universidade federal do estado do rio de janeiro centro de

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA
MESTRADO EM MÚSICA
A QUESTÃO RÍTMICA E A DEFASAGEM DOS CÓDIGOS
NO PIANO NACIONALISTA BRASILEIRO
ALINE MARTINS OLIVEIRA
RIO DE JANEIRO, 2006.
A QUESTÃO RÍTMICA E A DEFASAGEM DOS CÓDIGOS
NO PIANO NACIONALISTA BRASILEIRO
por
ALINE MARTINS OLIVEIRA
Dissertação submetida ao Programa de PósGraduação em Música do Centro de Letras e Artes
da UNIRIO, como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre, sob a orientação do professor
Dr. Luiz Paulo Sampaio.
RIO DE JANEIRO, 2006.
PÁGINA DE APROVAÇÃO
ii
Dedico esta dissertação ao Luiz 100, um grande incentivador dos meus estudos.
iii
AGRADECIMENTOS
Ao meu professor orientador Luiz Paulo Sampaio,
Aos colegas de curso com quem tive papos divertidos, inteligentes e instigantes,
Aos professores da UniRio pela excelência no ensino,
Aos funcionários da UniRio,
Aos meus pais,
Aos meus irmãos Flávio e Heitor,
Ao Mauro Durão, parceiro musical, que me animou no estudo do instrumento num período difícil
para mim e me fez lembrar do Carpe diem como filosofia de vida,
À Ingrid Barancoski, Wagner Tiso, Roberto Alves, Salomea Gandelman, Antônio Adolfo, Rafael
Vernet, Estela Caldi, Jovino dos Santos Neto, Renato Vasconcellos, Maria Teresa Madeira e
Daniel Tarquínio, pelas entrevistas concedidas para a pesquisa,
Aos membros das bancas de qualificação e defesa, cujas críticas e sugestões foram de
fundamental importância para a versão final do texto,
À tia Jurema, Álvaro, Lauro e Juliana que me hospedaram no período do curso,
A minha avó, tios e primos que tornaram a minha vida no Rio de Janeiro muito mais divertida,
Aos funcionários da Biblioteca Nacional, Biblioteca da UFRJ, Biblioteca do CLA UniRio,
Biblioteca do CCBB e Biblioteca do CBM que muito me ajudaram na busca de livros, partituras e
discos.
iv
“Para ser o que sou hoje, fui vários homens. E se volto a encontrar-me com os homens que fui,
não me envergonho deles. Foram etapas do que sou. Tudo que sei custou as dores das
experiências. Tenho respeito pelos que procuram, pelos que tateiam, pelos que erram. E o que é
mais importante: estou persuadido de que minha luz se extinguiria se eu fosse o único a possuíla”.
Goethe
v
RESUMO
Esta dissertação propõe uma relação com a música popular na interpretação de obras
nacionalistas para piano. Na música brasileira para piano, o encontro entre a música de concerto e
a música popular evidenciou-se inicialmente na prática das primeiras gerações de pianistas
populares brasileiros. Um exemplo disso é a obra de Nazareth e as peculiaridades de sua
interpretação: segundo Cazes (1998), por um lado, aos pianistas de escola falta “jeito” na
execução dos ritmos; por outro lado, aos pianistas populares falta técnica e sofisticação. Esse
impasse evidencia os dois aspectos focalizados nesta pesquisa para análise da interpretação: a
questão rítmica e a defasagem dos códigos. Na música nacionalista, os compositores inserem
elementos populares para construção de uma identidade nacional. A inclusão desses elementos,
submetidos, porém, a uma técnica erudita, resulta em defasagem dos códigos. O referencial
teórico se baseia nos seguintes autores: Mário de Andrade (1962) e Sandroni (2001), na questão
rítmica; Wisnik (1982) e Naves (1998), na defasagem dos códigos; Harnoncourt (1998) e Nattiez
(2005), dentre outros. A investigação empírica consistiu em entrevistas semi-estruturadas com
pianistas eruditos e populares. Suas respostas são discutidas e relacionadas às idéias dos autores
mencionados. Há também propostas para resolução da questão rítmica na interpretação. O ritmo
deve ser executado “de dentro pra fora”, partindo de uma vivência, uma introjeção e os
problemas de dissociação na polirritmia podem ser solucionados através da assimilação do
“todo”, prática de conjunto, treinamento auditivo, exercício da imaginação orquestral. Sugere-se
também aos pianistas que pratiquem a percussão em gêneros populares brasileiros, como o
samba. Com relação à defasagem dos códigos, é importante “ir à fonte” e conhecer os estilos,
mas devem ser consideradas as múltiplas possibilidades interpretativas e o sotaque de cada
intérprete. Finalmente, propõe-se que a formação do pianista seja paralela, abrangendo as duas
vertentes.
Palavras-chave: música brasileira – piano – interpretação.
vi
OLIVEIRA, Aline Martins. The rhythmic problem and displacement of codes in Brazilian
nationalistic piano. 2006. Master Thesis (Mestrado em Música) - Programa de Pós-Graduação
em Música, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
ABSTRACT
This master thesis proposes a relationship with popular music in the performance of nationalistic
works for piano. In Brazilian piano music, concert and popular techniques initially met in the
practice of the first generations of Brazilian popular pianists. An example of this is the work of
Nazareth and the peculiarities of its performance: according to Cazes (1998), on one hand, school
pianists don’t know the “way” to execute the rhythms; on the other hand, popular pianists lack
technique and sophistication. This predicament makes evident two aspects focused on this
research to the analysis of performance: a the rhythmic problem and displacement of codes. In
nationalistic music, composers insert popular elements to build a national identity. The inclusion
of these elements submitted, nevertheless, to European techniques, results in displacement of
codes. The theoretical framework is based on the following authors: Mário de Andrade (1962)
and Sandroni (2001), on the rhythmic problem; Wisnik (1982) and Naves (1998), on
displacement of codes; Harnoncourt (1998) and Nattiez (2005), among others. The empirical
investigation consisted of semi-structured interviews with concert and popular pianists. Their
answers are discussed and brought into relation with the ideas of the authors referred to. There
are also propositions to the resolution of the rhythmic problem in performance. Rhythm should be
executed “from inside out, from an experience of life, introjection, and the dissociation matters in
polyrhythms can be solved through assimilation of the “whole”, ensemble playing, ear training,
exercise of orchestral imagination. It is also suggested that pianists practice percussion in
Brazilian popular genres, like samba. As to displacement of codes, it is important to “go to the
source” and to get to know the styles, but multiple interpretative possibilities and the accent of
each performer should be taken into account. Finally, it is proposed that the pianist’s education
should be parallel, embracing both tendencies.
Keywords: Brazilian music – piano – performance.
vii
SUMÁRIO
Página
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS ................................................. ix
INTRODUÇÃO.................................................................................... 1
CAPÍTULO 1 – O PIANO NA MÚSICA BRASILEIRA ................... 7
1.1 Breve histórico
1.2 As primeiras gerações de pianistas populares brasileiros
1.3 O piano nacionalista
CAPITULO 2 –
A QUESTÃO RÍTMICA E A DEFASAGEM DOS CÓDIGOS ...... 28
2.1 A questão rítmica
2.2 A defasagem dos códigos
CAPÍTULO 3 –
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA INTERPRETAÇÃO ........ 60
3.1 A questão da autenticidade
3.2 A questão rítmica
3.3 A defasagem dos códigos
3.4 Música de concerto e música popular: um intercâmbio
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................... 104
REFERÊNCIAS ............................................................................... 110
ANEXOS .......................................................................................... 115
Anexo 1 – Glossário
Anexo 2 – Roteiro das entrevistas
Anexo 3 – Entrevistas
viii
LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
EXEMPLO MUSICAL 1 ....................................................................... 40
Apanhei-te cavaquinho. Nazareth, c. 1-5.
EXEMPLO MUSICAL 2 ....................................................................... 40
Estudo op. 25, no. 11. Chopin, c.5-6.
EXEMPLO MUSICAL 3 ....................................................................... 41
Carioca. Nazareth, c.32-33.
EXEMPLO MUSICAL 4 ....................................................................... 41
Estudo op.10, no. 3. Chopin, c.44-45.
EXEMPLO MUSICAL 5 ....................................................................... 42
Carioca. Nazareth, c.65-72.
EXEMPLO MUSICAL 6 ....................................................................... 42
Estudo op. 10, no. 4. Chopin, c.66-71.
EXEMPLO MUSICAL 7 ....................................................................... 43
Fon-fon. Nazareth, c.17-20.
EXEMPLO MUSICAL 8 ....................................................................... 43
Estudo op. 25, no. 1. Chopin, c. 17-18.
EXEMPLO MUSICAL 9 ....................................................................... 44
Gotas de ouro. Nazareth, c.5-18.
EXEMPLO MUSICAL 10 ..................................................................... 44
Valsa 9. Chopin, c.1-11.
EXEMPLO MUSICAL 11 ..................................................................... 45
Escorregando. Nazareth, c.17-24.
EXEMPLO MUSICAL 12 ..................................................................... 45
Grande Valsa Brilhante. Chopin, c.21-29.
EXEMPLO MUSICAL 13 ..................................................................... 46
Galhofeira. Nepomuceno, c.1-4.
EXEMPLO MUSICAL 14 ..................................................................... 47
O Polichinelo. Villa-Lobos, c.26-45.
EXEMPLO MUSICAL 15 ..................................................................... 47
Prelúdio 9 (La Sérénade Interrompue). Debussy, c. 25-31.
EXEMPLO MUSICAL 16 ..................................................................... 48-49
Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c. 6-21.
EXEMPLO MUSICAL 17 .................................................................... 49
Valsa 1. Chopin, c. 24-27.
EXEMPLO MUSICAL 18 ..................................................................... 50
Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c.22-31.
EXEMPLO MUSICAL 19 ..................................................................... 50
Prelúdio 2 (Voiles). Debussy, c. 52-57.
EXEMPLO MUSICAL 20 ..................................................................... 52-53
Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c. 152-177.
EXEMPLO MUSICAL 21 ..................................................................... 57
5a Valsa de Esquina. Mignone, c. 1-4.
ix
O48
Oliveira, Aline Martins.
A questão rítmica e a defasagem dos códigos no piano nacionalista
brasileiro / Aline Martins Oliveira, 2006.
ix, 142 f.
Inclui anexos.
Orientador: Luiz Paulo Sampaio.
Dissertação (Mestrado em Música) – Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Música, 2006.
1. Música popular - Brasil. 2. Música para piano. 3. Interpretação (Fraseado,
dinâmica, etc.) - Brasil. 4. Música - Análise, interpretação. 5. Pianistas - Brasil.
6. Métrica e ritmo musical. I. Sampaio, Luiz Paulo. II. Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (2003-). Centro de Letras e Artes. Programa de PósGraduação em Música. Mestrado em Música. III. Título.
CDD – 780.420981
INTRODUÇÃO
A idéia para esta pesquisa surgiu ao notar uma peculiaridade na interpretação da peça
Impressões Seresteiras por João Carlos Assis Brasil (2002: faixa 10). O andamento é mais lento,
a interpretação dá menos ênfase ao virtuosismo e apresenta uma flexibilidade rítmica peculiar,
em comparação com outras interpretações conhecidas da mesma peça (por exemplo, Cláudio
Vettori, sd: faixa 2). Estaria Assis Brasil mais próximo da seresta? Sendo ele um intérprete com
experiência na execução de música popular, em que medida essa prática modificaria a
interpretação de obras de caráter nacionalista?
Apesar de ser possível supor que o conhecimento da música popular é importante para
interpretação de obras nacionalistas, parecia-me que a ênfase do intérprete de concerto estava na
tradição européia e aspectos virtuosísticos da execução. Por outro lado, quando uma peça é
interpretada procurando valorizar os elementos populares, essa interpretação é muitas vezes
preconceituosamente classificada como “vulgar”. Parecia-me também que, quando a peça é
executada com um tratamento mais próximo da interpretação da música de concerto romântica,
falta ginga. As colocações de autores como Brandão (1949:10), Araújo (1972) e Cazes (1998:38)
a respeito da interpretação de Nazareth respaldam de certa forma essa idéia: falta suingue aos
intérpretes de concerto.
O estilo de execução do pianista de concerto, questionado por esses autores e derivado em
grande medida de sua prática com o repertório do romantismo do século XIX, apresenta
flexibilidade rítmica, principalmente na execução em rubato das melodias. Porém, é possível
2
diferenciar subjetivamente esse tipo de flexibilidade rítmica daquele inerente à música popular
brasileira a que me referi anteriormente – e ao longo de todo este trabalho – com os termos ginga
e suingue.
Essa avaliação subjetiva das diferenças entre os dois estilos de execução – o rubato
romântico e a ginga popular – pode ser apoiada pelas observações de Sloboda (1985) sobre a
percepção rítmica. A partir de uma discussão de experimentos no campo da psicologia cognitiva
da música, o autor afirma:
Podemos ouvir imprecisões rítmicas e rubato com o treino apropriado, mas diferenças sutis em
distribuição temporal são mais frequentemente experimentadas não como tais, mas como
diferenças na qualidade (a ‘vida’ ou ‘suingue’) de uma execução. Isso justifica em parte a
intangibilidade do estilo de execução. Diferenças em estilo são decorrentes de diferenças reais na
execução, mas muitas delas não podem ser conscientemente categorizadas por muitos ouvintes.
Muitos de nós temos somente meios globais e imprecisos de capturar nossa experiência da
diferença entre estilos (Sloboda, 1985:25) 1.
Essa opção pela valorização de considerações mais globais e subjetivas encaminhou minha
pesquisa a uma delimitação de tema mais abrangente e busca de uma metodologia que levasse em
conta a experiência de intérpretes com reconhecida capacidade na música brasileira para piano
com foco em um ou ambos os repertórios: popular e nacionalista.
A princípio, o foco do trabalho era somente o aspecto rítmico, baseado na suposta falta de
ginga dos pianistas de concerto. Ao pesquisar sobre nacionalismo musical no Brasil, surgiu um
novo problema: havia elementos populares na música de caráter nacionalista, inseridos,
entretanto, no contexto de técnicas da música de concerto. Então, será que numa sala de concerto
deve-se estabelecer uma relação com o popular ao tocar uma peça de Villa-Lobos, já que os
elementos populares estão inseridos em uma técnica de concerto? Foi encontrado, no trabalho de
1
We can hear rhythmic imprecision and rubato with appropriate training, but fine differences in timing are more
often experienced not as such, but as differences in the quality (the ‘life’ or ‘swing’) of a performance. This accounts
in part for the intangibility of performance style. Differences in style are due to real differences in performance, but
many of them cannot be consciously categorized by most listeners. Most of us have only global and imprecise means
of capturing our experience of style difference.
3
José Miguel Wisnik (1982), um conceito apropriado para tratar desse assunto: defasagem dos
códigos. O conceito pode também ser associado à hipótese inicial que apontava o preconceito de
“vulgarização” quando se estabelece uma relação com o popular na interpretação. A defasagem
dos códigos (Wisnik, 1982: 27) ocorre no processo de estilização, devido à tentativa de adequar
um código a outro (elementos populares à técnica da música de concerto).
Esta dissertação propõe uma relação com a música popular na interpretação de obras
nacionalistas para piano. Os objetivos são: auxiliar os pianistas em questões interpretativas desse
repertório, indicar implicações didáticas e estabelecer um diálogo entre o pianismo de concerto e
a música popular brasileira. Os principais aspectos enfatizados são: a questão rítmica e a
defasagem dos códigos.
Foram localizados dois trabalhos diretamente relacionados ao assunto da pesquisa: A
execução da rítmica brasileira no Rude Poema para piano de Heitor Villa-Lobos, de Estela Caldi
(1985) e Interpretação da obra pianística de Radamés Gnattali através do conhecimento da
música popular, de Fernanda Canaud (1991). A dissertação de Caldi enfoca a questão rítmica e
pertence a um grupo de trabalhos acadêmicos que analisam obras nacionalistas procurando
relacioná-las ao popular, porém claramente sob a ótica da escola da música de concerto. Canaud
menciona não só aspectos rítmicos, mas também de caráter e afirma que para executar peças que
contêm elementos da música popular, os pianistas de concerto deveriam dar menos ênfase ao
virtuosismo.
Há ainda trabalhos que sistematizam aspectos exclusivos do popular, como Receita de
choro ao molho de bandolim: uma reflexão acerca do choro e sua forma de criação, de Paulo
Henrique Loureiro de Sá (1999) e A flexibilidade rítmico-melódica na interpretação do choro, de
Eliane Salek (1999).
4
O presente trabalho propõe maior intercâmbio entre as duas áreas. A maior parte dos
trabalhos acadêmicos que tratam do piano nacionalista brasileiro, tais como os de Caldi (1985) e
Nereida Rangel (1993), afirmam ser necessário o conhecimento da música popular para execução
desse repertório, devido a sutilezas rítmicas que não podem ser grafadas, mas não apresentam
propostas para solucionar os problemas rítmicos; apontam as dificuldades, mas não alternativas.
Mesmo os trabalhos que apontam alternativas, como o de Canaud (1993), parecem não extrapolar
a simples constatação das sutilezas rítmicas. Além disso, nenhum dos trabalhos encontrados
discute a defasagem dos códigos e o tratamento de materiais populares inseridos em uma técnica
da música de concerto.
A metodologia da pesquisa utilizou como instrumento de coleta de dados entrevistas semiestruturadas (ver roteiro no anexo 2). Os sujeitos são pianistas atuantes em repertório de concerto,
popular ou ambos. Essa opção por sujeitos de formações diversas foi proposital, tendo em vista
que o objetivo da pesquisa era estabelecer um diálogo entre a visão do pianista de concerto e a
visão de músicos populares. A entrevista com pianistas populares foi, portanto, uma tentativa de
“ir direto à fonte” do conhecimento de aspectos do tema não sistematizados academicamente.
A terminologia “música de concerto” e “música popular” foi adotada, pelos motivos
apontados a seguir, embora saibamos que em determinados contextos seja difícil estabelecer uma
fronteira entre os dois termos. Nem mesmo quanto a cada um dos termos há um entendimento
preciso. O termo erudito, que é mais comum para designar a música de concerto, é visto por
alguns como pejorativo por considerar a música popular inferior e menos elaborada. Em oposição
a essa idéia, coloca-se que há músicas populares muito bem elaboradas como o jazz e o choro.
Por isso, muitos preferem a expressão música clássica. Contudo, clássico designa também um
período específico: a música composta no século XVIII por compositores como Haydn e Mozart.
O termo música de concerto, que não traz a conotação pejorativa nem a referência a um período,
5
foi, portanto, escolhido. O termo popular também é controvertido, porque pode designar música
do povo ou para o povo. Muitas vezes, essa diferença é destacada utilizando a expressão música
folclórica para designar a música do povo e música popular para a música divulgada pela mídia.
Os limites, nesse caso, também são tênues e discutíveis porque uma música folclórica pode ser
incorporada pela indústria cultural. O uso do termo popular traz também o problema da
delimitação do povo, que pode se referir a um grupo étnico, classes menos favorecidas ou
comunidade nacional. A conclusão a que se chega é que não há apenas uma música popular, mas
músicas populares. Como esse trabalho trata apenas da música popular do Brasil, embora haja
diversos gêneros, adoto a expressão no singular.
O referencial teórico se baseia em diversos autores: Mário de Andrade, por ser o Ensaio
sobre a música brasileira (1962) um texto base sobre nacionalismo musical no Brasil; Carlos
Sandroni (2001), na questão rítmica, com os conceitos de ritmo cométrico/ contramétrico e de
ritmo aditivo; na defasagem dos códigos, Wisnik, o próprio formulador do conceito, e Santuza
Cambraia Naves (1998) que menciona a conciliação e tensão que acontece entre o que se
considera “simples” e o que se considera “monumental” sob uma ótica eurocêntrica, o “vulgar” e
o “sublime”, o “baixo” e o “elevado” quando se inserem elementos populares a uma técnica da
música de concerto. O uso desses termos por Naves não é fruto de um preconceito da própria
autora, mas cumpre a função de apontar preconceitos arraigados na sociedade brasileira, aos
quais a música nacionalista remete.
Os compositores nacionalistas utilizaram, portanto, elementos da música popular para dar
idéia de brasilidade. A análise desse recurso levanta o problema da autenticidade. O que é
genuinamente brasileiro? Existe de fato uma identidade nacional? Se existe, como se manifesta
em música? A questão da autenticidade foi debatida com base nas idéias de Jean-Jacques Nattiez
6
(2005). Nicolaus Harnoncourt (1998), outro autor que trata da área de práticas interpretativas, foi
consultado.
Este trabalho procurou resposta para algumas questões. O pianista de concerto resolve
bem a questão da rítmica brasileira? Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação?
Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da estrutura
rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia? Em que a
prática da música popular interfere na execução da música de concerto e vice-versa?
O capítulo I resume a história do piano no Brasil. Expõe aspectos profissionais e
interpretativos dos chamados pianeiros, considerados importantes mediadores entre a música de
concerto e a música popular. Em seguida, os problemas da identidade nacional e da associação
entre nacional e popular são apresentados de maneira geral e de maneira específica na área
musical. Passa-se então à discussão da estética nacionalista da música em geral e no Brasil. Para
finalizar, há um resumo de como o nacionalismo musical se manifestou no Brasil em obras para
piano, instrumento abordado neste trabalho.
O capítulo II apresenta conceitos importantes para a compreensão da questão rítmica e da
defasagem dos códigos que embasam o debate do capítulo seguinte.
O capítulo III relata o resultado das entrevistas, relacionando as respostas dos entrevistados
com autores como Nattiez, Sandroni, Naves, Harnoncourt, dentre outros. Discute como a questão
rítmica e a defasagem dos códigos se manifestam na interpretação. Aponta propostas para a
resolução da rítmica e analisa em que a prática da música popular interfere na execução da
música de concerto e vice-versa.
7
CAPÍTULO 1 – O PIANO NA MÚSICA BRASILEIRA
1.1 – Breve histórico
Não se sabe a data exata da chegada do piano ao Brasil. Taunay afirma que o instrumento
teria desembarcado no país pouco antes da vinda do Príncipe Regente e da Corte Real Portuguesa
(apud Fagerlande, 1996:19). Mário de Andrade, por sua vez, situa a chegada dos primeiros pianos
em 1808, junto com D. João VI. “Dão João quando regente mandava vir para o palácio de São
Cristóvão uns pianos ingleses que foram os primeiros do Brasil” (1967:167). Antes da vinda do
piano, já havia cravos no Brasil. Esse outro tipo de instrumento de teclado fora introduzido pelos
sacerdotes da Companhia de Jesus que os utilizavam no culto, magistério e festas nos colégios
(Rezende, 1970:13).
A abertura dos portos e tratados comerciais com a Inglaterra, realizados por D. João VI,
foram os fatores que facilitaram o comércio de pianos. A fabricação em série do piano, menos
artesanal que o cravo, foi resultado da Revolução Industrial. “Os fabricantes de piano procuraram
fazer não alguns exemplares de magníficos instrumentos para alguns eleitos, mas o maior número
possível deles” (Schlochauer, 1992:128). Aspectos tais como praticidade e conforto também eram
levados em conta. Isto explica a construção de instrumentos de menor porte, os pianos verticais
com a mecânica e cordas perpendiculares ao teclado. “Os pianos foram uma sorte de especiaria,
com que a Europa, no século XIX, derramou pelos outros continentes a prestidigitação de suas
indústrias” (Rezende, 1970:26).
8
Sigismund Neukomm (1778-1858), músico austríaco que teria sido aluno de Haydn, é
citado como primeiro pianista que chegou ao Brasil. Aportou em terras brasileiras em 1816 e
tinha sido nomeado mestre da capela real por D. João VI. Foi professor de D. Pedro, Francisco
Manoel da Silva, Imperatriz D. Leopoldina e Infanta D. Isabel Maria (Fagerlande, 1996:80).
Outra figura de destaque foi o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), que à época
da chegada da corte teve seu talento reconhecido como orador, mestre de capela, organista,
pianista e improvisador.
Posto em confronto, certo dia, no Paço de São Cristóvão, com o celebérrimo operista lisboeta
Marcos Portugal, foi convidado a executar ao piano difícil sonata de Haydn. Hábil na leitura à
primeira vista, fê-lo com tal desenvoltura e brilhantismo, que extasiou os ouvintes (Rezende,
1970:25).
Exercia também importante papel como compositor e professor. Escreveu inclusive um
livro didático, intitulado Compêndio de Música e Método de piano-forte.
No início do século XIX, o piano estava presente apenas em casas de algumas famílias em
Pernambuco, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Bahia, sendo raro em outras províncias (Tinhorão,
1976:163). Era símbolo de status e fazia parte da vida social.
Foi sinal de cultura e ornamento de salão; confidente e passatempo; prenda doméstica e dote de
casamento; vaidade aristocrática e pasmo caipira; empate de capital e fonte de renda; agente
terapêutico e tormento dos neurastênicos. . . Era no lar o confidente diário das sinhazinhas
langorosas, o enlevo dos moços românticos. As mucamas o espanavam e poliam respeitosamente
(ele também era negro. . .). Por cima dele, muitas vezes, como num altar, um vaso de cristal ou
porcelana chinesa descansava sobre finíssimas rendas, sorrindo em flores e perfumes; quando não
era o porta-retrato de um ente querido, - até o qual se evolava o incenso das harmonias derramadas
pelas teclas de marfim e ébano. . . E para completar o quadro, ocasiões houve em que o piano
novato, ao chegar pela primeira vez a uma vila ou cidade, se viu recebido com reverências, como
se fosse um Bispo ou alta autoridade, com rojões, acompanhamento popular e até lavratura de um
termo, tal qual sucedeu em Porto Feliz e Sorocaba (Rezende, 1970: 10).
O piano participava tanto do sistema sociocultural brasileiro, que “alguns observadores
estrangeiros se referem a ele como uma praga” (Freyre, 2000:284). Possuir um piano era
“conotação de nobreza, poder, cultura e bom nascimento” (Tinhorão, 1976:163). Rezende
9
discorda da idéia de que o piano era instrumento apenas para os mais abastados, dizendo que
“apesar de caros, e sem poder competir com a guitarra popular, iam sendo aos poucos vendidos a
pessoas de todas as classes sociais” (1970:26). A opinião de Tinhorão parece mais consistente, já
que o alto custo dos instrumentos, afirmado pelo próprio Rezende, impediria membros das
classes sociais menos favorecidas de adquiri-los. Entretanto, é provável que músicos de várias
classes pudessem gradativamente ter acesso aos pianos presentes em instituições públicas e
privadas como escolas, agremiações carnavalescas, clubes e lojas de música.
Na segunda metade do século XIX, houve um crescimento da atividade musical no Brasil.
O aumento do número de salões no Rio de Janeiro incentivou a importação do piano. Em 1856, o
poeta Araújo Porto Alegre chama o Rio de “cidade dos pianos” (apud Cazes, 1998:20). Nessa
época havia cerca de quarenta professores particulares de piano na cidade (Guedes, 1992:11). O
ensino oficial de música ocorreu a partir de 1847 no Conservatório de Música do Rio de Janeiro
(Fonseca, 1996:78). A cátedra de piano no conservatório foi inaugurada por Carlos Severino
Cavalier Darbilly em 1871 (Cernicchiaro apud Schlochauer, 1992:110). Após a proclamação da
República, em 1890, Leopoldo Miguez funda o Instituto Nacional de Música e Cavalier perde sua
cátedra e a classe de piano passa a ser de Alfredo Bevilacqua. Mais tarde, Gemma Luziani,
pianista italiana, ocupa a segunda cadeira (Azevedo, 1956:217).
Ainda na segunda metade do século XIX, começa a prática do pianismo de concerto (Faria,
1996) no Rio de Janeiro. De acordo com Guedes (1992:11), em 1855, o Rio recebe a visita de
Sigismund Thalberg (1812-1871), rival de Franz Liszt (1811-1886). Gottschalk (1829-1869),
pianista norte-americano, também se apresentou no Rio de Janeiro. “Não é de admirar que
havendo esse entusiasmo por cantores, pianistas e violinistas europeus, Gottschalk empolgasse,
como empolgou, a gente culta do Rio de Janeiro” (Freyre, 2000:296). Esse entusiasmo por
cantores, pianistas e violinistas reflete a visão heróica do artista em que se valoriza o
10
malabarismo e virtuosismo exibicionista, um dos aspectos da estética romântica. O pianismo de
concerto possui um caráter de metáfora do mundo burguês, devido ao individualismo e à idéia do
gênio. “O gênio é a glorificação do mundo burguês; o indivíduo dotado das faculdades muito
acima da média justifica em si mesmo as desigualdades sociais em que a burguesia é
hegemônica” (Squeff, 1982:105).
Antes da vinda dos virtuoses internacionais, a prática de recitais relacionados ao pianismo
de concerto era modesta. O pianismo de salão prevalecia. Eram costumeiros saraus e bailes em
residências, sociedades particulares de música e salões. O repertório era composto de música
vocal acompanhada ao piano, música para dança e música instrumental solista ligeira. As peças
de salão eram mais curtas e mais simples do que as de concerto, inacessíveis a amadores. O
amadorismo em música em fins do século XIX era sinal de distinção social (Fonseca, 1996: 99).
A dicotomia salão versus concerto é interpretada por Faria (1996) como evidência da
divisão de classes: a música de salão seria característica das classes intermediárias enquanto a
música de concerto seria apreciada pelas elites. Entretanto, inicialmente, era a elite que
freqüentava os salões. A menos que essa interpretação se baseie no momento histórico posterior,
em que as classes intermediárias já estavam presentes nos salões, tendo adquirido poder
aquisitivo para comprar um piano, a análise sociológica de Faria pode ser considerada
equivocada.
Na realidade, os pianismos de concerto e de salão coexistiram e os limites entre as duas
práticas eram tênues. A música vocal e a dança serviam de mediadoras entre as duas práticas.
Além disso, a música da classe baixa também interagia com essas esferas. A modinha, por
exemplo, gênero vocal que se originou do bel canto, era reproduzida nos salões e também
absorvida pela classe social baixa. O lundu, música de dança de origem popular, fazia o
movimento contrário, sendo incorporado pelos músicos e dançarinos dos salões e, eventualmente,
11
até pelos compositores nacionalistas de música de concerto. Existia um “movimento cíclicocircular de influências mútuas, que ia dos teatros para os salões, dos salões para as ruas e destas
de volta aos salões e aos teatros, muitas vezes por conta das teclas de um piano” (Fonseca, 1996:
66). Nessa citação de Fonseca, os teatros representam a música de concerto; as ruas, a música
popular; os salões, a mediação.
Ainda durante o século XIX, o piano tinha grande importância na educação das mulheres.
As moças da burguesia não realizavam trabalho doméstico, que era função dos escravos.
Estudavam pouco e sua vida era caracterizada pelo ócio. O estudo do piano era visto como
prenda, mas a música como profissão era motivo de desgosto. A vida de Chiquinha Gonzaga
exemplifica essa questão. Ela havia aprendido piano como um ornamento. Quando decidiu
abandonar o marido e sobreviver como professora de piano, foi rejeitada pela família.
Inicialmente, portanto, o piano era privilégio da elite que o utilizava para a educação e
lazer. Só mais tarde, o instrumento se torna acessível para as classes intermediárias. Do ponto
vista econômico, a riqueza da cultura do café no vale do Paraíba possibilita que comerciantes,
profissionais liberais e burocratas tenham condições financeiras de adquirir pianos (Tinhorão,
1976:164). É importante salientar que esse processo de aumento do poder aquisitivo das classes
intermediárias foi originado pelos fazendeiros, que comandavam as atividades econômicas em
torno da cultura cafeeira, fato omitido por Tinhorão. O piano realiza uma trajetória descendente
das “brancas mãos das moças da elite do I e II Impérios até aos ágeis e saltitantes dedos de negros
e mestiços músicos de gafieiras, salas de espera de cinema, de orquestras de teatro de revista e
casas de família dos primeiros anos da República e inícios do século atual [XX]” (Tinhorão,
1976:163). Assim, o piano é incorporado a grupos instrumentais ao lado da flauta, violão e
cavaquinho e surgem assim as primeiras gerações de pianistas populares brasileiros.
12
No início do século XX, o papel do piano nas práticas musicais brasileiras permanecia
destacado. “Curiosamente, constatamos, a partir da pesquisa documental, que a movimentação
musical e social em torno do piano nas primeiras décadas do século XX foi semelhante à que teve
lugar no século anterior em torno do canto e da ópera” (Fonseca, 1996:122). Essa ênfase no
instrumento de teclado, entretanto, foi questionada por Mário de Andrade que criticou a
“pianolatria”, elevação do piano em detrimento da música orquestral ou de câmara. Para o líder
do modernismo brasileiro, a “pianolatria” limita o repertório, vicia o gosto do público e promove
a prática de interpretação sentimentalista.
O piano permanece como instrumento muito apreciado no Brasil até os dias de hoje.
Coexistem o pianismo de concerto e o pianismo popular. Embora o contato entre as duas
vertentes seja grande, a fronteira entre os dois tipos de intérprete e, conseqüentemente, os dois
tipos de formações persistem na maioria das vezes.
13
1.2 – As primeiras gerações de pianistas populares brasileiros
Os membros das primeiras gerações de pianistas populares brasileiros são muitas vezes
designadas como “pianeiros”, uma denominação pejorativa, em contraposição aos pianistas de
escola atribuída aos executantes de ouvido, indicando poucos conhecimentos de teoria e muito
balanço. Embora eu adote a denominação pianista popular, o termo “pianeiro” aparece no
decorrer do texto, ao citar informações e opiniões colhidas de outros autores.
Essas primeiras gerações de pianistas tocavam em festas íntimas, casamentos, batizados,
clubes, casas de música, salas de espera de cinema, confeitarias, cafés-cantantes. Eles ficaram em
evidência a partir da incorporação do piano aos grupos de choro. Em artigo publicado
originalmente no jornal O Globo (16/04/76), há um elogio aos chamados “pianeiros” como bons
instrumentistas. O autor procura amenizar o caráter depreciativo da designação, mistificando as
habilidades intuitivas desses músicos.
Exímios executantes, sabendo dar a cada música o seu exato valor melódico e rítmico,
dispensavam as sinalizações do pentagrama das partituras e valiam-se de sua fiel riqueza auditiva
que os fazia excelentes intérpretes. Daí serem conhecidos como pianeiros, sem qualquer
depreciação (Efegê, 1978:221, v.2).
Segundo Tinhorão (1976:164-5), os dois primeiros “pianeiros” foram Ernesto Nazareth
(1863-1934) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). Chiquinha Gonzaga é apontada por Edinha
Diniz como “primeira profissional do piano ligada ao choro: primeira pianeira e primeira
chorona” (1984:105). Ambos receberam formação relacionada à tradição da música de concerto
clássica e romântica e são mencionados como criadores de um estilo original que aproximou a
sofisticação e técnica requintada da música de concerto a ritmos populares, forjando assim uma
arte que costuma ser apontada como particularmente brasileira.
O primeiro compositor a estilizar o ritmo do maxixe, sintetizado pelos conjuntos de choro a partir
da polca e do lundu, foi o pianista Ernesto Nazareth. Filho de uma família da baixa classe média do
14
Rio de Janeiro, ele se apresentava – juntamente com Chiquinha Gonzaga – como uma das pessoas
mais indicadas a transportar para o piano o novo estilo de interpretação [...] (Tinhorão, 1991:71).
Essa citação de Tinhorão pode dar a entender uma equivocada proximidade geográfica e
artística entre Chiquinha e Nazareth. Além disso, há discos gravados por diversos pianistas
dedicados ao repertório de ambos os compositores, como as gravações de Antônio Adolfo
(Antônio Adolfo abraça Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, 1991) e o disco Ernesto
Nazareth/ Chiquinha Gonzaga (1971) da coleção Abril Cultural, embora o encarte do segundo
traga um texto que menciona as diferenças de mentalidade e produção musical dos compositores.
É preciso enfatizar, como Verzoni, o fato de que os dois trabalharam de maneira independente.
O fato de serem tantas vezes citados conjuntamente parece-nos fruto de um pensamento intelectual
construído posteriormente à época em que viveram; pensamento esse, em nossa opinião,
equivocado. Entendemos que esse erro deva-se ao fato de essas estruturações terem sido
construídas, em sua maior parte, por intelectuais de visão musical acadêmica que, ao examinarem
outras músicas (que não o repertório de concertos), consideradas menos importantes de antemão,
tendessem a uma visão simplificadora (2000:75).
Segundo Verzoni (2000), enquanto Chiquinha se empenhou em transformar a sociedade,
Nazareth desejava ascender socialmente. Chiquinha renunciou aos privilégios da sua classe em
troca da liberdade. Após se separar do marido, em 1868, chegou a passar necessidade, mas
conseguiu seu sustento dando aulas particulares de piano. Começou a freqüentar o ambiente
musical boêmio onde conheceu Joaquim Callado Jr., líder do conjunto Choro Carioca. Quando o
grupo passou a tocar em casas com piano, Chiquinha foi convidada a ser pianista do conjunto e
dessa forma, começou a tocar em bailes. Mais tarde, publica suas composições, primeiro pela
editora da Viúva Canongia e depois, a partir de 1868, pela editora Arthur Napoleão & Miguez.
Foi ativista política na abolição da escravatura e proclamação da república. Além disso, foi uma
das fundadoras da Sociedade Brasileira de Direitos Autorais. Chiquinha Gonzaga cultivava sem
preconceito diferentes gêneros musicais: dueto recitativo, lundu, dobrado carnavalesco, modinha,
15
chula, maxixe, fado português, samba. Ainda segundo Verzoni, Nazareth teve trajetória bem
diferente: vinha de uma classe baixa e desejava ter uma carreira de concertista. Seu plano de
estudar na Europa não se concretizou, gerando uma frustração. Como intérprete e compositor,
tinha restrições quanto a gêneros. Nazareth não sabia reivindicar seus direitos, tendo sido muito
explorado pelas editoras. Suas peças eram tecnicamente complexas, muitas vezes inacessíveis a
amadores, ao contrário das peças de Chiquinha, que eram tecnicamente mais simples.
Este tipo de escolha faz-nos automaticamente separar Ernesto Nazareth de outros compositores de
polcas, valsas e tangos. Nesse aspecto, Francisca Gonzaga é uma representante mais típica dos
pianistas que dedicavam-se (sic) a esses gêneros, ficando Nazareth numa posição mais próxima dos
compositores de formação acadêmica (Verzoni, 2000: 71).
Assim, Verzoni aponta muitas diferenças de personalidade, mentalidade e produção
musical de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth. É curioso observar que embora ambos
fossem músicos profissionais que moravam na mesma cidade e na mesma época, sequer
chegaram a se conhecer pessoalmente.
Para Baptista Siqueira, Nazareth não deveria ser comparado aos chamados “pianeiros” por
ter uma técnica apurada capaz de executar peças de concerto, não sendo apenas um executante de
oitiva ou “orelhudo”, como se dizia na gíria carioca. Segundo Tinhorão, “quando o piano desce
nos últimos anos do século XIX às salas de visita de famílias mais modestas e clubes recreativos,
surgem pianeiros de formação autodidata, desligados da boa técnica” (1976:165). Essa afirmativa
parece implicar que anteriormente havia pianistas populares com boa técnica e formação básica
na escola pianística de concerto. O termo “pianeiro” parece designar, portanto, pianistas
populares com formações diversas, incluindo os que sabiam ler partituras, como é o caso de
Ernesto Nazareth, que tocava peças de concerto, mas atuava profissionalmente como músico
popular. Tanto que esses profissionais são apontados como sistematizadores das características
16
rítmico-melódicas dos conjuntos populares. Se não tivessem domínio da notação européia, não
poderiam sistematizar e escrever essas características.
Vemos, por conseguinte, que foi através do piano, e da música escrita para piano, que
conseguimos, em processo de transposição, grafar, anotar e sistematizar as características rítmicomelódicas dos conjuntos populares dos choros e das serestas. Realizaram essa tarefa os
compositores e maestros populares, músicos intuitivos, mais ou menos dotados, e que, na época,
eram conhecidos por pianeiros (Pinto, 1963:26) 2.
Nazareth é citado como importante compositor no processo de transposição de elementos
populares para o piano.
Certa vez Oscar Rocha, [...] um dos homens que melhor conhece a vida e obra de Ernesto
Nazareth, perguntou-lhe como é que ele tinha chegado a compor os seus tangos, com esse caráter
rítmico tão variado e tão inédito, naquela época, entre os compositores de música popular.
Nazareth respondeu com simplicidade que ele ouvia muito as polcas e os lundus de Viriato,
Callado, Paulino Sacramento e sentiu desejo de transpor para o piano a rítmica dessas polcaslundus (Itiberê, 1946:310).
Diversos processos rítmicos curiosos, autenticamente nacionais, mas que pela primeira vez
recebiam a consagração da pauta, foram utilizados por esse compositor de músicas de dança, bem
como sugestões provenientes do instrumental típico do choro, que ele habitualmente reproduzia no
piano (Azevedo, 1956:151).
Tinhorão menciona a escassez de documentação como obstáculo para determinar em que
medida essa geração de pianistas populares teria contribuído para a sistematização.
Como o interesse da indústria do disco tardou muito em interessar-se pela música dos pianeiros
enquanto solistas - antes de Nonô, Gadé e Carolina Cardoso de Menezes, poucos pianistas
populares chegaram ao disco, a não ser como acompanhadores, e o próprio Ernesto Nazaré (sic) só
deixou exemplo de sua interpretação em quatro ou cinco discos – pouquíssima documentação resta
hoje para se determinar em que grau esse tipo de artista teria contribuído para “sistematizar as
características rítmico-melódicas dos conjuntos populares dos choros e das serestas” (Tinhorão,
1976:169).
Tinhorão aponta quatro gerações de pianistas populares que participaram do processo
descrito acima. Da primeira geração, fazem parte J. Cristo, Alexandre G. de Almeida, o Xandico,
2
O foco dessa citação de Pinto (1963) é a atribuição da sistematização de características da música popular aos
chamados “pianeiros”. O uso do termo na época é, entretanto, questionável. Parece mais provável que a expressão
tenha surgido posteriormente e acabou sendo aplicada anacronicamente aos pianistas populares do fim do século
XIX.
17
Aurélio Cavalcanti, Azevedo Lemos, Américo Fonseca da Costa, Azeredo Pinto, Chirol, Chico
Porto, Maneco Leal, Júlio Barbosa, J. Bulhões, Escobar, Porfírio da Alfândega, Benedito Monte,
Carlo T. de Carvalho e Júlio Reis. Temos também algumas mulheres: D. Maria José, D. Vivinha
e D. Naninha.
Para o autor, a segunda geração foi influenciada por ritmos norte-americanos como o onestep, rag-time e o fox-trot. Sua carreira aconteceu até o advento das orquestras de rádio, fábricas
de discos e orquestras de dança.
De acordo com Tinhorão, a terceira geração trabalhava em casas de música, clubes
recreativos e orquestras de salas de espera de cinema. Dentre os nomes apontados pelo autor
estão Sinhô, Henrique Vogeler, José Francisco de Freitas, Eduardo Souto, Augusto Vasseur, Ari
Barroso, Romualdo Peixoto, Osvaldo Chaves Ribeiro, o Gadé.
Conforme destaca Tinhorão, muitos pianistas eram atraídos para o Rio de Janeiro pela
oportunidade de se profissionalizar tocando música popular. Na quarta geração, há músicos de
outros estados, como o gaúcho Radamés Gnattali, o paraense Carlito, o baiano Lauro Paiva, os
mineiros Hervê Cordovil e Waldir Calmon, o pernambucano Elpídio Salles Pessoa, o Fat’s
Elpídio, o cearense José Luciano e o maranhense Luís Reis. Outros nomes são os de Lírio
Panicalli, Osvaldo Gagliano, o Vadico, Leo Perachi, Gabriel Migliori, Custódio Mesquita, Mário
Cabral, Carolina Cardoso de Menezes, Ribamar, Bené Nunes, Farnésio Dutra, o Dick Farney e
Lindolfo Gaia. Além de tocarem piano, esses artistas também trabalharam como arranjadores e
componentes de orquestras de estúdio e dança numa época (fins da década de 1930 e inícios de
1940) marcada pelo apogeu do rádio. Ainda de acordo com o historiador da música popular
brasileira, essa geração se estendeu até o advento da bossa-nova, que teve João Alfredo, o Johnny
Alf, como primeiro pianista de destaque. É possível apontar ainda outros importantes pianistas da
bossa-nova: Luizinho Eça, Amilton Godoy, César Camargo Mariano, João Donato e Sérgio
18
Mendes. As gerações iniciais, apontadas por Tinhorão, também foram sucedidas por outros
pianistas populares atuantes até os dias de hoje como Hermeto Pascoal, Jovino dos Santos Neto,
Egberto Gismonti, Leandro Braga, Delia Fisher, Wagner Tiso.
O mercado de trabalho para as primeiras gerações de pianistas populares que também eram
compositores tinha imposições, tais como pressão das editoras. O conto Um homem célebre, de
Machado de Assis, ilustra essa questão: Pestana, o protagonista da peça literária, tinha que
compor polcas, o gênero da moda. Depois, ele não tolerava ouvir suas composições de sucesso
tocadas ou assobiadas à exaustão por pessoas na rua. Além disso, fechava contratos com prazos
apertados para compor certa quantidade de polcas. Outro fato curioso presente na ficção de
Machado de Assis, mas também na biografia de pianistas do período em questão, era a escolha de
títulos que a editora assumia, visando o sucesso comercial da peça (Verzoni, 2000).
Um aspecto também referente à vida profissional dos chamados “pianeiros” é o seu
permanente estado de sonolência, devido aos cachês que os obrigavam a virar a noite acordados.
Aurélio Cavalcanti tornou-se a partir de 1890 o mais disputado pianeiro profissional do Rio de
Janeiro. Apesar de cobrar 60 mil-réis por baile em casa de família, Aurélio tinha sua agenda
comprometida por quase todos os dias da semana, o que o levava a viver em estado de sonolência
permanente, pois seu cachê o obrigava a tocar normalmente até 4 horas da manhã (Tinhorão,
1976:167).
O estilo de execução das primeiras gerações de pianistas populares brasileiros foi descrito
por Itiberê: o “dengo, macieza, espírito frajola, humor, graça ágil desses maestros populares
fizeram o encanto dos salões cariocas no começo deste século” (1946:312). Para o autor, o brutal
piano do jazz retirou do pianista popular brasileiro de épocas mais recentes a maciez e dengo dos
“pianeiros”, incapazes de violentar o piano.
Na bibliografia, encontram-se comentários referentes à execução de artistas específicos.
Sobre Sinhô, foi dito que “embora tirasse com bastante nitidez no violão os sambas de sua
19
autoria, era no piano que os apresentava com todos os efeitos melódicos e rítmicos num
dedilhado próprio de ‘músico de ouvido’” (Efegê, 1978:126). Sinhô “tocava de ouvido mas o
fazia com técnica especial. Tinha um fraseado bem seu e corria o teclado com entusiasmo,
gingando, como fazem hoje os pianistas de jazz e bossa nova" (Alencar,1968:20). Itiberê comenta
a respeito da execução de Gadé com entusiasmo.
Gadé é absoluto (. . .) O domínio do teclado, a beleza do toque, a facilidade de transposição, o
senso rítmico- quase diria metronômico - a faculdade de colocar a melodia em equilíbrio instável,
fazendo-a escorregar ou antecipar uma fração de segundo, com uma paradoxal regularidade - todas
essas qualidades conferem a Gadé credenciais de artista raro. Ouvindo-o tocar a própria música o
meu prazer e o meu “suspense” aumentam, tão caprichosas e imprevistas são as suas modulações
(1970:38).
No jornal O Globo, há referências também a Oswaldo Cardoso de Menezes, que “tocando
de oitiva, de ouvido, ou sendo um orelhudo, na classificação que a gíria carioca dá aos
executantes sem conhecimento de música ou mesmo de cabeça de nota, era um exímio pianeiro”
(Efegê, 1978:194). Luis Nunes Sampaio, o Careca é visto como “pianista de apurada execução,
sabendo tirar das teclas o ritmo convidativo (provocante, pode-se dizer)" (Efegê, 1978: 69 O
Globo 27/01/72). Bequinho, ainda vivo numa época em que os profissionais dessa categoria já
estavam desaparecendo, é mencionado como “um remanescente da época dos famosos
pianeiros”.
Entre os famosos pianeiros da época (anos 1915 a 1931) estava o Bequinho, Alberico de Souza
(este o seu nome civil). Rivalizava com Cardoso de Menezes (Oswaldo), Bulhões, Manoel da
Harmonia, Sinhô, Costinha, Masson (Luiz), Pestana, Freitas, Pequenino e outros. Todos
dominando o teclado, tirando das teclas brancas e pretas saltitantes chorinhos e maxixes que
alternavam com valsas lânguidas ou rodopiantes, proporcionavam aos dançarinos exibirem sua
perícia coreográfica (Efegê, 1978, v. II).
O aspecto comum, explícito em muitos desses textos sobre as primeiras gerações de
pianistas populares brasileiros, é um tipo de tratamento rítmico diferenciado. “Exímios
executantes, eles tanto faziam os pares rodopiar suavemente ao ritmo das clássicas valsas lentas
20
para piano, como se agitarem no andamento febril das também clássicas 'polca amaxixada'"
(Efegê, 1978:202).
A polca, a valsa, o maxixe, o nosso tango – [...], dado o ritmo que lhe imprimiu Nazareth –
sincretizaram, brasileiramente nesses dois gêneros urbanos: o choro e o samba. E o pianeiro passou
a interpretá-los com uma nova técnica e novos meios de expressão (Itiberê, 1970:36).
Ora, as edições musicais que o mercado oferecia privilegiavam o piano – instrumento mais nobre –
eram a ele destinadas. É fácil entender que o músico popular, executante “de ouvido”, ao fazer o
transporte da melodia para o seu instrumento obtivesse um resultado diferente. Em geral mestiço,
ele tendia a registrar e executar a música européia utilizando-se do seu repertório cultural e este
incluía a herança africana da cadência sincopada do batuque. E assim ele respeitava a melodia mas
compreendia o ritmo de uma forma especial executando-a com espontaneidade; estava criado algo
original. Mesmo quando retornava ao piano já estava modificada. A interferência operada na
estrutura da música mostrava-se irreversível (Diniz, 1984:100).
É preciso ler com reservas as conclusões empreendidas aqui por Diniz no campo da
interpretação musical, por não ser a autora especialista em música. As observações são,
entretanto, interessantes e ilustram o fato de que os pianistas populares brasileiros tinham estilo
diferenciado de execução.
Portanto, os ritmos populares, executados pelos chamados “pianeiros” de maneira peculiar,
com bossa, balanço, ou ginga é que são apontados como nacionais, autenticamente brasileiros.
Esse ponto-de-vista foi, inclusive, incorporado por compositores de música de concerto que
utilizaram esses elementos em suas obras de caráter nacionalista.
21
1.3 – O piano nacionalista
Ao falar de nacionalismo, deve-se questionar: o que é autenticamente ou genuinamente
brasileiro? Na verdade, não existe uma única identidade nacional, mas várias identidades.
Devemos ter em mente que a identidade nacional é uma construção simbólica, visto que
diferenciações da sociedade são eliminadas e determinados elementos são legitimados como
símbolos nacionais.
A sociedade capitalista nega abstratamente suas divisões construindo pólos imaginários de
identificação: o direito, a lei, o povo soberano, a nação soberana, o Estado Nacional, a família, a
ciência, a arte, a religião, a organização, etc (Chauí, 1983:37).
Ainda tratando a identidade como construção simbólica, há uma tendência de se igualar o
nacional ao popular. No entanto, ambos são conceitos de difícil tratamento. O que é o nacional?
O que é popular? Os conceitos costumam ser elaborados de acordo com o contexto, muitas vezes
relacionados a fatores políticos e ideológicos na representação de um interesse particular como se
fosse de todos.
A dificuldade de construir uma identidade consiste em promover uma integração na
diversidade. O Brasil possui um território extenso, onde vivem pessoas diferentes em termos de
habitat, ocupação, classe social e raça. Na construção de identidade, precisa ser encontrada uma
coesão entre o pobre favelado e o rico empresário, população rural e urbana, baiano e gaúcho,
negro, índio, branco e mestiço. Como responder a esse impasse?
Os intelectuais brasileiros inicialmente responderam a essa questão através das noções de
meio ambiente e raça, oriundas do positivismo de Comte. “Ser brasileiro significa viver em um
país geograficamente diferente da Europa, povoado por uma raça distinta da européia” (Ortiz,
1994:17). A raça e o meio não apenas exprimem a especificidade brasileira, mas explicam o
atraso do país, tendo como fundamento o evolucionismo. Segundo o evolucionismo, as
22
sociedades humanas evoluem do mais simples (povos primitivos) para o mais complexo
(sociedades ocidentais). O inglês Buckle atribuía o atraso brasileiro aos ventos alísios. Sílvio
Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, embora considerem a interpretação de Buckle
incompleta, aceitam o argumento do meio ambiente como fundamento do discurso científico,
relacionando-o à questão racial. Os Sertões, de Euclides da Cunha é uma obra exemplar nesse
sentido, pois insere a “sub-raça nordestina” no seu meio, a caatinga.
O aspecto racial relacionado à construção de identidade surgiu primeiramente em obras de
escritores românticos, como José de Alencar e Gonçalves Dias. Eles tentaram promover o índio à
condição de símbolo nacional, apresentando um modelo idealizado, associado às idéias do “bom
selvagem” de Rousseau. Nessa época, o negro era ignorado por ser escravo, mas após a Abolição,
o debate da questão racial torna-se mais complexo. Para Sílvio Romero e Nina Rodrigues, o
negro adquire maior importância do que o índio. A partir deste momento, começa a ser
propagado o mito das três raças: o brasileiro é produto da fusão do branco, negro e índio.
A noção de mestiçagem no Brasil é tanto real como simbólica, pois se refere à mistura
étnica e à aspiração nacionalista de construção de uma identidade. Para os intelectuais de fins do
século XIX e início do século XX, ao mesmo tempo em que a mestiçagem aponta para a
formação de uma identidade, também explica o atraso brasileiro. O negro e o índio seriam um
entrave ao processo civilizatório e o Brasil teria perspectivas melhores no futuro após passar por
um processo de “branqueamento”. O intelectual brasileiro responsável por colocar a mestiçagem
como algo positivo foi Gilberto Freyre.
Mas, a operação que Casa Grande e Senzala realiza vai mais além. Gilberto Freyre transforma a
negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de
uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. Só que as condições sociais eram agora
diferentes, a sociedade brasileira já não mais se encontrava num período de transição, os rumos do
desenvolvimento eram claros e até um novo Estado procurava orientar essas mudanças. O mito das
três raças torna-se então plausível e pode se atualizar como ritual. A ideologia da mestiçagem, que
estava aprisionada nas ambigüidades das teorias racistas, ao ser reelaborada pôde difundir-se
23
socialmente e se tornar senso comum, ritualmente celebrado nas relações do cotidiano, ou nos
grandes eventos como o carnaval e o futebol. O que era mestiço torna-se nacional (Ortiz, 1994:41).
Apesar do pensamento de Gilberto Freyre libertar a ideologia da mestiçagem das teorias
racistas, ele encobre os conflitos raciais. “O mito das três raças não somente encobre os conflitos
raciais como possibilita a todos se reconhecerem como nacionais” (Ortiz, 1994:44).
A construção de identidade no Brasil é alicerçada no mito da mestiçagem. No processo de
criação de uma música nacional, essa noção também está presente. Há uma relação positivista
entre o biológico e o cultural, evidenciada pela idéia de “musicalidade das raças”. A música
expressaria as características da raça que a criou. No Ensaio sobre a música brasileira, as idéias
de “musicalidade das raças” e de mestiçagem estão explícitas. “O critério histórico atual da
Música Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou individuo
nacionalisado (sic), reflete as características musicais da raça” (Andrade, 1962:20). Na citação a
seguir, quando Andrade se refere a “elementos puros” e à ausência de uma fusão satisfatória na
música, fica evidente que o autor defende a idéia de mestiçagem simbólica – que tem como pano
de fundo o mito da “musicalidade das raças” – como fundamento para a criação de uma música
genuinamente brasileira.
Até há pouco a música artística brasileira viveu divorciada da nossa entidade racial. Isso tinha
mesmo que suceder. A nação brasileira é anterior a nossa raça. A própria música popular da
Monarquia não apresenta uma fusão satisfatória. Os elementos que a vinham formando se
lembravam das bandas de alem, muito puros ainda. Eram portugueses e africanos. Inda não eram
brasileiros não. Si numa ou noutra peça folclórica dos meados do século passado já se delineiam os
caracteres da música brasileira, é mesmo só com os derradeiros tempos do Império que eles
principiam abundando. Era fatal: os artistas duma raça indecisa se tornaram indecisos que nem ela
(Andrade, 1962:13).
Quando Diniz se refere à nacionalização da música, a idéia de mestiçagem e musicalidade
das raças se manifesta nos termos “cultura melaninada” e “elemento negro”.
Enquanto o Rio se modernizava, a música popular percorria um caminho que levaria à
nacionalização. Ainda não era brasileira; apenas esboçava formas que só neste século iriam tornar-
24
se mais definidas. Portanto, é a partir da década de 1870 que podemos falar de uma cultura
melaninada, onde o pigmento fundamental a singularizá-la foi o elemento negro (1984:87).
As noções discutidas anteriormente de identidade como construção simbólica, nacional
associado a popular e musicalidade das raças fundamentam a análise crítica que Sandroni faz das
constantes referências à síncope como especificidade musical brasileira. “Essa insistência das
síncopes não é uma característica puramente formal, mas carregada semanticamente: ela é
associada com ‘Brasil’, com ‘negro’ e com ‘popular’, três coisas que parecem por sua vez estar
associadas entre si” (2001:47).
A estética nacionalista da música é formada por compositores de música de concerto
responsáveis por “inventar a tradição” (Quintero-Rivera, 2000). Dar um sentido de unidade
perante a percepção de heterogeneidade é uma das dificuldades que se impõe a estes
compositores. Segundo Mário de Andrade, “uma arte nacional não se faz com escolha
discricionária e diletante de elementos: uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo”
(1962:15-16). O compositor deveria “ler na música folclórica os traços do povo e projetar uma
síntese de tais elementos na composição erudita” (Quintero-Rivera, 2000:201).
Bartók (apud Quintero-Rivera, 2000), como Mário de Andrade, defendia que a pesquisa da
música folclórica era importante para o compositor captar a essência da alma nacional. Segundo
Bartók, o aproveitamento do folclore teria três estágios: harmonização de uma melodia sem
modificá-la; melodias criadas pelo próprio compositor imitando as folclóricas; composições com
atmosfera folclórica, sem melodias nem imitações delas. Nesse último estágio, o compositor
atingiria uma expressão nacional inconsciente.
Dentre as primeiras tentativas de criação de obras com caráter nacional para o piano,
instrumento abordado neste trabalho, estão A Cayumba – dança dos negros (circa 1857), de
Carlos Gomes (1836-1896), A Sertaneja (1869), de Brasílio Itiberê da Cunha (1846-1913), e o
25
Tango Brasileiro (1890) de Alexandre Levy (1864-1892). Ambas as peças possuem constâncias
da rítmica popular, sendo que a primeira possui desenhos sincopados e a segunda, ritmo de
habanera. A Sertaneja cita a melodia de “Balaio meu bem balaio”, canção folclórica em voga
naquela época. Alberto Nepomuceno (1864-1920) manifesta sua preocupação nativista em A
Galhofeira e na Série Brasileira, peça orquestral que possui redução para piano. Barroso Neto
(1881-1941) procura criar uma atmosfera brasileira em Minha Terra. Para Brandão, Itiberê,
Levy, Nepomuceno e Barroso Neto “chegaram a soluções nativas dentro de uma maneira de ser
européia, com estrangeirismos flagrantes” (Brandão, 1949: 4). Ainda segundo o autor, mais tarde,
Francisco Mignone (1897-1986), Lorenzo Fernandes (1887-1948), Heitor Villa-Lobos (18871959) e Camargo Guarnieri (1907-1993) trariam inovações do ponto de vista técnico e estético,
na construção de uma música nacionalista.
O Cucumbizinho (1931) e a Congada (1928) de Mignone apresentam dificuldades rítmicas
que exigem muita independência entre as mãos. Nas Valsas de Esquina (1938), Mignone usa
procedimentos dos pianistas populares de sua época, transportando para o piano características da
execução dos seresteiros.
Brandão (1949) descreve a criação de uma obra com preocupações nacionalistas por
Lorenzo Fernandez, destacando as características de algumas peças: Três Estudos em Forma de
Sonatina (1929), Valsa Suburbana (1932) e nas Suítes Brasileiras (1936 e 1938). Nos Estudos,
Lorenzo emprega o abaixamento do sétimo grau, uma das constâncias melódicas do folclore
nordestino, rítmica de dança popular e contraponto que lembra os violões e violas sertanejas. A
Valsa Suburbana utiliza efeitos violonísticos baseados no choro carioca. Nas Suítes estão
presentes gêneros e danças tipicamente brasileiras tais como Moda, Cateretê, Jongo, Seresta e
Toada.
26
A obra de Villa-Lobos é considerada um marco da construção da identidade nacional na
música, sendo muito conhecida a sua declaração de que “o folclore sou eu”. Uma outra frase que
teria dito ao chegar a Paris em 1923 seria “não vim aqui para aprender. Vim mostrar a minha
música”. Concepções associadas ao mito das três raças e à melancolia, como um traço da
sensibilidade brasileira estão presentes na sua obra, ficando evidentes em títulos de peças como
Alma Brasileira (1925), A Lenda do Caboclo (1920), Valsa da Dor (1932), Dança do Índio
Branco (1936). Segundo Brandão (1949), a obra pianística de Villa-Lobos possui inovações
técnicas e estéticas, devido à variedade de complexidades musicais – rítmicos e de sonoridade – e
pianísticas – pedalização e dedilhado. São obras importantes o Choros no5 (1925), também
conhecido como Alma Brasileira, o Ciclo Brasileiro (1936), as Cirandas (1926), os onze álbuns
do Guia Prático (1931, 1932, 1935 e 1949), Prole do Bebê no.1 (1918), Cirandinhas (1925),
Suítes Infantis (1912 e 1913), Suíte Floral (1917), Rudepoema (1921).
Na música de Guarnieri, observam-se sugestões nativas em diversas obras, como por
exemplo, Toada pra piano (1929), os dois primeiros cadernos de Ponteios (1931-35, 1947-49),
Choro Torturado (1930), Maria Lúcia (1944), Cavalinho da perna quebrada (1932), Ficarás
sozinha (1939), Dança Negra (1946), Tocata (1935).
Cláudio Santoro (1919-1989) e César Guerra Peixe (1914-1993) também adotaram
procedimentos nacionalistas em importantes porções de sua produção. Guerra Peixe é
mencionado como compositor que “mais sistematicamente estudou o folclore” (McLeish,
1998:46). Dentre os compositores atuais que adotam a estética nacionalista podemos destacar
Osvaldo Lacerda (1927-), Ernani Aguiar (1950-) e Ronaldo Miranda (1948-).
Vários trabalhos acadêmicos já abordaram a presença de elementos populares em obras
nacionalistas para piano, por exemplo, O nacionalismo na obra pianística de Lorenzo Fernandez
de Nereida Rangel (1993) e Verde e amarelo em preto e branco: as impressões do choro no
27
piano brasileiro de Alexandre Zamith Almeida (1999). Os autores desses trabalhos apontam a
presença de aspectos rítmicos, melódicos e harmônicos provenientes de determinado gênero nas
peças analisadas. O presente trabalho, por outro lado, não pretende identificar elementos rítmicos
ou melódicos de determinado gênero em peças ou compositores específicos, mas discorrer a
respeito de aspectos estruturais e interpretativos mais abrangentes relativos à questão rítmica e à
presença de elementos da música popular na música nacionalista brasileira para piano.
28
CAPÍTULO 2 – A QUESTÃO RÍTMICA E A DEFASAGEM DOS CÓDIGOS
Este capítulo trata de dois aspectos: da questão rítmica, principal elemento musical na
construção da identidade nacional brasileira e da defasagem dos códigos que ocorre na
transposição de elementos populares para a música de concerto.
2.1 – A questão rítmica
Para Mário de Andrade, o ritmo é “um dos pontos que provam a riqueza do nosso populario
ser maior do que a gente imagina” (1962:21). Segundo ele, a síncope é uma das constâncias, mas
não uma obrigatoriedade. Todavia, para Andrade, muito do que nós chamamos de síncope, não
corresponde ao conceito vindo dos dicionários musicais. Daí ele defender a idéia de que no Brasil
há uma rítmica oratória, oriunda dos conflitos da rítmica européia com a africana e a ameríndia.
Me parece (sic) possível afirmar que se deu um conflito grande entre as nossas tendências e a
rítmica já organisada (sic) e quadrada que Portugal trouxe da civilisação (sic) europea pra cá. Os
ameríndios e possivelmente os africanos também se manifestavam numa rítmica provinda
diretamente da prosódia, coincidindo pois em muitas manifestações com a rítmica discursiva de
Gregoriano (1962:30).
Para Mário de Andrade, a rítmica da música popular brasileira é, por vezes, prosódica, livre,
feita por adição de tempos, como na rítmica grega e não por subdivisão como no compasso
europeu. Muito do que chamamos de síncope é ritmo livre ou polirritmia. Há a idéia de pulsação
e medida, arsis e thesis, mas não de compasso.
Sandroni (2001) propõe uma interessante explicação para a questão da rítmica brasileira no
livro Feitiço Decente. A síncope é um consenso para indicar “especificidade” musical brasileira e
29
na expressão de Sandroni, ela se tornou uma “categoria nativa importada” (2001:27). A palavra
se tornou tão comum que é utilizada tanto por musicólogos, como por músicos populares e leigos.
Os dicionários musicais definem a síncope como irregularidade, como ruptura da métrica
convencional, que pressupõe a existência de uma recorrência regular e periódica das acentuações,
chamada compasso. Entretanto, tanto a síncope quanto o compasso são noções formuladas dentro
da teoria musical clássica ocidental, não sendo, portanto, conceitos válidos universalmente. Na
música brasileira, por exemplo, a recorrência da síncope é freqüente e não chega a ser uma
exceção. O questionamento do conceito de síncope foi feito, pela primeira vez, por estudiosos da
música africana ao perceberem que na polirritmia desta música não havia a periodicidade de
tempos fortes, mas uma grande liberdade nas acentuações. Para estudar a música africana, os
estudiosos decidiram abandonar o conceito de síncope e formularam outros conceitos mais
adequados para o contexto.
Kolinski
(apud
Sandroni,
2001:21)
utilizou
os
termos
“cometricidade”
e
“contrametricidade”, para designar os ritmos que estão, respectivamente, de acordo com a
métrica, ou contradizendo-a. Kolinski postulou a existência do ritmo métrico e do ritmo
propriamente dito. “Numa valsa, por exemplo, a métrica seria o ¾ que constitui o fundo
constante, e o ritmo, as diferentes articulações temporais da música real” (Sandroni, 2001:21). O
ritmo pode contradizer (contramétrico) ou confirmar (cométrico) o fundo métrico, que é
constante. Sandroni menciona a neutralidade como vantagem dos conceitos de Kolinski: “nem
co- nem contrametricidade seriam a priori mais normais ou mais regulares que a outra”
(Sandroni, 2001: 22). Portanto, é através de síncopes que a nossa contrametricidade se apresenta
na música escrita.
30
Outro importante conceito é o de pulsação aditiva (Jones apud Sandroni, 2001). Como
citado acima, Mário de Andrade já afirmava que nossa rítmica3 é muitas vezes construída pela
adição de tempos e não pela sua divisão, como no compasso europeu. Em geral, os livros de
teoria musical ensinam que uma semibreve equivale a duas mínimas, uma mínima a duas
semínimas e assim consecutivamente (Jones apud Sandroni, 2001:24). Os compassos 2/4, 3/4, e
4/4 pressupõem uma divisão binária, a não ser no caso das quiálteras. Já os compassos compostos
pressupõem uma divisão ternária, não existindo, dentre esses, um tipo de compasso que misture
sistematicamente agrupamento de duas e três pulsações (Jones apud Sandroni, 2001:24). Na
rítmica aditiva, coexistem unidades binárias e ternárias, gerando ritmos como 3+3+2, que podem
ser subdivididos em (2+1) + (2+1) + (2) ou (1+2) + (1+2) + (2). Segundo Sandroni, “figuras
rítmicas do tipo descrito acima, embora possam eventualmente ocorrer na música erudita
ocidental - em particular na chamada música contemporânea, só o fazem a título de exceções e
são consideradas de execução difícil” (2001:25).
Com base nessa noção de ritmo aditivo, Sandroni destaca o “paradigma do tresillo”, uma
célula rítmica construída pelo padrão de pulsações 3+3+2. O nome tresillo foi originalmente
adotado por musicólogos cubanos. Segundo Sandroni, esse padrão ocorre em algumas
manifestações musicais brasileiras (o partido-alto carioca, o coco nordestino, o samba-de-roda
baiano) e foi grafado, ora explicitamente, ora implicitamente, em partituras impressas por Ernesto
Nazareth e compositores nacionalistas, como Villa-Lobos e Guerra Peixe.
O fator social está envolvido nessa questão da rítmica brasileira. Quando tratamos do piano,
esse fator pode ser percebido facilmente. No Brasil, o piano inicialmente (primeiras décadas do
3
Sempre que falarmos de “nossa rítmica” e “rítmica brasileira”, reportamo-nos à identidade como construção
simbólica e nacional associado a popular. Ver capítulo 1, item 1.3, páginas 21 a 23.
31
século XIX) era considerado instrumento de elite. Posteriormente, o piano é incorporado à
música popular.
Na verdade, seria exatamente dessa descida das polcas dos pianos dos salões para a música dos
choros, à base de flauta, violão e oficlide, que iria nascer a novidade do maxixe, após vinte anos de
progressiva amoldagem daquele gênero de música da dança estrangeira a certas constâncias do
ritmo brasileiro (Tinhorão, 1991:60).
Existia, e em certa medida ainda existe, um fenômeno de hierarquização dos instrumentos.
Nessa hierarquia, o piano e o violão representavam a música de concerto e a música popular,
respectivamente. O piano, instrumento com conotação de nobreza, aproximou-se da baixa cultura
com a mediação das primeiras gerações de pianistas populares brasileiros.
Chiquinha Gonzaga tornou-se também uma figura emblemática, ao fazer a mediação entre os
mundos “baixo” e “elevado”. Sua própria condição de pianeira favorece essa mediação. Ela recorre
ao piano, considerado um instrumento nobre; mas o utiliza para executar composições
“ordinárias”, associadas ao universo da baixa cultura (Naves, 1998:27).
Já o violão, foi utilizado como mediador, no movimento modernista, para fazer a transição
entre os mundos “de baixo” e “de cima”. Nesse processo, a “pianolatria” foi rejeitada por
representar a tradição romântica e o violão foi utilizado para buscar a aproximação da música de
concerto com a música popular.
Os ideólogos modernistas tentam afrouxar as distinções solidamente cristalizadas entre o erudito e
o popular, as quais, no plano musical, correspondiam ao cultivo do piano ou do violão. Ao
primeiro costumava-se reservar o teatro, enquanto o violão era confinado ao espaço circense. [...]
Rejeita-se o piano, por um lado, por associá-lo à tradição romântica que se quer superar e, por
outro, por se tratar de um instrumento que se prestou como nenhum outro à prática virtuosística.
[...]. À recusa do piano sucede-se portanto a incorporação do violão, o que ilustra um outro aspecto
da discussão modernista – compartilhada por algumas vanguardas européias e latino-americanas: a
valorização das culturas populares e/ou primitivas. Nesse esforço modernista de aproximar o
elevado (associado ao erudito) do baixo (popular), o violão ganha força simbólica como
instrumento que possibilita a transição entre esses dois mundos (Naves, 1998: 25-26).
Esse debate sobre a questão social relacionada à música brasileira para piano, coloca em
evidência o compositor Ernesto Nazareth, pois em sua obra são misturados elementos
32
provenientes das camadas populares com elementos cultos: ritmos de gêneros urbanos e o
pianismo de Chopin. A própria personalidade de Nazareth ilustra a questão, pois vindo de uma
classe baixa, tinha o objetivo de estudar na Europa e ser um concertista, meta que não conseguiu
atingir. Em determinado período da sua vida, ficou oito anos sem ter um piano. Devido a isso,
considerava a si próprio inferior, denominando “suas obras não de maxixes, mas de tangos,
querendo acentuar com isso suas aspirações eruditas” (Wisnik, 1982:43) 4.
A figura de Ernesto Nazareth é, portanto, exemplar da dicotomia entre música de concerto e
música popular e da dificuldade de estabelecer fronteiras entre as duas. Bruno Kiefer (1983) não
o classifica como popular, afirmando que a sua música é mais elaborada. Utiliza, inclusive, o
termo “semierudito” para denominar Nazareth e outros compositores, cujas obras apresentem o
mesmo problema.
Em artigo da Revista Brasileira de Cultura, Araújo afirma que os pianistas de escola não
interpretam bem a obra de Nazareth devido ao gosto deformado pela rotina didática, preconceitos
snobs de estética musical (1972). A rotina didática parece se referir aos estereótipos de
interpretação da música de concerto que podem ser assimilados durante a formação acadêmica
tradicional5. Os preconceitos snobs nada mais são do que o reflexo do fator social envolvido no
aprendizado do instrumento. Por outro lado, no mesmo artigo, o autor afirma que os pianistas
populares apresentam dificuldades técnicas ao executar Nazareth, pelos recursos pianísticos
derivados da obra de Chopin que o compositor brasileiro utiliza.
4
Wisnik (1982) afirma, portanto, que o nome tango não se referia a um gênero musical conhecido, mas era usado
apenas para encobrir o preconceito, pois na verdade era o maxixe. Já outros autores, como Tinhorão (1991), admitem
que o gênero tango brasileiro é distinto do maxixe, embora o termo tango tenha sido muitas vezes utilizado para
designar um maxixe e burlar o preconceito. Para Verzoni (2000), o tango brasileiro foi um gênero importante na obra
de Nazareth, enquanto o maxixe não pode sequer ser caracterizado como um gênero musical, mas sim como um tipo
de dança.
5
Ver capítulo 3, páginas 84 e 85.
33
Esses preconceitos parecem evidentes em alguns eventos em que a obra de Nazareth foi
apresentada em ambientes considerados exclusivos da música de concerto. Luciano Gallet
organizou um recital de compositores brasileiros no Instituto Nacional de Música e incluiu
Nazareth no programa, executando seus tangos Brejeiro, Nenê, Bambino e Turuna. No programa
colocou as seguintes palavras: “Para que conheçamos o que é nosso” (apud Lamas, 1987-88: 62).
A apresentação de peças de Ernesto Nazareth gerou protestos do público, através de tumultos,
sapateados e vaias. Foi necessária até a intervenção da polícia no salão do Instituto Nacional de
Música. Na imprensa, houve críticas como a de Oscar Guanabarino que afirmou ser uma
“verdadeira profanação levar Nazareth – o gênero capadócio – para dentro de um templo de
música” (apud Lamas, 1987-88: 63). Brasílio Itiberê dá outro exemplo que evidencia o
preconceito. Quando menino, tocou dois tangos de Nazareth, Brejeiro e Bambino, em um sarau
lítero-musical na casa de amigos. No programa também constavam Beethoven, Grieg e
Chaminade. Segundo ele, “houve pânico e um escândalo formidável no auditório. Esse desacato
artístico me causou sérios dissabores: fiquei por algum tempo privado da mesada” (1946:311).
Enio Squeff destaca a presença do fator social na rítmica brasileira, ao apresentar a noção
do ritmo como oriundo do gesto (1982:43-44). Segundo ele, é através de sua gestualidade que o
negro impõe sua cultura. Afirma que não sabe se poderia definir um povo através de seu gesto,
mas que foi o gesto do negro, sua música e danças que ficaram caracterizadas como brasileiras. O
gesto do negro está presente no Brasil naquilo que chamamos de ginga, através da qual
diferenciamos, por exemplo, jogadores de futebol brasileiros dos estrangeiros. É também devido
a isso que costumamos mencionar a dificuldade de um estrangeiro para sambar. Para o autor, a
presença do gesto do negro na música de concerto (no final do século XIX e início do século XX)
chocava por acabar denunciando a escravidão, por ser o gesto a manifestação física do negro,
cuja sobrevivência era assegurada pelo trabalho braçal. A gestualidade sexual da dança também
34
escandalizava o homem “civilizado”. Exemplo disso é o maxixe que era considerado vulgar,
chulo, baixo. Após a libertação do trabalho escravo, gesto, cultura e música dos negros passaram
a fazer parte do contexto brasileiro. Estranhamente, o escravo e sua cultura, que eram excluídos,
foram elevados à condição de símbolo nacional (Frota, 2003). Segundo Frota (2003), a atribuição
do samba ao negro é uma “forçação de barra da mídia”, que mascara a realidade da exclusão
social do negro. “Está faltando muito para que os afro-brasileiros de hoje sejam respeitados como
seres humanos” (Frota, 2003:164). O trabalho de Hermano Vianna (1999) deixa claro que a
associação entre samba, negro e povo é socialmente construída, ao analisar a interação entre
diversos grupos e classes na invenção do samba.
No nacionalismo brasileiro, há um projeto construtivo de identidade que adota uma prática
includente (termo utilizado por Naves, 1998) com relação ao popular, anteriormente excluído da
arte “culta” ou “civilizada”. Antes disso, as autoridades policiais proibiam os batuques, um
procedimento que pretendia excluir a “barbárie”.
A repressão ao entrudo no final do século XIX e aos batuques africanos no início deste século, é
bastante representativa dessa atitude que tende a eliminar o que não se enquadra no modelo de
contenção então hegemônico, adotando como prática a rejeição a vários tipos de manifestações da
chamada “baixa cultura”, vistas como bárbaras e associadas a um Brasil arcaico (Naves, 1998:36).
A polícia prendia quem tocasse violão ou cantasse um samba. Muito se tem discutido a
respeito do samba como símbolo nacional: como algo que era totalmente marginalizado passou a
representar a identidade nacional? Todavia, toda identidade é uma construção simbólica. Não se
pode esquecer a diversidade do país e eleger um gênero musical como representante único da
identidade nacional. Neste trabalho, não se pretende examinar por que o samba se tornou
símbolo nacional. Essa discussão foi citada como exemplo da questão rítmica relacionada ao
fator social e da construção simbólica de identidade na música e na cultura brasileira.
35
A noção de popular como primitivo decorre de uma visão evolucionista da história. “Uma
visão evolucionista da história subjaz, por certo, a essa idéia de submeter o elemento popular a
um desenvolvimento erudito” (Naves, 1998:23). Mário de Andrade abraça a ideologia
evolucionista para fundamentar a estética nacionalista: “Música artística não é fenômeno popular,
porém desenvolvimento deste” (1962:37). Segundo Andrade, as características musicais da raça
estão na música popular e cabe ao artista “dar pros elementos já existentes uma transposição
erudita que faça da música popular, música artística, isto é: imediatamente desinteressada”
(1962:16). Os termos “artística” e “desinteressada” referem-se a uma música supostamente
desvinculada de funções sociais, que “não tem cabimento numa fase primitiva” (Andrade,
1962:18) 6.
2.2 – A defasagem dos códigos
“Defasagem dos códigos” é um conceito utilizado por Wisnik em O coro dos contrários
(1982:27). Wisnik cita o exemplo do regionalismo literário de Coelho Neto, em que, no discurso
indireto, o autor escreve na linguagem culta e no discurso direto, coloca a maneira de falar do
caipira. Cria-se, então, um estilo esquizofrênico, em que o distanciamento do homem urbano do
mundo rural é percebido claramente e o autor parece ter o objetivo de reforçar a dualidade entre o
seu mundo e o do seu personagem exótico. Dessa maneira, é reforçada a dificuldade do homem
culto de assimilar a cultura do povo e de compreender o outro, a não ser nos limites da própria
classe.
6
O conceito de primitivismo (primitivo versus civilizado) reflete a influência de teorias evolucionistas inglesas na
obra de Mário de Andrade. O autor procura evitar as possíveis críticas ao emprego dessa terminologia com a idéia de
primitivismo psíquico, recorrendo a conceitos de Lévy-Bruhl e Artur Ramos (Travassos, 1997:167). Há em seus
escritos uma equivalência entre “mentalidade popular”, “mentalidade primitiva” e “mentalidade primária”
(Travassos, 1997:164), interligada ao inconsciente e à espontaneidade. Embora tenha pretendido dar um sentido
positivo ao primitivismo, manteve um posicionamento evolucionista.
36
Em relação à música, Wisnik cita o exemplo das “peças características”, composições da
produção musical nacionalista, em que ocorrem motivos sincopados (que seriam “brasileiros”)
fundidos com trêmulos e floreios pianísticos estranhos aos elementos populares. Na inserção de
elementos populares na música de concerto ocorre um processo de estilização e na tentativa de
adequar um código a outro (elementos populares à técnica da música de concerto) ocorre a
defasagem.
Para Squeff, no nacionalismo brasileiro, propõe-se um projeto “modernizador” com a
elaboração de uma música que encontre reconhecimento no exterior. Se o Brasil possui muita
matéria prima, a Europa possui a técnica mais “avançada”. O autor afirma de maneira
contundente que “o nacionalismo brasileiro nunca passou de um esforço de modernização nos
parâmetros em que o Brasil seria modelado à imagem e semelhança dos países desenvolvidos”
(Squeff, 1982:54).
Na época da Semana de Arte Moderna (1922), o fascínio que a Europa exercia sobre o
Brasil era muito grande. A assimilação da cultura francesa evidenciava-se nos meios musicais
brasileiros. As obras executadas, nos concertos do Rio de Janeiro, eram de compositores como
Debussy, Ravel, d’Indy, Roussel, Chausson. Wisnik cita dois compositores, Milhaud e VillaLobos, para ilustrar a predominância da noção de “superioridade” européia. Milhaud, quando
veio ao Brasil em 1917-1918, ficou encantado com as obras de Ernesto Nazareth e Marcelo
Tupinambá e criticou a dependência do Brasil em relação à música francesa e a falta de utilização
do folclore brasileiro na música de concerto. Segundo Milhaud, as obras dos compositores
brasileiros de diferentes gerações, mesmo quando utilizavam elementos nacionais, não deixavam
de refletir as tendências composicionais européias. Milhaud descreve sua relação com a música
brasileira da seguinte forma:
37
Os ritmos dessa música popular me intrigavam e fascinavam. Havia na síncope uma respiração
molenga, sutil parada, que me era muito difícil assimilar. Eu comprei então uma porção de maxixes
e tangos, e me esforcei para tocá-los com suas síncopes que passam de uma mão para outra. Meus
esforços foram recompensados e eu pude enfim exprimir e analisar esse “quase nada” tão
tipicamente brasileiro (apud Wisnik, 1982:43).
Wisnik destaca o aproveitamento de materiais brasileiros por Milhaud em peças como Le
boeuf sur le toit e Saudades do Brasil. A utilização de características rítmico-melódicas de
Nazareth interessavam a Milhaud, devido à sua procura de novos materiais. O baixo
característico do maxixe, construído sobre funções harmônicas básicas, e o cromatismo melódico
do tango brasileiro, realizado dentro de uma harmonia estável, chamado por Mário de Andrade de
“pererequice melódica difícil”, eram adequados à utilização como material na politonalidade de
Milhaud. Além disso, o emprego de materiais populares e a exploração do humor faziam parte da
ideologia do Grupo dos Seis, do qual Milhaud participava7.
O Grupo dos Seis surgira num clima nacionalista pós-guerra, pretendendo desvincular a
música francesa das influências alemãs e russas. Procurava uma resposta para a crise do sistema
tonal, mas negando o cromatismo de Wagner, com suas frases longas e contínuas modulações,
que na música alemã desembocou no sistema de doze sons. A solução encontrada por Milhaud
foi a politonalidade, ou seja, a utilização de duas ou mais tonalidades simultaneamente. O Grupo
dos Seis também tinha como atitude musical o anti-debussysmo, opondo-se aos sutis pianos e a
seus efeitos harmônicos. A oposição do Grupo dos Seis a Debussy é mais um motivo que
justifica Milhaud ter exaltado Nazareth e Tupinambá e não Gallet e Villa-Lobos, que, em sua
produção, aplicavam técnicas derivadas do impressionismo francês. O Grupo dos Seis também
pretendia construir uma música polifônica com frases simples, em oposição à “melodia infinita”
de Wagner. O contraponto deveria ser despojado e reduzido muitas vezes a duas vozes. A
7
Os outros membros eram Auric, Durey, Honegger, Poulenc, Tailleferre.
38
valorização do contraponto em detrimento da harmonia também explica sua oposição ao estilo de
Debussy, pois na obra desse compositor predomina justamente a manipulação da harmonia.
Enquanto Milhaud procurava material em Nazareth, Villa-Lobos explorava técnicas
composicionais derivadas de Debussy. O que Milhaud e Villa-Lobos têm em comum é a
utilização de um material dentro de uma técnica que lhe é estranha e em ambos os compositores,
nota-se a idéia de superioridade européia. Milhaud buscava matéria-prima para inserir a sua
técnica, enquanto Villa-Lobos procurava a técnica mais “avançada” para expressar sua matériaprima.
Enio Squeff chama atenção para um exemplo de aplicação de técnica européia a materiais
locais. Segundo o autor, “as incursões que Villa-Lobos e Guarnieri fazem ao mundo caipira, ou
sertanejo, traem sempre a mesma tendência de supervalorizar o próprio sistema adotado (tonal)
em contraposição com o que encontram e o modalismo saído da música eclesiástica” (Squeff,
1982:55). Essa análise remete ao conceito de defasagem dos códigos: melodias modais
(elementos populares) harmonizadas no sistema tonal (técnica da música de concerto).
O projeto “modernizador” de Andrade, que foi aceito por diversos compositores como uma
proposta estética para a música de concerto brasileira, preconizava o emprego da harmonia
européia, pois “a música artística não pode se restringir aos processos harmônicos populares,
pobres por demais. Tem que ser um desenvolvimento erudito deles. Ora esse desenvolvimento
coincidirá fatalmente com a harmonia europea” (Andrade, 1962:49). Para o autor, a harmonia
seria neutra e ditada por leis naturais, não sendo traço definidor do nacional.
A harmonização europea é vaga e desraçada. Muito menos que raciais, certos processos de
harmonisação são individuais. Na infinita maioria dos documentos musicais do nosso populario
persiste o tonalismo harmônico europeu herdado de Portugal. Nossa harmonização tem que se
sujeitar conseqüentemente às leis acústicas gerais e às normas de harmonização da escala
temperada. Os processos de enriquecimento dessa concepção harmônica, pluritonalidade,
atonalidade, quartos-de-tom, já estão se desenvolvendo e sistematisando na Europa. E mesmo que
39
um processo novo apareça por aqui: é invenção individual, passível de se generalizar
universalmente. Não poderá assumir caracter nacional (1962:50-51).
Assim, Andrade procura justificar o ritmo como elemento musical predominante na
caracterização do nacional. Embora o ritmo definisse a brasilidade, era considerado selvagem,
primitivo e vulgar. Segundo Sandroni, os instrumentos afro-brasileiros eram associados a “uma
musicalidade por assim dizer selvagem” (2001:138).
A obra de Ernesto Nazareth será utilizada aqui para exemplificar a defasagem dos códigos e
a sistematização das características populares que também aparecem em parte da obra de
compositores nacionalistas, como Levy e Nepomuceno. A defasagem dos códigos em Nazareth é
decorrente da coexistência de células rítmicas populares e de aspectos do pianismo de Chopin.
Em sua dissertação de mestrado, Sara Cohen (1988) organiza a obra de Nazareth em diferentes
“formas de tocar piano” para utilização didática: notas duplas, arpejos, oitavas, acordes
quebrados, cruzamento das mãos, acordes, trinados, saltos, acordes repetidos e outros. A
classificação de maneiras de tocar piano proposta por Cohen é derivada da literatura pianística
tradicional, citando autores como Beringer, Haberbier, Chopin, Moszkowski, Pishna, Cortot,
Debussy, Hanon, Liszt, Czerny, Clementi. Na obra de Nazareth, portanto, a defasagem ocorre
pela utilização desses procedimentos pianísticos junto com células rítmicas populares. As células
rítmicas de Nazareth, segundo Sandroni (2001), fazem parte do paradigma do tresillo. A
transcrição da célula rítmica 3+3+2 para a notação divisiva também gera, portanto, uma
defasagem pela imprecisão daquela notação para representar um ritmo aditivo.
A defasagem dos códigos pode ser exemplificada a partir de comparações de trechos de
obras de Nazareth com trechos de obras de Chopin. Os cromatismos melódicos de Nazareth,
chamados de “pererequice melódica difícil” por Mário de Andrade, presentes em várias peças a
exemplo de Apanhei-te Cavaquinho (exemplo musical 1), também fazem parte da obra de
40
Chopin, como podemos observar no Estudo op. 25, n. 11, (exemplo musical 2). Wisnik explica
que a palavra cromatismo utilizada por Andrade não tem o mesmo sentido do cromatismo que
afeta as relações harmônicas como o wagneriano. Refere-se “a um cromatismo melódico,
superfície de um movimento cadencial estável e não modulatório” (1982: 48). Essa análise pode
ser estendida ao trecho de Chopin apresentado no exemplo musical 2. No caso de Apanhei-te
cavaquinho trata-se de bordaduras, no Estudo op. 25, n. 11, notas de passagem.
Exemplo musical 1. Apanhei-te cavaquinho. Nazareth, c.1-5.
Exemplo musical 2. Estudo op. 25, no. 11. Chopin, c. 5-6.
41
Carioca é considerada obra de difícil execução para pianistas populares ou amadores,
devido à tonalidade de sol sustenido menor e trechos que utilizam um técnica específica,
evidenciando o problema de estabelecer limites entre a música de concerto – particularmente o
pianismo chopiniano – e a música popular na obra de Nazareth. O trecho do exemplo musical 3
possui uma escrita semelhante à passagem do Estudo op. 10, n. 3, conhecido por Tristesse
(exemplo musical 4), combinando cruzamentos sucessivos das mãos numa mesma direção,
acordes quebrados e notas duplas.
Exemplo musical 3. Carioca. Nazareth, c. 32-33.
Exemplo musical 4. Estudo op.10, no. 3. Chopin, c.44-45.
Num trecho de Carioca (exemplo musical 5), a escrita baseada em escalas com
cromatismos na mão esquerda e acordes na mão direita pode ser comparada ao trecho do Estudo
op.10, n.4 apresentado no exemplo musical 6. O paralelo entre os dois trechos se estende também
42
ao contorno melódico da mão esquerda (movimento ascendente seguido de movimento
descendente) e à estrutura harmônica da frase. O diferencial do trecho de Nazareth é a utilização
do paradigma do tresillo na mão direita, adicionando a ginga considerada brasileira.
Exemplo musical 5. Carioca. Nazareth, c.65-72.
Exemplo musical 6. Estudo op. 10, n 4. Chopin, c. 66-71.
43
Os arpejos da mão esquerda no trecho de Fon-fon apresentado no exemplo musical 7
formam um padrão de acompanhamento semelhante ao presente em um trecho do Estudo op. 25,
n. 1 (exemplo musical 8). Ambos utilizam intervalos largos, nonas a décimas primeiras em
Nazareth e oitavas a décimas segundas em Chopin.
Exemplo musical 7. Fon-fon. Nazareth, c.17-20.
Exemplo musical 8. Estudo op. 25, no. 1. Chopin, c.17-18.
44
O acompanhamento da valsa Gotas de Ouro (exemplo musical 9), pode ser comparado à
Valsa 9 de Chopin (exemplo musical 10). As semelhanças incluem a estrutura rítmica e a linha
descendente do baixo.
Exemplo musical 9. Gotas de ouro. Nazareth, c.5-18.
Exemplo musical 10. Valsa 9. Chopin, c. 1-11.
45
A repetição de notas em Escorregando (exemplo musical 11) também era um recurso
utilizado por Chopin, como na Grande Valsa Brilhante (exemplo musical 12). A repetição de
notas é um recurso muito utilizado também pelos músicos populares brasileiros, sendo típica do
bandolim.
Exemplo musical 11. Escorregando. Nazareth, c. 17-24.
Exemplo musical 12. Grande Valsa Brilhante. Chopin, c.21-29.
46
As células rítmicas grafadas por Nazareth e outros pianistas populares contemporâneos a
ele, foram transpostas para a música de concerto por compositores da estética nacionalista. Um
exemplo disso é a peça Galhofeira, de Alberto Nepomuceno (exemplo musical 13).
Exemplo musical 13. Galhofeira. Nepomuceno, c. 1-4.
A defasagem dos códigos pode também ser verificada numa obra de Villa-Lobos: O
Polichinelo, que cita a melodia da cantiga de roda Ciranda, Cirandinha. Em termos de execução,
a peça é realizada com movimentos alternados de mão (exemplo musical 14). Esse é um dos
movimentos mais usados pelo compositor brasileiro em obras para piano, mas é também um
recurso utilizado por Debussy, como no trecho do Prelúdio 9, La Sérénade interrompue
apresentado no exemplo musical 15. Além disso, o movimento das mãos nos dois trechos, alterna
teclas pretas e brancas. Se em Debussy, o recurso é utilizado de forma relativamente comedida,
criando uma polarização que se resolve dentro do próprio trecho, em Villa-Lobos, o recurso é
utilizado de forma mais radical para criar uma textura densa. De qualquer forma, a analogia entre
os dois trechos é válida. Assim, no Polichinelo, a citação da cantiga de roda (elemento popular) é
tratada com técnicas de execução e textura da música de concerto européia.
47
Exemplo musical 14. O polichinelo. Villa-Lobos, c.29-36.
Exemplo musical 15. Prelúdio 9 (La Sérénade Interrompue). Debussy, c.25-31.
48
Ainda tratando da defasagem dos códigos na obra de Villa-Lobos, a questão pode ser
exemplificada em Impressões Seresteiras. A peça reúne diversos aspectos, dentre os quais:
virtuosismo derivado de técnicas da música de concerto romântica (século XIX); recursos de
sonoridade pianística do impressionismo; relação com a música popular brasileira. O
impressionismo e o popular são sugeridos pelo próprio título da peça.
Em Villa-Lobos, os aspectos que podem ser comparados com técnicas da música de
concerto romântica européia incluem os arpejos que percorrem todo o teclado com caráter
improvisatório e o acompanhamento de valsa com escrita semelhante à de Chopin. Essa
comparação pode ser verificada ao confrontar o exemplo musical 16 (trecho de Impressões
Seresteiras, de Villa-Lobos) com os exemplos musicais 10 e 17 (trechos de valsas de Chopin).
Na obra de Chopin, as passagens com notas grafadas em tipo menor (exemplo musical 17)
sugerem improviso e toque mais leve (função ornamental). Esse aspecto da obra de Chopin pode
ser considerado uma característica antecipadora do impressionismo, na medida em que explora
possibilidades timbrísticas alternativas do instrumento8.
Exemplo musical 16 (continua...)
8
Há um nome específico para as notas grafadas em tipo menor com função ornamental na obra de Chopin:
enfibraturas.
49
Exemplo musical 16. Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c.6-21.
Exemplo musical 17. Valsa 1. Chopin, c.24-27.
O impressionismo está presente na escrita em planos sonoros independentes e nos arpejos
com notas grafadas em tipo menor, sugerindo “manchas sonoras”, efeito ornamental e de
preenchimento (exemplo musical 18). As ligaduras de duração que passam de um compasso a
outro sem conexão com outras figuras sugerem a continuidade da nota ou acorde a partir do uso
do pedal de sustentação ao longo do compasso seguinte. Esse recurso pode ser comparado a
características da escrita de Debussy observadas no trecho do Prelúdio n. 2(Voiles) apresentado
no exemplo musical 19.
50
Exemplo musical 18. Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c.22-31.
Exemplo musical 19. Prelúdio 2 (Voiles). Debussy, c.52-57.
51
Em Impressões Seresteiras, a relação com a música popular é evidenciada pela “seresta”,
sugerida pelo próprio título, que era um tipo de cantoria popular de caráter sentimental, executada
à noite por boêmios. Inicialmente, o principal gênero cantado nas serestas era a modinha. Mais
tarde, a modinha foi influenciada pela valsa. As serestas eram acompanhadas por músicos de
choro com flauta, violão e cavaquinho9.
A palavra seresteiras tem como origem a palavra seresta, nome popular dado às serenatas nas
cidades brasileiras, especialmente no Rio de Janeiro; as impressões evocadas pelo compositor são
aquelas sugeridas por suas próprias lembranças de juventude, numa época em que, tocando violão,
acompanhava as canções desesperadamente sentimentais daquele grupo de músicos noturnos cujos
passos ele seguia através das ruas tranqüilas da cidade adormecida (Guedes, 1992:130).
O caráter seresteiro nessa peça de Villa-Lobos é evidenciado pela tonalidade menor, muito
utilizada em canções sentimentais e por chorões. A valsa de Impressões Seresteiras pode ser
tocada de uma maneira “chorona”. Choro é um termo que causa controvérsias por designar tanto
um gênero quanto um estilo de tocar. Aqui o termo choro se refere a uma maneira de tocar, pois o
gênero é a valsa, que pode ser tocada à maneira dos chorões, com flexibilidade rítmica
característica de seu estilo de interpretação. A forma é a mesma utilizada com maior freqüência
no choro instrumental (esquema A-B-A-C-A), outro dado que identifica a peça com o choro.
No trecho do exemplo musical 20, a célula rítmica
é repetida por 11 compassos
(153-163), culminando numa difícil passagem de polirritmia (164-177). Segundo Souza Lima, “é
de bastante dificuldade a passagem em grupo de quartinas, quando a mão esquerda se mantém no
6/8, o que exige grande independência das mãos, cada uma com sua missão” (1969:92). Embora
essa interpretação – principalmente a afirmativa de que a mão esquerda executaria um 6/8 – seja
discutível, Lima parece sugerir a resolução da questão rítmica do trecho a partir do agrupamento
de cada compasso, a partir do de número 164, em duas pulsações, com três subdivisões na mão
9
Informações obtidas no verbete “seresta” da Enciclopédia da música brasileira erudita, folclórica e popular
(Marcondes, org., 1998).
52
esquerda e quatro na mão direita. Essa leitura pode ser justificada pela forma de escrita nos
compassos 166 e 168.
Exemplo musical 20 (continua...)
53
Exemplo musical 20. Impressões Seresteiras. Villa-Lobos, c.152-177.
A relação dessa obra com a música popular pode ser debatida à luz do conceito de
identidade como construção simbólica. Trata-se de um caso, no contexto da estética nacionalista
da música de concerto brasileira, em que um estilo popular urbano, a seresta, mais
especificamente do Rio de Janeiro, é utilizado pelo compositor para dar caráter nacional ao seu
trabalho. Ou seja, pretende-se que um elemento particular, que representa uma das possibilidades
de criação musical do país seja tomado como representante da nacionalidade brasileira como um
todo.
Santuza Naves propõe outra construção teórica acerca da inserção de elementos populares
em produções artísticas da elite. Para Naves, que enfatiza a proposta estética da música
nacionalista modernista brasileira, há uma constante tensão e conciliação entre o “simples” e o
“monumental”, o “vulgar” e o “sublime”, o “baixo” e o “elevado”. Esse é o impasse do
modernismo no Brasil. Adota-se uma prática includente com relação ao popular para ter uma
produção diferente da européia. Todavia, os elementos populares são considerados “primitivos” e
precisam de um tratamento “civilizado”.
Na fase anterior à eclosão da atitude modernista, as manifestações culturais legadas pelo passado
colonial escravocrata, associadas à barbárie e ao primitivismo, eram rejeitadas em nome do
branqueamento do país. O que caracteriza o modernismo, mesmo na versão ordenadora do projeto
musical brasileiro, é justamente o esforço de superar essa oposição, adotando porém um tom
absolutamente elevado e monumental para articular o erudito e o popular (Naves, 1998:76).
54
Segundo Naves, a estética monumental, associada às técnicas de composição e execução da
música de concerto européia, era utilizada por Villa-Lobos. Em sua obra, coexistem
“primitivismo” e “grandiosidade”.
Esse momento coincide com a difusão das inovações ocorridas na Europa no início do século, em
particular a “descoberta” das músicas folclóricas russa (Stravinski) e húngara (Bartók), com seus
ritmos irregulares e harmonias inusitadas. Em particular, o primitivismo brutalista do primeiro
Stravinski - o da Sagração da Primavera (1913) e As bodas (1923) - parece singularmente
adequado para conotar a idéia de pujança étnica, de virilidade não corrompida pelos refinamentos
da civilização. Essa mescla de primitivismo e grandiosidade deixou marcas no Villa-Lobos que
compôs obras como os choros Rasga coração (Choro n. 10, 1926) e Pica-pau (Choro n. 3, 1925)
(Naves, 1998:71-2).
Se o nacionalismo musical brasileiro inspirou-se em grande medida nos elementos
populares, a estética monumental dos compositores de música de concerto associados ao
modernismo também influenciou a música popular. Compositores de música de concerto, como
Villa-Lobos, adotaram elementos populares, mas o caminho contrário também aconteceu: a
adoção de padrões da música de concerto na música popular, com resultados esteticamente
questionáveis.
Há ainda um ponto que gostaria de rediscutir, relativo à incorporação, por alguns compositores
populares, de padrões fornecidos pela cultura erudita, como o romântico e o parnasiano. Esse
procedimento, como vimos, leva-os a ornamentar a linguagem musical com letras difíceis e
empoladas e com interpretações plangentes, tanto vocais como instrumentais. Esses autores
aspiram a um estilo poético erudito e, impossibilitados de se atualizarem sobre os rumos desse tipo
de estética, acabam desenvolvendo um arremedo de classicismo fora de época. Este é o caso de
Catulo, que exibe esse tipo de sensibilidade desde o início do século; de Cartola, que se mostra
influenciado, no início de sua carreira, pela linguagem floreada de Olavo Bilac e de outros poetas
parnasianos; de Ari Barroso, que utiliza formas difíceis na confecção da letra de Aquarela do
Brasil, e de vários outros músicos. E não seria possível deixar de citar Chão de Estrelas, canção
composta em 1937 por Orestes Barbosa e Sílvio Caldas, que leva esse ideal de rebuscamento às
últimas conseqüências (Naves, 1998:172-173).
O “semi-eruditismo” (termo utilizado por Naves) acontecia por parte de compositores de
formação na música de concerto que passavam a trabalhar com música popular (Radamés
Gnattali, por exemplo) e também com compositores populares que utilizavam padrões derivados
55
das produções artísticas de elite, como Catulo da Paixão Cearense (1863-1946) e Cândido Neves
(1899-1934). O “arremedo de classicismo fora de época” denunciado por Naves remete à
defasagem dos códigos de Wisnik, em que se evidencia a dificuldade dos artistas de assimilar
padrões estranhos a sua própria cultura.
A intenção de elevar a música popular levou arranjadores a utilizarem a estética do excesso.
A simplicidade dos regionais é, muitas vezes, preterida em favor de orquestrações exuberantes.
Esse processo também está relacionado à influência das big bands e do jazz.
Os ritmos norte-americanos contribuem, portanto, para a conformação da estética do excesso em
nossa música popular. A influência do jazz-band sobre os músicos brasileiros concorre
principalmente para dotar nossos arranjos daquela profusão de sopros e metais característica das
orquestrações norte-americanas. Muda-se a concepção de acompanhamento musical, passando-se a
valorizar orquestrações exuberantes, e não mais a simplicidade que vigorava até então. As
formações pequenas de instrumentos, que constituíam os “regionais” predominantes até o
momento, são substituídas pelo padrão sinfônico, para o qual concorrem os mais diversos tipos de
cordas, metais, teclados e percussões (Naves, 1998:176).
Naves também destaca em contraposição à estética monumental, a estética da simplicidade,
adotada pelos escritores modernistas que recusavam a linguagem bacharelesca, como Oswald de
Andrade, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira. Existe, na obra desses escritores a associação entre
modernismo e despojamento. Na música, o exemplo de estética da simplicidade é o Grupo dos
Seis, na França. No Brasil, os compositores de música de concerto estavam mais relacionados à
estética monumental, adotando procedimentos de correntes composicionais européias –
romantismo e impressionismo. Por outro lado, a música popular se baseava na estética da
simplicidade, utilizando o monumental de modo parodístico. Existe também nesse caso um
paralelo com uma vertente européia, o Grupo dos Seis que utilizava o monumental de modo
parodístico, muitas vezes “profanando” composições românticas.
O procedimento estético que se pauta pela simplicidade - ou pelo estilo humilde - tende a recortar
de outra maneira o repertório cultural, selecionando num mesmo movimento tanto as peças que se
aproximam do ideal de despojamento quanto as associadas aos elementos africanos e orientais,
56
outrora expurgados pelo processo civilizador. Quando se lida, através do procedimento
metalingüístico, com informações culturais que se afastam desse padrão e se aproximam do
monumental, ou do sublime, a paródia passa então a ser usual. É comum, por exemplo, entre os
músicos que comungam no ideal de simplicidade, a recorrência a textos operísticos com o único
intuito de profaná-los e de expor sua suposta vinculação com um passado estético melodramático.
As composições românticas também se prestam a esse tipo de apropriação parodística (Naves,
1998:82).
Na Semana de Arte Moderna, a apresentação do monumental de modo parodístico se
manifestou com a execução de D’Edriophthalma de Eric Satie (1866-1925) por Ernani Braga
(1898-1948). A peça contém uma citação paródica da “Marcha Fúnebre” de Chopin. No Brasil, o
procedimento estético relacionado ao humor e ao sarcasmo de Satie foi empregado mais na
literatura do que na música. Oswald de Andrade, por exemplo, fez paródia da Canção do Exílio,
de Gonçalves Dias10. No Polichinelo de Villa-Lobos há humor, embora não haja apresentação do
monumental de modo parodístico, pois a melodia é uma cantiga de roda.
A partir dos conceitos propostos por Naves, é interessante retomar a discussão sobre
Impressões Seresteiras, peça na qual a tensão entre o simples e o monumental na música
nacionalista pode ser exemplificada. Lima menciona a simplicidade do tema: “queremos salientar
muito especialmente o tema principal desta peça que é tão significativo, tão simples e tão nosso”
10
Minha terra tem palmares
Onde gorjeia o mar
Os passarinhos daqui
Não cantam como os de lá
Minha terra tem mais rosas
E quase que mais amores
Minha terra tem mais ouro
Minha terra tem mais terra
Ouro terra amor e rosas
Eu quero tudo de lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo
(in Poesias Reunidas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971).
57
(1969:92). (Ver exemplo musical 19). Apesar da simplicidade do tema, há planos sonoros,
arpejos que percorrem todo o teclado, oitavas, que costumam receber um tratamento monumental
por parte dos intérpretes. Segundo Lima, Impressões Seresteiras
é a mais procurada pelos pianistas, a mais popular da série [ciclo brasileiro] e uma espécie assim
de ‘Scherzo’de Chopin, pela sua importância, pelo seu interesse pianístico e pelas passagens de
virtuosismo. É uma peça que seduz o intérprete, que nela encontra oportunidade para uma
execução de alto nível instrumental (1969:92).
Por outro lado, a 5a Valsa de Esquina, de Mignone é um exemplo de predomínio da
simplicidade (exemplo musical 21).
Exemplo musical 21. 5a Valsa de Esquina. Mignone, c. 1-4.
Mignone utiliza escrita de acompanhamento semelhante às valsas de Chopin em certos
trechos. A partir da textura basicamente homofônica desse tipo de acompanhamento, o
compositor cria linhas secundárias que, em frases curtas, interagem contrapontisticamente com a
melodia principal. Esse procedimento pode ser associado ao despojamento do Grupo dos Seis que
valorizava, em detrimento da harmonia, o contraponto muitas vezes reduzido a duas vozes, e
construía frases com contornos melódicos e implicações tonais claras. Mesmo enfatizando a
estética da simplicidade, a 5ª Valsa de Esquina concilia o “simples” com o “sublime”. Naves
apresenta um exemplo análogo na literatura: o procedimento estético de Manuel Bandeira.
58
“Manuel Bandeira, sem dúvida, adota um tom humilde, porém compatível com o sublime”
(Naves, 1998:186).
Em Impressões Seresteiras, a utilização de procedimentos do romantismo, do
impressionismo com a inserção de elementos populares exemplifica a concepção de Naves sobre
a estética de Villa-Lobos. Para a autora, trata-se de uma estética do excesso, com a fusão de
vários elementos.
Quando se toma a estética de Villa-Lobos como exemplo de estética que se realiza pelo excesso,
observa-se que um recurso particularmente importante é a diversidade de informações musicais
utilizadas, provenientes das mais diferentes tradições – européia, indígena e africana; urbanocosmopolita e rural-regional (Naves, 1998:71).
No Brasil, a antropofagia oswaldiana, na literatura e o tropicalismo, na música popular
também adotaram a inclusão de elementos de diferentes origens como procedimento. Nesses
casos, a defasagem dos códigos pode acontecer não apenas entre o que Naves denomina de
“baixo” e “elevado”, mas também entre elementos populares diversos.
A defasagem dos códigos pode ser pensada não apenas na estruturação da partitura, como a
discussão até esse ponto enfatizou, mas também em termos auditivos. No Polichinelo, por
exemplo, a aparição de Ciranda, Cirandinha com harmonização em estilo politonal, pode gerar,
para quem conhece a cantiga de roda, um efeito cômico ou até irônico. Para quem a melodia
folclórica é desconhecida, talvez não. Pode ser que a intenção de Villa-Lobos fosse justamente a
exploração do humor, como ocorre na obra de Milhaud. Em toda a Prole do Bebê no 1, suíte da
qual O Polichinelo faz parte, o compositor utiliza procedimentos derivados do impressionismo,
dentre os quais a escrita em plano sonoros. As melodias do folclore são inseridas em um dos
planos sonoros. Para quem não conhece as melodias folclóricas, as peças poderiam soar
impressionistas, a não ser pela questão rítmica. Segundo Wisnik, Villa-Lobos adota um padrão
59
estético que procura o prazer do efeito e, no caso do Polichinelo, há uma brincadeira com a
“desafinação”.
O exemplo de excelência é o do “Polichinelo”, conhecida peça para piano, onde a melodia em dó
maior de “Ciranda, cirandinha”, pulsada em acordes perfeitos paralelos, é perseguida por uma
cauda vibrátil de notas atritivas, criando aglomerados de segundas menores numa harmonia que
não obedece senão ao desejo lúdico de brincar com a “desafinação”. Nele, a dissonância não
significa angústia, como na exasperada lógica atonal de Viena pré-guerra, mas prazer. As
intensidades freqüentemente não são elementos de contraste construtivo: os fortíssimos não
aparecem como tensão, mas como extravasamento de energia, excesso de juventude (Wisnik,
1982: 168).
A questão rítmica e a defasagem dos códigos são, portanto, elementos de destaque na
estruturação das composições e fatores decisivos para compreensão da relação entre música de
concerto e música popular no repertório brasileiro para piano discutido neste capítulo.
60
CAPÍTULO 3 – O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA INTERPRETAÇÃO
Este capítulo contém um debate sobre o problema relativo à interpretação do repertório
nacionalista para piano a partir dos dois pontos mencionados no capítulo anterior: a questão
rítmica e a defasagem dos códigos. A relação entre a música de concerto e a música popular
nesse repertório propicia discussões sobre a interferência recíproca na execução. O debate se
baseia nas respostas às entrevistas realizadas para esta pesquisa e em textos de alguns
musicólogos selecionados: Sandroni e Gramani na questão rítmica; Naves, na oposição entre
“estética monumental” e “estética da simplicidade” – oposição que remete ao conceito de
defasagem dos códigos (Wisnik); Nattiez e Harnoncourt, em aspectos da área de práticas
interpretativas, tais como sonoridade e autenticidade, dentre outros.
Os entrevistados foram 11 pianistas, atuantes em repertório de música de concerto, música
popular ou ambos. O quadro 1 apresenta um resumo de informações sobre os entrevistados. Seus
nomes aparecem na ordem em que foram realizadas as entrevistas. As transcrições das entrevistas
aparecem na íntegra no anexo 3 deste volume. A fonte de material colhido em entrevistas será
indicada entre parênteses ao fim de cada citação.
61
Entrevistado
Ingrid
Barancoski
Formação
Acadêmica, música de
concerto.
Atividade profissional
Docente de piano da UniRio.
Wagner Tiso
Salomea
Gandelman
Começou a aprender o
instrumento com a família –
música popular. Aos 25 anos,
começou um estudo formal,
passando a tocar também
peças de concerto.
Discípulo de Luiz Eça.
Estudou harmonia com Ian
Guest, improvisação e arranjo
no CIGAM.
Acadêmica, música de
concerto.
Suas primeiras experiências
profissionais foram com a
execução de música popular
em bailes, orquestras e casas
noturnas. Hoje, seu repertório
abrange as duas vertentes.
Pianista popular e professor
do CIGAM (Centro Ian Guest
de Aperfeiçoamento
Musical).
Professora aposentada da
UniRio.
Antônio
Adolfo
Pianista popular, mas também
estudou música de concerto.
Atualmente se dedica a sua
escola de música, o Centro
Musical Antônio Adolfo.
Rafael Vernet
Pianista popular com
formação também na música
de concerto: fez dois anos de
bacharelado em piano na
UFRGS.
Argentina, naturalizada
brasileira, com formação
acadêmica na música de
concerto e música argentina.
Começou a tocar piano aos 12
anos de idade em aulas
particulares e continuou como
autodidata tocando de ouvido
rock, blues e jazz.
Formação inicialmente
intuitiva, através da família.
Estudou na Universidade de
Brasília (UnB) e na
Universidade de
Louisville/Kentucky.
Formação acadêmica, música
de concerto. Algumas aulas
com Luizinho Eça.
Seu repertório abrange a
música popular.
Roberto
Alves
Estela Caldi
Jovino dos
Santos Neto
Renato
Vasconcellos
Maria Teresa
Madeira
Daniel
Tarquínio
Acadêmica, música de
concerto.
Professora aposentada da
UniRio, atua com grupo
familiar dedicado à execução
de Piazzola.
Atua em apresentações de
música popular, tocando
piano, escaleta e teclado. Dá
aulas particulares de piano.
Observações
Ministra a matéria Piano
Complementar aberta a todos
os cursos de graduação em
música e lida com alunos de
música popular.
Segundo ele, seu interesse é
trabalhar na fronteira entre a
música popular e a música de
concerto.
Atua no grupo de música
instrumental No Olho da Rua
e já gravou com Marisa
Monte.
Pesquisa música brasileira e
pedagogia do piano, com
várias publicações nessas
áreas.
Segundo ele, seu “repertório
atual abrange a chamada
música popular, mas inclui
elementos do estudo de
harmonia e composição de
caráter erudito” (2005).
Toca peças de concerto em
casa. Considerado um dos
mais consistentes pianistas do
Brasil. Gravou com Ed Motta.
Contato com a música
popular através dos filhos.
Fez parte do grupo de
Hermeto Pascoal.
Professor do Departamento
de Música da UnB. Atua em
apresentações de música
popular brasileira e jazz.
Na infância e adolescência
costumava tirar música de
ouvido no violão, junto com o
pai, que era músico prático.
Professora do Conservatório
Brasileiro de Música. Tem
atuação intensa como
camerista.
Professor do Departamento
de Música da UnB.
Seu repertório inclui peças de
compositores como Nazareth,
Chiquinha Gonzaga, Sinhô e
Radamés Gnattali.
Executa e pesquisa obras de
compositores nacionalistas,
como Guarnieri e Santoro.
Quadro 1. Formação, atividade profissional dos entrevistados.
62
As entrevistas foram conduzidas como conversas informais e as citações apresentadas neste
capítulo mantêm as características da linguagem oral e/ou coloquial. Não devem ser lidas como
argumentações acadêmicas, mas sim como expressão de opiniões dos entrevistados ao serem
confrontados com as questões. A leitura deve também levar em conta a maneira peculiar de cada
indivíduo se expressar. A relevância do conteúdo das entrevistas é evidenciada quando as
respostas são relacionadas entre si e com o referencial histórico e teórico deste trabalho.
A escolha de pessoas de diferentes formações propiciou o levantamento de opiniões de
intérpretes da música de concerto, da música popular ou de ambas. Há professores de formação e
repertório de concerto, como Barancoski, Gandelman, Caldi, Madeira e Tarquínio. Entre os
pianistas populares existem quatro categorias: formação e repertório populares (Alves); formação
de concerto e contato posterior com o popular (Adolfo, Vernet); aprendizado intuitivo e estudo
formal posterior (Tiso, Vasconcellos); aprendizado intuitivo e de leitura paralelamente (Neto).
3.1 – A questão da autenticidade
Ao propor uma relação com a música popular na interpretação de obras nacionalistas para
piano, a questão da autenticidade se impõe. Trata-se de uma questão explorada academicamente
na área de práticas interpretativas. Entre os intérpretes da música do passado, essa discussão vem
acontecendo há algum tempo e há vários pontos de vista sobre o assunto. Jean Jacques Nattiez
(2005) divide as correntes de pensamento em relação à autenticidade em quatro posições e
introduz uma quinta. Para Nattiez, os enfoques se dão em relação aos três níveis semiológicos,
que compõem o seu modelo tripartite de análise musical. Os três níveis da tripartição abrangem a
perspectiva do compositor (o nível poiético), as estruturas da obra (o nível imanente) e a
perspectiva do ouvinte (o nível estésico). O intérprete se coloca sob a perspectiva do estésico,
63
pois vai executar a obra, como um intermediário entre esta e o ouvinte. Sendo assim, as quatro
correntes delimitadas por Nattiez são:
1- A que ele denomina corrente positivista, onde a significação da obra está centrada no
ponto de vista do compositor (poiético). Essa vertente está ligada ao historicismo. Os
conhecimentos da musicologia histórica ocasionaram o aparecimento da interpretação
“autenticista” da música antiga.
2- A estruturalista, que se concentra no nível imanente e considera que a obra em si possui
um sentido independente do contexto.
3- A que se concentra na percepção do ouvinte (estésico) e se subdivide em duas vertentes:
uma rejeita o universo poiético e não aceita a existência de fidelidade; a outra transfere a idéia de
autenticidade do universo poiético para a atitude do intérprete. Segundo Nattiez, “neste novo
contexto, a palavra autenticidade mudou razoavelmente de sentido, tornando-se sinônimo de
sinceridade do intérprete, da qualidade do engajamento estético e artístico. O conceito deslocouse do universo poiético do compositor para concentrar-se na atitude estésica do intérprete”
(2005:149).
4- A quarta, chamada de dialógica, procura estabelecer um diálogo entre a música do
passado e os intérpretes de hoje.
Nattiez
critica
as
quatro
concepções.
Segundo
ele,
a
primeira
corrente,
positivista/historicista, não pode reconstituir o passado tal como ele era, mas procura, através de
hipóteses, selecionar certos fatos. Para o autor, a corrente positivista/historicista “congela o fluxo
do tempo, ao nível dos encadeamentos históricos e dos processos criadores, em uma imagem
monista e petrificada” (2005:151). Além disso, sob a perspectiva do compositor (nível poiético),
a obra possui várias significações e não apenas uma. Já a respeito da posição estruturalista
(segunda corrente), Nattiez coloca que a significação de uma obra não pode ser reduzida às
64
estruturas da partitura, pois para compreender uma obra é necessário ir além do texto. Além
disso, essa concepção exclui as significações referenciais e emotivas da música. Quanto à terceira
corrente, a crítica do autor se baseia no fato de que não se pode concentrar a interpretação apenas
no estésico, negando completamente o compositor e a época em que a obra foi concebida. E por
fim, a posição dialógica (quarta corrente) coloca “seriamente em dúvida a possibilidade de
manter um discurso verdadeiro sobre o passado” (2005:152), surgindo um problema semelhante à
posição positivista/historicista, pois essa corrente também recorre à história. Diante do
relativismo das correntes histórica e dialógica, incapazes de reconstituir o passado, Nattiez
elabora o seguinte questionamento: “se não posso pretender dizer a ‘Verdade do Outro’, mas
somente travar com ele um diálogo, de que posição transcendente, fora da história e de minha
cultura, posso me colocar para afirmar como verdade que tudo é relativo?” (2005:152).
Após criticar as quatro concepções, Nattiez propõe uma quinta, que caracteriza
paralelamente como pluralista, devido às múltiplas significações que há na música;
construtivista; e semiológica, porque procura não concentrar as significações musicais em apenas
um dos pólos da tripartição – o ponto de vista do compositor, da obra em si, da percepção
auditiva ou do intérprete.
Neste trabalho, o questionamento relacionado ao problema da autenticidade e abordado
inclusive por alguns entrevistados é: existe uma maneira autenticamente brasileira de tocar? Se
existe, seria razoável concluir que essa maneira está relacionada à música popular, pois,
conforme a discussão apresentada no capítulo 1, a construção simbólica da identidade nacional é
estreitamente vinculada à cultura popular. Deve-se levar em conta o processo dinâmico da
música, pois mesmo dentro de um estilo, como o samba, por exemplo, há mudanças e variantes.
Sandroni, em Feitiço Decente, estuda as transformações do samba num período delimitado
(1917-1933). Em O mistério do samba, Hermano Vianna (1995) questiona muito o conceito de
65
autenticidade. Considera que, na realidade, a autenticidade é uma construção, assim como a
identidade nacional. Segundo ele, os próprios sambistas quiseram “depurar” o samba.
O interessante é que o “autêntico” nasce do impuro, e não o contrário (mas em momento posterior
o “autêntico” passa a posar de primeiro e original, ou pelo menos de mais próximo das “raízes”). O
primeiro samba misturou muitas “expressões” musicais, logo foi “amaxixado” e,
depois,“depurado” pelos compositores do Estácio. Quem tem a verdade do samba? Verdade, raiz:
esse não é o mistério de qualquer tradição? Toda tradição não exige sempre a formação de
“hermeneutas” que identifiquem onde ela aparece em sua maior pureza? (1995: 122- 123).
Com relação a esse dinamismo na música brasileira, Barancoski diz:
Um entendimento falho também que nós temos muitas vezes é de que a música brasileira é
estanque. [...] Ela também sofre influências de todos os outros estilos, de todas as músicas que
estão pelo mundo. Os nossos compositores viajam, eles ouvem e conhecem muitas outras coisas
(Barancoski, entrevista, 2005).
Os argumentos de Nattiez e Vianna colocam o conceito de “autenticidade” em xeque.
Entretanto, não descartam a necessidade de conhecer os diversos elementos presentes na música
como parte do processo de construção da interpretação. Assim, o questionamento sobre a maneira
autenticamente brasileira de tocar, apresentado acima, pode ser reformulado: qual o papel do
conhecimento da música popular na construção da interpretação da música nacionalista para
piano?
Essa pergunta sintetiza a investigação desenvolvida neste trabalho a partir da metodologia
de entrevistas. A formulação da pergunta decorre dos diversos aspectos históricos e teóricos
explorados nos capítulos 1 e 2. Além disso, a relevância da questão foi confirmada nas próprias
entrevistas: alguns entrevistados afirmaram a importância de “ir à fonte”.
66
3.2 – A questão rítmica: “de dentro pra fora” 11
Devido à limitação da notação e à falta de contato do pianista com as práticas da música
popular, Brasílio Itiberê diz que “sendo a nossa rítmica cheia de sutilezas, era comum o caso de
alunos laureados sentirem dificuldade em dar [executar] com precisão uma peça brasileira”
(1946:319). Brandão e Cazes mencionam uma “falta de jeito” do pianista ao se deparar com
problemas rítmicos relacionados à música brasileira, popular ou nacionalista.
É muito comum observar-se a surpresa que se apodera do estudante de piano, a sua “falta de jeito”,
ao defrontar-se com problemas técnicos da música brasileira, não havendo ele passado por um
estágio preparatório no conhecimento da estrutura rítmico-melódica da música popular (Brandão,
1949:10).
Um problema à parte é a falta de jeito que os pianistas brasileiros têm para tocar Nazareth. Se
ouvimos suas obras executadas pelos chamados pianeiros (como a suingadíssima Carolina Cardoso
de Menezes), fica faltando o toque de sofisticação. Se as ouvimos tocadas por pianistas clássicos,
muitas vezes de sólida reputação no meio erudito, falta o suingue (Cazes, 1998:38).
É interessante notar que dois autores distantes cronologicamente e de formações bem
distintas (Brandão – pianista de concerto e professor universitário; Cazes, instrumentista de
choro) tenham destacado a dificuldade do pianista de concerto em lidar com os elementos
peculiares da música brasileira. A suposta falta de “sofisticação” na interpretação dos pianistas
populares apontada por Cazes, entretanto, é questionável. Nesse caso, o autor parece usar esse
argumento para construir uma comparação estereotipada entre o pianista de concerto e o pianista
popular. Esses estereótipos perpassam também as opiniões de Araújo (1972) sobre a interpretação
da obra de Nazareth, além de terem ficado em evidência em algumas respostas dos entrevistados.
11
Expressão utilizada por alguns entrevistados e também por Gainza (1988) para se referir a uma execução musical
realizada intuitivamente a partir de uma prática, vivência, assimilação, introjeção (“de dentro pra fora”) independente
de padrões impostos formalmente (“de fora pra dentro”). O termo “de dentro pra fora” pode gerar controvérsias, pois
a introjeção pressupõe o contato com elementos externos. Todavia, a distinção entre dois tipos de aprendizagem de
um estilo musical permanece: de um lado, o caminho intuitivo, a partir da experiência e, de outro, os métodos
formais, baseados na notação tradicional e transmissão verbal de informações. É a esse último caso que se refere a
expressão “de fora pra dentro” aqui utilizada.
67
Brandão aponta uma utilidade didática nas peças de Nazareth: ajudariam na execução de
obras nacionalistas brasileiras. A produção de Nazareth, “no trato pianístico, constitui esplêndido
estudo para conhecimento dos processos rítmicos, melódicos e harmônicos usados na música
popular” (Brandão, 1949:9). Esse conhecimento abarca não apenas células isoladas, mas também
a compreensão do macro-ritmo e estrutura da peça.
O célebre “Apanhei-te cavaquinho” é um excelente estudo para piano, do mesmo modo que, quase
a totalidade de seus “Tangos”, são de grande proveito para a educação rítmica e formação de uma
consciência da unidade de movimento, essenciais na execução da música transcendente para piano
de Lorenzo Fernandez, Mignone, C. Guarnieri e Villa-Lobos (Brandão, 1949:10).
Apesar de Brandão ver uma utilidade didática na obra de Nazareth, o processo proposto
pelo autor para superar as dificuldades rítmicas da interpretação é questionável. A execução da
própria obra de Nazareth já confronta o pianista com essas dificuldades que não podem ser
resolvidas pelo simples contato com a partitura – argumento que deve ser válido tanto para as
peças escritas por compositores nacionalistas quanto para aquelas produzidas por compositores
populares.
A questão rítmica e propostas para sua resolução na interpretação da música brasileira,
popular ou nacionalista para piano foram abordadas diretamente em três perguntas das entrevistas
(perguntas 4, 7 e 8; ver anexos 2 e 3). Quanto à primeira delas – o pianista de concerto resolve
bem a questão da rítmica brasileira?12 – os entrevistados manifestaram opiniões diversas.
Wagner Tiso afirmou que o pianista de concerto não resolve muito bem a questão da
rítmica brasileira por distanciamento do popular e falta de diálogo entre as duas áreas.
O pianista erudito, embora com muita técnica, muito bom gosto, romântico principalmente, está
muito distanciado, talvez por preconceito, da coisa da linguagem popular. [...] Eu acho que os
pianistas eruditos deveriam se aproximar mais do que se faz na música popular [...]. Quando os
pianistas eruditos vão tocar música popular, não muito raro eles correm muito e não acompanham
12
O termo “rítmica brasileira” é usado aqui com base nos conceitos de identidade como construção simbólica e
nacional associado a popular. Ver capítulo 1, item 1.3, páginas 21 a 24.
68
o suingue da música. [...] Quer dizer, isso é um problema mesmo da falta de diálogo entre as duas
áreas (Tiso, entrevista, 2005).
Tiso, assim como Cazes (1998), menciona a falta de suingue. Com relação à escolha de
andamentos, ele afirma que o pianista de concerto costuma “correr”. Severiano tem opinião
semelhante no que se refere à escolha de andamentos em interpretações de peças de Ernesto
Nazareth. Ele assim escreve sobre Apanhei-te cavaquinho: “De andamento rápido (o autor
recomendava
=100 para as polcas e
=80 para os tangos) é muitas vezes executada em
velocidade vertiginosa por músicos exibicionistas, que presumem assim mostrar habilidade
virtuosística” (Severiano, 1997:40).
Essa discussão sobre a escolha de andamentos na interpretação de Nazareth remete a
questões de autenticidade. O texto do encarte do disco Ernesto Nazareth/ Chiquinha Gonzaga
(Abril Cultural, 1971) comenta sobre uma gravação feita pelo próprio Nazareth e confirma o que
Severiano afirma sobre o andamento de Apanhei-te cavaquinho.
Há quem afirme que Nazareth pretendeu, com esta página, provar que o piano – seu instrumento
por excelência – batia em velocidade interpretativa o cavaquinho (instrumento predileto dos
músicos populares da época). A hipótese, todavia, é desmentida pela anotação feita pelo
compositor na partitura primitiva – ‘muito próprio para serenata’ –, do que se deduz ter sido a
música escrita com intenção romântica e não virtuosística. A faixa aqui apresentada – de notável
valor documental – comprova a natureza tranqüila desta composição. A gravação foi feita pelo
próprio Nazareth, ao piano, para o selo Odeon (disco no 10718), a 10 de setembro de 1930
(Tinhorão, 1971).
Essas informações sobre a gravação histórica com o próprio Nazareth ao piano são
importantes, embora Tinhorão adote uma concepção relacionada à corrente chamada por Nattiez
(2005) de positivista, que centra a autenticidade da execução na reconstituição do poiético (ponto
de vista do compositor). Essa idéia evidencia que existe uma corrente autenticista no que diz
respeito à interpretação da música brasileira. O texto do encarte do disco Carolina Cardoso de
Menezes interpreta Ernesto Nazareth (Sinter, s.d) representa mais uma evidência da existência
dessa corrente:
69
Os saudosistas encontrarão nesta coletânea um motivo para doces recordações, e a nova geração, o
previlégio (sic) de ouvir a música brasileira na sua mais pura forma. A Sinter encontrou em
Carolina Cardoso de Menezes a intérprete ideal para estas músicas, por ter sido considerada pela
crítica como uma de suas mais fiéis intérpretes (Sinter, s.d.).
Ao falar dos saudosistas e das novas gerações, o autor apresenta uma concepção
historicista em que o passado será apresentado de maneira autêntica e fiel (“na sua mais pura
forma”). Nattiez estabelece uma distinção entre fidelidade e autenticidade. Autenticidade está
relacionada a uma época e estilo, enquanto fidelidade, às intenções do compositor. Todavia, ele
menciona que a autenticidade também é uma forma de fidelidade a uma época e a um estilo. No
caso do texto citado acima, há tanto a idéia de fidelidade ao compositor quanto à época. Cazes e
Aratanha também adotam uma posição historicista e centrada no poiético. “Salvou-se um
momento privilegiado da história da música brasileira: o melhor testemunho do estilo original de
Nazareth, através do pianismo genial dos irmãos Gnattali” (Aratanha, Mário & Cazes, Henrique,
1993).
Retomando as respostas dos entrevistados sobre a resolução da questão rítmica pelo pianista
de concerto, Antônio Adolfo concorda com Tiso. Para ele, o pianista erudito não resolve bem a
questão rítmica dos elementos populares inseridos na música brasileira nacionalista porque “tem
dificuldade em executar o ritmo sincopado, principalmente quando a síncope transcende o pulso”.
Ao utilizar a expressão, “síncope transcende o pulso”, Adolfo parece se referir a nuances rítmicas
impossíveis de serem grafadas, cuja execução não pode ser calculada mediante a contagem exata
dos tempos e suas subdivisões, com imposição de parâmetros metronômicos.
Para Santos Neto, a resolução depende da concepção rítmica de cada um, mas a muitos
faltam balanço, suingue e incorporação do ritmo.
Há excelentes pianistas que têm uma técnica apurada, mas nunca conseguiram incorporar (ou seja,
colocar no corpo) os padrões rítmicos que constituem a base de nossa música. Basta ouvir as obras
70
de Ernesto Nazareth, Lorenzo Fernandes, Villa Lobos, Radamés Gnattali e muitos outros para
entender que sem sentir internamente as levadas do batuque, do lundu e do maxixe não há maneira
de compreender a sofisticação avançada do samba e do baião. [...] No caso do piano brasileiro,
acho fundamental a prática do choro, do batuque e do maxixe como elementos que facilitam a
igualdade das notas, a leveza das frases e os acentos sincopados sem os quais a música fica
prostrada no chão, sem vida. Já ouvi choros de Ernesto Nazareth tocados por pianistas famosos
mundialmente, mas sem nenhum balanço e suingue, elementos que embora difíceis de definir
teoricamente, são o que há de mais importante nessas peças (Santos Neto, entrevista, 2005).
A abordagem proposta por Neto nessa resposta remete ao conceito antropológico de
“encorporamento” (embodiment) 13, utilizado para se referir às sociedades em que o texto não tem
prioridade e sim, a comunicação por meios visuais, auditivos e gestuais. Enquanto o aprendizado
na música de concerto acontece por meio de signos escritos, em contextos populares de tradição
afro-brasileira, como escolas de samba, o aprendizado acontece por meio da imitação,
improvisação e gestualidade corporal. Os músicos populares costumam recomendar aos músicos
de concerto, que não tentem executar os ritmos populares de maneira “cerebral”, calculada a
partir de contagens de pulsações e subdivisões, mas procurando “sentir” e incorporar a música.
Renato Vasconcellos afirma: se o pianista fica preso apenas à formação clássica, sem
vivenciar a rítmica popular, sua interpretação será limitada.
A rítmica brasileira é filha da África e portanto difere da tradição européia. Se o pianista cresce
ouvindo e estudando os clássicos sem dar ouvidos e asas à sua imaginação folclórica e popular, ele
terá sempre dificuldades com a rítmica brasileira. Tome o exemplo de um estrangeiro, super bem
formado tecnicamente, com relativo conhecimento do vasto repertório pianístico e que queira tocar
a música brasileira. Ele terá com certeza grandes dificuldades de entender o que é um "Batuque"
ou um "Apanhei-te cavaquinho" porque os ritmos não estão completamente escritos, eles fazem
parte dos arquétipos da cultura brasileira, eles têm que ser trazidos de dentro pra fora. [...] É
preciso vivenciar a música pois existe muita coisa além do que está escrito numa partitura. Acho
que devemos ouvir o máximo que pudermos, a nossa música que é riquíssima, para assimilarmos
os trejeitos e as nuances de interpretação de determinados elementos rítmicos (Vasconcellos,
entrevista, 2005).
A importância da vivência e prática na construção da interpretação da música brasileira,
popular e nacionalista para piano é também destacada no trecho do encarte do disco Os pianeiros
13
Entre congadeiros e sambistas: etnografias musicais em contextos populares de tradição afro-brasileira. Revista da
FUNDARTE, Ano III, vol. III, n.5, jan/jun. 2003.
71
(FENAB, 1986), citado a seguir. A “naturalidade do criador” 14, mencionada por Pinto remete ao
nível poiético, enquanto o “domínio maduro de quem estuda” alude ao nível estésico.
Para tocar o repertório desses criadores talentosos não basta ter estudos musicais. É preciso aquela
vivência, a espontaneidade de uma execução fluida. A complexidade dessa expressão, então se
torna mais evidente. Ela só é possível pela naturalidade do criador ou pelo domínio maduro de
quem estuda; o ponto de chegada parece estar sempre adiante (Pinto, 1986).
Para outros dois entrevistados, Barancoski e Alves, o pianista de concerto muitas vezes não
resolve bem a questão rítmica de uma maneira geral e não apenas na música brasileira. O leitor
pode se perguntar: que pianista de concerto é esse? Estudante? Concertista? Todos os estudantes?
Todos os concertistas? Depara-se com um problema de generalização. Contudo, o que se aborda
aqui é a dicotomia concerto-popular e não o “nível” do instrumentista. A generalização é falha,
mas é uma maneira de abordar a dicotomia, embora saibamos que um pianista pode ser
simultaneamente de concerto e popular e que os limites entre as duas vertentes podem ser tênues
em alguns casos.
Na minha percepção pessoal o pianista erudito hoje muitas vezes não resolve bem a questão da
rítmica. Eu acho que tem poucos instrumentistas que prezam uma precisão rítmica na sua
execução, não só na música brasileira. Até a rítmica brasileira em si não é a mais complexa que se
possa encontrar. Na música contemporânea tem coisas muito mais complexas do que a rítmica
brasileira. Eu sou muito adepta da precisão rítmica, uma coisa que eu sempre procuro prezar na
minha interpretação e procuro trabalhar com meus alunos. Eu acredito que uma clareza, um
entendimento rítmico de qualquer estilo que seja, mesmo um Bach, é essencial para clareza da
interpretação, para clareza sonora do que se está executando. Acho que muitas vezes,
genericamente, a nossa formação deixa a desejar neste aspecto (Barancoski, entrevista, 2005).
Para Alves, muitos pianistas apresentam “uma absurda dificuldade rítmica. Entre muitos
que tocam música erudita, apenas poucos tocam ritmicamente correto. Desde as figuras mais
simples. Quanto mais as figuras mais complexas” (entrevista, 2005). Pelo contexto da entrevista
de Alves (ver anexo 3), o músico utiliza a expressão “tocar ritmicamente correto” não como uma
14
O termo naturalidade do criador parece se referir ao fato de que pianistas populares como Chiquinha Gonzaga e
Ernesto Nazareth vivenciavam os estilos que tocavam. Não havia separação entre compositor e intérprete.
72
suposta definição de exatidão absoluta, mas sim para se referir a uma execução convincente do
ponto de vista artístico subjetivo. De qualquer maneira, o propósito principal dessa citação é
salientar a concordância de Alves e Barancoski com relação à rítmica na prática interpretativa do
pianista. Para ambos, trata-se de um problema musical geral presente em qualquer estilo e não
apenas na música brasileira, popular ou nacionalista.
Além da opinião de Vasconcellos (página 70), que sugere a experiência com os diversos
gêneros e estilos como caminho para resolução da questão rítmica, outros entrevistados também
defendem essa linha. Para Gandelman, a resolução da rítmica depende da vivência auditiva com
determinado gênero ou estilo. Caldi defende que a vivência da música popular deve incluir a
participação e não apenas o ouvir.
Em geral, o pianista erudito resolve bem a rítmica brasileira, se ele estiver ligado, ou se ele tiver
ouvido muito. Se desde criança ele é acostumado a ouvir música popular. Eu vou dar um exemplo
do tango. Ninguém me ensinou como é que eu tenho que tocar tango. Mas como eu ouvi tango
desde que eu nasci, na minha casa, eu adorava tango, meus pais adoravam tango, todo mundo
ouvia tango, então você fica tão impregnado. [...] A grafia não vai conseguir dizer tudo o que você
tem que fazer. Se não houver realmente uma introjeção, ou seja, uma assimilação. É como
aprender a falar, aprender a andar, a dialogar. [...] O ouvir é fundamental e o participar também.
Não necessariamente tocando um instrumento, mas cantando, batucando, seja na mesa,
acompanhando (Caldi, entrevista, 2005).
Madeira concorda com Caldi, defendendo que o pianista de concerto deve “ir à fonte” e
participar para se familiarizar com o material rítmico, citando um interessante exemplo concreto
da sua prática de ensino do instrumento.
Muitas vezes ele tem que ir lá à cultura popular e se basear de onde aquele compositor tirou aquela
idéia, ir lá à fonte para entender melhor. [...] Num desses festivais, em que dei aula, teve um aluno
que foi tocar um frevo [...] do Marlos Nobre, se não me engano. [...] Aí eu me lembro que tinha um
aluno de percussão que tocava zabumba. [...] Ele [o pianista] estava tocando um frevo, respeitando
o que estava escrito, mas estava faltando um conhecimento maior [...]. E aí eu o fiz tocar com o
percussionista. Ele tinha que respeitar um pouco mais e entender as antecipações (Madeira,
entrevista, 2005).
73
Para Tarquínio, a capacidade de resolução da questão rítmica na música brasileira, popular
e nacionalista, por parte do pianista de concerto não pode ser definida de maneira simplista, nem
positivamente, nem negativamente.
É possível que o pianista erudito resolva bem os problemas rítmicos da música brasileira. Conhecer
as fontes primárias, tanto populares como folclóricas, de onde surgem os ritmos brasileiros e
aproximar-se delas através de alguma praxis é um caminho, provavelmente o mais eficaz, para a
resolução dos problemas rítmicos da música brasileira (Tarquínio, entrevista, 2005).
A resposta de Vernet funciona como uma síntese das anteriores, porque menciona a falta de
suingue, a rítmica como problema geral nas práticas interpretativas do pianista e a
impossibilidade de responder à questão de maneira objetiva. Além disso, menciona questões
teóricas apresentadas anteriormente neste trabalho: defasagem dos códigos e autenticidade. Isso
ilustra a relevância e interligação entre os conceitos e problemas práticos abordados.
O Nazareth, por exemplo, coloca umas células rítmicas da música popular. Acho que há uma certa
dureza do pianista erudito. [...] E se você vai tocar um Villa-Lobos, pode ser que existam
elementos de popular, mas dentro de um contexto erudito. Acho que o músico pode acrescentar
uma interpretação. Você não precisa tocar um choro como você toca na Lapa. [...]Aí aparece uma
questão que o pessoal sempre levanta com relação à música antiga: a autenticidade. [...] Acho que
há interpretações. Há possibilidades de interpretação. Essa palavra “resolver” é meio complicada.
Esta pergunta é meio capciosa. O ritmo é um problema geral em qualquer estilo. Em todas as
músicas está presente esta questão do ritmo (Vernet, entrevista, 2005).
Nessa resposta, a alusão à defasagem dos códigos ocorre quando Vernet se refere à inserção
de elementos populares num “contexto erudito”. Ao afirmar que não é preciso tocar um choro
escrito por compositor nacionalista como se toca na Lapa15, o entrevistado toca na questão da
autenticidade e das possibilidades interpretativas. A Lapa, nesse caso, representaria o autêntico.
Quanto à questão rítmica, as perguntas das entrevistas abordam mais dois aspectos
específicos: a compreensão da estrutura rítmica para além da barra de compasso e a
independência das mãos na polirritmia.
15
Bairro do centro do Rio de Janeiro, onde se reúnem, em casas noturnas, intérpretes de samba e choro.
74
Para Itiberê, a interpretação da síncope brasileira representa uma rebeldia em relação ao
compasso. O autor baseia seu argumento em um comentário da execução do pianista popular
Gadé:
E como é árdua a sua tarefa! Porque a melodia do samba é rebelde, insubordinada, avessa à
unidade de movimento, inimiga do método e da ordem, escamoteando o compasso, sempre que
pode, e resvalando para a sincopa, procurando fugir à grafia. Essa melodia do choro e do samba é
bem a imagem da alma brasileira – sestrosa e complicada, indo do cafageste (sic) ao épico (Itiberê,
1970:38).
Conforme esclarecido no capítulo 2, o conceito de síncope, usado por Itiberê, não é o ideal
para compreender teoricamente o estilo de interpretação que ele discute. Na polirritmia da música
brasileira, popular e nacionalista, não há o emprego periódico de tempos fortes, mas grande
liberdade nas acentuações e agrupamentos das notas. O conceito teórico que Sandroni propõe é a
contrametricidade, que pode ser associado à questão da compreensão da estrutura rítmica para
além da barra de compasso. Ao aplicar esse conceito à questão da interpretação musical, o autor
sugere uma ligação entre posições sociais dos instrumentistas e sua capacidade de lidar com a
contrametricidade. Quanto mais associado à elite, menos contramétrico (Sandroni, 2001:215). De
acordo com essa hipótese, pode-se supor que o pianista, por executar um instrumento associado à
elite, apresentaria essa limitação.
Contudo, nas entrevistas, a compreensão da estrutura rítmica para além da barra de
compasso não foi tratada como problema específico da rítmica brasileira, mas como um problema
geral da execução musical.
Se você tocar algumas peças do Villa-Lobos, vai se deparar com este problema. Se tocar o
Mikrokosmos de Béla Bartók, também. O mesmo vai acontecer em uma peça de Almeida Prado.
(Gandelman, entrevista, 2005).
Para outros, a construção de uma interpretação que leva em conta a estrutura rítmica para
além da barra de compasso está associada ao entendimento fraseológico e formal. “A libertação
75
da barra de compasso, eu acho que, na medida em que você desde o início trabalhe com o aluno,
entendendo uma frase, ele não vai ter problema nenhum em eliminar a barra de compasso”
(Caldi, entrevista, 2005).
Barancoski e Tarquínio concordam com Caldi.
A libertação da barra de compasso não vem só da métrica, mas eu diria de duas coisas: desse
entendimento métrico maior, do hiper metro e também do fraseado que vai dar essa idéia maior e
de continuidade da música. Isso não só em música brasileira, como em qualquer música, qualquer
estilo (Barancoski, entrevista, 2005).
A questão da libertação da barra de compasso está ligada a questão do tamanho das frases, de suas
entonações e dos seus direcionamentos (“para aonde vai a frase?”) e seus pontos de apoio.
(Tarquínio, entrevista, 2005).
Outros entrevistados trataram a questão da compreensão da estrutura rítmica para além da
barra de compasso de forma distinta. Santos Neto fez observações não apenas gerais, como os
anteriores, mas procurou mencionar aspectos específicos à rítmica brasileira, popular e
nacionalista:
As barras de compasso são um artifício que se usou a princípio para obter uma organização
musical quando do advento da polifonia. Hoje em dia, são importantes, mas quando se trata de
música ritmicamente rica como a nossa, o mais importante é determinar os acentos e as síncopes,
que quase sempre caem ao redor das barras de compassos, sem encostar nelas (Santos Neto,
entrevista, 2005).
Para Alves, trata-se de uma questão de tratamento das acentuações, que devem ser
executadas com flexibilidade e assimiladas “de dentro pra fora”.
A questão da acentuação eu não acredito que o professor de música erudita tenha condições de só
com a música erudita fazer o aluno entender como pulsos podem ser mantidos, mas acentuando em
locais diferentes. Porque uma coisa é o aluno saber por que perguntou pro professor. [...] Mas ele
está fazendo de fora pra dentro. Outra coisa é ele conseguir realizar entendendo como que faz e ele
então toca um trecho onde você muda as acentuações. Aí sim. Ele vai fazer de dentro pra fora. Eu
acho que a música popular é fundamental pra que isso aconteça (Alves, entrevista, 2005).
Ao utilizar as expressões “de dentro pra fora” e “de fora pra dentro”, os entrevistados
parecem se referir à importância da experiência prática no processo de aprendizagem musical.
76
Assim, o aluno poderá realizar as idéias musicais assimiladas ao longo de vivências significativas
(de dentro pra fora), independente de indicações verbais isoladas do professor (de fora pra
dentro). A expressão “de dentro pra fora”, com sentido de aprendizagem por introjeção ou
assimilação de vivências, foi mencionada diretamente por Alves, Caldi e Vasconcellos. Outros
entrevistados usaram expressões diferentes com sentido semelhante: “balanço rítmico natural”
(Barancoski), incorporação e “colocar no corpo” (Santos Neto). As expressões “de dentro pra
fora” e “de fora pra dentro” também foram utilizadas por uma importante autora no campo da
educação musical, Violeta Gainza. A autora utiliza as expressões ao criticar a formação musical
que privilegia a leitura e despreza o treinamento auditivo.
A educação musical tradicional geralmente concebia os seres humanos como máquinas
decodificadoras de uma linguagem escrita e dedicava a maior quantidade de energia ensinando a
decifrar as notas para que fosse possível transferi-las ao instrumento. Desse modo, as pessoas
funcionavam num nível mental muito pobre, embora fossem treinadas e chegassem a ser excelentes
leitores, pois ao proceder assim deixavam de lado um dos aspectos mais importantes na música: a
participação do ouvido. A técnica consistia, freqüentemente, numa série nem sempre coerente de
indicações sobre a maneira de tocar, quase sempre referida a aspectos parciais que se inculcavam
de fora pra dentro. O pedagogo contemporâneo, em troca, objetiva que o processo educativomusical se realize de dentro pra fora (Gainza, 1998:116-117).
Gainza critica a formação centrada apenas na notação em favor de uma formação que leve
em conta a vivência e o “ouvido”. As respostas dos entrevistados apresentam um paralelo com
essa crítica, valorizando a experiência prática no processo de construção de execuções musicais.
Assim, a discussão sobre o problema da compreensão da estrutura rítmica para além da barra de
compasso e das formas de trabalhar esse aspecto com alunos, retomou um tema que já aparecia
em respostas anteriores: a relevância do contato com a música popular no processo de construção
da interpretação da música brasileira, popular e nacionalista, para piano.
A questão da independência das mãos na polirritmia também foi abordada nas entrevistas.
Vários trabalhos acadêmicos anteriores mencionam essa dificuldade, mas não propõe soluções
gerais para o seu tratamento interpretativo e didático. Souza Lima, por exemplo, menciona a
77
passagem de Impressões Seresteiras em que é exigida grande independência entre as mãos
(exemplo musical 20). Brandão (1949:7-8) menciona o Cucumbizinho e a Congada de Mignone
como peças que exigem independência entre as mãos. Mas as perguntas permanecem: como
adquirir essa independência? Como trabalhar isso com o aluno?
Um grupo de entrevistados ressalta a importância do aspecto auditivo. Barancoski explica
como trabalha a polirritmia com seus alunos.
A polirritmia, eu trabalho tocando junto com o aluno. Ele toca uma voz, eu toco outra, a gente
troca. Seria um trabalho como tocar Bach. Eu tento fazer trabalho a quatro mãos também desde o
início, porque quando você toca junto com alguém a métrica, aí aparecem as imprecisões todas. Eu
acho muito útil, porque o aluno aprende a ouvir e aí ele realmente busca entender o que ele está
ouvindo e se encaixar nisso tudo (Barancoski, entrevista, 2005).
A afirmação de Barancoski concorda com o que Caldi (1985:51) escreve e o que
Gandelman relatou em sua entrevista com relação à dificuldade da polirritmia: trata-se de um
problema mais auditivo do que motor. Para Alves, ouvir é muito importante. “Eu acho que um
dos maiores problemas é que o músico está tão compenetrado com as preocupações técnicas, com
a arte de tocar em si que ele esquece de se ouvir. O músico tem que aprender a tocar se ouvindo
que é a última coisa que ele faz” (entrevista, 2005).
A prática de tocar junto com o aluno, proposta por Barancoski, trabalha com a sensibilidade
para ouvir linhas independentes e remete à prática de conjunto na música popular. Vasconcellos
trabalha em conjunto o aprendizado da rítmica. “Eu proponho alguns exercícios em grupos de
estudantes para que fique mais fácil a execução” (Vasconcellos, entrevista, 2005). A partir dessa
experiência, o pianista tem fundamentos auditivos e motores para recriar a polirritmia em sua
execução solo.
78
Madeira propõe o exercício da imaginação orquestral para resolução das dificuldades de
independência das mãos na polirritmia. Essa imaginação tem que se basear em alguma
experiência anterior.
E a questão da independência das mãos eu acho que muitas vezes é um exercício de imaginação,
como se você estivesse tocando um instrumento com uma mão e um instrumento diferente com a
outra. A nossa imaginação funciona muito quando você tem informação dentro dela. [...] É mais
fácil você imaginar do que você imaginar do nada. [...] Quando a gente imagina de uma maneira
mais orquestral ritmicamente o que está acontecendo, muitas vezes é mais fácil de entender
(Madeira, entrevista, 2005).
Outras respostas colocam em evidência a oposição entre duas possibilidades de estudo do
ritmo: a primeira a partir de um ponto de vista mais matemático16 e vertical e a segunda a partir
de uma maneira mais horizontal e orgânica de compreensão da polirritmia. Essa discussão remete
às propostas de Gramani para o estudo da rítmica: “Apesar de existir aquela relação vertical, sem
a qual não haveria possibilidade de uma perfeita medição das durações, a frase rítmica não se
subordina ao tempo; ela acontece sobre ele, horizontalmente, conservando assim suas
características básicas” (Gramani, 2002:11).
Tarquínio propõe o estudo da polirritmia a partir de princípios de Heinrich Neuhaus (18881964)17.
Com os alunos, pode-se inicialmente, e somente inicialmente, fazer um estudo métrico para o
entendimento da sincronia entre as notas em diferentes mãos. Mas depois disso deve-se estudar os
movimentos das mãos separadamente sempre subordinados a movimentação das frases, que devem
ser diferentes em ambas as mãos. Deve-se notar que existem sempre pontos de apoio que
coincidem. [...] Delimitando-se um pequeno trecho musical polirrítmico, que tenha no início e no
final simultaneidade de execução entre as duas mãos, deve-se inicialmente estudar separadamente
cada uma das mãos (sempre levando-se em conta o movimento musical, ou seja o movimento das
frases) até a segurança de execução. Depois pode-se alternar a execução do trecho, [...] e tentar
juntar, sempre (eu insisto) atentamente ao movimento musical de cada mão (Tarquínio, entrevista,
2005).
16
Gramani (2002) critica a concepção de ritmo como elemento matemático, baseado na contagem e somatória de
tempos. Sua proposta didática tem como fundamento despertar a sensibilidade de escuta das diferentes linhas
rítmicas.
17
Célebre professor russo. Lecionou no Conservatório Tchaikovsky e escreveu o livro Kunst der Klavier Spielen. Foi
professor do grande pianista Sviatoslav Richter.
79
Embora tenha sugerido um estudo métrico apenas no início, a resposta de Tarquínio pode
ser relacionada à concepção contrapontística do ritmo, proposta por Gramani. Para o entrevistado,
“deve-se notar que existem sempre pontos de apoio que coincidem”, destacando, assim a
existência de relações verticais. Todavia, sua ênfase é no movimento musical de cada mão,
privilegiando o aspecto horizontal da estrutura rítmica. A preocupação com o direcionamento das
frases se opõe ao conceito matemático de ritmo e ao estudo meramente mecânico da polirritmia.
Essa preocupação possibilita que os movimentos estejam sempre relacionados a uma intenção
musical.
Alves diz que o exercício da polirritmia não deve receber uma abordagem mecânica e
matemática.
O que não pode é que se transforme num exercício meramente mecânico. Porque não pode ser um
estudo meramente matemático. O aluno tem que saber fazer a polirritmia e buscar acentuações
diferentes. Aí eu vou entender que ele realmente sabe fazer polirritmia. Ele não está apenas
repetindo o mecanismo (Alves, entrevista, 2005).
Vernet diferencia entre a execução da polirritmia calculada a partir da notação, que ele
observa em pianistas de concerto, e um tipo de execução mais intuitiva de padrões polirrítmicos
da música popular brasileira.
Há alunos que tocam 3 contra 4 em Rachmaninoff e quando você fala pra ele fazer uma levada de
samba, ele não consegue fazer. Tem uma aluna minha que estava se formando em piano clássico.
Eu pedi pra ela fazer uma levada de samba, ela não fez. Eu falei: Cadê? E ela dizia: é difícil! Bate
aí. Você acabou de tocar Rachmaninoff que é uma coisa bem mais complicada. O aluno não sabe
como aquilo acontece espontaneamente. Ele fez o exercício do 3 contra 2, 3 contra 4 nos livros de
técnica, mas não sabe transpor aquilo para uma situação prática. [...] Você pode até escrever uma
levada de samba, mas o aluno pode criar o jeito dele de fazer. Mas o problema disso não está no
piano. Você pede para o aluno. Bate aí na perna. Se ele conseguir fazer na perna, ele vai fazer
também no piano. [...] Os melhores músicos são aqueles que já fizeram ritmo na caixa de fósforos,
batucaram numa mesa (Vernet, entrevista, 2005).
Tiso também diferencia os tratamentos dados à polirritmia pelo pianista de concerto e pelo
pianista popular em termos da importância assumida pela notação em cada um dos casos: “A
80
polirritmia no piano erudito está escrita, ele estuda aquilo. No popular ele faz isso independente
de estar escrito ou não” (Tiso, entrevista, 2005).
Alguns entrevistados retomaram temas abordados outros momentos das entrevistas,
principalmente, a relevância da vivência com a música popular e do aspecto auditivo. Para
Antônio Adolfo “um pouquinho de treinamento de percussão brasileira resolve o problema”.
Caldi dá sugestão semelhante à de Adolfo quanto à importância da prática de percussão. Para ela,
independência não é uma questão só de movimentos e de manejo do instrumento, mas de ouvido
também.
Se o acento rítmico for muito complicado, o que você tem como trabalho pianístico, é muito
complicado com uma abordagem mecânica. [...] Então, eu acho que você deve aprender percussão
mesmo. Você deve ser capaz de fazer uma coisa com uma mão, uma coisa com outra. Para isso, é
muito bom tocar bateria. Você tem que necessariamente se tornar independente em muitos
movimentos. O que não é só uma questão de movimentos. É uma questão de ouvido também. O
ouvido tem que estar atento a tudo aquilo. Combinação, enfim. E ver onde está essa dificuldade.
De onde vêm essas dificuldades. Como eu vou lidar com isso, para depois levar para o instrumento
[piano] também (Caldi, entrevista, 2005).
Santos Neto e Vasconcellos, por sua vez, destacam a necessidade de assimilar “o todo” na
execução de trechos complexos de polirritmia.
Sobre a polirritmia e independência das mãos, na realidade o que me ajudou muito foi entender que
há sempre uma relação proporcional entre dois ritmos, e o corpo pode calcular essa relação
normalmente. Por exemplo, uma das peças mais complexas que o Hermeto escreveu para mim tem
uma mão tocando sesquiálteras e a outra em semicolcheias [6 contra 4], depois invertendo.
Enquanto eu tentava imaginar os dois padrões separados ao mesmo tempo, não conseguia alcançar
a execução ideal, que só veio depois que eu amalgamei os dois desenhos num só ritmo complexo, e
passei a me concentrar na relação entre as duas mãos, ao invés do que cada uma delas fazia. [...] O
mais importante é saber aprender, estabelecer uma estratégia para ir aos poucos incorporando as
idéias musicais numa unidade de corpo e mente (Santos Neto, entrevista, 2005).
Quando toco algo muito complicado gosto de estudar mãos separadas, mas por outro lado fica mais
fácil compreender determinados ritmos por inteiro, ou seja, com ambas as mãos ao mesmo tempo.
Acredito que as síncopas e a polirritmia da música brasileira podem ser mais naturais se pudermos
ouvir a interpretação original. [...] Os músicos que executam essas composições rítmicas bastante
complexas nunca leram essas frases, eles simplesmente aprendem tocando e sentindo. Parece um
contrasenso, mas só ouvindo é que será possível entender essa fluência (Vasconcellos, entrevista,
2005).
81
Essas respostas, pela sua ênfase na compreensão da junção entre as linhas rítmicas, parecem
introduzir uma contradição com a concepção mais horizontal de Gramani (2002), que foi
relacionada às respostas de outros entrevistados. Seria a concentração na relação entre as mãos e
não no que cada uma delas faz uma forma de privilegiar o vertical em detrimento do horizontal?
Na verdade, a relação entre as mãos resulta em uma linha rítmica imaginária, composta, que
sintetiza os movimentos e acentos das linhas originais. E a expressão “relação proporcional” que
aparece na resposta de Santos Neto? Não seria resultado de uma concepção matemática de ritmo?
A leitura da resposta completa deixa claro que o entrevistado refere-se a outro tipo de
proporcionalidade – a corporal, concepção que está de acordo com as idéias expressas por Santos
Neto em outras respostas.
Levando em conta essa síntese entre os dois aspectos da compreensão da polirritmia – o
domínio das linhas independentes e a assimilação do “todo” – o estudo de trechos polirrítmicos
deve incluir tanto a prática de mãos separadas, como a execução em conjunto e a percepção
auditiva da junção dos diferentes elementos da estrutura rítmica.
Finalmente, outra categoria de respostas parece apontar para um aspecto mais subjetivo na
construção da interpretação da rítmica da música brasileira, popular e nacionalista. Segundo
Adolfo, para compreender a estrutura rítmica para além da barra de compasso e demonstrar
independência das mãos na polirritmia, “temos que voar um pouco. O samba, bem tocado
representa, talvez, a essência do que você está colocando. Não dá pra dar chance ao pensar. Tem
que se tocar naturalmente, assim como um percussionista bem treinado” (entrevista, 2005). Caldi
também destaca um aspecto subjetivo ao afirmar que “não dá para ficar intelectualizando”
(entrevista, 2005).
Esta seção abordou diversos aspectos teóricos e práticos da concepção e estudo do ritmo no
processo de construção da interpretação musical de pianistas. As propostas dos entrevistados são
82
baseadas em sua experiência e procuram contemplar aspectos gerais e aspectos específicos da
música brasileira, popular e nacionalista. Aplicações didáticas sistemáticas decorrentes das
discussões aqui apresentadas podem ser objetos de futuros estudos.
3.3 – A defasagem dos códigos
A polêmica sobre a execução de Nazareth por pianistas de diferentes formações é muito
importante no debate sobre a defasagem dos códigos e a sua relevância na construção da
interpretação da música brasileira, popular e nacionalista, para piano.
Músico fundamental para a linguagem chorística, Ernesto Nazareth curiosamente não foi um
chorão como os outros de seu tempo. Sua música e trajetória artística foram extremamente
pessoais. A maneira refinada como construiu seu estilo, entre o sofisticado e o espontâneo, entre o
balanço rasgado de um maxixe e as sutis fermatas de uma valsa chopiniana, fizeram dele um
músico único e que, a meu ver, ainda não foi bem compreendido pelos intérpretes, sejam oriundos
da música popular ou de concerto (Cazes, 1998:36).
A defasagem dos códigos se manifesta pela coexistência do que Cazes chama de
“sofisticado” e “espontâneo”, ilustrados respectivamente pelas “sutis fermatas da valsa
chopiniana” e o “balanço rasgado do maxixe”. Radamés Gnattali é apontado por Cazes como o
melhor intérprete de Nazareth, pois “assim como o autor, Radamés somara técnica apurada da
música de concerto com o balanço do Choro. Assim como Nazareth, Radamés extrapolava desde
jovem o conceito de popular e erudito” (1998:39). “Mais tarde, já no final da vida, Radamés
lamentou jamais ter gravado um disco solo com peças de Ernesto Nazareth. Ouvia os pianistas
tocando e achava que eles não interpretavam da maneira que tinha ouvido das mãos do próprio
compositor” (Canaud, 1991:48). Radamés não gostava de ouvir nem os pianistas de concerto nem
os pianistas populares tocando Nazareth.
O passatempo predileto do gaúcho Radamés Gnattali ao chegar ao Rio de Janeiro em 1924 era
ouvir Nazareth tocar na casa Stephan. Era seu fã incondicional e foi certamente seu melhor
intérprete. Não concordava com a leitura “chopiniana” de Nazareth, nem com as simplificações
83
harmônicas e exageros rítmicos dos pianeiros. Quando teve a chance de tocar para Nazareth, na
própria casa Stephan, arrancou dele um elogio entusiasmado. “Finalmente alguém que toca do jeito
que eu gosto” (Aratanha & Cazes, 1993).
Curiosamente, a apreciação de gravações do próprio Radamés Gnattali, em duo com sua
irmã Aída, ilustra a polêmica da oposição estereotipada entre as características do pianista de
concerto e do pianista popular. O registro de 1960 foi lançado em CD pelo selo Kuarup Discos
sob o título Radamés e Aída interpretam Nazareth e Gnattali. No encarte, aparece a afirmativa:
“Aída, cuja formação era mais acadêmica, ficava com a função mais melódica e virtuosística,
enquanto Radamés segurava o balanço e o suingue do acompanhamento rítmico” (Aratanha &
Cazes, 1993).
Severiano situa a obra de Nazareth no limite entre música de concerto e música popular,
embora não faça alusão à defasagem dos códigos. Segundo ele, a obra “transita à vontade pelas
duas áreas”.
Ernesto Nazareth ouviu os sons que vinham da rua, tocados por nossos músicos populares, e os
levou para o piano, dando-lhes roupagem requintada. Sua obra se situa, assim, na fronteira do
popular com o erudito, transitando à vontade pelas duas áreas. Em nada distoa se interpretada por
um concertista, como Arthur Moreira Lima, ou um chorão como Jacó do Bandolim. O espírito do
choro estava sempre presente, estilizado nas teclas do primeiro e voltando às origens nas cordas do
segundo (Severiano, 1997:29).
A defasagem dos códigos está presente na obra de Nazareth, devido à relação com Chopin.
Essa relação abre caminho para execuções construídas a partir das práticas interpretativas da
música de concerto. Segundo a Enciclopédia da música brasileira, as interpretações da obra de
Nazareth por pianistas de concerto como Eudóxia de Barros, Arnaldo Rebelo, Homero
Magalhães, Ana Stella Schic, Roberto Szidon e Arthur Moreira Lima dão a sua música uma
dimensão nova (1998:556).
A relação música de concerto versus música popular e sua relevância na construção de
possibilidades interpretativas da obra de Nazareth estão em evidência nas citações de Cazes,
84
Severiano e da Enciclopédia da música brasileira. Neste trabalho, propõe-se uma abordagem
análoga para a música nacionalista brasileira para piano. Entretanto, nesse caso, a intenção
estética do compositor parece exigir uma abordagem distinta. Embora existam elementos
populares na obra nacionalista, eles foram tratados com técnicas da música de concerto. Qualquer
proposta de elaborar a interpretação desse repertório a partir do conhecimento da música popular
parece contradizer a concepção pela qual a composição foi construída, com a idéia de “elevar” os
materiais “primitivos”.
A diferença entre a obra de Nazareth e a produção dos compositores nacionalistas reside no
fato de que sua obra está no limite entre as duas vertentes e não apresenta inserção deliberada de
elementos populares, como na obra de Villa-Lobos, por exemplo, em que esses elementos têm a
função estética de construir uma identidade simbólica brasileira na música. Apesar dessa
diferença, persiste o fato de que, nos dois repertórios, há elementos populares coexistindo com
técnicas da música erudita. Ao adotar uma abordagem construtivista da interpretação (Nattiez,
2005), o intérprete deverá lidar com os dois aspectos, as relações que se estabelecem entre eles e
as conseqüências para a realização sonora de cada composição.
Nas respostas dos entrevistados, as implicações da defasagem dos códigos para a
construção da interpretação da música brasileira, popular e nacionalista, foram discutidas
principalmente em termos dos estereótipos sonoros associados a práticas interpretativas de
pianistas de concerto e pianistas populares.
Para Vernet, cada composição está associada a um contexto e a dicotomia concerto e
popular se manifesta no estilo interpretativo.
A dicotomia existe até por uma questão de mercado. O músico popular e o erudito lidam com
públicos diferentes. Não tem jeito. Existe essa dicotomia e oposição entre música séria e música
popular. Música cerebral e música intuitiva. E isso se reflete até na maneira de tocar. Chega lá no
Municipal pra tocar rasgando tudo e vê se eles vão gostar (Vernet, entrevista, 2005).
85
Os estereótipos de interpretação da música de concerto e da música popular colocam a
defasagem dos códigos em evidência e remetem a aspectos sociais de classe e ambiente. A
declaração de Vernet, “chega lá no Municipal pra tocar rasgando tudo e vê se eles vão gostar” é
uma expressão que destaca a especificidade social das formas de execução. Sandroni (2001)
explica o sentido da palavra “rasgado” empregada em fontes do século passado (XX). Referia-se
inicialmente a uma técnica de execução da viola em que o instrumentista tocava todas as cordas
ao mesmo tempo com todos os dedos e não uma com cada dedo, como no ponteado. Ao utilizar a
viola como instrumento de concerto, tocava-se com o ponteado enquanto no repertório popular,
empregava-se o “rasgado”. Além de se referir à técnica, a palavra indica também caráter
expressivo.
A descrição do “rasgado” do ponto de vista técnico é perfeita. Ao mesmo tempo, o que é a
“perdição de muita gente séria” não é a técnica em si, mas a expressão afetiva que dela se
desprende. A origem dessa expressão afetiva é a carga semântica conferida ao “rasgado” pelo
repertório que (no Brasil) lhe é peculiar. A palavra “rasgado” designa ambas as coisas. É por causa
dessa associação com um repertório já ele mesmo associado aos negros (fado, cateretê e samba)
que a presença da palavra no início da Modinha pode ser significativa (Sandroni, 2001: 50-51).
Há vários estereótipos sonoros no meio musical e como exemplo disso, Charles Rosen
menciona a oposição entre a bela sonoridade romântica e a seca sonoridade contemporânea.
Existe um ideal de bela sonoridade ao qual os pianistas aderem sem discernimento, e no qual
envolvem todas as obras, sejam elas de Bach, Mozart, Beethoven, Schumann, Schoenberg ou
Stravinsky... Porém, certas obras exigem sonoridades não tão bonitas e legatos menos cantados.
Enquanto se ouve com freqüência uma bela sonoridade usada de modo indiferente, eu já sofri a
conseqüência do preconceito contrário por ocasião de uma gravação. Estávamos começando a
gravar Schoenberg e, como teste, toquei uma página; fui ouvir, estava horroroso! Perplexo, pedi
uma explicação, e o engenheiro disse que mudava a posição do microfone em obras
contemporâneas, para obter uma sonoridade mais moderna e seca. Tive que explicar que desejava
gravar o Schoenberg com a mesma sonoridade romântica que ele havia conseguido para o
Schumann, desejo esse que o próprio Schoenberg compartilharia, ao contrário, talvez, de
Stravinsky. O engenheiro foi muito amável e me restituiu a sonoridade romântica desejada (Rosen,
1993:68-69). 18
18
Il existe un idéal de belle sonorité auquel les pianistes adhèrent sans discernement, et dont ils enrobent toutes les
ceuvres, quélles soient de Bach, de Mozart, de Beethoven, de Schumann, de Schoenberg ou de Stravinsky. . . Or,
86
Um tipo de composição remete a um estilo interpretativo. Santuza Naves exemplifica isso
através do que chama de “semi-eruditismo” da produção de alguns compositores populares, que
adotavam uma linguagem excessiva e rebuscada nas letras das músicas. Em Divina Dama, de
Cartola, o estilo adotado pelo intérprete e o arranjo orquestral se adaptam à composição.
A linguagem excessiva de Divina Dama, a propósito, é perfeitamente adequada à interpretação
impostada que lhe foi dada por Francisco Alves, assim como o arranjo orquestral da Odeon,
bastante convencional, que deu pouca ênfase ao ritmo que entende como samba. Esse tipo de
composição – e a forma como é apresentada ao público – atesta a distância que separa a linguagem
musical de Cartola da coloquialidade do dia-a-dia (Naves, 1998:155).
Naves também exemplifica essa questão com Aquarela do Brasil. “O estilo monumental de
Aquarela do Brasil não se restringe à letra. A música, tal como o arranjo que a acompanha,
corrobora o clima solene que lhe empresta o texto” (Naves, 1998:163), o que talvez explique seu
sucesso internacional. Por outro lado, ao interpretar A malandragem de Bide19, “Francisco Alves
parece se dar conta de que a composição pede um registro mais coloquial, diferente do tom grave
que costuma adotar em diluições do bel canto” (Naves, 1998:99). Além da própria temática da
malandragem, “a letra – carregada de gírias e construída sem maiores preocupações com
coerência – e a música não apresentam nenhuma sofisticação, nem tampouco trazem marcas de
uma autoria individual, assemelhando-se às criações coletivas que caracterizam os sambas
produzidos no terreiro da Tia Ciata” (Naves, 1998:98-99). Nos exemplos de Naves, a sugestão do
certaines ceuvres exigent des sonorités moins belles, des legatos moins chantants. Alors qu’il est fréquent d’entendre
une belle sonorité appliquée indifféremment, il m’est arrivé de subir la conséquence du préjugé inverse lors d’un
enregistrement. On commence à enregistrer Schoenberg et, pour faire un essai, je joue une page; je l’écoute C’est
affreux!Perplexe, je demande une explication et l’ingénieur m’explique qu’il change le placement du micro pour les
ceuvres contemporaines afin d’obtenir une sonorité plus moderne, plus sèche. Il a fallu que je lui explique que je
souhaitais enregistrer le Schoenberg avec la même sonorité romantique qu’il avait réussi à obtenir pour le Schumann,
um souhait que Schoenberg lui-même aurait partagé, par opposition peut-ètre à Stravinsky. L’ingénieur a été très
aimable et m’a rendu la sonorité romantique espérée.
19
Alcebíades Barcelos (1902-1975), sambista do Estácio. Fez parte do grupo responsável pela modernização do
samba que até aquele momento era amaxixado. Junto a Mano Edgar, Ismael Silva, Brancura e Baiaco fundou, em
1928, a Deixa Falar, primeira escola de samba do Brasil. Foi o primeiro sambista do Estácio a ter um samba gravado
(A malandragem, em 1927 por Francisco Alves) e isto o incentivou a deixar a profissão de sapateiro e atuar no meio
artístico. Passou a trabalhar como ritmista da Rádio Nacional no fim da década de 1930, ao lado de Marçal, seu
principal parceiro musical.
87
estilo interpretativo se deve mais ao texto. Em músicas instrumentais, como o repertório enfocado
neste trabalho, a partitura pode sugerir um estilo interpretativo para o músico.
É um erro bastante difundido acreditar que, para um músico, a partitura, a apresentação gráfica,
seja meramente uma indicação que lhe mostra que notas devem ser tocadas, a que velocidade, com
que intensidade e com que nuanças expressivas. A notação, tanto das vozes separadas quanto da
partitura complexa, possui, além do conteúdo puramente informativo, uma irradiação sugestiva,
uma magia à qual nenhum músico sensível pode escapar, querendo ou não, tendo ou não,
consciência disso (Harnoncourt, 1998:224).
A sugestão do estilo interpretativo implícito em uma partitura, conforme aponta
Harnouncourt, pode ser ilustrada em exemplos musicais discutidos no capítulo 2 deste trabalho.
Nesse contexto, essa apreciação pode ser feita em termos da oposição entre estética
“monumental” e estética da “simplicidade” proposta por Naves. Em alguns trechos de Impressões
Seresteiras (exemplos musicais 18 e 20), os arpejos, acordes, oitavas e a escrita em planos
sonoros sugerem um estilo interpretativo “monumental”, enfatizando as técnicas de execução do
pianismo de concerto. Já na 5a Valsa de Esquina (exemplo musical 21), a escrita remete à estética
da “simplicidade”. Em Impressões Seresteiras, há procedimentos pianísticos associados ao
“monumental”, mas está presente também a seresta, o gênero “capadócio” (Guanabarino apud
Lamas, 1987- 88:63). É justamente a ocorrência dessa defasagem dos códigos em diversas
composições brasileiras, populares e nacionalistas, para piano, discutidas do ponto de vista
teórico e analítico no capítulo 2, que fundamenta a formulação de questionamentos sobre o
tratamento que deve ser dado a esse aspecto no processo de construção da interpretação. Como
construir a interpretação, levando em conta a defasagem dos códigos? Deve-se privilegiar as
técnicas da música de concerto? O pianista deve se aproximar do estilo interpretativo da música
popular?
88
Alguns entrevistados retomaram as afirmativas sobre relevância de conhecer as fontes
primárias dos elementos populares. Para Barancoski, o músico precisa conhecer os gêneros que
estão inseridos no repertório que irá executar.
Principalmente na música brasileira, todo aquele repertório que tem influência direta do popular,
seja uma estilização de uma dança, ou seja uma coisa mais direta, é importante o intérprete
conhecer. Por exemplo, vai tocar um jongo, um batuque, tem que ter uma idéia sonora do que é
aquilo (Barancoski, entrevista, 2005).
Caldi recorre à analogia com o aprendizado de línguas estrangeiras para descrever o
processo e o resultado que podem ocorrer quando o intérprete busca fontes primárias e
secundárias de conhecimento sobre os materiais com os quais terá que lidar na execução. Essa
analogia é interessante no caso de Caldi que, sendo argentina, guarda um sotaque ao falar
português.
Você tem que ouvir, tem que estar perto da fonte. Quando você faz um trabalho você tem várias
fontes: as fontes primárias e as fontes secundárias. [...] De que maneira as pessoas cantam? De que
maneira as pessoas tocam? Eu tenho que me impregnar disso durante muito tempo. É como
aprender a falar uma língua. Primeiro você vai ouvir, você não vai conseguir falar. Depois, mesmo
guardando um sotaque como o meu, você começa a falar. [...] Enquanto você não fizer, não vai
chegar a lugar nenhum. Tem que por a mão na massa e fazer. Se você ficar como observador
apenas ou digamos assim, tirando conclusões de fontes secundárias, isso pode ser muito bom.
Algumas pessoas podem chegar a conclusões interessantes. Mas em se tratando de prática, a gente
tem que ir à fonte primária (Caldi, entrevista, 2005).
Vasconcellos concorda que se deve ir à fonte primária. O “arremedo” e a “imitação
desconjuntada” mencionados por ele manifestam a defasagem dos códigos na interpretação.
Sempre sugiro que se beba na fonte do original para pegar o "espírito da coisa". Se um pianista tem
que tocar algo que se baseie na música popular é bom que ele conheça aquela linguagem pois de
outra forma pode soar como um arremedo, uma imitação desconjuntada. Não quero dizer que todo
mundo tem que tocar a música popular, mas pode ser um grande recurso de interpretação se essa
pessoa puder vivenciar esse estilo (Vasconcellos, entrevista, 2005).
Santos Neto também utiliza a analogia com o falar em várias línguas e enfatiza que a
pessoa é capaz de se expressar, mesmo com sotaque. Dentro dessa visão, as limitações do
89
pianista de concerto ao lidar com materiais populares inseridos em peças do seu repertório
(defasagem dos códigos) podem ser superadas e uma interpretação convincente pode ser
construída.
Sobre a diferença dos “códigos”, é como falar várias línguas; a partir do momento em que se tem
uma base definida, podemos nos expressar em qualquer delas, respeitando sua sintaxe e gramática,
mas sem abrir mão do sotaque que caracteriza a individualidade. Tenho muita experiência em
trabalhar com músicos de formações muito diversas, e posso afirmar que, se a mente estiver aberta,
não há obstáculo (Santos Neto, entrevista, 2005).
Renato Vasconcellos menciona um exemplo interessante, embora restrito à própria área
popular de implicação estética do sotaque musical do intérprete. Segundo ele, ao tocar com norteamericanos, conseguia atrair interesse para sua execução quando inseria elementos da música
brasileira no jazz. “Os gringos não ligavam muito para o fato de eu ter dificuldades na leitura a
primeira vista, eles gostavam da minha fluência na linguagem do Jazz e como eu trazia os
elementos da MPB para o Jazz” (Vasconcellos, entrevista, 2005).
Outro aspecto do tratamento da defasagem dos códigos na interpretação que foi discutido
por alguns entrevistados é a própria relevância de se recorrer à fonte primária do elemento
popular inserido em cada obra. Para Gandelman, “é preciso distinguir quando realmente você
precisa recorrer ao popular e quando você não precisa. Depende muito de quem é o compositor
que você está tratando, que obra você está tocando” (entrevista, 2005). Para Madeira, o próprio
intérprete deve estabelecer essa distinção. “Eu acho que o limite é o próprio intérprete que vai
saber. Porque depende muito do que ele tenha de informação anterior. Porque esses códigos são
diferentes para cada pessoa. Até o entendimento desses códigos é diferente” (entrevista, 2005). A
ênfase de Gandelman recai sobre os níveis poiético (compositor) e imanente (obra em si) e a de
Madeira sobre o nível estésico (intérprete).
90
Antônio Adolfo também enfatiza a intenção do intérprete, conferindo-lhe liberdade e
responsabilidade pela decisão de como tratar a defasagem dos códigos. Para o entrevistado,
recorrer ao popular é um recurso disponível, mas não obrigatório. “Depende do seu objetivo,
porque ninguém precisa se aproximar do popular. [...] O popular, quando realmente vindo do
convívio com as diferentes culturas populares, tem uma execução espontânea e pode ajudar muito
quando se executa peças construídas sobre motivos populares” (Adolfo, entrevista, 2005).
A discussão sobre o tratamento da defasagem dos códigos evidencia a natureza polissêmica
da interpretação. Embora a relevância de “ir à fonte” e conhecer os estilos não possa ser
desprezada, existem várias possibilidades. Rosen exemplifica as possibilidades de interpretação,
mencionando os estilos alemão e francês do século XVIII.
Eu acho que é importante ter conhecimento histórico, poder situar o compositor em sua época,
conhecer os instrumentos daquele tempo, e que o intérprete deve ser influenciado por estes
conhecimentos quando toca; eu considero entretanto que não é razoável exigir uma reconstituição
exata das interpretações e das sonoridades da época. A música sempre foi criada visando diversas
interpretações. No século XVIII havia maneira francesa e alemã de tocar. Não havia razão para
considerar inaceitável uma execução francesa de uma obra de Bach! Mais tarde, sabemos que
Brahms estava perfeitamente satisfeito em escutar suas sinfonias dirigidas por regentes franceses.
Dizem mesmo que certa ária de uma ópera de Haendel, foi escrita para tal soprano ou tal tenor,
mas houve sempre os substitutos que se permitiam cantá-las diferentemente. Seria falsificar
completamente a função da música, pretender que só há uma interpretação histórica, imutável e
definitiva (Rosen, 1993:50).20
Por vezes, a obra de Villa-Lobos tem sido interpretada estabelecendo relações explícitas
com a música popular. O Projeto Aquarius realizou um concerto na praia de Copacabana apenas
com peças de Villa-Lobos (2005). As peças foram apresentadas com arranjos que inseriam
20
Je trouve qu’il est important d’avoir des connaissances historiques, de pouvoir situer le compositeur dans son
époque, de connaître les instruments du temps, et que l’interprète doit faire intervenir ces connaissances dans son jeu;
je considère cependant qu’il n’est pas raisonnable d’exiger une reconstitution exacte des interprétations et des
sonorités de l’époque. La musique a toujours été créée en vue d’interprétations diverses. Au XVIII siècle il y avait
des façons française et allemande de jouer. Aucune raison de tenir pour inacceptable une exécution française d’une
ceuvre de Bach! Plus tard, on sait que Brahms était parfaitement satisfait d’entendre ses symphonies dirigeés par des
chefs français. On a beau dire que tel air dans un opéra de Haendel a été composé pour telle soprano ou tel ténor, il y
a toujours eu des remplaçants qui permettaient d’entendre le même air, chanté autrement. C’est fausseur entièrement
la fonction de la musique que de prétendre qu’il n’existe qu’une seule interprétation historique, immuable et
définitive.
91
instrumentos da música popular, ausentes na instrumentação de Villa-Lobos. No Canto do Pajé,
por exemplo, foi utilizada a zabumba. Na execução dos Choros no. 1, foram inseridos um
piccolo, pandeiro e violão. Havia diferenças entre os momentos executados somente pela
orquestra e os momentos executados pelos músicos populares. Os músicos Mingo de Araújo,
percussionista, e Mauro Senise, no piccolo, improvisaram ao longo da execução, inserindo
trechos de Apanhei-te cavaquinho, Um a zero e outros choros conhecidos. Quando a orquestra
retomou, a defasagem dos códigos se manifestou pelo diferente tratamento rítmico e pela
sonoridade dos instrumentos. A associação entre determinados instrumentos e estilos também
influencia essa percepção. O choro, por exemplo, é associado a violão, cavaquinho, pandeiro,
saxofone, flauta e não a um som de orquestra sinfônica. E, por fim, foram executadas duas peças
com a participação do grupo de percussão baiano Olodum: o Choros n. 10 e Invocação em
Defesa da Pátria. Ao mesmo tempo em que as batidas do Olodum geravam uma sensação de
estar mais próximo da fonte, havia uma certa estranheza. Sem dúvida, a música ficou muito
vibrante, mas foi difícil conciliar as batidas rítmicas do Olodum com a orquestra. A própria
presença do Olodum no palco com seus tambores coloridos, roupas informais e movimentos
corporais ao lado de uma orquestra uniformizada com roupas sociais e músicos “parados”
deixaram evidentes as diferenças. Essas diferenças podem ser vistas com estranheza, mas
também como algo positivo, por abrirem novas possibilidades interpretativas, estabelecendo
diálogos e quebrando preconceitos.
O intérprete, assim como o compositor, pode adotar o caminho da experimentação,
chegando até mesmo a extrapolar estereótipos sonoros. Dependendo do que quer expressar, o
intérprete pode “chegar ao Municipal rasgando tudo”. Harnoncourt discorda da concepção da
música apenas como algo “belo”, um ornamento. Para ele, “não se trata de se deixar envolver
pelos sons, mas sim de escutar ativamente” (Harnoncourt, 1998:105). O ouvinte não deve se ater
92
à beleza ou feiúra21, mas à compreensão da obra como um todo. Segundo Harnoncourt, “[hoje em
dia] não queremos mais ser transformados pela música, mas unicamente gozar belas sonoridades”
(1998:113). Para Harnoncourt, tanto o intérprete como o ouvinte precisam conhecer as várias
linguagens da música e assim o intérprete poderá construir um discurso, cuja significação será
compreendida22.
O domínio técnico da música por si só não é suficiente. Creio que quando conseguirmos que os
músicos aprendam a linguagem, ou melhor, as várias linguagens dos vários estilos musicais e que,
na mesma medida, os ouvintes possam ser levados, por sua formação, a compreender esta
linguagem, esta prática musical embrutecedora e estetizante não será mais aceita, bem como a
monotonia dos programas de concertos... Como conseqüência, a separação entre “música popular”
e “música séria”, assim como entre a música e seu tempo, desaparecerá, e a vida cultural irá
encontrar novamente a sua unidade (Harnoncourt, 1998:33).
Se bem que oposição entre sonoridades “refinada” ou “rasgada”, “monumental” ou
“simples”, remete à dicotomia música de concerto e música popular e o ouvinte compreende as
implicações dos dois tipos de sonoridade, sob o ponto de vista social. O próprio conceito de
defasagem dos códigos, conforme definido por Wisnik (1982), enfatiza o aspecto social, em que
se verifica a dificuldade de compreender o outro, ou seja, a dificuldade de lidar com as
manifestações estéticas de outra classe social.
Dentro dessa perspectiva social, a construção da interpretação do repertório da música
brasileira para piano, nacionalista e popular, examinado neste trabalho pode ser considerada um
esforço no sentido de diminuir a dicotomia entre os estereótipos de execução e apreciação da
música de concerto e da música popular, apregoado por Harnouncourt.
21
Mas o que é belo? O que é feio? Chega-se aqui a um debate estético interminável. Mas o belo utilizado por
Harnoncourt neste contexto é um padrão sonoro difundido e aplicado em todas as obras desde Bach até Bartók.
22
Pode ser que o leitor discorde de Harnoncourt, por considerar que não é possível normatizar a escuta. Se bem que
Harnoncourt, a meu ver, não tem uma postura elitista de “educar o povo para ouvir a boa música”. Podemos aprender
a ouvir diferentes estilos, independente de preferências estereotipadas.
93
3.4 – Música de concerto e música popular: um intercâmbio.
O propósito central dessa pesquisa foi discutir o processo de construção da interpretação do
repertório da música brasileira para piano, popular e nacionalista, que apresenta a coexistência de
elementos da música de concerto e da música popular. Entretanto, a discussão mais geral sobre a
dicotomia entre música de concerto e música popular perpassa todos os capítulos deste trabalho.
Nas entrevistas, esse tema também foi muito abordado. Mas o que é música de concerto? O que é
música popular? A dificuldade de estabelecer uma fronteira ou mesmo conceituar os termos é
evidenciada nessa declaração, em que o entrevistado parece considerar o grau de definição dos
elementos da execução na partitura como critério para estabelecer a fronteira, ao mesmo tempo
em que questiona o uso do termo “popular”:
É engraçado quando se fala em chorinho. Eu considero o chorinho uma música clássica brasileira.
É um negócio bem simples. É uma peça escrita. O que que é uma música popular? Por que aquilo é
considerado música popular? Nunca entendi isso. Você pega uma harmonia e toca de maneira
popular. Agora uma forma escrita como o choro, por exemplo. [...] Chiquinha Gonzaga... Cara, se
tiver escrito é uma peça escrita. Ritmicamente tem os mesmos elementos. Popular por quê? Porque
veio, sei lá, do povo. Mas a música erudita veio de onde? Marciano? Veio de Vênus? (Alves,
entrevista, 2005).
Santos Neto não aceita a separação entre música de concerto e música popular, que, para
ele, é um mito.
Prefiro não pensar nestas divisões da música, que são artificiais e não correspondem à realidade
universal da linguagem musical. [...] Da maneira com que vejo a música, as influências são
constantes e naturais. [...] Creio que enquanto o músico continuar acreditando no mito do “erudito”
e do “popular”, ele vai estar se enganando e perdendo tempo (Santos Neto, entrevista, 2005).
Madeira também enfatiza a dificuldade de estabelecer limites entre concerto e popular, na
música. “Eu acho que um assunto vai entrando por dentro do outro. Não tem muito como você
delimitar. A gente às vezes é obrigado a estabelecer um limite até por conta da nossa didática e
do próprio limite que nós temos” (entrevista, 2005).
94
Dois entrevistados, que são pianistas de formação na música popular, apontaram outro tema
relacionado à discussão sobre a dicotomia entre música de concerto e música popular. Para eles,
pode existir preconceito do pianista de concerto em relação à música popular, uma conseqüência
da falta de diálogo entre as duas áreas. O preconceito também é mencionado por Alves.
Eu acho que existe um preconceito muito grande do músico erudito com o popular porque o
músico erudito não consegue tocar bem música popular. A não ser raras pessoas. Por quê? Existe
uma escola de música popular. Assim como tem uma escola de música erudita. [...] Não é uma
questão de “ah! Eu não dou pra isso”. É uma questão de estar preparado (Alves, entrevista, 2005).
Este trabalho não pretende investigar a existência desse preconceito, como na época de
Nazareth e quanto já diminuiu, até por ser difícil medir o nível de um preconceito. Embora, as
respostas de Alves e Tiso mencionem o preconceito, os intérpretes eruditos, como Gandelman e
Barancoski não mencionam. Admitiram, inclusive, seu desconhecimento da área de popular.
Tiso considera banal a dicotomia concerto-popular e afirma que trabalha na fronteira entre
os dois. Para ele, é viável estabelecer um diálogo entre as duas áreas: o pianista de concerto se
aproximar da música popular e vice-versa.
Hoje em dia o que me interessa é o trabalho nessa fronteira entre a música popular e a música
erudita que eu acho até banal no Brasil ter essa discussão porque a música popular brasileira é tão
forte tanto na questão folclórica do povo quanto na formação dos seus compositores populares [...]
A música popular brasileira é pródiga em compositores que conhecem, que sabem harmonizar e
que sabem fazer melodias. [...] Mas é claro que um pianista erudito teria que se aproximar dos
músicos populares. [...] Então, eu acho que é viável um pianista erudito se aproximar do popular e
o popular se aproximar do erudito, porque o pianista popular também precisa da técnica para
mostrar sua música (Tiso, entrevista, 2005).
Nas respostas dos entrevistados, aparece a noção da música de concerto associada à técnica
e da música popular associada à espontaneidade, improvisação e criação. Alves, que é pianista
popular, afirmou ter estudado “técnica erudita”. O entrevistado parece se referir ao estudo dos
tipos de toque (ex: staccato de dedo, staccato de pulso, portato, legato) e de movimentos (de
dedo, de mão, antebraço, braço inteiro) transmitidos sistematicamente através de livros e aulas de
95
pianistas da música de concerto23. Barancoski reforça essa idéia quando afirma que antes de
estudar seriamente o piano, tinha uma relação lúdica com o instrumento e improvisava um pouco.
Segundo ela, a improvisação seria uma atividade atualmente relacionada à música popular. Para
Antônio Adolfo, quando se toca música popular, “sem dúvida, o prazer de poder improvisar, de
poder ‘errar’ uma nota, de poder variar, compor, etc... é inigualável, já que é bem mais
espontâneo” (entrevista, 2005). Curioso é notar que Bach, Beethoven, Mozart e Liszt eram
grandes improvisadores. Hoje em dia seriam considerados músicos populares? Para Tiso, “o
piano erudito já vem com a frase pronta. Embora Chopin e Bach fossem grandes improvisadores,
o que ficou deles foi o que está escrito nas partituras. E são coisas difíceis de tocar, muito bem
elaboradas e precisam de um estudo técnico” (entrevista, 2005).
Para Alves, música de concerto é uma peça escrita, em que os elementos da execução são
em grande medida pré-definidos, enquanto que na música popular existe a criação. Ainda
segundo o entrevistado, a criação em música de concerto seria uma atividade restrita aos
compositores. A análise de Elisabeth Travassos sobre o tema virtuosismo na obra de Mário de
Andrade tem um paralelo com as afirmações de Alves. Há, nos escritos de Andrade, uma
oposição entre criação e interpretação, com valorização do primeiro termo (1997:74). A criação
nesse caso torna-se sinônima de composição e improvisação. “O cantador não é um intérprete da
mesma forma que Guiomar Novaes ou Lúcia Branco porque desconhece a separação entre criar e
interpretar, que tantos problemas causava na música culta” (1997:185). Segundo Harnoncourt, “o
espaço criador do intérprete, através do qual cada execução tornava-se um acontecimento único,
não renovável, é hoje em dia totalmente estranho ao músico” (1998:47-48). A expressão “espaço
criador do intérprete” parece sugerir a prática da improvisação.
23
Por exemplo, livros como Princípios racionais da técnica pianística, de Alfred Cortot; A técnica pianística: Uma
abordagem científica, de Cláudio Richerme e A moderna execução pianística, de Karl Leimer.
96
Contudo, para outros autores há uma recriação na interpretação de uma peça musical,
mesmo quando escrita na íntegra. Em certas artes, como escultura, arquitetura e cinema, a criação
ocorre definitivamente. Por outro lado, as artes chamadas de temporais precisam ser
constantemente recriadas, como uma peça de teatro, música ou dança. Cada execução é única,
podendo ter semelhanças com execuções da mesma obra, mas nunca idêntica. Nattiez concorda
com a noção de recriação ao adotar uma posição construtivista no que diz respeito à
interpretação. “Da mesma maneira que o processo composicional leva progressivamente à
existência de alguma coisa que antes dele não existia, os atos de interpretação e enunciação do
juízo crítico engendram formas simbólicas que modificam as configurações da paisagem cultural,
intelectual e estética” (2005:153). Não há o termo “recriação” na análise de Travassos, mas a
seguinte frase abre um precedente para admitir-se o papel criativo do intérprete: “ele [o virtuose]
não é – ou não é completamente – um criador” (1997:65). A recriação não foi, portanto, ignorada,
mas preferiu-se adotar o termo criação para improvisação e composição.
Segundo Alves, as peças de Nazareth e Chiquinha Gonzaga que os pianistas tocam em
recitais não podem ser consideradas música popular por serem peças escritas. Todavia, não é
possível traçar uma linha divisória entre música de concerto como peças escritas e música
popular como peças em que há improvisação. Vernet comenta essa questão:
Não sei qual o motivo de se considerar a espontaneidade, criação e improvisação como algo que
vem do popular. Na música barroca existia uma cifragem. A cifragem determinava uma harmonia,
mas sobre esta harmonia havia uma liberdade de improvisação. Eles criavam ornamentações. O
que são as cadências nos concertos clássicos? (Vernet, entrevista, 2005).
Será que estudo formal e conhecimento da partitura diferenciariam músico popular e
músico de concerto? Na época das primeiras gerações de pianistas populares brasileiros, havia
essa distinção, embora houvesse músicos que mesmo tendo estudado eram chamados de
pianeiros, por tocarem composições populares.
97
O termo “pianeiro”, com um teor originariamente depreciativo, é usado no Rio de Janeiro do final
do século [XIX] para designar o músico que toca o instrumento sem a formação exigida, em que se
requer tanto o conhecimento musical quanto o uso de partituras. O termo remete também ao
músico que, mesmo possuindo formação musical – como é o caso de Chiquinha – dedica-se a
interpretar ao piano composições populares, que permitem a prática do improviso (Naves,
1998:27).
O uso do verbo “permitir” na citação acima dá a entender que na música popular há a
prática do improviso, enquanto que na música de concerto, não. Vários exemplos podem ser
usados para argumentar a favor ou contra essa opinião. Embora, realmente a prática do improviso
não seja muito comum entre os intérpretes da música de concerto, há casos que ilustram a
continuidade dessa prática. Na interpretação da música barroca, é essencial o conhecimento da
improvisação. As cadências dos concertos clássicos são um momento do solista improvisar.
Embora a maior parte dos intérpretes atualmente toque cadências escritas, existem aqueles que
executam em instrumentos de época (“forte-piano”) e improvisam suas cadências. Alguns
professores, ainda hoje, exigem que seus alunos criem suas próprias cadências ao estudarem
concertos clássicos. Por outro lado, em algumas situações a prática do improviso não é bem
aceita. Conta-se que Luiz Eça era desclassificado de concursos de piano, quando improvisava na
execução de sonatas de Mozart. Nessas situações, um dos argumentos contra o improviso é a
questão de adequação estilística.
Na música de concerto, a liberdade do intérprete diminuiu na medida em que a escrita se
tornou gradativamente mais detalhada, com informações bastante precisas, sem necessidade de
improvisação para realização do resultado sonoro esperado. Esse processo remete a outro aspecto
da discussão sobre os estereótipos associados à formação do intérprete de concerto e do intérprete
popular: a importância dada ao conhecimento da notação musical.
Para Vernet, esse não seria um bom critério de diferenciação entre músicos de concerto e
músicos populares, embora adote uma posição bem clara na polêmica.
98
A leitura de partitura e estudo não diferencia músico erudito e popular. Pode haver um bom músico
intuitivo na música popular. Já no meio erudito isto não existe porque se trabalha de outra forma.
Ainda existe essa imagem de músico popular como boêmio, que acorda tarde, como músico que já
nasce pronto. Se você quer ser músico erudito tem que estudar, ter um aprendizado formal, mas
para ser músico popular, não (Vernet, entrevista, 2005).
Neste trabalho foi proposto um intercâmbio entre as duas áreas.
Em que o
conhecimento da música popular influencia o intérprete da música de concerto e vice-versa? Aqui
é importante repetir que, embora a proposta da pesquisa fosse restringir esse questionamento ao
processo de construção da interpretação da música brasileira, popular e nacionalista, para piano,
os entrevistados deram respostas de características mais generalizantes. São recorrentes em suas
declarações as seguintes associações: música de concerto – técnica, refinamento, disciplina e bom
gosto interpretativo; música popular – espontaneidade, liberdade, improvisação, riqueza rítmica.
Essas associações, embora estereotipadas, foram pontos de partida para comentários que
destacam os diversos aspectos que devem estar presentes na formação do músico, independente
do repertório que ele interprete.
Para Adolfo, sua formação como intérprete resultou da interação entre características que
ele associa à música de concerto ou à música popular. “A disciplina do erudito valorizou a
espontaneidade da música popular e vice-versa” (entrevista, 2005). Para Vernet, que teve
formação na música de concerto e atua como pianista popular, essa é uma questão complicada de
abordar por não ser tão objetiva, mas “em algum momento, haveria uma transposição entre essas
duas linguagens” (entrevista, 2005). Tarquínio afirma que a prática do popular ajuda se o
intérprete perceber certos aspectos que também estão presentes na música de concerto e de que
maneira são utilizados.
As questões práticas que você levanta estão presentes tanto na música popular quanto na erudita. A
prática popular pode ajudar um intérprete ao executar uma peça erudita desde que ele perceba estas
questões na prática popular e de que maneira estas práticas estão sendo utilizadas na obra erudita.
Ao perceber uma determinada característica popular em uma obra erudita o intérprete deve ainda
99
contextualizar esta prática relacionando-a com outros parâmetros como harmonia, polifonia, forma,
caráter da obra (Tarquínio, entrevista, 2005).
Barancoski enumera elementos das influências que podem ocorrer entre práticas da música
de concerto e da música popular.
Eu diria que aspectos dos dois lados se interferem mutuamente. A prática de erudito dá ao músico
popular um refinamento maior, com detalhamento grande quanto a sutilezas refinadas do toque
pianístico que teriam relação com agógica, articulação, refinamento da sonoridade. Quem vem do
popular pro clássico, acho que tem uma intimidade maior com o instrumento, uma desenvoltura
maior na prática de improvisação e tem um balanço rítmico natural [...] Quem vem do popular tem
facilidade nesse tipo de coisa, tem também uma facilidade de entendimento harmônico, porque lida
muito com cifra. E isso é primordial até pra entender a estrutura de uma obra, de uma sonata, do
que seja. Prática de conjunto também é de grande contribuição. No caso do piano, pelo contrário. O
pianista trabalha muito sozinho. [...] Mas a prática de conjunto, de tocar com outras pessoas, eu
acho que dá inclusive uma precisão rítmica maior. Eu não digo nem só em música brasileira
(Barancoski, entrevista, 2005).
Roberto Alves concorda com Barancoski. Para ele, seus alunos que vêm da música de
concerto possuem muita dificuldade rítmica e harmônica.
Eu tenho alunos de música erudita, estudando popular comigo que vêm com uma dificuldade
rítmica e harmônica absurda. Harmonia não existe. Eu não consigo entender como é que o músico
erudito estuda escala, estuda as teclas e não consegue entender o que a escala tem a ver com as
teclas (Alves, entrevista, 2005).
Embora Alves tenha se expressado de maneira exagerada (“harmonia não existe”),
generalizante (“o músico erudito”) e até mesmo pitoresca (“estuda as teclas e não consegue
entender o que a escala tem a ver com as teclas”), é possível entender as questões abordadas em
sua resposta. O entrevistado parece se referir aos problemas de articulação teoria e prática na
formação do pianista de concerto, como, por exemplo, a dificuldade de relacionar a execução de
escalas com suas implicações harmônicas.
Para Vernet, a prática do popular é enriquecedora, é outro tipo de aptidão. Sua resposta
enfatiza o entendimento harmônico, aspecto já mencionado por Barancoski e Alves.
100
Acho que a prática do popular é enriquecedora e todos deveriam fazer. Você vai trabalhar com
cifras, funções harmônicas, improvisação, uma outra forma de representação. [...] Os professores
de erudito no estudo de uma sonata não falam das funções. [...] Até fala, mas só em relação aos
temas e o aluno não tem consciência daquela harmonia e do uso das escalas (Vernet, entrevista,
2005).
Kodama, autora da área de educação musical, também aponta a falta de entendimento
harmônico como lacuna na formação do músico de concerto.
A grande maioria dos estudantes de música do Brasil não gosta de teoria musical, pois geralmente
não lhes é dado o conhecimento da sua utilidade no aprendizado no instrumento. Um exemplo
típico é as escalas. Os alunos são muitas vezes obrigados a aprender todas as escalas maiores e
menores, mas mal sabem o que são escalas, por que elas são importantes e muito menos como e
quanto elas facilitam o estudo, por isso não dão a devida importância à prática destas (Kodama,
2000:88).
Para Alves, a prática do popular liberta de estereótipos interpretativos da música de
concerto, em termos de fraseado, timbre e dinâmica.
Eu acho que quando você pega os elementos populares você sai principalmente de uma maneira
estética de tocar. Porque quando você pega o repertório erudito, passa por um caminho que já foi
experimentado e fica ritmicamente muito limitado. Eu acho que a música popular [...] abrange mais
caminhos. [...] As regras não são absolutas (Alves, entrevista, 2005).
Essa resposta pode ser relacionada à afirmativa de Barancoski sobre a intimidade que o
pianista popular desenvolve com o instrumento. Essa intimidade com o instrumento pode
decorrer de práticas de experimentação e improvisação. Para Guest, “deitar a mão no instrumento
impunemente e arriscar é o começo de tudo... e a linha de chegada” (1996:5).
Madeira e Caldi destacam aspectos em que o estudo da música de concerto pode contribuir
para o crescimento do pianista: uso do pedal e controle das sonoridades. Enfatizam também que a
prática do popular proporciona liberdade e riqueza rítmica ao músico.
Entre os alunos que trabalharam comigo que tocam música popular, eles fazem um diferencial,
porque tiveram formação erudita muito boa. Desenvolveram um pianismo muito bom, têm uma
variação de sonoridade, de trabalho com pedal. [...] A música popular dá uma riqueza e uma
liberdade e um trabalho rítmico muito rico [...] É uma coisa que é aprendida, que é trabalhada, mas
que não é tão simples como parece (Caldi, entrevista, 2005).
101
O pianista popular que trabalha a maior parte do tempo com isso, mas que tem uma formação
erudita, geralmente ele tem uma sonoridade melhor e sabe usar o pedal melhor. E o pianista erudito
que tem esse gosto pela música popular, ele às vezes consegue ter um suingue mais natural para
essas obras que são ritmicamente complexas. Vamos resumir desta maneira. Mas isso tem muitas
variantes (Madeira, entrevista, 2005).
As afirmativas de Tiso sobre o uso do pedal na música popular contradizem as observações
anteriores sobre esse aspecto da execução pianística. Para ele, o pedal é evitado pelo pianista
popular por razões estilísticas.
O uso do pedal é mais da música erudita. O suingue do piano brasileiro, por exemplo, ele pede o
não uso do pedal. Mas é claro que o pianista para fazer duas mãos, por exemplo, com suingue, ele
deve evitar o pedal para não ficar legato o tempo todo. Em compensação, ele tem que ter técnica
bastante para fazer o máximo de legato na mão direita (Tiso, entrevista, 2005).
Santos Neto foi o único entrevistado que se recusou a aceitar a dicotomia concerto versus
popular, na música. O repertório da música brasileira, popular e nacionalista, para piano abordado
nesse trabalho aponta para a necessidade de um intercâmbio entre as duas vertentes para que o
músico possa construir a sua interpretação de maneira mais rica. Entretanto, o ensino formal de
música atualmente dá pouco espaço para esse tipo de intercâmbio. Embora o preconceito tenha
diminuído, a dicotomia ainda existe e o pianista de concerto, mesmo sem preconceito, acaba não
tendo oportunidades e orientação para tocar popular. O ensino de popular já existe em muitas
escolas de música, mas, em geral, o que se observa é que o estudante tem que optar por uma das
áreas. Na EMB (Escola de Música de Brasília), por exemplo, o pianista tem que escolher entre a
música de concerto ou música popular. Se o aluno optar por piano popular, terá que fazer alguns
semestres de “erudito”, reforçando o estereótipo de que no piano de concerto há mais técnica, que
nesse contexto, refere-se a determinadas capacidades mecânicas e utilização de sonoridades
específicas.
102
Caldi e Vasconcellos defendem que o pianista deveria ter uma formação paralela. “Houve
uma separação muito radical entre o que é popular e o que é erudito. Então, eu acredito que hoje a
formação de um músico tem que ser paralela. Acho que não deve existir separação” (entrevista,
2005). “Embora não seja o meu caso, sou um defensor da formação pianística que desenvolva a
bilateralidade, ou seja, que deixe toda a intuição de um jovem fluir, mas que também o incentive
a ler e conhecer os clássicos” (Vasconcellos, entrevista, 2005).
Para concluir toda essa discussão sobre a construção da interpretação da música brasileira,
popular e nacionalista, para piano, levando em conta os aspectos da questão rítmica e da
defasagem dos códigos e as opiniões dos entrevistados, é importante retomar a questão da
dicotomia entre música de concerto e música popular e os estereótipos de interpretação
associados a cada uma delas. Para Harnoncourt, deve haver uma libertação da maneira
“estetizante”24 de tocar e uma preocupação em conhecer as diversas linguagens da música. Para o
autor esse seria o caminho para que a vida cultural possa reencontrar novamente sua unidade,
deixando de existir a separação entre música de concerto e popular e também entre a música e seu
tempo. As afirmativas de dois entrevistados podem ser relacionadas diretamente com essas
conclusões de Harnoncourt: Alves (entrevista, 2005) afirmou que a prática do popular liberta de
uma maneira “estética” de tocar e abrange mais caminhos, enquanto que, para Vernet (entrevista,
2005) praticar o popular é um outro tipo de aptidão, uma outra linguagem.
A discussão do presente capítulo procurou estabelecer um diálogo entre música de concerto
e música popular, no que se refere à busca de alternativas e sugestões para o processo de
construção da interpretação de um repertório em que a relação entre as duas vertentes foi
24
A expressão “estetizante”, utilizada por Harnoncourt, relaciona-se à idéia de que os pianistas tendem a aderir ao
ideal da bela sonoridade romântica independente da obra ser de Bach, Mozart, Chopin, sem levar em conta o estilo e
época em que a obra foi concebida.
103
explorada pelos compositores. Pretende-se, assim, incentivar o enriquecimento da formação do
músico e contribuir para que a vida cultural encontre a unidade apregoada por Harnoncourt.
104
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho teve como finalidade discutir o processo de construção da interpretação
do repertório nacionalista brasileiro para piano, destacando a relevância do conhecimento e
prática da música popular nesse processo. Essa abordagem se justifica pelo fato de que na estética
nacionalista havia um projeto de construção de uma identidade nacional pela inserção de
elementos populares na produção dos compositores de música de concerto. Na verdade, a
discussão incluiu não apenas o repertório nacionalista, mas também outros exemplos de música
brasileira para piano que apresentam características populares grafadas, como as obras de Ernesto
Nazareth.
Inicialmente foi feita uma revisão bibliográfica sobre o piano na música brasileira e o
processo histórico de interação entre música de concerto e música popular, nesse instrumento.
Esse levantamento pode ser resumido em três pontos: O piano primeiramente era considerado
instrumento elitista, mas logo foi absorvido pela música popular; as trocas entre os dois tipos de
execução pianística aconteceram com a mediação das primeiras gerações de pianistas populares
do Brasil; os compositores nacionalistas passaram a inserir elementos rítmicos da música popular
para criar uma música com identidade nacional.
Os focos para a análise do processo de construção da interpretação desse repertório foram a
questão rítmica e a defasagem dos códigos. O ritmo, como afirmado anteriormente, é o aspecto
musical que identifica a obra como nacional. A defasagem dos códigos acontece devido à
105
inserção de elementos populares numa obra de concerto ou no caso de Nazareth, devido à relação
que sua obra possui com a música de Chopin.
A questão rítmica foi abordada a partir dos conceitos de cometricidade-contrametricidade e
de pulsação aditiva. Esses conceitos são mais adequados para se referir à rítmica brasileira do que
a idéia de síncope (Sandroni, 2001). Foram abordadas também as implicações sociais da questão
rítmica, principalmente no fim do século XIX, evidenciadas nos casos de preconceitos contra a
música popular, como o escândalo do maxixe nos salões que abria espaço para o gestual do negro
se manifestar num ambiente elitista.
A defasagem dos códigos (Wisnik, 1982) foi exemplificada nas obras de Nazareth e VillaLobos em paralelo com Chopin e Debussy. O projeto estético do nacionalismo musical continha
uma concepção evolucionista da utilização dos elementos populares, os quais seriam tratados
como matéria prima, mas lapidados com a técnica da música de concerto européia. A defasagem
dos códigos se caracteriza pela coexistência do “monumental” e do “simples”, do “sublime” e do
“vulgar”.
A questão rítmica e a defasagem dos códigos e suas implicações para o processo de
construção da interpretação da música brasileira, popular e nacionalista, para piano nortearam a
discussão empreendida em onze entrevistas com pianistas de formação e experiência variadas, na
música de concerto e/ou na música popular.
Quanto à questão rítmica, os entrevistados responderam perguntas sobre três aspectos:
resolução da rítmica brasileira em geral, compreensão da estrutura rítmica para além da barra de
compasso e polirritmia. O pianista de concerto resolve bem a rítmica brasileira? Essa pergunta
não encontrou resposta simplista. A dureza, a falta de suingue, de balanço e de “sentir” no corpo
foram apontadas como características presentes em determinados intérpretes. Alguns
entrevistados disseram que as dificuldades de resolução da rítmica estão em qualquer estilo e não
106
apenas na música brasileira. Outros afirmaram que a resolução depende do envolvimento auditivo
e prático com um determinado estilo. Quanto à compreensão da estrutura rítmica para além da
barra de compasso, houve praticamente um consenso: trata-se de um problema interpretativo
geral e não específico da rítmica brasileira, devendo ser solucionado pelo entendimento
fraseológico. Um dos entrevistados deu uma resposta mais particular, advertindo que, no caso da
música brasileira, deve-se dar atenção às síncopes (ou trechos contramétricos, já que síncope não
é um conceito adequado25) e acentos. Já para a independência das mãos na execução da
polirritmia são sugeridos a prática de conjunto e o exercício de imaginação orquestral. Assim,
seria possível assimilar tanto as partes separadas, como o “todo” que elas compõem. A
polirritmia é um problema não apenas motor, mas também auditivo; seu estudo não deve receber
uma abordagem mecânica. Em trechos polirrítmicos, uma das propostas é o estudo com
alternância das mãos, o que propicia a associação entre o ouvido e os movimentos. No caso da
polirritmia e compreensão da estrutura rítmica para além da barra de compasso os entrevistados
apresentaram propostas de soluções gerais que poderiam ser utilizadas em qualquer estilo e não
apenas na música brasileira. O estudo baseado na alternância de mãos, por exemplo, é uma
proposta de Heinrich Neuhaus que pode ser utilizada em qualquer música e que foi colocada
como aplicável no caso particular da nossa rítmica. Em relação à rítmica brasileira, é importante
o contato com a fonte, a experiência direta, a assimilação e a prática para que o ritmo seja
executado a partir da vivência significativa e não mecanicamente, com base em explicações
verbais isoladas do contexto musical. Os entrevistados sugerem a prática de percussão no samba
e outros gêneros populares brasileiros.
Quanto à defasagem dos códigos, a discussão permite concluir que o intérprete deve “ir à
fonte” e conhecer os estilos, mas há diversas possibilidades de interpretação. Em Impressões
25
O entrevistado usou o termo “síncope”. Para rever o conceito de contrametricidade, ver capítulo 2, página 28-29.
107
Seresteiras, por exemplo, há elementos românticos, impressionistas e da música popular, o que
pode gerar várias interpretações, enfatizando ora um aspecto, ora outro. Os entrevistados
propuseram uma analogia interessante da defasagem dos códigos com a prática de falar vários
idiomas. Mesmo com sotaque, a pessoa é capaz de se expressar. Ao explicitar essa analogia no
campo da interpretação musical, não seria razoável esperar que um único pianista domine
completamente todos os estilos da música de concerto e da música popular. Entretanto, o
intérprete pode estabelecer contatos com estilos nos quais não é especialista e construir
interpretações convincentes, mesmo mantendo as características básicas de sua formação
principal.
Neste trabalho, foi proposto um intercâmbio entre a música de concerto e a música popular
por considerar necessário estabelecer um diálogo entre as duas áreas no caso específico da
construção da interpretação do repertório abordado. Nas respostas dos entrevistados, entretanto,
havia a tendência à generalização e são recorrentes associações estereotipadas: música de
concerto está relacionada à técnica, ao refinamento, ao cuidado na elaboração da interpretação, à
disciplina, ao uso minucioso do pedal e à sonoridade meticulosamente planejada; música popular
está relacionada à espontaneidade, à liberdade, ao entendimento harmônico, à intimidade com o
instrumento, à riqueza rítmica, à improvisação, à criação e à intuição. Apenas um dos
entrevistados rejeita a dicotomia, afirmando que a distinção entre concerto e popular é um mito.
Os estereótipos aparecem de maneira secundária nas respostas dos entrevistados. Em minha
opinião, todas as características mencionadas devem estar presentes na formação do pianista,
independente do repertório no qual ele venha a se especializar.
Ao responder perguntas sobre a relação entre música de concerto e música popular, os
entrevistados mantiveram tendência a generalizações, optando por não restringir suas respostas à
108
música brasileira. Assim, o caso particular dos pianistas de concerto e populares do Brasil
conduziu à discussão de aspectos mais gerais.
As hipóteses iniciais deste trabalho – falta de ginga do pianista de concerto e existência do
preconceito de “vulgarização” quando os elementos populares são enfatizados na execução de
obras nacionalistas – mostraram-se relacionadas aos estereótipos generalizantes de dicotomia
entre música de concerto e música popular. Essas questões revelaram-se bem mais complexas,
tendo em vista a discussão teórica (autores) e empírica (entrevistas) apresentada nos capítulos 2 e
3. Embora alguns entrevistados tenham apontado “falta de ginga” até em concertistas renomados,
a questão das supostas limitações do pianista de concerto na interpretação da música brasileira
deve ser vista sob uma ótica mais ampla. A rítmica não é um problema presente apenas na música
brasileira, pois outros estilos como valsa vienense, polonaise ou mazurka também exigem
conhecimento de suas particularidades rítmicas. O fato é que qualquer que seja o repertório ao
qual o intérprete decida se dedicar, ele deverá buscar vivências que permitam a construção do
conhecimento necessário dessas particularidades. A hipótese do preconceito de “vulgarização”
em interpretações que enfatizam os elementos populares remete à discussão sobre os estereótipos
sonoros relacionados à música de concerto e à música popular. Em algumas situações, a
sonoridade “rasgada” do popular em um contexto de concerto pode incomodar o ouvinte, da
mesma maneira que a entrada do maxixe nos salões do século XIX incomodava por remeter à
figura do escravo e tudo que ela representava socialmente, guardando-se as devidas proporções.
Para concluir, apesar de este trabalho tratar de vários assuntos, a questão rítmica, a
defasagem dos códigos e o intercâmbio (entre concerto e popular) se articulam. Essa articulação
pode ser exemplificada por meio do tema da falta de ginga do pianista de concerto na
interpretação da música brasileira, popular e nacionalista. A falta de ginga evidencia limitações
na questão rítmica. Mas por que não se tem suingue? Devido à formação não ter propiciado o
109
contato com o outro código. Como solucionar essa dificuldade? Estabelecendo um diálogo mais
amplo e próximo entre as práticas interpretativas da música de concerto e da música popular.
110
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115
ANEXOS
Anexo 1 – Glossário
Arsis e thesis - termos usados respectivamente para tempos não acentuados e acentuados,
ou tempo fraco e tempo forte (dicionário Grove: 2001).
Compasso - divisão de um trecho musical em séries regulares de tempos (Med, 1996:114).
Contratempo - são notas executadas em tempo fraco ou parte fraca de tempo, sendo os
tempos fortes ou partes fortes dos tempos preenchidos por pausas. Omissão de notas nos tempos
fortes do compasso ou nas partes fortes do tempo. O contratempo desloca os acentos naturais
(Med, 1996: 146).
Modinha - canção lírica, sentimental, derivada da moda portuguesa, em voga no fim do
século XVIII e no século XIX. É considerada junto ao lundu um pilar na formação da música
popular brasileira (dicionário Grove, 2001).
Ritmo - ordem e proporção em que estão dispostos os sons que constituem a melodia e a
harmonia. (Med, 1996: 11). Relação entre as durações de sons. Organização do tempo. (Med:
20). Maneira como se sucedem os valores na música (Med: 114). Distribuição ordenada dos
valores; relação entre as durações das notas executadas sucessivamente (Med, 1996: 128).
Ritmo aditivo - atinge uma determinada duração através da soma de unidades menores, que
se agrupam formando novas unidades, que podem não possuir um divisor comum (é o caso de 2 e
3) (Sandroni, 2001: 24).
Polirritmia - sobreposição de ritmos combinados. Pluralidade de ritmos combinados. Com
ritmos homogêneos ou complementares: a divisão é a mesma e os ritmos se confundem um com
116
outro.
Com ritmos heterogêneos ou contraditórios: os ritmos conservam, cada um, sua
personalidade.
Polirritmo - superposição de diferentes ritmos ou métricas, é característica, de algumas
polifonias medievais e comum na música do século XX (dicionário Grove, 2001).
Síncope - som articulado sobre tempo fraco ou parte fraca do tempo e prolongado até o
tempo forte ou parte forte do tempo. Suspensão de um acento normal do compasso pela
prolongação de tempo fraco ou parte fraca de tempo para o tempo forte ou parte forte do tempo.
Produz o efeito de deslocamento das acentuações naturais. Caracteriza-se pela desarticulação dos
acentos normais do compasso e resulta numa tensão causada pela ausência do acento esperado
(Med, 1996: 143).
117
Anexo 2 – Roteiro das entrevistas
1 - Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
2 - Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
3 - Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular
e vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter
explicado isso.
4 - Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
5 - Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
6 - Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
7 - Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor) Esta
pergunta fica dependendo da sétima, pois o entrevistado pode já ter explicado isso.
118
Anexo 3 – Entrevistas.
Ingrid Barancoski. Entrevista realizada na Unirio no dia 27 de março de 2005.
1-Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
Bom, minha formação musical é completamente erudita. Fiz a graduação em piano, mestrado e
doutorado também em piano. Comecei tardiamente um estudo formal, com 22 anos. Antes disso
eu lia, tinha uma atividade até lúdica com o instrumento. Lia muito, até improvisava um pouco de
música popular. E a partir daí, comecei a estudar música seriamente, me dedicando ao repertório
erudito. Trabalhei um pouco de tudo, como toda formação. Hoje trabalho muito com música
contemporânea.
Sou docente de piano e piano complementar aqui na universidade, mas só da parte erudita,
embora tenha alguns alunos de MPB que optam por ter um pouco de formação erudita. Eu
também atendo, mas deixando claro que a gente trabalha a parte de erudito, que eu não tenho
formação pra ensinar música popular. Faço tanto solo como câmera como musicista.
2-Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Apenas a música de concerto.
3-Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Talvez a experiência de ter improvisado música popular quando adolescente me deu uma maior
desenvoltura no instrumento.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Eu não sou muito adepta a generalizações. Cada pianista tem seus pontos fortes e pontos fracos.
Mas eu acho que muitos pianistas eruditos hoje não resolvem bem a questão da rítmica de
maneira geral. Eu acho que tem poucos instrumentistas que prezam uma precisão rítmica na sua
execução, não só na música brasileira. A rítmica brasileira em si não é a mais complexa que se
possa encontrar. Na música contemporânea tem coisas muito mais complexas do que a rítmica
brasileira. Eu sou muito adepta da precisão rítmica, que eu sempre prezo na minha interpretação e
procuro trabalhar com meus alunos. Eu acredito que uma clareza, um entendimento rítmico de
qualquer estilo que seja, mesmo de uma obra de Bach, é essencial para a clareza da interpretação,
para a clareza sonora disso que se está executando. Acho que muitas vezes, genericamente, a
nossa formação deixa a desejar neste aspecto.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Principalmente na música brasileira, todo aquele repertório que tem influência direta do popular,
seja uma estilização de uma dança, ou seja uma coisa mais direta, é importante o intérprete
conhecer. Por exemplo, vai tocar um jongo, um batuque, tem que ter uma idéia sonora do que é
119
aquilo. Mesmo que não tenha identificação folclórica daquilo, mas tem que conhecer. Até que
ponto. . . Acho que tem que se familiarizar, principalmente esses gêneros que têm influência no
repertório que ele vai fazer.
6-Em que medida a prática do popular interfere em aspectos práticos, como fraseado, articulação,
pedal, agógica, sonoridade?
Eu não tenho experiência própria, porque eu não tenho suficientemente a prática do popular. Eu
tenho alguns alunos que estudam erudito comigo, que têm uma certa prática, não só do popular,
mas também de tocar em igreja. Eu diria que aspectos dos dois lados se interferem mutuamente.
A prática de erudito dá ao músico popular um refinamento maior, com detalhamento grande
quanto a sutilezas refinadas do toque pianístico que teriam relação com agógica, articulação,
refinamento da sonoridade.
Quem vem do popular pro clássico, acho que tem uma intimidade maior com o instrumento, uma
desenvoltura maior na prática de improvisação e tem um balanço rítmico natural, que muitas
vezes o músico erudito, ele olha menor, ele olha nota por nota, ele não consegue sentir a rítmica
maior, ou macro-ritmo, de compasso a compasso. Quem vem do popular tem facilidade nesse
tipo de coisa, tem também uma facilidade de entendimento harmônico, porque lida muito com
cifra. E isso é primordial até pra entender a estrutura de uma obra, de uma sonata, do que seja.
Prática de conjunto também é de grande contribuição. No caso do piano, pelo contrário. O
pianista trabalha muito sozinho. São poucos pianistas, aliás, meus alunos posso dizer que são
poucos que se interessam por fazer música de câmara. Embora a gente todo semestre diga que é
importante, mas alguns realmente gostam muito da situação do solista no piano que cativa muita
gente, que alimenta o ego ou talvez até uma idéia meio romântica. Mas a prática do conjunto, de
tocar com outras pessoas, eu acho que dá inclusive uma precisão rítmica maior. Eu não digo nem
só em música brasileira. Em Bach, em Brahms, em Beethoven quando toca sozinho. Muitas vezes
o intérprete coloca um rubato fora do lugar. Mas nem sabe por que está pondo. Nem percebeu
que está pondo, mas tocando em conjunto se toma consciência maior da rítmica.
7-Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
Bom, eu diria que antes da libertação da barra de compasso vem uma precisão rítmica absoluta,
porque senão acaba-se até distorcendo um pouco a idéia rítmica. Acho que só a partir de uma
divisão muito exata é que você pode partir pra uma certa libertação da barra de compasso. Eu
acho que aí a libertação da barra de compasso não vem só da métrica, mas eu diria de duas
coisas: desse entendimento métrico maior, do hiper metro e também do fraseado que vai dar idéia
maior e de continuidade da música. Isso não só em música brasileira, como em qualquer música,
qualquer estilo.
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor)
Eu procuro trabalhar com rítmica desde o início da formação pianística. Existem peças, por
exemplo, algumas peças do Widmer que são peças motoramente simples, desde técnica dos cinco
dedos, mas que já trabalham com assimetrias métricas, mudanças de compasso, polimetrias. Eu
trabalho isso sempre paralelamente a um Ana Madalena, um Álbum pra Juventude de Schumann.
Trabalho essas duas coisas: trabalho a métrica completamente simétrica, uma quadratura perfeita
e também a assimetria e a mudança de compasso, de métrica. Não precisa ter um aluno adiantado
pra começar a trabalhar com coisas com métrica mais elaborada. Eu trabalho isso desde o
começo. Eu acho que uma coisa complementa a outra. Por exemplo, o aluno aprender a tocar um
120
ritmo em compasso de 7, num ostinato muito simples quando, numa posição estável, de 5 dedos,
essa proporção exata de 3 mais 4 bem precisa, vai ajudar ele a fazer um 4/4 completamente
estável e vice-versa. Como trabalhar isso? De diversas maneiras. Bom, contagem é essencial,
metrônomo, também, enfim, é banal, mas é necessário. Tento mostrar sempre para os meus
alunos qual a melhor maneira de contar, porque às vezes você tem que contar em semínimas, às
vezes em colcheias. E às vezes você tem que mudar a maneira de tocar, de contar durante a peça.
Você está tocando num valor e passar a contar em outro.
A polirritmia eu trabalho muito tocando junto com o aluno. Ele toca uma voz, eu toco outra, a
gente troca. Seria um trabalho como tocar Bach. Eu também tento fazer trabalho a quatro mãos
também desde o início, porque quando você toca junto com alguém, aí aparecem as imprecisões
rítmicas todas. Eu acho muito útil, porque o aluno aprende a ouvir e aí ele realmente busca
entender o que ele está tocando e se encaixar nisso tudo. Eu acredito que somente esse tipo de
formação vai propiciar um pianista habilitado a encarar mais tarde um repertório contemporâneo
com uma métrica elaborada, como Carter, Boulez etc. Acho que é um grande erro que se incorre
muitas vezes de um pianista adiantado ter um primeiro contato com uma música mais moderna
com uma rítmica complexa e já começar por uma peça difícil, quando ele não teve um preparo
rítmico anterior. Por exemplo, muitas vezes um aluno adiantado não consegue tocar umas peças
fáceis que mexe muito com a métrica. Motoramente aquilo é muito fácil para ele, mas entender a
métrica é muito difícil. Eu acho que esse trabalho tem que vir de base para as coisas irem
caminhando juntas. Eu acredito também que o ritmo tem que entrar em tudo, por exemplo, não
sei como é aqui na escola, mas a minha formação, na minha graduação, eu me lembro da aula de
percepção e a gente trabalhava principalmente percepção melódica e percepção harmônica.
Percepção rítmica ficava muito a desejar ou foi tratado muito rapidamente como se isso não fosse
tão importante. Eu acho que é uma percepção que tem que ser desenvolvida também desde o
início.
No mestrado, eu tinha uma bolsa pra pianista acompanhadora e toquei muito com cordas, sopros
etc. E aí um dia, me pediram pra acompanhar um concerto pra percussão e orquestra, onde eu
fazia a redução pra piano. E aí eu realmente percebi que a gente se baseia muito na linha, no
contorno melódico das alturas. E de repente eu não tinha mais isso como referência. Tinha só o
ritmo para me basear e tocar junto. Em geral, na formação dos alunos que eu recebo, eu sinto esta
necessidade de desenvolver mais o entendimento e a clareza rítmica e a música brasileira estaria
aí dentro. Porque para o balanço do jongo, do maxixe, não é apenas deixar a coisa um pouco
livre. Eu acho que deve ter uma precisão métrica, um entendimento métrico pra depois a coisa
soar natural e acoplado também a um entendimento do que é essa dança, como se dança, como
isso acontece.
Um entendimento falho também que nós temos muitas vezes é de que a música brasileira é
estanque. Ela não é estanque. Ela também sofre influências de todos os outros estilos, de todas as
músicas que estão pelo mundo. Os nossos compositores viajam, eles ouvem coisas, eles
conhecem muitas outras coisas. Então eu acho que também pra entender a música brasileira é
importante conhecer o que está se fazendo, o que já foi feito em outros estilos. Desde Bartók. Ele
também tem muita influência do popular, por isso há coisas próximas, parecidas. Enfim, VillaLobos teve muita influência de Stravinsky, a gente sabe. Muitas vezes a gente estuda Villa-Lobos
e não conhece Stravinsky. Acho que devemos ter um conhecimento mais abrangente para poder
entender a própria música brasileira. Estudar o outro para poder entender a nós mesmos.
Wagner Tiso. Entrevista realizada por telefone no dia 27 de abril de 2005.
121
1-Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
A minha formação é autodidata que eu venho de uma família de músicos e aprendi a tocar junto
com a família e depois fui pra Belo Horizonte, continuei a tocar em bailes e orquestras. Vim pro
Rio também tocando em bailes, orquestras e boites noturnas. E aí comecei a estudar, mas já com
mais de 25 anos. E aí comecei a estudar, estudar música mesmo. Estudar o piano, estudar música.
E até hoje que eu estou quase com 60 anos e já faz bastante tempo.
2-Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Sim. Hoje em dia o que me interessa é o trabalho nessa fronteira entre a música popular e a
música erudita que eu acho até banal no Brasil ter essa discussão porque a música popular
brasileira é tão forte tanto na questão folclórica do povo quanto na formação dos seus
compositores populares, porque a maioria deles tem uma formação, formação que eu digo assim,
têm uma intenção musical de fazer o melhor possível, como se fosse mesmo a música erudita. A
música popular brasileira, MPB, ela é pródiga em compositores que conhecem, que sabem
harmonizar e que sabem fazer melodias. Então, eu trabalho bastante nessa fronteira e tenho
tocado. Tenho tocado música clássica. Inclusive gravei um LP de Debussy, Fauré, com quarteto
de violoncelo e piano e tenho gravado muito Villa-Lobos. Já fiz vários concertos com a Rapsódia
em Blue, de Gershwin. Essa fronteira é o que me interessa. A proximidade da música popular, a
música do povo, folclórica e como ela se traduz numa música mais erudita.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Isso é da maior importância. Não vê os compositores do Leste Europeu, todos se basearam no
popular, principalmente os românticos. Não estou falando aqui de altas pesquisas musicais,
estudos avançados de harmonias e dodecafonia. Estou falando da música romântica do século
passado. A formação do Leste Europeu toda foi baseada nas canções folclóricas dos seus países,
desde a Ucrânia, descendo pela Hungria e a mesma coisa aqui no Brasil. Vê que Villa-Lobos
viajou o Brasil inteiro de trem, vendo as pessoas cantarem na rua, anotando coisas do povo e fez
uma obra erudita muito significativa em cima disso. Lorenzo Fernandez, todos trabalharam sob a
perspectiva da música, dos ritmos nordestinos. O Guerra Peixe. O Radamés Gnattali sobre o
choro, fazendo um choro com linguagem erudita. Então eu acho que é muito próximo essa coisa.
Existe essa influência mesmo. Os grandes autores eruditos no Brasil foram buscar na fonte do
povo uma maneira peculiar de fazer suas músicas.
Quando a gente vai tocar, o erudito contribui com a técnica e o popular com a espontaneidade.
4- Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Não muito por falta de diálogo. O pianista erudito, embora com muita técnica, muito bom gosto,
romântico principalmente, ele está muito distanciado, talvez por preconceito, da coisa da
linguagem popular. O pianista, eu estou dizendo o pianista, não os compositores eruditos. Eu
acho que os pianistas eruditos deveriam se aproximar mais do que se faz na música popular,
mesmo para poder ter uma rítmica melhor. Quando os pianistas eruditos vão tocar música
popular, não muito raro eles correm muito, eles não acompanham o swing da música. Por outro
lado, eles têm uma técnica, um bom gosto interpretativo maravilhoso. Quer dizer, isso é um
problema mesmo da falta de diálogo entre as duas áreas.
122
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Primeiro, ele não pode abandonar a técnica que ele tem. Mas é claro que um pianista erudito. Eu
até já falei. Ele teria que se aproximar dos músicos populares. O Arthur Moreira Lima faz muito
bem em pedir partituras pra o Laércio de Freitas, por exemplo. Ou para mim mesmo. Eu já fiz
umas partituras para o Arthur Moreira Lima. Porque aí o diálogo pode ficar mais próximo. O
João Carlos Assis Brasil também que em princípio era um pianista apenas erudito, ele se
aproximou do jazz, se aproximou da música brasileira popular e também é um pianista que corre
nessa área. O pianista do Zimbo Trio, maravilhoso ele, o Amilton Godoy, ele inicialmente era um
pianista erudito. Há uns 50 anos atrás, que ele já tem mais de 70. Mas ele logo jovem, logo moço,
ele se aproximou também do jazz e da música popular brasileira e para mim, ele é o grande
pianista brasileiro. É fantástico o trabalho dele. Então, eu acho que é viável um pianista erudito se
aproximar do popular e o popular se aproximar do erudito, porque o pianista popular também
precisa da técnica para mostrar sua música.
6- Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
O uso do pedal é mais da música erudita. O suingue do piano brasileiro, por exemplo, ele pede o
não uso do pedal. Mas é claro que o pianista para fazer duas mãos, por exemplo com suingue, ele
deve evitar o pedal para não ficar legato o tempo todo. Em compensação, ele tem que ter técnica
bastante para fazer o máximo de legato na mão direita. Isso é uma discussão que tem que ter um
fórum pra isso.
Fraseado é típica do improvisador, porque o piano erudito já vem com a frase pronta. Embora
Chopin e Bach fossem grandes improvisadores, o que ficou deles foi o que está escrito nas
partituras. E são coisas difíceis de tocar, muito bem elaboradas e precisam de um estudo técnico.
Já o improvisador, ele tem que conhecer o maior número possível de escalas dentro dos acordes e
dentro da seqüência de acordes. Isso é um trabalho do improvisador. Ele tem que conhecer os
modos gregos, ele tem que conhecer o máximo de escalas que existem no mundo: escala oriental,
escala cigana, tem um monte. Bom, o improvisador que não conhecer nada disso é um cara genial
realmente, ele consegue criar um clima maravilhoso. Mas o improvisador, no modo geral, ele
deve conhecer essa técnica de escalas aplicadas dentro dos acordes e dentro da seqüência
harmônica.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
A polirritmia no piano erudito está escrita, ele estuda aquilo. O popular ele faz isso independente
de estar escrito ou não. Isso é usual na música popular. Aliás, é usual no piano popular. Porque
no piano popular, uma mão é independente da outra. Por isso é que é o único instrumento em que
se trabalha dois caminhos. O violonista você vê que ele usa a mão esquerda junto com a direita.
As duas coisas caminham juntas. Ele faz um ritmo, ele faz o acorde e o ritmo com a mão direita,
as duas coisas ligadas. Ou faz uma frase com o dedo da mão esquerda e a mão direita ele dá
ênfase àquilo que está sendo tocado com a mão esquerda. O piano não. Ele acompanha com a
mão esquerda e fraseia com a mão direita. É independente. Parecem dois instrumentos tocando
juntos. Por isso eu acho o piano o instrumento mais difícil na música popular. Nos outros
instrumentos, no saxofone, por exemplo, as duas mãos trabalham com uma idéia só. No trompete
também. Todos trabalham com a mesma idéia nas duas mãos. A não ser no piano em que são
duas histórias diferentes. Uma é a mão esquerda acompanhadora e outra, é a mão direita solista.
123
Roberto Alves. Entrevista realizada no CIGAM (Centro Ian Guest de Aperfeiçoamento Musical)
no dia 09 de maio de 2005.
1-Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
Minha formação musical foi com a primeira professorinha, toquei minha primeira escala, coisa e
tal. Eu já tocava violão popular eu fui passando isso para o piano. Logo com um ano e meio de
piano, eu comecei meio tarde, com 19 anos, eu logo em seguida conheci o Luizinho Eça que é um
compêndio de harmonia e ritmo. E a minha grande formação veio através dele, ou seja,
harmonicamente eu tenho a influência com ele. Depois eu me formei em harmonia, harmonia
contemporânea com o Ian Guest, Fiz improvisação, fiz arranjo no CIGAM que era baseado em
Berkeley, no fim da década de 80 e início da década de 90. Eu estudei técnica erudita pela
questão de som, mas a minha formação é essencialmente popular. Popular no sentido de
harmonia, harmonia funcional.
2-Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Meu repertório é apenas popular. Por ter estudado técnica erudita, utilizo muitos elementos.
Abrange dinâmica, questão de sonoridade. Mas o repertório mesmo é essencialmente popular.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Tem que ressuscitar o Luizinho Eça, porque ele teve toda uma formação, estudou em Viena e
tocava música popular. Ele teve toda uma formação e levou tudo isso para o popular. O Luizinho
responderia isso.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Eu acho o seguinte. Nos pianistas que eu já vi tocando, eu só vejo problemas na rítmica brasileira
quando você usa compassos alternados que algumas obras de Villa-Lobos possuem. Eu acho que
quando o pianista tem uma boa técnica, ele executa. Porque a coisa mais difícil da execução, é a
parte rítmica. A questão do suingue, acentuação. Se você explicar para o pianista como faz, ele
acaba fazendo. Agora, tecnicamente, inclusive, é que entre muitos que tocam música
erudita,apenas poucos tocam ritmicamente correto. Desde as figuras mais simples. Quanto mais
as figuras mais complexas. A música erudita tocada no Brasil é um repertório da Europa. Se a
coisa estiver muito bem escrita e o pianista tiver um ritmo bom, acho que ele consegue executar
bem. Já vi pianista erudito que não tem a menor intimidade com música popular tocando bem
uma peça de Villa-Lobos. É engraçado quando se fala em chorinho. Eu considero o chorinho uma
música clássica brasileira. é um negócio bem simples. É uma peça escrita. O que é uma música
popular? Por que aquilo é considerado música popular? Nunca entendi isso. Você pega uma
harmonia e toca de maneira popular. Agora uma forma escrita como o choro, por exemplo. Uma
coisa considerada repertório popular. Chiquinha Gonzaga. . . Cara, se tiver escrito é uma peça
escrita. Ritmicamente tem os mesmos elementos. Popular por que? Porque veio, sei lá, do povo.
Mas a música erudita veio de onde? Marciano? Veio de Vênus? Essa é a forma como eu vejo. A
grande qualidade que música erudita tem é a parte de interpretação e a parte técnica. Porque a
criação não existe. A não ser que seja um compositor. A harmonia da música erudita chegou a um
ponto que acabou não evoluindo. O músico erudito de origem européia, para ele harmonia é
124
acorde perfeito maior, acorde perfeito menor, acorde diminuto e acorde dominante. E tem que
resolver na tônica. É a coisa mais careta que existe harmonicamente.
6- Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
Eu acho que quando você pega os elementos populares você sai principalmente de uma maneira
esteticista de tocar. Porque quando você pega o repertório erudito, passa por um caminho que já
foi experimentado. Acho que ele fica ritmicamente muito limitado. Eu acho que a questão
popular é mais uma questão diferenciada, do que não se está acostumado,ou seja, abrange mais
caminhos. Se você busca acentuações em música popular, você vai ter maneira de tocar,
fraseados completamente diferentes. O legato vai ser diferente. O próprio staccato portato que é
uma coisa muito rígida na música erudita, ele vai saber dosar, misturar o staccato, portato,
entender até na sonoridade que os crescendos podem ser alternados. Você não precisa crescer
exatamente o tempo inteiro. Você pode vir crescendo e quase que ocultar uma nota. Fica um
timbre totalmente diferente. O decrescendo e crescer de repente. As regras não são absolutas. E a
música popular, ela te dá a possibilidade de você criar. Mesmo a tua interpretação. Eu acho que
seria de uma importância muito grande. Eu vejo, eu tenho alunos de música erudita, estudando
popular comigo que vêm com uma dificuldade rítmica e harmônica absurda. Harmonia não
existe. Eu não consigo entender como é que o músico erudito estuda escala, estuda as teclas e não
consegue entender o que que a escala tem a ver com as teclas. É isso que acontece. E quem vai
ensinar isso pra eles? Os professores deles também não entendem. Nós estamos no século XXI.
Qual o problema? Eu não posso ensinar a tocar Beethoven. Eu acho que um dos maiores
problemas é que o músico está tão compenetrado com as preocupações técnicas, com a arte de
tocar em si que ele esquece de se ouvir. O músico tem que aprender a tocar se ouvindo que é a
última coisa que ele faz.
Você está muito treinado em repetir o que está escrito. E a interferência sua é só de intérprete.
Mas intérprete de que? Intérprete com algumas regras. Eu não posso tocar Bach suingado. Eu
posso tocar Bach de várias maneiras, mas de várias maneiras que estão ali pré-estabelecidas.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
Essa questão do pulso é muito interessante. Porque o músico erudito entende que você tem que
ter uma acentuação fixa, periódica. Eu vejo que exceto compositores como Villa-Lobos e também
Prokofiev. Eu vi e fiquei maravilhado. Eu entendi a pouca cultura que tenho nesse aspecto da
música erudita. Um pianista russo A música russa é completamente diferente. Eles têm rítmica. A
escola de onde a gente vem, que seria a parte da Europa. Que chegou a nós. Não tem ritmo.
Ritmo é uma coisa extremamente básica, ou seja, eu acho inclusive que muitas peças por causa
de carecerem de uma rítmica melhor, de uma acentuação melhor, eles exageraram na parte
técnica. Uma dificuldade absurda. Eu fico assim. Por que essa dificuldade cresceu tanto? É minha
opinião. Por que não tinha mais pra onde correr. Harmonicamente era pobre, em termos de
acentuação era pobre. Saiu pra parte técnica. Tem peça que tem que ter uma habilidade técnica
incrível. Ao passo que pelo menos essas peças que eu vi de Prokofiev, eu vi um piano
completamente diferente. Parecia que era piano popular. O piano popular de jazz. Talvez por que
a música russa tenha muita influência do folclore russo. A questão da acentuação eu não acredito
que o professor de música erudita tenha condições de só com a música erudita fazer o aluno
entender como pulsos podem ser mantidos, mas acentuando em locais diferentes. Porque uma
coisa é o aluno saber por que perguntou para o professor: isso aqui é o que? Isso aqui é o que?
125
Mas ele está fazendo de fora pra dentro. Outra coisa é ele conseguir realizar entendendo como
que faz e ele então toca um trecho onde você muda as acentuações. Aí sim. Ele vai fazer de
dentro pra fora. Eu acho que a música popular é fundamental pra que isso aconteça. E popular
que eu refiro, não é samba, pagode, é o que tem de mais moderno em termos de harmonia. Você
pode pegar um trecho, você pode improvisar num trecho e tecnicamente sem um absurdo de
dificuldade, você pode usar harmonias complexas, politonalismo, bitonalidade. Eu acho a
polirritmia de Villa-Lobos muito legal. Eu acho que assim como tem a dificuldade técnica na
música erudita que é uma coisa fantástica. A técnica chegou a um ponto assim, digamos
virtuosismo. Por que não trabalhar da mesma forma a parte rítmica? Eu acho que os alunos têm
que entender como se faz um compasso de 3 com a mão esquerda e um compasso de 4 com a
mão direita. Eu acho que uma das coisas mais legais pra entender isso é tocando samba. Existe
um compasso 2/4 ou ¾ e você procura encaixar quiálteras com colcheias. Esse é um tipo de
polirritmia. Uma polirritmia complicada é você colocar a mão esquerda num compasso e a mão
direita no outro. Você tocando 5 na mão direita e 4 na mão esquerda. Isto não é uma questão de
repertório. Tem que se pegar exercícios e utilizar com o aluno. Dependendo do tipo de repertório,
ele utiliza. Agora, é claro que você pode pegar peças que têm essa questão. O que não pode é que
se transforme num exercício meramente mecânico. Porque não pode ser em estudo meramente
matemático. O aluno tem que saber fazer a polirritmia e buscar acentuações diferentes. Aí eu vou
entender que ele realmente sabe fazer polirritmia. Ele não está apenas repetindo o mecanismo.
Então faz 5 com a mão esquerda e 3 com a mão direita. Você tem um compasso de 3 tempos e
faria uma quiáltera de 5 e buscando acentuações diferentes. Aí não é uma questão de repertório, é
uma questão de exercício mesmo. O que é um repertório? É uma peça composta com aqueles
elementos. Você não pode destacar os elementos e dar para o aluno estudar.
Eu acho que existe um preconceito muito grande do músico erudito com o popular porque o
músico erudito não consegue tocar bem música popular. A não ser raras pessoas. Por que? Existe
uma escola de música popular. Assim como tem uma escola de música erudita. Quando você
pega um dos maiores pianistas do mundo, o Nelson Freire, ele diz que a improvisação do jazz é
uma coisa impressionante que ele adoraria fazer e não faz idéia como se faz aquilo. E com a
técnica que ele tem, ele faria aquilo muito bem. Não é uma questão de “ah! Eu não dou pra isso.”
É uma questão de estar preparado. Na parte rítmica, a mesma coisa.
Saloméa Gandelman. Entrevista realizada no dia 6 de junho de 2005.
1-Fale-me resumidamente sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
Minha formação musical influenciou muito meu trabalho, porque meu trabalho também é
seletivo, no sentido de que eu não vou fazer o que eu não sei fazer. Por aí eu posso ser muito mais
responsável pelo que eu estou fazendo.
2-Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a música popular?
Só a música de concerto.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa?
Eu não pratiquei a música popular. Logo eu não fiz essa transição.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
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Depende do quanto ele ouviu. Por exemplo, a Stela é Argentina e, no entanto, resolveu a questão
da rítmica muito bem. Porque ela ouviu, porque ela pensou, porque ela estudou. É possível
resolver.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Eu acho que quando necessário, é um bom caminho. É preciso distinguir quando realmente você
precisa recorrer ao popular e quando você não precisa. Como eu estou dizendo, as suítes do
Marlos Nobre, ele trata do coco, eu acho que não faz falta. Depende muito de quem é o
compositor que você está tratando, que obra você está tocando.
6-Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como
fraseado,articulação,pedal,agógica,sonoridade?
Eu só posso dizer que dentro do meu desconhecimento da área de popular, como qualquer outro
estilo que tenha características próprias, você vai abordar uma peça, digamos que tenha uma clara
e nítida influência da música popular, você tem que levar em conta as características desse
gênero. Você vai usar o pedal de acordo com isto. Vai usar provavelmente as articulações
indicadas para cumprir aquilo que está lá. Do ponto de vista de performance, quando você está
falando de uma performance cuidadosa, o mesmo olho atento que você tem quando estuda uma
obra de concerto, você tem que ter para uma obra popular. Certa diferenciação na abordagem
quem estabelece, é quem está tocando. É como se dissesse: bom, eu pra uma obra de concerto,
vou tomar uma certa atenção e numa obra popular, não vou. Não, não é assim. Eu acho que um
trabalho popular, uma obra popular, merece tanto cuidado quanto qualquer outro. Só que cada um
tem um cuidado que lhe é peculiar, que é, digamos, próprio do gênero e do estilo. Neste sentido,
eu não vejo diferença de tratamento entre a música de concerto e a música popular.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
Este é um problema que afeta a música de concerto também. Este não é absolutamente da música
popular. Este problema, se você vai tocar algumas peças do Villa-Lobos, você vai ter esse
problema. Se você for tocar o Microkosmos do Béla Bartók, você vai ter esse problema. Se você
for tocar peça do Almeida Prado, você vai ter esse problema. Então essa pergunta não se aplica à
solução de problemas rítmicos da música popular. Se aplica, em geral, à solução de problemas da
música.
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor).
Isso é uma história muito comprida. Desde o princípio, se você pra um aluno tocar, por exemplo,
o Béla Bartók número 1, desde o princípio o que você vai procurar fazer é que eles obedeçam as
articulações que estão indicadas. Então começa que a mão direita tem um tipo de uma articulação
e a esquerda tem outra. Então desde o princípio o aluno tem que entender o fraseado de cada uma
das mãos e executar simplesmente o que está escrito. Tudo é uma questão de formação. Se um
aluno desde o momento em que começa a tocar, ele se dá conta que ele precisa observar as
indicações da peça. E por que ele precisa seguir as indicações da peça? Não por que ele é
obediente. Não é uma questão de obediência. É por que as indicações da peça dão um sentido
naquela peça. Se ele tocar diferente, ele vai modificar o sentido daquela peça. É a mesma coisa
quando você está lendo um texto. Se você pontua de uma maneira, você está entendendo de uma
127
maneira. Se você pontua de outra maneira, você está entendendo de outra maneira. E você
entendendo de maneira diferente, você transmite o seu pensamento de maneira diferente para as
pessoas que estão te ouvindo. Quer dizer que a questão da notação musical, a observação da
notação musical não é uma questão de obediência e disciplina. É uma questão de compreensão.
Obedecer às indicações da peça, significa compreender o sentido daquilo que está escrito. Neste
sentido, desde o princípio quando os alunos começam a tocar as peças mais elementares, o
professor pode dialogar com o aluno e levar o aluno a entender o sentido da peça. Então, essas
coisas não acontecem de repente. Quando o aluno está tocando uma sonata de Haydn, de repente
o professor acorda e bom dia!!!! Vamos tratar do fraseado. Está com muito atraso. Isto começa
desde o princípio.
Antônio
Adolfo.
Entrevista
realizada
por
e-mail
dia
08
de
junho
de
2005.
1- Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
Filho de uma violinista da Orquestra do Teatro Municipal do Rio, carioca de Santa Teresa,
aquariano da classe de 47, o pianista Adolfo aos 16 anos já pertencia ao fechado clube da bossanova acantonado no Beco das Garrafas, à frente de grupos como o Samba a Cinco e o Trio 3-D.
No último, ele participou da peça musical Pobre menina rica, de Carlos Lyra e Vinícius de
Moraes, e começou a acompanhar ases do setor. Mas a partir de 1967, em dupla com o letrista
Tibério Gaspar, Adolfo, o compositor, transformou-se num dos detonadores da ala da toada
moderna, que produziu sucessos como Sá Marina e Juliana. Ao mesmo tempo, pilotando o grupo
Brazuca, instaurou um tônus de modernidade eletrônica no pop da época (Teletema, Ana
Cristina) até desaguar na autopista abrasiva da BR-3, que causou polêmica e sacudiu as estruturas
festivalescas. Integrante da banda que acompanhou Elis Regina em duas excursões à Europa, um
estágio com a erudita Nadia Boulanger, em Paris (além dos aperfeiçoamentos com os brasileiros
Guerra Peixe e Esther Scliar), Antonio Adolfo estava pronto para mais um grande salto. Em 77,
num ato de coragem e pioneirismo, lançava o disco Feito em casa em seu próprio selo Artezanal.
Era o pontapé inicial de uma tendência libertária, a do disco independente, que motivaria o
aparecimento de artistas divergentes das leis do mercado tradicional. Adolfo gravou neste sistema
tanto material próprio (até música para crianças, a peça Astrofolias e Passa passa passará) quanto
promoveu revisões de Ernesto Nazareth e Chiquinha Gonzaga, de pianeiro para pianeiros. Era o
sinal de que como intérprete (vide sua incrível participação no III Free Jazz, no comando de três
módulos de diferentes escolas da música instrumental), ele atingiu uma posição rara: a do criador
contemporâneo que domina a linguagem da atemporalidade. (Tárik de Souza) Desde 1985,
Adolfo vem se dedicando a sua escola de música, o Centro Musical Antonio Adolfo, além de
participar em eventos internacionais como músico e educador, sem deixar de lado sua carreira
como intérprete. Recebeu dois Prêmios Sharp por seus trabalhos Antonio Adolfo e Chiquinha
com jazz, respectivamente. Como autor de material didático, lançou no Brasil sete livros pela
editora Lumiar, além de um vídeo-aula e um livro sobre música brasileira no exterior. Há seis
anos é o representante do IAJE (International Association For jazz Education) para a América
Latina.
2-Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Meu repertório atual abrange a chamada música popular, mas inclui elementos do estudo de
harmonia e composição de caráter erudito.
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3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Uma influenciou a outra: a disciplina do erudito valorizou a espontaneidade da música popular e
vice-versa.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Não, porque tem dificuldade em executar o ritmo sincopado, principalmente quando a sincope
transcende o pulso (a pulsação do ritmo musical). Um pouquinho de treinamento de percussão
brasileira resolve o problema.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Isso depende do seu objetivo, pois ninguém tem que se aproximar do popular. Mas, sem dúvida,
o prazer de poder improvisar, de poder “errar” uma nota, de poder variar, compor, etc...é
inigualável, já que é bem mais espontâneo.
6-Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
O popular, quando realmente vindo do convívio com as diferentes culturas populares e, por
conseguinte, a execução passa a ser espontânea, pode ajudar muito quando se executa peças
construídas sobre motivos populares.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
Temos que voar um pouco. O samba, bem tocado representa, talvez, a essência do que você está
colocando. Não dá pra dar chance ao tempo do pensar. Tem que se tocar naturalmente, assim
como um percussionista bem treinado.
8-De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor).
Procuro passar o que foi dito acima.
Rafael Vernet. Entrevista realizada por telefone no dia 16 de junho de 2005.
1-Fale-me resumidamente sobre a sua formação musical e influência em seu trabalho.
A minha formação inicial é de piano clássico.Eu sou gaúcho do interior do Rio Grande do Sul,
comecei estudando piano clássico e estudei até vinte anos atrás como estudo formal. Cheguei até
a fazer dois anos de bacharelado em piano clássico na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Hoje em dia, a música clássica faz parte da minha vida, mas não como um estudo formal,
dedicação. A cultura da música clássica, a audição e até a técnica do piano clássico estão
presentes na minha formação.
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Profissionalmente falando, meu repertório abrange só a música popular. Eu toco em casa música
clássica, alguns alunos meus tocam. Eu acho super importante que os alunos toquem Bach. Para
estudar piano clássico você tem uma dedicação para aquilo, programática. Tem que estar
129
envolvido com aquilo, ter um repertório. Estudar um concerto. Atualmente eu não faço mais, mas
faz parte da minha vida com certeza.
3-Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Eu acho essa questão bem complicada da gente abordar. Ela não é tão objetiva pra gente chegar a
uma conclusão. Existe uma bibliografia para a música popular? Existe uma técnica que a gente
poderia chamar de técnica popular? Existe uma técnica que a gente poderia chamar de música
clássica? Eu diria que no caso do piano, sim. A gente tem uma bibliografia que foi direcionada
para o estudo da música clássica e para o preparo mecânico e técnico e até emocional da
execução duma obra clássica. Vou chamar de clássico aí o erudito, a música de concerto. E
realmente você não encontra. Você não tem nenhum paralelo no piano popular que você
encontre. O piano popular ainda não tem essa sistematização que você tem, até porque: primeiro,
a música popular é uma música circunscrita a cada país e a cada região do mundo, cada lugar. A
música popular daqui não é igual à música popular do Azerbaijão. E os instrumentos típicos.
Você pega a música popular brasileira, você tem instrumentos que não existem em nenhuma
outra cultura: cavaquinho, pandeiro. E o piano, não. O piano é um instrumento europeu,
instrumento que cruzou aí a história da música. O repertório vastíssimo. Então eu te diria assim.
Em algum momento, haveria uma transposição entre essas duas linguagens.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
O Nazareth, por exemplo, coloca umas células rítmicas da música popular. Acho que há uma
certa dureza do pianista erudito.
Isso é meio complicado de responder porque até a época clássica, o ritmo era preciso e no
romantismo já se criou uma certa liberdade com os rubatos. E se você vai tocar um Villa-Lobos,
pode ser que existam elementos de popular, mas dentro de um contexto erudito. Acho que o
músico pode acrescentar uma interpretação. Você não precisa tocar um choro igual você toca na
Lapa. Às vezes a gente vê músico tocando Trenzinho Caipira como baião. Será que aquilo é
mesmo um baião? Villa-Lobos insere elementos do popular, mas com uma roupagem da música
européia. Então não sei se você teria que tocar um choro de Villa-Lobos como você toca choro na
Lapa.
Aí aparece uma questão que o pessoal sempre fala com relação à música antiga. A autenticidade.
Bach, por exemplo, tem o debate de se a música dele deve ser tocada tentando imitar o cravo ou
utilizando os recursos do piano moderno. Acho que há interpretações. Há possibilidades de
interpretação.
Essa palavra “resolver” é meio complicada. Esta pergunta é meio capciosa. O ritmo é um
problema geral em qualquer estilo. Em todas as músicas está presente esta questão do ritmo.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Isso é meio complicado, mas me ocorreu uma idéia aqui agora. Quando Villa-Lobos insere
elementos populares na música, aquilo não é mais a cantiga de roda, nem uma música erudita.
Não é nem a música folclórica, nem uma música erudita. Criou-se aí uma terceira linguagem.
Essa é que é a graça da música. Ela não pode se limitar ou se prender a padrões, normas, tem que
se extrapolar e criar novas linguagens. Há sempre o caminho da experimentação. A música
popular foi a matéria-prima que ele utilizou, mas com uma roupagem européia.
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Lembrei-me agora também das Valsas de Esquina do Mignone. Aquela quinta é linda. Quem já
ouviu chorinho, vai saber que aquele contracanto é um violão, o violão de 7 cordas. Se você
escrever aquilo pra flauta e violão, aquilo vai ser o contracanto do violão.
Radamés Gnattali é um músico que fez muito bem a transição entre as duas áreas. Compunha
música popular e música de concerto. Mas ele dizia que gostava de compor a música de concerto
e fez música popular por uma questão de sobrevivência. Ele tocava muito bem o erudito e o
popular.
Um outro exemplo no Brasil é Ernesto Nazareth. Ele compunha as músicas populares e chamava
de tango. Isto é ridículo. Até parece que o nome ia mudar o que a música era. Só para atenuar a
entrada daquele estilo de música nos salões. Era um escândalo. Na época dele o preconceito era
bem maior. Agora não. O preconceito já diminuiu Há muitos exemplos de pessoas que atuam nas
duas áreas.O Keith Jarret que é um excelente pianista de jazz, também dá concertos. E existem
muitas outras pessoas que tocam as duas coisas. Mas a dicotomia existe até por uma questão de
mercado. O músico popular e o erudito lidam com públicos diferentes. Não tem jeito. Existe essa
dicotomia e oposição entre música séria e música popular. Música cerebral e música intuitiva. E
isso se reflete até na maneira de tocar. Chega lá no Municipal pra tocar rasgando tudo e vê se eles
vão gostar. Em música tudo é contexto. Eu costumo dizer isso para os meus alunos. Tem um
contexto. Tem contrabaixistas que tocam no concerto da orquestra e depois vão para a noite tocar
jazz. O pessoal de metais também. Tocam à tarde na orquestra e à noite vão tocar jazz. Música
está ligada a um contexto.
6-Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
Acho que a prática do popular é enriquecedora e todos deveriam fazer. Você vai trabalhar com
cifras, funções harmônicas, improvisação, uma outra forma de representação. A cifra é uma outra
forma de representação. Representa os acordes, as funções harmônicas. Os professores de erudito
no estudo de uma sonata não falam das funções. Este trecho foi pra ré menor, agora é o V grau. . .
Quem é que fala? Até fala, mas só em relação aos temas e o aluno não tem consciência daquela
harmonia e do uso das escalas.
Não sei qual o motivo de se considerar a espontaneidade, criação e improvisação como algo que
vem do popular. Na música barroca existia uma cifragem. A cifragem determinava uma
harmonia, mas sobre esta harmonia havia uma liberdade de improvisação. Eles criavam
ornamentações. O que são as cadências nos concertos clássicos?
No popular, há um outro tipo de talento. Talento também é uma palavra complicada, porque
alguns dizem que existe e que a pessoa nasceu pra aquilo e acabou. Outros já dizem que isto não
existe. É só uma questão de aprender. Então eu não diria talento, mas aptidão. No popular há um
outro tipo de aptidão.
Ainda existe essa imagem de músico popular como boêmio, que acorda tarde, como músico que
já nasce pronto. Se você quer ser música erudito tem que estudar, ter um aprendizado formal, mas
para ser músico popular, não. Olha que legal! Ele está tocando tudo de ouvido. Não precisa
estudar. Já o outro quer tocar violino e aí tem que estudar, ter um aprendizado formal. Mas não
tem nada a ver. Por que existe a partitura? A partitura é apenas uma representação. A música é
uma linguagem e como qualquer linguagem possui uma representação. Se você fala, você quer
ler, escrever. Então o conhecimento da partitura e leitura não diferencia o popular e erudito. É
importante para os alunos de popular saber ler. Se ele está fazendo música, é natural que conheça
como se representa. Meus alunos têm curiosidade em ler Cramer, Bach, Beethoven. Se ele não
souber ler, pode ser comparável ao analfabetismo. Vai limitá-lo de ter acesso a muitas músicas.
131
Faculdades fizeram pesquisas e chegaram à conclusão de que há muitas pessoas que sabem ler e
escrever, mas não compreendem. A pessoa tem a ferramenta, mas não sabe usá-la. Isso é também
um tipo de analfabetismo. Com a partitura também acontece isso. Muitos sabem ler, mas não
compreendem a música. A leitura de partitura e estudo não diferencia músico erudito e popular.
Pode haver um bom músico intuitivo na música popular. Já no meio erudito isto não existe
porque se trabalha de outra forma. Não adianta também querer apelar com o cânon, querendo
descartá-lo. É válido o conhecimento da música daquela época.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
A barra de compasso poderia ser até abolida. Mas ela ajuda a fixar as pulsações e acentuações.
No samba, por exemplo, no segundo tempo tem a acentuação do surdo. A forma de representação
é uma coisa ligada diretamente à cultura. Nos Estados Unidos, eles não gostam de usar
semicolcheias e por isso, escrevem os sambas e bossas-novas em 4/4. Um texto tem suas
pontuações: vírgulas, pontos, mas cada pessoa que ler vai dar uma interpretação. Em música,
acontece da mesma forma. Todos vão ler as frases, motivos, mas cada um vai dar a sua própria
interpretação.
Agora com relação à independência, eu tenho que mencionar o nome do Egberto Gismonti. Ele
faz muito bem a polirritmia e estuda muito a independência. É um pianista muito bom e está aí
também na fronteira entre as duas áreas.
A independência entre as mãos no erudito e popular é diferente. Tem alunos que tocam 3 contra 4
em Rachmaninoff e quando você fala pra ele fazer uma levada de samba, ele não consegue fazer.
Tem uma aluna minha que estava se formando em piano clássico. Eu pedi pra ela fazer uma
levada de samba, ela não fez. Eu falei: Cadê? Bora!!!!!!! E ela dizia: é difícil! Bate aí. Você
acabou de tocar Rachmaninoff que é uma coisa bem mais complicada. O aluno não sabe como
aquilo acontece espontaneamente. Ele fez o exercício do 3 contra 2, 3 contra 4 nos livros de
técnica, mas não sabe transpor aquilo para uma situação prática. Você não estuda técnica só pra
fazer o exercício. Tem que saber de onde veio aquilo e como funciona na prática. A palavra
técnica não significa habilidade mecânica, mas capacidade de resolver problemas. Ela teria que
criar uma maneira dela de fazer isso. Não vou falar disso agora porque é uma história muito
comprida. Vou voltar a falar de representação. A gente aprende a ler e escrever, porque a gente já
fala. Agora imagina se você resolve fazer o caminho inverso. Aprender primeiro a ler e escrever
para depois falar. Você só vai falar o que está escrito? Você precisa ter consciência de que aquilo
que está representado acontece na prática antes de ir para o papel. Você pode até escrever uma
levada de samba, mas o aluno pode criar o jeito dele de fazer. Mas o problema disso não está no
piano. Você pede pro aluno. Bate aí na perna. Ela bate. Se ele conseguir fazer na perna, ele vai
fazer também no piano. É uma questão cerebral. Na independência estariam envolvidos aí os
hemisférios do cérebro. Os melhores músicos são aqueles que já fizeram ritmo na caixa de
fósforos, batucaram numa mesa. Está envolvida até uma questão psicológica. No ritmo está
envolvida até uma questão psicológica de se a pessoa desde a infância teve liberdade de se
expressar. Se não teve, pode haver um bloqueio.
Estela Caldi. Entrevista realizada no dia 21 de junho de 2005.
1-Fale-me sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
132
Bom, eu não sou brasileira. Sou brasileira naturalizada. Quando eu cheguei aqui, eu tinha dois
cursos, realizados no conservatório, cujo diploma era assim: professora nacional de música
especializada em piano e professora superior de piano. As duas especializações eram no
instrumento. Fiz o repertório tradicional que se faz em conservatório. Quando eu vim aqui pela
primeira vez, eu conheci um professor que se tornou meu marido, chamado --- Magalhães, uma
pessoa que sabia muito, muito sobre brasileiro, especificamente sobre Villa-Lobos. Então,
primeiro foi meu professor e depois foi meu marido durante vinte anos. Aprendi muito sobre
música brasileira. Tanto que quando eu fiz meu mestrado, eu fiz minha defesa sobre o Rude
Poema de Villa-Lobos, abordando um estudo de caso de um trecho específico. E eu fiquei mais
ligada à música popular, não como, digamos assim, pianista de música popular, mas pelo fato de
dois dos meus quatro filhos que são músicos e fazem música popular. Um é o Marcelo Caldi,
pianista também. Ele toca com o Garganta Profunda atualmente. Ele fez formação pianística
comigo, mas toca música popular. E o outro filho, saxofonista, toca todos os saxofones e flauta.
Então meu contato com a música popular praticamente foi através dos meus filhos. Tenho um
grupo com meus filhos e a gente toca Piazolla. Então em relação à música popular, entre aspas,
eu trabalho com a música do meu país. Mas música popular brasileira, eu nunca me atrevi a tocar.
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a música popular?
A música popular eu toco do meu país. A música brasileira de compositores contemporâneos, eu
tenho tocado muito. De alguma maneira, por alguma questão de escolha, tem a influência da
música popular naquilo que eles compõem. Mas nada além disso.
3-Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Esta é uma boa pergunta. Houve uma separação muito radical entre o que é popular é o que é
erudito. Então, eu acredito em duas coisas. Primeiro: hoje a formação de um músico tem que ser
paralela. Acho que não deve existir separação. Entre os alunos que trabalharam comigo que
tocam música popular, eles fazem um diferencial, porque tiveram formação erudita muito boa.
Desenvolveram um pianismo muito bom, têm uma variação de sonoridade, de trabalho com
pedal. O pedal, que músico popular, assim secamente falando, não tem. A música popular dá uma
riqueza e uma liberdade e um trabalho rítmico muito rico que vai realmente apresentar música
naquilo que você faz na música erudita também. Vai te proporcionar um material da rítmica que
não é tão comum nos músicos em geral. É uma coisa que é aprendida, que é trabalhada, mas que
não é tão simples como parece. As pessoas têm mais dificuldades rítmicas do que elas aparentam,
em linhas gerais.
4-Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Em geral, o pianista erudito resolve bem a rítmica brasileira, se ele estiver ligado, ou se ele tiver
ouvido muito. Se você estiver falando de rítmica brasileira, como rítmica ligada à música
popular. Quando você fala de rítmica brasileira, automaticamente você está falando de rítmica
popular. Se desde criança ele é acostumado a ouvir música popular. Por exemplo, eu vou dar um
exemplo do tango. Ninguém me ensinou como é que eu tenho que tocar tango. Mas como eu ouvi
tango desde que eu nasci, na minha casa, eu adorava tango, meus pais adoravam tango, todo
mundo ouvia tango, então você fica tão impregnado. Se eu pegar uma partitura, ninguém vai ter
que dizer: é assim que se faz. Você tem um outro tipo de batida como a música folclórica na
Argentina é riquíssima. Você tem coisas que a própria escrita não resolve. A grafia não vai
133
conseguir dizer tudo o que você tem que fazer. Se não houver uma realmente uma introjeção, ou
seja, uma assimilação. É como aprender a falar, aprender a andar, a dialogar. É uma linguagem.
Não é impossível de você aprender, mas é mais difícil sim, porque não é comumente uma coisa
que vem “de dentro pra fora”. É alguma coisa que vai “de fora pra dentro”. O ouvir é
fundamental e o participar também. Não necessariamente tocando um instrumento, mas cantando,
batucando, seja na mesa, acompanhando. A criança do morro, você não ensina ela a dançar, a
tocar violão. Ela aprende convivendo. Não dá para intelectualizar estas coisas. Quando eu fui o
ano passado, ou foi há dois anos atrás, no teatro Carlos Gomes o que mais me chamou atenção foi
o seguinte: eles colocavam as crianças para dançar. Algumas ficavam desengonçadas, tentando
imitar. Um menino de uns sete, oito anos, parou, olhou, observou o cara fazendo. Ele observou. E
nesse observar, ele imitou aquilo e foi fazendo. Então essa questão é o seguinte: aquilo que você
mama desde que você é criança. Não que depois você não possa fazer isso. Depois de adulto. Eu
já adulta, ouvi muita música brasileira, muito choro. Ouvi muito choro quando eu fiz meu
trabalho do Villa-Lobos, porque a influência do choro é muito grande.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Você tem que ouvir, tem que estar perto da fonte. Quando você faz um trabalho você tem várias
fontes: as fontes primárias e as fontes secundárias. Sabe o que é isso? Alguém lhe falou que
disse, numa fonte secundária. E acontece de você ir direto ao assunto. Bom, eu quero estudar esse
assunto, eu procuro lá onde é que se faz. Por que como é que isso funciona? De que maneira as
pessoas cantam? De que maneira as pessoas tocam? Eu tenho que me impregnar disso durante
muito tempo. É como aprender a falar uma língua. Primeiro você vai ouvir, você não vai
conseguir falar. Depois, mesmo guardando um sotaque como o meu, você começa a falar. E aí
você vai frasear. Isso é fundamental. Segundo, enquanto você não fizer, não vai chegar a lugar
nenhum. Tem que por a mão na massa e fazer. Se você ficar como observador apenas ou digamos
assim, tirando conclusões de fontes secundárias isso pode ser muito bom. Algumas pessoas
podem chegar a conclusões interessantes. Mas em se tratando de prática, a gente tem que ir à
fonte primária.
6-Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
Em tudo. Claro que vai influenciar.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência das mãos na polirritmia?
A libertação da barra de compasso, eu acho que, na medida em que você desde o início trabalhe
com o aluno, entendendo uma frase, ele não vai ter problema nenhum em eliminar a barra de
compasso. Isto não pode ser encarado como um problema. A questão pedagógica se trata de você
colocar as dificuldades uma a uma. Se você colocar cinco dificuldades juntas, ele não vai
resolver. Se você colocar uma, dentro daquilo que ele já tem, e você vai trabalhar em cima
daquilo que ele já tem . Se o acento rítmico for muito complicado, e o que você tem como
trabalho pianístico, é muito complicado com uma abordagem mecânica. Se você tem uma
abordagem mecânica, você está colocando essa pessoa num problema muito sério. Então, eu acho
que é você aprender percussão mesmo. Você ser capaz de fazer uma coisa com uma mão, uma
coisa com outra. Para isso, é muito bom tocar bateria. Você tem que necessariamente se
independentizar em muitos movimentos. O que não é só uma questão de movimentos. É uma
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questão de ouvido também. O ouvido tem que estar atento a tudo aquilo. Combinação, enfim. E
ver onde está essa dificuldade. De onde vêm essas dificuldades. Como eu vou lidar com isso, para
depois levar para o instrumento também. Eu acho fundamentalmente isto.
Jovino dos Santos Neto. Entrevista realizada por e-mail em 2005.
1- Fale-me resumidamente sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
Comecei a tocar o piano aos 12 anos de idade, primeiro com uma professora particular por uns 6
meses, e depois de ouvido, aprendendo músicas que ouvia no rádio e em discos. Com a
professora, entrei em contato com Bach, e continuo até a apreciar essas peças. De ouvido,
comecei a tocar blues e rock. Depois passei a ouvir e tocar rock progressivo, jazz, e depois, ao
iniciar meu trabalho com o grupo de Hermeto, desenvolvi a concepção de música universal que
ele me ensinou.
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Prefiro não pensar nestas divisões da música, que são artificiais e não correspondem à realidade
universal da linguagem musical. Escrevo e toco com orquestras, grupos de câmara, big bands,
grupos de jazz, cantores, músicos de todo o mundo, sem preconceitos ou barreiras. Basta saber
falar os dialetos musicais que se resumem a detalhes de notação, gramática harmônica e
sensibilidade rítmica e reflexos bem afiados.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vive-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Creio que já expliquei. Da maneira com que vejo a música, as influências são constantes e
naturais. Ouço Stravinsky, Jackson do Pandeiro e Miles Davis entendendo que o que eles
expressam são cores distintas do mesmo arco-íris musical. Acima de tudo, meu aprendizado com
Hermeto me preparou para ter os ouvidos e a mente bem abertos.
4- Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
Tudo depende da concepção rítmica de cada um. Há excelentes pianistas que têm uma técnica
apurada, mas nunca conseguiram incorporar (ou seja, colocar no corpo) os padrões rítmicos que
constituem a base de nossa música. Basta ouvir as obras de Ernesto Nazareth. Lorenzo
Fernandes, Villa-Lobos, Radamés Gnattali e muitos outros para entender que sem sentir
internamente as levadas do batuque, do lundu e do maxixe não há maneira de compreender a
sofisticação avançada do samba e do baião. É tudo o mesmo espectro.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Creio que enquanto o músico continuar acreditando no mito do “erudito” e do “popular”, ele vai
estar se enganando e perdendo tempo. Basta ver que quando Bach escreveu suas cantatas e suítes,
estas peças eram consideradas músicas para batizados, casamentos e aniversários, ou seja, eram
música de baile. Todos os nossos grandes compositores perceberam que sem ter consciência das
raízes folclóricas e populares do nosso chão, da nossa riqueza rítmica e melódica, o exercício da
composição musical torna-se fútil e vazio, sem perspectiva, sem cabeça e (principalmente) sem
pé. Villa-Lobos e Pixinguinha compartilharam muito mais do que os “professores” gostam de
135
admitir. Sobre a diferença dos “códigos”, é como falar em várias línguas; a partir do momento em
que se tem uma base definida, podemos nos expressar em qualquer delas, respeitando sua sintaxe
e gramática, mas sem abrir mão do sotaque que caracteriza a individualidade. Tenho muita
experiência em trabalhar com músicos de formações muito diversas, e posso afirmar que, se a
mente estiver aberta, não há obstáculo.
6- Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, tais como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
No caso do piano brasileiro, acho fundamental a prática do choro, do batuque e do maxixe como
elementos que facilitam a igualdade das notas, a leveza das frases e os acentos sincopados sem os
quais a música fica prostrada no chão, sem vida. Já ouvi choros de Ernesto Nazareth tocados por
pianistas famosos mundialmente, mas sem nenhum balanço e suingue, elementos que embora
difíceis de definir teoricamente, são o que há de mais importante nessas peças.
7-Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência entre as mãos na polirritmia?
As barras de compasso são um artifício que se usou a princípio para obter uma organização
musical quando do advento da polifonia. Hoje em dia, são importantes, mas quando se trata de
música ritmicamente rica como a nossa, o mais importante é determinar os acentos e síncopes,
que quase sempre caem ao redor das barras de compassos, sem encostar nelas. Sobre a polirritmia
e a independência das mãos, na realidade o que me ajudou muito foi entender que há sempre uma
relação proporcional entre dois ritmos, e o corpo pode calcular essa relação normalmente. Por
exemplo, uma das peças mais complexas que o Hermeto escreveu para mim tem uma mão
tocando sesquiálteras e a outra em semicolcheias, depois invertendo. Enquanto eu tentava
imaginar os dois padrões separados ao mesmo tempo, não conseguia alcançar a execução ideal,
que só veio depois que eu amalgamei os dois desenhos num só ritmo complexo, e passei a me
concentrar na relação entre as duas mãos, ao invés do que cada uma delas fazia.
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor)
Em primeiro lugar, busco dar a meus alunos, mesmo os mais jovens, um conhecimento básico de
como a música é percebida pela mente. Hoje em dia há trabalhos científicos que mostrar as
relações entre ritmos e certas áreas do cérebro, ou entre harmonia e o sistema nervoso. O mais
importante é saber aprender, estabelecer uma estratégia para ir aos poucos incorporando as idéias
musicais numa unidade de corpo e mente.
Renato Vasconcellos. Entrevista realizada por e-mail em 2005.
1- Fale-me resumidamente sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
A minha formação é fundamentalmente na música popular. Eu comecei no violão que era o
instrumento de formação que tínhamos em casa. Vivíamos em Cabo Frio, onde na década de 60,
não havia escolas de música, portanto aprendia-se de ouvido. Meu pai era um músico prático que
estudou piano durante dois anos somente, quando tinha dez anos. Eu como quinto de uma prole
de seis aprendi tirando músicas com meus irmãos e irmãs mais velhas. Com o auxílio da vitrola e
dos discos dos Beatles e da Bossa-nova aprendi os primeiros passos rumo ao conhecimento da
harmonia. Somente aos 14 anos quando nos mudamos pra Brasília e tivemos o primeiro piano em
casa, eu comecei a ter contato com a música escrita, e daí minha formação foi como a de
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qualquer garoto em Brasília: Escola de Música e depois UnB. A grande diferença talvez tenha
sido a oportunidade de desenvolver meu ouvido e minha intuição antes de conhecer a teoria
musical. Na UnB acabei me direcionando para o lado educacional e me formando em educação
artística.
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Existe uma grande lacuna na minha formação como pianista. Talvez por ter desenvolvido o
hábito de ouvir mais do que ler, eu não me dediquei ao repertório clássico. Não que eu não
gostasse, eu amo Bach, Beethoven, Debussy, Chopin e vários outros, apenas não tive a
oportunidade de me iniciar nessa linguagem. Meu repertório é baseado na música popular
brasileira e no Jazz e meu treinamento principal foi o de improvisar sobre progressões de acordes
e acompanhar cantores e cantoras na noite. Após concluir minha graduação na UnB fiz um
Mestrado em Piano Jazz nos EUA, onde tive que ralar bastante porque tocava em big bands,
acompanhava grupos vocais, e tocava em pequenos grupos onde se tem a necessidade de ler
bastante embora seja o Jazz. Os gringos não ligavam muito para o fato de eu ter dificuldades na
leitura a primeira vista, eles gostavam da minha fluência na linguagem do Jazz e como eu trazia
os elementos da MPB para o Jazz.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música popular e
vice-versa? Esta pergunta fica dependendo da primeira, pois o entrevistado pode já ter explicado
isso.
Embora não seja o meu caso, sou um defensor da formação pianística que desenvolva a
bilateralidade, ou seja, que deixe toda a intuição de um jovem fluir mas que também o incentive a
ler e conhecer os clássicos. Meu filho que é baterista primeiramente, está estudando piano com
uma professora maravilhosa que será minha eterna mestra: a Maria Francisca Aquino. Com ela eu
tento até hoje desvendar os caminhos das invenções e das fugas de Bach. A formação que o
Lourenço tem com ela é exatamente aquela que eu desejava ter tido: Villa-Lobos, Tom Jobim,
Bach, Chick Corea e tudo que é bom, em resumo.
4- Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por quê?
A rítmica brasileira é filha da África e portanto difere da tradição européia. Se o pianista cresce
ouvindo e estudando os clássicos sem dar ouvidos e asas à sua imaginação folclórica e popular,
ele terá sempre dificuldades com a rítmica brasileira. Tome o exemplo de um estrangeiro, super
bem formado tecnicamente, com relativo conhecimento do vasto repertório pianístico e que
queira tocar a música brasileira. Ele terá com certeza grandes dificuldades de entender o que é um
"Batuque" ou um "Apanhei-te cavaquinho" porque os ritmos não estão completamente escritos,
eles fazem parte dos arquétipos da cultura brasileira, eles têm que ser trazidos de dentro pra fora.
É preciso conhecer e respeitar a música folclórica e popular brasileira para interpretá-la além da
pauta.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Acho que já respondi essa questão na resposta anterior.É preciso vivenciar a música pois existe
muita coisa além do que está escrito numa partitura. Acho que devemos ouvir o máximo quer
pudermos, a nossa música que é riquíssima, para assimilarmos os trejeitos e as nuances de
interpretação de determinados elementos rítmicos.
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6- Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
Como já disse , em tudo! Se um pianista tem que tocar algo que se baseie na música popular é
bom que ele conheça aquela linguagem pois de outra forma pode soar como um arremedo, uma
imitação desconjuntada. Não quero dizer que todo mundo tem que tocar a música popular mas
pode ser um grande recurso de interpretação se essa pessoa puder vivenciar esse estilo.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência entre as mãos na polirritmia?
Quando toco algo muito complicado gosto de estudar mãos separadas mas por outro lado
fica mais fácil compreender determinados ritmos por inteiro, ou seja, com ambas as mãos ao
mesmo tempo. Acredito que as síncopas e a polirritmia da música brasileira pode ser mais natural
se pudermos ouvir a interpretação original. Por exemplo:1) no maracatu existe uma orquestra de
percussão formada por pelo menos um tambor alfaia, uma espécie de agogô, e um tipo de
chocalho. O resultado deste conjunto de percussão soa como um corpo único que é preciso ser
assimilado quase que intuitivamente. 2)no bumba-meu-boi existe um grupo de "matracas" que
toca um ostinato de duas semínimas enquanto o pandeirão toca um ritmo em quiálteras de três
contra esses dois. Essa fusão é extremamente "negociada", e o que se ouve é uma rítmica
extremamente relaxada e quase frouxa porém sempre precisa. Os músicos que executam essas
composições rítmicas bastante complexas nunca leram essas frases, eles simplesmente aprendem
tocando e sentindo. Parece um contrasenso, mas só ouvindo é que será possível entender essa
fluência.
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor)
Eu proponho alguns exercícios em grupos de estudantes para que fique mais fácil a
execução, e sempre sugiro que se beba na fonte do original para pegar o "espírito da coisa".
Espero que eu tenha sido objetivo nas minhas opiniões e que tenha ajudado você. A minha
experiência de ensinar música brasileira para americanos está documentada num vídeo que fiz da
Brazilian Ensemble que foi dirigida por mim durante dois anos na Universidade de
Louisville/Kentucky. Havia praticamente todos os instrumentos incluindo o piano, e eles fizeram
um bom trabalho praticando, e ouvindo referências gravadas a que foram expostos. Valeu Aline!
Um abraço do Renato Vasconcellos.
Maria Teresa Madeira. Entrevista realizada em 2005.
1-Fale-me resumidamente sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
A minha formação musical é bem tradicional, porque eu comecei a aprender piano como
parte da educação e fiz conservatório, faculdade de música, mestrado. Só que eu sempre gostei de
música popular, de ouvir. Sempre tive muito material de música popular para ouvir. Sempre
freqüentei show, porque eu gosto muito de samba. Sempre gostei desde a adolescência. Choro.
Então daí é que eu comecei. A primeira vez em que eu ouvi uma música do Nazareth eu lembro
que me despertou assim um sentimento diferente com relação aos outros repertórios que eu já
tocava. Esse repertório me chamou muita atenção. Foi antes de eu começar a fazer a graduação.
Foi uma coisa assim num estilo que me chamou muito a atenção. Mas a minha formação é como
a de muitos pianistas. A mais tradicional possível. É essa mesmo.
138
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
A música popular para mim, eu nunca tive um ensino formal de música popular. Nunca
fiz um curso de música popular. Eu tive há muitos anos atrás algumas aulas com o Luizinho Eça,
na época em que ele parou de tocar na noite. Eu leio cifra, mas eu não leio tão bem quanto eu leio
partitura. Mas eu já melhorei muito, porque eu sou curiosa. Porque eu acho que é uma maneira
também de tocar que acrescenta em determinadas músicas que você faz no repertório erudito. E
por eu gostar. Quando você gosta você acha um meio, você busca e acha. Agora o meu repertório
atual, às vezes ele é meio limítrofe. Por exemplo, eu gosto dessa música de salão. Nazareth,
Chiquinha Gonzaga, Carolina Cardoso de Menezes, Sinhô. Para mim é um repertório que fica no
limite. No popular e no erudito. Tem coisas de Radamés Gnátalli que ficam bem assim no
caminho. Até Mignone às vezes. Eu já toquei coisas do Leandro Braga que escreve muito bem
pra piano, é um compositor popular. Já toquei também Antônio Adolfo, Gilson Peranzetta, Rildo
Hora. Todos são pessoas envolvidas com música popular. Então a maioria das coisas que eu faço
é música erudita, música de câmera. Eu estou muito envolvida com o repertório do Nazareth
ultimamente. Eu gravei muita coisa dele. Mas volta e meia eu estou fazendo essas coisas que
ficam em cima do muro. Eu gosto muito. E que são de muito bom gosto e então eu me identifico
muito.
3- Caso a formação tenha sido em música de concerto em que esta influenciou a música
popular e vice-versa?
Eu acho que tem muita coisa no repertório erudito para piano principalmente que é um
instrumento muito centralizador. Eu acho que até na nossa própria cultura. É um instrumento que
faz parte da nossa história de uma forma muito viva, de uma forma muito presente. Desde que ele
chegou ao Brasil. Com a vinda da família real ele se estabeleceu como um instrumento
centralizador das casas. Eu acho que dentro do repertório do piano, a gente vê essa influência
assim sem limites. Por exemplo, Lorenzo Fernandes que é um compositor erudito. Mas a gente vê
uma rítmica muito complexa, a gente vê coisas da cultura popular envolvidas ali. E tantos outros.
Camargo Guarnieri que é um compositor mais recente. Aqueles ritmos todos que os compositores
usam, quando a gente ouve coisas do folclore, ouve, por exemplo, uma bateria duma escola de
samba. Aquela complexidade daqueles ritmos todos ali. Ou a gente vê um grupo de chorinho
tocando. A gente começa a entender que a complexidade rítmica de muito daquelas obras, você
passa a entender de uma maneira mais natural quando você tem uma referência de uma outra
coisa que você já ouviu. Toda aquela complexidade como Villa-Lobos já escreveu, mas que
quando você ouve é muito genuíno. É como se fosse uma coisa vindo da terra mesmo. É como se
fosse explosão da cultura popular. Eu acho que um assunto vai entrando por dentro do outro. Não
tem muito como você delimitar. A gente às vezes é obrigado a fazer um limite até por conta da
nossa didática e do próprio limite que nós temos. Igual eu falei pra você. Eu leio muito melhor
partitura do que cifra. Então cada um de nós tem os nossos limites pessoais dentro do nosso
campo. Mas eu acho que é uma coisa que entra por dentro da outra. Por exemplo, o pianista
popular que trabalha a maior parte do tempo com isso, mas que tem uma formação erudita,
geralmente ele tem uma sonoridade melhor e sabe usar o pedal melhor. E o pianista erudito que
tem esse gosto pela música popular, ele às vezes consegue ter um suingue mais natural pra essas
obras que são ritmicamente complexas. Vamos resumir desta maneira. Mas isso tem muitas
variantes.
4- Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por
quê?
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Muitas vezes ele tem que ir lá à cultura popular e se basear da onde que aquele compositor
tirou aquela idéia, ir lá à fonte para entender melhor. Eu já tive vários exemplos com os alunos e
comigo mesma dessas fontes darem sinais de clarear a interpretação. Num desses festivais em
que eu dei aula, teve um aluno que foi tocar um frevo. Um frevo do Marlos Nobre, se eu não me
engano. É uma leitura rítmica bem complexa, porque é antecipada, como é a síncope na música
brasileira. É em dois, mas tem várias antecipações, várias coisas que dificultam a execução e
principalmente pra uma pessoa que não tem muita prática com aquele material rítmico ali. Aí eu
me lembro que tinha um aluno de percussão que tocava zabumba. E eu expliquei para esse aluno
pianista o ritmo. Aí eu perguntei: você já ouviu algum frevo? Ele falou: não. Aí eu falei: então
você vai ouvir. Aí eu senti que ajudou muito na execução dele. Porque ele estava tocando um
frevo, respeitando o que estava escrito, mas estava faltando um conhecimento maior daquilo ali.
E aí eu o fiz tocar com o percussionista. E aí ele tinha que respeitar um pouco mais e entender as
antecipações. Enfim, eu acho que a gente tira muito proveito se a gente tiver uma mente aberta
para essas informações. Informação, se não vale pra nada, você esquece, mas não custa você
buscar. Depois você vê se você tira proveito ou não daquilo. Se você não buscar, você nunca vai
saber. Então eu sou a favor que a gente busque as informações.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Eu acho que o limite é o próprio intérprete que vai saber. Porque depende muito do que
ele tenha de informação anterior. Porque esses códigos são diferentes para cada pessoa. Até o
entendimento desses códigos é diferente. Por exemplo, tem alunos que a gente costuma dizer que
tem um pensamento harmônico mais definido tocando. Quando eu digo isso, é o aluno que tem
uma percepção harmônica melhor. Geralmente é o aluno que decora logo porque ele vê tudo em
bloco. Ele não se perde. Porque tem aquele que decora, mas não entendeu muito bem. Mas aquele
que decora porque entendeu harmonicamente o material com o qual ele está lidando, ele
provavelmente vai entender a questão da cifra muito bem. Porque a cifra é um bloco harmônico.
Esse limite é cada um que vai determinar.
6- Em que medida a prática do popular influencia em aspectos práticos, como fraseado,
articulação, pedal, agógica, sonoridade?
Eu acho que influencia em muitas coisas, mas principalmente você resolver os problemas de uma
maneira mais natural. Quando você tem a referência do popular às vezes essa complexidade
rítmica que se apresenta para você interpretar, ela depois que você destrincha aquele emaranhado
rítmico, você consegue fazer com que aquilo soe de uma maneira mais natural. E não de uma
maneira sofrida. Para quem ouve: ai, que coisa complicada! Mas na verdade aquilo não dá
informação nenhuma. Só para complicar. E às vezes não é bem a intenção do compositor. Ele
quer que você tire alguma coisa além daquela complicação. A gente tendo uma noção de como é
a agógica do popular, da fonte que ele tirou, principalmente das acentuações rítmicas. Eu acho
que a gente aprende a fazer de uma maneira mais natural, com que aquilo soe melhor.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência entre as mãos na polirritmia?
A melhor maneira de resolver problema rítmico é subdividindo, como se fosse uma equação
matemática. E a questão da independência das mãos eu acho que muitas vezes é um exercício de
imaginação como se você estivesse tocando um instrumento com uma mão e um instrumento
com outra. A nossa imaginação funciona muito quando você tem informação dentro dela. Eu já
140
ouvi alguma coisa, eu já vi. É mais fácil você imaginar do que você imaginar do nada. Por
exemplo, você imaginar como funciona uma bateria de uma escola de samba sem você nunca ter
visto ou nunca ter ouvido num CD ou qualquer coisa. Você não sabe como acontece, mas aquilo
tem uma memória dentro de você de alguma maneira. Quando a gente imagina de uma maneira
mais orquestral ritmicamente o que está acontecendo, muitas vezes é mais fácil de entender.
Como resolver determinados problemas específicos, vai depender do grau de dificuldade daquela
música. De repente, tem que fazer uma coisa mais simples, aquele problema de uma maneira
menos complicada para você chegar a resolver coisas rítmicas mais complexas. Em Villa-Lobos,
por exemplo, para você resolver aquelas polirritmias, aquelas coisas gigantescas que tem nas
partituras, você já tem que ter resolvido outros problemas antes para poder chegar a uma obra
daquelas e não se assustar e não conseguir fazer. Qualquer coisa rítmica quando a gente
subdivide, a gente organiza um pouco melhor. Porque na verdade o ritmo é uma organização. E
quando a gente entende aquela organização, a gente consegue fazer melhor. E para a gente
entender, eu posso dizer que na maioria das vezes, quando você subdivide as porções, você vai
entender melhor. Isso não é uma regra, mas na maioria das vezes resolve.
Daniel Tarquínio. Entrevista realizada por e-mail no dia 31 de julho de 2005.
1- Fale-me resumidamente sobre sua formação musical e influência em seu trabalho.
Aline para a primeira parte da primeira pergunta, eu mando um pequeno currículo em anexo e
continuo:
Pianista formado pela Universidade de Brasília (UnB) na classe de Elza Kazuko Gushiken em
1986 e
pelo Conservatório Rimsky-korsakov da cidade de São Petersburgo-Rússia onde
permaneceu durante sete anos com bolsa de estudos do governo russo. Pertencendo a classe de
Piano solo de Nadeszda Eismont, estudou Correpetição com H. Serova e Música de Câmera com
T. Varonina. Em 1996 obteve no referido Conservatório o grau de Mestre em Artes com as
especialidades de Pianista Concertista, Camerista, Co-repetidor e Pedagogo.
Iniciou seus estudos musicais na Escola de Música de Brasília (1971-1977) pertencendo a classe
de piano de Dalila Matos prosseguindo-os no Conservatório Estadual de Música de Uberaba –
MG (1978-1980) sob orientação do pianista Sylvio Cruz Robbazzy. Constam ainda na sua
formação estudos de composição com Emílio Terraza, regência com Cláudio Santoro na
Universidade de Brasília e Master Class de piano com M.Glantschnig (Áustria) e Maria José
Carrasqueira São Paulo.
Apresentou-se em recitais na Sala Glinka do Conservatório Estatal de São Petersburgo, na Casa
da Amizade entre os Povos em São Petersburgo, em Nova Sibirsky e Pskov (Rússia) em Tallin Estônia, Estocolmo-Suécia, no Teatro Nacional de Brasília - Sala Martins Pena, na Embaixada da
Rússia no Brasil, no Auditório do Departamento de Música da Universidade de Brasília, na Casa
Thomas Jefferson- Brasilia –DF, na sala de concertos “Sergio Magnani” da Fundação de
Educação Artística em Belo Horizonte pela série de concertos do BDMG-Cultural e em várias
cidades brasileiras. Em 2004 atuou no espetáculo “Cirandas” com o Balet “Vórtice” executando
as cirandas de Villa-Lobos no Circuito Cultural-Minas em Uberlândia-MG. Atuou como solista
frente a Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro na Sala Villa-Lobos, frente a
Orquestra Filarmônica de Brasília, Orquestra Sinfônica Jovem de Brasília, Orquestra da UnB,
com Orquestra Sinfônica do Conservatório Estatal de São Petersburgo, com os maestros Júlio
Medaglia, Joaquim França, Glicínia Mendes, Gustavo Sterenberg (regente do Teatro Kirov de
São Petersburgo).
141
Realizou palestras e seminários na Universidade de Brasília e Escola de Música de Brasília
incluindo os temas: “Os 24 Prelúdios e Fugas de D. Schostakovich”; “H. Neuhaus- A Arte da
Execução Pianística”; A Forma Sonata Beethoveniana e a Dialética Hegeliana”; “Os 24 Estudos
de F. Chopin”; “Os Ponteios de C. Guarnieri”; “ A formação do pianista na Rússia”; “ A Obra
para Piano de Cláudio Santoro”.
Em 2000, 2001, 2002, 2004 e 2005 foi professor de piano e concertista convidado dos Cursos
Internacionais de Verão da Escola de Música de Brasília.
Desde 1996 é professor de piano, correpetição, música de câmera e matérias teóricas na
Universidade de Brasília passando a integrar, através de concurso público, o quadro permanente
desta instituição em dezembro de 2000.
A formação musical é sempre contínua. Mesmo depois da formação em escolas o músico está
sempre se aperfeiçoando e desta maneira tanto os trabalhos atuais como a formação adquirida em
escolas e universidades influenciam no trabalho. Desta maneira então a formação influencia na
forma de compreender a música; na forma de passar a compreensão tanto dos problemas
artísticos quanto sua realização técnica; influencia na maneira de perceber o desenvolvimento do
aluno.
2- Seu repertório atual abrange tanto a música de concerto quanto a popular?
Não, meu repertório atual abrange a música clássica (erudita).
4- Você acha que o pianista de concerto resolve bem a questão da rítmica brasileira? Por
quê?
Dizer simplesmente sim ou não é difícil. Mas é possível que o pianista erudito resolva bem os
problemas rítmicos da música brasileira.
5- Como tratar a defasagem dos códigos na interpretação? O intérprete deve se aproximar do
popular?
Conhecer as fontes primárias, tanto populares como folclóricas, de onde surgem os ritmos
brasileiros e aproximar-se delas através de alguma praxis é um caminho, provavelmente o mais
eficaz, para a resolução dos problemas rítmicos da música brasileira.
6- As questões práticas que você levanta estão presentes tanto na música popular quanto na
erudita. A prática popular pode ajudar um intérprete ao executar uma peça erudita desde que ele
perceba estas questões na prática popular e de que maneira estas práticas estão sendo utilizadas
na obra erudita. Ao perceber uma determinada característica popular em uma obra erudita o
intérprete deve ainda contextualizar esta prática relacionando-a com outros parâmetros como
harmonia, polifonia, forma, caráter da obra.
7- Como resolver os problemas da rítmica brasileira no que diz respeito à compreensão da
estrutura rítmica para além da barra de compasso e independência entre as mãos na polirritmia?
A questão da libertação da barra de compasso está ligada a questão do tamanho das frases, de
suas entonações e dos seus direcionamentos (“para aonde vai a frase?). seus pontos de apoio.
Entendido isso o movimento das mãos na polirritmia deve estar relacionado ao que foi dito logo
acima.
8- De que forma você realiza esse trabalho com seus alunos? (para quem for professor).
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Com os alunos, pode-se inicialmente, e somente inicialmente, fazer um estudo métrico para o
entendimento da sincronia entre as notas em diferentes mãos. Mas depois disso deve-se estudar
os movimentos das mãos separadamente sempre subordinados a movimentação das frases, que
devem ser diferentes em ambas as mãos. Deve-se notar que existem sempre pontos de apoio que
coincidem.
Delimitando-se um trecho musical pequeno polirrítmico, que tenha no início e no final
simultaneidade de execução entre as duas mãos, deve-se inicialmente estudar separadamente cada
uma das mãos (sempre levando-se em conta o movimento musical, ou seja o movimento das
frases) até a segurança de execução. Depois pode-se alternar a execução do trecho, por exemplo :
4 vezes mão direita, 4 vezes mão esquerda, 3 vezes mão direita, 3 vezes mão esquerda e assim
por diante até alternar algumas vezes as mãos e tentar juntar, sempre (eu insisto) atentamente ao
movimento musical de cada mão. Este é um conselho para estudar polirritmia do N. Neuhaus (A
Arte de tocar piano) que funciona muito bem para a riqueza da nossa polirritmia.
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