcionar os tipos de relações sociais que esse sujeito vai tendo ao longo da vida. Compreendendo que essas metáforas se fazem presentes, elas podem perpetuar um complexo processo de exclusão o qual é necessário entender para construir um caminho onde a inclusão social seja, de fato, possível. Tomando em conta o processo de estigmatização proposto nessas metáforas, entendemos que as políticas públicas, os modelos de assistência e as estratégias de inclusão social não deverão ser baseados somente em evidências médicas e psicopatológicas, mas também em evidências sociais. Saraceno (2001) aponta que devem-se levar em conta variáveis importantes, como sujeito, contexto, serviços e recursos. Hernáez (2009), por sua vez, pondera que a marginalização do mundo do trabalho, a perda das redes sociais, a vida tutelada, a falta de autonomia para tomar decisões e exercer seus direitos, os sentimentos diversos, às vezes contraditórios, estão presentes e são tão importantes como as disfunções neuroquímicas e a sintomatologia. 92 Os trabalhadores do CAPS percebem a existência das variáveis citadas acima como elementos na vida dos usuários, porém, na prática, até por uma questão de ‘hábito profissional’, as questões psicopatológicas aparecem no primeiro plano. [...] É muito complicado falar de inclusão, porque... a ideia de inclusão envolve a recuperação da ideia de se lidar com a insanidade, porque o tempo todo quando a gente trabalha com a pessoa que tem problema mental, a gente, volta e meia, tá influenciado pela ideia da remissão dos sintomas [...] A percepção dos trabalhadores que estão na linha de frente da assistência em saúde mental demonstra que questões psicopatológicas, como a “remissão dos sintomas”, se fazem presentes quando pensam na inclusão social desses sujeitos. Entretanto, a fronteira do que se entende por ‘remissão de sintomas’ e o perfil desejado de sujeito adaptado às normas da sociedade podem ser uma linha tênue, e, por conta disto, muitas vezes se exige uma ‘normalidade’ maior desses sujeitos do que a dos ditos ‘normais’. [...] E assim, strito senso, pra mim incluir seria justamente acolher esse jeito deles, exatamente do jeito que eles veem. E pra mim isso é muito difícil. [...] A contradição que aparece na fala acima demonstra uma cisão entre o que deve ser e o que pode ser. Isto nos leva a levantar uma hipótese de que entre o discurso e a ação há um longo caminho e que este não é linear. Isto demonstra também a necessidade de maior aprofundamento teórico para a problematização de questões complexas, pois é necessário ir além da ‘boa vontade’. Essas contradições que se apresentam nos discursos remontam a um percurso histórico, no qual a ideia do louco está relacionada com a desrazão e a periculosidade. Desde Pinel, o conceito de alienação foi colocado como contradição na razão, sendo que a pessoa que o apresentasse se tornaria “incapaz de julgar, de escolher; incapaz mesmo de ser livre e cidadão, pois a liberdade e a cidadania implicavam direito e possibilidade à escolha” (AMARANTE 2009:2). O significado do discurso de Pinel (colocando Pinel como representante de um pensamento que imperava na época) levou à construção de um lugar específico para a loucura, nesse caso, o enclausuramento. 93 Como vimos anteriormente, foi o movimento da psiquiatria democrática italiana que primeiro questionou a equação louco=perigoso, provocando uma cisão nesta forma ‘natural’ de entendimento, colocando que esta lógica levou o fenômeno da loucura a um processo de exclusão e segregação, portanto à punição do adoecimento. Basaglia (1985) aprofunda a ideia da doença “entre parênteses”, expressão cunhada por Edmund Husserl, que significa colocar em suspensão o conceito, implicando a possibilidade de novos contatos empíricos com o fenômeno em questão. Isso não significa: “a negação de que exista algo que possa produzir dor, sofrimento, diferença ou mal-estar. Significa a recusa à explicação psiquiátrica; à capacidade de a psiquiatria dar conta do fenômeno com a simples nomeação abstrata de doença”. Portanto, a doença entre parênteses é, “ao mesmo tempo, a denúncia social e política da exclusão, e a ruptura epistemológica com o saber naturalístico da psiquiatria” (AMARANTE, 2009:2). O lugar da psiquiatria como um lugar de saber/poder foi posto em xeque pelo movimento italiano quando o mesmo questiona a ineficácia de um saber psiquiátrico, apontando o manicômio como prova desta ineficácia. Esta crítica ao saber psiquiátrico visa mostrar que lidar com o fenômeno da loucura e das pessoas acometidas por ela requer uma construção mais complexa, envolvendo, além das questões psicopatológicas, as de saúde coletiva, sociais, antropológicas, espirituais, políticas e outras, que, problematizadas, enriquecerão as pessoas e a sociedade a ter uma convivência com a diferença e os diferentes (ROTELLI et alli. 2001). O saber psiquiátrico e o manicômio contribuíram para a construção do preconceito em relação aos enfermos mentais, que, independentemente do que façam, ou de como se comportem, já são etiquetados como loucos, portanto incapazes, incoerentes, improdutivos, impulsivos, e os encaminhando para a exclusão de vários aspectos da sociedade, das relações sociais, amorosas e de trabalho. Como se constata, alguns comportamentos tidos como difíceis para se manter uma relação apresentam diferenças quando estes sujeitos passam a frequentar o CAPS. Os trabalhadores não entendem bem o que acontece e explicam que “só por frequentarem o CAPS” e “por serem tratados de uma forma mais humanizada” e ainda por se propor a ser o CAPS um lugar acolhedor, este contribui para a 94 mudança de comportamento dos seus usuários. Porém isto, segundo Nunes (2008:190), é “fruto de tecnologias sofisticadas e complexas, que englobam ações de acolhimento, espaços de interlocução, estratégias de autonomização e de integralidade do cuidado”. Tais efeitos são confirmados no CAPS pesquisado quando seus espaços, especialmente a atividade da oficina de geração de renda, têm possibilitado proteção e socialização para os usuários. Isto parece explicar quando uma usuária diz que: [...] Ah. Eu me sinto bem aqui, eu gosto daqui. Aqui é a minha praia, porque aqui eu fico à vontade. Todo mundo sabe que eu sou doente, não vai me criticar por eu ser assim... Então eu me sinto bem por isso, principalmente por isso. Que aqui ninguém vai me criticar pelo que eu sou, pelo que eu tenho, né? [...] Isto é inclusive posto como justificativa de não querer sair do CAPS. Entretanto, este se torna um grande desafio para os trabalhadores, pois o CAPS deve ser acolhedor, porém não deveria dificultar a desvinculação dos usuários desse espaço e vinculação a outros. O etiquetamento da loucura, e com isso a exclusão, também pode se estender ao significado do lugar social que o CAPS ocupa, e isto é sinalizado pelos trabalhadores nos discursos, em que afirmam que o local do CAPS pode ser visto como lugar de exclusão ou de negociação. Este é um processo de ‘contaminação9’ da loucura, e isso aparece no discurso de um usuário, quando explica o motivo de ter deixado de frequentar o CAPS: “Aqui é conhecido como local de doidos”. Mesmo o CAPS funcionando em espaço comum, uma casa na cidade, aberta, sem restrições à entrada ou à saída de pessoas, sem aparatos que lembrem o manicômio e o associem à loucura, ainda assim é contaminado com o preconceito e o estigma, pela presença da loucura no ambiente, podendo, mesmo com esses cuidados, tornar-se um lugar de exclusão. 9 Contaminação entendido aqui não como a transmissão da doença/sofrimento, mas a contaminação das conseqüências sociais que o fenômeno acarreta. 95 Em outra passagem, em uma fala de uma usuária, durante uma assembleia na qual a discussão era sobre a questão da segurança interna do CAPS, diz: [...] Quem vai mexer com louco? [...]. Nesse discurso está embutido um sentimento de serem sujeitos desmoralizados e inconstantes, que se sentem protegidos na desproteção. É claro que esta sensação é mais um ato do estigma. Isso é também mais um indício de que o combate à exclusão social dos enfermos mentais não deve ficar delimitado no espaço do CAPS, mas, sim, ocorrer nos espaços da cidade. Isto para que o CAPS não fique, dentro da cidade, conhecido como o espaço da loucura, do estranho, do diferente, pois não há personagem que afirme mais radicalmente a sua diferença do que o louco (Yasui, 2009). Portanto, a relação com a alteridade se coloca no centro da discussão na saúde mental. 6.2. Não estar internado em hospital psiquiátrico O manicômio, hospício ou hospital psiquiátrico, tido historicamente como único modelo para ‘tratamento’ dos enfermos mentais, fundamentava-se na ideia da tutela, na vigilância, na punição corretiva, no tratamento moral, na disciplina, na imposição da ordem, na custódia e na interdição. O alienado, tido como incapaz, não tinha poder de decisão nem quanto ao seu tratamento. “O tratamento, no caso, deveria ser realizado numa instituição fechada, tanto porque o isolamento favoreceria a observação do “objeto em seu estado puro” – sem as indesejáveis interferências da vida social –, quanto porque o isolamento seria, em si, terapêutico, pois as mesmas interferências que prejudicavam a observação contribuiriam também para as causas da loucura. (AMARANTE, 2009:2) O manicômio foi construído como o lugar para o exercício do tratamento moral e tinha como princípios a vigilância, a disciplina e a reeducação pedagógica, com objetivo de recuperação da razão e da cidadania. Porém, ao longo dos anos, tem-se demonstrado que a única função que o manicômio cumpriu eficientemente foi a de exclusão. Exclusão dos direitos, da participação na vida da cidade, da diversificação da afetividade e da convivência na rede de relações. Um discurso de um familiar demonstra a percepção da função do manicômio, hoje: 96 [...] Porque o sanatório, gente, parece... aparentemente parece a solução do nosso problema, mas não é, porque uma mãe, ela sempre tem aquele coração de mãe, né? Então precisa saber como é que o filho está, como é que está sendo querido, se está sendo bem tratado ou não, né? E ali era uma prisão para ele, eu acho que a pessoa, no caso como eu já passei com meu filho e muitos aqui estão passando com os seus filhos, esposa e tudo, eu acho que a solução não é prender, a solução é cuidar, e é o cuidar com amor, eu acho que é fonte fundamental pra todas as coisas [...] Como dito anteriormente, o manicômio serviu para deixar de fora da vida social os sujeitos que incomodavam, além de ser um propagador do estigma. Ao longo de mais de 200 anos de seu funcionamento, ele não tem cumprido a função de tratamento e tem sido interpretado pela população como “uma prisão”, na qual o sujeito é punido pelo adoecimento. Portanto, não é nenhuma surpresa ter aparecido como referência à inclusão social o fato de não estar internado em hospitais psiquiátricos. Esta forma, muito presente, de conceber a inclusão social tem o hospital psiquiátrico como referência para negála. O fato de não estar mais excluído no lugar “natural” para os “loucos” já implicaria uma inclusão social. [...] Existem pacientes que passavam três meses no hospital, um mês em casa, dois meses no hospital e se revezavam entre o hospital e a casa. Só o fato de estarem voltando para casa, para a família, para mim já significa uma inclusão social [...] [...] E é assim... uma preocupação nossa é exatamente essa. A gente tem alguns usuários aqui que só viviam internando, internando, internando, internando. E hoje a gente tem esses que só viviam assim – na sexta-feira a gente tava conversando com um grupinho, e aí exatamente tentando ver isso. Então tem alguns que já tem seis meses, mais de seis meses – o CAPS tem um ano – sem se internar e só viviam lá. Então acho que a gente precisa avaliar resultados assim, né? É uma coisa importante [...] Essa forma de conceber a inclusão social aparece nos discursos e pode nos levar a uma compreensão de que o modelo do manicômio, como tratamento, já é entendido como obsoleto. Porém, analisando as referências a este serviço, mesmo que negativas, demonstram que a presença do hospital psiquiátrico ainda é um recurso a ser usado, quando necessário. No cotidiano do CAPS, o hospital psiquiátrico ainda se faz presente, seja pela internação (alguns usuários do CAPS foram internados 97 durante o tempo da pesquisa), seja como um lugar para acessar em situações difíceis. Geralmente, a decisão para uma internação em hospital psiquiátrico passa pela família. Alguns trabalhadores do CAPS referem que só são informados dessa decisão após a internação ter sido realizada. Entretanto, as famílias dão sinais, ou mesmo comunicam a sua decisão de internar, ou de que seu familiar não estava bem e, neste momento, parecem ocorrer falhas na relação das famílias com a equipe do CAPS. Isto pode levar a entendimentos, por parte dos familiares, de que a equipe não possa ser efetiva no tratamento de seu filho, naquele momento, e o interna. Os critérios considerados necessários para que se tome a decisão por uma internação são variados, mas passa basicamente pela (suposta) condição de periculosidade do usuário. No Brasil, a Lei nº 10.216/01 do Ministério da Saúde, no seu Art. 4º, postula que “A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes” (BRASIL, 2004a). Isto, de certa forma, também reforça a existência do hospital psiquiátrico, pois o mesmo continua como uma das possibilidades de tratamento. A dificuldade de abolir o hospital psiquiátrico como uma modalidade de tratamento se mostrou difícil na reformulação da legislação10 e na percepção dos trabalhadores de saúde mental, familiares e usuários e da sociedade de uma forma geral, pois, se ainda existe o recurso, é para ser utilizado: a oferta cria a demanda. Por hábito e cultura, mas também pela estrutura e funcionamento do hospital psiquiátrico, no caso de algumas ocorrências, é tido como uma resposta mais rápida para o problema, porém esta é uma estratégia pontual, e como disse um familiar: “[...] Aparentemente, parece a solução do nosso problema, mas não é [...]”. Por responder mais rápido, pode tornar-se mais fácil recorrer ao manicômio, porém, ao fazê-lo, o etiquetamento de já ter sido internado fica mais evidente. 10 O Projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado, em 1989, propunha a extinção progressiva dos manicômios, porém este artigo foi modificado no substituto que foi aprovado. 98 A política de saúde mental aponta para a criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais para serem utilizados em momentos difíceis, diminuindo o preconceito e o estigma de um hospital especializado para loucos. Este, porém, é um dispositivo ainda difícil de ser implementado, por várias questões, sendo uma delas, que salta aos olhos, o preconceito dos profissionais de saúde, de uma forma geral, em lidar com a loucura. É necessário que o entendimento de inclusão social não fique restrito ao ‘não estar no hospital psiquiátrico’, mas que o incluir possibilite a participação na vida cidade. Para tanto, são importantes as negociações no território11, com as famílias e com a comunidade, e o investimento na criação de possibilidades de cuidado mais humano e principalmente inserido no seu contexto. Isso, felizmente, é sinalizado nos discursos e será assunto do próximo item. 6.3. Participar da Vida Cidade (Circulação, Relações Sociais, Casa, Escola e Trabalho) Indo além da negação do hospital psiquiátrico como lugar de tratamento, aparece nos discursos, como outra posição, a possibilidade de os enfermos mentais participarem da vida da cidade, uma necessidade para que as pessoas se sintam cidadãs. Pudemos ver anteriormente que os loucos, historicamente, foram alijados dessa possibilidade, pois, mesmo com os ideais da Revolução Francesa e dos direitos humanos, eles passaram de iguais, de uma forma abstrata, para diferentes de fato por ‘não serem possuidores de razão’, qualidade necessária para ser considerado cidadão. Birman (1992) aponta que a loucura foi inserida de maneira muito peculiar na nova ordem que se instaurou com as revoluções do século XVIII, ficando à margem do estatuto de cidadania plena e de reconhecimento dos direitos: o louco não era um 11 “O território não é o bairro de domicílio do sujeito, mas o conjunto de referência sociocultural e econômica que desenha a moldura de seu cotidiano, de seu projeto de vida, de sua inserção no mundo” (Delgado, 1997 p.42). 99 igual porque era visto como aquele cuja razão não estava completa, não podendo, dentre outras coisas, usufruir da sua liberdade. Por isso ser louco se contrapôs a ser cidadão, pois ser cidadão representa a expressão universal de uma dimensão de subjetividade racional, enquanto o louco é o extremo oposto, pois representa a manifestação radical de uma subjetividade singular, do desviante, da desrazão (BEZERRA JR., 1992). Neste processo de inclusão na vida da cidade, o CAPS é considerado como uma passagem entre a exclusão e a participação na cidade. [...] Tem usuários que, assim, passaram por longas experiências de internação, ou ficaram aí, reclusos em casa, então o primeiro local de inclusão social é aqui. Porque assim, abrindo o convívio conosco, enquanto técnico, tem convívio com outros usuários; a partir daí, uma outra inclusão começa, mas assim, a primeira inclusão que eu vejo é dentro do CAPS [...]. O território no qual se encontra o serviço é uma fonte inexaurível de recursos potenciais, tanto humanos como materiais. O CAPS, concebido como uma estratégia de desinstitucionalização, às vezes sendo colocado como situado em outro extremo em relação ao hospital psiquiátrico, mas tendo o mesmo como referência. Essa referência permeia as falas sobre o CAPS “[...] Eu tô gostando do tratamento do CAPS, pelo menos é um lugar mais aberto [...]”. O CAPS aparece como o local de uma maior socialização e convivência, o que é colocado por alguns profissionais como o início da inclusão social: [...] Inclusão social, eu acho que o próprio CAPS, até a própria vinda dele pra cá, então pro centro de convivência, eu acho que é importante, porque muitos deles têm dificuldades em se relacionar, e aqui às vezes no próprio convívio, no próprio dia-a-dia, a gente acaba conseguindo, por muitas razões, por própria convivência deles aqui, eles convivem com os usuários, eles convivem com os profissionais [...] O CAPS se torna um lugar de convivência, que possibilita, por parte dos usuários, a percepção de maneiras diversas de se relacionar. Entretanto, por ser, muitas vezes, um lugar mais agradável e com alguma segurança para os usuários, este também pode fazer com que as pessoas se acomodem e não queiram sair, ter alta, conviver em outros espaços da cidade. 100 A preocupação de o CAPS ser ou não a única referência na vida dos sujeitos aparece nos discursos dos trabalhadores, porém o mesmo tem sido colocado como a primeira referência de cuidado, diferentemente do manicômio, na vida dessas pessoas. Como fala um trabalhador: “[...] Na verdade, a gente percebe que muitos dos usuários daqui, o primeiro local onde ele tá conversando sobre a vida social dele é aqui [...]”, porém, faz-se necessária uma constante vigilância para que esta referência seja entendida como parte de um processo maior, que tem como finalidade a inclusão na sociedade: [...] Nessa coisa dele tentar ter o CAPS como referência, pode ser até que ele possa não fazer hoje, já é alguma coisa. Mas eu acho que o projeto aqui maior é a sociedade ser referência também [...] Uma aposta do CAPS como local de passagem aparece na legislação, na Portaria nº 189/02 do Ministério da Saúde, sobre os níveis de intensidade no tratamento no CAPS – o intensivo, semiintensivo e o não intensivo. Além de outros usos, esta formulação de regimes/intensidades de atendimento também leva a construir uma lógica do cuidado, na qual a diminuição da intensidade ou sua alta sejam almejadas. Isto, contudo, não é uma condição dada de antemão; é necessário um estado de vigilância dos profissionais para que o CAPS seja um espaço vivo, dinâmico, de produção de vida, e passageiro na vida dos usuários. Por isso é importante a não delimitação da atuação do CAPS, somente no seu espaço físico, mas que seja agenciador de vida nos locais de vivências das pessoas de determinado território. O CAPS foi idealizado para ser uma estratégia de desinstitucionalização, porém pode vir a se tornar local de institucionalização. Isto também aparece como uma preocupação apontada pelos trabalhadores, quando falam que os usuários não podem ser considerados incluídos socialmente se os mesmos ficarem limitados só às atividades que são realizadas dentro do CAPS, “[...], pois nesse sentido só se mudaria o local e a forma que esse usuário ‘estaria institucionalizado [...]”. Com isso, vimos que existe uma preocupação, por parte dos profissionais, de que a vida dos usuários não se restrinja da casa para o CAPS e, por isso, há a preocupação de que as ações do CAPS não ocorram só no espaços internos. 101 [...] O fato de vir ao CAPS já está inserido na sociedade. As atividades ficam muito aqui no CAPS e não saem. E, dessa maneira, não está incluindo, porque, se o CAPS busca em casa, vem para cá, então, quer dizer, ainda está uma coisa muito lenta [...] No CAPS pesquisado, existe uma Kombi que é utilizada para vários fins, dentre eles o transporte de usuários casa-CAPS-casa. Este uso da kombi já foi motivo de discussões, gerando uma construção de critérios para seu uso, com o objetivo de não estimular a dependência dos usuários. Os discursos apontam para a possibilidade real de os usuários viverem em sociedade, nas suas casas, com a família ou amigos. Estar em uma casa, circulando ou participando da vida da cidade, é entendido como inclusão social por estar participando das relações. Vários discursos vão no sentido de classificar a inclusão social como participação na vida da cidade e da sociedade. Isso vem ao encontro do que apostam Tykanori (1996), Rotelli (et alli, 2001) e Saraceno (2001), os quais colocam como um ponto da desinstitucionalização a entrada nas negociações sociais, saindo do manicômio, que é considerado um “lugar zero de trocas”. Parece também ponto comum entre os trabalhadores do CAPS que não basta só estar realizando atividades nos espaços da cidade para que esteja automaticamente incluído. Como questiona um trabalhador: “[...] Incluir é só levar pra o passeio ou a atividades externas? Será que realmente eu estou fazendo uma inclusão? [...]”. Porém, a forma como ocorre a participação na sociedade pode se dar no sentido de adaptação dos usuários à mesma, ou no sentido de uma real participação na vida da cidade. Alguns modelos de reabilitação psiquiátrica americano, anglo-saxão e francês tinham como objetivo a adaptação dos enfermos mentais à sociedade (SARACENO 2001, LEAL, 2004) sem uma maior discussão sobre a organização da mesma, que faz com que se produza uma legião de excluídos. A oficina de geração de renda, apesar de acontecer dentro do espaço físico do CAPS, tem, dentre outros objetivos, o de proporcionar aos usuários a participação em vários espaços da cidade, negociando mercadorias, o que possibilita a entrada 102 em redes de relações, na qual são negociados, além dos produtos, afetos, valores, interesses, dentre outros. [...] É lidar com tudo; é sair para fazer compras, achar que está no meio da sociedade; sair com suas coisas para vender como eles fazem [...] A escola é um local onde relações de diversas ordens ocorrem, por isso é também um espaço de referência para a inclusão social. Este espaço, todavia, não foi apontado pelos trabalhadores como uma condição importante. No CAPS pesquisado há uma pedagoga contratada, e isto, no mínimo, representa a preocupação do CAPS em investir nas questões educacionais dos seus usuários, como a alfabetização, dentre outras. Entretanto, poucas vezes foi mencionada a ocorrência de atividades nesta direção, como também não foi citada a articulação com a rede de ensino formal do município. Quando perguntado à pedagoga sobre este assunto, a resposta é que “[...] Os usuários não têm muito interesse [...]”. Mas foi observado o orgulho de uma usuária, mostrando sua evolução na escrita, presente no seu caderno. Algumas iniciativas de participação na escola partiram dos próprios usuários, estimulados pelos trabalhadores. Outro ponto de participação na cidade é pela via do trabalho, e este aparece como a principal e real possibilidade de estar incluído. Alguns dos usuários que frequentam o CAPS trabalham informalmente em trabalhos de ajudante de pedreiro, diarista, dentre outras atividades, mas existe uma preocupação em incluí-los no mercado formal. [...] Claro que a inclusão se dá de diversas formas. Pra mim, um das grandes questões que incluir é colocar essa pessoa no mercado de trabalho, acho que é a grande queixa dos usuários aqui, sobretudo, é não estar no mercado de trabalho [...]. O trabalho tem estado presente em programas de reabilitação, seja psiquiátrica ou psicossocial, porém diferem em relação à função que é dada ao trabalho para os enfermos mentais. Como vimos, na reabilitação psiquiátrica, a dimensão adaptativa do sujeito aparece em quase todos os modelos (LEAL, 2004). Na reabilitação psicossocial, é dada maior ênfase à possibilidade de recuperação da contratualidade, isto é, de posse de recursos para trocas sociais (SARACENO, 103 2001), sendo o trabalho considerado como um dos aspectos principais de intervenção, mas sem desconsiderar outros aspectos centrais das suas vidas (LEAL, 2004). No CAPS, a preocupação em relação ao trabalho existe e há iniciativas nesse sentido, mas é importante fortalecer a mudança da lógica do serviço, voltar-se mais para o território. As iniciativas de trabalho aparecem na realização de atividades no espaço do CAPS, sendo o núcleo de geração de renda o ponto que concentra essas iniciativas. As relações na direção da inclusão social geralmente começam dentro da família, e é a partir desta que o trabalho de negociação com outros setores da cidade começa. Como aponta um trabalhador do CAPS: [...] Eu acredito que a inclusão do usuário do CAPS na sua própria família, [...] se ela acredita no familiar que tem um transtorno mental, acredita no que ele pode fazer, e isso pode se propagar dentro da comunidade, pra os parentes mais distantes, e a pessoa perceber mais bem-aceita [...]. É na família que os primeiros contatos da vida da pessoa se processam, é com os integrantes da célula familiar que, geralmente, se pode contar, mas é também onde muitos dos problemas se desencadeiam e os transtornos se fazem presentes. A família é parte integrante do território do usuário, por isso é necessário um maior investimento, porém o mesmo deve ser delicado e cuidadoso. Para que a ideia de participação na vida da cidade seja efetivada, de fato, a lógica do território necessita também ser mais estimulada, pois mesmo o CAPS sendo ‘aberto’, com liberdade de ir e vir, é só um serviço da cidade, dentre os existentes. Portanto, é necessário um maior investimento na rede de negociações, que pode ser começado com a família e ampliado para o território maior, na sociedade, onde os jogos de exclusão se apresentam mais fortes e às vezes baseados na ideia de que o enfermo, como sujeito, seja contaminante (HERNÁEZ, 2009). 104 6.4. Necessidade de Autonomia Outro ponto importante que aparece nos discursos dos trabalhadores, como condição ou pré-requisito para estar incluído, é a ideia da autonomia. Esta aparece nos discursos como poder profissional: [...] A gente acha assim que aqueles que já estão bem, que a gente não consegue ainda dar alta, porque ainda não têm autonomia [...]. Em outros discursos, é presente a necessidade da habilitá-los como caminho para a autonomia, e daí para a inclusão social: [...] Na verdade, você começa trabalhando com a habilitação deles, com a possibilidade deles adquirirem habilidades para penetrarem nas rotinas sociais, nas coisas típicas dos outros, nas formas de viver, que estão postas aí, nos bairros, nas ruas e nas instituições [...]. Saraceno (2001) coloca como um dos mitos da cultura de reabilitação a referência à “autonomia” dos sujeitos. Este, segundo ele, seria um dos objetivos primários da reabilitação. O autor faz uma critica na qual refere que o mito da autonomia é o responsável pela hiperseleção dos pacientes nos programas de reabilitação e do complementar abandono dos pacientes não selecionados. Outra crítica diz respeito a que a aquisição de habilidade descontextualizada não tem efetividade como inclusão no mercado. O mesmo autor critica modelos de reabilitação em que se propõe que a direção seja desde a desabilitação até a habilitação, pontuando que não existem as deshabilidades nem as habilidades “em si mesmas”, ou seja: descontextualizadas dos complexos conjuntos de determinantes constituídos pelos lugares onde se dão as intervenções, pelas organizações dos serviços, pelas interações com as estruturas sanitárias e sociais de um território, pelos recursos alocados em campo (SARACENO, 2001:114). A autonomia não pode ser entendida como uma independência total, pois a maneira de organização da sociedade em cidades nos remete à vida coletiva, fazendo com que sejamos todos nós dependentes, por isso a importância do entendimento de autonomia como uma multiplicação de redes de dependência como defende Tykanori (1996) e Saraceno (2001). A dependência de uma única instituição acontecia com a instituição psiquiátrica. 105 A questão da autonomia é uma condição importante, porém a mesma não pode ser entendida como meramente uma aquisição individual sem uma crítica mais aprofundada à sociedade na qual estamos inseridos. Saraceno (2001:113) continua dizendo que a questão da autonomia, na nossa sociedade, é o modelo da autonomia inspirado em Darwin, “onde é perseguida a capacidade singular de participar de forma vitoriosa (autonomia) na batalha pela sobrevivência”. Saraceno propõe, ao contrário, que o investimento não deve ser realizado só no sujeito, mas na sociedade de uma forma ampliada, sendo necessário propor “modificação nas regras do jogo, de forma que delas participem fracos e fortes em trocas permanentes de competência e interesse” (SARACENO, 2001:113). A ideia acima questiona os modelos de reabilitação nos quais a ênfase é dada aos sujeitos, como se fosse possível pensar em autonomia sem um questionamento à forma como a sociedade está estruturada. Se assim for, só nos resta culpar os usuários por não conseguirem se incluir socialmente. 6.5. Direito a ter direito A questão dos direitos humanos assume aqui uma expressão singular. Trata-se de uma luta pela inclusão de novos sujeitos de direitos e novos direitos para os sujeitos em sofrimento mental. Direito ao trabalho, ao estudo, ao lazer, ao esporte, à cultura, enfim, aos recursos que a sociedade oferece. (AMARANTE, 2007:69-70) A inclusão social dos portadores de transtornos mentais passa basicamente pela real aquisição de direitos – direitos de cidadania. Existe aí um ponto de tensão que necessita ser problematizado, entre a aquisição de direitos de cidadania, pautada na igualdade, como direito de ir e vir, direito de ter direitos, direito de decidir sobre sua vida, e a necessidade de direitos especiais, portanto direitos a tratamentos especiais, a auxílios específicos como transporte gratuito e ajuda financeira, dentre outros. A polêmica está em como a utilização de certas medidas de garantia de direitos especiais poderia gerar conflitos com a conquista dos direitos civis. 106 Este é um tema complexo em que existe o paradoxo de se tentar construir uma política de saúde mental, na qual direitos especiais se farão presentes, e a preocupação de que isto leve a uma mera normatização dos indivíduos. Portanto, entre os direitos de igualdade, além dos direitos civis e políticos, aparecem os direitos sociais, nos quais os direitos especiais estão incluídos. Os direitos especiais aparecem como política compensatória a favor dos que estão em desvantagem. A ideia da equidade é colocada para diminuir as diferenças decorrentes da noção de igualdade. A noção de igualdade, tida como universal, aparece na época moderna, trazendo em sua constituição a definição da razão como o aspecto que igualaria a todos. Porém, segundo Scott (1988, apud VASCONCELOS 2006), a noção de igualdade é política, pois “pressupõe um acordo social para considerar pessoas diferentes como equivalentes em relação a dado aspecto específico, e não como idênticas em si mesmas” (p: 185). Nesse aspecto, Vasconcelos (2006) coloca que o oposto da igualdade é a inequivalência, e não a diferença. Nessa linha se compreende a ideia da equidade, sobre a qual Rotelli (1993) comenta que não será uma norma abstrata que vai determinar a igualdade de direitos entre as pessoas, e propõe “Desiguales derechos para desiguales personas” (ROTELLI, 1993:1). A experiência da Itália problematiza o tema, assumindo-o como contradição permanente, através do que chamou de: ‘processo de desconstrução/invenção’ por meio da ênfase na renúncia ao mandato social de exclusão e ao mandato terapêutico convencional exercido pela psiquiatria, à colocação do problema da loucura como um processo de gestão da democracia e do cuidado social para toda a sociedade. (VASCONCELOS, 2006: 182). Em um país como o Brasil, onde a constituição da cidadania é uma questão social mais ampla, e não só dos enfermos mentais, pois grande parcela da população vive aquém das condições mínimas de vida – sem moradia decente, educação, saúde, alimentação, trabalho, dentre outras, isto requer desafios teóricos e políticos para a 107 construção de uma cidadania social mais plena para grande parcela da população brasileira, incluindo os enfermos mentais. No campo da saúde mental, estes desafios estão presentes no cotidiano, pois grande parcela da clientela do CAPS é constituída de pessoas de baixa renda. Esta preocupação se faz presente nos discursos dos profissionais, principalmente em relação ao benefício do LOAS para as pessoas com transtornos mentais em situação de carência financeira. Este difícil e polêmico lugar, que ocupa o ‘benefício’ como direito especial, coloca o sujeito como incapaz e dependente do Estado. Alguns usuários do CAPS conseguem benefícios, mas as solicitações nesse sentido produzem, nas equipes, inquietações pelo preço a ser pago: o de colocar o usuário na posição de alguém que se encontra interditado, distante, portanto, da reconquista da cidadania. [...] Então, para um serviço que tem buscado uma autonomia, inserção, às vezes a gente fica num conflito muito grande, porque, para garantir um mínimo de renda, a gente tem ficado neste conflito porque ele tem que entrar pela via do transtorno e aí tem que ser interditado. Como eu já tinha lhe falado sobre a questão da carteira do passe também, a gente não está num lugar tão distante de uma área urbana movimentada, mas estamos numa via de acesso que não tem uma frequência de transporte público [...] a carteira de passe não é um instrumento de cidadania aqui muito forte, então, essas questões dos direitos, eu acho que para a gente tem que estar muito mais presente [...] Este é um assunto que precisa ser mais problematizado e, para tal, é necessário um maior envolvimento de todos os atores sociais, trabalhadores, usuários, familiares e a população de uma forma geral, na discussão e resolução de questões dessa ordem. Falar de cidadania e de direitos não basta, como não basta aprovar leis, pois não se determina que as pessoas sejam cidadãs e sujeitos de direito por decreto. Isto se torna bem concreto em relação ao passe livre, pois os usuários falam que se sentem constrangidos quando utilizam o transporte público alternativo no município e são motivo de chacotas, ou de não aceitação do seu passe. Isto requer uma mobilização política dos profissionais, familiares de usuários, no trabalho de articulação e negociação com outros órgãos da cidade. O exercício da cidadania desafia os trabalhadores a também exercitarem a sua, como cidadãos, como aponta a fala abaixo: 108 [...] A gente exercita muito a nossa cidadania através dessa tentativa nossa de fazer com que eles também sejam, e toda vez que a gente permite, cria condições para que eles exerçam a cidadania deles, direito de falar e ser ouvido, direito de tirar um documento, de circular livremente, direito de acessar bens e serviços, tudo isso que até pra gente é difícil, a gente exercita muito com eles [...] A construção da cidadania diz respeito a um processo social e, portanto, um processo complexo. É preciso mudar mentalidades, mudar atitudes, mudar relações sociais. Tal proposição é pontuada por um gestor estadual como um desafio posto para a inclusão social dos enfermos mentais, sendo tida como uma ‘mudança da cultura’. [...] O principal desafio é a mudança da cultura, da forma como a sociedade encara o problema de saúde mental. Eu acho que esse é o principal desafio. A gente sabe que a convivência com o portador de transtorno mental com a sociedade nunca vai ser uma convivência harmônica. São pessoas muito diferentes... Mas a gente sabe que existem sociedades mais tolerantes, que conseguem tolerar mais a diferença, assimilar mais a diferença. Então eu acho que o grande desafio que nós temos, e que pra mim é o maior trabalho de todos, é o trabalho de modificação da cultura, da sociedade em relação ao transtorno mental. [...] Um ponto importante no campo da saúde mental é pensar em inclusão social não como uma condição formal e igual para todos, mas que leve em consideração as subjetividades e processos individuais. Os projetos terapêuticos individuais (PTI) são um instrumento do CAPS, no qual a história de cada um deve ser construída caso a caso, dentro do contexto em que vive e das possibilidades de cada sujeito. Na necessidade de se dar atenção às questões pessoais, individuais, subjetivas, aparece o duplo papel dos CAPS, de trabalhar as questões singulares/individuais e as coletivas/sociais. Isto coloca o trabalhador em constante exigência ética de respeito às singularidades dos enfermos mentais, mas também como uma forma de propor à sociedade confrontar-se com diversos tipos de exclusão social (VASCONCELOS, 2006). [...] Isso possibilita que ele faça um vínculo com essa pessoa e comece a se movimentar no sentido de melhorar a qualidade de vida dele: buscar um serviço odontológico, buscar um serviço de saúde, morar nesse lugar, guardar carro, lavar um carro. Isso não é mudança? Pra mim, isso é inclusão social [...] 109 6.6. A Visão dos Usuários Com o objetivo de enriquecer e confrontar pontos de vista diversos de um mesmo fenômeno, traremos o olhar dos usuários em relação a sua inclusão social. Observamos que enquanto os profissionais levantam diversas questões que envolvem a inclusão social dos enfermos mentais, os usuários são mais concretos, e, no seu olhar, a inclusão social vem refletida como expectativas em relação ao seu futuro e às coisas que podem ser realizadas estando no CAPS e ao sair do mesmo. Isto se reflete em ter um trabalho, “[...] Eu queria, pelo menos, um negocinho daquele, uma lojinha daquelas no mercado, com esse material que eu trabalho aqui é [...]”. O trabalho aparece como um marcador maior de inclusão, porém outras necessidades se fazem presentes, como um local para morar, estudar, este sendo um caminho para trabalhar no futuro, como dito “[...] Tenho um sonho, tenho um objetivo: voltar a estudar de novo, concluir pelo menos o segundo ano, o segundo grau, tirar minha habilitação, arrumar um emprego, um trabalho numa transportadora, numa firma, seja lá onde for, né? [...]. Os usuários falam também da necessidade de valorizar os sujeitos, independentemente da enfermidade que eles apresentem, colocando a importância disto para que a pessoa possa vir a participar mais e melhor na vida social. [...] Valorizar mais a pessoa. Se a pessoa é, é... se empenha nisso, então, valorize aquela pessoa. Pegue aquela pessoa e tente lapidar, que nem uma pedra de brilhante, que ela vai sair, ela, ela vai brilhar lá na frente, sabe?[...] 110 7. DIFICULDADES NA IMPLEMENTAÇÃO DOS PROJETOS DE INCLUSÃO SOCIAL Na análise dos dados produzidos, vimos que as dificuldades são variadas para que se constitua um processo de inclusão social, portanto a categoria ética das dificuldades nos projetos de inclusão social foi contemplada com as seguintes categorias êmicas: o preconceito, a inclusão social pelo trabalho, a participação da família, a dificuldade de recursos no CAPS e na comunidade, as condições de vida dos usuários, o território e a cidadania, e a idiossincrasia dos sujeitos enfermos mentais. Compreende-se que dificuldades fazem parte do processo, o qual propõe uma mudança de paradigma na percepção da loucura, transformando a lógica de exclusão na possibilidade de inclusão e convivência da loucura na sociedade. Modificar a forma de identificar o louco, que era visto como o incapaz, o desrazoado, o impulsivo, para que possa ser identificado como alguém que também contribui para a sociedade, faz com que resistências se apresentem. Transformar a maneira como identificamos e nos relacionamos com a loucura, que há séculos foi construída, requer estratégias, pesquisas, estudos diversos, mas principalmente atitudes de enfrentamento da questão perante a sociedade. Para saber como lidar com o processo de inclusão social, faz-se necessário entender como as dificuldades são percebidas e como elas se apresentam dentro de uma lógica diferenciada. Portanto, a análise dos dados será realizada a partir da dimensão técnico-assistencial, por acreditar que as outras dimensões propostas por Amarante (2003) se fazem, de algum modo, presentes nesta e por serem os serviços de saúde mental, neste caso o CAPS, o espaço primeiro de enfrentamento da questão. A vivência do cotidiano de um CAPS é rico, pois ajuda a compreender o enfrentamento do dia-a-dia e a observar as negociações que são realizadas e as direções tomadas no que se refere à inclusão social dos usuários. 111 O modelo ou estratégia de intervenção em saúde mental, à moda brasileira, vem tomando corpo a partir da década de 1980 e exige uma postura diferente dos trabalhadores de saúde mental. Porém, com a mudança de paradigma, de estruturação dos serviços de saúde mental, é de se esperar que resistências se façam presentes, como no comentário abaixo: [...] Nós já encontramos resistência de todos os setores. Inclusive, dos próprios usuários e familiares em saúde mental. Alguns usuários e alguns familiares ainda estão muito presos ao modelo do hospital, ainda não compreendem muito bem esse novo modelo. Então isso é um desafio a ser mudado, uma resistência a ser mudada. Quando o hospital psiquiátrico era a única referência no tratamento de pessoas com transtornos mentais, e suas famílias decidiam pelo tratamento, a internação era o único recurso. Quando o ambulatório entrou em cena, este prometia outra proposta de tratamento, diferente do manicômio, porém este se consolidou como mais um serviço de saúde mental que não questionava a estrutura do saber psiquiátrico nem a lógica da atenção no campo da saúde mental (DESVIAT, 2002). Este não conseguiu reverter a história daqueles que se utilizavam do hospital psiquiátrico, como também foi responsável pela criação de uma demanda em saúde mental que antes não existia. Sendo o ambulatório uma proposta de atendimento em saúde mental que não questionava o saber psiquiátrico nem ameaçava a existência do hospital psiquiátrico, estes se complementaram. Porém, com o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, com a proposta de construir uma nova relação com a loucura e a construção de outro lugar social para os loucos, questionamentos foram levantados, dentre eles o saber/poder da psiquiatria, a lógica da organização dos serviços e a relação entre serviços e os atores que a compõem. A possibilidade de pensar a loucura e o seu cuidado, de uma forma diferenciada, traz a discussão sobre o lugar de poder da psiquiatria e dos profissionais que trabalham na saúde mental, a relação das famílias com seu membro enfermo e a forma de lidar com a loucura pela sociedade. 112 O CAPS é composto de vários atores, quais sejam gestores, trabalhadores, familiares, usuários e a comunidade de uma forma geral. Em função da diversidade de atores sociais, torna-se muito mais complexo trabalhar em um lugar onde as negociações ocorrem diariamente, sejam elas dentro do espaço físico do CAPS, sejam na cidade. Partindo da visão dos trabalhadores do CAPS enquanto uma equipe e da observação no campo envolvendo outros atores (familiares e usuários do CAPS), será realizada a análise das categorias êmicas definidas. 7.1. O Estigma e o Preconceito Dentre todas as dificuldades que se colocam para a inclusão social dos enfermos mentais, uma chama a atenção pela presença constante e por parecer influenciar os outros aspectos da vida desses sujeitos, que é a questão do estigma e do preconceito. Os enfermos mentais vivenciam a questão do estigma, aliado ao preconceito, que traz como consequência a discriminação dessas pessoas na sociedade. Esta dificuldade é muito presente nos discursos dos trabalhadores do CAPS, que a colocam como a vivência de um estranhamento da sociedade quando se deparam com pessoas com comportamentos diferentes do que é “acordado” pela sociedade. Isso ocorre porque a sociedade estabelece o modelo e espera que todos ou quase todos respondam a esses critérios predeterminados pelo sistema de controle social (GOFFMAN, 1980). O modelo social cria e determina um padrão externo de sujeito, sobre o qual permite prever a categoria e os atributos; e isso passa a ser configurado como um critério único de identidade social do sujeito, que irá nortear as suas relações de convivência social. As pessoas que não se adaptam ao padrão estabelecido pela sociedade são estigmatizadas, e isto é o que ocorre com os sujeitos enfermos mentais. O estigma é mais presente sobre aqueles considerados mais graves. 113 O preconceito aparece como a maior dificuldade na ideia de se criar um espaço na sociedade para o louco e este pode vir do coletivo da sociedade, da vizinhança e de dentro da própria família, dos profissionais de saúde e até dos CAPS, como aponta o discurso de familiar: “[...] por mais que se conscientize, que diga que vai acabar, que não tem esse preconceito, mas sempre tem, não sei por quê, mas tem”. A discriminação na circulação pela cidade ocorre em função da existência do preconceito, quando os sujeitos são identificados como enfermos mentais, seja na rua, espaço público por excelência, seja em outros espaços, onde é livre a circulação das pessoas. Um desses espaços é o uso do transporte urbano, um espaço que deveria ser livre para a circulação das pessoas, entretanto é um espaço bastante citado por trabalhadores, usuários e familiares como lugar onde a discriminação acontece. No CAPS foram citados alguns exemplos de constrangimentos em relação ao uso do transporte urbano pelos usuários, quando os mesmos utilizavam o ‘passe livre’, benefício concedido a alguns. E aí assim, uma outra dificuldade também que a gente tem é a questão do acesso mesmo, transporte. Porque aqui em (nome do município.) a gente tem um problema. Alguns até conseguem o passe – só que aqui funciona muito mais o transporte alternativo do que o coletivo. E, no transporte alternativo, praticamente não aceita o passe. Então é uma dificuldade enfrentada pra ele vir. Os casos relatados eram dirigidos ao transporte público alternativo em função deste ser mais usado para o deslocamento dos usuários até o CAPS. Os que possuem a carteira de gratuidade sofrem preconceito ao ingressam nos transportes públicos do município, quando são utilizadas argumentações na tentativa de impedir que os usuários usufruam desse direito. Foi relatado um caso em que o cartão de passe do usuário foi quebrado por um motorista de transporte urbano. O constrangimento na circulação pela cidade, movido pelo preconceito, ocorre também na dificuldade em frequentar os locais do comércio, onde o preconceito pode aparecer de uma forma mais sutil, com olhares desconfiados ou acusatórios, mas também aparece concretamente, impossibilitando esses sujeitos de entrar nos espaços comerciais, como aparece no discurso abaixo: 114 [...] Há pouco tempo eu estava no mercado, num dia de sábado, e chegou um usuário lá e o segurança foi pra cima dele, pra colocar pra fora mesmo, aí eu fiz assim: ‘Ele não vai fazer nada com você, ele está conversando comigo porque eu trabalho no CAPS e não vai bulir em nada aqui’. Tem rejeição, existe, sim. Se eles vão sozinhos, é uma coisa, não atendem, às vezes têm dinheiro pra comprar, mas eles já os veem como loucos mesmo, não tem jeito. É louco do CAPS. Essa discriminação aos enfermos mentais aparece também em função da associação deste com a violência no imaginário social. Porém, a explicação ‘em ser um usuário do CAPS’ pode ampliar o preconceito ao CAPS, construindo uma delimitação para o CAPS como local da loucura, problema este conhecido com o hospital psiquiátrico. Esta preocupação aparece nos discursos dos trabalhadores sobre a possibilidade do CAPS ficar discriminado, conhecido como lugar da loucura. Quando o preconceito se estende também ao local do CAPS, que pode ser visto como um lugar ‘perigoso’, sendo mais presente quando se trancam os portões. Isto pode denotar um signo poderoso para manter a ideia da periculosidade do louco. O preconceito também contagia os frequentadores deste local, como diz um usuário: E: Você acha que sua vida mudou depois que você passou a frequentar o CAPS? A. R.: Mudou. E: Como assim? A.R.: Mudou por que... muita gente tem preconceito com quem entra no CAPS, mas aqui eu não ligo pra isso. Esse preconceito também é presente quando são comercializados os produtos da geração de renda dentro do CAPS, pois existe uma dificuldade da circulação de pessoas. Esta dificuldade é presente no CAPS pesquisado, pois quando os produtos são colocados à venda, só as pessoas que frequentam o CAPS é que circulam. Este problema foi também identificado em outros CAPS que participaram da pesquisa do NISAM, entre 2006-2008 (NUNES et. alli, 2009). [...] Na realidade, às vezes, eu penso que nossa lojinha não é frequentada por isso. As pessoas, às vezes, têm medo de chegar porque é aqui [...] E que a sociedade esteja assim receptiva porque a maioria da sociedade. O pessoal às vezes não quer, não quer nem entrar aqui, com medo de entrar [...] 115 Entretanto, mesmo os CAPS que têm uma estrutura menos hierarquizada, que funcionam com os portões abertos e onde há liberdade de entrar e sair quando quiser, estão sujeitos à discriminação do espaço. O CAPS pesquisado tem uma organização de espaço físico com esse perfil, e mesmo assim é conhecido como “lugar de doidos”. Isto faz com que os produtos do núcleo de geração de renda, que são expostos dentro do CAPS, não tenham tanta saída. A venda só ocorre através de pessoas que já frequentam o CAPS. Porém esses mesmos produtos são bemaceitos quando a venda ocorre nos espaços de circulação da cidade. A escola, que atualmente no Brasil vem trabalhando com o lema da inclusão, é um lugar em que o preconceito com os enfermos mentais se faz presente. As dificuldades aparecem desde a infância. Quando crianças são reconhecidas como enfermos mentais, sofrem discriminação. Esta aparece desde a hora de conseguir uma vaga, na dinâmica da sala de aula, até o momento em que são “convidadas” a se retirar da escola. Isso se torna mais grave quando ocorre na infância, pois os priva de um espaço por excelência de socialização, além da aquisição de conhecimentos necessários para uma inclusão na sociedade, como um todo, e no mercado de trabalho, em particular. Isto, dentre outros motivos, tem como consequência chegar à idade adulta sob o flagelo do analfabetismo. O CAPS pesquisado tem uma pedagoga na sua equipe, e isto demonstra um interesse em suprir uma carência (alfabetização) que é muito presente entre os usuários. Porém, esta atividade não tem surtido efeitos, como explica a pedagoga: “Eles não têm muito interesse” e, por parte dos usuários, “parou de acontecer as oficinas”. No entanto, foi observado que uma usuária estava bastante satisfeita pelas conquistas que tinha feito em relação à leitura e à escrita. Outros usuários souberam de uma universidade que estava oferecendo curso de educação de adultos, se inscreveram e estão frequentando. Isto demonstra que existe um desejo de aprendizagem, o qual deve ser incentivado através de parcerias e negociações com as instituições escolares. É sabido que as escolas públicas têm suas dificuldades, como a quantidade de alunos em sala (o que dificulta ou impossibilita um acompanhamento mais 116 individualizado dos seus estudantes), a baixa remuneração do professor (levando-o a uma carga horária pesada de trabalho) e a necessidade do cumprimento de um currículo nem sempre contextualizado com os interesses do alunado. Somado a isto, existe também a dificuldade do professor em lidar com alunos tidos como ‘diferentes’. Outra instituição onde aparece a discriminação é no setor saúde. O preconceito dos profissionais de saúde é um fator importante de dificuldade de inclusão dos enfermos mentais na rede de saúde, quando os mesmos sofrem de problemas clínicos. Muitas vezes o cuidado é negado em função do preconceito dos profissionais de saúde com esses sujeitos. Isto é muito grave, pois estes profissionais têm se recusado a dar assistência aos problemas clínicos dessa clientela, levando usuários a óbito na Bahia. (ROSA et. Alli. 2008) Esta questão apareceu em várias cidades nas quais foi realizada a pesquisa do NISAM. Isto acontece quando um sujeito procura um serviço de saúde do SUS e muitas vezes se vê impossibilitado de realizar seu tratamento porque o profissional de saúde tem medo de atendê-lo. Este medo passa principalmente pelo desconhecimento sobre a doença mental e pelo preconceito. É mais difícil de aceitar o preconceito dos profissionais de saúde que o da população de uma forma geral, pois se imagina que os mesmos foram capacitados para atendimento à clientela da rede SUS, que tem como um dos princípios a universalidade. [...] Discriminação... eu tô... lhe falei que tem hospitais que já discriminam. A saúde como um todo não quer a atenção psiquiátrica lá no meio deles. Não quer. Começa daí. [...]. Mas assim, de uma maneira geral, a gente assim, vê que existe realmente, né? Por falta de informação, por desconhecimento até pelos próprios profissionais: os médicos que estão na emergência, os enfermeiros, os técnicos, então assim eles têm medo, né? A gente teve um caso aqui de um usuário que foi atropelado, e o serviço foi tudo malfeito. Não foi? Teve um corte, e pra fazer a sutura, parece que foi feito a sutura assim bem a distância sabe? Deve ter sido muito rápido, eles não têm mesmo assim... Não sabem como lidar né? Têm medo por falta mesmo de capacitação, informação e dos próprios profissionais, o próprio SAMU né? Às vezes eles têm receio e, dependendo do caso, eles chamam um policial pra acompanhar. 117 O preconceito por parte dos profissionais do CAPS ocorre em menor escala, mas também é percebido. A equipe do CAPS é formada de pessoas, e estas também estão impregnadas da cultura da sociedade em que vivem. Este preconceito vai influenciar na construção de projetos de inclusão social. [...] Assim, né? Se despir dos preconceitos, né? Porque no momento da gente, enquanto profissional, chega cheio de preconceito, a gente realmente não consegue que isso e a capacidade de inclusão social permeie [...] O preconceito também é percebido em casa, na própria família, que tem como membros enfermos mentais. Quando isso é vivido, é sentido como mais difícil, pois afeta o dia-a-dia da vida dessas pessoas, as relações familiares, podendo, por conta disso, haver afastamento dos parentes, ficando o núcleo familiar ou o próprio usuário sozinho, afastado, discriminado. Acontece que o preconceito que se tem por uma pessoa enferma mental acaba algumas vezes contaminando o olhar para aquela família, influenciando a dinâmica familiar. No CAPS pesquisado, os ‘cuidadores familiares’ reportam um cansaço pelo lugar que ocupam. No entanto, encontramos certa polissemia entre os que afirmam terem desejado desistir em alguns momentos e outros que se mostraram como inabaláveis com relação à posição assumida: É muito difícil, muito difícil. Tem horas que a gente pensa em desistir.... Eu nunca pensei em desistir, eu sempre gostei de lutar, eu acho que eu sou um soldado e que eu vou vencer a guerra; enquanto tiver ali o inimigo... É como se fosse o inimigo que eu vou ter que superar, vou ter que passar à frente dele, ele vai ficar pra trás e eu vou vencer ele, entendeu? A questão de gênero se faz presente nas famílias, pois a grande maioria dos ‘cuidadores familiares’ são mulheres, sejam elas mães, filhas, esposas ou tias. O cansaço desses cuidadores tem sido percebido pela equipe, que, muitas vezes, compreende a tentativa de repasse do cuidado como decorrente do desgaste acumulado. No entanto, existe uma queixa dos trabalhadores em relação à necessidade de uma maior participação das famílias no acompanhamento do tratamento de seus filhos. 118 Outra dificuldade que acontece com os enfermos mentais, também por conta do preconceito, está em conseguir estabelecer relações amorosas. Estas relações ocorrem em alguns casos, e algumas são constituídas entre os próprios usuários. Inclusive, um paciente, ele conversou comigo essa semana, falou que não estava com a namorada porque, quando ele fala que é do CAPS, a menina corre, entendeu? 7.2. O Difícil Lugar do Enfermo Mental no Mercado de Trabalho Quando se faz referência à inclusão social, a primeira modalidade que se apresenta é o trabalho. Por ser um dos principais pilares das sociedades ocidentais, e também considerado como estruturante da vida, o trabalho ocupa um lugar de referência na vida das pessoas. Isto aparece tanto nos discursos dos trabalhadores como nos dos usuários. Porém, da forma que o trabalho é organizado nas sociedades capitalistas, se torna um desafio incluir os usuários do CAPS no mercado de trabalho formal. As dificuldades são, além das exigências do mercado de trabalho, o preconceito que é sentido ao se tentar empregar alguém considerado enfermo mental. No CAPS pesquisado foi feita uma tentativa de inclusão no mercado de trabalho formal, porém sem sucesso. A gente já os fez participar de seleção para o trabalho. O (nome do supermercado), a gente tem um contato bom, então eles nos acionam. Primeiro a acionar, nos fez perceber que precisamos fazer um trabalho lá, eles foram, era para deficientes, a supervisora do setor já sabia que a gente já fazia um trabalho e, quando eles acionaram, nós voltamos a falar, e quando eles foram para as entrevistas, eles viram que não era deficiência física, não era deficiência auditiva e aí perguntaram muito e foram muito impositivos em relação a isso, e acabaram nos dizendo que, para aquelas atividades, eles não tinham habilidades necessárias. Aí já acendeu uma antena: precisamos estar lá mais perto, a gente precisa fazer um trabalho. Em cidades do interior, de menor porte, isso fica ainda mais difícil devido ao reduzido número de vagas no trabalho (NUNES et. alli, 2009). Os profissionais falam 119 da dificuldade em acessar esse recurso, tanto pela dificuldade da concorrência – mormente em um país como o nosso, em que há uma legião de desempregados – como pela sensação de frustração que é sentida tanto pelos usuários como pelos profissionais, em situações em que não têm sucesso. [...] Que teve uma vez que ficou muito ansioso porque teve a possibilidade de arrumar emprego e não deu certo. E aí ficou muito ansioso, muito, muito, muito. E aí depois ficou meio abatido porque eh, não conseguiu e aí acha que a culpa é dele porque ele tem esse problema mental [...] Outra dificuldade que se apresenta na inclusão pelo trabalho é em função da história de vida dos usuários, do seu jeito de viver a vida e da dificuldade em se relacionar, ponto este muito solicitado em uma grande variedade de postos de trabalho. Esta dificuldade em se relacionar aparece no discurso de uma usuária, quando relata sobre sua experiência com a participação em feiras, pelo CAPS: Não... eu não quero mais trabalhar não, porque, quando eu vou pra feira do CAPS, na feira mesmo que teve, eu sempre vou pra eventos, né? E levo as coisas do CAPS, [...] eu fico nervosa, eu me sinto nervosa, eu ainda não comentei com ninguém isso. Nem com doutor P. nem com ninguém aqui. Eu me sinto nervosa, aí eu me deprimo também, porque eu fico achando assim que eu não sou útil, entendeu? [....] eu não me dou pra aquilo, não dou pra fazer aquilo, aí pronto, aí eu fico deprimida. Por entender a dificuldade do mercado em contemplar essa população, foram criadas no Brasil, através de dispositivos legais, alternativas de subsistência que se traduzem como uma renda mínima para os enfermos mentais diagnosticados e carentes. Isso levanta um questionamento do difícil e polêmico lugar que ocupa o ‘benefício’ como direito especial, o qual, na sua aquiescência, o sujeito é identificado como incapaz. Esta é mais uma dificuldade que se traduz da seguinte forma: como trabalhar com os usuários para aumentar sua autonomia e participação social para serem incluídos no mercado de trabalho, se fazendo isso os mesmos podem perder a renda mensal garantida? Especialmente em um país como o Brasil, com grandes desigualdades econômicas e grande parcela da população vivendo de forma precária. 120 [...] Tem aqueles que estão encostados, né? E aí, quando acaba o período do benefício, que tem que retornar, é um receio muito grande de voltar e ser demitido [...] Alguns usuários do CAPS conseguem benefícios, mas as solicitações nesse sentido produzem, nas equipes, inquietações pelo preço a ser pago: o de colocar o usuário na posição de alguém que se encontra interditado: distante, portanto, da reconquista da cidadania. Isto parece paralisar a equipe, embora também seja colocado por outros que é necessário um maior envolvimento na discussão e resolução de questões dessa ordem. 7.3. A Falta ou Carência de Recursos no CAPS e Equipamentos na Comunidade Entendem-se recursos como materiais, físicos e humanos, necessários ao bom funcionamento do CAPS, como também os recursos da comunidade, que são entendidos como os serviços, equipamentos sociais e comunitários, casa, trabalho, dinheiro, lugares de efetiva formação, relações sociais possíveis, etc. No CAPS pesquisado, o espaço físico pode não ser o ideal, em função da acessibilidade e de barreiras arquitetônicas como as escadas, porém é um espaço físico privilegiado, com ampla área verde, o qual, com criatividade, pode ser bem aproveitado. Quanto aos recursos materiais, não foi colocada dificuldade na aquisição de materiais de escritório nem de medicações, porém apresentam-se dificuldades em adquirir os materiais necessários para o funcionamento das oficinas, o que muitas vezes inviabiliza o início ou a continuidade nos projetos, intra e extra-CAPS, como os direcionados à inclusão social. Já os materiais do núcleo de geração de renda são adquiridos com a venda dos seus produtos e, para esta, tem uma diversidade considerável. Isto ocorre provavelmente em função da autonomia deste núcleo na escolha e compra dos materiais. 121 Quanto aos recursos humanos do CAPS, o mesmo tem uma equipe diversificada e comprometida, porém duas dificuldades se apresentam: a considerável rotatividade dos profissionais e a necessidade de uma maior capacitação para lidar com momentos de crise dos usuários e para o trabalho territorial. O trabalho nos CAPS demanda a criação de vínculos, estes bastante importantes no trabalho com o usuário como com as articulações necessárias no território do mesmo. A rotatividade de profissionais modifica consideravelmente a rotina do CAPS, desestabilizando usuários e principalmente abortando projetos e direção de trabalho, alguns deles no território, trabalhando com a inclusão dos usuários. O investimento na capacitação da equipe do CAPS é a base, pois o trabalho é realizado com tecnologias complexas, que requerem um trabalho interdisciplinar, interprofissional e intersetorial. Compreende-se que o cotidiano do CAPS é exigente e habitado por intensas demandas de cuidado pelos usuários, o que tem colocado nos ombros dos trabalhadores pesos importantes, fazendo-os experimentar, todo o tempo, a potência e a impotência dos mesmos. Estes são pontos importantes a serem trabalhados, pois podem levar à frustração e à exaustão por parte dos trabalhadores (MERHY, 2007). Quanto aos recursos da comunidade, este supõe, além da existência dos mesmos, a necessidade de gerar redes através de negociações, parcerias, solidariedade, dentre outras. Mapear e identificar quais são os recursos que a comunidade disponibiliza são também funções da equipe do CAPS, pois só se pode pensar nos projetos de inclusão social concretos se houver conhecimento dos mesmos. Uma das dificuldades é o entendimento dos trabalhadores, na ideia de uma atenção psicossocial, onde o viés social é tão importante quanto o viés da clínica. Esta dificuldade é concretizada quando a própria equipe não tem uma noção dos serviços e equipamentos existentes na cidade. P: Com relação ao CAPS, mercado formal e informal, você sabe informar se o CAPS tem estabelecido algumas parcerias para inserir o usuário no trabalho? 122 E: Teve, de certa forma houve um pouco de falha, está falho ainda [...] De acordo com a fala acima, ainda são poucos os equipamentos sociais com os quais o CAPS tem feito parcerias. Dentre eles se destacam a associação de artesãos, o SECACA e a Secretaria da Mulher. É necessário um maior empenho tanto para constituir as articulações como para manter as já feitas, entretanto é notória a falta de muitos recursos para uso dessas pessoas, como também a dificuldade de acesso quando os mesmos já existem. Um dos objetivos da atual política de saúde mental é a construção de serviços de base comunitária e a intersetorialidade para que os enfermos mentais circulem pela cidade. Para tanto, é necessário avançar nos processos de articulação com a rede de saúde de uma forma geral, principalmente com a rede básica, que tem uma lógica de cuidado, onde a promoção da saúde é buscada, além da articulação com outros recursos de suporte social, cultural, de esporte e lazer, dentre outros, da cidade. Isto tem como objetivo dar potência a esses equipamentos, além de promover a discussão da cultura manicomial que perpassa os mais diferentes espaços de convívio (DIMENSTEIN, 2006). 7.4. O Trabalho Territorial e a Cidadania Uma estratégia de mudança da lógica do cuidado em saúde mental é possibilitada pela direção do trabalho, este ampliado para o território maior, a sociedade, não ficando restrito a uma única instituição. Essa mudança de direção cria outra dinâmica de funcionamento dos serviços, no qual o trabalho deve ser o “portador da capacidade de vivificar modos de existências interditados e antiprodutivos, fazendo com que a vida produza vida” (MERHY, 2007:34). O trabalho territorial no CAPS foi um ponto considerado como elemento frágil, portanto necessitado de fortalecimento. Este trabalho envolve basicamente a intersetorialidade, porém passa também pelo reconhecimento do modo de viver a vida dos usuários nos seus contextos sociais. 123 Uma das práticas para se desenvolver a intersetorialidade no CAPS pesquisado é realizada com a apresentação do mesmo a outros dispositivos de saúde, bem como comunitários, para a construção de uma rede intersetorial que atendesse às reais necessidades dos usuários. Frequentemente, tais necessidades, insistem os técnicos do serviço, ultrapassam o âmbito da saúde propriamente dito. Isso se percebe claramente no caso dos moradores de rua, ou dos que vivem em situação de miséria quase absoluta, que, em relatos dos trabalhadores, tais casos surgem como extremamente mobilizadores. Rede e intersetorialidade foram tidas como pontos centrais nos desafios a serem galgados pelo CAPS, segundo uma das coordenadoras: É sair de dentro do CAPS. É possibilitar a intersetorialidade, possibilitar a capacitação de outras equipes, de estar fortalecendo o matriciamento, mas executando ele, fazendo com que isso seja uma coisa forte, que a gente conhece redes aí fora de muitos anos de saúde mental que existem e não funcionam. [...] Acho que essa intersetorialidade é o que nos falta mesmo, é poder fazer com que essa associação [a partir do núcleo de geração de renda] seja uma realidade, que a gente possa começar a gerar renda para eles, acho que são os grandes desafios que a gente tem em poder crescer enquanto saúde mental, porque o município não entende CAPS e nem tem esse entendimento, como muitos municípios menores que saúde mental é CAPS e está resolvido nisso. A gente tem até uma sorte de ser um município tão pequeno e estar próximo da capital, e as pessoas não têm muito esse entendimento e poder dar mais visibilidade, eu acho que o serviço precisa ser mais visível do que ele é, esse investimento em divulgação. De acordo com Amarante (2007), o principio da intersetorialidade perpassa vários setores sociais, no campo da saúde mental, saúde em geral, das políticas públicas e da sociedade como um todo. Em nome desse princípio, os serviços de atenção psicossocial não devem ficar restritos ao espaço físico do serviço, mas buscar na sociedade vínculos que complementem e ampliem os recursos existentes. O trabalho no território auxilia na garantia dos direitos dos usuários, e daí da sua cidadania, pois levanta a necessidade de negociações por parte da equipe do CAPS com os familiares, a sociedade e com suas instituições. Segundo Merhy (2007:35), “quanto maior a autonomia dos coletivos de trabalhadores nos diferentes espaços organizacionais, maiores as possibilidades de agenciarem ganhos de autonomia 124 junto aos usuários”. Isto é colocado como importante pelos trabalhadores do CAPS pesquisado. A gente exercita muito a nossa cidadania através dessa tentativa nossa de fazer com que eles também sejam, e toda vez que a gente permite, cria condições para que eles exerçam a cidadania deles, direito de falar e de ser ouvido, direito de tirar um documento, de circular livremente, direito de acessar bens e serviços, tudo isso que até pra gente é difícil, a gente exercita muito com eles, por isso é interessante que a gente, que a própria equipe tenha disposição pra ser cidadão, que a própria equipe e os próprios membros tenham disposição para exercitar [...] Como se abordou anteriormente, a dificuldade do enfermo mental ser considerado cidadão vem desde a constituição da modernidade, quando a razão passou a ser utilizada como a necessidade básica do contrato social e, por consequência, da cidadania. O enfermo mental foi considerado desrazoado e, por isso, excluído dos direitos de cidadania. Com as reformas psiquiátricas que ocorreram em vários países, particularmente a da Itália, propôs-se a discussão sobre as formas como a sociedade lida com as pessoas com sofrimento mental, pois tradicionalmente, desde Pinel, a loucura estava relacionada ao erro, à periculosidade, à insensatez, à incapacidade (AMARANTE, 2007). Entretanto, é necessário problematizar a maneira como será proposta a reconstituição da cidadania desses sujeitos. É importante que se tenha uma visão crítica das teorias, pois algumas não problematizam a questão do desenvolvimento da cidadania social com o crescimento da normatização dos indivíduos (VASCONCELOS, 2006). 7.5. As Condições de Vida dos Usuários A exclusão social dos usuários e de seus familiares é um elemento que incomoda significativamente os profissionais. Para além da exclusão, produzida pelo transtorno mental, a exclusão causada por questões sociais é vivida por muitos dos usuários do CAPS. Alguns deles vivem em situações muito precárias, habitando lugares sem 125 saneamento algum ou em barracos de plástico. Um caso desses que mobilizou bastante a equipe foi o de uma usuária que mora nessas circunstâncias e acabou engravidando. Isso gerou inclusive uma grande discussão na equipe sobre a possibilidade de aborto. Este caso fez como que fossem realizadas articulações com órgãos do município e contou também com a solidariedade de pessoas com objetivo de minorar as condições dessa usuária. C.: Uma coisa que a gente vê aqui é isso, é que as condições de vida desses usuários são... C 1: São precaríssimas. C: São muito precárias. As condições de vida da população que frequenta o CAPS, na sua maioria, estão dentro da faixa da pobreza, e se situam aquém do mínimo necessário. À carência financeira se somam as dificuldades causadas pelo transtorno mental, dificultando a inclusão social. No município, a miséria é considerada como um fator de tamanha relevância, que, para a Secretaria de Saúde, a mesma deve ser considerada como fator etiológico ou, no mínimo, agravante do sofrimento mental, como aparece no diálogo abaixo: [S:] Você... sabe a história quem veio primeiro, o ovo ou a galinha? [Entrev.]: Sei. [S]: Será que o paciente com transtorno mental já era um morador de rua e foi por isso que ficou com transtorno mental? Ou foi o transtorno mental que o fez um morador de rua que a família expulsou? Eu não tenho essa resposta ainda. Talvez um dia a gente consiga. Na sociedade brasileira ainda se luta por garantias mínimas no campo da cidadania social, que “nunca foram conquistadas para a maioria da população, constituindo um desafio para todo o campo das políticas sociais”. (VASCONCELOS, 2006:182). Esta soma-se ao estigma da loucura com a carência financeira, tornando ainda mais sofrido viver a vida, inclusive algumas famílias aludem ser uma questão divina, ou acham que pode ser uma sina, como demonstra o discurso abaixo: [...] Tem pessoas que tem intermédio, não sei, parece que já nasceram com a sina de sofredoras, parece que nem eu faço o mal àquela pessoa, eu só faço o bem e depois quer me perseguir e parece que eu não sou gente naquele setor, porque eu acho que me acham pobre, então não é parente meu. Parece que, porque eu sou pobre, não me tratam bem, como se eu não fosse gente igualmente 126 aquela pessoa. Então, na rua que eu moro, eu cheguei com 13 anos de idade e já estou com 61 anos de idade, e já passei muitas fases difíceis que, se não fosse filho, eu acho que já tinha até me suicidado por causa de pessoas que pensam que a gente não é gente também. 7.6. As Idiossincrasias dos Sujeitos Enfermos Mentais Uma questão também apontada como dificuldade é o jeito de ser de cada um. Lidar com as subjetividades e comportamentos bem diferentes do padrão colocado pela sociedade é posto como um desafio para a inclusão social. De fato, amar eles do jeito que eles são é muito difícil, pra grande maioria, algumas pessoas até aceitam, L. A., F, do jeito que eles são, são poucas as pessoas que amam eles do jeito que eles são. E assim, strito senso, pra mim incluir seria justamente acolher esse jeito deles, exatamente do jeito que eles veem. E pra mim isso é muito difícil. Porque a gente teria que trabalhar com a ideia de que todas as pessoas que faziam parte do mundo deles entenderiam que esse jeito deles é bom. Então, a gente tá entrando em embate com um projeto social. Isso é um trabalho muito difícil. Aceitar a ideia de que algumas pessoas podem ficar dias sem tomar banho, querer viver na rua, carregar seus penduricalhos (tão significativos), não conseguir se adequar às formas de convivência pactuadas com o grupo social, além de apresentarem uma instabilidade emocional, se coloca como um desafio para os trabalhadores de saúde mental e para a sociedade. Em função de dificuldades em lidar com a psicose, as formas de reinserção social são claramente uma construção árdua, trabalhosa e sujeita a constantes fracassos, por isso é necessário um trabalho quase que artesanal junto aos usuários para que uma verdadeira reinserção (descartados os ideais de normatização) aconteça. A questão da tolerância com estas pessoas se apresenta, mas, segundo Basaglia, (apud AMARANTE, 2007) a questão da aceitação do doente mental não deveria ser direcionada para a questão da tolerância. “A ideologia da tolerância é arrogante e pretensiosa, pois implica suportar (tolerar) o outro” (p: 72). 127 Saraceno (s/a:16) atualiza a visão de tolerância apontando que “el futuro la tolerancia deberá ejercerse con menos énfasis sobre la buena voluntad de los individuos y mucho más sobre la afirmación de derechos substanciales protegidos por las colectividades y por sus organizaciones públicas”. Com isto, este autor aponta que a cidadania é uma forma de tolerância que não está baseada “en la noble voluntad de una minoría iluminada sino en la capacidad de organización de los recursos y de las instituciones que existen en una comunidad”, e complementa, dizendo: “La tolerancia como ética del respeto de la igualdad de los seres humanos se transforma en ética del acceso a las oportunidades materiales y afectivas de que uma comunidad dispone” (SARACENO, s/a:16). 128 8. ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PELOS TRABALHADORES DE UM CAPS NOS PROJETOS DE INCLUSÃO SOCIAL Trabalhar em serviços que se propõem a ser substitutivos a outros hegemônicos é atuar com manifestação de grandes conflitos e desafios. Os desafios que o cuidado em saúde mental atualmente coloca para os trabalhadores requerem a criação de estratégias de diversas ordens, que vão sendo construídas a depender da vontade política dos gestores, do cotidiano do serviço, do contexto da comunidade no qual está inserido e das subjetividades presentes. No campo da saúde mental, a reabilitação psicossocial, denominada por alguns de atenção psicossocial, vem sendo a estratégia adotada pelo Brasil. As dificuldades são percebidas no cotidiano e, para que os projetos de inclusão social sejam constituídos e colocados em prática, os profissionais vão criando estratégias. As que foram relatadas aparecem como formas de enfrentamento das dificuldades que vão aparecendo, na medida em que o lugar da loucura vem se reposicionando. Estas são implementadas pelos trabalhadores dos CAPS, que muitas vezes vestem a “camisa” do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Quando se pergunta sobre as atividades do CAPS que são direcionadas para a inclusão, os discursos dos trabalhadores comungam com a ideia de que: “é à base do trabalho, à base da nossa interação”. Foi percebido que o recurso mais utilizado para tal é a negociação. Este é usado internamente no CAPS, como na sociedade. As negociações acontecem nas intervenções com os usuários, no CAPS, nas questões relacionais, com a família, com a vizinhança e a comunidade local, tendo como pano de fundo um respeito à aquisição dos direitos dos usuários. As estratégias foram divididas entre as que ocorrem internamente no CAPS (intraCAPS) e as que, a partir dele, são realizadas na cidade (extra-CAPS). A família é colocada como pertencente ao ponto de interseção entre dentro e fora do serviço. 129 8.1. Estratégias a partir das Atividades que Ocorrem Prioritariamente no Espaço Físico do CAPS. Dentre as atividades que ocorrem no espaço físico do CAPS, algumas são mais direcionadas no sentido de promover a autonomia, o protagonismo e a participação social, sendo a assembleia a que concentra melhor esses aspectos. De uma forma geral, todas as atividades realizadas no CAPS que têm na estratégia da reabilitação psicossocial seu embasamento são, de certa maneira, direcionadas para a finalidade maior, a inclusão social dos seus usuários. Entretanto, apesar de haver uma intenção nessa direção, essa intencionalidade não parece ter uma fundamentação maior na construção do caminho da inclusão social. Foi observada no CAPS pesquisado a existência de uma disponibilidade dos trabalhadores para intervenções espontâneas, sendo mais valorizada a intervenção no momento em que as coisas ocorrem. Porém, existe um risco de muitas dessas intervenções acabarem se tornando pontuais. Compreende-se que as intercorrências no CAPS são algo do cotidiano, por isso as atividades não poderão ser pensadas somente em função destas. [...] Pô, você tem que se organizar, eu pensei assim comigo, é... quando a gente trabalha aqui no CAPS, se organizar... a gente até se organiza, tá entendendo? Pelo menos os profissionais, porque os usuários é muito inconstante, é muito instável [...] Foi percebida uma dificuldade na organização dessa equipe em planejar a rotina no CAPS. Isto parece ocorrer em função do entendimento de rotina como algo impositivo. Portanto, torna-se necessário flexibilizar o entendimento do termo planejamento, pois o mesmo pode ser entendido como algo flexível, que dará as coordenadas na construção dos projetos terapêuticos individuais/singulares e não só como uma ‘grade’, uma prisão. Dentre as atividades que ocorrem, a assembléia é um espaço por excelência para se estimular a participação social. Esta pode funcionar como espaço para a problematização de questões sobre a inclusão social na comunidade local. Neste espaço são possibilitadas discussões das mais variadas, desde questões sobre o 130 almoço, se pode ser servido com garfo e faca, a quantidade e a qualidade da alimentação, até questões referentes aos direitos e posturas diante da vida. Uma estratégia utilizada, a princípio, nas assembleias, que tinha um caráter de produzir uma maior autonomia dos usuários, era a colocação destes na função de coordenadores (o que implicava estabelecer com os outros a pauta e auxiliar no gerenciamento da discussão). Eles não conseguem coordenar ainda sozinhos, não é? E a gente coordena e pergunta, e fica e aquela pauta que você falou, e fica assim, e você percebe que as pautas ainda são recolhidas no dia, com quem estão, e então tem algumas coisas que não funcionam ainda como a gente imagina, mas acho que foi um ganho porque só ficava com a equipe estar demandando, eles já solicitam muito as questões, por exemplo, telefone público, a questão do transporte, toda a assembleia tá e a gente tem encaminhado isso para a Secretaria. A gente conseguiu mudar a alimentação por conta de uma demanda deles. O usuário foi na cozinha da empresa que a gente terceiriza, que é no hospital, falar e reclamar, a gente tem conseguido algumas coisas por conta do movimento deles mesmos, fazendo com que eles percebam o que eles ganham e o que eles conseguem com isso. Em várias das questões que eram colocadas nas assembleias, os usuários eram estimulados a achar as possibilidades de resoluções dos problemas. Como exemplo, em uma assembleia, uma usuária se queixava de solidão nos finais de semana e, após algumas sugestões, foi levantada a possibilidade de que alguém que morasse perto da mesma pudesse se organizar para lhe fazer companhia nos finais de semana. Queixas quanto à alimentação eram levadas aos órgãos competentes, tendo a participação dos usuários. No início do funcionamento do CAPS, com objetivo de obter uma maior participação de usuários e familiares, implantou-se o bazar no dia da assembleia, antes do início da mesma, no intuito de estimular a participação de mais pessoas nesta atividade. Outra atividade, o núcleo de geração de renda, também tem a função, além do desenvolvimento de habilidades, de desenvolver a autonomia e a participação. O núcleo funciona com usuários e familiares, tendo como responsável uma designer, que vem tentando estimular a autonomia dos participantes usando a estratégia de divisão de responsabilidades pelo funcionamento do núcleo. 131 As responsabilidades são divididas entre alguns membros e vão desde a abertura das salas, as compras, a guarda dos materiais e dos produtos, a colocação de preços, a arrumação do espaço, até a negociação dos produtos, quer seja dentro do CAPS ou nas feiras, nas quais o núcleo participa. A designer não vai todos os dias ao CAPS, mas o núcleo funciona mesmo sem sua presença, inclusive não parou de funcionar quando a mesma saiu de férias. Uma questão que necessita ser melhor problematizada é a divisão do dinheiro arrecadado pelas vendas. Neste sentido, observa-se que interessa no processo de desinstitucionalização valorizar a função na restituição da subjetividade do indivíduo, na sua relação com a instituição. Dito de outra forma, é a possibilidade de recuperação da contratualidade, isto é, de posse de recursos para trocas sociais e, por conseguinte, para a cidadania social (SARACENO, 2001). 8.2. A Família como Parceira A família, uma ou mais pessoas que compõem o grupo familiar, é que também tem acesso às informações necessárias para o entendimento da história de vida do usuário, além de ser o primeiro grupo social de inserção. Portanto, é necessária uma maior compreensão do grupo familiar, pois a família do enfermo mental já foi entendida pela psiquiatria como cúmplice, passou pela culpabilização e agora vem sendo colocada como protagonista das estratégias de cuidado (SARACENO 2001). A família do usuário deve ser entendida como a noção mais inteligível da rede social do mesmo. No CAPS pesquisado, a família tem momentos em que é vista como aliada no tratamento, e em outros, como a culpada pelo seu familiar não melhorar, “a mãe é a pior de todos”, isso se referindo à mãe de dois usuários do CAPS. Porém, para que a inclusão na sociedade possa vir a ocorrer, torna-se fundamental que se inclua a família neste projeto. A família pode ser mais uma importante aliada no cuidado com o usuário enfermo mental, mas também pode ser a que dificulta o tratamento. Independentemente da 132 qualidade do grupo familiar, é importante o entendimento deste como um indivíduo ou grupo que também necessita de atenção, de espaços de escuta. De acordo com Saraceno (2001), é fato que a intervenção, para aliviar os familiares do “peso” da interação e manejo com o membro familiar enfermo, não só obtém efeitos positivos sobre os membros da família como os “orienta a diminuir a solicitação de expulsão do familiar adoecido, obtendo assim também um indireto benefício para esta última e para os programas de reabilitação que para eles são desenvolvidos”. (p.124). Na proposta da reabilitação psicossocial, muitas conquistas ocorreram como o direito à convivência, direito de morar. Entretanto, isto, de certa forma, acarretou uma convivência de 24 horas por dia com seu familiar enfermo mental, o que pode ser visto como a constituição de possibilidade de convivência, mas que, em alguns momentos, é relatado como sofrimento. A convivência com o familiar enfermo é tida, muitas vezes, como difícil. Os familiares de (fulano) se mostram muito sobrecarregados em cuidar de um familiar com transtorno mental – 61,5% dos parentes entrevistados disseram que se sentiam muito sobrecarregados em cuidar de um parente com transtorno, enquanto que, na Bahia, esse índice diminui para 42%, e em Sergipe atinge os 53%. (NUNES et. alli, 2009). As redes de solidariedade são importantes recursos com que as famílias contam para lidar com seus familiares. Algumas famílias contam mais com a cooperação de vizinhos do que de familiares na hora que “a coisa aperta”. Porém nem sempre a convivência com a vizinhança é muito tranquila. A construção de um tratamento pautado na conquista da cidadania e a proposição de outro modo de cuidar não podem negar também a necessidade de espaços de escuta para que neles pudesse aparecer o sofrimento, muitas vezes inerente à convivência com alguém que manifesta na família algo estranho. Os objetivos da intervenção familiar, segundo Saraceno (2001:124) pautado em Thornicoft, (1992), deveriam ser os seguintes: “Reduzir os riscos de recaída para os pacientes psicóticos, melhorar a qualidade de vida dos familiares e do paciente, ensinar habilidades de manejo e minimização dos sintomas e da desabilitação”. 133 Este autor coloca que há certo grau de confusão terminológica e operativa em torno daquilo genericamente definido como “intervenção familiar”. E a sintetiza em duas estratégias principais. Uma que se propõe a fornecer às famílias informações claras sobre a natureza, as causas, os sintomas e os sucessos terapêuticos do problema, “com objetivo de aumentar a estabilidade do ambiente familiar e aumentar as capacidades individuais dos familiares de interagir com o paciente” (SARACENO, 2001:125). E outra, no caso da abordagem cognitivo-comportamental, o objetivo (em certo sentido não totalmente diferente da anterior) é de tornar os familiares capazes de exprimir as próprias necessidades e sentimentos de maneira direta, de forma a facilitar, por outro lado, simples e diretas soluções dos microconflitos. (p.125) O CAPS pesquisado entende como importante a participação das famílias nas atividades do serviço, porém a atenção dispensada para a família não fica clara. Em certo momento, foi iniciado o grupo de intervenções, que funcionava quinzenalmente com os familiares que se encontravam naquele dia no CAPS. Este foi mais um dos grupos que não teve continuidade. Existem atendimentos às famílias nucleares no CAPS, quando se faz necessário. A grande maioria dos familiares que frequentam o CAPS só comparece às consultas psiquiátricas, outro grupo comparece ao CAPS em dias festivos, e um pequeno grupo participa mais ativamente das atividades do CAPS. É a oficina de geração de renda que é responsável por esta pequena parcela de participação de familiares no CAPS, quase em sua totalidade mulheres (mães, filhas e esposas). Esse grupo de familiares, mesmo pequeno, é bastante participativo nas atividades que envolvem a inclusão social, como feiras, passeatas, no projeto ‘Loucos por Música’ e, inclusive, fazendo parte de uma associação de usuários e familiares da Bahia, a AMEA (Associação Metamorfose Ambulante). O que é fundamental para os processos de inclusão social é realçar a consciência crescente dos trabalhadores de serviços de saúde mental, além da importância de co-envolvimento das famílias dos seus usuários nesses projetos. 134 8.3. Estratégias na Cidade As atividades que serão discutidas acontecem preferencialmente nos espaços fora do CAPS, mas são pensadas e realizadas pela equipe do CAPS. As negociações com setores da cidade são pensadas tendo como princípio a intersetorialidade. Esta pode ser definida como estratégias de articulação que perpassam vários setores sociais, tanto no campo da saúde mental e saúde em geral, como das políticas públicas e da sociedade como um todo. O princípio básico para que isto ocorra são as parcerias, que têm de ser negociadas. 8.3.1. Participação nos Espaços da Cidade Uma estratégia utilizada com objetivo de participação na cidade, partindo do CAPS, são os passeios, a participação nas feiras (onde são vendidos os produtos produzidos no CAPS), nos movimentos políticos (passeatas, sessões na Câmara de Vereadores, Parada do Orgulho Louco, dentre outras), em eventos (Loucos por Música), em oficinas e outros setores da cidade, a inclusão na escola, no trabalho e na comunidade. Nós não podemos ficar aqui dentro, porque senão o que estamos fazendo? Oficinas, grupos, oficinas, e lá onde ele reside? E lá onde as coisas acontecem? Lá é justamente onde está incluído, mas a gente não pode ficar aqui fechado. Os trabalhadores entendem que, para que a inclusão aconteça, é necessário não ficar restrito ao espaço físico do CAPS, é preciso sair e enfrentar a cidade com toda a complexidade que se coloca. A circulação na cidade tem como objetivo possibilitar o sentimento de pertença, que é também político quando possibilita que as pessoas possam visualizar os loucos de outra forma. Isso tem acontecido de forma tutelada, e é identificado nos discursos como uma tutela outorgada, com um agir libertador segundo a categorização proposta por Merhy (2007). [...] Aí você tutela, mas você vai tutelando e vai soltando, vai tutelando e vai soltando, né? Na rua ele já estava, então o que é que 135 a gente sempre trabalha na equipe? Vamos ter tranquilidade porque na rua ele já estava. Passear, passeatas e outras maneiras de movimentos na cidade são utilizadas como estratégias de sensibilização da comunidade no intuito de modificar a lógica do percepção da loucura e a maneira de se relacionar com os portadores de transtornos mentais e também favorecendo a participação dos mesmos na cidade. Esta atividade tem o objetivo duplo, em relação aos usuários e à comunidade. Entretanto, é importante estar atento à forma como esta estratégia está sendo realizada, porque, a depender de como está sendo conduzida, corre-se o risco de os usuários serem vistos como “coitadinhos” e coloca-se a população no papel de ‘estar fazendo um favor’ aos mesmos em permitir a sua circulação na cidade. Este lugar, que é criticado por Basaglia quando define a ideologia da tolerância, a que ele se referia como arrogante e pretensiosa, pois implica suportar (tolerar) o outro. A condução e direção na participação na cidade irão depender da direção dada pelos trabalhadores nesses espaços, como também à forma como será negociada a participação dos usuários. Tal fator leva em conta a finalidade e o próprio entendimento do que isto significa, e os modos como os sujeitos dos encontros operam sobre interdições e viveres. Em função de boa parte dos usuários ter dificuldade nessa participação, é estratégico que alguma tutela ocorra, porém estas devem estar implicadas em ganhos de autonomia. Autonomia, entendida por Tykanori (1996) e Saraceno (2001), como a multiplicação de redes de dependência. Esta forma de agir dos profissionais da saúde mental pode ser entendida como uma forma de tutela, porém essa tutela pode ocorrer de várias formas, desde a que trata os sujeitos de forma infantilizada, ou a que não impeça que os mesmos “apareçam” enquanto sujeitos. A tutela que vai propondo um caminho para uma maior autonomia é definida por Merhy (2007) como uma tutela outorgada com agir liberador, como é explicado abaixo: A tutela autonomizadora no seu modo de agenciar uma libertação a partir de si, aparentemente em um movimento paradoxal, no qual da 136 dependência procura-se gerar liberação, para não se tornar um mero projeto “autocentrado”, tem que caminhar com a produção do processo liberador coetaneamente com a do processo público de estabelecimento de responsabilizações, que se referem ao momento das máquinas desejantes estarem implicadas com outras, em possíveis processos cooperativos e contratualizados, em um movimento em que o agir vivo de um dispara produção de vida no outro. O que de certo modo refere-se a processos relacionais eu e tu, nós e os outros, em alteridade. (MERHY 2004: 28-29). Utilizando como estratégia a tutela, os trabalhadores realizam negociações com o comércio local, com serviços de saúde e outros, quando problemas são detectados. O objetivo é negociar com as pessoas do comércio local a necessidade de perder o medo e propor novas formas de se relacionar, que não devem ser diferentes da forma de relação com as outras pessoas da cidade. Em relação ao transporte urbano, serviço que tem colocado muitas dificuldades, como a discriminação e a não aceitação do passe livre, a negociação se fez importante. Como forma de enfrentamento dessa questão, a estratégia utilizada foi a participação dos trabalhadores em um seminário na cidade, no qual negociações foram propostas. [...] Em um seminário, teve um seminário de transporte no município que foi justamente pra discutir, é... algumas coisas administrativas de valor de passagem, mas teve também uma parte onde a gente pode abordar essa questão deles não estarem aceitando o passe livre dos usuários [...] É necessário o entendimento de que as negociações não devem ocorrer de maneira pontual, elas devem ser cotidianas e ocorrer seja junto aos motoristas do transporte alternativo, seja com o comércio, com os serviços de saúde ou equipamentos sociais. As negociações têm como objetivo fazer com que a intersetorialidade ocorra. Esta questão tem que estar sempre presente no horizonte dos projetos e das intervenções. Na participação na vida da cidade, articulações com alguns setores se fazem mais presentes. Dentre eles, serão abordados aqui a Escola, a Justiça e o Setor de Saúde. 137 Um setor em que é importante a negociação para possibilitar a inclusão dos usuários é a educação. O entendimento dos códigos da escrita e da leitura, bem como a alfabetização, vai aumentar a gama de possibilidades de inclusão, principalmente através do trabalho. Esta necessidade de negociação se faz mais presente nos CAPS que atendem crianças e adolescentes, em função da cultura de que ‘lugar de criança é na escola’. Com os adultos, percebe-se também a necessidade de os usuários terem maior autonomia no domínio dos códigos da linguagem, porém esta acontece em menor intensidade nos CAPS que têm sua clientela composta por adultos. Duas hipóteses são levantadas: a de ter menos oferta por parte da Secretaria de Educação para alfabetização de adultos, e a não aposta, pelos profissionais, nos usuários na conquista da alfabetização. Uma boa parcela dos usuários que frequentam o CAPS não é alfabetizada, por isso uma estratégia utilizada foi à contratação de uma pedagoga para estimular ou proporcionar este mínimo aos usuários. Entretanto, partindo da ideia de que o lugar para alfabetizar cabe ao sistema educacional, a articulação da equipe do CAPS junto às escolas e aos professores se faz necessária para que os usuários que conseguiram entrar possam permanecer e possibilite que um número maior de usuários possa ser incluído nesse sistema. Por isso a negociação com a escola e, especialmente, com os professores é essencial. Esta necessidade é sentida, isto é percebido quando algumas usuárias, por iniciativa própria, conseguem matricular-se em curso de alfabetização de adultos, oferecidos como extensão por universidades. Essa participação na escola é sentida pelas usuárias como muito positiva. A parceria com os órgãos da Secretaria de Justiça e o Ministério Público foi citada por alguns CAPS (NUNES et. alli, 2009) como um parceiro importante no que diz respeito à garantia dos direitos dos usuários e na repressão de maus-tratos e violência com esta população. Estes são mais recorridos pelos CAPS que atendem a clientela de crianças e adolescentes, pois a negociação com os conselhos tutelares e o Ministério Público é mais presente. 138 No CAPS pesquisado, apesar de aparecer a importância deste órgão, as negociações se estreitam com os membros da polícia. A ideia é de capacitá-los, com objetivo de que os policiais conheçam o CAPS e as especificidades da clientela, no intuito de que as intervenções policiais com os usuários sejam mais humanizadas e menos violentas. As articulações com o setor de saúde são mais presentes em termos de negociações; estas ocorrem com a rede básica, mas também com os outros níveis de atenção à saúde. Na atenção básica, em entrevista com uma das coordenadoras do CAPS, esta informa que, apesar de o município já contar, naquele momento, com 14 equipes de PSF, o matriciamento não estava acontecendo. As articulações, em alguns momentos, eram realizadas por iniciativa da equipe do PSF que procurava o CAPS. Um exemplo significativo que ela nos relatou foi o que se segue: O movimento é deles pra gente, a gente teve um caso específico porque era uma puérpera. A criança dela chegou a ter vários traumas, por terem deixado cair, foi um caso muito forte dentro do território, parecia sofrer violência doméstica, então foi um caso que demandou para a equipe do PSF muita coisa e eles correram para nós mesmo. Nós fizemos visita, P. chegava a ir reunir com familiares, agente comunitário, equipe da saúde, todos juntos, então a gente teve uma ação, muito forte, com essa equipe de muito tempo com esse caso específico. Esse caso, para vir para o CAPS, o transporte da Secretaria tinha que ir buscar, isto não acontece com caso nenhum, a Secretaria pouco faz isso, porque não tem veículo disponível, a Secretaria pegava essa usuária, trazia para cá com a mãe. Ficamos nesse processo durante um tempo. Ela deu uma melhorada e, como sempre quando dá uma estabilizada, some e aí... A equipe que realmente tem um trabalho de interlocução muito forte, a equipe de PSF de Vila Nova, de Portão, realmente foi um caso que pra gente um caso foi... A atenção básica teve, na estratégia de saúde da família (ESF), uma mudança de foco que objetiva reverter o modelo assistencial predominantemente biomédico, centrado na doença e no tratamento. É em decorrência desse objetivo que o ‘programa’ foi substituído por ‘estratégia’ (AMARANTE, 2007). A ideia da ESF é de desmedicalizar e de não se apropriar de todos os problemas da comunidade como sendo problemas médicos sanitários. 139 É em função dessa concepção de atenção à saúde da família que podemos alcançar a radicalidade da desinstitucionalização (LANCETTI, 2006). Uma das funções da articulação da equipe do CAPS com as equipes de saúde da família deve ser, além do bom treinamento da equipes da ESF, na maneira de como lidar com os enfermos mentais da sua área de abrangência, o ‘apoio matricial’ para conduzir os casos de saúde mental de forma mais adequada. A coordenação do CAPS fala sobre necessidade e projetos de uma maior articulação com a saúde da família quando nos traz a informação sobre um projeto piloto. Entretanto, nesse mesmo período, outra técnica apontava para a inexistência de um trabalho mais sistemático, não obstante a mesma perceba que o laço com o PSF seria crucial, inclusive no tratamento dos que têm dificuldade de vir até o serviço: Temos um trabalho já com os agentes comunitários de saúde, que é outro puta elemento de infiltração, de contaminação muito bacana. Vamos ver agora, a partir de outubro e novembro, nós vamos discutir com eles essas questões e a vinculação que eles fazem. Precisa ver alguns encaminhamentos feitos pelo agente comunitário de saúde que não é para CAPS. Lancetti (2006) pontua que, no caso da saúde mental no contexto da saúde da família, a ideia de complexidade é invertida. É no nível primário, da rede básica, que as ações devem ser mais complexas, pois elas têm que lidar com a família, com as pessoas em crise, com a vizinhança, com os atores sociais no território em que vivem. Na atenção secundária, quando um atendimento para um usuário do CAPS se fazia necessário, quer seja em nível ambulatorial, laboratorial ou hospitalar, as relações pessoais dos profissionais do serviço (que também trabalhavam em outros dispositivos de saúde no município) com os funcionários desses lugares, constituem o principal foco de articulação de uma rede pontual, gerada a partir das necessidades específicas apresentadas por um usuário. Eis dois depoimentos fornecidos por profissionais diferentes, nesse sentido: Como estou entrando agora, como trabalhamos em unidade de saúde, tudo que posso fazer por eles relacionado lá no hospital, eu 140 faço: marcar uma consulta, um exame, estou agendando, tentando fazer da melhor forma possível. Aí Célia também ajuda [...] faz dessa forma. Na verdade, o que é que acontece: muita coisa que a gente consegue é por conhecimento; se você tiver, se você conhecer naquela unidade, eu posso... Se for pela via do sistema, tá tudo emperrado. Algumas parcerias com as instituições da comunidade têm caráter educativo, como as com o DST-AIDS, da coordenação bucal. Entretanto, as intervenções destes locais são realizadas no espaço físico do CAPS, o que torna mais difícil a ideia da inclusão social. A relação com o hospital psiquiátrico e com o Pronto Atendimento, pontos frágeis, necessita de maior comprometimento dos trabalhadores no sentido de criar pontos de encontro, de trajetórias de cooperação entre as instituições com objetivo de buscar criar vínculos que complementem e ampliem os recursos existentes. 8.3.2. O trabalho como Importante Recurso para a Inclusão Social O trabalho foi colocado por Pinel como um importante aliado no tratamento dos ‘loucos’. Isto teve uma relação, na época, com as mudanças por que passava a sociedade, principalmente nas suas formas de produção, que viria a ser conhecida, mais tarde, como Revolução Industrial. O uso do trabalho como uma norma moral, disciplinadora, de treinamento de hábitos saudáveis e entretenimento é antigo nos manicômios. Porém, o mesmo também já foi, e ainda é, utilizado como indicador de inclusão social dos enfermos mentais, como vimos no capítulo três desta pesquisa. Por ser o trabalho valorizado como importante indicador do funcionamento social, este tem sido estimulado nas intervenções reabilitadoras. O trabalho, em algumas lógicas reabilitadoras, tem servido como único indicador de inclusão na sociedade. Com a proposta da desinstitucionalização italiana, a discussão sobre a inclusão social foi ampliada, incluindo, dentre outros, a restituição da subjetividade do indivíduo, a discussão da relação com a instituição e a possibilidade de recuperação 141 da contratualidade, por conseguinte, a cidadania de fato e de direito, dessas pessoas. Nesta proposta, o trabalho foi compreendido como ponto de partida e não de chegada do processo reabilitativo (ROTELLI, 1990). Saraceno (2001) aponta esta mudança de olhar como a diferença substancial em relação aos modelos de reabilitação cujo objetivo é o trabalho. A psiquiatria democrática italiana propõe, nessa direção, a criação da ‘empresa social’, que rejeita a reabilitação centrada no trabalho, propondo que isso ocorra sem desconsiderar os outros aspectos da vida das pessoas. O trabalho nesta proposta não é, portanto, concebido como simples “resposta a necessidade”, mas como espaço de produção de sentido e valores subjetivos de troca (SARACENO, 2001). Compreendendo que a história dos movimentos de reabilitação nesta área influencia a direção dos projetos de inclusão social atuais, os quais apontam o trabalho como importante para a inclusão social, é que analisaremos como a utilização dessa estratégia é realizada pelos trabalhadores de um CAPS. A inclusão social através do trabalho é tida como importante no CAPS, como aparece num discurso de um trabalhador. É claro que a inclusão se dá de diversas formas. Pra mim, uma das grandes questões é colocar essa pessoa no mercado de trabalho, acho que é a grande queixa dos usuários, né? Aqui, sobretudo, é não estar no mercado de trabalho. As estratégias utilizadas pelo CAPS passam basicamente pelo trabalho desenvolvido no núcleo de geração de renda. Tal núcleo se organiza tendo como responsável uma designer e uma artista plástica, que fazem a coordenação de todos os aspectos deste núcleo. Cabe ao núcleo a compra de materiais, a decisão sobre quais objetos devem ser produzidos, como serão negociados os produtos e como será feita a distribuição do dinheiro arrecadado, além de alguma interferência nos critérios da seleção das pessoas que irão participar do mesmo. Entretanto, a participação fica restrita a um pequeno grupo de usuários e alguns familiares, na sua quase totalidade mulheres. Não existe um critério oficial para a 142 escolha das pessoas que comporão o núcleo, porém foi observado que alguns usuários não ‘se atrevem’ a participar, alegando não ter habilidades para tal. Saraceno (2001) formula uma crítica ao aspecto da ‘exigência’ de habilidades, apontando que não existem as des-habilidades nem as habilidades “em si mesmas”, ou seja, “descontextualizadas” dos complexos conjuntos de determinantes constituídos pelos lugares onde se dão as intervenções e pelas organizações dos serviços. Isto, segundo este autor, é herança de modelos formais de reabilitação, nos quais a reabilitação consistiria em um percurso do paciente, desde a desabilitação até a habilitação. No núcleo de geração de renda, observamos a existência de uma intenção de produção de autonomia e participação social. Isto ocorre a partir do estímulo à participação, de quase todo o processo de produção, sugerindo o tipo do produto, a escolha de alguns materiais, na confecção, na responsabilidade pelo espaço de produção, na ida aos mercados de venda. Entretanto, alguns aspectos ainda não são tão compartilhados, como, por exemplo, a participação na forma de divisão do dinheiro arrecadado. Este é um espaço muito rico, no qual podem ser trabalhados o desenvolvimento de habilidades, a produção de autonomia e a ligação entre o dentro e o fora do CAPS, entre o espaço protegido e o mercado. A produção é construída pensando no mercado de trocas. Ali se discutem questões sobre o que pode ser mais vendável e como produzir o marketing dos produtos. Há um roteiro de trabalho, porque a gente leva esses trabalhos para as feiras, para instituições dos eventos e tal. E lá a gente vende e vê, isso sai mais, isso sai bem, o pessoal gostou mais disso, o pessoal gostou... Então o próprio público vai selecionando o que gosta ou não, porque, em se tratando de ação de renda, não é o que eu quero, mas sim o que o mercado quer comprar de mim o que eu faço. Todos os produtos são artesanais e a questão estética é uma preocupação, pois isto irá influenciar na saída dos produtos de forma satisfatória. As vendas desses produtos têm gerado alguma (pequena) renda para seus participantes, o que tem servido de incentivo para uma maior participação dos frequentadores. As feiras têm 143 possibilitado aos usuários uma maior participação nas negociações do mercado, mesmo que ainda protegido. Entretanto, existem conflitos sobre a delimitação do que é terapêutico e do que é social. Hoje, nós chegamos a sentar com alguns e discutir porque isso é muito polêmico, alguns acham... Alguns nem estão querendo vir pro núcleo, porque estão confundindo tratamento com ganho de dinheiro. E o que a gente tem deixado claro é o seguinte: vocês não estão aqui pra ganhar dinheiro, vocês estão aqui pra fazer um tratamento, pra melhorar, pra vencer este sofrimento que vocês estão passando; e o dinheiro é uma consequência de um trabalho longuíssimo, que começa no material e termina num produto pronto, se você vai conseguir chegar até lá eu não sei, depende de você – é deles, no caso. E eles não entendem esse processo, eles acham porque o produto tá ali, porque alguém fez, ele tem que ganhar em cima do que o outro fez. Então se ele fizer um pouquinho, tá bom pra ele. A questão do dinheiro levanta uma problematização, pois a possibilidade de ter algum ganho financeiro tem estimulado a participação maior e melhor das pessoas, porém tem também levantado conflitos. Um deles é em relação à participação dos usuários em outras atividades do CAPS, nas quais os usuários reclamam algum ganho também. ...Independente. Mas, a discussão grande é dentro da inclusão, da participação, sabe? Dessa disposição... é... da oficina da geração de renda, eu digo: “Nós não vamos confundir com o mercado, não vamos entrar nessa.” Nós vamos estar criando autonomias. E o dinheiro, ele traz de novo o sentido que é dado. Ele traz uma puta perspectiva. O CAPS, através do núcleo de geração de renda, tem realizado diversas articulações com variados setores da comunidade. Estas articulações têm favorecido uma maior participação em feiras, e isto é também incentivado por gestores do município no intuito de estar contribuindo para a inclusão dos usuários. [...] Então, assim, tem aniversário da... da ci... cidade, a gente coloca um stand do CAPS no shopping center, o maior de todos. Onde tem o quê? Os stands com... com as bijuterias – até que essa bijuteria que eu tô usando foi lá que elas fizeram essas pulseirinhas – com eventos, com sabonetes, com roupas, um bazar. Então, assim, a gente tem de... Na medida do possível, a gente tem mostrado à sociedade (o município) que o CAPS é formado de pessoas que podem ser consideradas normais e que produzem [...] 144 Percebemos o interesse na estratégia de geração de renda numa perspectiva da autonomia dos seus usuários, porém ainda é necessária uma maior discussão quanto às finalidades dessas oficinas e das questões que as envolvem, com a participação de trabalhadores, usuários, familiares gestores e interessados no assunto. Outra estratégia de inclusão social através do trabalho é a articulação com cursos profissionalizantes da comunidade. Estas envolvem negociações com os equipamentos e instituições da cidade. O CAPS tem realizado algumas articulações que passam basicamente por equipamentos e organizações que lidam com o artesanato. Entendemos que o artesanato é um importante comércio, entretanto é preciso ter uma maior variedade de atividades e de trabalhos para que se contemple uma maior diversidade de interesses. O CAPS pretende uma maior articulação com o mercado formal, porém esta se mostra bem mais complexa. Isto surge como uma questão: como no Brasil, país que possui uma legião de pessoas desempregadas, algumas delas qualificadas, vão empregar um enfermo mental? Por acreditar nesta lógica, a inclusão no mercado formal, realizada pelo CAPS, tenta usar da prerrogativa legal de conseguir vagas de emprego através das cotas dos deficientes. Entretanto, as tentativas nessa direção também ainda não tiveram sucesso, e isso foi justificado pelo problema do preconceito com o louco. Amarante (2007) aponta uma necessidade de revisão da legislação, pois tanto o “código penal, como o código civil, ou ainda outras leis e normas sociais estão repletos de referências nocivas aos sujeitos em sofrimento psíquico e representam obstáculos significativos ao exercício da cidadania” (p. 69). Este faz uma crítica sobre a concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) como um exemplo, na medida em que são restritas às pessoas com diagnósticos de deficiência mental e que o beneficiário não pode ter nenhuma atividade profissional (nem mesmo as cooperativas e projetos de geração de renda ou economia solidária), sendo um obstáculo, portanto, à estratégia de inclusão social. 145 Este ‘benefício’(BPC) é conseguido por alguns usuários do CAPS e nos seus processos de conseguir uma vaga trabalho, se colocam como questão: como deixar a segurança de uma renda mensal para ingressar no mercado de trabalho, no qual não tem garantia nem de aceitação nem de continuidade? Isso perpassa o entendimento dos usuários, trabalhadores e familiares. [...] Tem aqueles que estão encostados, né? E aí, quando acaba o período do benefício, que tem que retornar. É um receio muito grande de voltar e ser demitido. Existem alguns usuários do CAPS nos quais o protagonismo se faz presente em relação a estar inserido no mercado de trabalho. Alguns desses têm passado despercebido, entretanto, quando é percebido, é tido pela equipe como um indício de melhora ou de menor gravidade do problema mental. É sabido que alguns usuários do CAPS não o frequentam regularmente por estarem trabalhando. Neste caso, ficam em regime não intensivo. Mesmo os usuários que frequentam mais regularmente o CAPS deixam, em certos momentos, de frequentá-lo. Quando questionados sobre a ausência, informam que acharam um “bico”. Na maioria das vezes, esses “bicos” são trabalhos informais como faxineira, eletricista, ajudante de pedreiro, catador de latas, dentre outros. Portanto, a colocação no trabalho muitas vezes é realizada pelos próprios interessados, os usuários, geralmente a partir das suas habilidades já existentes. Ocorre, algumas vezes, de os usuários conseguirem retornar ao trabalho ou se manterem no mesmo com o suporte da equipe, porém estes não são entendidos como projetos de inclusão social do CAPS. [...] A gente já conseguiu alguns usuários que já foram para atividades, mas por conta deles. Um, que era motorista, voltou a ser..., um abriu um restaurante com a irmã, é até aqui pertinho, então alguns retornaram, alguns retomaram, mas muito por conta sua, mas não por conta de ação do serviço. Alguns já estavam no serviço, a gente conseguiu manter com uma inclusão. O protagonismo também foi observado em atividades que ocorrem dentro do CAPS, como a iniciativa de um usuário que criou uma oficina de colares de bolinhas de argila. Ele era o responsável em conseguir o material, descobrir na vizinhança um forno para queimar as peças e, após terminar o serviço, vendê-las. A atividade foi 146 chamada de oficina em função de que este usuário agregou alguns outros nesta atividade. Observamos que, neste caso específico, não houve a intervenção de trabalhadores do CAPS. 8.3.3. Incentivo à Participação Política Quando o objetivo no CAPS é a inclusão na cidadania dos seus usuários, é oportuna a necessidade de uma aproximação com a sociedade. Esta aproximação é no sentido de levantar a discussão sobre questões referentes ao preconceito, ao estigma e à discriminação. Pesquisa realizada pelo NISAM demonstra que as equipes colocam como importante a negociação com a comunidade local, porém, na maioria das vezes, esta negociação é feita de forma pontual quando ocorre algum fato de discriminação. Estas intervenções são necessárias, porém é preciso estar atento à sua direção e à possibilidade de abarcar um maior número de pessoas. Fundamentar os direitos de cidadania, que puderam ser formalmente reconhecidos graças às experiências de desinstitucionalização, é um desafio possível. A questão dos direitos continua a ser eixo central do discurso da desinstitucionalização, porém o problema não é só o da restituição dos direitos retirados, como também a criação de direitos que nunca existiram. (SARACENO, 2001:137). Na proposta da desinstitucionalização, no entendimento italiano, a ideia de empoderamento dos sujeitos enfermos mentais está na base. Nessa direção, ocorre a discussão sobre os direitos. Uma estratégia, que vem sendo constituída com este objetivo em vários países e também no Brasil, é o estímulo à criação de associações de usuários e familiares. Essa estratégia abrange a questão da autonomia e favorece o protagonismo e a participação social dos atores envolvidos. A criação de associações é um estímulo para o fortalecimento e maior articulação dos usuários entre si e com a sociedade, no sentido de favorecer a inclusão social dos mesmos. A criação de associações pode ocorrer a partir dos CAPS, ou de movimentos sociais. No CAPS pesquisado, existe um movimento para a criação de uma associação que, segundo o relato de uma trabalhadora: “[...] No início, ficamos pensando na 147 associação, mas com uma demanda nossa; para eles não funcionou”. No entanto, volta a discussão sobre a constituição da associação, desta vez partindo do núcleo de geração de renda, não tendo, a princípio, um caráter mais abrangente de representar os interesses dos usuários e familiares do CAPS nas várias dimensões da vida. Apesar de várias dificuldades de tempo, interesse e burocracia, a constituição de uma associação local vem caminhando. Nesta constituição alguns ganhos vão sendo conseguidos, tais como a escolha do nome, decidido em votação na assembleia do CAPS, a Associação Unidos Venceremos (AUV) e a discussão do seu estatuto. Entretanto, há muito ainda por caminhar para que os próprios usuários tenham seus direitos respeitados. A estratégia utilizada pela AUV foi a constituição de uma associação mista, com uma diretoria representada por usuários, familiares e também por trabalhadores do CAPS. Este foi o caminho possível no momento. No entanto, os trabalhadores devem ter a clareza do seu papel e do tempo para permanecer na associação. As associações são espaços políticos nos quais a participação dos reais interessados é imprescindível. Nestes espaços podem se reivindicar os direitos de cidadania, sejam eles os direitos de igualdade ou direitos especiais. Entretanto, é necessário amadurecer essa ideia em nosso Estado para que este movimento imprima sua própria direção política com a complexidade e dificuldades que isso se coloca. A participação política, a postura e o posicionamento, seja dos trabalhadores, familiares ou usuários, vai imprimir a direção com que a loucura vai ser (re) vista em dada sociedade quanto à forma de encarar os seus preconceitos e as suas potencialidades. 148 CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo sobre a inclusão social dos enfermos mentais se mostrou um tema bastante complexo, necessitando de aprofundamentos em áreas como sociologia e antropologia, dentre outras. A sua compreensão necessitaria também de olhares mais diversificados como os dos usuários, familiares, de pessoas da cidade (vizinhos, comerciantes), de gestores e de pessoas ligadas a outros campos que não só o da saúde. Por isso não temos a pretensão de levantar conclusões sobre o assunto, mas de problematizá-lo e colocá-lo na pauta das discussões, pois é um tema que se faz presente nas atuais políticas de saúde mental e nos coletivos de profissionais, embora pouco se tenha aprofundado sobre o mesmo. Os sujeitos tidos como loucos foram historicamente excluídos do convívio, da participação na sociedade e do seu reconhecimento enquanto cidadãos. Com os movimentos, nomeados de reforma psiquiátrica, em alguns países e também no Brasil, foi amadurecendo a ideia de outro lugar social para estes sujeitos e, em alguns desses movimentos, este lugar apontado é o de cidadão. Entretanto, em países emergentes como o Brasil, é um desafio ser cidadão, ter seus direitos garantidos, em função da falência das políticas públicas de bem-estar social, as quais deveriam possibilitar acesso a bens e serviços considerados direitos de todos e pelas graves questões sociais, que assolam grande parcela da população, que não tem acesso às condições de vida identificadas com aquelas da cidadania. Isto torna a luta pela cidadania dos portadores de transtornos mentais ainda mais árdua e complexa. No Brasil, tendo como mola propulsora o movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira e através de discussões em diversos fóruns, algumas dessas discussões vêm sendo concretizadas nas políticas públicas da saúde mental. Isto através de investimento, mesmo que insuficientes ainda, em serviços assistenciais substitutivos e em articulações com outros setores da sociedade. 149 No entanto, muitos desafios ainda se fazem presentes. Alguns deles estão não nas estruturas físicas nem no aparato jurídico/estrutural da legislação vigente, mas na organização e práticas dos serviços de saúde mental, estes atravessados por lógicas que se expressam, segundo Machado e Lavrador (2001), pelos “desejos de manicômios”, desejos estes de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar a vida. Isto confirma que o manicômio existe também nas mentes, e esta existência é mais poderosa e mais difícil de desconstruir. Estas questões são importantes quando o interesse está na desconstrução do lugar que foi colocado o louco, ao longo da história, o lugar de exclusão, de estigmatização e marginalização, para vislumbrar outro lugar para estes sujeitos, onde a discussão perpassa também ou, principalmente, a problematização da maneira como a sociedade está organizada, para que possibilite a maior convivência com a diferença. Aqui, nos limitaremos à interpretação dos dados da pesquisa, entendendo que, por ter sido realizada em um CAPS, não é possível generalizar os achados, além de termos consciência da existência de uma maior diversidade de questões sobre o assunto. Portanto, os dados aqui apontados e analisados servem para nos manter alertas sobre o assunto. A análise dos discursos dos trabalhadores de um CAPS aponta a existência de um interesse em realizar a inclusão social dos usuários, porém, para que realmente isto ocorra, é necessário mais do que boa vontade. Dentre os significados de inclusão social levantados nos discursos, não ser estigmatizado e não estar internado em manicômios aparecem como negação de uma realidade, embora o estigma e a possibilidade de internações em hospitais psiquiátricos sejam presentes no cotidiano do CAPS. O estigma e o preconceito que acompanham estas pessoas foram percebidos pelos trabalhadores como a maior dificuldade nos processos de inclusão social. Isso demonstra que, para que mudanças ocorram, é necessária, além do discurso e interesse pela questão, a mudança da lógica das intervenções, pois a lógica dos serviços substitutivos não garante, por si só, a superação do modelo de exclusão da loucura. Por compreender que a cultura manicomial não é restrita ou produzida 150 especificamente pelo campo da saúde mental, que os investimentos/atenção também devem ser ampliados para a sociedade como um todo, e para a saúde em particular. Portanto, faz-se necessário um investimento na capacitação dos profissionais de saúde para que a assistência dos enfermos mentais na rede de saúde seja uma realidade. É importante estar atento, pois parece uma contradição ampliar a discussão para toda a sociedade, quando os próprios profissionais de saúde recusam-se a oferecer assistência a esses sujeitos, meramente por preconceito. Um ponto importante que aparece nos discursos como necessário para a inclusão social é a questão da aquisição da autonomia como necessidade básica. Embora não estejamos sugerindo que não seja importante que as pessoas tenham autonomia, acreditamos que a busca incansável desta leva a uma hiperseleção ou abandono dos sujeitos quando esta meta se mostra inalcançável, e que este aspecto não deve ser entendido em separado da forma de organização da sociedade capitalista. Quanto à visão de inclusão como participação na vida da cidade, esta aparece como uma iniciativa para a inclusão dos usuários nos seus espaços reais, entretanto é necessário problematizar a direção em que esta iniciativa está sendo realizada, pois esta participação pode ser entendida como uma adaptação à sociedade, sem críticas à forma de estruturação desta, ou como um empoderamento, de fato, desses sujeitos, para que estes participem da rede de negociações. Apostamos que encontros na cidade se apresentam como poderosos para a desconstrução da cultura manicomial, por ser lugar de encontros dos loucos, dos estranhos, dos diferentes, com seus moradores e cuidadores. A possibilidade de que apareça a solidariedade, a sociabilidade e o convívio com a diferença exigirá a criação de novas práticas de saúde que devem favorecer que as intervenções aconteçam no encontro com a cidade e nas formas de sociabilidade que os espaços possam proporcionar. 151 Em relação às dificuldades apontadas pelos trabalhadores, estas remetem a questões de ordem diversas, tais como a estruturação do serviço; os interesses da gestão de saúde, que produzem falta de recursos para os projetos de inclusão social; a forma de organização do mercado de trabalho nas sociedades capitalistas, onde o interesse começa e acaba na produtividade (por isso a inclusão através do trabalho, para os sujeitos enfermos mentais, se torna um desafio); a ausência ou a escassez de recursos e/ou equipamentos na comunidade, tais como moradia, lazer, trabalho, renda, educação, dentre outros, dificulta o acesso desses sujeitos aos direitos mínimos da cidadania, mas também a inexistência de uma rede em saúde de uma forma geral e de saúde mental, em particular, que não seja o manicômio. Estas dificuldades acarretam um trabalho territorial inconsistente e pouco abrangente. Outro aspecto que foi percebido como dificuldade diz respeito a questões relacionadas, especificamente, aos enfermos mentais, que vão desde as suas condições de vida até o seu jeito idiossincrático de ser. Como foi dito por um trabalhador, alguns jeitos de ser são difíceis de ser aceitos pela sociedade por não estarem dentro de padrões de comportamento estabelecidos como norma. Segundo Machado e Lavrador (2001), por sermos capturados pelos desejos de hierarquização, de classificação, de dominação, sabotamos o que é diferente, desconhecido, inusitado (Dimenstein, 2006) para ficar no conforto do equilíbrio de um sistema que ajudamos a modular. As condições de vida da maioria dos usuários do CAPS, que foram também apontadas como uma das dificuldades, demonstram que se apresenta ainda como mais problemático exercitar a inclusão social e a cidadania destes por serem duplamente excluídos, por serem loucos e por serem pobres. Com estes, especialmente, tornam-se ainda mais necessárias as articulações com outros setores da sociedade e o fortalecimento das políticas públicas que garantam as condições de cidadania. As estratégias construídas pelos trabalhadores no intuito de promover a inclusão social dos seus usuários são viabilizadas nos espaços do CAPS, mas também, tendo o mesmo como ponto de partida, nos espaços da cidade. Entretanto é 152 necessária uma maior clareza do entendimento da inclusão social, para que, com isso, seja possível delimitar, nas atividades específicas, de que inclusão social está se falando e como está sendo realizada. Dentre as atividades do CAPS, algumas têm uma intencionalidade de incluir os seus usuários nos espaços da cidade, como os passeios e participação em eventos e feiras. Além dessas, duas atividades que ocorrem no CAPS foram identificadas também como uma intencionalidade de inclusão social: as oficinas de geração de renda e as assembleias. Estas são espaços por excelência de negociação, usados para a discussão de temas diversos, desde o questionamento do uso de talheres “decentes” no almoço até a constituição de uma associação. Entretanto, coloca-se como necessária uma maior valorização deste espaço como potencializador de criação de redes de amizades, de solidariedade, como também importante espaço para discussões e articulações políticas entre o CAPS, seus atores e a sociedade. O núcleo de geração de renda é a atividade do CAPS em que a articulação entre o dentro e o fora faz parte da sua constituição. As conquistas produzidas por aqueles que deste grupo participam são visíveis, porém é importante estar atento às seguintes questões: a exigência (não declarada) de se ter uma habilidade para que dela participe; a potência que esta atividade proporciona para se trabalhar o empoderamento dos sujeitos nas redes de negociações; a necessidade de clareza quanto a sua finalidade; e que estas atividades sejam um meio para inclusão e não um fim em si mesmo. É importante que tenha no horizonte a sociedade, o objetivo maior dessas intervenções. A família do usuário é entendida como o primeiro grupo ou ponto para se (re) compor a rede social do mesmo, por ser, na maioria dos casos, com quem passam a maior parte do tempo das suas vidas. Portanto, é um grupo que precisa de investimento e, algumas vezes, de cuidado. É preciso escutá-los, entender seus pontos de vista e suas dificuldades, especialmente nos períodos de crise de seu familiar. Os aspectos levantados pela equipe do CAPS sobre a inclusão social dos seus usuários foram de suma importância, porém uma condição que não apareceu como 153 dificuldade ou estratégia é a questão da competência da equipe de saúde mental. São sinalizadas por Merhy (2007) as diversas dificuldades que uma equipe enfrenta ao lidar com os aspectos que envolvem o cuidado do usuário, na proposta de atenção psicossocial. Dentre vários, o autor coloca a exaustão, a incapacidade de acolher o outro todo o tempo e o pavor das crises dos usuários. Isto demonstra a necessidade de um preparo da equipe em função da prática o colocar, por diversas vezes, no lugar de impotência. É senso comum que a capacitação das equipes de saúde mental é extremamente necessária para que se constituam grupos potentes e carregados de desejo, para que a mudança de paradigma e a construção de outro lugar para as pessoas diferentes sejam um dia conquistados. A estratégia de atenção em saúde mental adotada pelo Brasil e a reabilitação psicossocial vêm conseguindo muitas mudanças no modo de lidar com a loucura. Entretanto, há muito ainda por fazer, como por exemplo um melhor investimento nos serviços substitutivos e na capacitação dos trabalhadores, especialmente no que se refere ao trabalho no território e ao acompanhamento intensivo dos usuários, como também a sensibilização da sociedade sobre outras formas de ver a loucura. A inclusão dos enfermos mentais não deve ser pensada e processada à parte da sociedade na qual ela deva ocorrer. Este estudo confirma que são necessários, para a atenção dessas pessoas, muitos aspectos, sejam eles variáveis reais, como o contexto dos serviços e dos usuários (SARACENO, 2001), seja o acesso real aos recursos existentes na comunidade (ROTELLI, 1992), ou a entrada no mundo da contratualidade (SARACENO, 1996 e 2001, TYKANORI, 1996). A inclusão nos direitos de cidadania, como propõe a política de saúde mental brasileira, requer, dentre outros aspectos, que se façam variadas articulações com diversos setores da sociedade. Observamos que a questão da inclusão social no CAPS implica principalmente transformações das práticas. Percebemos que as intervenções realizadas no CAPS pesquisado já trazem, na sua concepção, a semente da intencionalidade em um trabalho que aposta na inclusão dos seus usuários. Isto tanto é percebido no 154 posicionamento da equipe em relação aos sujeitos enfermos mentais como no investimento nas atividades e na real possibilidade dos usuários participarem de alguns eventos na cidade. Isto observado nas articulações para que a participação nas feiras ocorra e com a viabilização de transporte e ingressos para shows. Acreditamos que a construção deste outro lugar social para a loucura não signifique a recuperação social dos loucos nem a retomada da normalidade perdida. Entendemos que o caminho é na direção de produção de sociabilidades diversificadas, que reorientem a vida na sociedade, em que as diferenças sejam possíveis, desde que apoiadas no respeito ao outro. Para isto, é importante: Partir da mistura de diferentes códigos, romper os sentidos de mundo que a época nos impõe, produzir fissuras na ordem mundial, na hegemonia, na monotonia, constranger as linhas de força que operam hegemonicamente e que nos faz cada vez mais silenciosos, obedientes, dóceis e conformistas”. (Dimenstein, 2009. s/n) 155 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.10, n.20, p.299-316, jul/dez 2006. AMARANTE, Paulo. Reforma Psiquiátrica e Epistemologia. Cad. Bras. Saúde Mental, Vol 1, no1, jan-abr. 2009 (CD-ROM). ________ Saúde Mental a Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro. Fiocruz. 2007. ________ (Coord). 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Declaro também que aceito, por minha livre e espontânea vontade, participar da pesquisa e autorizo o pesquisador a fazer uso de meus depoimentos, entrevistas, observações, questionário, etc. para o referido projeto, desde que preservados o anonimato e o sigilo. _______________________, ______/_____/ _________ (local e data) ______________________________________________ (assinatura) (NUNES et alli, 2009) 163 NISAM - CNPq 2006-2007 ROTEIRO PARA GRUPO FOCAL COM PROFISSIONAIS DADOS SOBRE O GRUPO FOCAL (anotar no caderno de campo) FACILITADOR (A): DATA: AUXILIAR: LOCAL: DADOS SOBRE OS MEMBROS DO GUPO FOCAL (anotar no caderno de campo) ENTREVISTADO 1: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 2: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 3: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 4: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: 165 ENTREVISTADO 5: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 6: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 7: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 8: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 9: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 10: IDADE / ANO DE NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: 166 PRIMEIRA SESSÃO OBJETIVOS PERGUNTAS TEMAS Apresentação e atividades realizadas Acolhimento/ Triagem Participação da família (extensão da família) Conhecer os profissionais participantes do grupo e mapear as principais atividades realizadas por cada um. Conhecer os procedimentos relativos ao encaminhamento, acesso, triagem/acolhimento Determinar como se dpá a participação das famílias e qual a extensão das fronteiras da família que os profissionais reconhecem. Saber como as atividades Planejamento das Atividades/ grupos/ foram propostas e como têm funcionado. oficinas Projeto terapêutico Individual - PTI Dificuldades e Identificar as principais 1) Cada um de vocês poderia se apresentar, falar brevemente de sua trajetória profissional e das atividades que tem realizado no CAPS. 2) Como se dá a entrada do usuário no CAPS? (Observar o termo usado – se é triagem, acolhimento ou algum outro). 3) Geralmente os pacientes chegam de que modo, por demanda espontânea, ou referenciados de outros serviços? 4) Como tem se dado o acesso dos usuários ao CAPS (acesso geográfico, locomoção dos usuários, acesso ao atendimento)? 5) Como é a participação da família no CAPS e que membros estão mais envolvidos? 6) Vocês acham que é relevante a participação dos demais membros ou pessoas próximas (sem vínculo consangüíneo)? Há algum tipo de estratégia para que isso aconteça? 7) Quais as dificuldades encontradas no contato com a família? 8) O que poderia facilitar este contato? 9) Como vocês se posicionam em relação à participação dos seus usuários e de suas famílias em grupos religiosos? 10) Como são concebidos os grupos e oficinas nesse CAPS? 11) Vocês poderiam relatar como têm sido desenvolvidas essas atividades? 12) Como se tem decidido sobre as atividades das quais o usuário e, eventualmente, seu familiar participará? 13) E o acompanhamento posterior, como ocorre? 14) Que casos têm indicação para acompanhamento individual? 15) Este CAPS realiza assembléias ou reuniões periódicas sobre a organização do serviço? Qual o nível de participação dos atores (profissionais, usuários, familiares e comunidade)? 16) Quais as principais dificuldades que vocês vivenciam na execução das atividades 167 Desafios/ Estratégias de Enfrentamento Profissional de Referência Abordagem de casos graves ou em crise Critérios de alta dificuldades vivenciadas e os modos pelos quais os profissionais tentam solucioná-las. Conhecer adesão dos usuários Conhecer a função e a dinâmica do profissional de referência Identificar que procedimentos são adotados em situações de crise Identificar se o serviço tem dado “alta” e qual o momento em que se decide pela mesma. propostas? 17) Como faz para manejar essas dificuldades? 18) Como vocês percebem a adesão dos usuários às atividades propostas? 19) O que facilita e o que dificulta a adesão? 20) Como é feita a escolha do profissional de referência nesse CAPS? 21) O usuário pode intervir na escolha do profissional de referência? 22) Vocês têm recebido usuários em crise? Como ocorre o manejo dessas situações? 23) Vocês trabalham aqui com a perspectiva de altas para os usuários? 24) Têm conseguido dar alta? 25) Como se dá o processo e quais os critérios utilizados? SEGUNDA SESSÃO (e, eventualmente, terceira sessão se for dividido: NUs x NMs) Saber se são feitas visitas 26) Vocês realizam visitas domiciliares? Visita Domiciliar domiciliares e, caso sejam, 27) Em caso de resposta negativa, saber o motivo. em que casos e com que 28) Em caso de resposta positiva, perguntar: Em que casos? Quem geralmente faz a propósito visita? Como chegam até o domicílio? Conhecer como o CAPS se Estabelecimento de 29) Como estão sendo estabelecidas as parcerias nesse CAPS? articula com os demais parcerias 30) Com que serviços de saúde vocês se relacionam e como isso acontece? serviços de saúde e sociais Urgência/ emergência do território Hospital geral Hospital psiquiátrico Ambulatório de saúde mental PSF Residências terapêuticas Conhecer como são Inclusão Social 31) O que caracteriza para vocês um projeto como sendo de inclusão social? propostos e encaminhados 32) Quais são as dificuldades em viabilizar projetos de inclusão social? 168 os projetos mais diretamente voltados para a inclusão social Espaço de transformação cultural do lugar social da loucura Identificar e analisar estratégias de proteção contra situações de vulnerabilidade. Espaço geopolítico Identificar e analisar o espaço de poder da saúde do CAPS mental no âmbito do município estudado. 33) Vocês podem nos relatar um caso bem sucedido de inclusão social? 34) As atividades desenvolvidas por este CAPS têm promovido a inserção dos seus usuários no mercado de trabalho (formal ou informal)? 35) Existem oficinas profissionalizantes ou de geração de renda? Como funcionam? 36) Na sua opinião, o que significa o usuário ser sujeito de seu território (participante da vida social no município)? 37) Quais os direitos que deveriam ser garantidos às pessoas com transtorno mental? 38) Como o CAPS pode auxiliar os usuários a ter seus direitos garantidos? 39) Existe alguma estratégia para desconstruir o estigma de doente mental na família e na comunidade? Qual? 40) Como a equipe do CAPS tem lidado com situações de discriminação, violência e abandono da pessoa com transtorno mental? 41) Exemplifique situações concretas de estigma ou violência sofridas por usuários. 42) Como vocês caracterizam a relação do CAPS com a Secretaria Municipal de Saúde e/ou Coordenação de Saúde Mental? 169 ROTEIRO PARA O GRUPO FOCAL COM PROFISSIONAIS SOBRE A INCLUSÃO SOCIAL DADOS SOBRE O GRUPO FOCAL FACILITADOR: DATA: AUXILIAR: LOCAL: DADOS SOBRE OS MEMBROS DO GRUPO FOCAL ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: 170 FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: ENTREVISTADO 1: IDADE/ANO NASCIMENTO: NÍVEL DE ESCOLARIDADE: FORMAÇÃO/PROFISSÃO: VÍNCULO EMPREGATÍCIO: 171 TEMAS OBJETIVOS PERGUNTAS Inclusão Social Significados: Compreender como significado a inclusão social. Estratégias: Conhecer quais estratégias são desenvolvidas explicitamente com o objetivo de promover a inclusão social. O que caracteriza para vocês um projeto como sendo de inclusão social? Em que dimensões da vida se daria uma experiência de inclusão social? Qual a função do profissional nos projetos de inclusão social? Como é a relação do profissional com o usuário neste processo? Como vocês enxergam o papel do usuário nesses projetos? Dificuldades: Compreender as dificuldades que são apontadas para o êxito das estratégias de inclusão social Quais as atividades que são desenvolvidas por este CAPS que vai na direção da inclusão social dos usuários? De que maneira as oficinas de geração de renda têm promovido a inserção social dos usuários? Como vocês estão trabalhando a autonomia e emancipação dos usuários? Vocês poderiam me dar exemplos? Que tipos de parceria vocês conseguiram amadurecer? Como são realizadas as negociações com as parcerias, no sentido de incluir os usuários? Vocês conhecem estratégias de inclusão social protagonizados pelos próprios usuários fora do CAPS? Relate um caso de inclusão social bem sucedido. Relate um caso em que vocês acham muito difícil pensar em promover a inclusão social. Quais as dificuldades que vocês percebem no processo de inclusão social? Que dificuldades são entendidas como internas ao CAPS? Que dificuldades estão no contexto social? Relate um caso em que as dificuldades se fizeram presentes. 172 Identificar a existência de iniciativas no sentido de fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários. Como vocês percebem o lugar da família no processo de inclusão social? Existem iniciativas no sentido de fortalecimento dos vínculos do usuário com seu familiar? Têm sido realizadas intervenções com a vizinhança e a rede de apoio dos usuários na comunidade? Legislação: Compreender se a legislação brasileira tem ajudado no sentido da inclusão social Vocês têm acesso ao que a legislação tem trazido como objetivo da inclusão social dos usuários? De que maneira a legislação tem ajudado ou dificultado os processos de inclusão social dos usuários?