1 ISBN 978-85-62959-30-1 Sumário Eixos temáticos 7 Indústria da cultura e indústria de alimentos: causa ou consequência da homogeneização e degeneração dos gostos na sociedade de massas? 9 Juliano de Oliveira Ronaldo Novaes Os 10 anos do Musimid na pesquisa musical: depoimento de Teresinha Prada 25 Teresinha Prada Saraus, récitas líricas, bailes e concertos ituanos: as sinhazinhas, e seus dons musicais, embebidos em gengibirra e quitutes 26 Marcos Júlio Sergl Para comer e para levar, para cantar e para bailar: Estudo da música salsa como patrimônio imaterial musical da diáspora afrolatino-caribenha 46 Julio Moracen Naranjo “Piquenique Classe C”: música, alimento, história, literatura e sociedade 62 Guilherme Gustavo Simões de Castro Hardcore, sobriedade e direitos dos animais: reflexões sobre as relações entre produção musical, veganismo e abstinência na subcultura straightedge 83 Jhessica Reia 2 O Yoga no ocidente: sonoridade, alimentação e ritual 103 Julicristie M. Oliveira O significado musical: expectativas 114 Karin Segalla Ferreira A ‘áudio-imagem’ segundo J.E. Berendt 129 Luiza Spínola Amaral A ritualização nas repúblicas federais de Ouro Preto–MG: dos hinos às “rezas de cachaça” e suas implicações 148 Leonardo Corrêa Bomfim Bebida, canto e alma — os índios Ticuna e a imortalidade 179 Edson Tosta Matarezio Filho O samba e a culinária mineira: análise etnográfica de um samba de Toninho Geraes e Paulinho Rezende 190 Ana Lúcia Fontenele A música como expressão gastronômica: o baião de Luiz Gonzaga 200 Moacir Ribeiro Barreto Sobral Sênia Regina Bastos O samba e a cerveja como símbolos nacionais: eu sou Brahmeiro 218 Antonio Layton Souza Maia Festa do Divino Espírito Santo: música e devoção no sertão baiano 235 Thiago Marcelo Mendes 3 O Festival do Folclore de Olímpia, o Grupo Sabor Marajoara e o Culto da Jurema: “invenções” sucessivas e complementares254 Estêvão Amaro dos Reis O rock and roll carioca nos anos 50 271 Marcelo Garson Bebendo o blues: a bebida e o cigarro na obra de Celso Blues Boy296 Paulo Celso da Silva “O mundo não para de girar” — a juventude roqueira dos anos de 1980 e suas relações com as bebidas alcoólicas 310 Gustavo dos Santos Prado Alguém colocou algo em meu drink. Análise semiótica de temas relacionados à ingestão de bebidas e de outras substâncias na obra dos Ramones 328 Daniel Pala Abeche Educação musical e indústria cultural 343 Marcelo Fernandes Pereira O “culinário” em Adorno, Benjamin e Brecht: entre o prazer e a regressão 352 Luiz Fernando de Prince Fukushiro A música da mídia na mente: uma análise da recepção dos jingles e uma reflexão sobre o gosto musical contemporâneo 364 Ana Lúcia Iara Gaborim Moreira Antonio Deusany de Carvalho Júnior Dá meu Danoninho pra eu virar herói: encantamento e persuasão no jingle 378 Danuza Pessoa Polistchuk 4 Muito além do hit: considerações sobre a junk music 396 Alex Kantorowicz Buck O triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações culturais de uma prática ambulante 424 Thaís Amorim Aragão Rock com sabor de Mupy: o gosto da música na cena cosplay4 41 Mônica Rebecca Ferrari Nunes Vera da Cunha Pasqualin Som, linguagem e significado musical 456 Paulo C. Chagas Celebrações e deleites de um outro tempo: o bem viver ao gosto dos harpistas do Egito Antigo 486 Cássio de A. Duarte Retrato de Cora: do natural ao artístico 496 Silvia Maria Pires Cabrera Berg Música – sabor na língua e carícia na pele 505 Déa E. Berttran Festa do Divino em Mogi das Cruzes: o percurso da Fé e a conquista do alimento santificado 507 Luci Bonini Eliana Meneses de Melo O exótico no Banquete de Mário de Andrade – discussão sobre a negritude e o projeto de recepção da música erudita nacional527 Theophilo Augusto Pinto 5 Apresentação O sabor do saber… Se etimologicamente as duas palavras são sinônimas, no uso cotidiano esta afinidade parece ter-se perdido. A proposta deste ano pretende recuperar a experiência sensível e sensorial pela música, tendo, como aproximação, o próprio consumo: do material sólido (alimento) ou líquido (bebidas) ao sígnico (as criações, em várias instâncias). Enfim, o tema deste ano convida os interessados a ajudar a conhecer melhor como gostos e sabores conduzem a saberes particulares. O 9º Encontro Internacional de Música e Mídia é uma iniciativa do Centro de Estudos em Música e Mídia—MusiMid. O Grupo de Pesquisa —registrado no Sistema Grupos, do CNPq e vinculado ao Programa de Pós-graduação em Música do Departamento de Música da ECA–USP— é formado por profissionais do meio acadêmico e artístico de formação multidisciplinar, além de estudantes de graduação e pós-graduação. Provenientes das universidades mais conceituadas do país e do exterior, esses pesquisadores têm como centro de interesse comum o estudo das múltiplas relações entre música e suas formas de comunicação e recepção. Visando ampliar os debates e estendê-los à comunidade interessada no tema, o grupo vem realizando anualmente os Encontros de Música e Mídia: As múltiplas vozes da cidade (2005); Verbalidades, musicalidades: temas, tramas e trânsitos (2006), As imagens da música (2007), O Brasil dos Gilbertos: Gilberto Freyre, João Gilberto, Gilberto Gil e Gilberto Mendes (2008), E(st)éticas do som (2009), Música: De/Para (2010), Música, memória: tramas em trânsito (2011), Tão longe… Tão perto… A música nômade (2012) realizados no SESC–Santos e nos auditórios da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA–USP). Em sua nona edição, o tema do encontro será O gosto da música, dividido em quatro temas principais. 6 Neste ano de 2013, o evento tem como coordenadores externos os professores doutores Eduardo Paiva (Unicamp) e Magda D. Pucci (Mawaca). O evento conta com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGMUS/ECA–USP) e do Programa de Mestrado em Políticas Públicas da Universidade de Mogi das Cruzes. Eixos temáticos Música + comida + bebida = ritual A música está invariavelmente presente nas culturas antigas e contemporâneas, em cerimônias laicas ou religiosas, bem como nos hábitos individuais. Presente na prática coletiva, em caráter informal (rodas de samba, saraus domésticos, blocos carnavalescos), bem como nas apresentações profissionais em locais públicos, a associação entre bebida e música é constante (couvert em casa de espetáculo). Música + bebida = viagem ao inconsciente O poder que a música detém de potencializar efeitos químicos, após a ingestão de alimentos e bebidas. As culturas do processo decorrentes (“sexo, drogas e rock-and-roll”, por exemplo). O apelo ao consumo simultâneo é ato contínuo. Os rituais dionisíacos. Voracidade; overdose, abstinência. A noção de corpo perfeito, esguio e anoréxico, versus o underground. Gêneros musicais + bebidas = criação de signos artísticos A correspondência entre gêneros musicais e bebidas é notável: uísque, bossa nova, jazz; cerveja e pagode, champanhe e valsa… O vinho está estreitamente ligado a gêneros particulares de canção de caráter tradicional (fado, tango), figurando no próprio título, tema, enredo da obra, ou texto poético. No desfecho da ópera O morcego, o champanhe é o “culpado pelos mal-entendidos”. A música também acompanha a comida: um interlúdio é uma obra breve que acompanha a entrada de um prato, num banquete. 7 Música + bebida + imagem (visual) = compre-me! Sobretudo na publicidade, obras musicais e jingles ultrapassam a finalidade de promover o produto. A maneira como obras já conhecidas são ressignificadas, transformadas em trilhas sonora, promove uma ressignificação, face à mudança de função e contexto inicial. Música + Muzak = “alimento” do corpo Consumo alimentar e música ambiente: espaços sonoros e sua adequação à “alimentação adequada”, no tempo certo, das “academias” de ginástica, sessões de yoga, spas, aos restaurantes de fast food etc. 8 Indústria da cultura e indústria de alimentos: causa ou consequência da homogeneização e degeneração dos gostos na sociedade de massas? Juliano de Oliveira Universidade de São Paulo [email protected] Ronaldo Novaes Universidade de São Paulo [email protected] Resumo É bastante conhecida a crítica dos frankfurtianos, notadamente Theodore Adorno e Max Horkheimer, de que a música vinculada à Indústria da Cultura, com suas estruturas formais altamente previsíveis e repetitivas, melodias fáceis e padrões familiares, teria sido responsável por certa infantilização da audição e poderia haver contribuído, igualmente, para a “regressão da escuta”. Também é bastante comum nos tempos atuais a crítica, por parte de sociólogos, nutricionistas e profissionais da área da alimentação, à indústria dos alimentos por haver ocasionado uma homogeneização dos gostos e contribuído para a criação de paladares infantilizados, que, neste caso, se caracterizaria pela predileção por sabores adocicados e pela aversão a verduras, frutas, alimentos desconhecidos e temperos fortes. Nesse artigo buscar-se-á, portanto, estabelecer possíveis relações entre as críticas auferidas às indústrias da música de consumo e de “fast” e “ junk food” tendo por base as seguintes questões: haveria, de fato, a cultura de massas (ou para as massas) ocasionado uma homogeneização e infantilização de todos os gostos? Até que ponto é possível relacionar uma experiência estética com uma experiência alimentar? Não seria, em certa medida, a apreciação gustativa também uma experiência estética em algum sentido? Até que ponto podemos conceituar como “infantilizada” uma cultura pautada nos gostos de uma sociedade de massa construída sob a égide do consumo? Palavras-chave sociedade de consumo, indústria da cultura, indústria de alimentos, gosto 9 Introdução – a Indústria da Cultura1 Em Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas Adorno e Horkheimer “denunciam que, a despeito de sua postura aparentemente democrática e liberal, a cultura massificada realiza impiedosamente os ditames de um sistema de dominação econômica que necessita, entretanto, de uma concordância – pelo menos tácita – das pessoas para a legitimação de sua existência.” (DUARTE, 2002, p. 9). Segundo os autores, a Indústria da Cultura, ao aplicar ao âmbito cultural e artístico a lógica capitalista do mercado, cuja finalidade principal está em transformar todos os seus componentes em mercadoria, revoga a “autonomia da arte através das estratégias da cultura de massa – totalmente tecnificada, portanto submetida à esfera da racionalidade técnico científica.” (DUARTE, 2002, p. 51). A arte perde, então, segundo Adorno e Horkheimer, sua função de emancipação e crítica e serve à alienação. A relevância dessa formulação, sobretudo, está no fato de que, pela primeira vez na história humana, a cultura se define como uma indústria, outrossim, de grande viabilidade econômica. 1 Optamos pela tradução do termo Kulturindustrie como sendo indústria da cultura ao invés de indústria cultural, como comumente se é traduzido, não só por entender que seria mais bem adequado ao sentido original alemão (talvez mesmo duplamente pejorativo, tanto em relação à “indústria” como à “cultura”) como também pela realidade de expressões de algum modo análogas, entre outras, tais como indústria da ciência, indústria da consciência, indústria da fé, indústria da eleição, indústria do mensalão, indústria da corrupção civil, indústria da beleza, indústria da pornografia, indústria do sexo, indústria do turismo, indústria da moda, indústria do seguro, indústria da doença, indústria da seca, indústria da multa, indústria do dano moral, indústria da madeira, indústria da carne, indústria da pesca, indústria do fast food, indústria da comunicação, indústria da informação, ou ainda indústria motorizada da alimentação – expressão, esta última, conferida pelo próprio Heidegger - hoje chamada também de agronegócio ou agrobusiness. Em todos estes casos os interesses financeiros são tão decisivos que, ao superar qualquer questionamento ético-estético, se de um lado, já houve uma indústria da morte (lembremo-nos da racionalidade dos nazistas), de outro, já se fala também de uma indústria do holocausto. Enfim, realidades inexoráveis do capitalismo em que tudo vira negócio. Trata-se da ditadura do desempenho do lucro, excluindo-se desde então qualquer discussão ético-estética. (Kothe, 2002, p. 15) 10 Adorno e Horkheimer privilegiam o termo indústria da cultura em detrimento de cultura de massa, já que, segundo esses autores, os bens culturais produzidos por essa indústria se mantém numa relação vertical dos produtores para com os consumidores e se legitimam segundo uma lógica capitalista, portanto, nada teria a ver com os interesses autênticos dos consumidores. Segundo Duarte (2002, p.39), “uma das contribuições mais importante da crítica à mercantilização da cultura na Dialética do Esclarecimento, se expressa na denúncia de que ela realiza uma apropriação da capacidade de ‘esquematismo’ das pessoas”. Assim, para os autores, “já que a indústria cultural decompõe o que podemos perceber em suas partes elementares e rearranja de um modo que lhe seja interessante, ela adquire o enorme poder de influir no modo como nós percebemos a realidade sensível – em última instância, na maneira pela qual nós percebemos o mundo”. (DUARTE, 2002, p. 39). Para Adorno e Horkheimer, a indústria da cultura cria uma ideia de “real” através da repetição contínua, tornando-se então uma máquina de disseminação de ideologias conformistas. “A ideologia fica cindida entre a fotografia de uma vida estupidamente monótona e a mentira nua e crua sobre o seu sentido, que não chega a ser proferida, é verdade, mas, apenas sugerida, e inculcada nas pessoas. Para demonstrar a divindade do real, a indústria cultural limita-se a repeti-lo cinicamente”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 70) Daí Adorno dizer que a cultura de massa, de modo geral, é narcisista, “pois ela vende a seus consumidores a satisfação manipulada de se sentirem representados nas telas do cinema e da televisão, nas músicas e nos vários espetáculos.” (FREITAS, 2003, p. 19). A indústria cultural destitui a individualidade dos seres em prol de uma felicidade coletiva e vende a ideia de uma felicidade que nunca se realiza. 11 O olhar sobre as indústrias de fast e junk food a partir de um ponto de vista cultural e social possibilita a transposição da crítica adorniana para o campo da alimentação. Procuraremos entender a formação do paladar e do gosto alimentar a partir de uma perspectiva sociológica e cultural, objetivando entender a semelhança das estratégias utilizadas por ambas as indústrias, da cultura e de alimentos, na atual sociedade do consumo e a influência na formação do paladar e dos gostos alimentares dos consumidores. Os produtores da sociedade de consumo se apropriam de meios estratégicos que colocam em prática um tipo de obsolescência planejada, cujo principal objetivo consiste em criar uma aura de fetiche em torno do novo e, em contrapartida, tornar obsoleto tudo que possa ser visto como ultrapassado. No caso da música, esse tipo de obsolescência é gerado através da criação ou reformulação contínua de novos rótulos (gêneros) que, não obstante, revelam o velho e conhecido arquétipo formal tanto mais previsível quanto mais se lhe é familiar. Ao longo da história da indústria da cultura, alguns gêneros surgidos no seio da sociedade de consumo ganharam destaque. Hennion destaca que a predileção pelo rock e pop, por exemplo, deve-se a uma gama de fatores, dentre eles, o fato de haverem combinado mais sistematicamente “uma mistura de rituais, estruturas linguísticas e sociais, tecnologias e estratégias de marketing, instrumentos e objetos musicais, políticas e corpos” (HENNION, 2003, p.85). Podemos notar facilmente uma onda de novos gêneros que se tem criado a partir da apropriação e fusão de outros gêneros já consolidados: sertanejo universitário, funk ostentação, funknejo, pagode baiano, tecnobrega etc. Na indústria de fast e junk foods, a tensão repetição/ novidade se dá principalmente pela mudança das embalagens, formatos dos alimentos e tipos de experiência com a ingestão – entram aí o som produzido pelo alimento, a textura, a ocasião e local de consumo etc. Em contrapartida às críticas de Adorno e Horkheimer, os apologistas da Indústria da Cultura argumentam que a grande demanda para seus 12 produtos justificaria sua existência. Além disso, a baixa qualidade das mercadorias e sua padronização seriam ocasionadas pela necessidade dos próprios consumidores, que buscariam sempre as mesmas sensações, desfechos semelhantes, resoluções “satisfatórias”, finais felizes etc. Alguns fabricantes de alimentos e bebidas também defendem que o uso em excesso de açúcar, gordura e sal visa atender a própria exigência dos consumidores, de modo que, na rivalidade comercial, as empresas que satisfazem melhor essas exigências obtém maior número de vendas. Por conta disso, não é difícil encontrar empresas, inclusive fabricantes de cervejas, que alegam terem tido a necessidade de alterar a receita de seus produtos com vistas a aumentar a quantidade de sal, gordura e, principalmente, açúcar para atender ao paladar de seus consumidores. A refutação de Adorno e Horkheimer, no entanto, caminha no sentido da afirmação de que, na verdade, a indústria da cultura atenderia a necessidade dos consumidores, entretanto, de um modo que seus anseios são apenas apropriados por ela no intuito de obter lucro e controle social. (DUARTE, 2002, p. 38–39). Logo, os consumidores seriam mais vítimas que agentes ativos das indústrias do consumo, estas, em processo constante de especialização em busca dos mecanismos que fazem o consumidor querer sempre mais. Por essa perspectiva, é compreensível o fato de que as grandes companhias se empenham cada vez mais em pesquisas que buscam as fórmulas mais eficazes para intensificar ao máximo a sensação de prazer e bem estar. Com isso, conseguem refinar constantemente o apelo publicitário e a química de cada um de seus produtos. 2. A indústria cultural como modeladora dos gostos Para Hennion, “o gosto não é um registro ou as propriedades fixas de um objeto, um atributo estável de uma pessoa, um jogo entre entidades existentes, mas sim uma conquista” (HENNION, 2003, p. 90). O autor propõe, ademais, a ideia do gosto como “uma modalidade problemática de ligação com o mundo” (HENNION, 2005, p.1). Em O fetichismo na Música e a Regressão da Audição, Adorno destaca que “o próprio conceito de gosto 13 está ultrapassado”. E continua: “O comportamento valorativo se tornou uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas”. (ADORNO, 1999, p. 66). E comenta: “Se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se expresse em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo”. (ADORNO, 1999, p. 66). Segundo Adorno, “nas queixas atuais acerca da decadência do gosto, há certos motivos que se repetem constantemente. Tais motivos estão presentes nas considerações rançosas e sentimentais dedicadas à atual massificação da música, considerando-a uma ‘degeneração’”. (ADORNO, 1999, p. 67) Para este autor, a música produzida pela indústria da cultura é dominada pelo fetichismo que, por sua vez, se consubstancia no valor que é agregado à música por meios extrínsecos, independentes de seu valor como obra. Segundo o autor: “o conceito de fetichismo musical não se pode definir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores” sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria.” (ADORNO, 1999, p.67) Com a noção de coisificação e “fetichismo na música” Adorno procura “transpor a concepção de fetichismo da mercadoria, tal como aparece no livro I de O Capital [Karl Marx], para a análise crítica da cultura mercantilizada, a qual se encontrava, já então, em franco progresso em todo o mundo ocidental”. (DUARTE, 2002, p. 19). No caso do cinema não é diferente. O sistema cinematográfico comercial, que se apropria de fórmulas pré-existentes como padrões e conjuntos 14 de expectativas familiares, realimenta-se constantemente. Nessa perspectiva, é fácil entender comercialmente a permanência dos gêneros cinematográficos, por exemplo. De acordo com Bernardet (2010, p.75), “os produtores, ao repetir as fórmulas de sucesso, consolidam os gostos do público, e o público, ao gostar dos filmes, leva os produtores a repetir as fórmulas.” Mas fórmulas também se gastam e caem em desuso. Surge daí uma tensão constante: a necessidade de repetição e a necessidade de renovação, sendo que esta renovação guarda muito mais de seus modelos anteriores que ela faz supor. Ela está na maioria das vezes ligada aos elementos de superfície (atores, enredo...), mas mantém praticamente intacta sua estrutura narrativa (BERNARDET, 2010, p.76). A indústria da cultura atua, deste modo, na mais tenra idade, quando os gostos e hábitos estão em formação e criam, consequentemente, uma tendência à padronização dos gostos e pensamentos. O juízo crítico mantém-se atrofiado diante da falta de estímulos e desafios para a interpretação... E molda desde cedo os comportamentos e gostos infantis que serão canalizados, por sua vez, para o consumo deliberado e imediatista. A indústria da cultura opera, assim, pelo princípio de prazer, onde os desejos são satisfeitos de forma imediata e ilusória. 3. Alimentação: gosto e deleite como elementos simbólicos de distinção social Entender os fatores que regem a questão do gosto e paladar na alimentação é questão complexa, pois o consumo de alimentos não se restringe às necessidades biológicas, mas se submente a um intrincado sistema simbólico que envolve acepções históricas, sociais, religiosas, geográficas, econômicas, éticas e estéticas vinculadas à cultura e ao poder. De acordo com Pilla (2005), “desde meados do século XVII, o significado de “gosto” deixou de ser exclusivamente ligado ao paladar, campo da alimentação. Nos dicionários franceses do final do século XVII, seu sig- 15 nificado é bem mais extenso no sentido figurado” (Pilla, 2005, p. 62). De fato, em sem Dicionário Filosófico, de 1764, Voltaire afirma que: “O gosto, esse sentido, esse dom de distinguir nossos alimentos, produziu em todas as línguas conhecidas a metáfora que com o termo gosto expressa o sentimento das belezas e dos defeitos em todas as artes: é um discernimento pronto, como o da língua e do palato, e que como ele antecede a reflexão; como ele, é sensível e voluptuoso com relação ao bom; como ele, rejeita o mau com revolta”. (FLANDRIN, apud CHARTIER p.295) A questão do “bom gosto” também parece ocorrer como distinção étnica: no prefácio do Cuisinier royal et bourgeois (1691), Massialot defende que: “só na Europa reinam a limpeza, o bom gosto e a destreza no tempero das viandas” (Idem, p.293). Ainda no século XVII, escreve o padre Bouhours: “o bom gosto é um sentimento natural que se deve à alma: é uma espécie de instinto da razão correta”. (Idem, p.296). Em muitos de seus textos, em especial seu Dicionário Filosófico, Voltaire desenvolve uma série de analogias entre o bom gosto na alimentação e o bom gosto artístico e literário: “como o mau gosto, no [plano] físico, consiste em apreciar tão somente temperos demasiado picantes e rebuscados, assim o mau gosto nas artes consiste em comprazer-se apenas com os ornamentos estudados e não sentir a bela natureza (ibidem)”. Pilla (2005) ainda sustenta que, tal como na literatura, os livros de culinária do século XVII atacavam a zombavam a burguesia da época, denunciando as práticas e os gostos dos burgueses e das classes inferiores. Neste sentido, o “bom gosto” foi tido, também, como um símbolo de distinção social. A autora ainda destaca que “a rivalidade de classes no interior das elites parece contribuir para a elaboração da noção de gosto e ideologia do progresso das artes” (Pilla, 2005, p. 62). De fato, no século XVII as antigas famílias aristocráticas sentiam-se ameaçadas pela ascensão social da burguesia: 16 “Sabemos das lutas que elas travaram no plano político para conservar um pouco de seu poder: seu programa de reação nobiliária, enunciado em meados do século XVII, concretizouse em grande parte no XVIII. Todavia, essa rivalidade com os burgueses enriquecidos ocorria também no plano mais simbólico do fausto. (...) Desde alguns séculos os reis editavam leis suntuárias para combater a insolência dos burgueses enriquecidos. De nada serviam. Não impediram esses burgueses de vestir-se como grandes fidalgos, comprar cargos e títulos de nobreza, terras, castelos, construir mansões luxuosas e realizar faustosos festins. Em tais circunstâncias, o bom gosto não seria a arma forjada pela aristocracia para conservar um pouco de sua preeminência simbólica? (...) Na literatura do século XVII há constantes ataques aos burgueses: fosse para zombar de seu modo de ser específico e natural, como Furerière em Le romant comique [O romance cômico], ou de seus esforços para imitar a aristocracia, como Molière em O burguês fidalgo ou As preciosas ridículas, só se falava deles para rir a suas custas.” [grifo nosso] (FLANDRIN, apud CHARTIER p.297) Muito embora a questão do gosto tenha sido forjada como elemento simbólico de distinção social, nada evidencia que o gosto esteja relacionado com a riqueza, ou que pudesse ser hereditário e pertencer apenas a pessoas bem nascidas. Como afirma Pilla (2005), “O caráter de elite e não sua origem, aristocrática ou burguesa, vai abrir precedente para a conservação da expressão “bom gosto” para as sociedades democráticas” (Pilla, 2005, p. 63). Certamente, isto tem alguma relação com o fato de que: “Os grandes senhores, que a partir do século XVII definitivamente perderam a maioria de seus antigos poderes políticos e militares, passam a ser, sobretudo grandes consumidores; e também está ligado ao fato de que o campo do consumo e do luxo é aquele em que as diversas classes componentes das elites sociais nos séculos XVII e XVIII podem comunicar-se com maior facilidade”.[grifo nosso]. (FLANDRIN, apud CHARTIER p.297) 17 Destarte, o “bom gosto” torna-se uma importante virtude social, de robusta significação simbólica, a ser reconhecida pelos outros e pelo próprio indivíduo que a possui, reafirmando sua identidade social. Pode-se afirmar que, de forma análoga, gêneros musicais considerados de “sucesso” são capazes de distinguir simbolicamente seu consumidor, reafirmando sua identidade social. Partindo desta premissa, o mesmo pode ser aplicado aos amantes da música dita “clássica”, que se se alinham ao possível “status” (valor extrínseco), que esta possa lhe oferecer. A sociedade assume, então, nessa perspectiva, papel fundamental e contínuo na formação do “bom gosto”. Em outras palavras, a cozinha, como dizia Lévi-Strauss, está entre a natureza e a cultura. O homem, ao cozinhar os alimentos, transforma a natureza em cultura e, assim, opera uma transformação a si mesmo de homem biológico a homem social. Os alimentos cozidos, por sua vez, apodrecem e retornam à natureza – obtemos, assim, a ideia de “triângulo culinário” (cru/cozido/podre) de que nos fala Lévi-Strauss e que está presente de formas particulares em todas as sociedades. Hoje se entende que aprendemos a apreciar um alimento socialmente da mesma forma como aprendemos a ver, sentir, ouvir, tocar e saborear, ou seja, dentro dos hábitos de uma cultura. Logo, podemos constatar que a formação dos gostos de modo geral é realizada dentro de um recorte cultural, ou seja, dentro de um sistema de representações compartilhado social e culturalmente. Desse modo, todo o ritual intrínseco à alimentação influencia na formação do paladar e, de modo geral, pelo gosto por determinada culinária e pela predileção de padrões gustativos que pertençam a uma gramática e uma sintaxe culinária específica. Essa consideração é importante por vários aspectos, dentre eles: 1) nos autoriza a afirmar que é falsa a pressuposição de que pudesse existir o sabor em si, centrado apenas no conjunto de qualidades gustativas de um alimento, ou seja, nas características detectadas pelas papilas gustativas e, portanto, destituído de fatores extrínsecos. E 2) de que o gosto alimentar é cons- 18 tantemente construído e “refinado” ao longo da vida de um indivíduo e de uma cultura. A primeira afirmação possibilita uma correlação direta com a ideia de uma música absoluta. Ou seja, uma música destituída de sentido e que pudesse ser tomada como ícone puro ou som em si. Tal possibilidade, como proposta por Pierre Schaeffer com a música concreta se mostrou inviável, como tem demonstrado a nova geração de teóricos da música eletroacústica, dentre eles Denis Smalley e Michel Chion ou mesmo teóricos da nova musicologia. Em outras palavras, podemos afirmar que não existe percepção imaculada. Toda interpretação ou percepção é contextual, intertextual, intratextual e politextual. A segunda afirmação aponta para o constante processo de construção do gosto a nível social e individual e abre caminho para que possamos pensar em uma educação voltada para o aperfeiçoamento dos sentidos ou, em outras palavras, para o remodelamento dos gostos a favor de um “refinamento” gustativo, estético e funcional2, levando em conta outros critérios que não os fornecidos pela indústria de Fast e Junk food3. De início, o paladar infantil distingue comumente quatro sabores básicos: doce, salgado, amargo e azedo. É sabido também que na primeira infância o sabor doce é o preferido, seguido do salgado. O desenvolvimento dos receptores responsáveis por detectar esses sabores tende a se desenvolver mais rapidamente, provavelmente para favorecer o interesse por alimentos ricos em energia, e a predileção por esses sabores, geralmente, tendem a ser mantidos na maioria dos indivíduos. O gosto pelos demais sabores devem ser mais estimulados e são incorporados 2 Alimentação funcional: alimentação cujo objetivo principal está nos benefícios causados ao corpo. 3 Junk food (em uma tradução literal: comida lixo, porcaria) é um tipo de alimento industrializado com pouco valor nutritivo ou qualidades nutritivas prejudiciais, cujas características que lhe tornam baratos, com longo prazo de validade, propício ao consumo em diferentes temperaturas e condições, além do fato de não requerer preparo, o torna altamente atrativo para a indústria de alimentos. 19 gradualmente na dieta das crianças e, de acordo com influências diversas (sociais, culturais, ambientais, econômicas etc.) e educação alimentar, os sujeitos podem vir a desenvolver uma ampla capacidade gustativa e, possivelmente, podemos considerar que houve um “refinamento” do paladar e do gosto, ou seja, houve uma melhora na capacidade de se apreciar qualitativamente diferentes alimentos e distinguir diversos sabores. O interesse por hábitos alimentares permeia toda a obra de Lévi-Strauss e divide sua importância com a vastidão de assuntos estudados pelo antropólogo francês. Mais recentemente, alguns sociólogos, principalmente de língua inglesa e francesa, têm se interessado especificamente pelo estudo da alimentação enquanto ritual e, portanto, como elemento chave para a compreensão de perspectivas e costumes de uma sociedade. Dentre eles, o antropólogo e sociólogo francês Claude Fischler merece destaque ao relacionar em seus trabalhos os hábitos alimentares e componentes nutricionais como fatores de saúde e socialização. Segundo Fischler (2001, p.81), os alimentos “são utilizados em conformidade às representações sociais e usos compartilhados pelos membros de uma classe, grupo ou cultura; a natureza da ocasião, a qualidade e o número de convidados, o tipo de ritual em torno do consumo, constituem elementos ao mesmo tempo necessários, significantes e significativos”. A infantilização cultural e a degeneração dos gostos O uso de padrões e expectativas altamente familiares, a previsibilidade da estrutura formal, a preferência por fórmulas simples, a homogeneidade de sabores e fórmulas poderiam causar uma infantilização e degeneração dos gostos. O termo infantilização assume aqui uma conotação não exatamente idêntica à de criança, mas próxima à ideia de imaturidade. Utilizamos principalmente o termo para nos referir a uma imaturidade de gostos, ou seja, a ausência de um refinamento dos aparelhos receptivos que apenas é satisfatoriamente adquirido através de contato, aprendizado constante e experiências estéticas e artísticas com grandes 20 obras, boa culinária e com bons mestres. Etimologicamente, o termo infância provém do latim infans, infantis, portanto, aquele que não fala. No nosso uso, essa acepção pode ser entendida como a incapacidade de falar, pensar por seus próprios meios. Milton José de Almeida utiliza o termo infância cultural como metáfora para explicar “um conjunto de estados sociais e psicológicos, tais como: interação com produtos da indústria cultural de maneira singela e repetitiva. A necessidade de sempre ver/ouvir o mesmo; absorção imediata e ingênua das novidades culturais, principalmente as de grande divulgação, e o consequente abandono quando a estimulação mercadológica diminui e a moda passa; rejeição a coisas da cultura que demandem esforço de entendimento, sensibilidade ou atenção, como filmes ou textos considerados difíceis ou complexos; insegurança e medo ante objetos da cultura que não se apresentem já legitimados e autorizados pelos produtores de opinião ou pelo mercado. Dificuldades em ter uma visão pessoal, levando à busca de juízos de autoridade ou a defender-se em conceitos opacos como: elitista, popular, moderno, pós-moderno, conservador, progressista, avançado, de vanguarda, atual etc., que produzem no usuário certa sensação de segurança intelectual.” (ALMEIDA, 2004, p. 27 - 28) Segundo o autor, “As pessoas urbanas com baixa densidade cultural procuram sempre estar em meio a muita gente, ao barulho de rádios e música (que chama de “som”), a uma oralidade excessiva e vazia de sentido interior, utilizando os sons para simplesmente manter-se em contato fora de si próprios. Observem-se os bares, restaurantes, discotecas, periferias das grandes cidades, casas com aparelhos de som ou TV ligados o tempo todo.” (ALMEIDA, 2004, p. 27 - 28) A metáfora com a infantilidade também se dá em outros sentidos: ao se basear no princípio de prazer para criar suas estratégias de consumo, as indústrias da sociedade de consumo se apropriam de uma característica tipicamente infantil, a incapacidade de adiar o prazer submetendo-se submeter às exigências do mundo real e objetivando recompensas futuras. 21 Segundo Freitas, “O modelo básico da receptividade da indústria cultural é o do vídeogame, que dá aos adolescentes e às crianças o prazer de percepções esquematizadas previamente pelo autor do jogo. Essa atitude é muito semelhante à requerida no trabalho, que normalmente é monótono, repetitivo, sem criatividade, impessoal.” (FREITAS, 2003, p. 20) Conclusão A crítica à indústria da cultura realizada, ainda na primeira metade do século XX, pelos autores de Dialética do iluminismo indica o quão necessário se faz ainda hoje o debate em torno das questões ali levantadas. Certamente é viável a atualização da crítica para a era da informática a fim de abarcar as transformações sofridas pelos sistemas industriais com o advento da Internet. Por uma perspectiva positiva, as novas possibilidades de democratização dos bens culturais e artísticos trazidas por ela abriram caminhos para o florescimento de outras formas de consumo e relação com os bens culturais, inclusive a possibilidade de democratização e libertação dos ditames da indústria. Vê-se, no entanto, que logo surgem outras formas de manipulação e controle que visam direcionar os gostos e interesses e, assim, mais uma vez, novas empresas cumprem as funções que outrora os grandes meios de comunicação em massa, a saber, o rádio, o cinema e a TV, assumiam no século XX. Exemplos podem ser encontrados nas empresas especializadas em criar trafego e visualizações para sites, blogs, vídeos e outros conteúdos na Internet. O que a crítica realizada por Adorno e Horkheimer aos veículos de comunicação de massa tem em comum com as críticas proferidas às indústrias de alimentos, mais especificamente às indústrias de fast food e de junk food? Como pudemos constatar, as indústrias cultural e de alimentos, notadamente de fast e junk food, atuam dentro de uma lógica de mercado e influenciam fortemente na formação do gosto de seus consu- 22 midores através de estratégias publicitárias, psicológicas, de associação4, familiaridade e novidade ilusória cujos modus operandi são semelhantes. Ambas baseiam-se substancialmente nos mecanismos de repetição e novidade falseada que visam criar dependência e, consequentemente, manter os níveis de consumo. Os �������������������������������������� alimentos pré-cozidos ou semi-assados se assemelham aos produtos “pré-digeridos da indústria cultural. As canções melodiosas e as harmonias consonantes no remetem aos sabores adocicados e gordurosos. Do mesmo modo, a previsibilidade de padrões harmônicos e familiaridade das estruturas formais nos remetem ao conjunto de ingredientes típicos, e bastante familiares ao paladar, que são a base da cozinha comercial. O doce, o gorduroso e o salgado formam as três funções principais de nossas canções tonais. A limitação na gramática culinária, do mesmo modo se assemelha à limitada variedade formal das músicas que permeiam a indústria da cultura. Ao valer-se da repetição excessiva, de sabores e fórmulas familiares, de padrões altamente difundidos, enunciados facilmente assimiláveis e ao remover a possibilidade da frustração no conjunto de expectativas, as indústrias da cultura e de alimentos liberam o indivíduo do mal estar gerado pelo livre pensamento, da agonia causada pela liberdade de escolha e pelo medo do que lhe é estranho. Logo, libera-os do dever e da necessidade de tomar decisões e de enfrentar seus medos, saindo de sua zona de conforto. Consequentemente, libera os indivíduos da responsabilidade de tornarem-se adultos e maduros. Bibliografia 4 A capacidade de associar alimentos a coisas, lugares e ideias, o que envolve a crença na agregação de valores sociais e morais aos indivíduos que os consomem, é chamado por Claude Fischler (2001) de “princípio da incorporação”. ALMEIDA, Milton José de. Imagens e Sons: a nova cultura oral. São Paulo: Cortez, 2004. ADORNO, T. W. & HORKHEIMER, M. Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos, 1947. Disponível em: < http:// www.nre.seed.pr.gov.br/umuarama/ arquivos/File/educ_esp/fil_dialetica_ esclarec.pdf> Acesso em 23/08/2013. ADORNO, Theodor W. Textos Escolhidos. (Os Pensadores). Trad. Luiz João Baraúna. São 23 Paulo: Nova Cultural, 1999. BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2010. 1ª ed./20ª reimpressão. DUARTE, Rodrigo. Adorno/Horkheimer & a Dialética do Esclarecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. FISCHLER, Claude. L’Homnivore. Paris: Odile Jacob, 2001. Disponível em < http://www.csi.ensmp. fr/working-papers/WP/WP_CSI_001. pdf>. Acesso dia 23/08/2003. PILLA, M. C. B. A. Gosto e deleite: construção e sentido de um menu elegante. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 5369, 2005. Editora UFPR. Disponível em:< http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/ historia/article/download/4641/3799 > Acessado em 23/08/2013 FLANDRIN, Jean-Louis. A distinção pelo gosto. História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes / organização Roger Chartier; tradução Hildegard Feist. — São Paulo: Companhia das Letras, 2009 MALHEIROS, Patrícia G. Saber beber, saber viver. Estudo antropológico sobre as representações e práticas em torno do consumo de vinho entre degustadores, na cidade de Porto Alegre. Dissertação de mestrado. Porto Alegre: UFRS, 2006. FREITAS, Verlaine. Adorno e a arte contemporânea. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. SIZER, F.S.; WHITNEY, E.N. Nutrição: conceitos e controvérsias. 8ª ed. São Paulo: Manole, 2003. HENNION, Antoine. Music and Mediation: Toward a New Sociology of Music. In: Martin Clayton, Trevor Herbert e Richard Middleton (eds.). The Cultural Study of Music: a critical introduction. New York: Routledge, pp.80-91. 2003. Lévi-Strauss, Claude. O Triângulo Culinário. In Y. Simonis, Introdução ao Estruturalismo: Claude LéviStrauss ou “A Paixão pelo Incesto”. 2ª ed. Lisboa: Morais, 1979. . Pour une pragmatique du goût. PAPIERS DE RECHERCHE DU CSI CSIWORKING PAPERS SERIES, Paris: 2005. KOTHE, Flávio R. Seleção, tradução e notas. In Fragmentos finais de Friedrich Nietzsche [originais redigidos entre 1885 e 1889]. Brasília: UnB, 2002. 24 Os 10 anos do Musimid na pesquisa musical: depoimento de Teresinha Prada Teresinha Prada 25 Saraus, récitas líricas, bailes e concertos ituanos: as sinhazinhas, e seus dons musicais, embebidos em gengibirra e quitutes Marcos Júlio Sergl Professor da área de Comunicação da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação – FAPCOM e na área de Produção Musical da Universidade Anhembi Morumbi Resumo As reuniões familiares com intuito artístico ganham força no Brasil no século XIX, sobretudo, para apresentar os dotes musicais das moças. As práticas musicais socialmente aceitáveis realizadas pelas sinhazinhas estão ligadas ao espaço doméstico, por meio dos saraus, concertos, récitas líricas e bailes. O preparo para esses eventos muda a rotina da localidade. A decoração esmerada é composta por arcos de folhas e festões sobre as portas e janelas, grandes vasos com buquês de flores e arbustos, no exterior e no interior dos edifícios. Os doces e licores especiais são parte essencial dessas festas. E a localidade conta nessa época com Maria Custódia, que ajudada por duas escravas, arma mesas de doces, que parecem obra técnica de engenharia. A ópera italiana tem aceitação plena e constitui a base do repertório musical. As companhias italianas e nacionais, que apresentam suas mais recentes criações, ditam a moda e o comportamento da sociedade local. E os jornais dedicam páginas inteiras à descrição dessas festas, às quais todos comparecem. A partir da divulgação de eventos por parte da imprensa ituana, destacamos uma grande quantidade de bailes, saraus, peças e concertos na localidade. Festas escolares de término do período letivo, atos governamentais, solenidades religiosas e cívicas, aniversários, tudo é motivo para festejo. Assim, a monotonia da cidade provinciana é quebrada. Nesta pesquisa iremos analisar esses eventos de lazer cultural e social que destacam Itu no cenário da Província de São Paulo. 26 Introdução “A história de uma cidade pode ser um espelho da história de uma província, estado, região, nação. Se não um espelho fiel, ao menos um reflexo de muitos traços, que a história da nação esconde.” Octavio Ianni A partir do momento em que a sociedade ituana se estrutura e se firma economicamente, as artes começam a ser produzidas e reproduzidas. Toda a prática musical da localidade é influenciada pela música clássica vienense, pela ópera italiana e pela música de salão. Observamos isso a partir da análise das festas civis e religiosas ituanas na segunda metade do século XIX, em particular os bailes1 e saraus2. Essas influências são transmitidas pelos compositores europeus, que se radicam no Brasil, como os portugueses: Marcos Portugal, André da Silva Gomes, Rafael Coelho Machado e Pedro Gomes Cardim e o alemão Sigismund Neukomm, e pelos concertistas que vêm para longas turnês e aqui se estabelecem, como Louis Moreau Gottschalk. Atentamos para o detalhe de que ocorre ainda um processo de fusão de elementos mais antigos e mais novos da terra, que vão sendo assimilados pelo povo, seja na música popular, erudita, sacra ou folclórica. Nos compositores ituanos percebemos esses elementos na maneira de compor os recitativos em duetos de terças e sextas paralelas e na forma de executar essa música. Por outro lado, as companhias italianas que percorreram a Província de São Paulo no século XIX ditaram a moda, as formas de representação e de comportamento social. A aceitação plena da ópera é confirmada pela grande afluência de público nos espetáculos dessas companhias, que 1 Reunião festiva, cujo fim é a dança. (Houaiss, 2001, p. 380) 2 Evento noturno realizado geralmente em casa particular onde as pessoas se encontram para se expressarem artísticamente. Um sarau pode envolver dança, poesia, leitura de livros, música, pintura e teatro (Houaiss, 2001, p. 2520) 27 para cá traziam as mais recentes criações, tornando-a a forma musical mais popular da época. Os saraus, concertos e récitas líricas “Os salões inundados de um oceano de luz que em torrentes emitiam um soberbo lustre de cristal e as serpentinas colocadas em todos os seus ângulos, e cheios de senhoras que vestiam com graça e apurado gosto, ofereciam um soberbo espetáculo.” (Imprensa Ituana, 22.11.1883) As reuniões familiares com intuito artístico ganham força no Brasil Imperial, sobretudo, para apresentar os dotes musicais das moças. As práticas musicais realizadas por mulheres estavam bastante divididas, entre aquelas socialmente aceitáveis e ligadas ao espaço doméstico e aquelas não tão aceitáveis e ligadas ao espaço cênicoprofissional. As oportunidades que possuíam as mulheres de realizar uma aproximação aos círculos de música ou às academias de arte estavam bastante dificultadas pelo fato de que as atividades artísticas eram, nesse momento, consideradas somente aos homens. O instrumento preferido para a educação musical das moças no final do século XIX era o piano. Símbolo de status social, refinamento e boa educação, o piano era o centro dos saraus domésticos, onde elas podiam mostrar seus dotes cantando, tocando piano e recitando poesias, preferencialmente em francês. “Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo. Em um sarau todo mundo tem o que fazer. Todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no seu elemento; aqui uma, cantando suave cavatina3, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surge, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do écarté, mesmo 3 Pequena canção para solista, com seção única, sem repetição. (Houaiss, 2011, p. 661) 28 na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um sustenido”. (Morais, Maneiras de Ler no Brasil no Século XIX) Em Minas Gerais nas últimas décadas do século XVIII, “fazia-se música em casa, não raro integrada por pessoas da família, completadas por um ou mais escravos, ou libertos mulatos, que sabiam tocar instrumentos. Havia trios, quartetos, quintetos, etc. que ilustravam os saraus elegantes, ou saíam os músicos pelas ruas, em noites enluaradas, a fazer serenatas românticas...” (Mariz, 1983, p. 39) “Nos saraus dos ricos fazia-se muita música, as moças estudavam piano e havia seções de música até em revistas de moda feminina” (Ibidem, p. 58) Por outro lado, o baile era o divertimento preferido dos jovens de então. Todos os homens se apressavam em ceder um lugar, um assento e todos buscavam ser agradáveis uns aos outros. Todas as moças deveriam ser chamadas de senhora, V. Sª ou V. Exª. Quanto às moças dessa época, não poderiam confundir os cavalheiros que a convidassem para dançar. Se acontecesse e houvesse alguma disputa entre eles, a moça deveria se dizer cansada e não dançar mais com nenhum cavalheiro, conservando um ar sempre alegre, porém contido. Os rapazes não deveriam tirar para dançar a mesma moça mais de uma vez no baile, ainda que fosse a mais bonita, a mais bem vestida. Ao oferecerem a mão a uma moça, não ofereciam a palma da mão, mas as costas, para que a mão da senhora repousasse sobre ela. Os cavalheiros deveriam trajar-se sempre com gravata branca, colete branco, luvas brancas, meia de seda e calça comprida e segurar a senhora pela cintura e nunca pelas pregas do vestido. Na passagem do século XIX para o século XX, as danças da moda eram a valsa, o galope, o cotillon, a polca, a contradança, a mazurca, o xote e a quadrilha que, naquela época, era uma dança refinada, apropriada aos salões aristocráticos4. O próprio Imperador D. Pedro II foi um grande 4 Foi encontrado recentemente na Biblioteca Municipal de Poços de Caldas o “Manual de Dança Methodo Facil para Aprender a Dançar sem Professor”, provavelmente do século XIX, impresso na Typografia da Livraria Magalhães, no qual estão explicadas as danças mais expres- 29 apreciador das quadrilhas, dançando todas que eram tocadas nos bailes a que comparecia. Até a década de 1960, o baile era um dos eventos sociais mais importantes e populares de todas as idades e camadas sociais. A primeira informação sobre a vida artística ituana de que dispomos (O Ituano, 16.03.1873) descreve o sarau realizado no dia 9 de março de 1873 na residência do Dr. Antônio de Queiroz Teles sob a supervisão de Elias Álvares Lobo e Tristão Mariano da Costa. Boa parte do programa constitui-se de árias de ópera. Cantou-se a ária final de La Sonnanbula; a cavatina do Belizario; a cavatina da ópera Robert, le Diable; a cavatina da ópera La Favorita; o dueto Tutte le Feste al Tempio, do Rigoletto; o dueto Qual voce!... , da ópera Il Trovatore; o dueto Ciel! che vegg’io, de Lucrezia Borgia. E também ópera brasileira: de Elias Lobo, o dueto de A Noite de São João. Essas peças foram acompanhadas por piano, flauta transversal, violino, violoncelo e clarinete. Constou ainda de uma parte instrumental com piano, oficleide, sax, violino e piano, a duas, quatro e seis mãos! Também nessa parte sente-se a predominância da música italiana para cena. Foram tocadas peças sobre motivos de ópera, fantasia da ópera Il Guarany; a abertura da ópera Tancredo, fantasia da Norma, de Bellini. A banda tocou várias vezes nesse sarau dividido em três partes, sendo que “no 1º intervalo foram os convidados servidos de finíssimos licores, no 2º o chá, e no final pastéis e diversos espíritos.”5 Observa-se pelo decorrer do artigo, que os alunos mais experientes de Elias Lobo e Tristão Mariano apresentam-se no sarau, um grande acontecimento na pacata cidade, pois reúne um grande contingente de músicos. sivas desse período, suas características e como dançá-las. Ver: BISPO, Antonio Alexandre. 1971. O Papel da Dança na História da Música no Brasil do Século XIX. WWW.akademiebrasileuropa.org 5 O espírito citado no texto é uma espécie de cachaça, que podia ser obtida por meio da destilação caseira da cana ou do vinho, muito comum na época. Era também o nome para bebidas alcoólicas em geral. 30 A decoração nesses saraus é composta por arcos de folhas e festões sobre as portas e janelas, grandes vasos com buquês de flores e arbustos, no exterior e no interior dos edifícios. Os doces e licores especiais são parte essencial dessas festas. E a localidade conta nessa época com Maria Custódia, que ajudada por duas escravas, arma mesas de doces, que parecem obra técnica de engenharia. A tradição de quituteiras e doceiras permanece até hoje na cidade. A partir da divulgação de eventos por parte da imprensa ituana, destacamos uma grande quantidade de bailes, saraus, peças e concertos na localidade. Festas escolares de término do período letivo, atos governamentais, solenidades religiosas e cívicas, aniversários, tudo é motivo para festejo. Assim, a monotonia da cidade provinciana é quebrada. Apresenta-se no Teatro São Domingos, no dia 27 de julho de 1873, a Companhia Dramática, dirigida por Nuno de Melo Viana, com récita em favor da atriz Francisca Marques, que apresenta o drama A Conversão de um Cínico; a comédia A Dama das Camélias, e o dueto Quimquim e Sinhá Rosa. Essa companhia deve ter agradado, pois em abril de 1874 está de volta, e apresenta O Médico das Crianças e A Filha do Lavrador. Itu conta com uma sociedade de atores intitulada Amor ao Palco, que, ao longo de sua existência, se apresenta regularmente no teatro ituano. No dia 22 de agosto de 1874, representa o drama em três atos Procela e Bonança, e a comédias Brinquem com Mulheres e Um Quarto com duas Camas. Em finais de outubro desse mesmo ano, a companhia apresenta o drama Os Mártires do Coração, de autoria de Carlos Ferreira; e, uma comédia em um ato, com música composta por Tristão Mariano da Costa. Em fevereiro de 1876, está na cidade a Companhia Lírica Italiana, sob a direção de Jorge Mirandola, após se apresentar em São Paulo e Campinas. Na récita do dia 15, é encenada a ópera Ernani, de Verdi; no dia 18, Lucia de Lammermoor, de Donizetti; no dia 20, Il Barbieri di Siviglia, de Rossini: e no dia 23, La Traviata, de Verdi. Pela diversidade e dificulda31 des de toda ordem do programa, cremos que eram encenados apenas os trechos mais conhecidos das óperas. O cenário constava de painéis pintados. Também deixa-nos dúvida que tipo de encenação seria essa; provavelmente muito simplória, para poder se adaptar aos pequenos teatros da Província. A companhia conta com oito artistas principais, e entre eles a festejada cantora Augusta Cortezi, os Srs. Mirandola, Signoretti, Frizero, e o barítono Spalazzi, além do coro. A orquestra é da localidade; provavelmente de Tristão Mariano da Costa. Do artigo de 13 de fevereiro de 1876, publicado no jornal Imprensa Ituana, selecionamos o trecho a seguir, que mostra com clareza a preferência pela ópera italiana, “acreditamos não haver outra igual na Província... E não é só devida a sua superioridade, ao gênero italiano, que é incomparavelmente superior ao francês, e bufo, é que são melhores artistas...”; e, ainda, “quatorze anos fui assíduo freqüentador do teatro lírico, no tempo em que na Corte havia teatro italiano, no tempo em que o alcazar e o mau gosto ainda não tinham dominado, e feito domiciliar-se essa intitulada música, essa corriqueira e leviana música francesa, que tem pervertido o gosto.” As críticas elogiosas vão todas para Augusta Cortezi, cantora experiente, com direito a vários buquês de flores e até a versos publicados por admiradores. As moças ficam hipnotizadas com as vestimentas e o modo de conduta dela, e tentam copiar seu jeito de ser; os homens ficam perdidamente apaixonados. Diz o articulista, no dia 20 de fevereiro de 1876: “sua voz maviosa, sentida, de uma flexibilidade realmente rara, e educada com esmero notável, dão-lhe direito a uma distinção incontestável entre as cantoras mais estimadas...” Novas críticas à ópera francesa aparecem no artigo escrito no dia 27 de fevereiro, em meio aos elogios à ópera italiana: “La Traviata é destas que fazem o verdadeiro efeito da boa música, que elevanos a um mundo superior, em que nos engolfamos em êxtases 32 celestes. Não é como estas corriqueiras francesas, que convidam a dançar, brincar, e não dão idéias, senão estas pequeninas de uma vida trivial e baixa. É esta ópera cheia de saudades e lágrimas, é o transbordamento de um coração que muito sofre porque muito amou... Mozart, Rossini, Bellini, Beethoven, mostram que a música exprime a cólera, o ciúme, o galanteio, a grandeza heróica, com a expressão tão precisa, que as faz reconhecer imediatamente... Os músicos italianos e alemães fazem proféticas revelações, expandem sua alma em cantos belíssimos. Bellini, sobre todos, é o intérprete do século... Offenbach e os franceses só pensam no prazer, na dança, e bebedeira e só querem disfarçar com loucuras as dores da alma...”6 Fica acertada a vinda da mesma companhia para cantar o Stabat Mater, de Rossini na Semana Santa desse mesmo ano de 1876. Diz o articulista: “Esta música é uma verdadeira ópera, cantada na Igreja.” Apresenta-se em Itu ainda nesse mesmo ano de 1876, a Companhia de Zarzuela, sob a direção de André Ortiz. No dia 24 de dezembro de 1876, é levada à cena O Visconde e A Cauda do Diabo. Merece destaque a atuação da cantora Purificacion Ávila e dos artistas Aragon e Bonaplata. No dia 26 de dezembro, encena-se O Cavalheiro Particular e A Sensitiva. É por essa última representação, acompanhada pela orquestra dos alunos do Externato Tristão Mariano, que Feliciano Leite Pacheco Júnior faz duras críticas ao acompanhamento instrumental, nos seguintes termos: “... por um supremo esforço mostraram o seu belo desempenho e a beleza da música; dizemos por um supremo esforço porque a orquestra não os pode ajudar, decaindo muito...”, gerando um mal estar, minimizado pela resposta, publicada no dia 14 de janeiro de 1877, na Imprensa Ituana, do diretor da companhia. Fica nítido que o relacionamento entre os dois mestres de capela não é dos melhores. No mês de março de 1877, apresenta-se a Companhia Riosa, composta por três membros da família. São apresentadas pequenas comédias can6 O periódico Imprensa Ituana publicou artigos sobre essa companhia nos dias 13.02.1876; 20.02.1876 e 27.02.1876. 33 tadas, árias, duetos e habaneras, sempre acompanhadas pela orquestra de Tristão Mariano. No mês de junho do mesmo ano, é a vez da Companhia Lírica do Sr. Barcena, que traz as artistas Pezoli, Ávila e Canepa; os Srs. Aragon, Barcena e Pons, além do coral. No repertório consta: Norma, La Traviata e Ernani. Nesse elenco estão dois cantores da Companhia de Zarzuelas, Purificacion Ávila e o tenor Aragon, deixandonos claro que essas companhias eram montadas, reunindo-se os cantores disponíveis para realizar as turnês, e que os mesmos cantavam um variado repertório. Os ensaios deveriam ser realizados nas próprias cidades, com um resultado duvidoso para os nossos padrões atuais. Também a orquestra, composta por alunos, não realizava tantos ensaios para que o repertório fosse assimilado por músicos ainda inexperientes. Além disso, a orquestra tocava nas cerimônias religiosas, que eram constantes. Na representação ópera da La Traviata, a imprensa local destaca a atuação da cantora E. Pezoli, “que veio justificar a merecida fama de que goza. Realmente esta artista, além da excelente voz de soprano, terna e melodiosa que possui, sabe haver-se com notável distinção nas situações mais trabalhosas e difíceis. A sua atitude, olhar, o gesto e a naturalidade de posições, demonstram o estudo pertinaz, e um robusto talento artístico.”7 Também a orquestra recebe elogios por essas representações. Ainda no mês de junho, a cidade recebe a Companhia Dramática Fênix Paulista, sob a direção do ator José Alves Louro. As últimas décadas do século XIX No mês de dezembro de 1878, a companhia do ator Dias Braga apresenta diversas peças no Teatro São Domingos. No dia 9 de agosto de 1879, tem 7 Imprensa Ituana, 27.05.1877. Outros artigos sobre essa companhia foram publicados nos dias 06.05.1877 e 20.05.1877. 34 vez a companhia de Guilherme da Silveira, com o drama A Judia, do escritor português Pinheiro Chagas. Destaca-se a atuação de Ismênia dos Santos, artista bastante conhecida no Rio de Janeiro. A ópera está presente nos mais diversos espetáculos, como na soirée do professor Kaldan, apresentada no Teatro São Domingos, no dia 30 de agosto de 1879. Essa palestra sobre a vida dos anfíbios do fundo do mar termina com trechos de ópera lírica, cantados pela Sra. Sertã. No dia 20 de setembro do mesmo ano, a Companhia Dramática, dirigida por Luís Braga Júnior apresenta a peça sacra Milagre de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. A partir de meados da década de 1870, começam a se tornar mais frequentes os concertos de instrumentistas. No dia 24 de dezembro de 1878, apresenta-se em Itu a violinista Júlia Beltran, acompanhada pelo maestro Canepa. O repertório apresentado demonstra o gosto da época para o virtuosismo. A crítica escrita na Imprensa Ituana, no dia 27 de dezembro, caminha sempre para comentários em torno dos trinados, das escalas e das apogiaturas. Não podemos considerar uma seleção de clássicos do instrumento, tendo em vista que não está presente nenhuma das obras mais sólidas do repertório violinístico. Nesse dia, Julia Beltran tocou, acompanhada pelo maestro Canepa, no violoncelo e pelo Sr. Fhlor, no piano, Fantasia, de Beriot; O Rouxinol sobre a Árvore, fantasia, de Hanser; La Figlia del Regimento, fantasia, de Alad; Canto de Amor, de Beethoven. Artistas da Companhia Dramática de Luís Braga Júnior tomam parte na segunda récita de Júlia Beltran, juntamente com a orquestra de Tristão Mariano, e a apresentação torna-se extremamente diversificada. O programa inicia-se com uma Sinfonia, executada pela orquestra; segue com a comédia em um ato Uma Esperança, dirigida pelo maestro Canepa. A segunda parte do programa é iniciada com outra Sinfonia, pela orquestra, seguida do Concerto para violino e piano de Beriot, de um potpourri sobre motivos da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes; do Trio de Oelschlegel, para violino, violoncelo e piano; e, do Concerto para violino e piano, 35 de Alard. Na terceira parte, ouve-se uma nova Sinfonia, pela orquestra, seguida da vaudeville, Uma Criada Impagável, sob a direção do maestro Canepa. As sinfonias apresentadas no programa são aberturas à italiana. O ano de 1881 é repleto de novas companhias dramáticas atuando em Itu. No dia 9 de abril apresenta-se a Companhia dos Srs. Castro e Violante, com o drama Filha Única. Em maio, é a vez da companhia Borel. No mês de junho, a companhia ituana de atores Amor ao Palco apresenta os dramas A Morgadinha de Val-Flor, de Pinheiro Chagas e A Virgem do Mosteiro, em benefício da reforma do Teatro São Domingos. Por essa época, ele deveria estar com sérios problemas, pois, a partir de 1882, notamos que os concertos passam a ser realizados em outros locais. Também um artigo de 13 de agosto de 1882, publicado na Imprensa Ituana, salienta a importância da reforma da sala e de a cidade ter uma companhia-escola de atores. Nesse mesmo dia e jornal, há uma chamada a respeito do pianista Henrique Braga. Esse músico vem a Itu para se apresentar na casa de Teolinda de Souza. Com um currículo já respeitável, tendo estudado em Paris, apresentando-se na Sala Pleyel daquela cidade. Em Itu é acompanhado por diversos artistas locais, entre eles, Tristão Mariano, José Mariano, Abrão de Barros, Felipe Bauer Júnior e Maria Augusta, filha de Tristão. Novamente no programa, compositores italianos, destacando-se a peça I Juramenti, de Mercadante. No dia 24 de junho de 1883, apresenta-se no Teatro São Domingos, a Grande Companhia Dramática, dirigida por Ribeiro Guimarães, com o drama em um prólogo e seis atos Os Pobres de Paris, de F. Barriere. O Barão de Parnaíba abre seu solar para um grande baile no dia 13 de novembro de 1883, conforme artigo publicado na Imprensa Ituana no dia 22 de novembro. “Os salões inundados de um oceano de luz que em torrentes emitiam um soberbo lustre de cristal e as serpentinas colocadas em todos os 36 seus ângulos, e cheios de senhoras que vestiam com graça e apurado gosto, ofereciam um soberbo espetáculo. Às nove horas a orquestra dá o sinal. Os pares se arrojam ao salão principal e dançam a primeira quadrilha. As harmonias desta como que seduzindo os espíritos, neles produziram um entusiasmo delirante e dentro um pouco as danças sucediam-se com curtos intervalos. Em um destes, fomos despertados por umas notas habilmente tiradas ao piano por um distinto cavalheiro. Em seguida uma voz suave e melodiosa se fez ouvir e cantou a Cavatina da Semiramis. Surpresa encantadora, e que produziu impressão tão agradável no auditório que a Exma. D. Augusta não pode furtar-se à satisfação de um pedido que lhe foi dirigido e fez-se de novo ouvir, entoando magistralmente o Brinde da Galathée. Foram servidos às onze horas um chá e às duas horas uma lauta ceia... A festa continuou depois e dançou-se ainda muitas polcas, quadrilhas, etc. até as quatro da manhã...” No mês de maio de 1884, os cidadãos ituanos são brindados com a Companhia Lírica Italiana, de Vicenzo Tartini. O programa apresentado no dia 10 constou do quarto ato de Il Trovatore, da ária do Barbeiro de Sevilha, intitulada A Calúnia, da ária da Favorita, do dueto da ópera I Juramenti, e do dueto de Il Puritani. O programa apresentado no dia 11 compôs-se do segundo ato da ópera La Traviata, do dueto da Semiramide, do segundo ato da ópera I due Foscari, da canção Mia Piccirella da ópera Salvator Rosa e da Balada do Il Guarany. Pela crítica da Imprensa Ituana no dia 22 de maio de 1884, deduz-se que esses espetáculos eram, na verdade, cortinas líricas. Em nenhum momento se toca no aspecto da representação; somente na qualidade vocal dos cantores. “Ao público agradou o desempenho dado pelos artistas, principalmente pelo Sr. S. Soffietti, que é um excelente barítono e cantou muito bem, e pela Sra. Zani. O Sr. Dal Negro é um artista antigo, mas apesar da idade ainda tem uma boa voz e foi bem no Barbeiro de Sevilha. A Sra. Ida Giglioni que cantou no 2o ato da La Traviata com o Sr. Soffietti não se deu mal, mas 37 a sua voz é fraca e ficou suplantada pela deste. A Sra. Leone é que tem uma voz forte, mas faltamlhe outros requisitos para ser boa cantora...” Ainda a inclusão de solos para violoncelo e oboé, executados por músicos da própria Companhia, os professores Cousigli e Boyer, levam-nos a pensar mais em um sarau ou cortina lírica. No segundo semestre desse mesmo ano, apresentam-se no Teatro São Domingos dois grupos teatrais ituanos. No dia 21 de setembro, realiza-se um espetáculo em benefício de Maria Lima, sendo representado o drama em quatro atos, O Órfão e o Mendigo, e a comédia em um ato, A Ordem é Ressonar; e no dia 26 de outubro, o Grêmio Dramático Ituano encena o drama em um prólogo e cinco atos, Estátua de Carne, com o objetivo de guarnecer os camarotes do teatro com cadeiras. Até o momento, os assentos do mesmo eram tamboretes tecidos de palhinha, com certeza muito incômodos, fato pelo qual as famílias mandavam levar cadeiras próprias para os espetáculos. No dia 30 de março de 1885, a Companhia Braga Júnior apresenta a opereta Os Sinos de Corneville; e no dia 12 de maio, amadores ituanos encenam o drama Diana, com destaque para Maria Lima, no papel principal, e a comédia Guerra dos Nunes. No dia 31 de maio do mesmo ano de 1885, o Dr. José Manoel de Arruda Alvim abre as portas de seu solar para um concerto vocal e instrumental. Participam do evento, Giovanni Scolari, artista da Companhia Lírica Italiana, baixo profundo; Francisco Santini, regente de orquestra, professor de piano e canto; Elisgena Santini e Julia Santini. No programa constam canções e trechos de ópera, entre eles a ária para baixo da ópera Salvator Rosa, de Carlos Gomes; Non è Ver, romance de Tito Mattei; fantasia sobre motivos da ópera La Sonnanbula, de Bellini; dueto da ópera Marino Faliero, de Donizetti; Marinesca, de Tito Mattei; Quero Sim, valsa de concerto, composta por Francisco Santini; A Canção 38 do Aventureiro, da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes; A Violeta, composição de Francisco Santini, sobre versos de Casemiro de Abreu; e, o dueto de Adina e Dulcamara, da ópera L’Elisir d’Amore, de Donizetti. O concerto deve ter sido um sucesso, pois os artistas resolvem repeti-lo, com pequenas alterações no programa, no dia 7 de junho, no salão da residência de Bento Paes de Barros. São acrescentadas a ária para baixo da ópera Don Carlos, de Verdi; o dueto Maria e Rizzio, de Fábio Campana; Pátria, romance para baixo, de Tito Mattei; A Estrela Confidente, de Palloni, e repetidas algumas peças do concerto anterior. Chama-nos a atenção no programa impresso na Imprensa Ituana, para o destaque Grande Concerto-Baile Vocal e Instrumental. Depois do concerto haverá baile! Francisco Santini gosta muito da localidade, pois decide fixar residência em Itu. No dia 16 de agosto de 1885, o Dr. Francisco Egídio da Fonseca Pacheco oferece um baile ao Visconde de Parnaíba. A orquestra regida pelo maestro José Mariano iniciou o baile com uma quadrilha, e as danças prolongaram-se até perto de 4 horas da madrugada, com cerca de 60 pares. Consideramos de grande interesse a descrição feita pelo articulista da Imprensa Ituana, a respeito da decoração, publicada no dia 18.08.1885. “O Saguão. À entrada despertava curiosidade e atenção dos convidados um quadro sobremaneira majestoso: uma cascata artificial, preparada com muito gosto e arte, sobressaia no fundo; em cima da mesma havia uma inscrição em letras de cor e movediças, de magnífico efeito, onde se lia a seguinte inscrição: - Ao Visconde de Parnaíba – Os seus amigos. Para completar este belíssimo quadro, havia uma variada iluminação de lanternas venezianas, destacandose com especialidade o lustre central, circundado por mais de trinta lanternas, que davam ao local uma perspectiva verdadeiramente oriental. Tocava aí a excelente banda de música dos Artistas. A escada toda enfeitada de palmeiras e folhagens, tinha no fundo um espelho oval, circundado por dois grandes vasos com flôres, guarnecidos por muitas rosas esparsas, predispostas em harmonia artística. No topo da mesma sobressaía um grande espelho 39 quadrangular, com idêntica ornamentação à que se via no de baixo. Salas do baile. Duas eram as salas destinadas às danças. A primeira tinha nos quatro ângulos quatro cantoneiras, que sustentavam ricos vasos com bouquets artisticamente preparados; cortinas riquíssimas, vários candelabros, onde brilhavam mais de quarenta luzes, davam à sala um aspecto brilhantíssimo. A segunda sala, um pouco menor, oferecia um bonito aspecto pela suntuosidade da ornamentação, achando-se luxuosamente entapetada (sic) e dispondo de grandes espelhos, jarras com flores, serpentinas e muitas luzes.. O boufet (sic), de cujo serviço foram incumbidos os Srs. Joaquim Leitão e José Xavier, achava-se preparado com muito gosto. Construído em forma triangular, adornado com lanternas venezianas, suspensas por colunas enfeitadas por papéis de cores e folhagens, tinha no centro o seguinte dístico: V. P...” Observamos pela descrição acima o gosto pelo exótico, imperando por todo o século XIX, além do excesso de adereços. O dia 9 de junho de 1887 é marcado pela presença do grande violinista Vincenzo Cernicchiaro. Ele realiza um concerto no salão do Clube 6 de Julho, acompanhado pelo pianista Eugênio Hollander e pelos artistas da terra, José Mariano, no violoncelo; as cantoras Ida Meyer e Adelaide Escobar; e, João Escobar, na flauta transversal. Cernicchiaro, já bastante conhecido no Rio de Janeiro, interpreta, entre outras peças, Andante e Polaca de Concerto, de sua autoria; e Fantasia Caprice, de Vieuxtemps. Ida Meier canta a ária da Favorita. Adelaide Escobar intepreta Romance, de Dancla. José Mariano, Eugênio Hollander e João Escobar acompanham os solistas, além de executarem o Terceto, de Tito Mattei. O concerto esteve acima das expectativas, a se julgar pelas críticas na imprensa local. Salientamos que, mais uma vez, apesar de o concerto ser predominantemente instrumental, a ópera se faz presente na voz das cantoras. As sociedades Amor ao Palco e Amor à Arte, formadas por amadores, apresentam diversas peças teatrais durante a década de 1880, sempre com acompanhamento musical da orquestra regida por José Mariano ou 40 Tristão Mariano; além de trazer a Itu o conhecido ator Xisto Bahia, que se apresenta na primeira semana de março e na última semana de abril de 1889, no Teatro São Domingos. O tenente coronel José Feliciano Mendes oferece o salão de sua residência para a realização do concerto da harpista Matilde Cerutti, que acontece no dia 6 de fevereiro de 1890, com a participação de José Mariano, João Escobar e João Narciso. No programa são ouvidas obras de Godefroid, Pinsuti, Gottschalk, Francisco Braga, e a Fantasia do Robert, le Diable, de Meyerbeer, adaptação para oficleide. Nos dias 5 e 6 de abril desse mesmo ano de 1890, o Grupo Dramático Particular João Caetano encena no Teatro São Domingos o drama Remorso Vivo, em um prólogo e cinco atos, representado dezenas de vezes no Rio de Janeiro. A música é lavra de Arthur Napoleão, com arranjos de Tristão Mariano, e os painéis da cenografia são pintados pelo ituano Jonas de Barros. A orquestra é regida por José Mariano. Ou seja, é uma coprodução em parceria com artistas da cidade. O duo de violonistas Martinez Toboso e Praxedes Orosco realizam um concerto no dia 10 de dezembro de 1890 no salão do Clube Recreio Ituano. No programa constam, entre outras peças, valsas de Waldteufel e a fantasia da ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi. O início de 1891 é marcado pela presença de diversas companhias teatrais. No dia 28 de janeiro, apresenta-se a Companhia Dramática dirigida pelo ator Machado, com o drama realista Arnaldo, do escritor Damasceno Vieira; no dia 31 de janeiro, é representada a peça Os Milagres de São Benedito, de Antonio de Souza Pinto, tendo entre os atores, Julio de Oliveira e como regente e autor da parte musical, o ator Lannes; no dia 5 de fevereiro, faz-se uma noite em benefício de Julio de Oliveira, na qual são representados: o drama As Lágrimas de Santa Cecília; o prólogo Mulato Jornalista e o quadro A República Brasileira. 41 No início de 1894, a cidade está em polvorosa. Estréia no Teatro São Domingos a Companhia Lírica Italiana de A. Verdini. A Companhia vem com um elenco grande para os padrões da época: diversas solistas, dois primeiros tenores, dois barítonos, dois baixos, orquestra de quinze professores, sob a regência do maestro Pezzoni. Fazem parte do elenco: o tenor Simoni e Gayarre; o barítono Verdini (diretor da Companhia); o baixo Coscollano; a contralto Cescati Verdini; a sra. Coscollano; os srs. Pecci e Molteni. São encenados Il Barbieri di Siviglia, de Rossini; Rigoletto e Ernani, de Verdi; La Favorita, de Donizetti. A companhia ainda tem em seu repertório: Il Trovatore e La Traviata, de Verdi; Lucia de Lammermoor, de Donizetti; Cavalleria Rusticana, de Pietro Macagni; Il Guarany, de Carlos Gomes e Carmem, de Bizet! Ainda ativa e atuante na década de 1890, a Sociedade Dramática Particular Amor ao Palco de Itu apresenta no dia 10 de junho de 1894 a comédia em um ato de Alfredo Ataíde, O Tio Torquato e a comédia em três atos, versão de Camilo Castelo Branco, O Assassino de Macário; intercaladas por trechos da Fosca, de Carlos Gomes, e um variado repertório, interpretado pela orquestra montada para auxiliar a sociedade nesse espetáculo. Entre os intérpretes destacam-se Tristão Mariano, João Narciso, Luiz Buscaglia. Nos dias 14 e 15 de abril de 1895, a violinista Giulietta Donesi e o pianista Almicare Zanella, auxiliados por Tristão Mariano, Tescari, Buscaglia, Settimi e Vettorazzo, realizam concertos no Teatro São Domingos. No repertório o intermezzo da Cavalleria Rusticana, Gounod, Hauser, Viniawski, Santana Gomes e Pinsuti. No início do século XX, a cidade recebe Giovanni Scolari, conhecido cantor, que apresenta a ária da ópera Ernani, de Verdi; Povera Mama, de Tosti; O di tu?, de Mattei; o dueto de I Masnadieri, de Verdi; e transcrições para piano de Aída, Nabucodonosor, La Sonnanbula e Salvator Rosa. É 42 acompanhado por Sinésia Carneiro e Etelvina Pacheco e Silva e pelo professor C. Guimarães. Em 1906, a cidade recebe um músico já consagrado, Patápio Silva. Formado pelo Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro é um dos maiores virtuoses brasileiros. O flautista apresenta obras do repertório de concerto do instrumento, tais como o Concerto, de Popp; o Capricho Brilhante, de Buchner, a Fantasia, de Rubinstein e a Rapsódia Húngara, de Hauser. É coadjudado pela orquestra, regida por Tristão Mariano, que executa, além do programa do flautista, fantasias das óperas Ernani e Anna Bolena. Dessa varredura em periódicos ituanos, pudemos observar a importância da música italiana, incorporada aos hábitos da localidade, influenciando uma linhagem de compositores dos mais expressivos da Província de São Paulo: Elias Álvares Lobo, Tristão Mariano da Costa e José Mariano da Costa Lobo.8 Conclusões Mostramos que a ópera tem aceitação plena nos concertos e saraus ituanos. As companhias italianas e nacionais, que apresentavam suas mais recentes criações, ditaram a moda e o comportamento da sociedade local. Suas representações transformavam a vida pacata dos cidadãos que, nesses momentos, vestiam suas melhores roupas e transportavam-se em 8 Os mestres-de-capela de Itu eram pessoas que viviam próximas do quotidiano de sua comunidade, estando sempre atentas às suas tendências. Sem ideais estéticos próprios, seguiam as tendências ditadas pela Corte. A necessidade definia o tipo de música a ser composta e executada. Como profissionais contratados pela igreja, tinham a missão de compor uma música que proporcionasse a todos os fiéis um estado de enlevo espiritual, e, para atingir esse fim, precisavam estar atentos ao gosto musical cultivado pela sua comunidade. Vivendo em um momento de troca de ricas experiências, propiciadas pela vinda dos imigrantes italianos, nada mais natural do que assimilar aspectos de sua música, que, na época, domina as salas de concerto de todos os países ocidentais. Uma análise detalhada da biografia, da atuação e do estilo de composição desses músicos, bem como a atuação de músicos no Colégio São Luiz foge do objeto de pesquisa deste artigo. Ver: Sergl, Ópera e Música Sacra em Itu, 1999. 43 pensamento para os grandes centros. A ópera reinava absoluta nesses espetáculos. Nessas circunstâncias, é natural que Elias Lobo, Tristão e José Mariano, façam parte desse universo ítalo-brasileiro. É fundamental destacar que eles assimilam elementos, sobretudo melódicos, dessa tendência dominante na localidade, porém sem abandonar o estilo dos antigos mestres ituanos. Mesmo fiéis à tradição ituana, eles não se imobilizam no passado. Ao contrário, vão em busca das novas tendências que se firmam no Rio de Janeiro. De maneira natural, incorporam essas tendências e criam uma nova estética musical ituana, uma verdadeira escola de composição local. Assim, esses elementos interagem entre si, formando um todo coerente e uniforme. Não soam como invasores nessa nova linguagem. Ressurgem como elementos novos, absolutamente imbricados nessa nova trama, que destaca as composições sacras e profanas ituanas. Referências bibliográficas ANDRADE, Ayres de. Francisco Manuel da Silva e seu Tempo. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1967. V. 2. HOUAISS, Antônio e VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. ANDRADE, Mário de. Modinhas Imperiais. 2ª. ed. São Paulo: Martins, 1964. IANNI, Octavio. O Samba de Terreiro de Itu. Revista de História, São Paulo, n. 26, 1956. AZEVEDO, Luís Heitor Correia de. 150 Anos de Música no Brasil (1800-1950). Rio de Janeiro : José Olímpio, 1956. (Coleção Documentos Brasileiros, 87). . Itu. São Paulo : IBGE, s.d. (Coleções de Monografias, n. 586). BISPO, Antônio Alexandre. Die Katholische Kirchenmusik in der Provinz São Paulo zur Zeit des brasilianischen Kaiserreiches (1822-1889). Köln, Gustav Bosse Verlag Regensburg, 1980. (Kölner Beiträge zur Musikforschung, 108). CERNICCHIARO, Vincenzo. Storia della Musica nel Brasile dai Tempi Coloniali sino ai nostri Giorni (1549-1925). Milano : Fratelli Riccioni, 1926. MACHADO, Rafael Coelho. Dicionário Musical. Rio de Janeiro : Brito e Braga, 1855. MAIA, Tom. Itu: Quatro Séculos de História. São Paulo : Expressão Editorial, 1995. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Notas para a História das Artes do Espetáculo na Província de São Paulo. São Paulo : Secretaria de 44 Cultura, Ciências e Tecnologia, 1978. NARDY FILHO, Francisco. A Cidade de Itu. São Paulo : Escolas Profissionalizantes Salezianas, 1928; 1930; 1950 (a); 1951. 4 v. PINHO, Wanderley. Salões e Damas do Segundo Reinado. São Paulo : Martins, [19—]. PIZA, Maria José de Toledo. Itu, Cidade Histórica. São Paulo : Ed. Ave Maria, 1972. Carlos Penteado de. Cronologia Musical de São Paulo (1800-1870). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. São Paulo : Ideal, 1954. (a) ROQUETTE, J. I. Código do Bom-Tom: Regras da Civilidade e de Bem Viver no Séc. XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. SAMPAIO, Teodoro. São Paulo no Século XIX e outros Ciclos Históricos. Petrópolis : Vozes, 1978. SERGL, Marcos Júlio. Elias Lobo e a Música em Itu. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1991. . Ópera e Música Sacra em Itu. Tese de Doutorado. São Paulo, Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, 1999. SOUZA, Gilda de Mello e. O Espírito das Roupas – A Moda no Século Dezenove. São Paulo: Ed. Schwarcz, 1987. TOSCANO, João Walter. Itu/Centro Histórico – Estudos para Preservação. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 1981. VIDIGAL, Cássio da Costa. Cidades Históricas – A Cidade de Itu. Palestra proferida no Ateneu Paulista de História no dia 11 de novembro de 1968. • Jornais pesquisados A Cidade de Itu – 1893-1905; 1941 A Imprensa Ituana – 1876 a 1890 A Esperança (Itu) - 1871 O Ituano (Itu) – 1873-1875 A Federação (Itu)– 1905-1912; 08.01.1966; 15.01.1966; 20.01.1973; 16.09.1978 A Província de São Paulo – 1875-1889 A República ( Itu ) – 1906-1908 • Fontes eletrônicas GOMES, Jussara Vieira. Um pouco sobre a história da dança de salão no Brasil. www. danceadois.com.br acesso em 13/04/2013 MORAIS, Maria Arisnete Câmara de. Maneiras de ler no Brasil no Século XIX. www. educacaoonline.pro.br acesso em 17/11/2011 45 Para comer e para levar, para cantar e para bailar: Estudo da música salsa como patrimônio imaterial musical da diáspora afro-latino-caribenha Julio Moracen Naranjo Universidade Federal de São Paulo [email protected] Resumo O trabalho trata do estudo da música salsa no Caribe e no Brasil, enquanto acontecimento espetacular-musical patrimonial que se desenvolve em espaços culturais da diáspora atlântica. A salsa como movimento musical e cultural ganha amplitude face à Globalização, por conter um estilo performático e musical que interfere nas culturas brasileiras e caribenhas por suas narrativas sonoras transnacionais e interculturais. Analisando-a no sentido de potencializar “abordagens cosmopolitas”, pensamos poder contribuir com questões para alargar, teórica e analiticamente, discussões sobre as mediações entre música + comida + bebida, em um enfoque de diálogo local/ regional e transregional, onde a salsa, e patrimônio imaterial espetacular-musical transculturado, na perspectiva de Fernando Ortiz em seu livro “Contrapunteo Cubano del Tabaco y del Azucar”. A pesquisa e apresentada a partir da analise de artistas, dançarinos e bailadores, espaços culturais e mestres (tesouros humanos vivos), trazendo ao primeiro plano diálogos antropológicos e uma história das interrelações culturais no espaço conhecido como afro-latino-caribenho a partir do Caribe e do Brasil Palavras-chave música salsa, patrimônio cultural imaterial, transculturação, diáspora * Acompanha este texto uma breve performance de música e dança interpretada pelo mestre cubano José Luis Medina. 46 1. A Cultura: para comer e para levar Salsa: Molho, um líquido aromatizado, normalmente de espessura, é utilizado para temperar, dar sabor e melhorar o sabor de um prato. Os molhos adicionados aos pratos têm as seguintes qualidades: Umidade, Sabor, As enriquece, Aparência (cor), Interesse do público. De acordo com a história da América Latina e o Caribe, nas estruturas comportamentais das culturas afro-latino-caribenha como a brasileira, sua identidade ainda referencia-se a relações corpo-música-performance em diálogos onde a música constitui-se espaço de memórias, reafirmação de identidades, transmissor de mensagens e tradições. A música como suporte de memória oral e meio de construção histórica da identidade musical, síndone do entendimento da fé na afro-descendência cultural chamada consciência étnica encontrando-se gêneros,movimentos,ritmos musicais como o samba, o forró, o maxixe, etc unido a cumbia, o kompas e a salsa. O latino-caribenho comunica-se na performance corporal e musical. Vale dizer, a presença do atuante, receptor ou transmissor - segundo Barthes “maquina cibernética” -, o que fica fora do etno-metodológico de sujeito e objeto, constituindo relações sujeito-sujeito. Segundo Zumthor, relação complexa pela quais mensagens poéticas sempre se encontram no aqui e agora, simultaneamente na transmissão e na recepção. Cada aspecto da música e da performance afro-latino-caribenha é governado por polissemias e significados conotativos e denotativos versáteis. Não existem relações representacionais preestabelecidas in absoluto; existem continuum subjetivos, animados-inanimados através do qual se movem os veículos sígnicos na encenação, constituindo um momento crucial em série de operações que perfazem as fases de produção à transmissão e à recepção. Dentro de nós, hoje se instaura a mesma quebra de simetria que existe fora de nós. Os seres e a matéria são colocados dentro de um mesmo 47 processo de diferenciação e de pertença que impõe elaborar a angustia vida/morte, não mais negando-a, senão inscrevendo a própria morte na afirmação de uma vida que tem sua existência no presente, não mais oprimida pelo débito de ancestralidades e da culpa. O frame deste diálogo música-performance é o produto de junção de convenções que regem as expectativas dos participantes; sua atitude performática traz a oralidade, a herança e as tradições dialogando na comunhão com as diversas sinfonias dos signos intertextuais. É uma permutação de textos, diria Kristeva; eu diria que é o som fluindo do homem ao homem como revelação, poesia atuante, retornando na forma de diálogo rítmico que celebra uma sinfonia de vozes e culturas. De onde provém este ritmo? Do homem latino-caribenho. Assim, pode-se dizer que a performance espetacular do corpo está ditada por seus ritmos interiores, sendo o ritmo uma relação semiótica (música-corpo-performance), levada por uma pujança controversial e contrapontística. Não somente na sua essência, mas também em gestos que remetem ao corpo. Em sentido geral à alteridade, ao popular, ao disjuntivo, policêntrico, poético, sangüíneo, instintivo, muscular. O ritmo/polirritmia é uma apercepção interna que interatua com a música em forma de diálogo. De resto o tambor, instrumento essencial em toda cultura latino-caribenha, tem uma alma. O diálogo/ritmo - de matriz africana - tem sua tipicidade; sai, desce, freia e se expande, desconcertando as regras de uma explicação, podendo realizar-se com as mãos ou objetos de madeira, ferro, ou qualquer material. Sobre isso o músico e semiólogo Luiz Tatit nos diz: em geral, os compositores populares [...]não são músicos. Precisaríamos expandir extraordinariamente o conceito de músico para poder abarcá-los e talvez isso não compensasse. Se nunca passaram por escolas musicais e nunca tiveram necessidade deste aprendizado para compor o cantar suas canções, e se, além disso, jamais conceberam suas obras em termos de relações sonoras stricto sensu, onde prevaleceriam a riqueza rítmico-melódica, a 48 inteligência harmônica ou o material timbrístico, porque insistimos em classificá-los como tais? As heranças musicais-espetaculares brasileiras e latino-caribenhas são ainda vistas como matéria a ser academicamente vendida, comprada e estudada no horizonte de interesses de valores da ocidentalização; tudo isto pode ser o domínio que nos instaura a “world music” como fenômeno imediato e visível no nível das cadeias de lojas de discos e CDs de musica internacional em todos os países ocidentais, algo ao que temos a obrigação de ficar atentos ante a proliferação incontrolada de interpretações ao redor da idéia de uma globalização que promove a economia imperialista turística no sentido nacionalista de expressar aspectos de identidades disfarçadas em conceitos como sincretismo, miscigenação, democracia racial e mestiçagem. 2. A História: para cantar e para bailar [...] En Catalina me encontré lo no pensado, La voz de aquel que pregonaba así: “Salsa” En Catalina me encontré lo no pensado, La voz de aquel que pregonaba así: Échale salsita, échale salsita, Ah, ah, ah, ah... Letra música “Échale Salsita”(1930) Compositor Ignacio Piñeiro Ao analisar a música brasileira do ponto do vista histórico em dialogo com a música latino-americana e caribenha, e elemento fundamental entender o que Moisei Kagan chama de investigação focada de maneira tripartida: como teoria, como história e como crítica, explicando a relação que possuem entre si enquanto fonte de preocupação política, cultural e social1. 1 KAGAN, Moisei S – Lecciones de estética marxista leninista, Editorial Arte y Literatura, La Habana, 1984. 49 Esta relação se observa na construção da identidade musical brasileira aparecendo materializada por meio de poucas pesquisas que têm preenchido diversas opiniões científicas ao redor desta problemática. Assim a indagação avança, sem que tenham aparecido níveis de exploração e buscas anteriores produzidos pela ideologia de pensamentos e conceituações de etapas sócio - político - econômicas determinadas. Nessa miragem estética desde o século XIX encontramos um dialogo Brasil-Latinoamerica-Caribe, o que nos permitiria dizer que existem vasos comunicantes2 na música brasileira os quais podem ajudar a entender dinâmicas de conflito e negociação na reconfiguração da identidade da música brasileira. No ano de 1868 aparece nos espaços cariocas da corte do Imperador Dom Pedro II o pianista, instrumentista e diretor de orquestra Louis Moreau Gottschalk nascido em New Orleans, USA, em 1829 e falecido no Rio de Janeiro aos 40 anos em 1869. Gottschalk tem a importância de unir os anseios musicais das Antilhas, Cuba, Latinoamerica e Brasil já que viajou por diferentes paises de latinoamerica abrangendo conhecimentos musicais de diversas culturas latino-americanas e caribenhas em composições de sua autoria que influenciaram a seus colegas da época destacando-se na música brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Manuel Saumell Robredo (1817-1870) na música cubana; em Brasil deixo seu “imprinting”3 nacional em seu Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro.4 2 A noção de vasos comunicantes e do poeta cubano Jose lezama Lima (1910-1976) quem nos fala também:“Em América Latina onde quer que surja a possibilidade de paisagens tem que existir a possibilidade de cultura” 3 pegada, sindone 4 Louis Moureau Gottchaltk e um dos mais famosos compositores norte americanos do século XIX. Nasceu em Nova Orleans e estudou piano em Paris. Aos quinze anos fez seu “debut” perante o grande público causando uma boa impressão em Chopin e Berlioz. Voltou para os Estados Unidos durante a Guerra Civil, compondo uma série de músicas de forte cunho nacionalista. Sua peça “L’Union”, foi executada durante os serviços fúnebres de Abraham Lincoln. Gottchalk viveu cinco anos no Caribe, principalmente em Havana e Guadeloupe, ali escre- 50 Ao início do século XX encontramos exemplos como nos carnavais cariocas dos anos 1915 e 1916 uma versão de Caraboo – canção composta na Jamaica, do ritmo dançante one step já era cantada pela dupla “Os Geraldos” formada por a cantora mulata gaúcha Nina Teixeira e o cantor do Rio Grande do Sul, Geraldo Magalhães. A canção Caraboo no Brasil teve sua versão com letra em português de Alfredo de Albuquerque com subtítulo de Amores de uma princesa sendo grande sucesso do Carnaval carioca de 1916.5 Já nas decadas de 1940 e 1950 os ritmos e sonoridades musiquais latino-americanos fizeram sucesso no país e trouxe músicos cubanos e latino-americanos em tournées ao Brasil, atuando em cabarés e cassinos, favorecendo o auge de gravações de seus ritmos por cantores brasileiros. A influencia produziu frutos posteriormente, com a formação de orquestras brasileiras profissionais, como “Ruy Rey e sua Orquestra”, fundada em 1948, retratando etapa de destaque no período da política de boa vizinhança, estimulada pelos Estados Unidos durante e após a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, surgiram orquestras como a de Waldir Calmon, e a mais popular de todas, “Românticos de Cuba”, A música latina foi tão forte nos anos 50 que Tom e Vinícius lançaram a música-de-protesto “Só danço vendo sua Sinfonia nº 1 “La Nuit des Tropiques”. Durante sua estada em Montevidéu, no ano de 1868, escreveu A “Marcha Solemne Brasileira”, dedicada ao Imperador Dom Pedro II que o havia recebido no Brasil com cordialidade e honrarias. Esta obra, composta para orquestra, banda militar e canhões termina com uma brilhante elaboração do Hino Nacional Brasileiro. Algumas composições de Gottschalk evelam uma forte influência de Berlioz e Wagner e muitas de suas obras foram escritas para uma orquestra com 150 músicos. Sua Sinfonia nº2 “Montevideo” entrelaça temas patrióticos, como um arranjo do Hino Nacional Uruguaio e do Yankee Doodle. Seu fim foi dramático. Participava de um concerto no Rio deJaneiro, quando após executar ao piano sua composição Opus 60 chamada “Morte”, desmaiou no palco vindo a falecer poucos dias após, de febre amarela. 5 A dupla os Geraldos adquiriu muita fama internacional entre os anos 1908 e 1920 cantando e dançando maxixes famosos, principalmente o “Vem cá, mulata!”, de Bastos Tigre,cativando franceses e portugueses. 51 Samba”, onde declaravam guerra à hegemonia do Calypso e do Cha-Cha-Cha. que tiveram sua época de ouro até o auge da música rock, estabelecendo o final do período das “Big Bands” e o nascimento da cultura roqueira mundial. 1959 é o ano oficial do surgimento da Bossa Nova. Neste ano, reuniram-se todas os substâncias do maior movimento musical do Brasil acoplado a um nacionalismo crescente, favorecendo o olhar a música caribenha relacionada ao “brega” da ocasião, associado ao triunfo da Revolução Cubana e ao discurso de unificação cultural de uma América Latina em oposição à ditadura militar, estabelecida entre 1964 e 1985. nessa época uma musica autenticamente brasileira como a música sertaneja6, desapareceu dos meios de comunicação e sua excomunhão teve a ver com as influencias do mundo latino-caipira-mexicano. Ela resistiu e nos anos 80 voltou a ser notada pelo grande publico – por «grande publico» entenda-se o «Sul maravilha», consumidor da música das FMs e trilhas de novelas. A ditadura militar trouxe a luz o movimento musical tropicalista, com vestimentas extravagantes, utilização de produtos da sociedade industrial, como plástico, roupas iluminadas, etc., e da sociedade rural, como bananas e pés descalços. Introduzindo letras obscuras de associações subconscientes, harmonias dissonantes e repetições irritantes - como as dos cantos monótonos dos cegos nas feiras do nordeste - o movimento tropicalista evidenciou rebeldia à ditadura militar e ao americanismo jazzístico da Bossa Nova, com sua polida perfeição de letras. Não obstante, a maldição brasileira aos ritmos latinos cedeu um pouco ao final dos anos sessenta, graças ao álbum Tropicália, de 1968, onde os músicos tropicalistas Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil colocaram ritmos latinos na musica cubana “Três Caravelas”, e incluíram o bolero melancólico “Lindonéia”. 6 Música Sertaneja ou música caipira: gênero musical brasileiro produzido a partir da década de 1910, por compositores rurais e urbanos, também chamada genericamente de modas de viola , toadas, cateretês, chulas, emboladas e batuques, cujo som da viola é predominante. 52 No Brasil dos anos 1970, a música caribenha foi lembrada por cantores como Ney Matogrosso, que incluiu clássicos em seu repertório, como “Kubanacan” (1975) e “Paranpanpan” (1976); nos anos 80, artistas e intelectuais promoveram a unificação dos povos latino-americanos como resistência às ditaduras militares. A liderança de Milton Nascimento e Chico Buarque fez que se produzissem canções com os cubanos Pablo Milanés e Silvio Rodriguez, além de diálogos com a música dos argentinos Mercedes Sosa e Fito Páez. Tambem muitos músicos brasileiros visitaram Cuba e Porto Rico, e voltaram do Caribe com novas concepções musicais, o que proporcionou o nascimento de ritmos como o Sambareggae e a musica Axé. E fundamental a participação dialógica de músicos brasileiros fora do Brasil, na formação do jazz latino nestes anos. Entre muitos, destacamos a pianista e cantora Tania Maria, o percusionista,ex-integrante do mitico “Quarteto Novo” Airto Moreira e a cantora Flora Purim. A época rica na produção da música caribenha fora do Brasil iniciou com o fenômeno salsa, estabelecido em concerto no Yankee Stadium, de Nova York, da orquestra Fania All Star (composta pela união de músicos de quatro orquestras: as dos veteranos Ray Barreto e Johnny Pacheco e as dos jovens Larry Harlow e Willie Colon). A revolução musical trazida por este evento frutificou nos anos seguintes, quando o movimento expandiu-se pelo mundo até globalizar-se. Conforme o músico panamenho Ruben Blades, a salsa é a identificação de ritmos procedentes da área do Caribe para vende-los aos americanos e ao resto do mundo. Nos anos 1990, o advento da salsa no Brasil veio com os ares da abertura, contribuindo para expansão da música latino-caribenha e de músicos de outras latitudes, que se instalaram no Brasil, interagindo com os músicos brasileiros. Nessa década foi admirável na Bahia a presença do músico e cantor Gerônimo e o surgimento do grupo Rumbahiana (1982), fundado pelo chileno Keko Villarroel, o italiano Gino Zambelli, o alemão Claus 53 Jake e o baiano Gum. Reuniram os melhores músicos de Salvador, Bahia, para tocar ritmos caribenhos agrupados no fenômeno salsa. De imediato, uniram-se ao grupo músicos como Carlinhos Brown, ícone da música produzida na Bahia na emergência da concepção do axé music, no qual Rumbahiana colaborou com seu estilo musical, influenciando cantoras como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Margareth Menezes. Eventos fundamentais nesses anos foram à presença, em São Paulo, da cantora Célia Cruz e o grupo do portoriquenho Jose Alberto “El canário”; incursões ao redor da salsa nos meios televisivos, como o documentário musical “Baila Caribe” (1997), sob direção de Belisário Franca e apresentação do cantor Gilberto Gil, para a TV Cultura; e a novela “Salsa e Merengue”, de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa, direção de Wolf Maia, exibida pela rede de televisão Globo, em 1996. O final desta década em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro abre o auge das danças de salão, com o consumo da musica salsa restrita a intelectuais e a uma classe de baixo e médio poder econômico, além de estudantes.7 A proliferação de cantores e grupos musicais com repertório de salsa, em suas vertentes bolero, son, merengue e pop; evidenciou-se com a cantora Nana Caimmi, o cantor Fagner, o compositor e cantor Roberto Patino, os grupos Mambolada, Edwin Pitre e sua Banda, Pedro la Colina e sua Banda, Banda Kaduna, Guga Stroeter & Heart Breaker, Habana Brasil, Banda Sabor a Cuba, Banda Esencia Latina, Sonora Caribe, Perfume de Gardênias entre outros. Também marca presença na cena musical paulista do cantor cubano Issac Delgado, do grupo Havana Ensemble, dos pianistas Gonzalo Rubalcaba e Ernàn Lopez Nussa, junto ao percussionista Tata Guines; no Rio de Janeiro os grupos NG la Banda e Síntesis e a participação de percussionistas cubanos no Festival Internacional de Percussão (PERCPAN) em Salvador, Bahia. Neste âmbito, o mais significativo foi a chegada ao Brasil do projeto de musica cubana conhecido mun7 Tudo isto fora da tradiçao do consumo desta musica pelo grupo conhecido como “terceira idade” 54 dialmente como “Buenavista Social Club”, devido ao sucesso do filme dirigido pelo cineasta alemão Wim Wenders. Ali se apresenta o trabalho do premiado músico norte-americano Ry Cooder, reunindo alguns dos maiores nomes da música cubana como Rubén Gonzàlez, Ibrahim Ferrer, Eliades Ochoa, Omara Portuondo e Compay Segundo na gravação do álbum Buena Vista Social Club, premiado com o Grammy (1998). Com o advento do século XXI o auge da música salsa com suas trocas e aceitações, tornou-se significativo na formação de novas identidades musicais. Além de interesses econômicos, traduziu-se na abertura de espaços artísticos e culturais em geral.8 Os novos rumos da aceitação e dialogo das músicas latinas e caribenhas no Brasil trazem uma reflexão a ser debatida trazendo à tona o diálogo música-performance fora de afirmações totais e para alem de essencialismos, conforme debate nos estudos culturais 3. Música salsa como patrimônio imaterial musical da diáspora afro-latino-caribenha « Estou encantada com a maneira como o senhor me acompanhou nesta toada » E o modesto Josué,com o rubor lhe aflorando à pele escura : « É que eu sou o autor da letra e da música... » Carmen Miranda ainda não famosa, em seu encontro com o compositor baiano Josué de Castro Contado por Ruy Castro em Carmen :uma biografia No contexto caribenho e brasileiro, e importante o esforço de Athur Ramos que, sob patrocínio da UNESCO promoveu estudos da musica popular como patrimônio artístico nacional. Para suprir a carência de pesquisas, dos livros foram escritos por encargo do Fundo de Cultura Econômica, 8 Um exemplo é o auge de bailes caribenhos como zouk e reggae; este ultimo já tem uma marcada presença brasileira com cantores, músicas e até produções nacionais, radicando-se principalmente em São Luis de Maranhão e Salvador, Bahia. 55 editorial mexicana que também solicitou a outros musicólogos do continente estudos historiográficos de seus países, e somente recebeu respostas de dois intelectuais, o escritor Alejo Carpentier, La música en Cuba (1946), e a folclorista brasileira Oneida Alvarenga, A música popular brasileira (1947); eles levantaram similitudes e distanciamentos culturais na América Latina e Caribe, a partir de movimentos da musica popular em Cuba e no Brasil. Este encargo ainda que estivesse dirigido a um publico massivo respondeu ao objetivo de abordagens iniciais de paralelos e continuidade no eixo musical Cuba-Brasil-Caribe, sem deixar de mencionar a contribuição que trouxeram para aproximação das questões culturais inerentes a estas regiões. Em 1950, em artigo publicado no “Mensário de Arte, Literatura, História e Cultura”, da Direção de Cultura do Ministério de Educação de Cuba, Fernando Ortiz elogiou o livro de Alvarenga, onde a autora fala textualmente da influência dos ritmos cubanos na música brasileira. Percepção exemplificada com a música “O que a Baiana Tem” (disco Odeon do Brasil, No. 194-984), que se fez conhecida mundialmente pela atriz e cantora lusobrasileira Carmen Miranda. Segundo Alvarenga, essa música, de brasileira, só tem a língua na qual é cantada; o resto – melodia, ritmo, linha do canto, tratamento dos instrumentos acompanhantes – são de evidente influência cubana. Essa passagem ajuda a entender como este livro respondeu ao objetivo de abordagens iniciais, de paralelos e continuidade no eixo cultural Cuba, Brasil, Caribe, como aporte de aproximação das performances culturais destas regiões; aproximação que o historiador e folclorista cubano Samuel Feijoo nomeia de proximidade rítmica, enquanto Benitez Rojo chama de construção da música popular como projeto de identidade nacional. É precisamente de Ortiz e suas obras “Los Bailes y el Teatro de los Negros en el Folklore de Cuba (1985) e Contrapunteo cubano del tabaco y del azucar (1940) , que retomamos o conceito transculturação, em sua 56 perspectiva histórico-teórica, considerando-o como um conceito aberto, em expansão no contexto dos cultural studies. Segundo Ortiz o conceito transcultração pressupoe tres momentos indissoluveis : aculturação ou encontro com novos elementos culturais; deculturação ou seleção de determinados elementos culturais; neoculturação ou criação, transformação, resignificação de novas realidades culturais. Sua importancia na chamada Antropologia da Transculturação permite articulá-lo a outras discussões, uma vez que tais processos históricos constituem sistemas para o reconhecimento de diferenças culturais como conflituosas experiências vivenciadas em processos de reelaboração cultural ou incorporações seletivas, conforme Raymond Williams. Na emergência de princípios, valores, interesses fundadores de projetos culturais e estéticos, diferentes dos vividos nas diásporas negras da chamada “modernidade”, processos de transculturação possibilitaram devires espirituais, mentais, psicológicos, com que foram enfrentadas a escravização e as transgressões reconstituintes de matrizes africanas como a salsa como um gênero ou subgênero musical, noção discutida na musicologia e em outros campos afins. Agora somente me limitarei a conceituar sua presença espetacular, como performance, fenômeno, acontecimento, estilo, movimento Desde conjunturas de escravização, imigrações, até épocas de globalização, encontros e fusões entre diferenciados fluxos e tradições culturais, vêm-se pluralizando tensões, conflitos, interações, conforme estudos de Paul Gilroy (1993), Shusei Hosokawa (1999) e Antonio Benitez Rojo (1998). O sentido da performance salsera está saturada de valores políticos e encontra na música e teatralidade do corpo a estrutura de ascendência primária para veicular contestações via uma linguagem subliminal, que une os fenômenos culturais da atualidade e heranças de antepassados. A pesquisa sobre música salsa remete aos estudos sobre a diáspora, em que são importantes as análises de estudiosos como Kwane Anthony 57 Appiah e Henry Louis Gates Jr, no Dictionary of Global Culture (1996), e de Robin Cohen, intitulada Global Diásporas (1997), em que o autor se expressa partindo da experiência hebraica nas questões de língua, religião e culturas de origem. Neste caso, Cohen toma em consideração as diversas formas que a diáspora tem se manifestado, distinguindo entre diásporas produtos dos impérios, da colonização e da segregação racial e étnica; diásporas produtos da necessidade de movimento em busca de trabalho e outras diásporas, como as movidas por fome, pobreza, perseguição religiosa e política, discriminações que obrigam comunidades inteiras a migrarem. As teses de Cohen nos leva a pensar sobre as diásporas africanas pelo ponto em que os pesquisadores têm-nas explicado, como processo da rememory, ou seja, a construção da própria história, compreendida como releitura da história do Ocidente, que não pode continuar a manter na escuridão a contribuição africana na sua própria edificação. A salsa como evento espetacular-performático possui uma condição diaspórica, de perpetuação da cultura negro-africana, conforme estudos de Bogg (1992), Quintero Herencia (1997) e Hosokawa (1999). Para pensar a música salsa, devemos pensar tambem o termo caribenho no sentido cultural, altamente valorizado desde a década de 70. O termo caribenho esta estreitamente ligado ao de crioulização (creolizatión). Este conceito foi criado pelo escritor e teórico do mundo antilhano Edouard Glissant, como um processo imprevisível, no sentido de ser uma mestiçagem consciente de si mesma. Para ele, as sociedades crioulas têm um passado colonial vencedor. Diante dessa constatação, ele propõe que a pesquisa da identidade seja explorada como ‘‘terapia’’ para recuperação dos espaços conquistados pelos colonizadores, resgate da história que foi ocultada pelos anos de escravidão. A identidade deve ser buscada no desejo de dar luz às feridas sociais, objetivando completar os silêncios e a ausência da memória coletiva. 58 A especificidade da uma cultura crioula deve ser investigada na sua própria diversidade de herança cultural. Somente assim a crioulização pode ser compreendida como um processo de construção de identidade intensa e plural como e a música salsa. No mundo globalizado, os conceitos de fluxo e espacialidade adquirem grande relevância teórica e a musica salsa tem como característica pertencer a todos e a nenhum lugar, criando novas condições, que requerem novas metodologias e teorias para enfrentar velhas questões. Somando-se a esta reflexão, penso que dentro do chamado Music Studies, devemos pensar a música salsa como patrimônio imaterial musical da diáspora latinocaribenha . Uma música popular de tradição veiculada nos mass-media, como o rock, o rap, o reggae, delineiando novos horizontes, desenvolvendo-se, através do conceito gramsciano de hegemonia versus subalternidade, na leitura de Raymond Williams, em noções de musical subcultures, supercultures e intercultures, aplicadas à micro-música do mundo ocidental, influindo como música diaspórica nos contextos multiculturais e como diz Edward Said, uma música que [...] ainda se mantém dentro do contexto social como uma variedade especial de experiência estética e cultural, contribuindo para produção da sociedade civil (Said, 1991. 57). Referências Bibliográficas ALVARENGA, Oneyda. 1950. Música popular brasileira. Rio de Janeiro: Globo. ACHA, Juan. 1989. “Reafirmación caribeña y sus requerimientos estéticos y artísticos”. En Plástica del Caribe, Centro Wilfredo Lam, Habana: Editorial Letras Cubanas.10-13. CARPENTIER, Alejo. 1946. La música en Cuba. México, DF: Fondo de Cultura Económica, Colección Tierra Firme. ACOSTA, Leonardo. 2004. Jazz afrocubano y afrolatino: etapas y procedimientos estilísticos. In: Revista Clave, la habana Año 6, Números 1-2-3: -07-09. . 2002. Descarga número dos, el jazz em Cuba 1950-2000. La habana: Ediciones Union. APARICIO, Frances R, CÁNDIDA, Jáquez. (Eds.). 2001. Musical Migrations. Transnationalism and Cultural Hybridity in Latin(o) America. Philadelphia: Temple University Press. APPADURAI, Arjun. (Ed.). 2000. Globalization. Millennial Quartet. DurhamLondon: Dake University Press. 59 AUGE’, Marc . 1999. An Anthropology for Contemporaneous. Worlds, Stanford University Press, Stanford. BÉHAGUE, Gerard H. 2003. “L’influence de la musique africaine sur les musiques traditionnelles et populaires de l’Amérique latine.” In: Musiques du XXe siècle / sous la dir. de Jean-Jacques Nattiez. - Arles : Actes sud. 94-102. . Brazilian Musical Values of the 1960s and 1970s: Popular Urban Music from Bossa Nova to Tropicalia. In: Journal of Popular Culture, 1980, 14(3), 437-52. . 1994. Music and Black Ethnicity : The Caribbean and South America. Miami : University of Miami. BENITEZ ROJO, Antonio. 1998. La Isla que se repite. Barcelona: Editorial Casiopea. Discourse. University Press of Virgínia. GUERREIRO, Goli. 2000. A trama dos Tambores: A Música Afro-pop de Salvador. São Paulo: Editora 34. KAGAN, Moisei S. 1984. Lecciones de estética marxista-leninista, Editorial Arte y Literatura,La Habana. KRISTEVA, Julia. 1968. Linguìstica e letteratura, In: Théorie d`ensemble, ed. Seuil, Paris. LEZAMA LIMA, José. 1988. A expressão americana. São Paulo: Brasiliense. MARTIATU, Ines Maria. 1993. “Mayoria etnica y minoria cultural.” In: Revista Tablas, No. Especial XI Congreso ASSITEJ, La Habana, pp. 44-45. BLUM, Josep. Problems of Salsa Research. In: Ethnomusicology, 1978, 22(1): 137-149. MORACEN, Julio. 1994. Culture diverse per un percorso di danza. In: Laboratório de Antropologia Visual, Roma. BOCCHI, Gianluca, CERUTI, Mario(Org.). 1985. La sfida della complessità. Feltrinelli editore, Milano. MOURA, Roberto. 2005. “A alma baiana do samba.” In: Nossa História. São Paulo : Biblioteca Nacional n. 16, fev. BOGGS, Vernon W. (Ed.). 1992. Salsiology: Afro-Cuban Music and the Evolution of Salsa in New York City. Westport, CT: Greenwood Press. MUGNAINI JR., Aiyrton. 2001. Enciclopédia Das Músicas Sertanejas. São Paulo: Editora Letras & Letras. CANCLINI, Nestor Garcia. 1995. Consumidores e Cidadãos: Conflitos Multiculturais da Globalização. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrevista a Ruben Blades. El País, 16 de setembro, 1995. Entrevista a Carlinhos Brown. Néon, Arte, Cultura e Entretenimiento, Fevereiro 1999 – Ano 1 - N° 2. DICTIONARY OF GLOBAL CULTURE. (APPIAH, Kwane and GATES Jr and Henry Louis (Ed.). 1996. New York: Alfred A. Knopf . MUKUNA, Kazadi wa. 2000. Contribuição Bantu na música popular brasileira: perspectivas etnomusicológicas. São Paulo: Terceira Margem. ORTIZ, Fernando. 1950. “Saba, Samba y Bop*.” Mensuario de Arte, Literatura, Historia y Cultura de la Dirección de Cultura del Ministerio de Educación de Cuba, la habana. QUINTERO-RIVERA, Angel G. 1998. Sociología de la música tropical. Ciudad de México: Editora Siglo XXI. DICTIONARY OF CONTEMPORARY MUSIC. (John Vinton, editor). 1974. New York: E. PDutton. QUINTERO-RIVERA Mareia. 2000. A cor e o som da nação: a idéia de mestiçagem na crítica musical do Caribe hispânico e do Brasil (19281948). São Paulo: Annablume/FAPESP. GLISSANT, Edouard. 1989. Caribbean SAID, Edward W. 1992. Elaborações Musicais. 60 Rio de Janeiro: Imago Editora. SALAZAR, Max. 1992. “Afro-American Latinized Rhythms.” In: Salsiology: Afro-Cuban Music and the Evolution of Salsa in New York City. Ed. Vernon W. Boggs Westport, CT: Greenwood Press 239-248. (9) STRAFFORD REID, Victor. 1980. “Identidad cultural del Caribe” In: Rev. Casa de las Amèricas, 119 La Habana. 9-10. TATIT, Luiz. 1997. Musicando a semiótica :ensaios.São Paulo : Annablume. ZUMTHOR, Paul. 2000. Performance, recepção, Leitura. São Paulo : EDUC. 61 “Piquenique Classe C”: música, alimento, história, literatura e sociedade Guilherme Gustavo Simões de Castro Universidade Federal de Santa Catarina [email protected] Resumo “Piquenique Classe C” e “Nossa Cidade” são duas crônicas do jornalista e produtor Osvaldo Moles. Narram personagens e cenários na cidade de São Paulo entre os anos 1940 e 1950. Abordam de maneira espontânea aspectos sociais através das histórias de dois domingos, um trivial e outro diferente: a história de um convescote em Santos que fizeram os operários da Tecelagem da Virgem S/A, Rua Catumbi em São Paulo. As manifestações musicais e gastronômicas dos habitantes paulistanos aparecem nas narrativas. Numa interface entre História e Literatura quero relacionar o texto ficcional com o contexto histórico e material da expansão urbana da capital no período. Os costumes e experiências musicais e de hábitos de alimentação são de extrema relevância como dados para construção do conhecimento histórico de uma sociedade. A historiografia deve aproximar-se da música, da literatura e das mídias e buscar, em todos os tipos de linguagens, fontes e documentos, indícios de determinados contextos e experiências históricas da vida das pessoas e sua relação com o mundo. Palavras-chave costumes paulistanos; pós-guerra; expansão urbana. 62 Duas crônicas sobre dois domingos distintos e imprecisos na temporalidade histórica. Repletos de costumes musicais e alimentícios. Narrativas de personagens e situações fictícias inspiradas nas experiências das pessoas comuns. Personagens habitantes da cidade de São Paulo nos últimos anos da década de 1940 e inicio da década de 1950. O primeiro domingo literário é a crônica narrada no programa da Rádio Record “Nossa Cidade” de setembro de 1949 e o segundo é a crônica “Piquenique Classe C”, sem data de publicação, ambos de autoria de Osvaldo Moles. O programa “Nossa Cidade” foi ao ar pela Rádio Record no ano de 1949. Narra um domingo de setembro, os lugares, os personagens, os sons, as situações da cidade dominical. Este programa foi um grande sucesso de audiência. Osvaldo Moles, com uma habilidade de transitar entre o popular e o erudito, fazia para cada programa um tema específico da cidade. A chamada do programa era São Paulo, “a babel de estrangeiros de todas as pátrias”. (CAMPOS JR, 2009, p. 201). As situações narradas como os pregões, vendedores de rua, aos domingos, que tecem no ar uma sinfonia de guloseimas: (coro) Olha a cocada! Ó doce de batata doce! Ó doce de batata doce! Olha a cocada! Ou então, as mulheres das periferias que no domingo a tarde, faziam sabão e bananada, cada coisa em um tacho. E Dona Camila, da pensão, que avisa que aos domingos não tem lanche, pois o almoço foi ajantarado. E que nos cinemas, no final da tarde, as filas eram enormes para assistir aqueles enlatados de Hollywood. Ou ainda as casas de instrumentos musicais na Rua Direita que mantinham, aos domingos, as luzes das vitrines acesas e que alimentavam os sonhos musicais das pessoas que não podiam comprar aqueles instrumentos. A crônica “Piquenique Classe C” foi publicada junto a uma coletânea de crônicas do autor que tratam de flagrantes vividos na cidade de São Paulo entre as décadas de 1940 e 1950. A edição da coletânea leva o mesmo nome da crônica citada e foi produzida pela Editora Boa Leitura S/A, sem data. A crônica mencionada aborda personagens e aspectos dos costu- 63 mes alimentícios e musicais. Trata de uma narrativa da história de uma viagem para um convescote em Santos que fizeram os operários da “Tecelagem da Virgem S/A”, localizada pelo narrador na Rua Catumbi em São Paulo. Operários de todos os sotaques que levam marmitas, frangos assados, garrafões de vinho nacional, “piquenicando” e cantando “O Sole Mio” e também baião. Osvaldo Moles conduz a narrativa com maestria, registrando de maneira caricaturada os costumes comuns dos operários de diferentes origens. Utilizados como mão-de-obra barata pelo capital e pelo progresso. Gente que foi para São Paulo para trabalhar e construiu também a cidade do trabalho. Os passeios que algumas fábricas e indústrias da capital promoviam para o litoral no final de semana. Praia Grande era um dos locais. E os piqueniques e as cantorias improvisadas com violas e violões em meio aos goles de vinho de garrafão. Para aquelas pessoas a viagem, a ressaca, as recordações vão marcar por muitas semanas (...) “aquela fabulosa fuga da realidade”. (MOLES, s/d, p. 27). Estas histórias poderiam ser utilizadas como fontes de pesquisa pelo historiador? Que tipo de informações elas nos comunicam enquanto fontes? Poderiam ser cruzadas com análises de intensões historiográficas e literárias ao mesmo tempo? Ao menos é este movimento intelectual que proponho neste artigo. Osvaldo Moles foi produtor de programas nas rádios paulistanas, principalmente na Rádio Record e na Rádio Bandeirantes. Famoso por realizar, ao lado de Adoniran Barbosa, e outros tantos rádio atores como Mariamélia, Celina Amaral, Leonor de Abreu, José Rubens, Vicente Leporato, Osvaldo de Barros, entre outros para quem escrevia vários personagens. Entre 1941 até 1951, produziu os programas “Casa da Sogra”, “Escola Risonha e Franca”, “PRGessy”, “O Crime Não Compensa”, “Nossa Cidade”, “Universidade Record”. Posteriormente, Osvaldo Moles vai trabalhar na Rádio Bandeirantes e após seu retorno para a Rádio Record, para a partir de 1955, escreve e produz o clássico “História das Malocas”, entre outros. (MORAES, 2000, p. 82). A primeira localização da Rádio Record foi na Praça da República. O segundo prédio da PRB-9, Rádio Record, estava localizado na esquina da Rua Quintino Bocaiúva com a 64 Praça da Sé. Isto ocorreu entre 1941 e 1951. Personagens como o negro Zé Conversa e sua parceira Catarina, dupla que Moles escrevia para Adoniran e a rádio atriz paulistana Mariamélia. O Zé Conversa que representava a figura do “malandro paulistano”, se é que podemos dizer assim, que não era muito chegado à labuta diária. O Barbosinha mal-educado da Silva, na “Escola Risonha e Franca”, interpretado por Adoniran , ao lado Durvalino Botani que fazia o João Bobo e o docente interpretado por José Pinaguel. Segundo o historiador e jornalista Celso Campos Jr, o professor tinha um papel interessante e era (...) caracterizado como um velho de barbas brancas, representava o velho conselheiro, amigo dos alunos, que preferia dialogar a usar a palmatória na hora da reprimenda – algo nem tão comum no Brasil da década de 1940, em que muitos professores faziam da sala de aula sua ditadura particular. (CAMPOS JR, 2009, p. 130). O rádio, entre as décadas de 1940 e 1950, foi um dos meios de transmissão de informações mais importantes em atuação na cidade de São Paulo e no mundo. Segundo José Geraldo Vinci de Moraes entre os anos de 1923 até 1934, dez rádios foram fundadas na cidade de São Paulo. Entre 1934 e 1935 as rádios paulistanas Cruzeiro do Sul, Record e Kosmos tinham programas típicos e específicos voltadas para as diversas comunidades estrangeiras. (MORAES, 2000, p. 76). Ainda esta questão dos imigrantes é mais complexa como aponta Adriano Duarte. Havia diferenças entre os italianos como os napolitanos da Mooca, os calabreses do Bexiga e os bareses do Brás. (DUARTE, 2013, s/p.). Já durante os anos 30 o rádio se consolidou como meio de transmissão com enorme potencialidade para os fins comerciais. Seus usos para diversas finalidades como fins militares e também como instrumento de propaganda política. Alguns depoimentos e documentos sobre a história do rádio apontam que as rádios paulistanas tiveram uma atuação preponderante como instrumento de guerra dos paulistas contra as tropas de Getúlio Vargas em 1932. Durante a década de 1930 e 1940, além do 65 uso do rádio para propaganda de Estado passa a ser disseminado seu uso como instrumento de publicidade. Muitas empresas, principalmente as grandes corporações como Gessy, Colgate-Palmolive, Bayer, entre outras, passaram a utilizar o rádio como instrumento de publicidade para invadir as ruas, os lares, as repartições e da vida íntima das pessoas. A publicidade realizada por empresas, entre as nacionais e as multinacionais patrocinaram os diversos programas jornalísticos como o Repórter Esso. Na Rádio Record, que é um dos focos deste trabalho, a publicidade se fazia presente nos programas de humor como o Conhaque Montezano que patrocinava o “Nossa Cidade” de Osvaldo Moles, ou no carnaval de 1949 com anúncios intermitentes de Cafiaspirina da Bayer. E isto é uma coisa interessante. Em 1945 a Record fez a cobertura da participação dos soldados e oficias brasileiros na Itália e do retorno das tropas à São Paulo, sendo recebidas����������������������������������������������������� no Estádio do Pacaembu em meio com festividades, reportagens durante a programação da rádio paulistana. Quatro anos mais tarde, e somente quatro anos mais tarde, uma indústria química alemã patrocinava o carnaval paulistano. Entre as décadas de 40 e 50 a Rádio Record fazia parte do cotidiano dos habitantes de São Paulo. Osvaldo Moles trabalhava para esta rádio neste período e produziu o programa já citado “Nossa Cidade”. O programa tem 23 minutos de duração e tinha o patrocínio de dois tipos de produtos diferentes: Vermute e Conhaque, ambos Montezano. Com a produção musical do maestro Hervé Cordovil, que trabalhou na rádio paulistana de 1945 até sua aposentadoria no ano de 1971. A narração do programa foi realizada por Raul Duarte. Atores participantes foram: Mariamélia, Celina Amaral, Leonor de Abreu, José Rubens, Adoniran Barbosa, Vicente Leporato, Osvaldo de Barros e Mario Sena. Através da gravação disponível no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, percebe-se que há um auditório repleto de espectadores acompanhando e interagindo com risadas e outras manifestações. 66 O roteiro do programa redigido por Osvaldo Moles retrata um domingo de setembro na cidade de São Paulo. Tem início com a narrativa musical que dá ambientação ao ouvinte. No rádio as cores do cenário são sugeridas pelas tonalidades musicais que as músicas incidentais faziam com intensidade. A crônica se passa em vários lugares da cidade com diversos personagens. Os moradores do Brás, os vendedores de rua, as crianças nas ruas e quintais aprontando travessuras, os transeuntes e os passarinhos no Parque da Luz, as corridas e apostas no Jóquei, com um cavalo antropomorfizado que reclama trabalhar aos domingos na Cidade Jardim, o subúrbio, o cortiço, a favela, as opções de lazer, o Palácio do Ipiranga e o cinema no final da tarde. A história roda a cidade ao domingo retratando de maneira cômica e satírica o cotidiano, as peculiaridades de diferentes classes sociais e invenções tecnológicas. Antropomórficos são os personagens do cavalo e do ventilador. O cavalo que sacaneia os apostadores por estes fazê-lo labutar no dia do descanso semanal. E o ventilador que domou a brisa de domingo. Aquele tornado doméstico. O autor tem um estilo marcante que é possível de ser observado tanto no roteiro deste programa como também nas crônicas de “Piquenique Classe C”. Este estilo apresenta uma mescla de erudito ou culto, com fatos da história mundial, com a linguagem popular, os sotaques que representam a diversidade cultural dos habitantes pobres e ricos da cidade. Segundo dados disponíveis no site da Prefeitura Municipal de São Paulo, na década de 1950 a cidade de São Paulo contava com 2.151.313 habitantes segundo o censo de 1950. Já na década de 1960, conforme o recenseamento deste ano, a cidade contava com 3.667.889 habitantes, ou seja, um crescimento de mais de 50% da população em dez anos. Tanto é que o chavão do programa era: “São Paulo, Nossa Cidade, Terra de todos, pátria de todos”. Na crônica do convescote em Santos, também se passa num domingo. Um domingo especial de passeio e comilança. Ambas crônicas do mesmo autor. As duas se passam no dia de descanso, de passeio, dos momentos lúdicos, de contato, de cantoria, de comer e beber. 67 Para tentar entender de maneira mais profunda estes costumes musicais, vou citar um trecho de uma crônica bem curta chamada “Conflito na Barra Funda”, escrita por Osvaldo Moles e publicada em “Piquenique Classe C”. O interesse é pela expressão “samba de porão”, contida nesta crônica. As referências aos “sambas de porão” são raras e se resumem na sequência de ações, enredos e contextos, imagens mentais fictícias na crônica “Conflito na Barra Funda”. As noitadas de samba os espaços sociais onde ocorriam as experiências dos personagens. Anacleto vinha pela Glete, na última calda da madrugada. Ora, esperança de cafuzo, que ainda não arranjou entrada em baile por debaixo do pano, é consegir um final de samba na noite envelhecida. De repente, ouviu, na distância, uns tamborins tutucando. Foi se chegando à casa de onde vinha aquêle jorro de rítmo. E achou o que queria: samba de porão. Ficou lá de fora, espiando pela janelinha baixa, por entre as grades, assim como quem tem só curiosidade. (MOLES, s/d, p. 153). Esta imagem do samba de porão narrada neste excerto da crônica “Conflito na Barra Funda” fez referência com os porões e cômodos no centro velho da cidade que era uma opção de moradia já na época dos libertos nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, conforme expõe Raquel Rolnik. (ROLNIK, 1997, p. 67). Principalmente na região do Centro Velho nos arredores da Rua Quinze de Novembro. Ali localizavam os territórios negros ligados a igreja da Irmandade Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, as habitações e o chafariz. Tudo foi desapropriado e demolido durante a execução do Plano de Melhoramentos da Capital, entre 1899 e 1911, durante a prefeitura de Antônio Prado. O plano consistia na destruição dos locais de sociabilidade das pessoas que representavam a degenerescência, os desregrados, que estão excluídos dos códigos de posturas normativas europeus ligados ao pudor e outras qualidades. Daqueles ex-escravos, não domesticados para o trabalho assalariado como os imigrantes europeus, cujos os encontros e desen- 68 contros entre “machos e lascivas fêmeas” ocorriam nos tanques públicos, quintais, porões e quitandas. Portanto, a expulsão das camadas sociais não alinhadas com os costumes normativos e posturas europeias que as elites locais desejavam impor aos seus. Assim como, é claro a valorização imobiliária do centro da cidade de São Paulo. Porém, os cortiços e porões iriam se proliferar em muitos lugares do centro e conforme a cidade foi se expandindo este tipo de moradia continuava a ser uma alternativa para os recém chegados que pousavam vindos de lugares diversos. Ainda segundo Raquel Rolnik, a moradia dos negros libertos em porões e cômodos na Sé, pequenas aldeias nas periferias da Penha e na Freguesia de Nossa Senhora do Ó. Os espaços de sociabilidade ocorreram em meio as urdiduras da vida da cidade, nos encontros no mercado, quitandas, cangalhas, bicas de água, chafarizes, cantos, capoeira. Os pátios e quintais dos cortiços e habitações coletivas ocupadas pelos libertos eram espaços de convivência, onde se cozinhava, lavava, ficavam os filhos, conversavam. Dentro dos pequenos quartinhos e porões ficavam somente a tralha de dormir. A vida acontecia no espaço coletivo do quintal. (ROLNIK, 1997, p. 67). As crianças e os cantos, as conversas, berros, ruídos. O samba de porão de Osvaldo Moles teria alguma relação com a descrição destes espaços feitas pela Raquel Rolnik? Estes lugares tinham seus próprios ritmos, mais ligados ao ritmo do trabalho, da vadiagem, do lascividade, das urdiduras da realidade material. O samba ou os tipos variados de samba que existiam. A geração de músicos da década de 20, como Sinhô, Pixinguinha e Donga, ou seja, no período anterior ao processo de construção da imagem do samba como símbolo nacional, já apresentava um repertório variado passando por uma fusão de influências dos lundus, modinhas, maxixes, choros, jazz, polcas e outros estilos internacionais. “Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passaram a ser considerados regionais”. (VIANNA, 1995, p. 111). 69 Conforme aponta José Geraldo Vinci de Moraes, a polifonia paulistana consolida-se por volta dos anos 1930. As influências e repertórios passavam pela música italiana, espanhola, tango argentino, polcas, chorinho, marchinhas carnavalescas, sambas, serenatas, música de circo, música caipira e música sertaneja. A música acontecia em locais como nas ruas, cafés, teatros, clubes, festas diversas, residências particulares, salas de entrada de cinema, fonógrafos, discos e emissoras de Rádio. A radiofonia paulistana tem uma tradição de diversidade sonora. O mito da cidade do trabalho e do progresso que não para nunca, surgiu nos anos 1930. (MORAES, 2000, p. 22). O Tema de são Paulo: Amanhecendo, com seu incansável refrão “vamos embora, vamos embora, que está na hora, vamos embora, vamos embora” cantado sem o som do “s”, ficando sonoramente “vambora”. Está canção virou um clássico e até hoje é entoada nas manhãs pela rádio. São Paulo nos anos 50 tinha uma situação híbrida em relação aos costumes urbanos: a música caipira, os sambas, as músicas que vieram com os imigrantes europeus, com migrantes nordestinos e mineiros, e de outro lado, a modernidade representada pela indústria cultural, pelas rádios, pelos autos e arranha-céus. Havia também os salões de raça, onde frequentam os negros batuqueiros. Nestes bailes tocavam os sambas, lundus e outros ritmos de percussão fora de época de carnaval. Aliás, o samba paulistano tem uma característica na batida que o diferencia dos sambas cariocas e dos sambas baianos. Do samba italiano, da seresta, do samba de porão. Na cidade que cresce sem parar, a música de rua, dos violeiros, de domicílio, de vizinhos seresteiros fica cada vez mais inviável. E era destes encontros entre comunidades, sambas de porão, que novos músicos despontavam. Contraditoriamente os chorões também tendiam a crescer numa cidade que dificultava cada vez mais os encontros informais de vizinhança e comunidade, onde os novos e velhos músicos podiam tocar e trocar experiências. 70 De volta à crônica, dentro do bonde para a Estação da Luz, as cantorias dos operários da “Tecelagem da Virgem S/A” no domingo de passeio para a Praia do Gonzaga em Santos tinham diversos sotaques. No texto desta crônica podemos observar as referências aos bondes e aos trens. Primeiramente aos bondes que faziam o trajeto da rua Catumbi, no bairro do Belém até a Estação da Luz, onde havia o terminal ferroviário. Existe um mapa da Projeção hiperboloid com rede quilométrica da cidade de São Paulo, datado de 1952 que possui as linhas de bonde e de ônibus, disponível no site da Prefeitura de São Paulo. Segundo este mapa, os bondes que passavam pela rua Catumbi, até o Largo Catumbi, eram os bondes 13 e 16. Porém, parece que o bonde 13 é que fazia o itinerário até a Estação da Luz. No momento da ida para Santos, o bonde é citado assim: O Barsotti vai levando a charanga, cheia de violões que se chama “Grupo Folclórico Anita Garibaldi”. Já no bonde para a Estação da Luz, o ritmo de samba tem mistérios italianos: - “Escuita... Vamos fazê um contralto...” Por fim, aquela ânsia de pegar o trem. Vai partir? Não vai? Quando parte? É já? Há uma longa espera e, depois, o trem desamarra, enquanto os engraçadinhos “ajudam” empurrando o banco com o traseiro. - Dêxo a Marieta ficá perto da janela, pra vê a paijaje!... O trem que vai pra Santos está repleto de olhos saltando das órbitas, em atitude de assombro ante a Serra do Mar. (MOLES, s/d, p. 23). Além do fato de aparecer na narrativa os bondes, provavelmente essa linha que fazia o percurso do Catumbi para a Estação da Luz, podemos perceber o trem. Naquele período os trens e os ônibus eram as opções para a viagem até a cidade de Santos, no litoral paulista. Na própria narrativa são citadas as duas opções inclusive fazendo referências aos preços das respectivas passagens. Piquenique... E a palavra gostosa se enrolou na língua de todos. Uns diziam piquinico. E, em meio, estava o Nicolino organizando, inscrevendo gente: - Quem quisé í no trem, paga só 80. De ônibo é 100. Começaram a fumegar as discussões. Chovem os palpites. 71 Trem é melhor... ônibus é “mais gozado”... Os contramestres não iam lá se misturar. Iam mesmo de “limãozinha”. (MOLES, s/d, p. 20). Sem dúvida que o sistema de transportes urbanos na cidade de São Paulo formado pelas frotas de bondes e ônibus era de fundamental importância para o funcionamento da cidade e que este sistema de transportes detinha inúmeros problemas e geram grandes frustrações a população, em suma para os mais pobres que residiam em lugares periféricos cada vez mais distantes do centro da cidade. A antiga vila de costumes caipiras até o último quartel do século XIX se transforma na década de 1940 numa urbe que segue uma lógica do crescimento periférico num movimento caótico e de forma de espiral. Contudo, não devemos deixar de relevar o sistema de trens da cidade na década de 1950. Em função do período de exploração do café, a malha ferroviária paulista recebeu muitos investimentos ainda no final do século XIX. Isso possibilitou a construção de centenas de quilômetros de ferrovias que ligavam várias cidades próximas de São Paulo como Jundiaí, Mogi das Cruzes, Paranapiacaba, Santos, etc. Todas as linhas convergiam para a Estação da Luz. O problema dos transportes era uma das questões mais latentes da cidade no contexto do após-guerra. Adriano Luiz Duarte destaca e analisa fatos relevantes como o dia de São Bartolomeu, em 1º de agosto de 1947, exatamente um mês após a criação da Companhia Municipal de Transportes Coletivos – CMTC, quando a população enfurecida com os aumentos nos preços das tarifas, as péssimas condições de conservação dos ônibus que serviam as linhas mais utilizadas pela população mais necessitada, a escassez do número de ônibus disponíveis, o tempo desgastante que levavam os bondes e os ônibus para passar no ponto (algumas vezes os usuários chegavam a esperar duas a três horas para passar um ônibus ou bonde) e a sua invariável super lotação, consagrou de maneira caótica a insatisfação popular através de motins em vários pontos e terminais de ônibus, com vários ônibus incendiados. (DUARTE, 2002, s/p.). 72 O objetivo desta pesquisa não é estudar esta revolta popular, mas procurar contextualizar os problemas que afligiam a cidade entre os anos do após-guerra que estavam ligados aos momentos de trabalho e direito ao lazer. Como o problema dos transportes urbanos ressaltava diante da realidade de crescimento periférico e mobilidade urbana casa-trabalho e trabalho-casa, e, também a exclusão de muitos do direito à cidade, procurei concentrar minha análise, neste momento, a uma crônica que trata diretamente do tema relacionado aos transportes. No texto “Bonde quando morre vira anjo?”, também uma crônica publicada no livro “Piquenique Classe C”, de Osvaldo Moles, podemos observar que o autor descreve um bonde antropomorfizado, que cria vida na condição de personagem. Ele pensa na sua condição metafísica. Em termos epistemológicos, a personagem legitima a estrutura imaginária da ficção, conforme sugere o crítico Anatol Rosenfeld. A linguagem pode transformar a descrição de uma experiência e gerar sucessivas transformações interpretativas. O pensador alerta que nas narrativas tudo aparece antropomorfizado, pois o homem é o único ente que não se situa somente no tempo, mas que é essencialmente o tempo. (ROSENFELD, 2005, p. 28). E – ai de mim – estava esperando o bonde. O bonde das Perdizes é um exagêro metafísico. Artístico bonde, rigorosamente abstracionista. Mas eu sou daquêles que acreditam. Tenho fé no bonde das Perdizes. Muitos dizem que não existe. Mas minha crença é inabalável. Já, de madrugada, conversei com esse bonde. Que diálogos travamos! Êle sustentava que, um dia os bondes se revoltariam e deixariam de ser robôs caminhando pelo triste destino das paralelas que nunca se encontram. E dizia, coitado, que pretendia suicidar-se assim que encontrasse uma chave de parafusos. (MOLES, s/d, p. 126). Osvaldo Moles dá à este personagem itinerante uma vida. Um bonde que possui vida. Mas, que já está à beira da morte. Uma vida ultrapassada, opiniões mais pessimistas, deprimido com sua condição de escravo robótico dos trilhos que o fazem repetir sua vida toda o mesmo caminho. Um dos papéis do personagem é trazer à evidência de pensamento tudo 73 o que está embaralhado pela percepção do cotidiano. Ainda conforme Anatol Rosenfeld, uma das funções da literatura se dá pela sua possibilidade de afastar a estesia humana do mundo real e considera-la no mundo do simbólico, o que ajuda o humano a entender sua própria realidade. (ROSENFELD, 2005, p. 49). A substituição lenta e intermitente da frota de ônibus e o respectivo e constante abandono da frota de bondes não aconteceram de maneira tão simples e rápida. Assim como também não foi norteada pelas necessidades logísticas por demanda de transporte urbano público. Este crescimento esteve atrelado a um conjunto de processos de loteamento dos bairros e interesses de exploração de linhas de transporte público seja pela Light and Power Company Limited, seja pela CMTC, e, a especulação imobiliária controlada por máfias e cartéis políticos. As classes populares, que dependiam das linhas de transporte público para trabalhar diariamente sempre reclamavam das péssimas condições dos ônibus, dos trens e dos preços das tarifas. Ainda segundo Adriano Luiz Duarte, em 1947, do total de usuários do transporte público aproximadamente 35% eram transportados em ônibus e os 65% restantes viajavam em bondes e lotações. (DUARTE, 2002, p. 54). Na época, a CMTC informava que a frota de transporte público oficial era formada por 600 ônibus e 550 bondes. Estes dados foram expostos no momentos em que se contabilizavam os estragos feitos pela revolta popular da sexta-feira, 1º de agosto de 1947. Segundo assessoria da empresa, que foi bem distinta dos dados que apareceram nos jornais Folha da Manhã e Correio Paulistano, foram danificados 78 ônibus e 242 bondes e totalmente queimados 16 ônibus e 5 bondes. Os veículos públicos e oficiais de transportes da cidade transformaram-se em símbolos e expressão das insatisfações da população que habitava as áreas periféricas de São Paulo em relação as suas condições de vida. Portanto, os acontecimentos do 1º de agosto de 1947 foram manifestações políticas, mas não partidárias. Foi ato político pelo “direito à cidade”. 74 Faço um comício no ponto. O bonde vem, meus senhores! Povo de São Paulo, juro pela honestidade do prefeito que o bonde virá! Vem, mas custa. Vai ver que anda por aí parado, discutindo com algum ônibus independente sôbre o destino sempre fixo dos bondes. Mas, o Perdizes é boêmio. Se lhe pagarem um copo de “tapa de onça” êle cede sorrindo numa discussão. O Perdizes é cordato. Não é intransigente, como os bondes udenistas da Avenida Angélica. É cordato, mas não vem, e o que é que adianta ser cordato um bonde que não concorda em aparecer? Se não teve por aí, por uma dessas ladeiras, um enfarte do miocárdio, há de vir. É que o Perdizes é bonde antigo. Está sofrendo de arteriosclerose e pára em tudo que é boteco para tomar pinga com iodo. Muitos reclamam. Mas eu, que sou amigo do Perdizes, trato de apaziguar os ânimos. Olhem eu garanto. Eu garanto que êle vem mesmo. Juro pela minha saúde que... Aí aparece uma senhora cheia de cestas. Cestas a tiracolo, cestas nas mãos, cestas e cestas de gordura encintada. E naquela voz de tisía importante informa: - Tá fartando fôlça pelétrica pôs ládios da Barra Funda. Os bonde tá tudo estacionário na vinida San João. É senhores... Esperar o bonde das Perdizes é a maneira mais estranha de se tomar um táxi. (MOLES, s/d, p. 126 e 127). Os costumes são um conjunto de hábitos definidos por um grupo social através da experiência e memória que gera sentido material para estes costumes. Podemos observar os costumes boêmios do bonde das Perdizes antropomorfizado. E quando pensamos em boemia, pensamos em costumes alimentícios, uso de bebidas, fumos e outras substâncias alteradoras de consciência. Boemia nos remete a música com voz etílica. A serenata feita pelos cantores da madrugada ao som da cachaça. A cachaça que se mistura ao gosto da nicotina. E estas substâncias, somadas a carne e a respiração, alimentavam os pagodes, os sambas de porão. Em outras crônicas do autor a problemática dos transportes também se faz presente. Muitas vezes é o bonde que aparece nos textos. O bonde das Perdizes, no ponto de bonde da Rua Cardoso de Almeida, que sempre demora a passar nas narrativas. Que é que um marinheiro jurado vai ficar fazendo aqui nas filas do Paissandú, comendo salsicha com batata nos chamados “Morre em 75 Pé” da Avenida São João? Se sou marinheiro jurado, vou para Castro Alves de onde vejo a mais bela enseada do mundo e onde a moça traz água de côco que eu não bebo. Mas também tem uma cachaça que, quem bebe devagar, começa a ouvir o canto de Janaína. É um canto tão doce, meu irmão, que as cocadas dos tabuleiros fogem de vergonha. Sou marinheiro jurado e até logo para quem fica.Vou perguntar a minha madrinha das águas porque é que eu, com diploma de marujo, hei de continuar tanto tempo na esquina, plantado como um pé de abacaxi, esperando o bonde das Perdizes. Já viu marinheiro ancorado em ponto de bonde? E já fui informado de que na rua Cardoso de Almeida não passa navio. (MOLES, s/d, p. 324 e 325). Uma das peculiaridades do texto de Osvaldo Moles é não ser datado de maneira formal. Porém, existem alguns indícios que podem nos levar a entender a época que a narrativa trata: a comparação entre a viagem São Paulo a Santos de trem e de ônibus, inclusive com referência ao preço das passagens; a menção do personagem Paco, o espanhol anarco-sindicalista, ter vindo da guerra civil espanhola; o Nicolino, o Ciccillo que representavam os imigrantes italianos que possuíam alguma hegemonia entre as comunidades de operários pela sua experiência em vários ramos das indústrias em São Paulo; o japonês Tsumamoto, sobre as imigrações dos orientais dos quais, na década de 1950, muitos eram destinados para trabalho rural nas áreas do cinturão verde da cidade, e, a alusão da chegada dos nordestinos através do personagem “baiano”. O êxodo rural, os movimentos migratórios e a desigualdade social apenas recrudesceram no país e na capital paulista. Marcada pela alternância de políticos populistas e sua rede de funcionamento junto com as comunidades de bairro, conforme informam os historiadores Adriano Duarte e Paulo Fontes (DUARTE, 2013, s/p.). O populismo se torna a relação política preponderante no primeiro período democrático brasileiro, especificamente na década de 1950. A partir da Constituição de 1946, a mulher vota. Foi a época do populismo brasileiro e paulistano. Adhemar de Barros, eleito governador em 1947 e sua esposa Leonor de Barros, que fazia um trabalho político fundamental nos bairros periféricos. Foram 76 figuras que marcaram a política populista em São Paulo. Adhemar de Barros tinha um programa de rádio chamado “Palestra ao Pé de Fogo”, que utilizava linguagem simples e direta. Adhemar de Barros assumiu a prefeitura de São Paulo no ano de 1957. Assim como Jânio Quadros, eleito vereador em 1947, era apoiado pelo Jornal A Hora. Crítico de Adhemar de Barros e da Light and Power Company Limited. Tinha uma imagem de político diferente, interessado nas vidas e nos problemas das pessoas pobres. Fazia denúncias das condições precárias de trabalho nas indústrias paulistanas como Nitro Química, Celosul, Cimentos Perus e a Cia. Melhoramentos. No início da década de 1950, como deputado, Jânio defendeu a greve dos ferroviários e dos bancários. Foi eleito prefeito da capital em 1953. Segundo Antonio Luigi Negro os migrantes nordestinos tiveram inclusive uma participação nas greves deste período. Esta participação fica aparente, segundo o autor, nos registros de polícia do período. Os descendentes de imigrantes se consideravam superiores em relação aos nordestinos. Neste período qualquer pessoa com aspecto nordestino ou com pele mais escura era chamado de “baiano”. A “baianada” era considerada atrasada pelos seus costumes, hábitos, sotaques pelo preconceito que sofriam por virem em sua maioria de áreas rurais paupérrimas dos sertões das regiões Nordeste e Norte do Brasil, pelos seus costumes musicais e alimentícios. Entretanto podemos afirmar com tranquilidade que a “baianada” construiu a cidade de São Paulo. Tanto trabalhando no setor das recém instaladas indústrias automobilísticas como na construção civil e no comércio informal. O autor faz referência aos movimentos da greve dos 400 mil em 17 de outubro de 1957. À tarde, um segundo piquete parte da Vila Prudente. O investigador no seu encalço presumiu que era integrado por nortistas, talvez por causa do grande alarido com que fechavam as usinas ¾ que o policial ouviu e notou. Nas ruas e nos ajuntamentos a liberdade, conquistada mediante conflito, e com peculiares interjeições. (NEGRO, 2013, s/p) 77 Os imigrantes e seus descendentes estavam numa situação de domínio do movimento sindical na década de 1950 na cidade. Sua hegemonia política vinha já de outros tempos em setores como têxtil, químico, moveleiro, metalúrgico e gráfico. Os nordestinos acabaram entrando em cena por volta de 1955 com a instalação das indústrias automobilísticas que abriram centenas de empregos e contratavam trabalhadores sem experiência industrial. A mão de obra nordestina também era mais barata por isto. Num ambiente muitas vezes hostil, até com seguranças armados como no caso da Laminação Nacional de Metais – LNM, os movimentos de greve estavam quase que inviabilizados. Uma das principais curiosidades da crônica “Piquenique Classe C” é que o processo de identificação e vínculo que o leitor cria com os personagens se dá através do humor e da simplicidade como estes são apresentados. Além disto, o autor faz questão da importância de escrever sobre as diferentes origens culturais de alguns dos personagens e como eles aparecem num formato de convivência harmônica no texto. O Paco, entre outros, são descritos de maneira breve e marcante. A Concettina ainda não conhece o mar, aliás, como a maioria. E anda perguntando: - Escuita!... É grande mesmo? Vai como daqui no Belém? O Ciccillo bota muita experiência na fisionomia e faz um gesto largo com o indicador, rolando o braço na distância, mostrando a imensidão. E assobia. O “baiano” da limpeza entende muito de mar, que êle chama de óceano. Nasceu em Canavieiras, não sabe? E desfila palavras de um mundo desconhecido: maresia... saveiro... xaréu... Todo mundo não entende, mas pasma. (MOLES, s/d, p. 20 e 21) A canção popular e a literatura são sem dúvida tipos de fontes ricas para a historiografia. Podemos tentar sentir e deduzir formas de sociabilidades através da análise das sonoridades e informações contidas na música, nos roteiros de programas de rádio, nas crônicas e outras formas de literatura. Estas formas de arte funcionam como fotografias ou cenários. O programa de rádio, além dos escritos do roteiro, também possuem as 78 músicas incidentais que tem eficácia enorme para ambientar o ouvinte. A música cria uma substância psíquica que libera sensações próprias de abertura emotiva e cativante, persuasiva e sedutora. Cria um todo um clima junto ao movimento sonoro da voz do narrador. De volta ao programa “Nossa Cidade” continua falando sobre futebol na Casa Verde, a criançada a brincar na rua de domingo, os pregões (vendedores ambulantes de rua que anunciam com diversos sotaques toda sorte de produtos como guloseimas, peixe, verduras, jornais. A presença física e sonora dos pregões também é citada por historiadores de áreas distintas como Raquel Rolnik, história, arquitetura e urbanismo, e, José Geraldo Vinci de Morais, história, cultura e música popular. Ambos em temas distintos mas que se cruzam em alguns pontos como este da sinfonia dos pregões. Assim como a mesma melodia dos pregões também foi comentada no depoimento Francisco Almeida Salles e do Prof. Ernani da Silva Bruno no qual tecem comentários de memórias sobre a cidade de São Paulo na década de 1940. Falam dos trajes do imigrantes, o Teatro São José, depois prédio da Light and Power Company Limited, o Café Adamastor, as chácaras no Brás que foram sendo divididas em ruas. As jardineiras e os bondes. Os ônibus de luxo a partir da década de 1930. O circo. A presen����������������������������������������������������� ça do circo. O palhaço Piolin, ������������������������������ apoiado segundo os depoentes pelo pessoal de 1922. Como que o circo está ligada a cidade de São Paulo com o circo no Largo do Payssandú. São Paulo que sempre foi uma cidade de clima triste. Dos diversos cinemas. Dos refrescos Gasosa e Guaraná e a partir de 1954, a Itubaína. Provavelmente eles também estivessem se referindo as diversas atividades promovidas entre 1935 e 1936 pelo Departamento de Cultura, criado em 1935 por Mario de Andrade. O Departamento de Cultura durou pouco tempo. Porém, foram tempos muito intensos. Foram criados o Coral Paulistano, Biblioteca Circulante (ônibus-biblioteca), Parques Infantis, o Quarteto de Cordas, a Sociedade de Etnografia e Folclore e a Discoteca Pública. Foi aberto o curso de Biblioteconomia, iniciado um acervo 79 iconográfico da cidade e a pesquisa sociológica. Foram inventados concurso de Mobília Proletária e o padrão da Língua Nacional Cantada. Foi concedido apoio a Expedição Etnográfica de Lévi-Strauss e realizada a Missão de Pesquisas Folclóricas. (CERQUEIRA, 2010, p. 3) Após o Golpe do Estado Novo, Mário de Andrade é afastado do Departamento de Cultura e substituído por Francisco Patti. O domingo na capital paulista continua no programa “Nossa Cidade”, que também aponta as missas elegantes cantadas na Igreja de São Pedro, a Basílica, os bairros de portões de ferro, os preparativos para o jogo do “Parmera” contra o São Paulo, que os ingressos haviam acabado, mas o jogo no rádio, e os fogos de artifício para soltar. No domingo, o mercado só abre até o meio-dia, os açougues estão fechados, não é mais como no tempo em que nada fechava na cidade. O autor faz referência ao slogan de São Paulo, uma cidade feita para o trabalho e não para a diversão. “São Paulo não tem onde se ir”. E várias vozes repetem esta frase. No domingo, continua o narrador, os lugares para se ir são o Jóquei Clube, o futebol, o Parque da Luz, o cinema, o Mus���������������������� eu do Ipiranga, o Horto Florestal, o Butantã, o passeio no centro da cidade, o pif paf, o buraco, as matinês na gafieira. O Jardim da Luz, lugar para namorar e paquerar. Os cisnes, os copos de leite, os beija-flores, os homens que passam olhando as mulheres. E ao fundo, o som da bandinha do Exército da Salvação. Um homem de cor conta aos circunstantes quem era Jesus Cristo, numa batalha contra o pecado. Na Cidade Jardim, os cavalos deveriam correr muito para satisfazer os apostadores grã-finos. Há até uma entrevista com o jóquei chileno Luiz Gonzalez. Conclusão Estes textos de Osvaldo Moles publicados em Piquenique Classe C, assim como o programa “Nossa Cidade”, apresentam costumes musicais e alimentícios da cidade de São Paulo nos anos 1950. Mostram impressões que o autor registrou do cotidiano deste ambiente urbano que não 80 para de recrudescer. Os fatos históricos apontados como o Dia de São Bartolomeu, as políticas populistas, as greves, e o crescimento periférico excluem do direito à cidade centenas de pessoas pobres. Fortalece as máfias políticas. Uma cidade que cresce demais tende a ter sua história apagada pelo próprio movimento de expansão, construção e reconstrução. Isto evidencia ainda mais a importância destes registros literários para possibilitar que a história da cidade não seja olvidada completamente no movimento do progresso. Fontes Campos Jr, Celso de. 2009. Adoniran: uma biografia; prefacio de Alberto Helena Jr. – 2ª ed – São Paulo: Globo. Cerqueira, Vera Lúcia Cardim de; Org. 2010. Missão de Pesquisas Folclóricas: cadernetas de campo. 1ª ed. – São Paulo: Associação Amigos do Centro Cultural São Paulo. Depoimento de Francisco de Almeida Salles e Ernani da Silva Bruno. Arquivo MIS-SP. pop_dist.php, Consulta: 01/2013. MOLES, Osvaldo. “Bonde, quando morre, vira anjo?”In: __________. Piquenique Classe C: crônicas e flagrantes de São Paulo. São Paulo, Boa Leitura S/A, s/ data, p. 126. MOLES, Osvaldo. “Conflito na Barra Funda”. In: Piquenique Classe C: crônicas e flagrantes de São Paulo. São Paulo: Editora Boa Leitura S/A, s/d, p. 153. Depoimento de Paulo Machado de Carvalho. Programa comemorativo de 44 anos da Rádio Record, Arquivo MIS-SP. MOLES, Osvaldo. “Piquenique Classe C”. In: Piquenique Classe C: crônicas e flagrantes de São Paulo. São Paulo: Editora Boa Leitura S/A, s/d, p. 17 a 27. Dados dos recenseamentos de São Paulo no século XX. http://smdu.prefeitura. sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/ pop_dist.php, Consulta: 08/2013. Programa da Rádio Record “Cortiço” com Júlio Atlas. Festejos Carnavalescos de 1950 at. Arquivo MIS-SP. Mapa da cidade de São Paulo de Projeção hiperboloid de 1952. http://smdu.prefeitura. sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/ Programa “Nossa Cidade” está disponível na midiateca do Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Arquivo MIS-SP. Referências BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade: FAPESP, 1998. DIAS, Márcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000. DUARTE, Adriano Luiz. Cultura popular e cultura política no após-guerra : redemocratização, populismo e desenvolvimentismo no bairro da Mooca, 1942-1973. Campinas, 2002. 273 p. Tese (Doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 81 . “Cortiço: uma invenção popular ou o coletivo versus o individual”. In: . Cidadania e exclusão: Brasil 1937-1945. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1999, p. 59-74. DUARTE, Adriano Luiz e FONTES, Paulo. “O populismo visto da periferia: adhemarismo e janismo nos bairros da Mooca e São Miguel Paulista, 1947-1953”. http://lanic.utexas.edu, Consulta: 02/2013. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Trad. Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 393 a 562. Paulo: Estação Liberdade, 2000. NEGRO, Antonio Luigi. 2005. “Quem agüenta esses baianos? Desfazendo preconceitos sobre a história do Brasil: trabalho, migração e lutas sindicais”. Revista Histórica. http://www.historica. arquivoestado.sp.gov.br, Consulta: 02/2013. ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel: Fapesp, 1997. . História Social do Jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. ROSENFELD, Anatol. “Literatura e personagem”. In: CANDIDO, Antonio et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2005. MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em Sinfonia: história e cultura e música popular na São Paulo dos anos 30. São VIANNA, Hermano. O mistério do samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 1995. 82 Hardcore, sobriedade e direitos dos animais: reflexões sobre as relações entre produção musical, veganismo e abstinência na subcultura straightedge Jhessica Reia Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro [email protected] Resumo Esse trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre as relações existentes entre a produção musical straightedge, a (não) ingestão de álcool e drogas e a alimentação vegana, que acaba permeando todos os festivais chamados de Verdurada e a cena de hardcore punk que os cerca. Straightedge é um movimento que teve início nos anos 1980, dissidente da cena punk, que buscava um estilo de vida livre de álcool e drogas, por vezes associado também ao veganismo, à militância política e ao sexo responsável. A pesquisa a ser apresentada tem como referencial teórico os estudos culturais e a intersecção dos estudos de música e/como comunicação. A base para a constituição desse trabalho é minha pesquisa de mestrado, realizada entre 2011 e 2013; por isso, se apropria de alguns métodos utilizados para construir a reflexão aqui proposta. Diante de tantas questões a serem sistematizadas e analisadas, optouse por realizar a pesquisa em duas partes distintas e complementares: uma de caráter teórico, bibliográfico e documental; e outra caracterizada por um estudo empírico realizado através de observação participante, da aplicação de questionários presenciais (durante os festivais) e online (para membros da página da Verdurada no Facebook), de entrevistas qualitativas com atores-chave (bandas, selos, coletivo organizador, frequentadores, etc.), e de netnografia complementar. A partir de todo material coletado pode-se analisar melhor o papel que a comida e a ausência da bebida (principalmente do álcool) exercem na produção musical straightedge e na comunidade como um todo, adquirindo um caráter quase ritualístico de interação pessoal, ao mesmo tempo em que é e um sinal de distinção e pertencimento ao grupo. Palavras-chave straightedge, sobriedade, veganismo, hardcore-punk, Verdurada 83 Introdução O straightedge (ou sXE) é uma subcultura que surgiu no início dos anos 1980 nos Estados Unidos, em contraposição ao niilismo e aos excessos da cena hardcore punk do período. Buscando a sobriedade a partir da abstinência do consumo de álcool e drogas, consegue, há mais de três décadas, combinar som agressivo e danças violentas com militância política. Além da sobriedade, são valores comuns na subcultura straightedge: o ativismo, o veganismo/vegetarianismo1 e o sexo responsável. Chega ao Brasil pouco depois e tem na Verdurada sua maior expressão. Parte-se do princípio de que o straightedge, no caso estudado, consiste em uma subcultura (GELDER, 2005) de limites bem definidos, que se contrapõe (ao mesmo tempo em que se complementa) à cena de hardcore punk paulistana. Desde 1996 o festival Verdurada agrega bandas de diferentes gêneros musicais, nacionais e internacionais, em um evento que proíbe a entrada de álcool, cigarros e produtos de origem animal, ao mesmo tempo em que promove debates, palestras e exposições artísticas. O público varia, mas sempre enche os espaços alocados para os shows. Ao invés de cervejas no palco, se veem garrafas de água; as comidas vendidas são todas livres de crueldade. No fim das apresentações é distribuído um jantar vegano gratuito. Para além da música, os festivais trazem uma forte noção de pertencimento àqueles que aderem à filosofia de vida da sobriedade e do veganismo. Ali se identificam, se sentem respeitados, interagem com seus pares, produzem e consomem música, dando a esses eventos um caráter quase ritualístico de interação pessoal e de delineamento do que é estar no mundo para as pessoas envolvidas. 1 Vegetarianismo é um regime alimentar que exclui da dieta todo tipo de carne (vaca, peixe, frango, porco, frutos do mar, entre outros) e produtos derivados. O veganismo não consiste apenas em um regime alimentar, estando mais próximo de uma filosofia de vida “livre de crueldade” que luta pelos direitos dos animais ao boicotar todo tipo de produto que tenha origem animal e seja testado em animais (alimentos, peças de vestuários, cosméticos, etc.), além do boicote a eventos e estabelecimentos que explorem animais, como rodeios e circos. 84 Straightedge: música e sobriedade na cena hardcore punk Historicamente, o straightedge esteve intimamente ligado ao hardcore e punk, mas a partir da década de 1980 passa a se diferenciar através de sua oposição (às vezes militante) contra o uso de drogas e álcool, assim como das práticas de sexo ditas promíscuas. Com o passar dos anos, também ficaram conhecidos pelo engajamento político e pelo estilo de vida vegano/vegetariano contrários às formas de exploração animal. Para Wood (2006: 6-7), que estudou a subcultura nos Estados Unidos da América – onde surge primeiramente o straightedge –, esse meio é caracterizado como predominantemente masculino, bastante jovem (poucas pessoas acima dos 30 anos), característico de centros urbanos, e um fenômeno de pessoas de classe média, caucasianas. Surge no início da década de 1980 em Washington D.C., tendo como precursora a banda Minor Threat, de Ian MacKaye – que passava através das músicas suas percepções e escolhas pessoais em relação ao uso de álcool e drogas, mobilizando uma massa crítica na cena punk estadunidense. Todos os autores que se dedicaram a estudar essa subcultura acreditam, através de suas pesquisas e observações, que tanto a cena musical quanto a música em si são os pontos principais da subcultura straightedge: Performances musicais permitem aos straightedge visitar uns aos outros, formar novos laços de redes, ouvir música straightedge, pogar e dar mosh, e comprar mercadorias, como CD’s, discos e camisetas (…). Assim como shows e discos disponíveis comercialmente, “transmissores culturais” cruciais tais como fanzines/revistas e sites straightedge ajudam a unir a cultura straightedge nacional e internacionalmente. (WOOD, 2006: 9) Um dos principais símbolos da cultura straightedge é a letra X, ou objetos dispostos de forma a parecer um X. Vários autores discutem a origem da conexão entre o símbolo X e a subcultura straightedge; o próprio MacKaye explica que essa conexão surgiu em Washington D.C., em sua cena hardcore punk, na década de 1980: o X era uma marcação feita nas 85 mãos de menores de idade para que eles pudessem ser admitidos em shows que ocorriam em lugares que comercializavam bebida alcoólica (WOOD, 2006, 115-116). Assim sendo, o X não surge como um símbolo próprio do movimento straightedge, mas como um elemento prático de diferenciação para os menores; ao mesmo tempo, o símbolo ajudava os donos desses lugares a não infringirem nenhuma lei local. Aos poucos, o X assume outros níveis de significância, sendo que mesmo o pessoal maior de idade continuava indo aos shows com um X marcado na mão, para demonstrar solidariedade ao conceito e à escolha dos que não consomem álcool. A prática de marcar o X na mão acabou popularizada pela capa do disco Minor Disturbance, do Teen Idles, em 1980 (HAENFLER, 2009: 7-8). Mesmo que tenha surgido a partir do desejo de adolescentes de verem suas bandas favoritas tocarem, o movimento straightedge aparece primeiramente como resposta às tendências niilistas do ‘live fast, die young’ (‘viva rápido, morra jovem’ em tradução livre), muito difundidas na cena punk até então: Os jovens que formariam a emergente cena sXe apreciavam a mentalidade de “questione tudo” do punk, sua energia crua, estilo agressivo e atitude faça-você-mesmo, mas não se atraíam pelo hedonismo da cena, nem pelo mantra “sem futuro”. Os fundadores do straightedge adotavam uma ideologia de “viver limpo”, se abstendo de álcool, tabaco, drogas ilícitas e sexo promíscuo. Os primeiros jovens sXe viam a rebelião auto-indulgente do punk como uma ausência de rebelião verdadeira, sugerindo que, em muitas formas, os punks reforçavam o estilo de vida intoxicado do mainstream, disfarçados com moicanos e jaquetas de couro. Para muitos garotos sXe, estar limpo e sóbrio era a expressão última do ethos punk, um ato de resistência que desafiava tanto a cultura mainstream adulta quanto a jovem. (HAENFLER, 2009: 8-9) O sucesso da canção “Straight Edge”, da banda Minor Threat, no início da década de 1980, mostra a ampla adesão de jovens aos ideais proferidos por Ian MacKaye, e segundo relatos coletados por Wood (2006: 98), 86 já havia um descontentamento de jovens com a cena punk, principalmente em relação ao niilismo e ao consumo de álcool e drogas: I’m a person just like you / But I’ve got better things to do / Than sit around and fuck my head / Hang out with the living dead / Snort white shit up my nose / Pass out at the shows / I don’t even think about speed / That’s something I just don’t need / I’VE GOT STRAIGHT EDGE 2 (MINOR THREAT, 1981) A música acabou sendo propulsora do movimento straightedge, ao falar que existem coisas melhores a se fazer do que se drogar, abarcando um sentimento já latente na cena. Wood (2006) acredita que antes que MacKaye articulasse formalmente o conceito de straightedge, já havia sentimentos desse tipo no ethos do punk americano; a música “Straight Edge” acaba por ser a ignição que faltava nesse cenário e o transforma em um movimento; a partir desse momento, diversos punks descontentes com os valores da cena se apropriam desse conceito e o utilizam como um meio de rearticular o significado de punk e validar/contestar a autenticidade do que é ser um punk rocker (WOOD, 2006: 99-100). De certa forma, além de surgir como uma oposição aos valores vigentes na cena punk, o straightedge também se coloca como resistência ao uso de drogas e álcool pela cultura jovem mainstream. Muitos dos entrevistados por Wood (2006), incluindo MacKaye, relatam sua dificuldade em se inserir em grupos juvenis das escolas que frequentavam, por não querer incorporar o hábito de consumir drogas e álcool às suas vidas. Há uma ampla discussão sobre a necessidade dos jovens em fazer parte de grupos específicos, de se encaixar nos padrões esperados por seus pares, além da imagem compartilhada por todos de que beber e se drogar é como um ritual de passagem e hábitos a serem adquiridos a fim de en2 Eu sou uma pessoa como você / Mas eu tenho coisas melhores pra fazer / Do que ficar por aí e ferrar minha cabeça / Sair por aí com os mortos vivos / Cheirar merda branca pelo nariz / Apagar nos shows / Eu nem penso sobre anfetamina / Isso é algo que eu simplesmente não preciso / EU TENHO O STRAIGHT EDGE. 87 trar na vida adulta e se manter dentro do comportamento esperado pelos demais, podendo assim ser um integrante do grupo (WOOD, 2006: 101). Portanto, a aversão a essa cultura jovem preponderante acaba sendo um fator que impulsiona adolescentes a seguirem os valores straightedge. Para algumas pessoas, estar fora dessa cultura hegemônica fazia com que se sentissem alienados ou excluídos pelos seus pares, mas o conceito de straightedge vem dar respaldo às suas escolhas, um sentido no qual se apoiar, e certa dignidade para seu estilo de vida. Entretanto, há um lado desse cenário pouco discutido: ao mesmo tempo em que resiste à cultura mainstream que a cerca, toda subcultura straightedge também recebe reforço positivo (positive reinforcement) de outros fenômenos culturais externos. O mais evidente deles é a coincidência temporal entre a emergência e o desenvolvimento da subcultura straightedge e a política de “Guerra às drogas” (WOOD, 2006: 103) realizada pelo governo estadunidense no início da década de 1980. Segundo Wood (2006), mesmo com estudos mostrando que o consumo de drogas era relativamente menor nos anos 1980 em relação aos anos 1970, a política dos Estados Unidos (representada principalmente por Ronald Reagan) reforçou a ideia de combate ao consumo ilegal de drogas no país, que logo se materializou em leis e enforcement. Esses sentimentos tão publicizados e persuasivos acabaram influenciando outras esferas, como a subcultura straightedge. De acordo com Wood (2006), as semelhanças entre essas duas formas culturais ficam ainda mais evidentes ao se comparar o discurso de combate às drogas com o conteúdo de letras straightedge do período; ambos os discursos retratam drogas, usuários e traficantes como ameaças ao tecido moral e social do país (WOOD, 2006: 106-107). E ao mesmo tempo em que o combate às drogas na cultura mainstream colocava em pauta um “endurecimento contra o crime” realizado pelos envolvidos com o tema, alguns elementos da subcultura straightedge também exteriorizavam uma violência extrema contra aqueles que de alguma forma se envolvessem com drogas. É preciso salientar que esse cenário de combate às drogas não criou o straightedge, 88 nem foi um dos alicerces do movimento; na verdade, a dinâmica desse período e de seus ideais serviu como um ambiente de apoio para que o fenômeno florescesse e despertasse em muitos jovens a consciência sobre os problemas relacionados ao consumo de drogas ilícitas (WOOD, 2006: 107). Era uma campanha tão permeada nos meios de comunicação da época, que seria difícil que muitos dos jovens não absorvessem ao menos fragmentos da retórica difundida. Dessa forma, o tema recorrente de drogas nas letras das músicas straightedge, assim como o aparecimento do chamado hardline3 no fim da década de 1980 pode pelo menos refletir parcialmente a influência desse ethos cultural de combate às drogas criado pelo governo. Ao mesmo tempo, é importante notar que a subcultura manteve certo nível de diferenciação, como por exemplo, incluindo substâncias legais em sua concepção de drogas e ao usar violência ilegal para combater aqueles tidos como inimigos (WOOD, 2006: 110-111). Haenfler (2009) destaca que o âmago da identidade straightedge sempre esteve na abstinência de álcool, nicotina e drogas ilegais, mas ao redor do mundo e dentro das próprias cenas existem variações consideráveis sobre essas interpretações e até que ponto vai a abstinência e o “viver limpo”. Por exemplo, existem discussões sobre o consumo de cafeína, o uso de produtos de origem animal, e a conduta sexual das pessoas. Da mesma forma, a política dentro desse contexto varia muito, indo da extrema esquerda a um conservadorismo exacerbado, passando pelo anarquismo. Algumas das críticas mais comuns ao straightedge se dirigem ao seu radicalismo (para qualquer um dos lados), à predominância masculina, ao comportamento violento, e ainda, à intolerância e inabilidade em desgrudar seus princípios de sobriedade do discurso puritano e moralista (KUHN, 2010, p.14). Mas dentre essa realidade, surgiram inúmeros 3 São chamados de hardline os militantes straightedgers que pregam as regras da sobriedade como estilo de vida a ser seguido e que muitas vezes usam a violência para hostilizar aqueles que “saíam da linha” ou se protavam como “inimigos”. 89 exemplos de straightedgers coerentes, ativistas e positivos, lutando por comunidades mais igualitárias. Valores centrais e a relação com a bebida e a comida Muitos autores destacam os valores centrais do straightedge, e Haenfler (2009: 35-37) é um dos que melhor sistematiza posicionamentos e ideias que são encontrados em subculturas sXe – pois apesar das tendências irem e voltarem rapidamente entre os jovens, é fácil identificar alguns princípios que sobrevivem ao passar do tempo e à localização geográfica. Deve-se, contudo, levar em conta que mesmo dentro da de uma cena os valores são diferentes, já que os indivíduos tem interpretações diferentes do que é ser straightedge. Alguns valores transpassam essas diferenças, como o “Viver positivamente/limpo”. Esse é certamente o valor central do straightedge, sendo que uma vida “limpa”, ou seja, sem o uso de drogas (lícitas e ilícitas) é o que fundamenta uma vida positiva. O “viver positivamente” inclui o questionamento e a resistência às normas da sociedade, ter um ponto de vista otimista sobre a vida, tratar as pessoas com respeito e dignidade, e agir para tornar o mundo um lugar melhor (HAENFLER, 2009: 36-37). O principal argumento dos straightedgers é que ninguém conseguirá questionar a sociedade dominante caso esteja sob influência de drogas – e ao se questionar as convenções sociais, usar essas substâncias já não faria mais sentido; se recusar a usar drogas tem muitos significados entre os indivíduos sXe, que inclui purificação, autocontrole, ou mesmo não querer seguir padrões de uso dessas substâncias presentes em suas famílias (HAENFLER, 2009: 36-37). Muitos straightedgers, principalmente as garotas, se sentem empoderados e se alegram do fato de que nunca acordarão depois de uma noite de bebedeira sem saber o que aconteceu, ou quem é a pessoa dormindo ao lado. De um modo geral, a visão sXe sobre a abstinência se coloca como um desafio coletivo, uma vez que o grupo oferece meios visíveis de se se- 90 parar da cultura jovem hegemônica, e de outras subculturas (HAENFLER, 2009: 36-38). Outro valor central é o “Para a vida toda” (True Till Death), que significa que o compromisso de viver limpo e positivamente é feito para toda a vida, sendo que muitos tratam a abstinência e a adoção de uma identidade sXe como um voto sagrado ou uma promessa – fazendo poucas exceções à essa regra (HAENFLER, 2009: 40). Entretanto, de acordo com Haenfler, mesmo com as promessas de “stay true till death” (seja verdadeiro até a morte), são poucos os straightedgers que conseguem manter a identidade após os vinte anos de idade. Quando essas pessoas começam a beber, fumar ou usar drogas são tratados como “vendidos” (sellouts) ou como alguém que “caiu” (HAENFLER, 2009: 40) – e são vistos com desapontamento e/ou desprezo por aqueles que mantém seu posicionamento livre de drogas. Também vale ressaltar o “Envolvimento em mudanças sociais” (social change) como um valor central. Straightedgers acabam se envolvendo em uma ampla variedade de causas sociais, por mais que muitos deles acreditem que agir por mudanças sociais não seja um pré-requisito para ser sXe – muitos veem esse envolvimento como uma evolução natural de viver limpo, já que a mente das pessoas fica aberta aos problemas que as cercam. É também considerável, principalmente na cena brasileira, o envolvimento das pessoas com causas sociais e lutas políticas (HAENFLER, 2009: 51). Por exemplo, o veganismo como instrumento de transformação social foi amplamente difundido, particularmente por bandas como Earth Crisis, e acabaram ganhando inúmeros adeptos dentro do sXe: Em meados e final dos anos 1980, o sXe tornou-se mais preocupado com os direitos dos animais e as causas ambientais. Líderes influentes em algumas bandas clamaram por um fim da crueldade contra animais e por uma percepção geral para a ecodestruição (...). O veganismo tornou-se uma parte significativa do sXe no final dos anos 1990, quando muitos straightedgers passaram a se importar tanto quanto se importavam com a 91 libertação da influência das drogas e do álcool. Muitos sXe vegans passaram a se identificar como ‘vegan straightedge” e algumas bandas passaram a se identificar como ‘vegan straightedge’, ao invés de simplesmente straightedge. (HAENFLER, 2009: 53) Alguns straightedgers se envolviam em outras causas sociais, e organizavam shows, doações de alimentos e dinheiros, assim como participavam de protestos – com destaque para os protestos contra o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional entre os anos 1999-2000. De acordo com Haenfler (2009), straghtedgers escolhem aplicar seus princípios na vida cotidiana, ao invés de se engajar em movimentos políticos mais institucionalizados (como partidos, petições e desobediência civil), e nas palavras do autor, no movimento straightedge: ‘the personal is political’ (“o pessoal é político, em tradução livre) (HAENFLER, 2009: 56). Além dos valores centrais do sXe, existem outros pontos que estão intimamente ligados à subcultura – em umas cenas mais do que em outras. Um grande exemplo de princípio amplamente difundido, o do-it-yourself (DIY), que reflete a busca por autonomia dos jovens, assim como a intenção de evitar fazer música orientada pelo lucro. Dessa maneira optam por promover suas bandas, shows, e discos por eles mesmos ou através de companhias muito pequenas, tentando não se vender de forma alguma (HAENFLER, 2009:24). No Brasil, veganismo e DIY são dois valores fundamentais da subcultura straightedge. Verdurada e o straightedge no Brasil Pouco tempo depois de seu surgimento, o straightedge se espalhou por vários lugares do mundo, tendo sua primeira referência no Brasil em 1982, com o lançamento do primeiro disco de punk, intitulado Grito Suburbano. São Paulo possui uma das maiores cenas de hardcore punk do mundo e com o aparecimento da subcultura straightedge nos anos 1980 vem tendo um papel de destaque no cenário internacional, principalmente com a Verdurada – festival straightedge organizado pelo Coletivo homônimo, 92 acontecendo periodicamente desde 1996. A Verdurada consiste em um festival com apresentação de bandas (em sua maioria de hardcore punk) e palestras sobre assuntos políticos, além de oficinas, debates, exposição de vídeos e de arte de conteúdo político e dito divergente. Ao fim de todos os shows é distribuído um jantar vegano gratuito. Esse coletivo é tido como o mais relevantes do DIY brasileiro, e um dos que mais se destacam no mundo, por todas as suas particularidades: consegue unir sob o mesmo grupo bandas de hardcore punk, veganos e straightedgers, aliados à ética do DIY em todos os âmbitos possíveis. Este é o mais importante evento do calendário faça-você-mesmo brasileiro, que segundo seus organizadores é um dos únicos festivais independentes no Brasil que tem lotação esgotada. A organização do evento é totalmente feita pela própria comunidade straightedge de São Paulo, que se encarrega tanto do contato com as bandas e palestrantes, quanto da locação do espaço, contratação dos equipamentos de som e da divulgação. É proibida a entrada com álcool, cigarros e produtos de origem animal. Segundo o próprio coletivo, os objetivos de quem organiza a Verdurada são basicamente dois: 1. Mostrar que se pode fazer eventos exitosos sem o patrocínio de grandes empresas, nem divulgação paga na mídia; 2. Levar até o público a música feita pela juventude “raivosa” e as ideias e opiniões de pensadores e ativistas divergentes da cultura mainstream. Os festivais acontecem periodicamente, sem lugar fixo, mas sempre próximos ao transporte público da cidade, para que todos possam usufruir dele – e para isso, os shows são ao longo da tarde e até às 22h, pois assim os frequentadores tem a possibilidade de ir embora de metrô e ônibus. Além dos shows, existe a venda de comida vegana ao longo do dia; também vale destacar a presença de diversos selos DIY e independentes, que montam bancas dentro do evento para vender seus produtos, que vão desde discos a camisetas e outros acessórios. Esses festivais congregam inúmeras bandas, sendo que a maior parte delas está à margem do que 93 usualmente se chama de independente e do processo de empreendedorismo no mercado da música e seus novos modelos de negócio. Muitas delas simplesmente não desejam se integrar ao mercado da música e à comercialização em maior escala do que produzem. Tanto o veganismo quanto a sobriedade estão presentes no cotidiano da subcultura straightedge, seja nos hábitos, nos lugares que frequentam, ou mesmo nas letras das músicas de bandas ligadas à cena, como Still X Strong: Why can´t you be vegan? / Yeah, right / V-E-G-A-N, VEGAN! / This is what I live, this is what I say! / Cryin’ won’t help, praying won’t do no good! / To those that are suffering, tortured and caged / Exactly the point your life can´t reach / This is the place where we separate4 (STILL X STRONG - Why can’t you be vegan?) A comida vegana é um dos elementos principais da Verdurada, e tanto os cartazes quanto a divulgação do festival por meios eletrônicos sempre salientam que não é permitida a entrada de produtos com origem animal. Se engana quem pensa, de maneira bastante ingênua, que somente se consomem alimentos saudáveis, como verduras, saladas e frutas nesse evento – alusão feita geralmente em reportagens da mídia tradicional. Na verdade, como já havia notado Bittencourt (2011), os alimentos comercializados costumam ser calóricos. Por exemplo, na Verdurada do dia 29 de janeiro de 2012, o cardápio era o seguinte: hambúrguer de soja, quibe, coxinha de soja ou palmito, esfirra de soja, pão de queijo (sem queijo), alfajores, palha italiana e pavê de amendoim. Para beber, água e Mupy5. As opções veganas para alimentos que normalmente levam produtos de origem animal tem aumentado bastante nos últimos anos, e na cidade de São Paulo existe muita gente fazendo bolos, panetones, salgados para 4 Por que você não pode ser vegano? / Sim, certo. / V-E-G-A-N-O, VEGANO! / Isso é o que eu vivo, isso é o que eu digo / Chorar não vai ajudar, rezar não fará nenhum bem! / Para aqueles que estão sofrendo, torturados e enjaulados / Exatamente o ponto que sua vida não pode atingir / Este é o ponto em que nos separamos. 5 Mupy é uma bebida à base de leite de soja, com diversos sabores. 94 festas, pizzas, e tudo mais que se pode imaginar, por encomenda. Algumas dessas pessoas acabam montando uma banquinha na Verdurada, vendendo desde cupcakes à bolos e torta de jaca, sendo algo bastante ligado ao DIY – a comida geralmente não é fornecida por nenhum buffet ou restaurante, e sim pelas pessoas que se interessam em prepará-la e cozinhá-la para levar no dia do evento. A alimentação vegana e as novidades que às vezes aparecem na Verdurada acabam atraindo pessoas cuja principal motivação para ir é a comida. A comida também representa, para muitos, um ato de interação social e de afirmação de uma escolha de vida, e mesmo tendo o jantar no final do evento, muitos acabam comendo todo tipo de doces e salgados ao longo (ou no intervalo) das apresentações. Os preços dos produtos vendidos são baixos, já que isso é uma regra para poder comercializar produtos ali: preços populares. Os mesmos produtos vendidos em outros estabelecimentos, como na Rua Augusta, costumam custar mais, quase o dobro. Os jovens compartilham uma ação que parece ser trivial – se alimentar - mas que no fundo pauta a vida de todos que escolhem atrelar essa escolha à outras (como a de ser straightedge ou de se ligar aos grupos hare krishna) e que implica uma ideia de resistência e mudança de mundo. O jantar é outro momento de confraternização, em que as pessoas saíam do último show da noite (às vezes saíam antes dele terminar) e faziam uma fila na rua, em frente ao estabelecimento, para pegar o jantar. A comida consiste geralmente de legumes e grãos, servidos em embalagens descartáveis, sendo preparada e distribuída pelos hare krishnas. Segundo Bittencourt, na primeira vez que pegou a fila do jantar de uma Verdurada: Na fila, enquanto esperava a minha vez, observava atentamente os jovens, suas expressões, as conversas, e a impressão que me foi passada naquele instante era que as pessoas não estavam tão interessadas na comida, mas sim no momento de encontro que 95 o jantar proporcionava. Como se mais gostoso do que saborear o alimento oferecido, fosse sentar ao lado do amigo ou da amiga e poder conversar entre uma colherada e outra, o jantar, dessa maneira, aparecia como mediador de encontros. (BITTENCOURT, 2011, p. 199) Bittecourt (2011) conta que quando fez sua pesquisa de campo, a comida continuava sendo feita pelos hare krishnas, como no início da Verdurada. O que observei, é que no espaço do Ego Club6, por exemplo, a comida era servida na rua e não haviam muitas possibilidades para que os jovens sentassem – o que não impedia que eles se reunissem encostados nas paredes ou em rodas próximas da mesa com as panelas para conversarem. Nem todos participavam do jantar (que geralmente acumulava uma fila enorme para pegar a comida), mas era visível a importância dessa experiência para os frequentadores que ficavam. Em relação aos frequentadores, tentou-se abordar a percepção sobre o veganismo na subcultura, considerado essencial pelos membros do coletivo e organizadores da Verdurada, que desde o princípio teve um claro viés de proteção aos direitos animais – e não permite que se ingresse no evento com produtos de origem animal. Pode-se constatar que a maior parte das pessoas que frequentam a Verdurada possuem um entendimento significativo do que seria pertencer a esse grupo, apesar de quando perguntadas sobre a posição individual sobre o veganismo, a maior parte dos respondentes não se considerar vegano. Há um circuito de locais e estabelecimentos que oferecem comida e produtos veganos – onde é possível encontrar os straightedgers, para além da Verdurada – como sorveterias, restaurantes, lanchonetes, galerias (como a do Rock e a Nova Barão), entre outros; servem de pontos de encontro e de abastecedores de demandas específicas, como doces, creme dental, livre de crueldade, livros e camisetas sobre veganismo, etc. 6 Espaço localizado na Rua Nestor Pestana, no centro de São Paulo, onde ocorreram diversas Verduradas entre 2011 e 2012. 96 No que diz respeito à sobriedade, existe um desafio, muito sutil, sobre o entendimento do que é ser straightedge hoje, no século XXI (mais de três décadas após a música do Minor Threat e o início do movimento). Vale a pena discutir um pouco a questão do que é ser straightedge para essas pessoas e os princípios inclusos nessa auto-identificação, já que consiste em um dos alicerces da Verdurada, junto ao veganismo. Ouvi bastante que no Brasil ser straightedge é bem diferente de sê-lo em outros países, principalmente nos Estados Unidos: aqui, segundo os entrevistados, houve uma cooptação dos ideais centrais do movimento e uma readaptação à realidade brasileira, dando um peso muito grande ao viés político - e não ao mero consumo musical e à sobriedade. Essa questão também está intimamente entrelaçada com a discussão sobre crescer e envelhecer dentro da subcultura dominada por jovens, ao mesmo tempo em que a vida fora dela vai ganhando responsabilidades cada vez maiores. Há sempre uma grande discussão em torno da durabilidade da identidade straightedge (que muitos acreditam não passar dos 21 anos de idade), já que as pessoas crescem, ganham cada vez mais responsabilidades, começam a frequentar outros ambientes, trabalham, tem família e filhos, e assim, aos poucos vão abandonando a cena hardcore e ocasionalmente seu compromisso de não beber ou usar drogas. Contudo, nota-se que no caso da Verdurada há muitas pessoas (principalmente no Coletivo) que já passaram dos trinta anos de idade e continuam sendo straightedge e ativamente envolvidos na cena, seja com a organização dos festivais ou mesmo com bandas. Conversando com as pessoas do Coletivo7, percebe-se certa uniformidade na percepção do que é ser straightedge e permanecer na cena, trabalhando ativamente por ela e organizando os festivais. Muitas pessoas citam problemas prévios com consumo de álcool e drogas, mas de 7 Procurou-se manter o anonimato dos entrevistados, aqui representados pelas suas iniciais. As entrevistas foram conduzidas entre 2011 e 2013, na cidade de São Paulo, e as idades correspondem a idade da pessoa quando foi entrevistada. 97 qualquer forma é uma escolha individual que acaba tendo o respaldo do grupo, e está, para eles, intimamente ligado à ideia de autonomia e libertação: Pra mim o SxE combina com a ideia do punk de faça-você-mesmo, de não esperar nada do governo, nada pronto, ir atrás do que você quer, que é possível fazer melhor do que isso; se desligar um pouco do status quo, saber diferenciar o que a mídia fala, ter diferentes pontos de vista, não ficar preso no que - não gosto dessa palavra - o sistema cria, ter uma vida independente. Isso também faz parte da minha visão de não usar drogas. Beber, por exemplo, é visto como o caso mais exemplar de rito de passagem para o mundo adulto: se você não bebe, não tá vivendo plenamente, não tá se divertindo, não é adulto. (...) Eu não tô sustentando empresas gigantes, conglomerados que fazem bebida alcoólica, que fazem cigarro. (D.M., 31 anos) É uma escolha pessoal; não bebo, não fumo, não consumo drogas legais ou ilegais. Pra mim, é uma escolha pessoal que faz bem pra mim (...) Eu não acredito nessa forma de straightedge como Wolf Pack ou uma matilha de lobos, todos juntos, irmanados. É até legal, eu não vou negar, mas pra mim não funciona assim, é uma coisa individual, na minha visão. É a maneira que escolhi viver, que me dá condições de me sentir pleno. Eu detesto qualquer situação em que as pessoas sejam colocadas como submissas às outras, e acho que se eu não tiver controle sobre as minhas próprias vontades, então não tenho controle sobre mim mesmo. Isso é o que me norteia. (M.F., 38 anos) Para P.C. (34 anos), um dos motivos da popularidade do straightedge aqui no Brasil em relação a outros países é seu surgimento quase repentino, já que nos anos 1990 vieram várias bandas straightedge famosas que conquistaram as pessoas com suas mensagens de viver sobriamente. Trata-se de um meio vibrante e produtivo em que sempre tem algo acontecendo e que por sua trajetória, já permite que uma geração influencie a outra, sem desaparecer ou decair – principalmente por causa do viés político. Ele ainda acredita que um dos responsáveis por manter o straightedge consolidado no Brasil é a Verdurada, que passa uma sensação 98 de continuidade do movimento. Nesse contexto, ser straightedge é uma forma de controle de si e de sua produção cultural, ao mesmo tempo em que significa se opor à noção do álcool e da droga como objeto ligado à rebeldia, e ao escapismo promovido por essas substâncias: Sou SxE desde 95, faz 17 anos. É uma coisa muito simples, é a versão do punk – sendo seco – e do hardcore que não usa drogas e não bebe. E pra mim a ligação entre as duas coisas é que o punk tem a ver com autonomia, com você ter controle direto sobre sua produção cultural e o meio onde você produz. E de certa forma o SxE é isso em relação ao modo de vida, ao corpo, ao seu “espirito” (não no sentido metafísico), à sua vida de maneira geral. Outra coisa importante pra mim no SxE é você desmitificar a questão da droga como uma coisa que tem a ver com rebeldia, sabe? Você refutar o clichê da droga ser sinônimo de liberdade e falar que por um motivo ou outro você não gosta de se drogar ou beber, não faz você deixar de ser punk, roqueiro, o que você quiser. O punk é uma coisa pra você fazer suas próprias regras, acho que o ponto mais importante é esse, e você não tem que seguir uma regra que diz que você tem que se drogar ou qualquer outra coisa do tipo. Pra quem concorda com Sxe, uma ótima maneira de seguir suas próprias regras é estar sóbrio. (...) A gente faz um show que o foco não é vender nada, ou em que as pessoas não vão pra se entorpecer e pra ficar fora de si. É um evento em que as pessoas vão pra interagir umas com as outras, ter uma experiência intensa do evento e da música em si. A gente não tá la pra vender bebida, a gente tá la pela música mesmo, e a socialização não é baseada em escapismo, é uma socialização baseada em troca de experiências. É você tá la vivendo aquilo naquele momento, intensamente, em contato com os outros – porque o mundo que a gente vive atomiza o indivíduo e fazem as pessoas ficarem isoladas, e o hardcore é um certo antídoto a isso. A droga e o álcool dificultam um pouco essa ligação entre as pessoas. (P.C., 34 anos) Esse trecho da entrevista traz à tona uma discussão sobre a sobriedade como forma de sentir o mundo de modo mais controlado, do show ser uma troca de experiências, e de como as substâncias como álcool e drogas dificultariam a interação humana nesses processos. Apesar da escolha ser individual, a vivência do straightedge se dá coletivamente. 99 Para I.C (22 anos), não se trata de um estilo de vida – assim como visto anteriormente, Ian MacKaye (KUHN, 2010) também acha que não escolheu ter um estilo de vida, ser straightedge seria a própria vida: É você estar envolvido com punk e não precisar de nenhuma substância, de nada que tire você do seu estado normal. E para mim uma definição simples do SxE é um hardcore punk livre de drogas. Eu não tenho um estilo de vida, as pessoas que bebem é q tem um estilo de vida. Eu vivo normalmente porque eu não preciso disso, não sinto essa vontade. Isso não me faz melhor do que ninguém e não acho que não possa me relacionar com as pessoas por causa disso. Eu vivo normal e me sinto bem por não consumir nada. Mas é um lance pessoal. (…) Desde moleque eu nunca gostei. Eu já tive muitos problemas com bebida em casa mesmo e sempre foi uma coisa que abominei. (...) Conhecendo o SxE eu vi que aquilo era a vertente do hardcore e punk que eu mais me identificava. Quando vi a letra “Straight edge” do Minor Threat, falei: é assim que acho legal e quero ser assim. Vejo isso como uma coisa positiva pra mim; deixou de fazer parte de um grupo. (I.C., 22 anos) Consideração final Pode-se ver que o engajamento com a subcultura, organizando festivais, cria vínculos mais duradouros entre as pessoas e com as atividades desenvolvidas, o comprometimento com o hardcore e com os valores straightedge acabam se prolongando para fora da cena e entram no cotidiano dessas pessoas. Na opinião dos entrevistados, os amigos feitos nesse contexto acabam ganhando um peso muito grande na vida de cada um, que cultivam as amizades feitas e continuam trabalhando para que a Verdurada exista – acreditando que fazem algo que é bom não só pra eles, mas para a comunidade. Além disso, tanto a sobriedade quanto o veganismo estão intimamente ligados à produção musical straightedge e às dinâmicas dos festivais, dando um caráter quase ritualístico à interação pessoal e agregando outras formas de viver e sentir tanto a música quanto os shows. 100 Bibliografia BITTENCOURT, J. B. M. 2011. Nas encruzilhadas da rebeldia: etnocartografia dos straightedges em Sao Paulo. Tese do doutorado. Campinas: Unicamp. DURING, S. 2005. Cultural studies: a critical introduction. New York: Routledge. FREIRE FILHO, J., LINHARES, T. 2009. Vidas regradas: Configuracoes da moralidade dentro da subcultura straight edge. In: BORELLI, H.S., FREITAS, R. F. (Orgs.). Comunicação, narrativas e culturas urbanas. Sao Paulo: EDUC; Rio de Janeiro: UERJ. GELDER, K. 2005. The Subcultures Reader. 2nd Edition. New York: Routledge. HAENFLER, R. 2004. Rethinking subcultural resistance: Core values of the straight edge movement. Journal of Contemporary Ethnography, Vol. 33: 406-436. . 2009. Straight Edge: Clean living youth, hardcore punk, and social change. New Jersey: Rutgers University Press. HALL, S., JEFFERSON, T. (Orgs.). 2003. Resistance through rituals: Youth subcultures in post-war Britain. London: Routledge. HANOU, M. FRIJINS, J. P. 2009. The Past The Present 1982-2007: A history of 25 years of European straight edge. Haarlem/Amsterdam: Refuse Records. HEBDIGE, D. 2002. Subcultures: The meaning of style. London: Routledge. KUHN, G. 2010. Sober living for the revolution: Hardcore punk, Straight Edge and radical politics. Oakland: PM Press. LAHICKEY, B. 2007. All ages: Reflections on Straight Edge. Huntington Beach, California: Revelation Books. LINHARES, T. 2011. Consumo, Resistência e Subjetividade: narrativas sobre o veganismo em uma comunidade virtual. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. MANTESE, B. 2005. Os straightedges e suas relações com a alteridade na cidade de São Paulo. Dissertacao apresentada ao Programa de Pos-Graduacao em Antropologia Social – FFLCH/USP. Sao Paulo. . 2007. Straight edges e suas relações na cidade. In: MAGNANI, J. G. C., MANTESE, B. (Orgs.) Jovens na metrópole: Etnografias de circuitos de lazer, encontro e sociabilidade. Sao Paulo: Editora Terceiro Nome. McNEIL, L., McCAIN, G. 2006. Please kill me: The uncensored oral history of punk. New York: Grove Press. O’CONNOR, A. 2008. Punk record labels and the struggle for autonomy: the emergence of DIY. Lanham: Lexington Books. OLIVEIRA, R. C. 2011. Do punk ao hardcore: elementos para uma historia da musica popular no Brasil. Temporalidades: revista de Historia, v. 3: 127-140. STEWART, F. 2012. We Sing For Change: Straight Edge Punk and Social Change. United Academics Journal of Social Sciences. Vol 2, No. 12. WILLIAMS, J. P. 2006. Authentic identities: straightedge subculture, music and the internet. Journal of Contemporary Ethnography, Vol. 35, no. 2: 173-200. WOOD, R. 2006. Straighedge Youth: Complexity and contradictions of a subculture. New York: Syracuse University Press. Discografia 101 MINOR THREAT. In My Eyes. 1981. Dischord Records, 7” EP, Estados Unidos. MINOR THREAT. Out of Step. 1983. Dischord Records, 12” EP, Estados Unidos. MINOR THREAT. Minor threat. 1981. Dischord Records, 7” EP, Estados Unidos. STILL X STRONG. Awake and Disturbed. 2011. Seven Eight Life, EP, Brasil. Filmografia AMERICAN HARDCORE; Direcao: Paul Rachman. United States of America: Sony Pictures Home Entertainment, 2007 (100min), son, color. BOTINADA: A origem do punk no Brasil; Direcao: Gastao Moreira. Sao Paulo: ST2 video, 2006 (110min), son, color. 102 O Yoga no ocidente: sonoridade, alimentação e ritual Julicristie M. Oliveira Faculdade de Ciências Aplicadas, FCA/Unicamp [email protected] Resumo Yoga é um substantivo masculino de origem sânscrita que significa união e trata da junção do ser individual, fenomênico com o absoluto, atemporal. Segundo Patanjali, responsável pela primeira sistematização sobre o tema, Yoga é a supressão dos movimentos da consciência. A prática do Yoga no ocidente é tão plural quanto instigante, diferentes linhas são revisitadas e ressignificadas. As ásanas, ou posturas, são as características mais marcantes e facilmente associadas à prática corporal. Outras nuances, entretanto, são muitas vezes recorrentes: a sonoridade e a alimentação. Músicas instrumentais, mantras, sons da natureza e outros elementos criam uma atmosfera interiorizadora, um convite para se reduzir as oscilações da mente, do (s)om ao silêncio. O Mantra é uma fórmula invocatória e sua repetição uma prática meditativa. O som de om, ou aúm, sílaba mística, é uma ponte sonora que transcende o fenomênico rumo ao atemporal. Ascese, alimentação vegetariana e outras discussões sobre dietética criam uma atmosfera reflexiva, um convite para se pensar sobre o que se come, das questões éticas à saúde. Ademais, em tempos de lightização da existência, dos corpos e do comer, elaboram-se outras questões a serem ou não respondidas. E temos que considerar que o Yoga no ocidente também tem seu ritual: não há uma boa sessão que não se inicie com um chá quente na sala de espera, com uma musak ao fundo; transcorra com suas ásanas, pranayamas, mudras, bandhas e kriyas, ao som de uma cítara; e não termine com os yogins sentandos em padmasana, pronunciando repetidamente o om. Palavras-chave yoga, alimentação, música clássica, Índia 103 A Cultura Indiana: uma introdução Na Cultura Indiana, as divindades representam o drama recorrente do viver e do morrer. A partir de um campo de energia do som criador, surge Shiva, o dançarino cósmico, que é a corporificação da luz sem dimensão e, por meio de movimentos invisíveis, une tudo na vida, transformando-a em fluxo de energia. Shiva, a luz, o céu, dança com Shakti, as trevas, a terra, fazendo surgir todos os tons, as cores e as formas. Com base na ideia de um centro universal giratório que emite raios em todas as direções, uma roda dançante, está inserida a imagem Shiva Nataraja, o dançarino. De acordo com a mitologia, um demônio gigante em forma de elefante se opôs a Shiva que o vence em um duelo de dança. A escultura clássica deste deus o representa com oito braços, divididos em pares que afastam a pele do elefante, exibem seu laço e foice, empunham os estandartes de seu poder, seguram suas presas e seu tambor em forma de ampulheta que emite o som da eterna transformação. Este som, como força cosmogênica, se assemelha ao éter, o quinto elemento. O fogo, por sua vez, é o elemento da destruição, pois tudo o que foi criado não tem estabilidade, mas o equilíbrio entre o som da criação e o fogo da destruição é mantido (Wosien, 2004: 33-35). O reino de Shiva, suspenso entre os dois mundos, situa-se no norte cósmico e, ao sair deste lugar, dirige-se para uma figueira e, sob ela, ensina o Yoga, a Música e outras artes aos sábios. Nas ásanas do Yoga, no jugo dos diferentes aspectos da consciência, a ideia é meditar sobre Shiva, o deus, em jiva, o humano. Assim, Shiva é o caminho de domínio de jiva, pois cada pessoa na essência da sua existência é Shiva, os pares antagônicos são superados e o potencial espiritual do corpo é explorado. O Shiva Mahakala, deus dos grandes ciclos do mundo, dança para salvar o universo, pois não se restringe à destruição do cosmos e promove também sua renovação. Além deste, outro aspecto de Shiva, agora como Shulapani, é mostrado todos os dias ao pôr do sol, no pico da montanha Kailash do Himalaia, local onde terra e céu se encontram. Neste momen- 104 to, ele inicia lentamente uma dança e todos os demais deuses ficam ao seu redor: Sarasvati, toca a vina, Indra, a flauta, Bhrama, marca o tempo com o címbalo, Lakshmi, canta, Vishnu, toca o tambor. Todos os deuses e todas as criaturas se reúnem ao pôr do sol para assistir a dança e ouvir os sons divinos (Wosien, 2004: 35-39). Há indícios que a Música Indiana seja uma das mais antigas manifestações culturais conhecidas. A sílaba sagrada om, ou aúm, já era entoada na época em que o Sânscrito fora criado, cerca de 6000 a.C. Os Vedas, livros sagrados escritos provavelmente entre 1500 e 2600 a.C., são até hoje cantados em uma sequência de três notas que se repetem: ré, mi e fá. Um destes livros sagrados, o Sama Veda, refere-se diretamente à música e traz os fundamentos da arte vocal e nele estão registrados os cânticos que constituem a base da Música Clássica Indiana. A importância deste livro é tão marcante que Krishna, no Bhagavad Gita, diz: nos Vedas eu sou o Sama Veda. Provavelmente, o primeiro tratado que faz referências às notas, escalas e ritmos seja o Nathyasastra escrito por Bharata, entre VI a.C. e II d.C. Nos Upanishades de 600 a.C. e no Mahabaharata de 500 a.C. a 200 d.C., alguns instrumentos musicais também são mencionados (Marsicano, 2006: 15). Até o século X, a Música Indiana era regida por uma única vertente, porém, após diversas invasões, houve a cisão em dois grandes sistemas: o Carnático do sul e o Hindustani do norte. O Carnático é o sistema mais tradicional e fiel às raízes, pois somente o norte da Índia fora invadido e, mesmo durante o período de domínio britânico, nos séculos XIX e XX, o sul preservou sua identidade cultural. Desta forma, a música Carnática, marcada pela rigidez e sobriedade, permaneceu intocada, cultivada com todo o cuidado nos templos, passada de geração em geração, conservando as 72 melas, escalas básicas, e os 36 talams, ciclos rítmicos. Seus músicos interpretam melodias pré-fixadas, os kritis, e alterações e inovações são vistas com desconfiança. O norte é a essência da síntese entre a tradição védica ancestral e as diversas culturas dos invasores turcos, 105 afegãos, persas, gregos, mongóis, fenícios, chineses, portugueses, holandeses, franceses e ingleses (Marsicano, 2006: 16). A música Hindustani é mais flexível, permite improvisações, desenvolveu-se tanto nos santuários quanto nas cortes mongóis, incorpora inovações e transcriações. Os Ragas formam a base melódica da Música Clássica Indiana e alguns deles, como o Bhairav, contam com mais de 20 formas diferentes de interpretação, pois cada linhagem musical, Gharana, os executa de forma particular, acrescentando ou omitindo notas. O músico Hindustani improvisa com liberdade, de olhos cerrados, em estado de integração, samadhi. Foi este tipo de música que adentrou o Ocidente, especialmente, por meio de Ravi Shankar, Vilayat Khan e Nikhil Banerjee (Marsicano, 2006: 17). Yoga é um substantivo masculino de origem sânscrita que significa união e refere-se à junção do ser individual, fenomênico com o absoluto, atemporal. Na provável primeira sistematização sobre o tema no século II d.C. denominada de Yoga-Sutras de Patanjali, defini-se Yoga como supressão dos movimentos da consciência, Yoga citta vrtti nirodhah (Gulmini, 2001: 115; Feuerstein, 2001: 273-275). Nesta composição ou conjunto de aforismos, há o cuidado de se descrever os elementos mais importantes da teoria e da prática do Raja Yoga, o Yoga Clássico. Um fio, sutra, dá ao leitor a possibilidade de amarrar todas a ideias essenciais daquela escola de pensamento. Consequentemente, é um auxiliar da memória, registra expressões condensadas, pois seu estilo é visivelmente conciso, tendo a função de reavivar certos conceitos complexos que foram aprendidos oralmente e pela prática, sadhana (Feuerstein, 2001: 305). A espiritualidade do Yoga Clássico de Patanjali é formada por oito membros, angas, quais sejam: refreamentos, yama, observâncias, niyama, postura, ásana, controle do alento, pranayama, bloqueio das interações, pratyahara, concentração, dharana, meditação, dhyana, integração, samadhi. Há ainda os elementos dos refreamentos que congrega cinco obrigações morais: inofensividade, ahimsa, veracidade, satya, abstinência de roubo, 106 asteya, não-cobiça, aparigraha, e continência, brahmacarya. Além dos elementos das observâncias que dizem respeito à vida interior do yogin, purificação, shauca, contentamento, samtosha, ascese, tapas, auto-estudo, svadhyaya, e total consagração ao Senhor, ishvara-pranidhana (Gulmini, 2001: 115, 270-276; Feuerstein, 2001: 306-308). Posteriormente à sistematização de Patanjali, houve o desenvolvimento de outros aspectos concretizados no que se denomina de Hatha Yoga, tendo como textos mais conhecidos e posteriores aos Yoga Sutras, o Hatha Pradipika, o Gheranda Samhita, o Goraksha Shataka e o Shiva Samhita. Grosso modo, pode-se dizer que o Hatha Yoga trata somente de práticas corporais e que o Raja Yoga compreende aspectos que não envolvem sempre o corpo. Vale ressaltar que o Hatha Yoga não representa uma cisão e sim uma complementação, pois as práticas corporais não são desconectadas dos processos mentais. O objetivo do Hatha Yoga, meio, é atingir o Raja Yoga, fim (Souto, 2009: 19-20, 31, 35-36). Música, Alimentação e Yoga: intersecções A arte vocal é considerada a primeira das artes Indianas, seguida pela música instrumental e pela dança. Por meio destas artes, atinge-se a realização espiritual, mas o canto é considerado o melhor dos caminhos. A Música Clássica Indiana não tem começo, meio ou fim, pois ela ecoa continuamente no cosmos. Sua grande finalidade é o aprimoramento da mente, pois é tida como uma das melhores formas de concentração. Sua célula rítmica pode ser considerada também uma unidade de tempo, mas não o do relógio, linear, racionalmente medido e sim um tempo orgânico, experienciado. Uma outra noção interessante da Música Clássica Indiana, que é também fundamental no Yoga, é a do silêncio, khali, que chega a ser tão importante quanto o próprio som (Marsicano, 2006: 65). À semelhança da Música Clássica Indiana, por meio do Yoga, busca-se a junção com o absoluto, tornando-se uma procura pessoal pelo sagrado, a superação da dor associada fortemente à transitoriedade da existência. 107 Assim, o Yoga se vale de um elemento sonoro fundamental, o Mantra, fórmula invocatória cuja repetição se constitui em prática meditativa. O som de om, a sílaba mística, é uma ponte sonora que transcende o fenomênico rumo ao atemporal (Gulmini, 2001: 118, 165). Os cantores antigos costumavam entoar uma única nota por cerca de meia hora e estudavam minuciosamente seus efeitos sobre os centros do corpo, chakras. Não é de se estranhar que, desde o período védico, os sons são usados como terapia. Acredita-se que o Mantra harmoniza o pulsar cardíaco e o ritmo respiratório por meio da vibração sonora que provoca. Ademais, o canto e os instrumentos musicais enfeitiçam a serpente, kundalini, e as correntes de energia vital, prana, emitidas incorporam-se às dos receptores (Marsicano, 2006: 66). As aproximações culturais entre Brasil e a Índia podem ter raízes mais profundas e antigas do que imaginamos. Há indícios que os portugueses que aportaram em Calicute, Índia, no século XV, influenciaram a Música Clássica Indiana, pois diversos Ragas foram criados a partir da essência da Música Renascentista e das antigas canções folclóricas portuguesas. Provavelmente, essas relações também incluem alguns ingredientes culinários tidos como tipicamente brasileiros ou locais. Da Índia, recebemos como presente a banana, o coco, a manga, dentre outras frutas (Marsicano, 2006: 83-84). Os centros geográficos primários e secundários de origem da banana incluem no Sul, Centro-sul e Sudeste do continente Asiático, e, por consequência, a Índia (Dias, 2011: 18). Para o coco, existem diversas teorias, mas a hipótese mais aceita é que o coqueiro seja do Sudeste Asiático, sendo levado desta região para a Índia, depois para o Leste Africano, e daí, para as Américas (Aragão e col., 1999: 1). A manga é originária da Índia, onde é cultivada há 4.000 anos, e Portugal foi o primeiro país ocidental a conhecer esta fruta (Carvalho, Mendonça & Reis, 2011: 54). Em entrevista dada ao Programa Provocações em 20 de Março de 2012, o citarista Alberto Marsicano comenta que na Cultura Indiana, por ser 108 una, as artes se irmanam: Música, Culinária, Arquitetura, dentre outras. Os Ragas, por exemplo, tem sabores, cores e correspondem a períodos do dia. Há Raga com gosto de coco, de manga. Entrar em contato com uma das artes é se deparar com as demais, pois trata-se de uma cultura sinestésica (Marsicano, 2012). Nos Yoga-Sutras de Patanjali, não há uma menção direta sobre questões dietéticas ou alimentares, mas como já discutido anteriormente, estes aforismos são concisos e seus comentadores descrevem e aprofundam certas temas que envolvem estes aspectos. Assim, exalta-se, nas entrelinhas, a ascese, tapas, um dos cinco elementos que constituem as observâncias, niyama, o segundo componente do Raja Yoga. Neste caso, não chega a enfatizar a ausência de alimentação ou jejum, como praticam membros dos grupos acéticos mais radicais. Seus comentadores indicam que o seguimento de dietas é uma forma de desenvolvimento da força de vontade e da disciplina, por exemplo (Gulmini, 2001: 258-259). Em complementação ao Raja Yoga, os principais livros de Hatha Yoga trazem uma série de recomendações dietéticas. No Gheranda Samhita, a descrição de regras e restrições alimentares traz um lista frutas e hortaliças que é ainda mais elaborada do que a descrita no Hatha Pradipika. O conceito de dieta moderada, mitahara, engloba a ingestão com ânimo piedoso de alimento lubrificante, doce, nutritivo, agradável, que deve conter leite ou derivados e ocupar três quartos da capacidade estomacal. Os excessos são contraindicados, assim como alimentos amargos, ácidos, picantes, salgados, secos e requentados. Não se recomenda verduras, óleo, álcool, peixes e carnes em abundância (Souto, 2009: 82). Ademais, pode-se se somar à noção de mitahara uma relação com a abstinência de roubo, pois excessos alimentares são formas de apoderar-se do que também é dos outros seres, da natureza (Feuerstein, 2001: 307). 109 Yoga e qualidade de vida contemporânea: sonoridade (silêncio) e alimentação A prática do Yoga no ocidente é tão plural quanto instigante, diferentes linhas são revisitadas e ressignificadas. As posturas, ásanas, são as características mais marcantes e facilmente associadas à prática corporal. Atualmente no Brasil, há um grande número de associações e linhagens do Yoga. Vale lembrar que a maior parte dos professores se autodenominam instrutores. Dificilmente alguém se autointitula mestre de Yoga. À semelhança, é raro um praticante se referir a si próprio como yogin. As práticas são oferecidas em academias de ginástica, em casas especializadas, nos domicílios dos instrutores ou dos praticantes que contratam aulas particulares. Ademais, voluntários encampam os mais diferentes tipos de projetos: aulas em casas de repouso, centros comunitários, entidades de assistência social, abrigos, fundações, presídios, parques públicos, dentre outros. Há também os praticantes solitários que, após um primeiro contato com o Yoga, por meio de cursos, workshops, vivências, retiros ou aulas com um instrutor, aprendem os elementos essenciais para planejarem sua própria prática. Há também uma gama imensa de livros, CDs, DVDs com receitas e programas para os mais diferentes públicos, com diversos graus de familiarização com a prática, de inciantes a avançados. Porém, é inegável, que essa abundância de produtos do Yoga é majoritariamente destinada às mulheres. Em relação ao tempo certo da aula, elas são planejadas para durarem cerca de 1:00h, raramente chegam a 1:30h. Coerentemente, muitos CDs com Músicas de Yoga duram de 50min a pouco mais de 1:00h. O tempo do relógio é o hegemônico. A divisão interna dos minutos varia de acordo com o instrutor e os praticantes, mas, em geral, as sessões começam com as posturas, ásanas, passando para os exercícios respiratórios, pranayamas, e raramente incluem os gestos das mãos, mudras, travas, bandhas, processos de purificação interna, kriyas, bem como um tempo para exercícios de concentração, pratyahara, meditativos ou a própria meditação, 110 dhyana. O relaxamento realizado com os praticantes em decúbito dorsal, shavasana, são bem comuns e, provavelmente, o momento mais esperado da aula, o alívio em tempos (pós)modernos. No Ocidente, a busca pelo Yoga é, basicamente, a busca pela qualidade de vida e a redução do estresse. Em algumas práticas, especialmente as realizadas em casas especializadas, a meditação, dhyana, tem um lugar especial, com um tempo, preparo cuidadoso e direcionamento específico. Em geral, a importância dada ao processo de interiorização, varia de acordo com as expectativas do público-alvo e a formação do instrutor. Algumas práticas são mais vigorosas fisicamente, se aproximando muito das aulas de ginástica. Outras privilegiam a conexão com a tradição do Yoga, buscando a supressão dos movimentos da consciência, o aprimoramento da concentração, pratyahara, meditação, dhyana, a união com o absoluto, a integração, o samadhi. Independente dos motivos que levam às pessoas ao Yoga, a prática é na maioria das vezes permeada pelas músicas instrumentais, Mantras, sons da natureza e outros elementos que criam uma atmosfera interiorizadora, um convite para se reduzir as oscilações da mente, do (s)om ao silêncio. Não é incomum encontrar chás calmantes e quentes, infusões à base de camomila e de erva cidreira, nas salas de espera para o início da sessão. Café e chás estimulantes dificilmente estarão disponíveis. Discussões sobre os diferentes aspectos da alimentação e, por que não dizer em torno da ascese, surgem, especialmente em casas especializadas, ao início ou final da aula. A alimentação vegetariana e outras discussões sobre dietética são mais comuns nestes mesmos espaços, propiciando o estabelecimento de uma atmosfera reflexiva, um convite para se pensar sobre o que se come, das questões éticas à saúde. Discute-se o que é a alimentação adequada, (des(re))construindo o que é ou não saudável. Ademais, Santos (2008: 315-319) nos aponta que, em tempos de lightização da existência, dos corpos e do comer, fala-se também da procura pela leveza da vida, de um outro meio de conter a dor, que se materializa de 111 forma mais expressiva no corpo magro, jovem, saudável e no gosto light contemporâneo. Nestes contrapontos Ocidente versus Oriente, Tradicional versus Moderno, elaboram-se outras questões a serem ou não respondidas. Será que a prática do Yoga no Ocidente é a consolidação de uma ruptura total com os aspectos filosóficos tradicionais? Seria ela menos ritualizada? Ou seria uma ressignificação? Será o Yoga uma experiência uniforme e globalizada? Será que mantém o objetivo primordial de alívio do que causa dor ao homem? Não seria também este Yoga uma indicação de formas de se suplantar a dor, a dor de existir, a dor da impermanência, da incerteza e da transitoriedade da vida? Será que estas mesmas dores não se manifestam hoje, no tempo do relógio, apenas de uma forma diferente? Apesar de contrariar os guardiões das tradições, prefiro considerar que o Yoga no ocidente também tem seu ritual: não há uma boa aula ou sessão que não se inicie com um chá quente na sala de espera, com uma musak ao fundo; transcorra com a prática ao som de uma cítara e não termine com os yogins sentados em padmasana, postura da flor de lótus, pronunciando repetidamente o om. Do (s)om ao silêncio, mesmo com todos os ruídos da vida contemporânea. Referências Aragão, Wilson Menezes; Tupinambá, Evandro Almeida; Ângelo, Paula Cristina da Silva, Ribeiro, Francisco Elias. 1999. “Seleção de cultivares de coqueiro para diferentes ecossistemas do Brasil”. Em Recursos Genéticos e Melhoramento de Plantas para o Nordeste Brasileiro. Petrolina: Embrapa Semiárido. Dias, Jurema do Socorro; Barreto, Milza Costa. 2011. “A cultura da bananeira. Aspectos agronômicos, fitopatológicos e socioeconômicos da sigatoka-negra na cultura da bananeira no Estado do Amapá”. Macapá: Embrapa Amapá. Carvalho, José Márcio; Mendonça, Maria Cristina; Reis, Angélico Antônio João. 2011. “Produção de manga no Brasil e sua comercialização nos mercados interno e externo”. Organizações Rurais & Agroindustriais 9:53-60. Fuerstein, Georg. 2006. “A história e a literatura do Patanjali-Yoga”. Em Fuerstein, Georg. A tradição do Yoga. 5a. Reimp. 1a. Ed. São Paulo: Pensamento, 271-298. Fuerstein, Georg. 2006. “A filosofia e a prática do Patanjali-Yoga”. Em Fuerstein, Georg. A tradição do Yoga. 5a. Reimp. 1a. Ed. São Paulo: Pensamento, 299-320. Gulmini, Lilian Cristina. “O Yogasutra, 112 de Patañjali - Tradução e análise da obra, à luz de seus fundamentos contextuais, intertextuais e lingüísticos” [dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2001. Marsicano, Alberto. 2006. “A milenar arte da música”. Em Marsicano, Alberto. A música clássica da Índia. São Paulo: Perspectiva, 15-21. Marsicano, Alberto. 2006. “Mantra e o Canto Clássico”. Em Marsicano, Alberto. A música clássica da Índia. São Paulo: Perspectiva, 65-70. Marsicano, Alberto. 2006. “O Ocidente encontra o Oriente”. Em Marsicano, Alberto. A música clássica da Índia. São Paulo: Perspectiva, 81-88. Marsicano, Alberto. 2012. “Provocações”. TV Cultura. Apresentação: Antônio Abujamra. Direção: Gregório Bacic. São Paulo. Santos, Lígia Amparo da Silva. 2008. “O corpo, o comer e a comida”. Salvador: EDUFBA. Souto, Alícia. 2009. “A essência do Hatha Yoga”. São Paulo: Phorte. Wosien, Maria-Gabriele. 2004. “Shiva Nataraja - Origem da Criação”. Em Wosien, Maria-Gabriele. Dança: símbolos em movimento. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi, 33-39. Agradecimento: Ao Eduardo Marandola Jr, pelo enxergar, pelo incentivo, pela leitura crítica. 113 O significado musical: expectativas Karin Segalla Ferreira FAE Centro Universitário [email protected] Resumo O objetivo do presente trabalho é apresentar um modelo de teoria para as expectativas e significado musicais, através de pesquisas já realizadas que perpassam desde o entendimento de como a música se torna significativa, do conceito de tendência, e da musicologia cognitiva. O pioneiro trabalho de Leonard Meyer (1956) será apresentado em nosso capítulo primeiro, trazendo a discussão entre as perspectivas formalista e referencialista do significado musical e um posicionamento mais emocional das expectativas. A teoria de David Huron (2006), autor que estudaremos em nosso capítulo segundo, é entendida como uma proposta derivada da teoria de Meyer, complementar e ao nosso ver, mais madura e atual, pois o autor foca-se nos aspectos neurológicos e fisiológicos para explicar o fenômeno da antecipação musical. Em nosso capítulo terceiro, apresentaremos a Teoria da Relevância proposta por Sperber & Wilson (2005) e relacionaremos o conceito de comunicação ao efeito cognitivo. O encerramento desse trabalho nos leva ao possível diálogo existente entre a TR e as expectativas musicais. Sendo assim, a TR pode ser um caminho possível para explicar a questão que nos norteia: “música comunica(?)”. Dessa forma, buscamos através desse trabalho expor teorias e introduzir uma possibilidade para explicá-las. Nossa intenção foi trazer um novo modelo para discussão que pode ser um caminho para formulação de uma nova hipótese no escopo teórico escolhido, sendo essa discussão para nós necessária e plausível a partir das formulações teóricas previamente estudadas. Músicas comunicam, e são manifestações sonoras comunicativas dos seres humanos. A abordagem teórico-relevante é um caminho para que essa conclusão seja efetiva. Ela é uma interface entre a razão e a emoção e uma potencial saída teórica para as questões abordadas. Palavras-chave Teoria da Relevância, comunicação, significado musical, musicologia cognitiva, música 114 1. Afinal, música comunica (?)! O significado em música nos parece, como seres humanos, e principalmente como seres comunicativos, uma questão muito simples, e na verdade pode parecer até ofensiva. Afinal de contas, parece-nos estranho duvidar ou questionar se música comunica. Tal pergunta nos parece uma simples constatação, pois através da música podemos expor nossas intenções comunicativas, apesar de, talvez, a necessidade ou a impulsão de comunicação através da música não seja inata. Para nós, a música transmite informações e tais informações estão vinculadas a um contexto, e para tanto, comunicam uma intencionalidade, um “querer dizer”. O comportamento comunicativo, por si só, é gerado a partir de expectativas de relevância, ou seja, transmitimos um querer dizer (Grice, 1989) através do dito, significando que a nossa intenção com esse dizer foi nos comunicar com um outro em um diálogo. Geramos tais comportamentos comunicativos visando que eles gerem outros comportamentos comunicativos em nosso ouvinte. A partir desse argumento, acreditamos que a música é um instrumento de manifestação comunicativa. Visto que, apesar de não conter elementos propriamente ditos verbais, a música possui outras estruturas, carregadas de intencionalidade - como informações emocionais e expectativas. A música, assim como a linguagem, representa e acarreta um dizer. Apesar de diferentemente da linguagem verbal - no quesito diálogo, por exemplo. A dúvida que nos parece instigante no escopo “diálogo em música”, é que esse diálogo deveria partir de quem quer se comunicar, e não para quem a mensagem aponta. Vejamos, primeiramente: arriscamos afirmar que o diálogo presente na música, começa a partir de uma escuta musical, da “resposta” do ouvinte, entendendo como “resposta” o que a música representa para ele, o que ela gera, suas expectativas e as emoções acarretadas por ela. Essa nos parece a melhor definição do provável diálogo ouvinte/obra. Desconsideramos o processo de composição e quem compôs a obra, em que condições estava, qual o contexto, sua in- 115 tenção e emoção quando ouve a obra. No âmbito obra/ouvinte, trazemos a hipótese de que a música por si só não seria capaz de representar coisa alguma ao ouvinte. Isso quer dizer que há sempre uma representação vinda do ouvinte, que acarreta ou gera um significado para a obra. Tal representação pode ser a sua bagagem musical, onde está quando a ouve, sua cultura, e/ou o momento em que está vivendo, seja emocional, físico ou mental, por exemplo. Outros fatores parecem-nos relevantes, como se o ouvinte é músico, se tem ouvido absoluto, ou se faz parte de uma tribo indígena por exemplo, que hipoteticamente tem muitas manifestações musicais. Tomamos com exemplo: “Domenico” ouve a música “x”. A música “x” foi composta por “Enrico”. Desconsideramos todos os momentos relacionados à composição da música “x” e desconsideramos também Enrico. Ao ouvir a música “x”, Domenico sente-se ameaçado e agoniado. Essa reação emocional em Domenico pode ser a resposta e o significado daquela música para ele. Ainda que a música não peça uma resposta, ou um possível diálogo, cremos ser inevitável não termos uma, seja essa resposta qual for. Nesse momento, argumentamos que a música gera reações, ainda que diferentes reações e representações em pessoas diferentes, o que importa a esse estudo, é que tal música representou e se tornou significativa, independente do que significou. Secundariamente, se pudéssemos criar uma hipótese, afirmando que a intencionalidade comunicativa da música se dá a partir de quem a compõe, possivelmente teríamos um vácuo, pois esse autor depende de algo complexo para expressar-se, no caso, acordes, notas, escalas musicais. A comunicação demanda lidar com pensamentos de quem diz e de quem ouve, e para tanto, apostamos que pode ser plausível existir apenas um reconhecimento de intenções comunicativas entre músico e plateia. E consideramos ainda, que, o reconhecimento das intenções e as respostas que temos a um determinado estímulo musical não quer dizer que a música quis comunicar alguma coisa. Voltamos então, à estaca zero? Bom, se eu olho para o céu e vejo que vai chover, pois o céu está carregado de nuvens negras, isso não quer dizer que a nuvem quis me comunicar 116 alguma coisa, no caso, que vai chover. Quando inferimos algo em nosso meio, estamos nos baseando em nossa própria experiência e modelo de mundo. Damos significado as coisas do mundo a partir do que aprendemos sobre cultura, sociedade e música, por exemplo. 2. O significado musical: expectativas e padrões culturais Voltemos à nossa afirmação anterior, de que a comunicação em música nos parece simples, já que somos seres comunicativos e, além disso, seres musicais. Entendemos, a partir dos estudos de Leonard Meyer (1956), que o significado musical na perspectiva absolutista está relacionado exclusivamente a um contexto dentro da música per se, ou, música stricto sensu. A visão representacionalista do significado musical, por sua vez, afirma que o significado musical refere-se aos fatores extramusicais contidos no mundo, como os comportamentos e os estados emocionais. Em ambas as proposições podemos relacionar a significação em música com o conceito de expectativa e tendências expectantes. Isso porque o ouvinte ao escutar uma determinada frase musical, busca um consequente relevante que resulte de um antecedente de um modelo referencial. A teoria de Leonard Meyer então, nos traz duas proposições: uma entende que o significado da música é uma característica ou propriedade interior à obra musical e suas estruturas, e outra, que afirma que a música tem significado e comunica tal significado, sendo ele extramusical, existindo anteriormente à experiência musical e sendo transmitido a partir dela. Nos perguntamos, então: como eventos musicais se tornam significativos (?) a ponto de um compositor elaborar uma obra musical esperando que ela comunique o seu “querer dizer” a um ouvinte e como esses eventos são experenciados como sentimentos? Nossa proposta é a de buscar caminhos possíveis para dissolver essa questão de maneira simples, pois não pretendemos fazer, a priori, nenhum tipo de experimento psicológico. Vejamos: os eventos perceptivos, comuns aos seres humanos e em especial aqueles que se relacionam com a música e a sua significação, sempre estão acompanhados de emoções. As emoções são acarretadas 117 e se manifestam de várias maneiras: podemos estar em nossa casa, alienados com alguns pensamentos, ouvindo um disco quando, de repente, em algum momento, encontramos nossos pensamentos divagando por entre uma frase musical existente nesse disco. Trazendo-nos novamente à realidade, e longe daquele pensamento. O que nos fez prestar atenção naquela frase, pode ser um “diálogo” existente entre nossos padrões culturais, nossa bagagem musical e aqueles sons. A música pode não representar nada sozinha, mas em contato com essa bagagem que temos, se torna significativa e conceitual, gera sentimentos, emoções, e conseguimos, o que nos parece também ser inevitável no âmbito da escuta musical, ter um “diálogo” impreciso e inegável com a obra. O fato é que a partir desses argumentos, podemos afirmar a existência de culturas musicais e determinadas frases musicais que são de importante relevância aos membros de uma cultura. Tais frases, podem ser relacionadas, nessa determinada cultura, a eventos, também culturais previamente determinados, seja a partir da experiência dos compositores e/ou dos ouvintes, seja por reações emocionais causadas pelo compositor e/ou no ouvinte. Então, como afirma Huron (2006), toda cultura musical está relacionada a determinados sentimentos e tais sentimentos evocam situações convenientes a essa cultura. Para Huron, a noção de expectativa é uma habilidade que evoca estados emocionais, sendo de extrema relevância para a sobrevivência, pois nos faz antecipar os eventos vindouros. Para tanto, o autor propõe a ITPRA, que consiste em cinco funcionalidades distintas. As emoções evocadas pelas expectativas envolvem esses cinco sistemas fisiológicos: imaginação, tensão, previsão, reação e avaliação. Cada um desses sistemas podem evocar respostas emocionais de uma maneira independente, e podem ser divididos em dois períodos: pré-estímulo e pós-estímulo. A imaginação, por exemplo, faz com que o futuro seja emocionalmente palpável, por isso esses sentimentos trazem mudanças comportamentais. Como afirma o autor: “Nós não apenas pensamos em possibilidades futuras, nós sentimos possibilidades futuras” (HURON, 2006, p. 8). 118 A teoria de Huron tende a responder os questionamentos referentes a como os indivíduos e organismos aprendem através da experiência. Uma das possibilidades levantadas pelo autor, é a de que os ouvintes são sensíveis às probabilidades de eventos e padrões sonoros distintos, e tais probabilidades formam, ou ajudam a formar as expectativas dos eventos que estão por vir: “O processo de aprendizagem é produto da evolução por seleção natural, assim como qualquer outro instinto” (HURON, 2006, p. 62). Sendo assim, o mais relevante nos estudos de Huron, para a pesquisa referente a esse trabalho, reside na possibilidade de podermos vislumbrar a proposição de que a aprendizagem pode ser o motivo de que os organismos tendem a esperar eventos futuros, criarem expectativas, e além disso, essa ideia pode justificar que as respostas aos eventos sonoros poderia ser resultado da aprendizagem. Ou seja, o aprendizado tem papel determinante na formação de significado sonoro. Nesse âmbito, afirmamos anteriormente que para Meyer a noção de expectativa é a base dos processos de significação musical. David Huron, assim como Meyer, acredita que a expectativa é um fenômeno biológico e também cultural, pois o organismo se prepara para responder a determinados estímulos a partir de influências dadas pelo ambiente cultural, manifestadas pela expectativa. Essas expectativas musicais podem ser inatas e/ou experenciadas através de eventos passados, ou seja, aprendidas, sendo que as expectativas mais relevantes são aquelas adquiridas pela aprendizagem, pois são mais habituais e usuais no pensamento. Tais expectativas refletem padrões culturais aprendidos e para tanto são mais relevantes e se sobrepõem àquelas decorrentes da genética. Os padrões culturais são refletidos e se manifestam em uma determinada obra musical, em como ela é construída e recebida pelo seu ouvinte. Isso quer dizer que o conceito que mais se relaciona com essa compreensão que compete aos padrões culturais é o de estilo musical. Embasados nesse conceito, afirmamos que existem sistemas complexos entre a relação de 119 sons entendidos e utilizados em um grupo de indivíduos em comum. Em tais sistemas de padrões culturais existem sons que não podem ser combinados e existem os sons que são possíveis e podem ser usados em diferentes situações, por exemplo. Esses sons podem ser combinados de maneiras pré-estabelecidas e essas relações podem ser diferenciadas através do contexto da obra e da situação em vigência. Ian Cross em seu texto Músicas, Culturas e Significados: Música como Comunicação relata sobre a questão cultural dos comportamentos musicais: Como Widdess1 pontua, o dinamismo de uma cultura específica é melhor entendido através da experiência vivida do que mediado por representações linguísticas. Mas o que precisamente determina “uma” cultura, uma cultura musical, principalmente? Como um exemplo complexo, no contexto do território do norte australiano, nas culturas aborígines, como Widdess notou, há entidades musicais específicas - não obras, mas músicas e específicos tipos de música – e específicos contextos para o uso dessas músicas. (Cross, 2012: 95) A cultura então, em sua particularidade, pode ser entendida como a representação de um determinado povo, contendo suas características, suas entidades musicais particulares e específicas, tanto para um determinado momento, quanto para uma casualidade por exemplo. Caracterizamos a música então, através da cultura, como um comportamento cultural específico de um determinado povo. David Huron, por exemplo, argumenta que “existem evidências da ideia da música como uma adaptação evolutiva e ainda que não sejam sólidas, a ideia é plausível” (ILARI, 2006, p. 41). Existem fortes evidências de que os seres humanos tem um componente genético que influencia tanto a musicalidade quanto a sociabilidade. Podemos argumentar também que a música traz consigo e incita nossa memória comunicativa primórdia. Já que nossos ancestrais eram movidos pelo prazer musical em sua comunicação. A música pode nos remeter a um contexto musical, ainda que breve, e excitar em nós um 1 Richard Widess é professor de música na Universidade de Londres. 120 “eco evolucionário de comunicação primitiva” (ILARI, 2006, p. 41). A música, além de tudo, em muitas culturas, é o primeiro contato confortante de uma mãe com um filho recém nascido, a voz da mãe contém musicalidade, e representará algo para o filho, talvez por toda a sua existência. A música existe em nossas vidas e em nossos genes, ela nos move. Apesar de isso não significar que ela nos comunique, conseguimos encontrar algo nela que nos comunica, nos significa. 3. Manifestações comunicativas: musicais? Entendendo a música como uma manifestação da linguagem, tomamos como exemplo a seguinte constatação: um determinado comunicador quer dizer algo, ou apenas, tem a intenção de dizer algo e para tanto, contribui para essa comunicação através de uma frase musical, dando para ela determinadas características. Essas características para ele, e somente para ele, pois ele é o compositor, são perceptíveis ao seu “querer dizer” e à sua intenção comunicativa. O ouvinte ao ouvir essa frase musical, pode recebe-la da mesma forma, com alguma parcialidade ou com compreensão de intenção distinta daquela que o autor “quis dizer”. Isso não quer dizer que o ouvinte não entendeu a obra, mas sim que existe algo naquela frase musical que para ele faz sentido de alguma outra maneira, mas não quer dizer que essa frase não tenha significado. Por isso, independente do sentido e do acarretamento da representação, há comunicação, mesmo que o que o compositor quis dizer, seja o contrário do que o ouvinte entendeu. O que acarretou que o ouvinte compreendesse tal obra da maneira que compreendeu, seja “consciente ou inconscientemente, possivelmente foram as suas experiências presentes e passadas, seus hábitos” (MEYER, 1956, p. 24). Para Meyer o que ocorre nesse nível de significação, é que para se ter significado não é necessário a existência de comunicação. Ou seja, a música “x” faz com que o ouvinte tenha uma reação emocional “1”, mas isso não quer dizer que tal música comunicou algo para esse ouvinte, e nem 121 que se a reação emocional fosse “2”, ou “3”, a partir da escuta da música “x”, ela tenha comunicado. Ao contrário do que afirmamos e compreendemos como uma possibilidade para explicar os processos de comunicação em significado musical. Meyer argumenta que devido a complexidade dessa relação, a música comunica se, e somente se, o significado de quem a fez seja o mesmo de quem a observa. Sendo assim, não é possível garantir, ainda que dentro de uma mesma cultura, em que os hábitos são similares, que a relação de comunicação ocorra, tal como a comunicação verbal. Ou seja, não existe uma necessidade de comunicação através da música, mesmo sendo inegável que ela comunique algo, de fato. Apesar dessa particularidade, característica do significado musical, não há nenhuma implicação de que o ouvinte tenha que assumir o papel do compositor para entender o seu “querer dizer”, já que a própria experiência do ouvinte é significativa, próxima ou não da intenção do autor. Ainda que o ouvinte não tenha que assumir o papel do compositor, por muitas vezes, nos parece que o compositor assume o papel de seu ouvinte, como sendo um ouvinte ideal de sua obra, esperando que a sua composição acarrete o mesmo significado para o ouvinte que a obra tem para ele mesmo. Talvez, o autor espera que o ouvinte saiba o que ele quis dizer, espera que ele saiba a sua intencionalidade com aquela frase musical. 4. Teoria da relevância A Teoria da Relevância de Dan Sperber e Deirdre Wilson (2005) pode ser vista como uma tentativa de resolver a questão proposta por Paul Grice (1989) de que a comunicação humana tem como característica essencial a expressão e o reconhecimento das intenções comunicativas. Grice lançou fundamentos para um modelo inferencial de comunicação. E tal modelo pode explicar a significação através das intenções, entendendo o “significar” como um “querer dizer”. Podemos entender essa hipótese da seguinte forma: uma pessoa quer dizer algo dentro de um sistema linguístico, para tanto, codifica a sua 122 intenção dentro desse sistema através do vernáculo. A mensagem é decodificada pelo ouvinte a quem o falante está se referindo. O falante sabe que o ouvinte sabe o que ele “quer dizer”, pois esse falante forneceu a evidência de sua intenção de se comunicar através de um determinado significado: o seu querer dizer é inferido pelo ouvinte com base nas evidências fornecidas pelo falante, uma vez que estão no mesmo contexto. Partimos do pressuposto de que dentro de um enunciado está uma determinada evidência, que parte do comunicador, e pode ser codificada linguisticamente, e que tem uma compreensão, e tal compreensão existe só porque existiu um elemento de codificação e tal elemento foi decodificado. Essa relação, codificação de significado linguístico e decodificação, como afirma Sperber & Wilson, é apenas um input para o processo de inferência que produz a interpretação de significado do falante. Vejamos como Grice (1989) explica o fato de um ouvinte inferir o significado de um falante com base na evidência fornecida: uma de suas questões centrais que fazem parte da abordagem teórico relevante, e que explica o fato de que “os enunciados criam automaticamente expectativas que guiam o ouvinte na direção do significado do falante” (SPERBER & WILSON, 2005, p. 222) é o Princípio de Cooperação e as Máximas de Qualidade, Quantidade, Relação e Modo. O Princípio Cooperativo sistematiza regras de conduta para os participantes de uma conversação. As máximas conversacionais devem ser respeitadas para que tanto a produção quanto a interpretação sejam mais fáceis. A máxima de quantidade refere-se à informatividade, ou seja, um falante dirige-se a um ouvinte, com a quantidade de informações necessárias para que esse ouvinte interaja com ele e a compreensão ocorra. A máxima de qualidade diz respeito à veracidade das informações contidas, elas precisam ser verídicas e precisas. A máxima de relação refere-se à relevância: a adequação das informações devem ser aceitas por todos os envolvidos na interação, e tais informações devem condizer e se adequar ao contexto de interação. A máxima de modo diz respeito às formas de se dizer o querer dizer, ou 123 seja, refere-se à clareza com que o falante expressa suas ideias e informações na interação. A Teoria da Relevância (TR) “é uma propriedade potencial não somente de enunciados e outros fenômenos observáveis, mas de pensamentos, memórias e conclusões de inferências” (SPERBR & WILSON, 2005, p. 223). Assim sendo, a relação que citamos anteriormente, referente à codificação e decodificação, quer dizer que qualquer estímulo que fornece o input para os processos cognitivos pode ser relevante para um indivíduo em um dado momento. Diferente de Grice, a TR afirma que os enunciados geram expectativas de relevância porque existe algo em nossa cognição, que é uma característica humana e pode ser explorada quando for preciso, que nos faz buscar a relevância. Nessa característica da cognição humana, não está inferido o fato de os falantes obedecerem a um princípio de cooperação comunicativa, para que aja relevância e posteriormente significado, por exemplo. A relação com o significado musical é a seguinte: podemos dizer que os efeitos cognitivos positivos e negativos acarretam conclusões verdadeiras e falsas, as conclusões falsas são efeitos cognitivos, mas não são efeitos positivos, e nem mesmo vantajosas, já uma conclusão verdadeira, representa o contrário, mesmo que ambas sejam efeitos cognitivos. Na música o que ocorre com as expectativas não é muito diferente. Meyer apontou para um contexto, ou processamento mental parecido com as afirmações de Sperber & Wilson, de que o indivíduo espera, a partir de um determinado estímulo (musical), porque antes desse estímulo ele apreendeu o que esperar, ou seja, essa expectativa é gerada a partir de seus hábitos. Quando essa expectativa é atendida, existe uma recompensa, e quando não é atendida, torna-se consciente, gerando frustração. Podemos retomar o exemplo que Meyer nos oferece em seu texto Emoção e Significado em Música, do fumante habitual (MEYER, 1956, pp. 13-14). Quando esse indivíduo possui cigarros as suas expectativas são satisfeitas, seus hábitos seguem normalmente. A ineficiência dessa satisfação 124 quebra as expectativas que acompanham esse hábito, tornando-o consciente e gerando frustração. Também podemos relacionar o efeito cognitivo ao conceito de comunicação que propomos à questão “música comunica(?)”, uma vez que, para que haja comunicação, não é necessário que a obra diga a mesma coisa para o compositor e para o ouvinte. Ou seja, o fato de o autor “x” compor uma música e tal música representar um sentido “1” para ele, e para o ouvinte “y” dessa obra, tal música representar um sentido “2”, não implica a inexistência de comunicação. Se tal obra representa um sentido “3” para “y”, isso quer dizer que essa obra representou algo, e tem significado para ele. Mesmo que o acarretamento da obra em “x” seja diferente. A relevância pode ser calculada em termos de efeito cognitivo e esforços de processamento, e.g., “quanto maior o esforço requerido de percepção, de memória e de inferência, menor será a recompensa pelo processamento do input e, por isso, um menor merecimento de atenção” (SPERBER & WILSON, 2005, p. 225). Ou seja, em contextos idênticos, quanto maior o esforço de processamento, menos relevante será o input, e quanto maiores os efeitos cognitivos positivos, maior será a relevância do input. A condição de maximizar a relevância dos inputs está relacionada a forma como nós, seres humanos, nos desenvolvemos. Essa tendência é caracterizada através do Primeiro Princípio de Relevância (SPERBER & WILSON, 2005, p. 227), em que nosso sistema cognitivo se desenvolveu de tal forma que processamos os acontecimentos ao nosso redor de maneira a computar as consequências que mais nos valem a pena. Vejamos a definição da Relevância Ótima: Um estímulo ostensivo é otimamente relevante se, e somente se: a. é relevante o suficiente para merecer esforço de processamento da audiência; b. é o mais relevante compatível com as habilidades e preferências do comunicador. (Sperber & Wilson, 2005: 230) 125 A tendência que temos para maximizar a relevância faz com que possamos predizer o estado mental dos outros, também a partir do que acreditamos que determinado indivíduo terá como input mais relevante, pois também, esse indivíduo, tem a tendência de maximizar a relevância. Para tanto, podemos dizer que em uma comunicação, o indivíduo “x” diz algo para o indivíduo “y”, acreditando que o indivíduo “y” maximizará a relevância do que foi dito. E o indivíduo “y” acredita que “x” quis dizer o que a sua própria tendência de maximização produziu. Ou seja, o indivíduo “x” pode conduzir “y” a um conjunto de suposições contextuais com o seu dizer. “X” acredita que “y” entenderá o que ele quis dizer com seu estímulo, mesmo que esse estímulo não seja o que “x” disse propriamente. “X” poderá levar “y” a suposição que lhe cabe e conduzi-lo a conclusão pretendida, evidenciando a sua intenção. Sperber & Wilson afirmam que apesar de os indivíduos nem sempre estarem engajados em uma comunicação inferencial, podem explorar a tendência cognitiva dos outros de maximizar a relevância. Para tanto, existem diferentes tipos de comunicação. Por exemplo, deixar um copo vazio na linha de visão de uma pessoa, pretendendo que tal pessoa conclua que eu gostaria de outro drinque, é uma forma de comunicação, pois pretendi afetar seus pensamentos de alguma forma, ainda que não tenha dado evidências precisas e suficientes do que eu realmente queria. A comunicação ostensivo-inferencial, por exemplo, ocorre quando tal intenção comunicativa, dada por evidências, é reconhecida. Por exemplo: o comunicador que gostaria de outro drinque, nesse caso, em vez de apenas deixar o copo na linha de visão de outro indivíduo esperando que ele entenda a sua ação, poderia tocar o braço desse indivíduo, apontar para o copo vazio, e além disso, dizer que seu copo está vazio. Esse estímulo ostensivo, é capaz de atrair a atenção a quem o comunicador se refere, e posteriormente criar expectativas de relevância precisas e previsíveis. De qualquer forma, o indivíduo que o comunicador se refere só prestará atenção ao input que lhe pareça suficientemente relevante e que valha a pena ser processado. Para que isso ocorra é necessário que ao produzir 126 esse estímulo, o comunicador encoraje a quem ele se refere, para presumir que tal estímulo seja relevante. O ser humano está sempre se interpretando e sempre sentindo emoções e sentimentos. A afetividade, de modo lato, pode ser compreendida pelos seres humanos de forma intuitiva, apesar da gama de possibilidades de definir tal emoção/sentimento, e ainda produzir itens lexicais para definir tais emoções/sentimentos de modo a compartilhar a sua interpretação com outros indivíduos através da comunicação. Para a TR, por exemplo, “x” só é “x”, porque não é “y”, e assim por diante. Esses conceitos (de emoções e sentimentos) são estabelecidos na mente humana através da convivência com outros indivíduos, e tratados, de modo definido, a ponto de existir um acordo comum entre o comunicador, o comunicado, e o interlocutor, que interagem em uma mesma cultura, acerca da definição desses conceitos, um eu, sempre terá um tu espelhado e sendo assim, algum processo de representação ocorre quando se ouve uma determinada música em um determinado contexto. é indicativo de que, por meio das palavras, pessoas que compartilham o mesmo ambiente comunicativo, conseguem reconhecer significados musicais em virtude das inúmeras informações que podem ser associadas a uma determinada música. Relevância é um conceito cognitivo que ajuda a compreender os fenômenos comunicativos ligados à vida musical de nossa espécie. Isso porque, apesar de oriundo da Linguística, é um conceito que pode ser aplicado a qualquer manifestação intencional. (Benfatti, 2010: 156-157) A construção dos sentidos é, portanto da cognição humana e não inerente à linguagem, já que possui um caráter social. É através da cooperação e da interação dos participantes que uma mesma informação pode ser processada de diferentes formas em diferentes contextos por esses participantes comunicativos. 127 Referências bibliográficas Benfatti, Maurício Fernandes Neves. 2010. Falando em música... Um ensaio sobre o papel dos fenômenos linguísticos em uma epidemiologia de representações musicais. 173 p. Dissertação (Mestrado em Linguística) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Cross, Ian. 2012. “Músicas, Culturas e Significados: música como comunicação” Revista Empírica de Musicologia 95:97. Grice, H. Paul. 1989. Estudos dos modos das palavras. Cambridge, MA.: Ed. da Universidade de Harvard. Huron, David. 2006. Doce antecipação : música e a psicologia da expectativa. Cambridge, MA: MIT. Ilari, Beatriz Senoi. 2006. Em busca da mente musical : ensaios sobre os processos cognitivos em música – da percepção à produção / Beatriz Senoi Ilari (organizadora); colaboradores Beatriz Raposo de Medeiros... [et al.]. – Curitiba, PR : Ed. da UFPR. Meyer, L. B. 1956. Emoção e significado em música. Chicago: Ed. da Universidade de Chicago. Sperber, D.; Wilson, D. 2005. Teoria da relevância. Revista Linguagem em (Dis)curso 221-269. 128 A ‘áudio-imagem’ segundo J.E. Berendt Luiza Spínola Amaral Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [email protected] Resumo Sua voz ficou conhecida na Alemanha bem antes que sua imagem pudesse ser reconhecida pelos ouvintes. Homem do rádio, Joachim-Ernst Berendt construiu uma carreira de sucesso na mídia, durante os quarenta anos em que trabalhou como diretor no departamento de jazz da emissora alemã, Südwestfunk. No início dos anos de 1980, no entanto, e depois de uma carreira notável como produtor e crítico de jazz, envereda por um novo caminho, inaugurado com a peça radiofônica ‘Nada Brahma – Die Welt ist Klang’, onde não mais a música, mas os sons se tornam alvo do seu interesse. Ainda assim, o conceito de som elaborado por Berendt não visava à ampliação da paleta sonora no espectro da tradição musical, mas sua ‘antropologização’. Nesse contexto, o autor propunha a desobstrução do sentido auditivo, de forma a pensar outro tipo de imagem, sem referência visual, como um contra fluxo diante da excessiva visibilidade das imagens, intensificada após o advento da televisão, e que gerou o que ele denominou, “hipertrofia dos olhos”. Suas reflexões acerca do ouvir, longe de parecer retrógradas, antecipavam a importância de pensar a dimensão humana e sensória como partes dos processos comunicacionais. Entendendo, então, que o estudo da Comunicação deve ser pensado além dos meios técnico, mas atento às modificações que tais meios proporcionam às relações sociais, pretendemos apresentar o conceito de áudio-imagem segundo JoachimErnst Berendt, como forma para se pensar uma estética “pós-midiática” da imagem – tal qual apresentava Dietmar Kamper - onde a imaginação é parte fundamental dentro deste processo. Palavras-chave áudio-imagem, Joachim-Ernst Berendt, som, comunicação auditiva 129 Joachim-Ernst Berendt: do rádio à era da televisão. Sobre o fim da música e da percepção da visual Sua voz ficou conhecida na Alemanha, bem antes que sua imagem pudesse ser reconhecida pelos ouvintes. Homem do rádio, Joachim-Ernst Berendt construiu uma carreira de sucesso na mídia, durante os mais de quarenta anos em que trabalhou como diretor no departamento de jazz da emissora alemã, Südwestfunk, a qual ajudou a fundar. No início dos anos de 1980, no entanto, e depois de uma carreira notável como produtor e crítico de jazz1, envereda por um novo caminho, onde não mais a música, mas os sons se tornam alvo do seu interesse. Converge, assim, com os percursos os quais a própria música trilhou ao longo do século XX, borrando definitivamente as fronteiras entre a música e a não-música. No jazz, o fato começa a ficar evidente em finais de 1940, quando músicos como Thelonious Monk e Bud Powell iniciam as primeiras transformações que caracterizam o jazz moderno, por meio da “diluição da frase como unidade e das funções harmônicas como sistema” (Berendt, 2007: 220). Mas se concretiza a partir de 1960, com o surgimento do free jazz de Ornette Coleman, Cecil Taylor, Don Cherry e John Coltrane, quando a atonalidade, a dissolução do ritmo, a incorporação de elementos musicais de outras culturas, a intensidade na execução e a inclusão do ruído, se tornam parte integrantes da música2. Percebe-se com isso a necessidade de transformação da percepção auditiva mediante o rompimento da música com a linearidade, os pontos de apoio tradicionais e as 1 Berendt escreveu o mais conhecido livro acerca da história e desenvolvimento do jazz, Das Jazzbuch, que foi líder de vendas no ano de lançamento, traduzido em dezenas de outros idiomas e soma mais de 1,5 milhões de exemplares vendidos. Esta informação foi retirada do livro “O Jazz: do rag ao rock”, na apresentação feita por Júlio Medaglia. 2 No âmbito da música erudita, a atonalidade surge quase 50 anos antes, por meio de um novo esquema de organização da composição, o dodecafonismo, mas se difere consideravelmente do jazz, como demonstra Berendt: “o jazz possui uma “tradição atonal” mais antiga do que a música europeia de concerto. Os shouts, o field hollers, o blues arcaico (...) e quase todas as pré-formas do jazz do século passado [XIX], que se mantiveram vivas ainda no atual eram “atonais”” (2007:37). 130 convenções da tonalidade. A música cria o que Berendt denominou um novo “pathos extramusical”, que confirma as afirmações de Stockhausen e também John Cage: “som e ruído são música” (apud Berendt, 2007: 41)3. Berendt não estava alheio a essas transformações, muito pelo contrário, foi um dos precursores da chamada Worldmusic, como comprovam estudos realizados pelos historiadores da cultura alemã, Uta G. Poiger e Andrew Right Hurley, e teve participação ativa, no que concerne a uma internacionalização do jazz4. Como demonstra Poiger no artigo que compõe o livro, German Pop Culture: “Berendt transformou o jazz numa experiência universal e enfatizou que o jazz foi além de suas raízes africanas e afro-americanas para ser conhecido em todo mundo” (Poiger, 2004: 85)5. Foi então durante a movimentada década de 1960, e financiando pelo Göethe Institut, que Berendt começou sua incursão na busca do jazz pelo mundo. Viajou por cinco meses pelos Estados Unidos, e em parceria com o fotógrafo, Willian Claxton, produziu o livro Jazz Life. Nesse mesmo período iniciou uma série de viagens para a Ásia, praticou a filosofia Zen, 3 Stockhausen: “sonoridades que, antigamente, eram classificadas como ruído, hoje fazem parte do vocabulário musical. Som e ruído são música” (apud Berendt, 2007:41). Assim, também movimentos da vanguarda pós-Segunda Guerra, como a música aleatória de John Cage, a música concreta de Pierre Schaeffer, ou a eletrônica de Stockhousen, anunciavam os novos elementos sonoros, que viriam a romper com a organização harmônica da tradição musical ocidental. 4 O australiano Andrew Rignt Hurley no livro, The return of jazz. Joachim-Ernst Berendt and the West German cultural change, analisou sua importância no que concerne a construção de uma nova identidade mais internacionalista do povo alemão, a partir da série, Jazz Meets the World, cuja pioneira concepção de worldmusic, propunha encontros entre músicos de nacionalidades diversas, indianos, japoneses, brasileiros, africanos, norte-americanos, europeus, dentre outros. Também o festival anual, produzido por Berendt para a Südwestfunk, o Free Jazz Meeting, encontro entre músicos de vanguarda europeia e norte-americana, revela sua importância nesse processo de internacionalização do jazz e estabelecimento de um jazz tipicamente europeu. 5 Tradução Livre: “Berendt made jazz into a universalizing experience and stressed that jazz had gone beyond its African and African-American roots to gain appeal around the world” 131 gravou músicos de Bali6, do Japão7 e da Indonésia8, e convidou Ravi Shankar para tocar ao lado de Barney Wilen, na estreia do festival anual da emissora, o Baden-Baden Free Jazz Meeting9. Essa série de viagens, frequentes até finais de 1970, resultou em publicações midiáticas e também em novas propostas sonoras, produzidas por Berendt. Na década de 1980, no entanto, ele se afasta da direção dos festivais e da curadoria do Göethe Institut, vende seus arquivos de jazz para o acervo da cidade de Darmstadt e elabora sua composição radiofônica, Nada Brahma: Die Welt ist Klang10. O conceito de som elaborado por Berendt, embora provenha daquele “pathos extramusical”, que ele mesmo vivenciou como radialista, musicólogo e produtor, não visava à ampliação da paleta sonora no espectro da tradição musical. Enquanto crítica cultural propunha a desobstrução do sentido auditivo, posto de lado mediante a profusão de imagens, intensificada após o advento da televisão, e que gerou o que ele denominou, “hipertrofia dos olhos”. Vejam: Nos últimos anos temos ouvido e lido que o homem moderno, da era da televisão, tornou-se um ser dominado principalmente pelo sentido da visão. Dificilmente alguém que faz esse tipo de constatação se dá ao trabalho de perguntar: mas o que é que ele consegue ver? Será que realmente o homem vê o que ele enxerga? Será que ele não vê apenas imagens, imitações? Será que não são essas imagens que o homem denomina realidade? (BERENDT, 1993, p. 174) 6 Various musicians. The Music From Bali. Dutch Philips 831 210 PY. (apud Hurley, 2010: 246) 7 Hideo Shiraki Quintet and Three Koto Girls. Sakura Sakura. Saba SB 15064. (apud Hurley, 2010: 248) 8 Tony Scott and the Indonesian All-Stars. Djanger Bali. Saba SB 15145. (apud Hurley, 2010: 252) 9 HURLEY, Andrew Wright. The Return of Jazz: Joachim-Ernst Berendt and West German cultural change. Nova York.Oxford: Berghahn Books, 2009, p. 241. 10 A peça radiofônica logo se transformou num livro, que na tradução para o português foi denominado, Nada Brahma: o mundo e o universo da consciência. A tradução literal de Die Welt ist Klang é “o mundo é som”. 132 As questões apresentadas ainda no começo dos anos de 1980 se aproximam de discussões que começavam a surgir nas pesquisas da comunicação e da mídia, sobretudo na Teria da Mídia desenvolvida na Universidade Livre de Berlim, em torno de autores como Harry Pross (1987), que em diálogo com uma Teoria da Cultura, propunha uma classificação do corpo como mídia primária, e também de Dietmar Kamper, cujo estudo sociológico e filosófico do corpo advertia sobre a necessidade de resgate da percepção auditiva como forma de combate à colonização do imaginário pela mídia. Berendt, no entanto, já estava ciente de alguns dos problemas que viram a ser tratados pelas pesquisas da mídia. Notem: Na verdade, poder-se-ia dizer que a televisão é “a realidade” de crianças e adolescentes. Com perda de capacidade de fazer novas experiências quero definir o horror que nos é impingido todos os dias – notícias sobre o Vietnã, Afeganistão, El Salvador, Cambodja, Guatemala, Etiópia -, uma inflação de horror. Quanto maior o horror, tanto menor o impacto que ele causa sobre as pessoas. O escritor alemão Botho Strauss chama isso de “separação do homem do que é humano” e “o fim do sentido da percepção”. (BERENDT, 1993, p. 174-175) A perda da capacidade de apelo das imagens visuais evidenciada por Berendt e que ele define com as palavras de Strauss como ‘o fim do sentido da percepção’, também foi tema para Norval Baitello no seu estudo sobre a imagem midiática. Mais de dez anos depois, e em referência a Harry Pross e a Dietmar Kamper, ele elabora um diagnóstico não muito diferente do exposto acima: “a inflação e a exacerbação das imagens agrega um desvalor à própria imagem, enfraquecendo sua força apelativa e tornando os olhares cada vez mais indiferentes, progressivamente cegos.” (Baitello, 2005: 85). A cegueira descrita por Baitello, ou a “hipertrofia dos olhos” de Berendt, provém de uma rarefação no potencial simbólico das imagens, capaz de sensibilizar o homem como acontece nas imagens de culto ou da arte11. Assim, conclui o autor em citação a Kamper: “a ‘força 11 O tema acerca das imagens, de culto e da arte, e da simbolização é tratado por Hans Belting no livro, Antropologia de la imagem. (Katz Editores. Madrid, Espanha. 2007). 133 visionária’ passa a ser – cada vez mais – possível apenas fora dos sistemas de visão” (Baitello, 2005: 86). Podemos dizer que a discussão proposta por Berendt acerca dos “níveis de realidade” sugere essa dualidade da imagem, a exterior, intensificada e acelerada pela mídia, de experimentação majoritariamente visual, e a interior, construída com o corpo por meio de todos os seus sentidos, de forma que a primeira parece ter afetado sensivelmente a percepção da segunda. Nesse sentido, o pensamento de Berendt conflui com o de Kamper: Parece mesmo como se a fantasia – na forma de imaginário da mídia - esteja no poder, como se os homens isolados uns dos outros estejam ameaçados por uma violenta imanência, por um cárcere feito de imagens. (KAMPER, 2002, p. 09) A Teoria da Fantasia proposta por Kamper12 revela uma estrutura de quiasma, na qual confluem interior e exterior, cuja contraposição parece fundamental para a percepção e produção de imagens pelo homem. No entanto, requisitados incessantemente, os olhos sofrem pela rotina do “padecimento”, que impossibilita o desdobramento da visão empírica numa visão onírica, designada pelo autor como ‘força visionária’ ou ‘imaginativa’, capaz de estabelecer uma relação viva entre o sujeito, as imagens e suas referências culturais. Diante deste novo imaginário, “antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, hoje em dia música, palavras, filmes levados através de ondas (...) fabricados industrialmente e vendidos comercialmente” (Morin, 2011: 3), que Edgard Morin não por acaso aproxima do universo fantasioso das mitologias e que gerou a ‘industrialização do espírito’, ao padronizar sonhos, estilos de vida e gostos; Berendt lança 12 Fantasia. Biblioteca Digital do CISC. Disponível em: <www.cisc.org.br>. Acesso em: 01 de Julho de 2013 (texto foi extraído do livro “Cosmo, Corpo, Cultura. Enciclopedia Antropologica”. A cura di Christoph Wulf. Ed. Mondadori. Milano. Italia. 2002). 134 sua proposição, ‘Die Welt ist Klang’, o mundo é som, a fim de reestabelecer o lugar das “verdadeiras experiências” diante da cultura telemática que começava a surgir. Nesse sentido, sua proposta vai de encontro à de Kamper quando diz: Não se devem reforçar as capacidades do ouvido? Como se pode definir um pensamento, que tem necessidade do tempo e de outrem? Este pensamento não seria a superação do programa cartesiano de dominar o mundo na solidão e na intemporalidade? (KAMPER, 2002, p. 11) Livre das amarras das tradições musicais, ou talvez liberto delas após suas incursões pelo free jazz e pela música oriental, Berendt propunha uma ontologia do ouvir, que revelava uma dimensão ‘perdida’, ou saturada da imagem, sua dimensão corpórea, ou antropológica, como prefere Kamper, e também Belting: “a questão da imagem e do médio nos conduz novamente ao corpo, que não somente foi, mas continua sendo um lugar das imagens pela força de sua imaginação.” (Belting, 2007: 44). A proposta de Berendt durante sua incursão pelos sons e pelo ouvir, embora fosse ele também midiático, era pensar outro tipo de imagem, que não esta, estabelecida por relações de ‘projeção-identificação’, típicas da sociedade contemporânea. A imagem sonora, que só significa enquanto corpo, e neste contexto, a áudio-imagem, surge como medida ecológica para se pensar a comunicação. Assim, como um convite à imaginação, compunha a rica paisagem sonora de Nada Brahma, os sons do universo e das esferas13, do fundo dos mares e das baleias14, dos monges tibetanos15 e da mú13 THE HARMONY OF THE WORLD [A Harmonia do Mundo]: realizada por Willie Ruff e John Rodgers (Editora Musical de Universidade de Yale LP 1571). (apud Berendt, 1993: 97) 14 SOUNDS OF THE SEA [Sons do Mar] Folkways Records, Science Series, FPX 121. (apud Berendt, 1993: 115) 15 THE MUSIC OF TIBET, in: An Anthology of the World’s Musici 6 (Anthology AST 4005, Anthology Record and tape Corporation, 135 West 41 St., Nova York, N.Y. 100 36). (apud Berendt, 1993: 97) 135 sica clássica indiana16, ao lado da música minimalista de Steve Reich, do rock de Pink Floyd e Santana, passando pelo jazz de Don Charry e John Coltrane, até o célebre “O Messias” de Haendel. Do mantra “om” às mais recentes criações musicais, a peça radiofônica falava sobre o ouvir pelos sons e apresentava imagens audíveis e não audíveis, mas possíveis de serem imaginadas e reproduzidas. A técnica e a mídia, a música e o ouvir contemporâneos Proveniente de investigações sobre o telégrafo, o desenvolvimento da telefonia, “ou retransmissão do som à distância” (Chion, 1994: 14), que nasce paralelamente a fotografia, em finais do século XIX, forneceu a primeira técnica de transmissão sonora, que impulsionou o império da radiofonia e das mídias de massa em décadas posteriores. Anterior à invenção da amplificação, o “fonógrafo” possibilitava a retransmissão do som por meio da captação de ondas sonoras, mas não sem distorções. Como coloca Chion, quando diferencia as técnicas de reprodução e amplificação do som: “a reprodução por fonógrafo, (...) da voz de um tenor ou de uma soprano representava mais uma redução que uma amplificação.” (Chion, 1994: 19). Da criação da telefonia e da captação de sons por meio de microfones até a “fonofixação”, ou gravação, pouco tempo se passou, provocando transformações profundas à audição. A partir desse momento, o som deixou de ser um fenômeno passageiro e se tornou passível de apreensão. A������������������������������������������������������������������ conservação dos fenômenos acústicos, que iniciou uma nova era moderna, marcadamente ‘tecnicista’ e massivamente midiática, embora reproduzisse sons existentes, não deveria ser entendida como simples “transmissão no tempo” de um fenômeno passado. Com a possibilidade de “reaudição literal” dos fenômenos acústicos, músicos e compositores se tornam capazes de ouvir a si mesmos, ou as próprias composições, 16 RAVI SHANKAR e ALI AKBAR KHAN em concerto 1972 – com Alla Rakha, Tabla (Apple Records Sapdo 1002, 2LPs). (apud Berendt, 1993: 212) 136 sem precisar tocá-las, o que contribuiu para “invenções sonoras e musicais que seriam mais – e eles sabiam disso – do que uma recordação na memória de cada um” (Chion, 1994: 17). Com o ligeiro e consequente desenvolvimento das técnicas de amplificação e manipulação, ou “remodelagem” a imagem sonora pôde ser tratada de maneira tão específica quanto a visual: Finalmente, os progressos da digitalização permitem limpar os ruídos de superfície das velhas gravações, reavivando suas cores: isso releva da arte secular, já conhecida pela pintura, da restauração. Sinal que o som musical adquire as propriedades da matéria pictórica. (CHION, 1994, p. 21) Inspirado pela experiência ao lado do engenheiro e sonoplasta, Pierre Schaeffer, criador da música concreta, Michel Chion é hoje uma das maiores autoridades no que se refere ao entendimento da imagem e do som no cinema. É também um premiado compositor de música concreta e trilhas audiovisuais. Em pesquisas recentes, propõe o desenvolvimento da percepção “audiovisão” para despertar a atenção sonora dos denominados, meios audiovisuais. Como sugere o autor, as percepções auditivas e visuais coexistem e, portanto, precisam ser entendidas em suas especificidades: “os filmes, a televisão e os media audiovisuais em geral não se dirigem apenas à visão”, e continua, “suscitam no espectador – no seu <audioespetador>, uma atitude perceptiva específica” (Chion, 2011: 7). Percebemos assim, que mesmo no contexto da radiofonia, que suscitou a criação e o desenvolvimento de novas formas musicais como a música concreta, eletroacústica e eletrônica; de forma geral, pouco contemplou a música erudita, sobretudo a contemporânea, no seu círculo de difusão “ainda muito restrito as músicas populares” (Chion, 1994: 64). Como também demonstra o compositor francês, diante das novas condições de escuta, nossa cultura ainda não desenvolveu uma percepção contundente com a nova realidade: 137 Outrora transcreviam-se muitas músicas de orquestra para o piano, a fim de terem uma maior difusão! Mas a diferença é que hoje, quando mudamos a música gravada de suporte, de canal e de condições de escuta, não sabemos exatamente o que dela modificamos, apesar de possuirmos aparelhos considerados preciosos, que nos dão, por intermédio dos seus botões, uma ilusão de controlo. (CHION, 1994, p. 90) A mudança no gesto de produzir e escutar música, mediante a profusão das mídias de massa, alterou sensivelmente a percepção auditiva humana. Durante o século XIX, tanto no Brasil quanto na Europa, possuir um piano, além de muito comum, era a única forma para se ouvir música em casa. Assim as partituras não só familiarizavam o público com o repertório da tradicional música do ocidente, como ampliavam sua percepção auditiva. Na verdade, a interpretação de Bethoven no âmbito particular, por exemplo, produzia sons completamente diferentes daqueles tocados por um grande interprete durante um concerto. Nesse sentido, mesmo um músico amador era capaz de reconhecer percepções sonoras distintas, mediante a transposição da obra da esfera particular para a pública. A������������������������������������������������������������������� s mudanças culturais que levaram à substituição do piano e das partituras por instrumentos elétricos, rádios e novas mídias, provocaram impactos na compreensão auditiva do homem, ainda pouco explorados pela cultura contemporânea, mas que começam pela redução radical do corpo nos processos de difusão/audição musical. Como demonstra Chion, nossa ilusão de controle diante das novas máquinas sonoras, embora possibilite a “manipulação de frequências e amplitudes, não nos dá nenhum domínio preciso e exacto sobre a mensagem que dela sai.” (Chion, 1994: 90). E conclui: Para fugir a este sentimento de impotência há quem prefira deixar tudo à conta da técnica, renunciando mesmo ao seu ouvido; a verdade é que é este último que devemos fazer trabalhar, nomeadamente pela passagem das nossas sensações pelo crivo das palavras, para as readaptarmos. (Chion, 1994, p. 90-91) 138 De fato, o avanço da poluição sonora, a perda da qualidade do som em aparelhos miniaturizados e em conversões digitais da música, além da inferioridade das tecnologias sonoras frente às visuais em mídias como tevê, computador e até mesmo (quem diria!) o celular, são reflexos de uma evolução técnica e cultural que seguiu desatenta ao ouvir. Assim, podemos dizer que não temos dado ouvidos às informações sonoras que compõe o cenário cultural no qual estamos imersos. De acordo com as reflexões do também musicólogo e canadense, Murray Schafer, as paisagens sonoras comunicam sobre determinada época e cultura, ou seja, o som é também veículo de comunicação; nesse sentido, não deve se manter restrito ao campo da música.. Esse entendimento parece fundamental num tempo onde a produção excessiva de imagens, sobrepostas e expostas, privilegia, sobretudo, a visão. Para Chion, este é o motivo pelo qual as mídias sonoras e audiovisuais ainda utilizam o som de maneira insatisfatória. Também para Murray Schafer (1991), não foi por outro motivo, se não pela desatenção dada aos ouvidos pela cultura do ‘ver’, que fomos impedidos de perceber o “esgoto sonoro” no qual estamos inseridos nas grandes cidades. O excesso de visibilidade e audibilidade nos ambientes culturais contemporâneos parece ter não só nos cegado, como também ensurdecido, daí o questionamento de Baitello se “não estamos nos tornando surdos intencionais?” (Baitello, 2005: 99). No âmbito das teorias da Comunicação e da Mídia, Vicente Romano chamou este resgate das dimensões sensórias de ‘ecologia da comunicação’ (2004). A comunicação auditiva na obra de J. E. Berendt Assim, quando Joachim-Ernst Berendt abandona sua especialidade musical e retorna ao rádio para falar sobre os sons e o ouvir, longe de parecer retrógrado, antecipa a importância de pensar a comunicação sensorial, sobretudo a auditiva, mediante a nascente cultura telemática que começava a despontar. Nesse sentido, dá prosseguimento a uma das inquieta- 139 ções de Kamper quando diz: “uma nova época do ouvir está anunciada” (apud Baitello, 2005: 108), propondo uma ‘estética pós-midiática’ de retorno ao corpo. A imagem sonora, sem referente concreto na visualidade, transposta no ar, estimula o corpo e só significa enquanto corpo. Esse entrecruzamento entre a imagem sonora (que os musicólogos denominam som) e o ouvido (ou corpo, com os teóricos da mídia e os culturalistas da oralidade) define o conceito de áudio-imagem. Paul Zumthor revela o aspecto interior, ativo-criativo dessa antropologia sonora, quando diz: A componente fundamental da “recepção” é assim a ação do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas próprias configurações interiores, o universo significante que lhe é transmitido. (ZUMTHOR, 2010, p. 258) Sob a perspectiva da comunicação e da mídia um novo campo “arqueológico” do saber parece trazer a chave para a compreensão da comunicação auditiva em Berendt. O conceito de arqueologia já vem sendo trabalhado por pensadores da mídia contemporâneos, dentre eles Norval Baitello Jr., em diálogo com Siegfried Zielinski da Universidade de Artes de Berlim. Na apresentação do livro de Zielinski, Arqueologia da Mídia, quando Baitello explana sobre as ciências arqueológicas, “que cuidam de resgatar o passado descartado, (...) esvaziando um pouco a inflada ubris do presente” (2006: 13), aponta para a desobstrução do passado como forma para se recuperar uma “real dimensão dos meios” (idem). Berendt retorna a uma primitiva percepção auditiva a partir de um som original, que denominaremos ‘áudio-imagem original’. O som do qual fala Berendt em Nada Brahama aparece como traço comum às mais diversas e distantes mitologias da criação. Seja pelo hálito ou respiro de Deus, confirmado pelas escrituras hebraicas, basilares das três grandes religiões monoteístas ocidentais; seja pela vibração da palavra inarticulada, OM, na tradição dos Upanishads, como forma de expressão da sonoridade primeva, a dimensão sagrada é revelada enquanto som e, por- 140 tanto, depende da experiência auditiva. O som originário não antecede somente a palavra, antecede também a voz: A confusão entre voz e som, que seria típica de um pensamento místico arcaico, também perfaz um horizonte de sentido que parece constranger o vocálico a confrontar-se antes de tudo com o âmbito dos sons, em vez de depender imediatamente do sistema da palavra. (CAVARERO, 2011, p. 34-35) Embora a italiana Adriana Cavarero, em sua tese de doutoramento, nos revele o significado próprio da voz, ou seja, a unicidade carnal do corpo que a emite e sua dimensão relacional, adverte sobre o desprezo filosófico pelo tema, proveniente da inclinação grega para uma universalidade abstrata e sem corpo do ‘logos’. A consequência, sobretudo no campo da linguística, foi a redução da voz à perspectiva sistêmica e semântica da língua, onde a palavra aparece muda, apenas como signo. Conforme descreve a autora, a situação começa a mudar nas primeiras décadas do século XX com os estudos sobre as culturas orais, onde a voz ressurge soberana: “o semântico, ainda não submetido às leis congelantes da escritura, dobra-se à musicalidade do vocálico” (idem: 25). No entanto, debruçada sobre a tradição religiosa hebraica, a autora apresenta outra cultura onde a voz antecede a palavra pelo do som. Modelada pelo texto Bíblico, a palavra deveria ser proclamada no ato da leitura, de forma que o som constituísse o seu lado reverso. Reflexo sintomático da própria escrita hebraica, composta por um alfabeto consonântico que, até o século VI antes da compilação do Texto Massorético17, omitia as vogais, que deveriam ser inseridas pela voz. Assim, ao menos dois níveis de comunicação podem ser observados, um mediante a visualidade e literalidade da palavra escrita, funcional para a transmissão de conteúdos; e outro auditivo, denominado por Cavarero “comunicação originária”, onde a Palavra é apenas percepção auditiva. Nas palavras da autora: “Na 17 O Texto Massorético é a primeira compilação dos manuscritos hebraicos bíblicos. 141 fase mais antiga da religião hebraica, Deus é voz, ou mesmo sopro, não palavra” (Idem: 36). Dois termos recorrentes nas escrituras sagradas corroboram a afirmativa. São eles, ruah e qol (hebraico), que na versão grega da Septuaginda18 foram traduzidos por, pneuma e phoné. O sentido de ruah está mais próximo do sopro, do respiro divino, já o qol é o som, o efeito acústico do sopro e a voz do criador. “Ambos relativos à boca de Deus, [phoné e pneuma] evocam a trama essencial entre voz e respiração, uma trama que na Bíblia judaica é também autorrevelação pneumática e sonora, bem como criação” (idem: 35). É daí que a leitura vocal do texto se faz repleta de sentido, pois o som não se limita a significante da palavra, mas é a própria Palavra que vibra. Observem: [A ideia de comunicação na cultura hebraica] afirma que os falantes se comunicam entre si na voz de Deus que vibra no som da língua deles. A vibração do qol divino na palavra articulada é, de fato, a comunicação originária que torna possível, ulterior e secundária, qualquer outra comunicação. (CAVARERO, 2011, p. 37) E conclui etimologicamente a autora: Na tradição hebraica, a Palavra sagrada é, antes de tudo, um evento sonoro confirmado no próprio modo como é chamada a Bíblia, miqrá, isto é, ‘leitura, proclamação’ (do verbo qarà, ‘chamar, proclamar, declarar’, presente também no próprio termo ‘Corão’). (CAVARERO, 2011, p. 38) A leitura do Alcorão também confirma a esfera sonora da Palavra e auditiva da experiência divina, na medida em que exige a proclamação em voz alta com ondulação do corpo. A musicalidade que provém da leitura em voz alta, vibra pela palavra e atualiza o som original. Comungando da mesma origem semita dos hebreus, na antiga ciência árabe são re18 Nome da versão da Bíblia hebraica para o grego. 142 correntes os vestígios que confirmam a presença do evento acústico originário como parte sonora da linguagem, confirmado pelos estudos de Amnon Shiloah. Num pequeno artigo que compõe o livro Variantology 5, ao analisar os escritos deixados por um dos mais representativos nomes do início da alquimia árabe, Jabir ibn Hayyan (séculos VIII e IX), Shiloah analisa exatamente os fundamentos teóricos e filosóficos na obra do alquimista, capazes de trazer à tona a conexão entre música e origem da linguagem. A base desse cruzamento se dá enquanto a palavra é som, o som original. Em árabe, o termo correspondente ao qol hebreu é o sawt que, de acordo com Shiloah, é a palavra chave nas discussões que permeiam o tema. O papel predominante da voz está em diversos escritos do alquimista árabe. Neles, também se encontram teorias acerca da função sonora das vogais na revitalização do texto escrito, e especulações embasadas nas leis Pitagóricas da harmonia numérica como base metodológica comum para se pensar a ciência da música, da poesia, da morfologia, da melodia, do ritmo e da poesia; de forma que a mesma lei regente dos fenômenos celestes se refletisse nos terrenos. De acordo com Shiloah, “para os místicos, a voz simbolizava a vida divina e colocava o homem em ressonância com a vibração celeste e universal” (Shiloah, 2011: 480). E continua: A prevalecente definição “harmonia dos números” dada ao ritmo e à música por Jabir remonta a alma do mundo e a alma do indivíduo. A alma do mundo contempla a alma do indivíduo, que deve expressar ou incutir sua própria harmonia em música e linguagem. (SHILOAH, 2011, p. 488) 19 Com o pressuposto de que o pensamento alquímico deve ser compreendido pela lógica da mutação, ou da transmutação, podemos sugerir que, 19 Tradução Livre: “The prevailing definition “harmony of numbers” given to rhythm and music by Jabir goes back to the soul of the world and the individual soul. The soul of the world endows and permeates the individual soul, which is said to express or to instill its proper harmony into man’s music and language.” 143 a preocupação de Jabir ibn Hayyan era o de compreender de que forma o som se transmutava em palavra e música. Ou, para ficarmos com as palavras de Shiloah, como o “som instintivo” se transmutava em “som inteligível”. Como coloca o autor, as discussões filosóficas da época giravam em torno da dúvida: se a voz é natural ao homem, a linguagem e a música também o são? Fiquemos com a resposta do próprio Jabir: A afirmação de que a linguagem se dá devido a uma instituição e a uma convenção acidentais é errônea porque a linguagem é uma substância de origem natural; portanto, não é derivada de uma instituição, mas de uma intenção da alma e todos os seus atos são substanciais. […] (apud SHILOAH, 2011, p. 488) 20 O que pretendemos deixar claro até aqui é que embora a ciência da linguagem de tradição grega tenha evoluído em direção a um “logos desvocalizado” e, portanto, sem corpo, como aponta Adriana Cavarero; na raiz arqueológica que fundamenta a base teológica do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, o som da voz é parte indissociável da palavra, que neste contexto é também áudio-imagem. No âmbito da sabedoria arcaica, o evento sonoro antecede a palavra, ao mesmo tempo em que a transcende enquanto presença divina. Joachim-Ernst Berendt, muitos séculos depois, interessado justamente no elemento que faz da música transcendente retoma a antiga hermética alquímica que vai da Voz à Palavra ou, como preferem os filósofos, do som vocálico à linguagem. Suas reflexões acerca das milenares fórmulas mântricas, denominadas “substância primeva do mundo”, retomam aquilo que na Palavra hebraica, e também nos estudos místicos da alquimia, e nas mais recentes pesquisas sobre as culturas orais, se denominou, substancialidade da linguagem: 20 Tradução Livre: “The assertion pretending that language is due to an institution and a convention and that it is but an accident is wrong because language is a substance and of natural origin; hence, it does not derive from an institution but from an intention of the soul and all its acts are substantial.” 144 O mundo é som. Imediatamente, põe-se a questão: que tipo de som? Trata-se de uma questão-chave, pois, pelo fato de o mundo ser som, fazer essa pergunta significa o mesmo que perguntar qual a substância primeva do mundo. (BERENDT, 1993, p. 31) A resposta está evidente em diversos trechos do capítulo, mas pode ser sintetizada nas palavras do sufi Hazrat Inayat Khan citado por Berendt: O que chamamos de palavra é só uma manifestação verbal da respiração produzida pela boca e pela língua. Mediante a habilidade da boca, a respiração se faz voz, daí por que o estado primevo de uma palavra é a respiração. Se dissermos: ‘No início era a respiração, isso é o mesmo que dizer ‘no início era o Verbo’ (apud BERENDT, 1993, p. 47) Vemos assim, que também na sabedoria mística do sufismo, voz e respiro são indissociáveis da palavra, de forma que o som, ou a esfera audível dessa compilação, tem o mesmo sentido de tornar perceptível a sonoridade da qual surge o universo e o homem. Assim, antes da palavra, somos envolvidos pelo som, pelo não expresso, que possibilita a comunicação originária do encontro entre o homem e a boca de Deus ou o mergulho na vibração primeva. O som se torna sentido da palavra. Daí sua aproximação com os mantras budistas que, segundo Lama Govinda na voz de Berendt, “expressam sentimentos, mas não conceitos; afeiçoamentos, mas não ideias.” (apud Berendt, 1993: 40). E continua ele: Assim como uma partitura musical escrita não consegue transmitir a impressão espiritual e emocional da música tocada ou ouvida, da mesma forma a análise intelectual de um mantra não transmite a vivência de um iniciado, nem revela seus efeitos profundos que só são obtidos mediante uma prática persistente e duradoura. (apud BERENDT, 1993, p. 44). As sílabas mântricas, assim como a arcaica escrita sagrada, só produzem sentido quando pronunciadas, que seria o mesmo que dizer, quando ‘encarnadas’. Como falar é também se escutar, o encontro com a dimensão 145 sagrada ou dissolução do ego, se dá mediante a experiência prática e sensória do corpo, capaz de transcender os opostos, homem e Deus, ego e universo. Assim, é pela dimensão audível da voz que o corpo vincula-se ao transcendente, que é pré-racional, ilógico e inominável. Neste caso, o referente da palavra é o que a transcende; o significante, a presença divina e o significado, o corpo que ouve. Se a palavra provém do Som e se a música, como o mantra e a leitura em voz alta, em última instância, pretende atingir a dimensão audível da Palavra, concluiremos com uma passagem de Vilém Fluesser quando, no seu livro Los Gestos, analisa a singularidade do gesto de ouvir música, quando diz: O ouvinte de música não se concentra propriamente, senão que concentra no interior de seu corpo as ondas sonoras que lhe chegam. Isso significa que na escuta musical o corpo se faz música e a música se faz corpo. (FLUSSER, 1994, p. 74) Assim, podemos dizer que na ‘comunicação originária’ o som / força criadora é percepção antropológica, experiência auditiva, corpórea. A áudio-imagem original revela o sagrado no corpo, o som não tem um referente concreto direto, em última instância, seriam a harmonia celestial, os astros, a dimensão divina inatingível, de forma que, nas raízes profundas da áudio-imagem, encontramos uma definição contrária à imagem visual. Ou seja, não representa a ausência de uma presença, se não, que é a própria presença da ausência, fundamentalmente dependente da capacidade criativa do corpo, mediante os ouvidos. Referências bibliográficas BAITELLO, Norval. A Era da Iconofagia. São Paulo: Hacker, 2005. BELTING, Hans. Antropología de la Imagen. Argentina: Katz Editores, 2007. BERENDT, Joachin-Ernst. CLAXTON, William. Jazz Life. A journey for jazz across America in 1960. Köln: Taschen, 2005. BERENDT, Joachin-Ernst. Nada Brahma. Die Welt ist Klang. Nada Brahma. A música e o universo da consciência. Tradução de Zilda Schild e Clemente Mahl. São Paulo: Cultrix, 1993. 146 . O Jazz do rag ao rock. Tradução de Júlio Medaglia. São Paulo: Perspectiva, 2007. MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: espírito do tempo 1: Neurose. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011. .The Third Ear. On listening to the world. Tradução de Tim Nevill. Nova York: Henry Holt, 1992. POIGER, Uta G. Searching for Proper New Music: Jazz in Cold War Germany. In: “German Pop Culture”. Ann Arbor: Michigan University, 2004. p. 83-95. CAVARERO, Adriana. Vozes Plurais – filosofia da expressão vocal. Tradução de Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: UFMG, 2011. CHION, Michel. A Audiovisão – som e imagem no cinema. Lisboa: Texto & Grafia, 2011. . Músicas, Media e Tecnologias. Tradução de Armando Pereira da Silva. Lisboa: Instituto Piaget, 1994. PROSS, Harry. A sociedade do protesto. São Paulo: Annablume, 1997. : BETH, Hanno. Introducción a la ciencia de la comunicación. Barcelona: Editorial Anthropos, 1987. ROMANO, Vicente. Ecología de la Comunicación. Hondarribia: Hiru, 2004. FLUSSER, Vilém. Los Gestos. Fenomenología y Comunicación. Barcelona: Herder, 1994. SCHAFER, Murray. A Afinação do Mundo. Tradução Marisa Tranch. São Paulo: UNESP, 2001. HURLEY, Andrew Wright. The Return of Jazz: Joachim-Ernst Berendt and West German cultural change. Nova York. Oxford: Berghahn Books, 2009. . O Ouvido Pensante. Tradução Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991. KAMPER, Dietmar. O padecimento dos olhos. In: CASTRO, G. et alli. (Orgs.). Ensaios de complexidade. Porto Alegre: Sulina, 1997. p. 131-137. SHILOAH, Amnon. 2011. The origin of language its link with music according to the theory of Jabir Ibn Hayyan. In: “ Variantology 5. Neapolitan Affairs. On Deep Time Relations of Arts, Sciences and Technologies”, Editorial: König Köln, 2011. p. 477-490. . Estrutura temporal das imagens. In: CONTRERA, M.S. et alli (Orgs.). O espírito do nosso tempo: ensaios de semiótica da cultura e da mídia. São Paulo: Annablume, 2004 . Fantasia. Imagem. Corpo. Biblioteca Digital do CISC. Disponível em: <www. cisc.org.br>. Acesso em: 01 jul. 2013. . Fantasia. Biblioteca Digital do CISC. Disponível em: <www.cisc. org.br>. Acesso em: 01 jul. 2013. SODRÉ, Muniz. Antropológica do Espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. ZIELINSKI, Siegfried. Arqueologia da mídia. São Paulo: Annablume, 2006. ZUMTHOR, Paul. Introdução à Poesia Oral. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. 147 A ritualização nas repúblicas federais de Ouro Preto– MG: dos hinos às “rezas de cachaça” e suas implicações Leonardo Corrêa Bomfim Universidade Estadual Paulista – UNESP [email protected] Resumo A histórica cidade de Ouro Preto – MG há anos vem acolhendo novos habitantes em virtude da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, sendo este crescente número de estudantes responsável por algumas transformações de elementos e práticas do município. Em Ouro Preto existem 68 Repúblicas Federais, sendo grande parte destas, antigos casarões transformados em moradias estudantis, cedidos pela universidade, e que possuem um regimento próprio. A “reza de cachaça” é uma prática apropriada pelos estudantes das Repúblicas Federais de Ouro Preto, que consiste em declamar versos rimados antes da ingestão da bebida. Tal atividade pode ser considerada uma espécie de loa, possuindo, normalmente, uma conotação cômica e lúdica, abordando desde estruturas temáticas religiosas, à exaltação das próprias repúblicas, da sexualidade, e do excesso no consumo alcoólico. Assim como ocorre nas “rezas”, a maioria das repúblicas também possui hinos, sendo estes, habitualmente, apropriações de canções da cultura popular, com ou sem modificações da letra, que exaltam os mesmos temas. Estas atividades, normalmente realizadas em festas nas próprias repúblicas, refletem diversos aspectos da cultura jovem e estudantil ouro-pretana, que, ao transitar entre elementos como tradição e modernidade, hierarquia e a noção de communitas, revela características que se relacionam à tradição oral, ritual, identidade e pertencimento. Desta forma, através de observações etnográficas realizadas entre 2007 e 2010, discutimos neste artigo questões associadas aos conceitos elencados, através de autores como Turner (1974), Hall (2000; 2003), Geertz (1989), entre outros, afirmando esta prática como um resgate e mantenimento da cultura oral popular mineira. Palavras-chave Ouro Preto, repúblicas federais, hinos, “rezas de cachaça” 148 Ouro Preto: aspectos históricos e geográficos A cidade de Ouro Preto - MG localiza-se a cerca de 97 km da capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, possuindo uma população de, aproximadamente, 70 mil habitantes, distribuída em uma área territorial de 1.245,865 km² (IBGE, 2010), situada a 1179 m de altitude. O ponto mais alto da cidade é o Pico do Itacolomi, com altitude de 1722 m, podendo ser observado, praticamente, de qualquer lugar dentro dos limites territoriais citadinos. O município ouro-pretano (gentílico) possui treze distritos, entre eles, Amarantina, Antônio Pereira, Cachoeira do Campo, Engenheiro Correia, Glaura, Lavras Novas, Miguel Burnier, Rodrigo Silva, Santa Rita de Ouro Preto, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Salto, São Bartolomeu, além de, é claro, a própria sede. As cidades limítrofes de Ouro Preto são: Belo Vale, Moeda, Itabirito, Santa Bárbara, Mariana, Piranga, Itaverava, Catas Altas da Noruega, Ouro Branco e Congonhas (OURO PRETO, 2013). Ouro Preto é comumente reconhecida por sua arquitetura colonial, sendo, em 1980, a primeira cidade brasileira a ser declarada Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (GLOBO MINAS, 2013). Além disso, é imprescindível destacar os fatores históricos que desencadearam na fundação da extinta Vila Rica - junção de vários arraiais, da qual tornou-se sede em 1652, e, posteriormente, em 1823, deu origem à cidade de Ouro Preto -, tendo como protagonista a descoberta de ouro e pedras preciosas na região pelos bandeirantes, no século XVII. O período minerador extrativista aurífero, também denominado, mais comumente, como Ciclo do Ouro, resistiu até o final do século XVIII, quando as minas desta região já apresentavam fortes sinais de esgotamento, “deixando como herança vastas terras revolvidas, montes de cascalho e uma enorme erosão em virtude das crateras abertas na mata” (MARCONDES, 2005, p. 57). 149 O ciclo do ouro terminou no final do século XVIII, quando a maioria das minas economicamente viáveis havia se esgotado. Parte da população mineira, então, rumou em direção ao Planalto Central do Brasil, onde encontrou trabalho em fazendas de gado, e outros foram para o Sul, engajando-se em atividades agrícolas. Muitos permaneceram em Minas Gerais, também se dedicando a atividades agrícolas, muitas de natureza de subsistência (BAER, 2002, p. 36). Além de seu histórico extrativista mineral desde a época colonial, sendo uma importante referência e um marco histórico na estruturação social, cultural, política e econômica brasileira, há muito anos Ouro Preto também vem se destacando por seu pioneirismo nas áreas educacionais, onde foram criados, ainda no século XVIII, relevantes polos de estudo e pesquisa nas áreas de farmácia e engenharia. A Escola de Farmácia e a Escola de Minas de Ouro Preto Logo após a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, e a “Proclamação da Independência do Brasil”, em 1822, foi fundada, a partir da Lei nº 140, de 1839 - sancionada pelo Presidente da Província de Minas Gerais - a “Escola de Pharmacia de Ouro Preto” neste mesmo ano. É importante evidenciar que esta foi a primeira escola no Brasil a se dedicar, exclusivamente, ao ensino da profissão farmacêutica, desvinculando-se do curso de Medicina (PROGRAD, 2013). A Escola de Farmácia de Ouro Preto também foi a primeira instituição de Ensino Superior criada em Minas Gerais e a quinta (Faculdade) do Brasil, atraindo, desde aquele momento, diversos estudantes para a cidade mineira. Além deste marco, também podemos citar a criação da tradicional Escola de Minas - dedicada ao ensino de Engenharia neste município -, fundada ainda no século XIX, em 12 de Outubro de 1876. Esta escola foi idealizada por Dom Pedro II, baseando-se, em partes, nos moldes da École Normale Supérieure e fundada pelo bacharel francês em ciências físicas e matemáticas Claude Henri Gorceix (BIBLIOTECA NACIONAL, 2013). Fato de grande relevância a ser também destacado, é 150 o de que esta Escola foi a sexta instituição de Ensino Superior criada no Brasil, comemorando, neste ano de 2013, seu 137º aniversário (ABM BRASIL, 2013). Após aceitar o convite do imperador português, Gorceix concluiu que Ouro Preto seria o local ideal para fundar uma Escola de Minas no Brasil, devido à riqueza de formações geológicas encontradas na região que facilitaria o aprendizado dos alunos. A iniciativa foi toda de D. Pedro II. Em viagem à Europa, entre maio de 1871 e março de 1872, o imperador entrou em contato com Auguste Daubrée, seu colega na Academia de Ciências de Paris e diretor da Escola de Minas, também de Paris. Pediu-lhe um documento sobre a melhor maneira de conhecer e explorar as riquezas minerais no Brasil. Daubrée sugeriu a elaboração da carta geológica e o ensino da geologia por professores estrangeiros ou por brasileiros treinados no exterior. [...] Daubrée, recém-nomeado diretor da Escola de Minas de Paris, não quis abandonar o posto. Ofereceu, em compensação, seus serviços no sentido de procurar alguém que pudesse encarregar-se da tarefa (CARVALHO, 2002, p. 46). A indicação não podia ser mais feliz, pois Claude Henri Gorceix possuía alto preparo e capacidade de direção. Ele escolheu o local e indicou linhas básicas do estabelecimento; trabalhou até 1891, como seu primeiro diretor, executando tarefa meritória (Idem, Ibidem, p. 17). Após quase um século de ensino - marcado por dificuldades e o isolamento geográfico e cultural de Ouro Preto, em razão da decisão de transferência da capital mineira, em 1893, para Belo Horizonte -, em 21 de agosto de 1969, por intermédio do Governo Federal, ambas as faculdades (Escolas) foram incorporadas, instituindo-se a Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP, mantendo ainda, entretanto, um grande prestígio devido à extensa trajetória histórica desde suas fundações. 151 A consolidação da UFOP e das repúblicas estudantis Atualmente a UFOP oferece 37 cursos de graduação presenciais, abrigando cerca de 12 mil estudantes e, se somarmos a este número os cursos de graduação à distância, especialização, mestrado e doutorado, atingiremos a totalidade de, aproximadamente, 16 mil alunos. O corpo docente da instituição é composto por 963 professores, contando ainda com cerca de 800 funcionários referentes ao corpo técnico-administrativo (REVISTA ESCOLHA, 2012). A Universidade, que a cada dia abriga um maior número de estudantes, ampliando as opções de cursos, assim como vagas nos cursos pré-existentes, subdivide seu campus em três cidades: Ouro Preto (sede), Mariana e João Monlevade (UFOP, 2013). Todos estes fatores e características contribuíram para que Ouro Preto se estabelecesse como uma cidade de caráter universitário, 1 e, juntamente à atribuição deste novo status, e a um crescente número de discentes, a comunidade estudantil passou a se organizar e a reivindicar moradias estudantis. De acordo com a pesquisadora Liliane Sayegh, em sua dissertação na área de Arquitetura e Urbanismo, Ouro Preto é a única cidade brasileira a abrigar repúblicas estudantis com características estruturais e funcionais semelhantes às repúblicas dos alunos da Universidade de Coimbra (fundada em 1290), Portugal. A autora ainda frisou que estes elementos se revelam “nos trotes, festas tradicionais, hierarquia interna de funcionamento e a tradição do ex-aluno, além de outros aspectos como a moradia estudantil em casas consideradas patrimônios culturais” (2009, p. 113). 1 É importante destacar que o município não se caracteriza, exclusivamente, por uma cidade universitária, já que é possível identificar em seu território diversas empresas de extrativismo de minérios, como a Vale, Gerdau, Samarco, entre outras. Além disso, também é importante destacar o grande, e constante, fluxo turístico internacional no município, considerado Patrimônio da Humanidade, por sua arquitetura, museus, igrejas, além dos frequentes festivais de arte, congressos e eventos em geral, que movimentam um grande capital em seus hotéis, pousadas, restaurantes, comércio de pedras preciosas, obras de arte, artesanato, etc.. 152 É possível ainda afirmar a existência de indícios de que o sistema de repúblicas ouro-pretano, inclusive seu nome, foi fortemente influenciado pelas Repúblicas de Coimbra, em Portugal, onde diversos brasileiros iam fazer seus estudos - situação que perdurou durante vários séculos, já que no Brasil, como já citado, as instituições de ensino superior só começam a ganhar relevante consistência durante o séc. XIX (SAYEGH, 2009, p. 111). Quanto à terminologia “república” - empregada neste município mineiro para designar uma localidade onde habitam estudantes que dividem, de forma igualitária, as tarefas, responsabilidades e, logicamente, as despesas da residência - existem ainda duas outras versões possíveis para a utilização deste conceito, que, segundo a pesquisadora em Direito, Maria Fernanda Salcedo Repolês, ambas possuem uma conotação política: Por um lado, tal termo alude à autonomia administrativa de que as Repúblicas gozam em relação à Universidade e reconhecida pela própria direção dessa. Por outro, remontase a um fato histórico. Quando do fim da Monarquia no Brasil e implantação da forma republicana, em 1889, os estudantes fizeram uma manifestação por ocasião da visita à então capital de Minas Gerais, do gabinete parlamentar imperial, encabeçado pelo Ministro Ouro Preto. Para demonstrar sua rejeição à Monarquia, os estudantes afixaram cartazes com a palavra ‘República’ nas fachadas das moradias estudantis (2007a, 193). O processo de fundação e estruturação das repúblicas e moradias estudantis em Ouro Preto ocorreu de forma bastante diversificada e em distintos momentos históricos. Cada república possui em sua trajetória particularidades em relação à maneira e a data em que foi obtida a sua casa atual (ou o primeiro local onde se instalou a república), havendo casos de compras, concessões, doações, invasões, construções destinadas a este propósito, entre outros. 153 Primeiramente, os estudantes em Ouro Preto buscavam pensões2 para se alojar, devido ao número reduzido de discentes na cidade3 (CARVALHO, 2002). Entretanto, o historiador e sociólogo Otávio Luiz Machado4, destaca que no início do século XX, em decorrência da transferência da capital mineira para Belo Horizonte, Ouro Preto se encontrava em um declínio econômico, e, diante desta situação de desamparo, a cidade começou a se esvaziar, já que muitas famílias optaram por mudar-se para a nova capital. A partir daí, inúmeros casarões históricos foram desocupados, reduzindo também o valor do aluguel no município, o que favoreceu a criação de repúblicas em território ouro-pretano, seja na forma de ocupação ou de locação dos imóveis. O autor ainda defende que as famílias, na época, preferiam liberar as casas, pois “era melhor deixá-las nas mãos dos estudantes que a cuidariam do que deixar desabá-las ou ser ocupadas por estranhos. A desvalorização dos imóveis era às vezes tão gritante que achavam melhor deixar de quitar os impostos, pois não compensava” (MACHADO, 2007b, p. 7). Como as fontes bibliográficas sobre as repúblicas de Ouro Preto são bastante escassas, prevalecendo, em sua maioria, depoimentos orais, reportagens, fotos e documentos dispersos ou imprecisos, muitas vezes em condições ruins, é necessário destacar a dificuldade em se recolher, com exatidão, a história destas moradias, especialmente as mais antigas e tradicionais. Sendo assim, neste artigo, não irei questionar de forma alguma a data de fundação de nenhuma destas residências, nem possuo esta pretensão como objetivo. Portanto, serão acatadas as datas de fundação estipuladas pelas próprias repúblicas, confiando que estas possuem documentos suficientes para a comprovação de seu período de existência. 2 Entende-se aqui como pensões, quartos alugados por moradores da própria cidade para estudantes advindos de outras localidades. 3 José Murilo de Carvalho evidencia que o número de engenheiros formados pela Escola de Minas era de apenas 275 entre os anos de 1875 e 1922. 4 Ex-morador da República Aquarius. 154 De acordo com o depoimento do ex-reitor da UFOP, Fernando Borges Campos5, na década de 1930 já havia em Ouro Preto cerca de seis repúblicas (SAYEGH, 2009, p. 115). Este proferimento coincide com as datações apresentadas pelas próprias repúblicas, sendo, as seis mais antigas, em ordem de fundação: Castelo dos Nobres, 1919; Arca de Noé, 1927; Canaan, meados da década de 1920 ou 1930 6; Vaticano, 1935; Consulado, 1936 e Pureza, 1939 (ARCA DE NOÉ, 2013; CANAAN, 2013; CASTELO DOS NOBRES, 2013; CONSULADO, 2013; MACHADO, 2007a; PUREZA, 2013; VATICANO, 2013). Todas estas repúblicas citadas estão localizadas no centro histórico da cidade, em bairros - que apesar de não serem oficialmente delimitados pela Prefeitura de Ouro Preto, demarcam características e questões culturais e sociais -, como o Antônio Dias e a Vila dos Tigres. De acordo com os testemunhos recolhidos no livro Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: Percursos e perspectivas (MACHADO, 2007a), e os dossiês organizados pelos próprios moradores/ex-moradores das repúblicas, através de solicitação da REFOP7 (MACHADO, 2013a; 2013b; 2013c), é possível observar que o processo de apropriação destas casas, nesta época, foi bastante semelhante. A República Castelo dos Nobres teve como primeira residência um antigo casarão alugado, que, no século XIX, foi habitado pelo Barão de Sa5 Que também é ex-morador da República Baviera. 6 O site oficial da república defende que sua fundação ocorreu em meados de 1920 (CANAAN, 2013), entretanto, o livro das Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana afirma que a república foi fundada em meados de 1930 (MACHADO, 2007a). A data ainda permanece inexata devido ao fato de ter ocorrido um incêndio no antigo Fórum de Ouro Preto que destruiu diversos documentos. 7 A Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto, REFOP, foi fundada em 2006 e tem como objetivo uma maior unificação e representação das Repúblicas Federais desta cidade. A REFOP defende os direitos e deveres destas instituições, além de estabelecer certas regras que padronizem alguns parâmetros na organização e estruturas das moradias estudantis, respeitando, obviamente, as peculiaridades e tradições de cada residência. A REFOP ainda busca estabelecer uma maior integração entre os moradores de repúblicas e os cidadãos ouro-pretanos. 155 ramenha, no bairro ouro-pretano das Lajes (ROCHA, 1990, p. 28; MACHADO, 2013a, p. 467). O Castelo dos Nobres mudou-se ainda para dois outros imóveis, e, finalmente, em 1957, a pedido dos moradores da república da época, a Escola de Minas cedeu o casarão localizado na Rua Bernardo Vasconcelos, 91 para abrigar os estudantes. Esta casa havia sido destinada ao uso dos professores da Escola de Minas, contudo, naquele momento ela estava desabitada, desta forma, estes discentes que se encontravam em dificuldades para o pagamento do aluguel, encaminharam este pedido que foi aprovado pelo Reitor da Escola (MACHADO, 2013a, p. 469-470). A República Arca de Noé também transitou por vários locais de Ouro Preto até obter um imóvel definitivo. O primeiro imóvel alugado a abrigar esta moradia estudantil foi a casa histórica do inconfidente Tomás Antônio Gonzaga, localizada na Rua Cláudio Manoel. Em seguida transferiu-se para a Praça Tiradentes, e, posteriormente, para trás da Escola de Minas, adquirindo, apenas em 1958, por uma doação do empresário Antônio Ermírio de Moraes (fundador do Grupo Votorantin) à Casa do Estudante da Escola de Minas – CEEM 8, a construção de sua moradia estudantil que se mantém, até os duas atuais, no mesmo local (MACHADO, 2007a, 37-38). As repúblicas Canaan, Vaticano, Consulado e Pureza também possuem um histórico semelhante, sendo, inicialmente, sediadas em imóveis locados, e, com o passar do tempo, fixadas em um local através da doação de alguma entidade como a Escola de Minas, Casa do Estudante, ou UFOP 8 A Casa do Estudante de Ouro Preto – CEOP foi criada em 1946 a partir da Associação de Ex-alunos da Escola de Minas, “entidade sem fins lucrativos com o objetivo de adquirir casas para se tornarem repúblicas visando especialmente promover todas as formas de proteção e beneficência aos estudantes de Ouro Preto.” Faziam parte desta associação ex-alunos da Escola de Farmácia e da Escola de Minas. (SAYEGH, 2009, p. 116). “Em 1953, surge uma outra entidade, a Casa do Estudante da Escola de Minas (CEEM), composta somente por ex-alunos da Escola de Minas. Esta entidade teve maiores esforços em direção à angariação de fundos para a construção de novas repúblicas estudantis: em 1963, inicia uma campanha através do pedido de doação de verbas por empresas e embaixadas de diversos países no Brasil para a construção de novas repúblicas destinadas aos alunos da Escola de Minas” (SAYEGH, 2009, 117). 156 (CANAAN, 2013; CONSULADO, 2013; MACHADO, 2007a; PUREZA, 2013; VATICANO, 2013). No ano de 1982, a UFOP construiu catorze casas próximas ao campus – Morro do Cruzeiro – subdivididas em quatro alas, para se tornarem Repúblicas Federais (BARBALHO, 2009; SAYEGH, 2009, p. 120-121). Entre estas, estavam as repúblicas Quarto Crescente - QC, Convento (1ª ala); Unidos por Acaso - UPA, Bastilha, Doce Mistura, Pasárgada (2ª ala); Covil dos Gênios, Koxixo, Senzala, Peripatus (3ª ala); Lumiar, Arte & Manha9, Palmares, Vira Saia (4ª ala). Ainda na mesma década, em 1988, foram construídas e inauguradas as repúblicas Ovelha Negra e Cosa Nostra, próximas às quatro alas de Repúblicas Federais também no bairro Bauxita. 10 Ocorreram também alguns casos de invasões de casas no final da década de 1980 e início de 1990, assim como determinadas reivindicações, por parte das estudantes do gênero feminino, de que havia poucas Repúblicas Federais femininas.11 Desta forma, em 1986, com a criação da “Comissão de Moradia” pelo Diretório Central dos Estudantes - DCE, “são levadas adiante sucessivas invasões às casas do centro histórico, pertencentes ao patrimônio da UFOP, mas que se encontravam subutilizadas, a fim de reivindicar a transformação dessas casas em novas repúblicas, o que realmente se efetivou” (SAYEGH, 2009, 122). Foram estes os casos da República Saudade da Mamãe, e das repúblicas femininas Tanto Faz, 9 A Arte & Manha é a única República Federal mista, ou seja, que abriga moradores tanto do sexo feminino quanto masculino. 10 As Repúblicas Federais femininas do campus eram: Quarto Crescente, Convento, Doce Mistura, Koxixo, Lumiar, Palmares e Ovelha Negra. No ano de 2008 a República Toka (feminina) foi contemplada com uma moradia no campus, na 1ª ala, tornando-se federal. Processo semelhante ocorreu com a República Tigrada (masculina) que recebeu, logo após, uma moradia na 1ª ala, no entanto, a Tigrada, que já era federal, teve um histórico mais conturbado. 11 Antes do ano de 1982, quando as Repúblicas Federais do campus foram construídas e entregues aos estudantes, o número de repúblicas femininas era ainda menor. Foram constatados alguns exemplos cuja fundação antecede esta data, como, por exemplo, Convento, 1969; Toka, 1972; Rebu, 1974; Cirandinha, 1977; Xamego, 1977; Bico Doce, 1978; Patotinha, 1979 e Favinho de Mel, 1979. 157 Maria Bonita (MACHADO, 2007b). A República Virada pra Lua, assim como a República Bem na Boca – ambas localizadas no local conhecido como “brejo”, que abriga ainda às repúblicas femininas Tanto Faz e Chega Mais -, também são exemplos de moradias estudantis que foram negociadas entre a UFOP e a Comissão de Moradia, a partir de uma pressão do crescente número de estudantes do sexo feminino nesta universidade. Estas repúblicas foram fruto de invasões em imóveis ociosos da UFOP, ocupações de institutos da universidade e uma organização e união estudantil em prol de melhorias e ampliações no número de moradias estudantis federais. 12 O sistema de autogestão das Repúblicas Federais Alguns anos após estas negociações, as repúblicas já nutriam um status de estruturas quase autônomas perante a administração da UFOP, sendo, então, respeitadas por esta razão. No entanto, essa questão gerou certo desconforto por parte de órgãos judiciários que começaram a questionar a ocupação dos imóveis da União pelos discentes da UFOP, sem o uso direto da instituição, e de uma forma não-onerosa, No ano de 1990, o TCU - Tribunal de Contas da União - solicitou explicações sobre o ocorrido, sendo a questão justificada pelo então reitor Fernando Antônio Borges Campos, que, em resposta, ressaltou as distinções entre alojamento e república: A ‘república’ possui características peculiaríssimas, e como o próprio nome revela, tentando reproduzir no convívio diário entre eles, quinze ou vinte estudantes, por um período não menor do que quatro ou cinco anos, as regras sociais de formação de um cidadão. Existe em 12 Ainda hoje, o número de Repúblicas Federais permanece, em sua maioria, masculina, com um total de 53 repúblicas, em oposição a 15 repúblicas femininas. Além de outros fatores, certamente, essa característica é um reflexo histórico, já que, por diversos anos, o número de estudantes masculinos foi muito superior ao número de estudantes do gênero feminino, devido às dificuldades de transporte para Ouro Preto, às questões de moradia na cidade e aos cursos disponíveis desde a criação da Escola de Minas, Escola de Farmácia, e da UFOP, propriamente dita. 158 Ouro Preto um ‘alojamento’ situado no campus do Morro do Cruzeiro [...]. A administração da UFOP, em 75/76, cedeu o espaço a estudantes de graduação, alojamento implantado nos moldes convencionais. A prática demonstrou a inadequação sistemática, condenada por estudantes, professores, administração e cultura local. [...] Esse processo cultural, tradicional, gerou inevitavelmente, um forte sentimento de repúdio a qualquer iniciativa externa contra suas estruturas formais [das repúblicas]. A instituição escolar compreendia estas razões e mesmo durante os governos militares respeitou esta cultura local, que nunca admitiu sequer interveniência do DCE e/ ou de Diretórios Setoriais (Diretório Acadêmico das Escolas da Universidade) [...]. O assunto ‘república estudantil’ em Ouro Preto integra há muito tempo os relatórios de auditoria sobre a UFOP, é raiz na história da Instituição, tornando-se necessário mostrar em linguagem não processual que ‘república estudantil’ em Ouro Preto não é somente residência de estudantes mas uma Instituição. (CAMPOS, 1990, grifo do autor apud SAYEGH, 2009, p. 122-123). Durante minha graduação em Música (Licenciatura) na Universidade Federal de Ouro Preto, fui morador da República Castelo dos Nobres, entre os anos de 2007 e 2010, e tive acesso ao histórico da casa, assim como algumas informações sobre sua fundação, mudanças de local, estruturação, trajetória, ex-moradores, moradores, e, obviamente, ao regimento interno desta, moradia estudantil quase centenária. Apesar das repúblicas federais possuírem, em geral, um sistema de organização interna bastante semelhante, é preciso enfatizar que cada uma destas 68 moradias estudantis, sendo tratadas como uma espécie de “instituição”13, possui as suas peculiaridades, sua identidade14, suas regras e o seu regimento, que, obviamente, oscila, de acordo com a geração 13 Conforme a definição encontrada no dicionário de português Michaelis: “complexo integrado por ideias, padrões de comportamento, relações inter-humanas e, muitas vezes, um equipamento material, organizados em torno de um interesse socialmente reconhecido” (Michaelis, 2013). 14 Conceito tratado neste texto, posteriormente, com maior aprofundamento. 159 e, desta forma, todos estes elementos não devem ser generalizados. Em 2009, a Reitoria da UFOP solicitou que cada república apresentasse um dossiê completo, elucidando as características e história da casa - com fotos e depoimentos - além de exposição de seus critérios e processos de seleção de novos moradores, gestão, festas e confraternizações tradicionais que geram renda, ou não, que ocorrem nestes bens públicos. A REFOP também participou deste processo organizacional, como uma forma de unificação, apresentação e justificativa dos meios e processos ocorrentes no interior destas casas. O material recolhido também se encontra presente nos livros de Machado (2013a; 2013b; 2013c), como uma grande fonte de informações destas repúblicas. Desta forma, acredito que seria mais interessante abordar o regimento das repúblicas a partir de minha perspectiva e vivência na Castelo dos Nobres, estabelecendo como recorte temporal os anos correspondentes entre 2007 e 2010, e focando na gestão desta casa durante esta época. Como a autogestão das repúblicas não é o foco principal desta comunicação, sendo este um tema bastante vasto e passível de amplas e densas discussões, trago à luz apenas elementos elencados como indispensáveis para compreender a relação das repúblicas com seus hinos e “rezas de cachaça”. Em toda República Federal 15, assim como em grande parte, das Repúblicas Particulares, os recém-ingressados na UFOP (calouros16) que tem a intenção de morar em uma república, passam por um processo de ad15 Consideramos neste artigo o termo “República Federal”, como forma de definir todas aquelas residências em que não é cobrada, dos moradores, uma locação do imóvel. Sendo assim, neste critério, estão inseridas as repúblicas pertencentes (patrimônio) à Escola de Minas, à UFOP, à Casa do Estudante, Fundação Gorceix, etc. É importante destacar que, todas estas repúblicas incorporam a Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto – REFOP, mesmo não pertencendo à UFOP, ou seja, à Federação (à União). Esta isenção do aluguel, na verdade, é o principal fator que diferencia uma República Federal de uma República Particular, já que a Particular possui esta conta mensal. 16 Mas comumente denominados “bixos” em Ouro Preto, com a grafia de “X” ao invés de “CH”. 160 missão conhecido como “batalha de vaga”. Neste procedimento, o “bixo”, apesar de já habitar a casa, ainda não é considerado um “morador” 17 e, para que isto ocorra, o calouro deve passar por esta fase em que são analisados diversos elementos como: entrosamento com o resto dos moradores, amizade, organização, limpeza, confiança, responsabilidade, cuidado e mantenimento da casa, respeito e ajuda mútua aos outros moradores, salvaguarda de tradições republicanas, como as festas de aniversário da república, Carnaval, entre outras. É necessário que o calouro, neste momento, compreenda o sistema de autogestão da casa, e, caso queira permanecer na república, respeitar as regras, tradições e os moradores mais antigos. É importante destacar que, apesar de haver uma hierarquia, as repúblicas não se enquadram no perfil de uma instituição semelhante a uma empresa, ou algo do gênero, pois, estas moradias estudantis prezam muito pela forte amizade entre os moradores e por uma noção de solidariedade, denominada por muitos como “espírito republicano”. O espírito fraternal das Repúblicas de Ouro Preto era mantido por aquelas reuniões em torno da mesa. As Repúblicas eram verdadeiras escolas da vida que moldavam o caráter dos estudantes forjando-o para a vida profissional. Ali se aprendia a conviver e tolerar, suplantar as divergências, respeitar a opinião alheia, respeitar a vizinhança, aprimorar o espírito de solidariedade. Todos partilhavam das dificuldades e alegrias de seus colegas. Seguiam-se regras próprias de cada república, em geral semelhantes (DEQUECH, 1984, p.256). Em consonância ao comportamento humano que remonta às tradições mais remotas de ritualizar os ciclos/fases vitais, em suas inúmeras for17 Destaco aqui estes status, pois nestas repúblicas há um sistema hierárquico em que os mais velhos (veteranos) estão localizados em uma posição privilegiada, enquanto o “bixo” se situa no posto mais baixo da hierarquia. Basicamente, a relação hierárquica decrescente está disposta da seguinte forma: ex-alunos (ex-moradores), do mais antigo ao mais jovem, morador mais velho (decano), moradores (por ordem de entrada na república), morador mais novo (“semi-bixo”) e, por último, o “bixo”. 161 mas culturais, se tratando, especificamente neste caso, da transição da juventude para a fase adulta, é possível considerar a “batalha de vaga” como uma ritualização, um ritual de passagem para o ingresso na vida estudantil republicana – simbolizando a independência de sua família, a preparação para uma nova etapa a ser vivida e a criação de uma nova identidade. É o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma sociedade especial a outra e de uma situação social a outra, de tal modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas, tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber, nascimento, puberdade social, casamento [...] A cada um desses conjuntos acham-se relacionadas cerimônias cujo objetivo é idêntico, fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a outra situação igualmente determinada. Sendo o mesmo objetivo, é de todo necessário que os meios para atingi-lo sejam pelo menos análogos [...] Aliás, o indivíduo modificou-se, porque tem atrás de si várias etapas, e atravessou as diversas fronteiras (GENNEP, 2011, p.24). Na fase de “batalha de vaga”, como forma de subdivisões de tarefas da casa, o calouro se encarrega dos trabalhos mais braçais e, caso venha a ser “escolhido”, receberá um apelido e ascenderá ao posto de morador, em que assumirá outras responsabilidades perante a república. A “escolha” é uma comemoração bastante marcante para o ingressante na república, sendo um objetivo almejado por todos que optaram por estas moradias estudantis, já que, este ritual garante a vaga do “bixo” como “morador” da casa. Como é de praxe em diversos rituais, esta transição é marcada por muita comida, bebida, cantorias (hinos e “rezas de cachaça”) e convidados. No caso da Castelo dos Nobres, o “bixo” se torna, agora, um “nobre”18. Até o início do ano de 2009, ocorriam alguns problemas de denúncias de trotes no interior das repúblicas, devido a alguns abusos por parte de 18 Na República Casablanca, o morador é chamado por “casablanquenho”; na Tabu, “tabuano”, na Rebu, “rebutante”, na Hospício, “louco”, etc. 162 certos veteranos. Entretanto, com a intervenção do Ministério Público Federal, e, consequentemente da REFOP, nos trotes das Repúblicas Federais, estes foram, terminantemente proibidos e praticamente cessados, mantendo-se apenas as tradições que não comprometiam a moral ou a dignidade do calouro, e que prezavam por um senso de comunidade e não de segregação. Também foram promovidos os chamados “trotes solidários”, como doações e trabalhos comunitários, que já ocorriam anteriormente, por parte das repúblicas, mas que ganharam visibilidade com o apoio da universidade desta prática. De acordo com o Estatuto das Residências Estudantis - promulgado pela UFOP em agosto de 2010, através da Resolução CUNI nº 1150, com o consenso do reitor da época, Prof. Dr. João Luiz Martins -, algumas alterações foram efetuadas, porém, os objetivos destas moradias se mantiveram 19: a) oferecer ao estudante morador um ambiente sadio, capaz de proporcionar-lhe as condições de moradia e uma melhor aplicação nos estudos, atenuando preocupações de outra natureza; b) contribuir para o desenvolvimento da formação humanística do estudante, atribuindo-lhe, ao mesmo tempo, a responsabilidade de administrar o prédio e de promover a boa convivência coletiva e o respeito ao próximo; c) estimular e desenvolver, entre os estudantes, o espírito de solidariedade e cidadania, dentro de um clima de permanente compreensão dos seus direitos e deveres no ambiente comunitário; d) oferecer ao estudante universitário condições de moradia em ambiente que se assemelhe ao familiar e, consequentemente, propicie melhores condições de estudo (RESOLUÇÃO CUNI, 2010, p. 2). Sendo que os deveres dos moradores de repúblicas estudantis foram elencados como: a) administrar a Residência, zelando pela sua conservação e manutenção; 19 Se compararmos ao Estatuto das Residências Estudantis de 2006, promulgado na Resolução CUNI nº 779, assinado em agosto de 2006 pelo mesmo reitor (RESOLUÇÃO CUNI, 2006). 163 b) respeitar os direitos dos demais moradores, colegas e funcionários da UFOP; c) indenizar danos e prejuízos materiais causados ao próprio prédio residencial, aos móveis e utensílios da Residência, bem como qualquer dano causado a UFOP em decorrência da utilização do prédio; d) manter atualizado o cadastro de moradores na CAC; e) garantir a ocupação integral da Residência, mantendo o número exato de moradores previamente definido; f) vedar a permanência de pessoas estranhas no recinto das residências, g) coibir a aplicação de brincadeiras constrangedoras que atentem contra os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e das demais garantias individuais constitucionalmente garantidas; h) zelar pela ordem e disciplina da casa; i) encaminhar os problemas relacionados com enfermidades e casos de acidentes ocorridos na Residência, comunicando em tempo hábil a CAC; j) zelar pela boa convivência com os vizinhos e com a comunidade do bairro em que está inserida a Residência Estudantil; l) participar da assembléia dos moradores para apreciar e aprovar o regimento interno da casa e/ou possíveis alterações que sejam apresentadas pelos moradores; m) abster-se de fazer uso ou estar de posse de entorpecentes ou alucinógenos ilícito no recinto da Residência Estudantil; n) vedar a guarda de armas de qualquer tipo na Residência Estudantil; o) cumprir e fazer cumprir este Estatuto, bem como o Regimento interno da casa. p) realizar obras no imóvel somente com a devida aprovação da Prefeitura Universitária e dos demais órgãos competentes (RESOLUÇÃO CUNI, 2010). Essencialmente, os rituais mais comuns em uma trajetória republicana seriam: “batalha de vaga”, “escolha”, “festas do 12 de Outubro20” (ou festas do 21 de Abril), “formatura” e “retorno como ex-aluno”. A formatura 20 Quando é comemorado o aniversário da Escola de Minas, e juntamente à esta data, também se celebra o aniversário de grande parte das Repúblicas Federais. No dia 21 de Abril é comemorado o aniversário das Repúblicas Federais do campus, pois, foi nesta data que as casas foram entregues aos estudantes. Algumas repúblicas comemoram tanto a “Festa do 12” quanto à “Festa do 21”. 164 também é um episódio importantíssimo na trajetória do estudante, pois, além de concluir o seu curso de graduação – iniciando uma nova fase em sua vida -, o recém-formado inaugura em sua república um “quadrinho” com sua foto, que permanecerá na república mesmo após seu falecimento. Logicamente, é seguida uma ordem de quadrinhos, desde o formando mais antigo até o mais recente, e, novamente, como mais uma passagem ritualística, são entoadas “rezas de cachaça”, hinos das repúblicas, acompanhadas de diversas bebidas, comidas, contando com a presença da família e convidados. Figura 1. A cozinha e os “quadrinhos” da República Castelo dos Nobres. Foto do morador Hugo Teodoro, Ago. 2013. Os processos de ritualização da cachaça e dos hinos Desde o princípio de sua fabricação, a cachaça possui um histórico tido como “desqualificado e negativo”, composto por consumidores das camadas sociais menos “privilegiadas” - entre índios, escravos negros, pobres e até mesmo animais, com o intuito de “fornecer um suplemento calórico para sustentá-los nos trabalhos rudes e na vida severa a que eram 165 submetidos” (VILLELA, 2008, p. 10). No entanto, apesar de conservar, até os dias atuais, certa conotação destituída de mérito, esta bebida etílica tem se mantido, juntamente ao samba (carnaval) e ao futebol, como um elemento que compõe o tripé a sustentar os símbolos da cultura popular brasileira, atingindo, no ano de 2012 o título de Patrimônio Histórico Cultural do Rio de Janeiro (VÍDEOS R7, 2013). A cachaça, além de ser um artigo de exportação nacional, desde meados do século XVIII (VILLELA, 2008, p. 10), extremamente conhecido no exterior como um elemento da identidade brasileira, também pode ser encarada como uma dimensão simbólica da “brasilidade”. Assim como o vinho é, comumente, associado à Itália e Portugal, a tequila ao México, o champanhe à França, a vodka à Rússia e o uísque à Escócia, a cachaça, a partir dos esforços de diversos integrantes do meio artístico, político, cultural e industrial, também se consolidou como um dos símbolos nacionais brasileiros. Desde os desenhos animados de Walt Disney, em que o personagem Pato Donald conhece Zé Carioca e descobre o ritmo do samba através das doses de cachaça em Copacabana (SALUDOS AMIGOS, 1942)21, às representações de Inezita Barroso em “Marvada Pinga” (1953), de Sérgio Reis em “Pinga ni mim” (1987), ou da notória marchinha “Cachaça (não é água não)” (1953)22, entre outras canções que enaltecem o seu consumo, a bebida tem adquirido relevância no cenário nacional e internacional, como um produto essencial em diversas manifestações populares, religiosas, sociais e, logicamente, no setor econômico. Sua origem é datada por volta da terceira década dos Quinhentos, em engenho de cana-de-açúcar na Capitania de São Vicente (destinada a 21 Fazendo parte de uma política de “boa vizinhança” de Walt Disney, que buscava expandir as suas relações com países da América do Sul nos anos 1940, selecionando a composição “Aquarela do Brasil” (1939) como um símbolo musical para representar este país, sendo, seu gênero musical, denominado por diversos teóricos, posteriormente, como samba-exaltação. 22 “Marvada Pinga” ou “Moda da Pinga” – compositor: Raul Torres e Laureano (SANT’ANNA, 2000, p. 91); “Pinga ni mim” – compositor: Sérgio Reis (NEPOMUCENO, 1999, p, 198); “Cachaça” – Mirabeau, L. de Castro e H. Lobato (TINHORÃO, 2002, p. 67). 166 Martim Afonso de Souza em 1532) [...] Pernambuco também reivindica o troféu; mas tudo indica que sua data para a origem da cachaça é posterior; no entanto, não há certeza entre os especialistas; de qualquer modo, essas datas são muito próximas (VILLELA, 2008, p. 9-10). Como destacou o historiador e antropólogo Luis da Câmara Cascudo, a bebida também já foi utilizada como moeda de troca para a compra de escravos na África, sendo que O tráfico da escravaria impôs valorização incessante. Aguardente da terra, a futura cachaça, era indispensável para a compra do negro africano e ao lado do tabaco em rolo, uma verdadeira moeda de extensa circulação. Além de ser jubilosamente recebida pelo vendedor na Costa d’África, figurava necessariamente como alimento complementar na trágica dieta das travessias do Atlântico. O escravo devia, forçosamente, ingerir, todos os dias, doses de aguardente, para esquecer, aturdir-se, resistir (1986, p. 24). Atualmente, apesar de ainda manter uma “aura demoníaca, anarquista, potencialmente desagregadora” (VILLELA, 2008, p. 10), o status da cachaça se encontra em postos contraditórios e flutuantes, ora como causadora de vícios e de mazelas nas camadas mais baixas da sociedade e ora como produto de alto valor e requinte para degustadores em elegantes bares e restaurantes das cidades. No documentário “Estrada Real da Cachaça” (2008), do diretor Pedro Urano, é possível destacarmos diversas relações sociais que ocorrem com o intermédio da bebida, como uma espécie de elemento aglutinador, seja ela relacionada ao trabalho, associada à religião ou às manifestações populares. O estado de Minas Gerais talvez seja atualmente a região na qual a tradição da bebida esteja mais arraigada, tanto pelo número de alambiques, pelas tradicionais cachaças de algumas cidades, ou mesmo pela simples associação de qualidade desta bebida à esta região, sendo realizada por grande parte dos brasileiros. A cachaça faz parte do coti- 167 diano de diversas comunidades, tanto como um “complemento alimentício”, ou mesmo como um fator essencial aos rituais acima citados. Ouro Preto, um dos municípios pertencentes ao trajeto da Estrada Real, possui um cenário semelhante ao descrito, sendo a bebida consumida com bastante frequência em bares do município pelos locais (autodenominados “nativos”), assim como no interior das repúblicas pelos estudantes. É preciso ressaltar ainda que o propósito desta comunicação não é legitimar, favorecer ou justificar o consumo deste destilado, tampouco defender seus excessos23, mas sim, trazer à luz estas práticas das “rezas de cachaça” e dos “hinos” republicanos - temas praticamente não encontrados ou analisados na bibliografia - como rituais que refletem e reforçam características da identidade de um grupo estudantil. O teórico Alceu Maynard Araújo (1977), que registrou loas proferidas à cachaça, no município de Piaçabuçu – AL, em 1953, definiu o ritual como “rodada”, sendo este, o cerimonial no qual o participante precisa dizer loas à cachaça. Na “rodada”, aproximam-se do balcão de uma bodega, e num copo comum o bodegueiro entorna a cachaça até quase transbordar. A pessoa de quem partiu o convite da “rodada”, tomará o copo, derramará um pouquinho no chão e dirá: “este é para o santo”, e o dará a um dos companheiros, o qual, tomando um gole passará depois o copo para outro. É a “rodada” (ARAÚJO, 1977, p. 131). O autor ainda caracteriza o termo “loa” como Loas – As loas de cachaça se dão em geral por ocasião de alguma festa ou, mais comumente, quando há a ajuda vicinal que é o “batalhão”. Reúnem-se várias pessoas e ao passar o copo 23 Até porque, tais abusos, recentemente, no ano de 2012, ocasionaram no falecimento de dois estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto, ao que, tudo indica, por excesso de álcool no sangue. Daniel Macário de Mello Júnior era aluno de Artes Cênicas na universidade e faleceu aos 27 anos. Pedro Silva Vieira era estudante de Química Industrial e possuía 25 anos quando faleceu (PORTAL R7). 168 ou cuia de cachaça, proferem uma loa. [...] A pessoa ao tomar o gole de cachaça profere uma loa, a que recebe faz o mesmo ao passar à outra e assim vão se sucedendo elogios versificados, improvisados ou não, à cachaça. A loa é uma forma lúdica muito em voga nesta comunidade (ARAÚJO, 1977, p. 132). É possível inferir que as práticas das “rezas” ou “loas” de cachaça são apropriações dos estudantes ouro-pretanos da cultura oral brasileira, como podemos observar semelhanças no documentário de Pedro Urano (2008) e nos (mais de quarenta) versos recolhidos por Francisco Villela24 em “Ave, Cachaça!” (2008) e por Alceu Maynard Araújo (1975, 127-132; 265-269), além de, logicamente, algumas criações e adaptações dos próprios estudantes. No entanto, seria necessária uma pesquisa muito aprofundada, para estabelecer as possíveis origens desta tradição, que, de acordo com Villela “é milenar a louvação à bebida que se vai ingerir e a oferta de uma parte para entidades e deuses, como forma de homenagem e de pedido de proteção” (2008, p. 11), estando presentes em documentos desde a “Ilíada” de Homero, nos registros sobre a libação (libatio) romana. Assim como nestes locais citados, é muito comum escutarmos ecoando nas ladeiras de Ouro Preto os brados de um estudante, ou de um grupo de discentes, entoando uma “reza de cachaça” ou o hino de uma república durante uma confraternização. Conforme elucidado anteriormente, a “reza de cachaça”, nesta cidade, consiste em declamar versos, normalmente rimados, raras vezes improvisados, de conotação cômica e lúdica, baseados em referências temático-religiosas e que evidenciam aspectos como o enaltecimento da bebida, da sexualidade, ou mesmo da república, etc. Podemos notar algumas destas características nas “rezas”: 24 Provenientes de cidades de grande parte do Brasil como Brasília – DF; Anápolis – GO; Juiz de Fora – MG; Belo Horizonte – MG; Inconfidentes – MG; Itajubá – MG; Maria da Fé – MG; Araçuaí – MG; Manaus – AM; Atibaia – SP. Além de rezas provenientes dos estados do Mato Grosso; Piauí; Bahia; Rio de Janeiro; Paraíba e de outros países como Espanha e Portugal (VILLELA, 2008, p. 99-101). 169 Por Nosso Senhor Jesus Cristo por Nossa Senhora das Graças transforme a Represa de Três Marias em uma represa de cachaça e abre as comportas que “nóis” comporta Deus é pai e a cachaça vai.25 As “rezas” que carregam uma conotação sexual e jocosa se assemelham bastante aos chamados “versos de rodeio” – principalmente na questão letrística e no ritmo da declamação, pois, a musicalidade, a linearidade melódica, é distinta -, contudo, não seria possível afirmar qual dessas práticas é a antecessora. Um exemplo��������������������������������� de uma loa compartilhada por estas duas distintas manifestações seria: Morena, “num” sei se devo, “num” sei se posso, Te levar pra cama e estremecer (apertar) seus “zósso” Te fazer um “fi” e dizer que é nosso (COSA NOSTRA, 2013; RODEIO, 2013). Apesar de possuir o seu papel social, assim como qualquer bebida, a cachaça, no interior das repúblicas possui outras conotações, que retratam e substanciam diversos aspectos observados no convívio social dos estudantes que optam por estas moradias estudantis. Entre estes aspectos, podemos notar uma característica interessante por sua dimensão paradoxal, como por exemplo, no momento em que são recitadas “rezas” ou mesmo os hinos das repúblicas, é possível observar uma desfragmentação da noção hierárquica, ou seja, das estruturas estabelecidas anteriormente (e interiormente), prevalecendo o conceito de communitas cunha- 25 Esta “reza” foi encontrada (ouvida) em diversas repúblicas, sendo frequentemente declamada em Ouro Preto. O verso “Deus é pai e a cachaça vai” é uma utilização bastante comum, com efeito de conclusão das “rezas”. 170 do por Victor Turner. Os indivíduos são destituídos de seus postos e são alocados em um status liminar, efêmero, concebido como: a passagem entre “status” e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e logicamente articulados. Passagens liminares e “liminares” (pessoas em passagem) não estão aqui nem lá, são um grau intermediário. Tais fases e pessoas podem ser muito criativas em sua libertação dos controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da ordem. A “communitas” é um relacionamento não-estruturado que muitas vezes se desenvolve entre liminares. É um relacionamento entre indivíduos concretos, históricos, idiossincráticos. Esses indivíduos não estão segmentados em funções e “status” mas encaram-se como seres humanos totais. (TURNER, 1974, p. 5). Logicamente, só é possível atingir este estado de liminaridade, de comunhão, quando a prática é entoada por todos, ou por, pelo menos, grande parte do grupo presente naquele “espaço-tempo”. Neste caso, os indivíduos transcendem à estrutura hierárquica e, de copos levantados e vozes (brados) em uníssono, priorizam a exaltação destes temas, gerando um sentimento de pertencimento à comunidade, principalmente por esta prática/conhecimento ser transmitida oralmente – ampliando o contato. É muito comum observarmos estas atividades em festas (denominadas localmente por “rocks”) como formaturas e “escolhas” – rituais de passagem, transição -, mas não são exclusivas destas celebrações. Nas repúblicas, as “rezas” também podem ser proferidas por indivíduos isolados, um por vez, semelhante à “rodada” observada por Araújo (1975), porém, nesta acepção adquirem um caráter mais lúdico, em que cada participante recita uma “reza” antes de ingerir a bebida e é repassado o mesmo copo até que esteja vazio. Nesta prática a hierarquia é preponderante, já que, é esta a estabelecer a ordem das “rezas” e tragos. No caso dos hinos, em que praticamente todos estes elementos estão reunidos, grande parte das vezes é priorizada a exaltação da república, como podemos observar no caso da República Tabu: 171 Uma vez Tabu, Tabu até morrer Um “tabuano” eu hei de ser É o maior prazer, vê-la brilhar Seja na Escola, seja no bar Beber, beber, beber, Uma vez Tabu, Tabu até morrer26. Ainda é possível ressaltar a designação de algumas canções da cultura popular brasileira, elencadas por ex-moradores mais antigos e ressignificadas, com o intuito de que, teoricamente, poderiam criar uma representação do “espírito republicano” de sua “instituição”, ou que possuiriam, de certa forma, uma citação, temática semelhante, ou um sentimento de nostalgia ao nome da moradia estudantil. Como nos exemplos de: “Vou-me embora pra Pasárgada”, poema de Manuel Bandeira (1924) musicado por Paulo Diniz (1973), hino da República Pasárgada; “Tu és o MDC da minha vida” (1975), de Raul Seixas e Paulo Coelho, hino da Palmares e Convento; “Perigosa” (1977), de Rita Lee, R. Carvalho e N. Motta, hino da Virada pra Lua; “Doce, doce, amor” (1971), de Jerry Adriani, hino da Doce Mistura; “Funcionária da calçada”(1982), de Brenno Silva, hino da Quarto Crescente (QC); “Pô, amar é importante” (1986), de Hermelino Neder e participação de Arrigo Barnabé e Tetê Espínola, hino da Tanto Faz; “Lumiar” (1977), de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, hino da Lumiar, etc. Em outros casos, são compostos “hinos”, que praticamente se confundem com “rezas”, pois são declamados como versos, quase que falados, como no caso das repúblicas Toka e Patotinha. Também foram criadas apropriações de músicas da cultura popular, a partir de versões que enaltecem as suas repúblicas, como no caso da Tabu, que utilizou a estrutura do hino do time de futebol Flamengo na composição de seu próprio hino, no caso da República FG e da Sinagoga, que se basearam no hino do clube Atlético Mineiro, e na opção da República Ninho do Amor, em modificar a letra de “A Praça” (1967), de Ronnie 26 Hino de conhecimento do próprio autor, confirmado pelo ex-morador “tabuano” Marcelo Barbosa. 172 Von, para ser representada como seu hino. As repúblicas Saudade da Mamãe e Território Xavante (TX), não se contentaram em se apropriar de canções do imaginário popular e criaram seus próprios hinos, como as canções “Samba da $audade” (2005), de Iuri Bittar e “Hino da República Território Xavante”27 (1986), de E.R. Barbosa e João Carlos Cioffi28. Todas estas composições, versões e criações dos próprios estudantes podem ser interpretadas, apesar de distintas em seu processo de ressignificação, como tendo o mesmo propósito, o de ampliar um sentimento de pertencimento, que, de acordo com Souza (2010): sinaliza, no contexto da sociedade marcada por exclusões e desigualdades, a busca de identidade diante de um desejado e ausente comum aglutinador. [...] Ele se traduz de forma visível em sentidos e motivações diversos dos de suas raízes (antropologia, política), sustentando a busca de participação em grupos, tribos e comunidades que possibilitem enraizamento e gerem identidade e referência social, ainda que em territórios tão diferentes como os da política, da religião, do entretenimento (p. 32-34). Juntamente às “rezas” e hinos, outros elementos como os brasões das repúblicas expostos em suas placas, as bandeiras, as camisas de república, o bairro de localização, os cursos de graduação permitidos ou predominantes na moradia, o gênero sexual, a faixa etária, as amizades, os posicionamentos políticos, religiosos, os locais frequentados, os rituais internos da casa (baralho, futebol, reuniões, festas, etc.), entre outros, definem a identidade que os agrega como república, em determinada época – já que a identidade é mutável, inconstante -, e que, ao mesmo tempo, os diferencia do “outro”, alheio a estas características e tradições. 27 A República Território Xavante, inclusive, gravou um disco com o seu hino e mais outras três composições, para comemorar, em 1986, os 25 anos da república, que foi gentilmente enviado para mim pelos atuais moradores. 28 Todas as “rezas de cachaça” e hinos das Repúblicas Federais de Ouro Preto, aqui citados, foram colhidos pessoalmente em minha pesquisa de campo ou foram enviados por moradores e ex-moradores de suas respectivas moradias estudantis. 173 Figura 2. Quadro da REFOP com os brasões das Repúblicas Federais de Ouro Preto – MG. Foto do autor. É como se cada república, por definir suas tradições e o seu sistema de auto-gestão, prezasse por sua peculiar identidade, sua personalidade como “instituição”, como uma comunidade “singular”, mas ainda assim, permitisse que outras repúblicas e pessoas compartilhem de parte de seus rituais. A socióloga Kathryn Woodward (2012), se reportando ao teórico Michael Ignatieff, afirma que: A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades (na afirmação das identidades nacionais, por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a diferença podem incluir um uniforme, uma bandeira nacional ou mesmo os cigarros que são fumados) (2012, p. 13). O teórico Stuart Hall ainda ressalta a complexidade que o conceito de identidade assume, devido ao seu caráter transitório e não “estabelecido”: Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares, 174 mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e transformação (HALL, 2012, p. 108). Em concordância com este pensamento de Hall, busquei interpretar todas estas informações e características da cultura local republicana através da proposta de uma descrição densa do antropólogo Clifford Geertz, que, através de um repertório de conceitos - como símbolo, identidade, estrutura, ritual e, naturalmente “a própria “cultura” – se entrelaçam no corpo da etnografia de descrição minuciosa na esperança de tornar cientificamente eloquentes as simples ocorrências. O objetivo é tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados” (GEERTZ, 1989, p. 38). Diante do grande número e da complexidade de temas abordados neste artigo, e que poderiam ser aprofundados e adensados em outras pesquisas – como o sistema de autogestão das repúblicas, as inter-relações entre os republicanos e os “nativos”, os processos de fundação e transformação das moradias estudantis, o impacto do crescente número de repúblicas na cidade de Ouro preto, entre outros -, acredito que, apesar de ainda em um nível bastante inicial, esta pesquisa tenha contribuído para uma maior compreensão da representatividade de práticas como as “rezas de cachaça” e hinos - entre outras -, nas questões relacionadas à identidade, pertencimento, tradição e aos rituais observados no interior destas casas. É necessário ainda destacar a escassez ou a insuficiência no número de pesquisas que abordem a temática que esta comunicação buscou se atentar, desde a análise de tais práticas, até o estudo das comunidades de repúblicas de Ouro Preto de uma forma mais ampla. Certamente, o fato de ter vivenciado esta experiência durante a minha graduação me traz algumas facilidades quanto à parte etnográfica e no âmbito de compreender seus mecanismos, no entanto, é necessário criar um distanciamento para que seja possível observar toda a complexidade e as implicações deste distinto universo estudantil. 175 Bibliografia ABM Brasil. 2013. Associação Brasileira de Metalurgia, Materiais e Mineração. Mais antiga faculdade de engenharia do Brasil é tema de livro. Disponível em: <http://www.abmbrasil.com.br/news/ materias/4908-mais-antiga-faculdadede-engenharia-do-brasil-e-tema-delivro/>. Acesso em: 10 Ago. 2013. Araújo, Alceu Maynard. 1977. Medicina Rústica. 2ª ed. São Paulo, Ed. Nacional: Brasília, INL. (Brasiliana, v. 300). Arca de Noé. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http://republicaarcadenoe.blogspot.com.br/p/historia. html>. Acesso em: 10 Ago. 2013. Baer, Werner. 2002. A Economia brasileira. Tradução de Edite Sciulli. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Nobel, 2002. castelodosnobres.com/?page_id=103>. Acesso em: 10 Ago. 2013. Consulado. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http:// www.republicaconsulado.com/acasa/>. Acesso em: 10 Ago. 2013. Cosa Nostra. 2013. Site oficial da república. Rezas de cachaça. Enviada por: Arnaldo Junio Rocha Pinho. Disponível em: <http:// www.cosanostra.com.br/rezasdepinga. html>. Acesso em: 3 ago. 2013. Dequech, David. 1984. Isto dantes em Ouro Preto; crônicas. Belo Horizonte. Estrada Real da cachaça. 2008. Direção: Pedro Urano. 1 DVD (98 min.). Documentário. Rio de Janeiro: Grupo novo de cinema e TV / Tarcísio Vidigal e Alice Filmes. Barbalho, Duarte M. 2007a. Texto sobre a fundação da Arte & Manha: Um caso de construção da UFOP em Ouro Preto. In: MACHADO, Otávio Luiz. Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas. Recife: Proenge, 2007a (versão eletrônica). 141-143. Geertz, Clifford. 1989. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. Biblioteca Nacional. 2013. A França no Brasil. Claude Henri Gorceix e a Escola de Minas de Ouro Preto. Disponível em: <http://bndigital.bn.br/francebr/ gorceix.htm>. Acesso em: 29 jul. 2013. Globo Minas. 2013. G1. Ouro Preto comemora 30 anos como Patrimônio Cultural da Humanidade. Disponível em: <http://g1.globo.com/minasgerais/noticia/2010/09/ouropreto-comemora-30-anos-comopatrimonio-universal-da-humanidade. html>. Acesso em: 15 Ago. 2013. Câmara Cascudo, Luís da. 1986. Prelúdio da Cachaça. Etnografia, História e Sociologia da Aguardente no Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia. Canaan. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http:// www.republicacanaan.com/ index/index.php?pag=1&&id=11>. Acesso em: 5 Ago. 2013. Carvalho, J. M.. 2002. A Escola de Minas de Ouro Preto: O peso da glória. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora UFMG. Castelo dos Nobres. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http:// Gennep, Arnold Van. 2011. Os Ritos de passagem. Trad. Mariano Ferreira. Apresentação Roberto da Matta. 2. ed. Petrópolis: Vozes. Hall, Stuart. 2003. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomás Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 7. ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora. . 2012. Quem precisa de identidade? In: SILVA, T.T..(org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12.ed. Petrópolis, RJ: Vozes. Machado, Otávio Luiz. 2007a. Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas. Recife: Proenge (versão eletrônica). 176 . 2007b. Repúblicas de Ouro Preto e Mariana: trajetórias e importância. (org.) Recife: Centro de Tecnologia e Geociências, Coordenação de Extensão, Universidade Federal de Pernambuco. Prograd. 2013. Pró-Reitoria de Graduação da Universidade Federal de Ouro Preto. Disponível em: <http:// www.prograd.ufop.br/index.php/ cursos>. Acesso em: 26 jul. 2013. . 2012. Repúblicas e Entidades Estudantis de Ouro Preto: Trajetórias e importâncias. Recife: PROJEPEC. Pureza. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http://www. republicapureza.com.br/index. php?option=com_content&view=article&i d=11&Itemid=25>. Acesso em 10 Ago. 2013. . 2013a. Repúblicas e estudantes em Ouro Preto: contributos dos dossiês para a REFOP [Volume 1]. Otávio Luiz Machado (org.). Recife: PROJEPEC. . 2013b. Repúblicas e estudantes em Ouro Preto: contributos dos dossiês para a REFOP [Volume 2]. Otávio Luiz Machado (org.). Recife: PROJEPEC. . 2013c. Repúblicas e estudantes em Ouro Preto: contributos dos dossiês para a REFOP [Volume 3]. Otávio Luiz Machado (org.). Recife: PROJEPEC. Malta, Eder. 2010. Identidade e práticas culturais juvenis: As Repúblicas estudantis de Ouro Preto. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). UFS - Universidade Federal de Sergipe. São Cristóvão. Marcondes, S.. 2005. Brasil, amor à primeira vista! Viagem ambiental no Brasil do século XVI ao XXI. 1ª ed. São Paulo: Editora Fundação Peirópolis. Michaelis. 2013. Dicionário. Instituição. Disponível em: <http://michaelis. uol.com.br/moderno/portugues/ index.php?lingua=portugues-po rtugues&palavra=institui%E7%E 3o>. Acesso em: 13 Ago. 2013. Nepomuceno, Rosa. 1999. Música Caipira: Roça ao Rodeio. São Paulo: Ed. 34. Ouro Preto. 2013. Site oficial da cidade. Distritos. Disponível em: <www.ouropreto. com.br>. Acesso em: 26 jul. 2013. Portal R7. Minas Gerais. 2013. Disponível em <http://noticias.r7.com/minas-gerais/ noticias/ufop-sugere-que-universitariosrecebam-treinamento-medico-aposmorte-de-estudantes-20130131. html>. Acesso em: 12 Ago. 2013. Resolução CUNI. 2006. Nº 779. Disponível em: <http://www.prace.ufop.br/down/ estatutoop.pdf>. Acesso em: 11 Ago. 2013. Resolução CUNI. 2010. Nº 1150. Disponível em: <http://www.ufop.br/downloads/ resoluo_cuni_n_1150_-_estatuto_ repblica_federais_de_op. pdf>. Acesso em: 11 Ago. 2013. Revista Escolha. 2012. Cursos de Graduação na UFOP. Ouro Preto: UFOP, ano 4. n.4. Rocha, Maria Cecília Maurício da. 1990. Miguel Maurício: mestre, empreendedor, amigo. Belo Horizonte. Rodeio. 2013. Versos de rodeio. Disponível em: <http://www.solbrilhando. com.br/Esportes/Rodeios/Versos. htm>. Acesso em 13 ago. 2013. Salcedo Repolês, M. F.. 2007a. Início de pesquisa nas repúblicas de Ouro Preto: como funcionam as relações de poder. In: MACHADO, Otávio Luiz. Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana: Percursos e Perspectivas. Recife: Proenge, 2007a (versão eletrônica). 192-196. Saludos Amigos. 1942. “Alô Amigos” (no Brasil) Filme de Walt Disney. Disponível em: <http://www.youtube. com/watch?v=7aKVdsQw618>. Acesso em: 8 Ago. 2013. Santanna, R.. 2000. A Moda é Viola - Ensaio do Cantar Caipira. São Paulo: Arte & Ciência; Marília, SP: Ed. UNIMAR. Sayegh, Liliane. 2009. Dinâmica urbana em Ouro Preto: Conflitos decorrentes de sua patrimonialização e de sua 177 consolidação como cidade universitária. 2009. 241f. Dissertação (Mestrado) em Arquitetura e Urbanismo. Universidade Federal da Bahia – UFBA. Souza, Mauro Wilton. 2010. O pertencimento ao comum mediático: identidade em tempos de transição. Significação – Revista de Cultura Audiovisual / ECA-USP, São Paulo, n. 34, p. 31-52. Tinhorão, J. R.. 2002. A música popular no romance brasileiro (vol. III: século XX [2ª parte]). São Paulo: Ed 34. Turner, Victor W. 1974. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes. Ufop. 2013. Relatório de Gestão do Exercício de 2012. Disponível em:<http://ufop.br/ downloads/relatrio_de_gesto_2012. pdf>. Acesso em: 26 jul. 2013. Vaticano. 2013. Site oficial da república. Disponível em: <http://www. republicavaticano.com.br/crbst_2. html>. Acesso em: 10 Ago. 2013. Vídeos R7. 2013. Rede Record. Disponível em: <http://videos.r7.com/lei-tornacachaca-patrimonio-cultural-do-rio/ idmedia/4ffd8508e4b0be0cb5fddfe b.html>. Acesso em: 15 Ago. 2013. Villela, Francisco. 2008. Ave, Cachaça! Nascimento, Vida, Reza e Glória. Cidade: Ed. Paulo Villela. Woodward, K.. 2012. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T.T..(org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 12.ed. Petrópolis, RJ: Vozes. 178 Bebida, canto e alma — os índios Ticuna e a imortalidade Edson Tosta Matarezio Filho PPGAS-USP [email protected] Resumo Minha comunicação se baseia em minha pesquisa de doutorado sobre os Ticuna – índios de língua isolada localizados na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru – o mais numeroso grupo indígena do Brasil. Entre estes índios, a moça que menstruou pela primeira vez fica reclusa até que seja aprontada sua festa de iniciação, a chamada Festa da Moça Nova. A menina ficará reclusa em um quarto feito de talos de palmeira buriti, anexo à casa de festas. Atrás deste local de reclusão, no recinto dos trompetes, ficam os instrumentos sagrados, que tocarão durante o ritual, aconselhando a “moça nova”. Ao longo de minha comunicação pretendo apresentar o principal motivo para os Ticuna fazerem a Festa da Moça Nova: alcançar a imortalidade. Durante estes rituais, espera-se que os imortais/encantados (üünne) visitem a festa para levar as pessoas que estão celebrando este rito de passagem feminino. Segundo um de meus informantes, “quando todo mundo está de porre a casa sobe [para a terra dos imortais]. Antigamente, aparecia um imortal para muitas moças e levava elas. Os encantados levavam todo mundo que estava na festa com ela”. Palavras-chave Ticuna, música, ritual, bebida, imortalidade 179 A Festa da Moça Nova Os Ticuna conformam uma população atual de mais de 50 mil pessoas distribuídas entre Brasil, Colômbia e Peru (Goulard, 2009: 15). No Brasil, constituem o mais numeroso grupo indígena, contando com mais de 46 mil indivíduos. Estão distribuídos ao longo da bacia do Rio Solimões (AM), com sua maior concentração no alto curso deste rio e apresentando também uma forte presença em cidades amazônicas. O ritual mais importante para estes índios, a iniciação feminina, é a chamada Festa da Moça Nova (Worecütchiga)1. Entre os Ticuna, a moça que menstruou pela primeira vez fica reclusa até que seja aprontada sua festa. Neste ritual, a menina ficará “guardada” (aure) em um quarto feito de talos de buriti (turi), anexo à casa de festas. Na manhã do último dia de festa, a moça deverá sair do “curral” de reclusão com os olhos tapados por um parente, rompendo os talos de buriti que formam suas paredes. Nesta primeira festa após a menarca, depois de sair da reclusão, a moça tem seus cabelos arrancados. Trata-se, portanto, de um complexo ritual que dura três dias e leva meses para ser preparado. Nesta comunicação apresentarei principalmente a importância das bebidas consumidas durante a festa, sua relação com a música ticuna e o tema da imortalidade. Antes de falar sobre a relação que se estabelece com os imortais nas festas, quero comentar rapidamente sobre um tipo de troca estabelecida entre os convidados e os anfitriões do ritual. 1 Worecü = “moça nova”, a menina que menstruou pela primeira vez. Tchiga é um termo da língua ticuna usado para se referir a diversas ideias relacionadas à “palavra”. Segundo a linguista Montes Rodríguez (2005: 58), em um sentido amplo, tchiga corresponde à “palabra” de una “entidad mítica o humana, el significado de las cosas, la historia de algo ou alguien, las historias míticas”. Esta mesma autora dá os seguintes exemplos, Yoitchiga seria “la historia, el cuento, el mito y la palabra del héroe mítico Yoi”. Cutchiga pode ser traduzido como “tua história”, trata-se de um termo que aparece com frequência nos “cantos rituales de iniciación femenina posiblemente para referirse a todo el proceso vivido por la joven iniciada”. 180 Convidados e anfitriões Para os ameríndios, de um modo geral, a carne moqueada cumpre um importante papel como dádiva doada pelo grupo que vem para a festa em troca das bebidas que o grupo anfitrião proverá. De acordo com Viveiros de Castro (1986), a oposição complementar entre a carne, trazida pelos convidados, e a bebida, oferecida pelos donos da festa, é difundida por todo continente. Tal troca conformaria a “armadura simbólica das relações” ou o próprio “arcabouço dos ritos” (Teixeira-Pinto, 1997:350). Para os Araweté, por exemplo, povo de língua tupi-guarani, a carne moqueada trazida pelos homens é considerada o “pagamento do cauim”, produzido pelas mulheres (Viveiros de Castro, 1986: 340). Tal troca conformaria a “armadura simbólica das relações” ou o próprio “arcabouço dos ritos” (Teixeira-Pinto, 1997:350). Este tipo de troca ritual é bastante comum entre os povos de língua Caribe. Para os índios Arara, em seus rituais de Ieipari, por exemplo, os visitantes-mutuns, doadores de carne moqueada, esperam ser “atraídos” pelo canto dos anfitriões-guariba, doadores de bebida fermentada. No caso das trocas rituais Arara estudadas por Teixeira-Pinto, este autor conclui que a “caça é a condição da bebida, como a predação é a da troca” (idem: 365, nota 27). Para os Waimiri-Atroari, grupo indígena também de língua caribe que estudei em meu mestrado, também não é diferente. Um informante assim relata a importância desta troca: “Nós levamos a carne e o pessoal tem que dar o mingau...” (Do Vale, 2002: 70). Os Ticuna operam uma troca semelhante entre convidados e anfitriões. Contudo, diferente dos índios de língua tupi ou caribe, que trocam bebidas por carne, os ticuna trocam bebidas e carne moqueada por máscaras, fibra de tucum e talos de buriti. O item mais valioso destes presentes é a casca de árvore chamada tururi, que é entregue ao dono da festa em forma de máscara. Estes mascarados chegarão à festa, beberão e receberão carne moqueada. 181 A participação dos mascarados durante os rituais remonta ao tempo em que homens e animais ainda não se distinguiam. O aprendizado da fabricação das máscaras pelos humanos assinala uma ruptura semelhante aquela introduzida com a origem da mortalidade (Goulard, 2009: 167). A estes mascarados é oferecida a bebida que substitui a “bebida da imortalidade” que encontramos na mitologia ticuna. Portanto, enquanto as máscaras recordam a separação primordial entre humanos e animais, a bebida conecta todos os participantes da festa com a imortalidade perdida no tempo mítico, mas que todas as Festas de Moça Nova tentam reaver. Esta bebida tomada durante o ritual, além desta relação com a imortalidade e eu retornarei a este ponto, tem uma estreita relação com canto para os Ticuna. É disto que tratarei brevemente agora. Canto, bebida e espírito Algo que devemos ter em mente quando estudamos a música de outros povos é o fato este termo, “música”, ser uma abstração quase exclusivamente européia. Segundo o musicólogo alemão Carl Dahlhaus: “Se, pois, a categoria “música” (...) é uma abstração que em muitas culturas se levou a cabo, e noutras não, encontramo-nos então perante a infeliz alternativa ou de reinterpretar e alargar o conceito europeu de música até a alienação quanto à sua origem, ou de excluir do conceito de música as produções sonoras de muitas culturas extra-europeias”. (Dahlhaus, 2009[2001]: 15) O que se apresenta como uma “infeliz alternativa” para o grande musicólogo europeu, contudo, é o material por excelência do etnomusicólogo. Talvez uma das questões mais interessantes da etnomusicologia seja: o que é música para determinado povo? No espaço desta comunicação não falarei sobre o que é música para os Ticuna, algo que ainda estou longe de saber. Contudo, o ato de cantar é 182 algo que debati bastante com os cantores ticuna e gostaria de comentar um pouco sobre o canto destes índios antes de abordas sua relação com a bebida. Muitas palavras são usadas na língua ticuna para se referir ao canto, mais especificamente ao ato de cantar. Cantar, para um ticuna, pode indicar muitos tipos de artes verbais. Wiyae seria a noção mais geral de canto, a idéia mais próxima de nossa palavra “canto”. Dentro desta idéia de wiyae, existem outras categorias mais específicas Wawe, por exemplo, é uma palavra que designa o que chamamos de acalanto. Serve para se referir a um canto mais suave, como quando se canta para uma criança dormir. Existe mais uma noção mais próxima do canto que é entoado no ritual. Utü é a palavra usada para se referir ao canto executado na festa da moça nova, com a voz fina, mas também ao canto dos pássaros. Os homens cantores da festa da moça nova, por exemplo, cantam em falsete e este tipo de canto é denominado utü. Não serve para se referir ao cantor de forró. E, por fim, o canto de que tratarei mais detidamente nesta comunicação, ã’ẽ. Este gênero vocal ou forma de cantar é aprendido pelo aprendiz de xamã ao entrar em contato com os espíritos das árvores. O aprendiz de pajé se põe em contato com os espíritos das árvores e aprende seu canto gradualmente (Nimuendaju, 1952:100-102; Goulard, 2009: 83). Curiosamente, a bebida fermentada também é designada pelo mesmo termo, a mesma bebida que irá alimentar os instrumentos que tocarão aconselhando a moça nova durante o ritual. Outro significado deste mesmo termo, podemos traduzir como “princípio vital” ou espírito, duplo da pessoa. O ã’ẽ, junto com o ma’ũ, são os dois princípios que conformam a pessoa ticuna. Ou seja, temos, portanto, uma notável confluência de significados neste termo, a-e: canto, bebida fermentada e ‘princípio vital’ (Goulard, 2009: 169). 183 Por que se faz a Festa da Moça Nova? Estabelecidas estas relações entre imortalidade, bebida e canto para os Ticuna, pretendo explorar agora algumas questões que considero centrais para entender esta tripla relação. Porque se faz a Festa da Moça Nova? Quais as relações, além das estabelecidas entre convidados e anfitriões, são buscadas na preparação e execução deste ritual de passagem? Qual a importância da esperada participação dos imortais na festa? Participei de duas Festas de Moça Nova durante meu trabalho de campo, em 2012, e mais duas agora, no trabalho de campo que acabo de terminar. Ao logo deste período de campo, também tive a oportunidade de gravar, transcrever e traduzir diversos cantos da festa e mitos que ajudam a compreender o sentido deste ritual. Segundo meus informantes, a Festa da Moça Nova é feita por dois motivos. O motivo mais explícito é o perigo dos bichos/demônios (ngo’o). Se a festa não é feita, qualquer um da comunidade, principalmente a moça, pode ser atacado por esses seres e serem comidos. Durante estes rituais, diversos cantos são entoados para aconselhar as “moças novas”. Dentre as inúmeras canções entoadas para a moça nova em sua reclusão, uma delas me foi referida como a canção da moça que foi levada pelo bicho porque ninguém cantou para ela. Em consequência de não terem feito festa para a moça, diz a canção, o Tchurara, um tipo de demônio (ngo’o), iniciou a menina. A canção destaca principalmente que o Tchurara pintou a menina com seu falso jenipapo. A segunda razão que me foi indicada para fazerem a festa é o fato de ela estar estreitamente relacionada com a imortalidade e o mito ticuna da origem da vida breve. Os mitos narram histórias de casas de festa que, com todos cantando e de porre (ngaün), subiram para o céu dos encantados/imortais (uünne). De certa forma, creio que os especialistas no ritual tem a esperança em alcançar a imortalidade através de uma festa bem realizada. Espera-se que os imortais/encantados (üünne) visitem a festa 184 para levar as pessoas que estão celebrando este rito de passagem feminino. Durante uma explicação sobre a letra da canção dos imortais, Francisco (Üpetücürüngütchiãcü) me disse o seguinte: “todo mundo tem que ficar dentro da casa para serem levados. Quando todo mundo está porre a casa sobe. Antigamente, durante a festa da moça nova, aparecia um encantado para muitas moças e levava ela. Os encantados levavam todo mundo que estava na festa com ela”. O que mais gostaria de destacar da fala mencionada acima é a referência a este momento crítico da festa. Não por acaso, é quando estão todos bêbados que os imortais “pegam” o corpo das pessoas para tocar os trompetes. Afinal, neste momento existe a possibilidade de a casa subir para o céu e todos os que estiverem lá dentro se tornarem imortais. Antigamente, a Festa da Moça Nova era feita para ela ver os encantados (üünne). Fazendo a festa da forma correta, a casa inteira era levada para o Morügüne, lugar dos encantados. O problema é que hoje em dia, dizem os mais velhos, as pessoas não respeitam mais a sacralidade do ritual. As crianças olham os instrumentos, as pessoas saem para namorar no meio da festa e as moças namoram com os primos antes de fazerem sua festa. Mitologia da imortalidade – a origem da vida breve ticuna e a possibilidade de se imortalizar A intenção de se imortalizar também está presente em inúmeros mitos dos Ticuna. Nimuendaju (1952), por exemplo, que realizou extensa pesquisa de campo entre os Ticuna – em 1929, 1941 e 1942 –, coletou uma série de mitos que relatam a conquista ou a perda da imortalidade2. Um destes mitos, por exemplo, conta que uma “moça nova” estava sendo iniciada e ouve os imortais entrando na casa de festa. Imediatamente ela responde ao chamado deles e diz que quer se imortalizar. “A worecü [menina que está sendo iniciada] e os outros celebrantes estavam sentados 2 Estes mitos foram analisados por Lévi-Strauss em O Cru e o cozido (2004 [1964]), quando ele trata dos mitos sul-ameríndios que relatam a origem da vida breve. 185 em cima do couro de anta no centro da casa. O tambor de carapaça de tartaruga estava soando, e os convidados estavam dançando. De repente, o couro de anta começou a se mover, subindo no ar” (idem: 136). Uma convidada que estava namorando fora da casa não percebe o que está acontecendo e perde sua carona para a imortalidade. Ao final do mito o couro de anta com os convidados se torna a aureola lunar. Um destes mitos, por exemplo, fala de uma moça que foi levada ao final de sua festa de iniciação por um “jovem [que]apareceu em forma de anta” (idem: 137). Quando ela volta para visitar a família, seu marido distribui “bebida dos imortais” para as pessoas que estão na festa do irmão mais novo da moça. “Todos ficaram bêbado e nessa condição foram embora com o casal para a morada dos imortais no Igarapé Eware.” (ibdem). Na história do incêndio e do dilúvio mundiais, apenas duas moças que estava reclusas se salvam do incêndio que consumiu o mundo. “[U]nicamente sua cela de reclusão permaneceu firme, e, enquanto todos os outros estavam morrendo, as duas irmãs permaneceram vivas” (idem: 141). Ao final da história, uma das moças vai para a morada dos imortais também. Os mitos que tratam do tema da imortalidade, portanto, narram situações em que ela foi conquistada ou perdida, uma possibilidade que está aberta também na Festa da Moça Nova. De acordo com meus informantes, antigamente as pessoas tomavam um banho de uma mistura para se encantar. O banho era preparado com folha de taperebá, casca de ura, olho verde de buriti e devia ser tomado à meia-noite. A moça nova toma banho todos os dias à meia-noite com esta mistura. Estas pessoas que queriam se encantar deveriam se alimentavam apenas de um verme que cresce no tronco do buriti (bo’o) e pequenos grãos de milho. Nimuendaju cometa como se fazia antigamente para uma festa tornar seus participantes imortais: “Nos velhos tempos, quem quisesse se tornar imortal submetia-se a uma dieta de milho e larvas de coleóptera [ordem de insetos] e, quando se banhasse, esfregaria o corpo inteiro com frutos de 186 buriti. Então, um dia na selva, se encontraria com um menino desconhecido que proporia à pessoa preparar uma festa em tal e tal dia. No dia marcado, de tarde, as aves aquáticas de todas as espécies apareceriam e se empoleirariam nas árvores próximas da casa. Ao anoitecer a dança iria começar dentro da casa fechada. Algum tempo depois, um imortal em forma humana bateria à porta. Devem deixá-lo entrar e conduzi-lo até os jarros, onde ele daria ao anfitrião uma cabaça pequena contendo bebida dos imortais, yita’kü tchüü, que deve ser misturada a cerveja festiva (chicha), porque para se tornar um dos imortais é necessário partilhar da sua bebida.” “Na madrugada todos os imortais entrariam, dançariam, beberiam e escolheriam cônjuges, os mortais solteiros fazendo o mesmo, às vezes até mesmo os casais se separariam, a fim de se juntar aos imortais. Ao romper do dia, os espíritos, ao dançar, conduziriam todos os celebrantes para fora da casa, e depois de uns quinze passos mandariam que fechassem os olhos. Quando abrissem de novo, eles já estariam longe, na morada dos imortais.” (1952: 136). Imortais, instrumentos musicais e som Atrás do local de reclusão da moça, no “curral” do trompete to’cü (to’cüpüün), ficam os instrumentos tabus para mulheres e crianças (os trompetes, to’cü e iburi; e a flauta de embolo nge’cütü). Ambos os trompetes são considerados “gente”, “pessoas” (du-û), pois possuem “principio vital” (a-e) e “corporal” (ma-ũ), portanto, devem ser alimentados com bebida fermentada (pajauaru) durante os rituais. O “copeiro” – encarregado de cuidar para que se cumpra o processo ritual e de servir bebida fermentada para os convidados –, conta para o soprador de trompete o nome do clã da moça. Então o trompete canta pedindo bebida à moça nova. Quando ele pede o caldo para a ela, ela suspende as palhas do curral dos instrumentos e entrega a vasilha com a bebida para os tocadores. Além de beberem do líquido, a bebida é vertida na “boca” dos trompetes, eles têm sede, também querem tomar. 187 A moça nova não pode dormir enquanto estiver dentro do local de reclusão. Deve estar sempre atenta aos pedidos de caldo dos tocadores de trompete. Um informante me contou também que “às vezes, uünne [imortais/encantados] pede caldo e ela tem que ouvir. Uünne vem tocar o to’cü e pedir caldo. Ela tem que ouvir e dar caldo para ele. Isso acontece quando todo mundo já está de porre, então, uünne pega o corpo da gente para tocar o to’cü”. Transcrição última canção do vídeo do Iburi – canção de pedir bebida para a moça. Começa em 8:35 min do filme. Rü nheün i curü ya “Cadê o seu” Cupaweru ya yauratchiün i tchonamã i cu’ã “caldo de pajauaru [cupaweru] que brilha como o reflexo da lua [yauratchiün]?” Pa iri iri pa worecü “Moça Nova” Rü tchamarü natücüma tchautchi’ün arü naãnewatürü “Eu saí da minha casa à toa” Cucai’tchacaetchigu’ün ya rü nhuma rü ya “Chegando e cantando [caetchigu’ün]” Deyu’ün nua itchi õaẽ “E agora eu estou sofrendo de frio” Pa iri iri pa worecü “Moça Nova” Pelo que ouvi, os encantados (uünne) possuem uma audição sobre humana e tem um gosto especial pelo som, especialmente pelos instrumentos. Ouvi histórias de trompetes (to’cü) que são ouvidos soando sem que ninguém esteja tocando. A explicação que me deram é que os imortais estão tocando eles, mas nunca são visto fazendo isto. Uma informante me contou certa vez que qualquer um pode ouvir os imortais (uünne). Existem relatos de pessoas que ouviram um assobio, um canto, conversa, barulho. Depois, quando iam verificar do que se tratava, não encontravam nada. “Se acontecer de 188 vermos um imortal é porque já nos tornamos um deles. Apenas os pajés conseguem vê-los sem morrer antes. Eles visitam os imortais em sonhos.” Francisco comenta que seu avô fez um to’cü certa vez que ficou muito bonito e guardou-o na água. “Mas o instrumento se encantou, foi embora. Diz minha mãe que quando ela vai ao lugar onde ele estava guardado ela escuta. Quando procurava não encontrava nada. Ele já tinha dono, uünne [imortais/encantados] tinha levado ele. Eles são muito inteligentes, mais do que a gente e eles que tocavam o to’cü. Mas a gente não via, só ouvia a voz do to’cü”. Segundo me disseram, quando jogam o trompete fora ou deixam por aí, vamos procurá-lo e ele não está mais no lugar onde deixamos. Se isto acontece é porque os encantados/imortais (ü’üne) levaram. Isto costuma acontecer quando as pessoas já não querem mais o to’cü, desistem dele. Então os encantados/imortais pegam para eles e levam para fazer festa também. Em conseqüência, o to’cü se encanta e vira gente (du’ün). Hilda (Mutchique’ena) comentou-me que onde o pai dela deixava o to’cü dele o instrumento tocava sozinho. As pessoas o ouviam tocando sozinho, lá no quintal de sua irmã. Bibliografia DAHLHAUS, Carl & EGGEBRECHT, Hans Heinrich. 2009. Que é a música?, Edições Texto & Grafia, Ltda, Lisboa. NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. American Archeology. Berkeley & Los Angeles University of California Press. DO VALE, MARIA C. R. 2002. WaimiriAtroari em festa é Maryba na floresta. Tese de Mestrado, Universidade do Amazonas, Amazonas. TEIXEIRA-PINTO, Márnio. 1997. Iepari. Sacrifício e Vida Social entre os Índios Arara, Eds. Hucitec/ ANPOCS, UFPR, São Paulo/SP. GOULARD, JEAN-PIERRE. 2009. Entre Mortales e Inmortales – El Ser según los Ticuna de la Amazonía. CAAAP, CNRS-MAEE-IFEA, Lima. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: os deuses canibais, Rio de Janeiro: J. Zahar Ed. ANPOCS. LÉVI-STRAUSS, C. 2004 [1964]. O cru e o cozido. São Paulo: Cosac & Naify. MONTES RODRÍGUEZ, María Emilia. 2005. Morfosintaxis de la lengua tikuna. Colección Lenguas Aborígenes de Colombia, Descripciones 15. Ed. Universidad De Los Andes Centro De Estudios Socioculturales – CESO – CCELA. 189 O samba e a culinária mineira: análise etnográfica de um samba de Toninho Geraes e Paulinho Rezende Ana Lúcia Fontenele Universidade Federal do Acre [email protected] Resumo O presente artigo foi motivado por um samba “Comida Mineira” de autoria de Toninho Geraes e do letrista Paulinho Rezende. Aproveitamos a temática para situarmos alguns pontos da prática dos sambas de mesa no Rio de Janeiro. Os compositores traduziram em melodia e letra a saudade da cozinha mineira, associando as delícias salgadas e doces aos prazeres que a mineira, amada e cozinheira, os proporciona. Interessante observar que em boa parte dos sambas que associam a festa com a culinária a figura feminina aparece como a boa cozinheira, que além do banquete ainda faz a feira. No samba Comida Mineira o compositor, letrista, livra a cozinheira dessa parte da tarefa e ainda incrementa uma bela fogueira! A bebida é outro componente imprescindível no mundo do samba. Ela, a loira gelada, rola solta em volta da mesa do samba e irriga as gargantas dos cantantes e dançantes. O samba “Comida Mineira” resolve problemas, como em geral os sambas o fazem. Uma paixão declinada, uma dívida, uma ou várias saudades. Nesse banquete mineiro desfilam o tutu, o cheiro verde, a vaca atolada, a pimenta, a mandioca, a polenta, o angu, a carne seca, o iô iô, o iá iá e tudo o que mais rolar. Palavras-chave samba, etnografia musical, religiosidade, culinária 190 Essa comunicação foi motivada, primeiramente por um samba e por um folder de um evento que prevê atrações musicais de gêneros ligados à cultura popular (em anexo), cada qual associado a um prato característico da região onde surgem tais tipos de manifestações musical e folclórica. Esse evento “Música e Culinária Tradicionais” acontece em São Paulo de maio a novembro de 2013. No Rio de Janeiro e em outras paragens do Brasil o samba a feijoada completa, e a cerveja pra um batalhão, protagonizadas no samba de Chico Buarque, caracterizam o trio que circunda o ambiente onde se manifesta esse gênero musical que tão bem retrata o Brasil. Aproveitamos, ao falar do samba “Comida Mineira”, que será objeto dessa comunicação, para situarmos alguns pontos da prática dos sambas de mesa no Rio de Janeiro, reduto de uma nova geração de sambistas que surgem na trilha aberta pelos sambistas do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, entre eles, Almir Guineto, Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila e os integrantes das diversas formações do Grupo Fundo de Quintal. A música, a dança, parte da religiosidade e a culinária brasileira foram influenciadas, ou mesmo criadas, a partir da influência da cultura dos africanos que chegaram ao Brasil desde a época do Brasil Colônia. Segundo Siqueira (2012), mesmo não admitindo reconhecer tal influência, a dita burguesia brasileira consumia, adaptava os valores culturais vivenciados pelos negros em várias regiões brasileiras nas diferentes épocas e bases econômicas, como nos ciclos do açúcar, do café e do ouro nas regiões nordeste e sudeste do Brasil (SIQUEIRA, 2012, p.65). O samba teve na sua origem a influência direta dos afrodescendentes que praticavam o samba de terreiro, os batuques, como forma de comunicação com o mundo espiritual. Nesse sentido destaca-se a necessidade de levarmos em conta esse tipo de comportamento social de caráter místico quando falamos dos primórdios do samba. Nesse contexto, no final do século XIX e início do século XX, o samba era praticado como canto coletivo, sem autoria definida. Com o passar dos anos alguns aspectos 191 sociais distanciaram a prática do samba desses preceitos importantes, tornando tal prática em festas profanas (SIQUEIRA, p.252). Nessa perspectiva o surgimento do gênero samba é resultante de um diálogo entre as camadas populares urbanas que conviviam na cidade do Rio de Janeiro, mais especificamente em volta da Praça Onze, no centro do Rio e posteriormente nos morros cariocas. Para Tinhorão (2002): O samba é um produto do proletariado carioca com predominância negra, dentro de um quadro social em que a segregação era econômica e não racial. Desse modo, pôde ser facilmente assimilado por aqueles elementos da pequena burguesia em fase de proletarização (?) e sem predominância racial negra, tornando-se um gênero de música popular tão próprio dos primeiros quanto dos segundos. (TINHORÃO, 2002, p. 46). Nesse sentido o autor considera natural o fato de compositores de classe média coexistir em uma mesma área urbana, como no caso do Rio de Janeiro do início do século XX, onde se encontravam cortiços e casas de cômodos próximos a bairros de classe média. Um exemplo desse fato social foi o compositor Noel Rosa, que formou um grupo de samba e foi parceiro de boemia de compositores negros como Ismael Silva. Outro fator que permitiu esse diálogo e disseminação do samba dito urbano foi o surgimento do rádio (TINHORÃO, 2002). Paulo Neves (1985) entende o samba como “uma criação genuinamente negra, assimilada pelos brancos na época do surgimento do rádio”. Afirma ainda que a assimilação da musicalidade negra por parte da população de brancos que conviviam no mesmo habitat ofuscou “a plasticidade da cultura negra”, causando uma espécie de dispersão do samba (NEVES, p.48). A partir de conceitos e práticas metodológicas dos estudos etnográficos, segundo Lucas M. E, apud Arroyo (2001), “a etnografia musical pressupõe a descrição da convivência e da aproximação das intersubjetivida- 192 des do pesquisador e pesquisado, possibilitando a apreensão do fluxo cotidiano das ações e valores contidos no ordinário e extraordinário da experiência musical” (ARROYO, 2001, p.322). A motivação da escrita e para a incursão nessa linha de pesquisa ligada à etnomusicologia partiu de uma empatia natural da pesquisadora com o gênero samba e com as práticas culturais e sociais o circundam. Em seu artigo Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia, citando os autores Timothy Cooley e Gregory Berz , Silva (2011) coloca a etnografia como uma área de pesquisa interdisciplinar e em constante processo de experimentação permitindo, segundo ou autores citados “uma diversidade e pluralidade de abordagens” (SILVA, p. 2-3). Esses experimentalismos se concretizam no presente artigo a partir da descrição etnográfica de uma prática musical, o samba da atualidade nas casas de show e rodas de samba na cidade do Rio de Janeiro, por meio de uma boa dose de expressividade e subjetividade no texto, a partir da próxima seção e, principalmente, nos dois últimos tópicos. A ligação do samba com o Choro e a culinária No final do século XIX, as festas, bailes, batizados ou casamentos eram regados por modinhas e choros. Essas festas iniciavam-se na noite e terminavam no final da manhã do dia seguinte. Nos casamentos e batizados, segundo Pinto (2009) a culinária concentrava-se em uma boa canja “que conforme o número de convidados era mais ou menos aguada”; carne de porco; carne assada; arroz de forno e muito pão. Nos doces desfilavam doces de coco; laranja da terra; cidra; abóbora, além do arroz doce com canela. Entre as bebidas destacavam-se as cervejas Logos e Guarda Velha, vinho do porto e licores caseiros (PINTO, 2009, p. 118-119). As rodas musicais da época do surgimento do samba, início do século XX, aconteciam na famosa Casa da Tia Ciata, local onde desfilavam figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Donga e Alfredinho, ambos pertencente à Velha Guarda do Samba e ao grupo 8 Batutas. Nesse local 193 segundo, Marinho da Costa Jumbeba, neto da Tia Ciata, em entrevista ao compositor Nei Lopes (2008), rolava muito samba partido-alto com pandeiro, cavaquinho, violão, flauta e clarineta. Uma samba de caráter mais instrumental. Tais rodas de samba duravam, segundo Jumbeba, uns três dias. Os participantes e convidados consumiam, além das bebidas um caldo “escaldado” e peixada (LOPES, 2008, p.196). O panorama da prática do samba de mesa na cidade do Rio de Janeiro tem no seu cerne a energia e o clima em que se praticavam o samba, mais especificamente, o samba partido-alto nos chamados pagodes em bairros do subúrbio do Rio de Janeiro em ambientes frequentados por sambistas tradicionais, parte deles ligados às rotinas de escolas de samba. Esses pagodes reunião os melhores versadores da região além de estarem aliados a uma culinária característica desses ambientes e também com o consumo de bebidas alcóolicas (LOPES, 2008). O autor desfila uma série de referências a personagens e locais de sambas tradicionais entre eles os da casa do pai do sambista Candeia e o do pai do mestre Marçal, ambos integrantes de escolas de samba. Os sambas na casa do pai de Candeia aconteciam aos domingos, às voltas de um caldeirão de sopa e muita cerveja. Na casa do sambista Marçal, “o samba começava no sábado e acabava na segunda”, onde eram servidas a tradicional feijoada e um macarrão com carne assada (LOPES, 2008, p. 177). Nesse contexto destacam-se na culinária característica uma série de pratos e personagens que fazem acontecer à festa do paladar dos artistas e consumidores do bom samba. Em entrevista ao jornal O Globo1, a sambista e cozinheira, Geórgia Gomes, que atualmente encanta os consumidores com um bobó de camarão no Centro Cultural da Lapa, afirma que vem de uma família de panelas grandes. Geórgia relata que começou seu aprendizado na culinária com a Conceição, sua tia, mulher do 1 w w w.oglobo.globo.com/rio/georgia-gomes-agita-lapa-com-samba-proezas-culinarias-4884063. Consultado em 08.2013. 194 Noca da Portela. Segundo a mesma enquanto rolava uma roda de samba no terraço do Engenho de Dentro, as comidas eram preparadas e apreciadas por todos. Nesse contexto ela aprendeu a fazer as comidas “nada light” dos sambistas, a feijoada e o caldo de mocotó. Como em outras épocas, os ambientes de pagode sobreviveram com esse clima nas reuniões de fundo de quintal e até os anos 80 do século passado e o último reduto dessas práticas se transportou para além dos quintais, para a quadra do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no bairro Olaria, de onde saíram sambistas de renome na atualidade. A partir do exercício de imersão e da convivência natural, intérpretes de renome mergulhavam nesses ambientes de vertentes musicais de raiz, que em atitudes de resistência, mantinham vivas a tradição musical do samba. No caso dos Partideiros do Cacique, a cantora Beth Carvalho, considerada madrinha dessa leva de compositores sambistas, tem sido a cantora que mais grava músicas de compositores da região. Dentre os compositores de samba da atualidade alguns que se destacam pela qualidade das suas criações. Compositores como Toninho Geraes, João Martins, Marcelinho Moreira, Serginho Meriti e Leandro Fregonesi, entre outros, têm propiciado a sobrevivência de estilos musicais genuínos ligados ao universo de samba. Nessa perspectiva os mesmos vêm vivenciando uma estabilidade profissional na medida em que se fazem presentes nos principais locais do circuito do samba com shows, venda de CDs e canjas habituais, além de terem suas composições gravadas por intérpretes e compositores de renome como Beth Carvalho, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho. O samba “Comida Mineira” Os compositores do samba “Comida Mineira” (GERAES, 2010) representam uma geração de compositores que esbanja talento. São eles o mineiro, quase carioca, Toninho Geraes e o letrista Paulinho Rezende. Esse 195 samba resolve problemas, como em geral os sambas o fazem. Uma paixão declinada, uma dívida, uma ou várias saudades ... Os compositores traduziram em melodia e letra a saudade da cozinha mineira, associando as delícias salgadas e doces aos prazeres que a mineira, amada e cozinheira, os proporciona. Interessante observar que em boa parte dos sambas que associam a festa com a culinária a figura feminina aparece como a boa cozinheira, que além do banquete ainda faz a feira. No samba Comida Mineira o compositor, letrista, livra a cozinheira dessa parte da tarefa e ainda incrementa uma bela fogueira! A bebida é outro componente imprescindível no mundo do samba. Ela, a loira gelada, rola solta em volta da mesa do samba e irriga a garganta dos cantantes e dançantes. Na cidade do Rio de Janeiros os sambas de Toninho Geraes desfilam, bem no momento da sua canja musical, nas vozes de cerca de 1500 pessoas que lotam o Clube Renascença no bairro Andaraí, próximo a Tijuca e ao bairro Vila Isabel. As rodas de samba do sábado e o Samba do Trabalhador, comandado por Moacyr Luz em plena segunda-feira, agitam parte do circuito do samba genuíno no Rio de Janeiro. No samba “Alma Bohemia” os parceiros Toninho Geraes e Paulinho Rezende descrevem os bairros no circuito do samba. O trajeto inicia-se na Gamboa e segue para a Lapa, percorrendo, em seguida, às ladeiras do bairro Santa Teresa. Uma das ladeiras é descrita na música como “Morro dos Prazeres”, exatamente no refrão. A amada “dorme cedo” enquanto o boêmio só vai deitar “quando dou o tom na viola pro galo cantar” (GERAES, 2010). Como visitante feliz, “De bar em bar” descobrimos ainda um lugar especial, onde o compositor mineiro/carioca solta a voz em mais uma “canja” musical. No Trapiche Gamboa, próximo ao porto, nos arredores da Praça Mauá, as atrações são especiais. Nas quintas-feiras a cultura popular faz seu lar com lindos sambas de rodas, maracatus, entre outros gêneros como o jongo, interpretados pelas cantoras da Serrinha, região situada 196 na zona metropolitana carioca, que mantém viva essa manifestação cultural carioca. Dely Monteiro, Lazir Sinval, Luiza Marmello e um grupo de instrumentistas do ritmo e das cordas abrilhantam a noite. Aos sábados é a vez dos jovens sambistas do Grupo Galo Cantô. E a comida mineira” afinal... Seguindo nesse ritmo boêmio chegamos ao domingo com uma imensa saudade retratada no samba “Comida Mineira”. Quem sabe eles encontram aquela boa alma, amada e desejada pra lhe fazer uma gama de delícias da cozinha mineira que desfila no samba. O compositor, como dito, já mandou fazer a feira, botou lenha na fogueira, e diz estar com saudades das Minas Gerais. Nesse compasso o mineiro-carioca vai seguindo a rota do samba com seus parceiros, Paulinho Rezende, com o samba de roda da Bahia, na parceria com Roque Ferreira e ainda com outro baiano de peso, o compositor Nelson Rufino. Time bom que embala nossos ouvidos e corações no decorrer da audição do CD Ensejo de Toninho Geraes. As alegrias e mágoas que o amor traz são cantadas nos seus sambas cheios de molejos, sabores gelados e quentes, e de temperos salgados e doces. Nesse banquete mineiro desfilam o tutu, o cheiro verde, a vaca atolada, a pimenta, a mandioca, a polenta, o angu, a carne seca, o iô iô, o iá iá e tudo o que mais rolar. Nessa cozinha, embalada de cheiros mil, desfila ainda uma galinhada, uma leitoa assada e uma rabada com agrião pra temperar a festa onde quem faz carinho no seu paladar manda no seu coração. Em clima de festa tem ainda uma costelinha regada ao tempero ora pro nobis, “que é de se comer rezando”, um feijãozinho tropeiro, toicim de fumeiro, torresmo e jiló e melhor que tudo isso “só mesmo o nosso xodó” (GERAES, 2010). Num outro domingo talvez, ainda sob o efeito da comida mineira, nos deliciamos com um lindo samba quase canção, mas o ritmo quase vivo não dá mole não, o “Pago pra ver” do compositor Toninho Geraes, em parceria com Nelson Rufino também é cantado pela galera do Clube Re- 197 nascença. Nesse samba talvez nos refaçamos de um amor perdido prometendo com todas as letras, “não mais se entregar feito criança” (GERAES, 2010). Em outro domingo, ou num sábado, ou na segunda, ou na quinta-feira, desfila ainda no banquete mineiro um frango com quiabo, uma dobradinha com muito couve, um lombo à Chico Mineiro, os quitutes doces, a broa e o biscoito sinhá, o beijo guloso e um cheiro doce da sua sinhá. E pra fechar o samba nosso letrista, embalado pelo ritmo do samba e pela melodia contagiante conquista de vez o coração da sua amada ao dizer que delicia mineira não há melhor que você... No momento final na frase de improviso, chamada “fuleira”, afirma que “o seu beijo é o melhor pão de queijo” (GERAES, 2010). E seguimos comendo um feijão preto em dia de preto velho, pertinho do dia 13 de maio, no Clube Renascença, lugar antigo da resistência negra na capital carioca. No Rio de Janeiro, em São Paulo e em todo o país o samba é vivenciado em tom africano, com os bons tapas dos negros percussionistas nos tan-tans, repiques de mão e nos pandeiros. Nesses tapas trocados no contratempo encontramos o tempo do negro, com seus toques de percussão, nos seus sorrisos e até nos choros de emoção. Aquele acento no tempo fraco do surdo, como muito bem nos descreveu Sodré (1979), nos faz caminhar com a alegria que o samba nos dá, nos trazendo, como nos diz os sambistas paulistas Magnu Sousa e Maurílio Oliveira, em um samba interpretado pelo grupo paulista Quinteto em Branco e Preto e pela cantora Fabiana Cozza, um “Novo Viver”. Referências Bibliográficas Arroyo, Margarete. 2001. Etnografia Musical em Escola de ´Ensino Básico`: Desvelando Crenças e Práticas Locais. Belo Horizonte. Anais do XIII Encontro da Associação de Pesquisa e Pós Graduação em Música. Lopes, Ney. 2008. Partido Alto: samba de bamba. Rio de Janeiro: Pallas\ Editora e Distribuidora Ltda. Neves, Paulo. 1985. Mixagem o ouvido musical do Brasil, São Paulo: Editora Max Limonad Ltda. Pinto, Alexandre Gonçalves. 2009. O Choro. Rio de Janeiro: Funarte. Silva, José Alberto Salgado. 2011. Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia. 198 Em Música e Cultura, Vol. 6. Silveira, Magno Bissoli Siqueira. 2012. Samba Identidade Nacional: das origens à era Vargas. São Paulo: Editora UNESP. SODRÉ. Muniz. 1979. Samba: o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri. Tinhorão, José Ramos. 1997. Música Popular: um tema em debate. São Paulo: Editora 34. 3ª edição. Páginas na Internet www.oglobo.globo.com/rio/georgia-gomes-agita-lapa-com-sambaproezas-culinarias-4884063. Consultado em 08.2013. Compact Disk Geraes, Toninho. C.D. 2010. Preceito. Sony Publishing. Rio de Janeiro. Anexo 199 A música como expressão gastronômica: o baião de Luiz Gonzaga Moacir Ribeiro Barreto Sobral Universidade Anhembi Morumbi [email protected] Sênia Regina Bastos Universidade Anhembi Morumbi [email protected] Resumo O cantor e compositor Luiz Gonzaga do Nascimento, considerado o Rei do Baião, divulgou pelo Brasil os forrós pé-de-serra, o xote, o xaxado e outros estilos musicais, cujas letras evidenciavam a pobreza, as dores e as injustiças presentes na sua região natal, ecoando as tristezas e os amores de um povo que ainda não tinha voz. A presente pesquisa, de natureza qualitativa, objetiva identificar e analisar as letras das músicas cantadas por Luiz Gonzaga que apresentam elementos relativos à comensalidade, sociabilidade e aspectos da alimentação nordestina, todos diretamente associados às práticas da hospitalidade. A pesquisa tem como objetivo principal a alimentação e os sabores do nordeste que sempre estiveram presente na vida de Gonzaga. Fundamenta-se na análise de conteúdo dos estudos biográficos do cantor, na seleção e análise das letras das músicas a partir das categorias alimentação, comensalidade e sociabilidade. Palavras-chave hospitalidade, sociabilidade, comensalidade, alimentação, Luiz Gonzaga 200 Introdução Gostaria que lembrassem que sou filho de Januário e dona Santana. Gostaria que lembrassem muito de mim; que esse sanfoneiro amou muito seu povo, o sertão. Decantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes. Decantou os valentes os covardes e também o amor. (GONZAGA, 1986). O cantor e compositor popular brasileiro Luís [Lua] Gonzaga [Gonzagão] do Nascimento nasceu em Exu município de Pernambuco, recebeu o título de Rei do Baião de Humberto Teixeira, no auge da sua carreira. Primeiro músico a assumir sua origem nordestina, sempre trajado com chapéu de couro e acompanhado de sanfona , zabumba e triângulo, levava alegria às festas juninas e mostrava ao Brasil os forrós pé-de-serra e outros ritmos ainda desconhecidos por todo o país, como o xote e o xaxado, cujas letras evidenciavam a pobreza, as dores e as injustiças presentes na sua região natal, ecoando as tristezas e os amores de um povo que ainda não tinha voz. Muitos consideravam ainda no início de sua carreira, que Luiz Gonzaga tinha uma voz de “taboca rachada” 1, mas isso não o impediu de popularizar a música nordestina na década de 40. No início de sua carreira o cantor apostou em sua divulgação, por meio da participação em shows de calouros, inicialmente tocando valsas e tangos. Porém, em virtude da solicitação de alguns nordestinos para que apresentasse uma música que lhes tocasse o coração, que rememorasse as histórias vivenciadas no nordeste, o cantor retomou o estilo musical de sua infância. “Pé de Serra” e “Vira e mexe” conquistaram não somente os estudantes, mas também a maior nota do programa de calouros de Ary Barroso (DERYFUS, 2007). Luiz Gonzaga trouxe para si a missão de representar o povo nordestino, relatar em suas músicas suas alegrias e tristezas e contar para o Brasil as dificuldades climáticas vivenciadas pelo povo sertanejo. Isso tudo em 1 A taboca rachada, nesse sentido da frase, significa uma voz inadequada para cantar. 201 forma de poesia. Oriundo do folclórico município de Exu descobriu na paisagem do interior do nordeste brasileiro o material necessário para produzir suas canções. Falecido em 1989, o artista ainda tem sua obra viva nas exposições de numerosos artistas. Por ocasião do centenário de seu nascimento, em dezembro de 2012, vários eventos comemorativos homenagearam o compositor pernambucano. Um dos tributos de destaque é o “Canto de todos os cantos”, projeto arquitetado por Guilherme Toledo, que reúne músicos de várias regiões diferentes do Brasil para gravação de um DVD com 13 canções. Nesse sentido, destaca-se também o filme longa metragem, conduzido pelo diretor Breno Silveira, “Gonzaga, de Pai para Filho”, homenageando as trajetórias dos patriarcas da família: Gonzaga e Gonzaguinha. Fundamentado na análise de conteúdo (BAUER, 2002),����������������� foram selecionadas seis letras cantadas ou compostas por Gonzaga, no universo de mais de setecentas canções. Procurou-se destacar músicas que possuem aderência à proposta de trabalho, selecionando canções que destacam os hábitos alimentares dos nordestinos. É a vivência de uma experiência que pressupõe solidariedade. A comensalidade é tratada também como um fator social, a organização da alimentação na vida cotidiana, não se restringe aos aspectos biológico e ecológico. O tema também pode ser abordado como parte do simbólico e do normativo, associando-se ao aspecto cultural, auxiliando o estabelecimento de laços sociais e familiares (BOUTAUD, 2011). A família nordestina constitui temática recorrente nas músicas cantadas por Luiz Gonzaga, sempre associada ao trabalho nas roças, a participação na feiras livres onde vão vender a colheita e comprar mantimentos, por ocasião das refeições em família, e ainda nas festividades, que ocorrem em junho como exemplo, a festa do milho, ou o mutirão para a construção de uma casa de barro e taipa indicando laços festivos são reafirmados. 202 Para Camargo (2004) a hospitalidade entre familiares, entre amigos é, sobretudo, festiva e constitui fator de promoção da solidariedade mutua, de vínculos e da partilha da comida. A alimentação nordestina faz-se presente na sociabilidade. Muitos itens que compõem a mesa nordestina podem ser encontrados em lugares de encontro, como as feiras de rua, popularizadas nas letras de Gonzaga, como por exemplo, na Feira de Caruaru. É possível perceber algumas peculiaridades dessa alimentação: as influências portuguesa, indígena e africana nessa cozinha, a simplicidade de seus pratos, um padrão específico de etiqueta, a forte personalidade do sertanejo, a ponto de recusar a influência de hábitos alimentares de regiões próximas. A fundamentação da alimentação nordestina encontra-se nas obras de Luiz Câmara Cascudo (2004), especialmente no livro “A historia da alimentação no Brasil” em Gilberto Freyre (2002) no “Açúcar”, e em Raul Lody, cujos livros abordam a alimentação no Brasil e no Nordeste. Foi realizada uma pesquisa de campo2 no estado de Pernambuco, mais especificamente a três cidades Recife, Caruaru e Bezerros, com o objetivo de conhecer dois museus sobre a vida e obra de Luiz Gonzaga: o Museu Fonográfico de Luiz Gonzaga e o Museu do Forró. Nessa ocasião procedeu-se a uma pesquisa exploratória da alimentação disponível nos bares e restaurantes das cidades visitadas em Pernambuco, estado onde nasceu Gonzaga e cantado em suas músicas. Dentre essas músicas são analisadas as categorias comensalidade e alimentação, onde Gonzaga e seus compositores descrevem a vida familiar na roça, para cultivo e produção de alimentos e seus processos culinários na preparação de pratos típicos da região, destacam-se na analise as músicas, “Frutos da terra (1982)”, “Feijão com covê (1946)” e “Baião de Dois (1977)”. 2 A viagem foi realizada em Março de 2013. 203 Construção Metodológica A alimentação, a(s) cultura(s) nordestina(s) são temáticas recorrentes nas letras das músicas cantadas por Luiz Gonzaga ao longo de sua carreira. A análise dessas composições proposta nesse estudo evidencia tais temáticas fundamentada no aporte teórico da hospitalidade. Gonzaga cantou o sertão nordestino, evidenciou a religião e as crenças populares ali presente problematizou valores sociais, descreveu as feiras, mercados, bares e a alimentação cotidiana. Sua música também se ocupou de pessoas comuns, tais como repentistas, cronistas, vaqueiros, cangaceiros e as mulheres guerreiras do sertão, bem como de algumas personalidades da região, como seu ídolo Virgulino Ferreira vulgo Lampião. Ao longo de sua trajetória Gonzaga gravou 248 músicas em 78 RPM, 38 músicas em 45 simples, 72 músicas em 45 duplos, 696 músicas em PLs 12 polegadas e 16 LPs de 10 polegadas, totalizando 1.063 músicas sem regravação (OLIVEIRA, 1991). Tais gravações foram realizadas em três gravadoras: a RCA, onde gravou a maioria de seus sucessos, a Odeon e a Copacabana. É autor de 53 composições, interpretou sozinho 329 músicas e 243 com parceiros. O procedimento metodológico pautou-se primeiramente por uma observação do conjunto de composições cantadas por Luiz Gonzaga, seguiu-se a seleção das letras que se relacionam à alimentação, à(s) cultura(s) nordestina e a sua biografia. As letras foram analisadas por trechos, identificando em cada estrofe ou verso as manifestações socioculturais relativas ao Nordeste. O corpus é uma seleção de materiais, “determinada de antemão pela analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá trabalhar” (Barthes, 1967, p.96). Barthes, ao analisar textos, imagens música e outros materiais como significantes da vida social, estende a noção de corpus de um texto para qualquer outro material. Em seu opúsculo sobre os princípios da semiótica ele reduz as considerações 204 sobre seleção a poucas páginas. A seleção parece menos importante que a análise, mas não pode ser separada dela (BAUER, 2002, p. 44). O corpus documental da presente na pesquisa é constituído por seis letras, cujas temáticas principais relacionam-se à biografia do cantor, nesse caso, a questão migratória e à comensalidade nordestina. A eleição dessas temáticas fundamenta-se no aporte teórico da hospitalidade, o que será explicitado adiante e, como salienta Bauer (2002), relatar o processo da seleção dos documentos é tão importante quanto a sua análise. As letras das músicas selecionadas foram retiradas de um site especializado sobre a vida e a música de Luiz Gonzaga, do pesquisador “Paulo Vanderley”. [...] a pesquisa qualitativa pode ser considerada como sendo uma estratégia de pesquisa independente, sem qualquer conexão funcional com o levantamento ou com outra pesquisa quantitativa independente. A pesquisa qualitativa é vista como um empreendimento autônomo de pesquisa, no contexto de um programa de pesquisa com uma série de diferentes projetos [...]. (BAUER, 2002, p. 27). De abordagem qualitativa, a metodologia adotada apoia-se na análise de conteúdo. Segundo Bauer (2002) a análise de conteúdo embasa a interpretação do texto tanto qualitativa quanto quantitativa, e espera compreender o pensamento do sujeito através da escrita do seu texto. Sugere que todas as análises sejam categorizadas, para o que se faça necessárias a criação de categorias que levam em consideração o objeto de pesquisa. O artista e compositor Luiz Gonzaga constitui o ator principal da pesquisa, por vezes é o protagonista das narrativas cantadas, cujas letras contemplam expressões culturais nordestinas. Canta o lugar onde nasceu e o sertão constitui o elemento facilitador da sua construção musical. Como já ressaltado, a importância do povo e do lugar cultural possibili- 205 tou a identificação e a construção conjunta com seus compositores, do forró3 e do baião4. A intervenção dos seus principais compositores, como Humberto Teixeira e Zé Dantas, ambos migrantes oriundos da mesma região e residentes no Rio de Janeiro, facilitou a criação de composições com temáticas socioculturais e nordestinas. Na análise das letras composta por Gonzaga e seus compositores percebe-se a junção da escrita poética lírica e popular. Numa leitura atenta das canções de Luiz Gonzaga, e possível perceber a presença, de múltiplas vozes sociais dialogando, de forma que nas letras das canções a sua visão do nordeste não emerge sozinha, há presença de uma interação das suas palavras com as palavras de outros. As canções de Luiz Gonzaga possuem inter-relações dialogadas com outros discursos particulares como, discurso religioso, discurso politico, discurso da seca, etc. (CORDEIRO, 2008, p. 62). Alimentação sertaneja Cascudo (2004) aponta quatro tipologias na cozinha nordestina: a cozinha de litoral, baiana, maranhense e a mais cantada nas musicas de Luiz Gonzaga, a cozinha sertaneja. Privilegia-se nessa dissertação a cozinha sertaneja, que nasce no sertão nordestino, que abrange principalmente os estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, em região de clima semiárido, cujas temperaturas oscilam entre 28°C e 44°C, ambiente rustico e mata de caatinga. A palavra Sertão é de origem portuguesa, encontrada pela primeira vez relacionada ao Brasil na Carta de Pero Vaz de Caminha. É por 3 Existem três versões para a origem do termo forró. A mais vivenciada pelos autores e a de Câmara cascudo, que a origem vem do termo africano “forrobodó”, que segundo Cascudo (2004) significa algazarra, festa para ralé, arrasta-pé. 4 Cascudo (1972:128-129) relata que o baião foi uma “dança popular muito preferida durante o século XIX no nordeste do Brasil.”. O mesmo que baiano. O mesmo que rojão. Pequeno trecho musical executado pelas violas nos intervalos do canto no desafio. 206 essa categoria, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) designa o semiárido nordestino, adotada, em síntese, para indicar terras desconhecidas, longe do mar, onde o clima era muito diferente do habitado pelos portugueses (FERREIRA, 2008, p. 93). Segundo Lody (2008) no sertão pela manhã, antes do sertanejo ir para a roça, come manteiga do sertão5, cuscuz de milho com leite, macaxeira, batata-doce, bode com farinha e café com rapadura. À noite, na volta do seu trabalho, junto com a família, alimenta-se de coalhada com rapadura, farinha com mandioca, queijo assado na brasa, tapioca com leite e café. O café da manhã e da noite, por muitas vezes, apresentam os mesmos pratos, ou seja, o mesmo padrão de consumo. Já no seu almoço o boiadeiro ou agricultor, ao se alimentar em casa, com a família ou simplesmente no pasto, costuma levar sua boia6 junto com ele, seus alimentos apresentam a mesma composição acima evidenciada, proporcionando-lhe energia para o trabalho pesado. Alimentos como farinha, carne seca, rapadura e um dos principais a palma forrageira7, contribuem como principais produtos para sua dieta. Os animais também fazem parte da dieta como a galinha, bode e o boi. A vaca e o boi representam papeis importantes no sertão nordestino: a vaca na produção de leite, principal matéria prima para fabricação de manteiga, a manteiga de garrafa, queijo do sertão e queijo coalho e o boi para produção da carne, como de carne de sol e jabá, ambas desidratadas pelo sal que ajuda na conservação do alimento e também a modificar da sua estrutura e sabor. As carnes desidratadas foram utilizadas no Brasil antes mesmo da colonização. A primeira técnica foi o moquém, onde o indígena defumava 5 Mais conhecida como manteiga de garrafa ou manteiga clarificada. 6 Prato levado para o local de trabalho, normalmente servido frio. 7 A palma, de fácil plantio se adapta perfeitamente em clima secos, é utilizada para alimentação do rebanho e para consumo próprio. 207 e secava as carnes de caça, para terem mais tempo de vida. Fernandes (2007, p. 38) relata esta estratégia: Enterram profundamente no chão quatro forquilhas de pau, enquadradas à distância de três pés e à altura de dois pés e meio; sobre ela assentam varas com uma polegada ou dois dedos de distância uma da outra, formando uma grelha de madeira [...] nele colocam a carne cortada em pedaços, acendendo um fogo lento por baixo, revirando de quarto em quarto de hora até que esteja bem assada. Como não salgam suas viandas para guardálas, como nós fazemos, esse é o único meio de conservá-las. Outra técnica utilizada até hoje é a salga das carnes, técnica introduzida pelos portugueses, já que os índios não utilizavam sal. Com ajuda deste processo que se originou a carne seca, carne do sol, charque, entre outros produtos que utilizam a salga em seu processo de fabricação. As carnes salgadas são muito utilizadas nas viagens dos vaqueiros e cangaceiros no nordeste, juntamente com a farinha de mandioca e a rapadura. É comum notar no sertão nordestino vaqueiros conservando as carnes desidratadas por baixo da sela do cavalo, entre um couro do animal e a sela, deixando-a mais macia. Ao mesmo tempo nas longas viagens com tempo curto, os vaqueiros e cangaceiros faziam a sua refeição, em cima da sela do cavalo em movimento, no máximo jogavam um pouco de manteiga de garrafa para hidratá-las e dar mais sabor ao alimento, as vezes também quando tinham, junto com a carne comiam farinha para dar a sensação de satisfeitos mais rapidamente. No sertão o sol ajuda a combinar sobres de carnes e peixes [...] carnes do sertão ou de sol, chegam a pratos importantes, como Maria-isabel,[...] Sertão, terra de produtos que vêm do gado leiteiro, formando cardápios que assumem valores nutritivos. Coalhadas, manteigas, queijo de coalho, queijo manteiga, para diferentes usos, que vão do café da manhã com cuscuz de milho e leite de coco [...] Trajetória do cangaço, dos vaqueiros, das lutas e conquista; da fé em santos inventados em de místicossalvadores. Desejos messiânicos de viver vidas além da terra; terra tão 208 dura e seca. O cabra é forte, cabra danado, cabra de engenho, cabra da peste, cabra macho, sim sinhô.”. (LODY, 2010, p. 20). A manteiga de garrafa, também conhecida no nordeste como manteiga da terra ou manteiga do sertão, é muito utilizada pelo sertanejo em sua cozinha, na cocção de alimentos. Sempre disposta na mesa, utilizada como tempero em pratos tradicionais. Fora da cozinha se apresenta amarrada nas cinturas dos cangaceiros e vaqueiros, que a utiliza em suas viagens para hidratar e dar sabor às carnes desidratadas, que se localizam em baixo das selas de seus cavalos. Segundo Cascudo (2009) os cangaceiros engarrafavam as manteigas para facilitar a alimentação quando estivessem em cima dos cavalos, assim não parando a viagem, facilitando na alimentação, isso também era utilizado para engarrafar as farinhas de mandioca. Neste mesmo identifica Virgulino, o Lampião, como possível inventor da manteiga de garrafa. O cangaceiro que viveu no sertão nordestino, levava consigo culturas e costumes de outras cidades, colocando em circulação diferentes culturas. No nordeste do Brasil, a manteiga de garrafa é obtida, entre outras maneiras, da seguinte forma: o leite é levado acoalhar, separase o soro do creme que se forma, o qual é batido ligeiramente para ficar consistente – ponto intermediário da manteiga; leva-se então ao fogo brando. Quando a “borra” começa a dourar retirase do fogo e coa-se em seguida. O liquido resultante é a manteiga da garrafa. Ou então, a massa do leite fermentado com coalho animal é levada à cocção, geralmente em fogão a lenha: deve ser levada a dourar, e a continuidade do cozimento desprende o que virá a ser a manteiga de garrafa. Ela leva esse nome por ser comercializada em garrafas. Não pode ser utilizada como fritura, sendo ideal na finalização de pratos de legumes, tapioca e como acompanhamentos da carne do sol (BARRETO, 2000, p. 249). A alimentação sertaneja se familiariza com o ambiente e seu povo. Vimos que o cardápio do sertão, diferentemente do restante do nordeste, são mais secos sabores mais simples e rustico. A terra seca que se cultiva 209 e produz pouco ou às vezes nada. A grande ligação do animal com o nordestino, para ajuda plantação e alimentação da sua família. No caso da vaca, o leite se transforma em vários subprodutos para sobrevivência e economia regional. Neste capitulo foi apresentada uma simples e sucinta representação da cozinha nordestina, apresentando a cultura nordestina ligada ao seu povo e ingredientes simples que se transformam em produtos e pratos de características culturais única no Brasil. Comensalidade e alimentação nas letras das músicas cantadas por Gonzaga As músicas analisadas têm o intuito de refletir sobre a hospitalidade e comensalidade presentes nas músicas cantadas por Luiz Gonzaga, destacando também o nordeste cantado na visão dos compositores e do próprio cantor. A linguagem utilizada por Gonzaga assemelha-se a forma de manifestação regional, onde apresenta a oralidade que chegava mais perto da fala do homem nordestino. Segundo Albuquerque (2001) o “falar nordestino” constitui uma língua e sotaques imaginários, que se modificam com o passar dos tempos e por região do Nordeste. Neste caso cada região ou cidade desenvolve uma linguagem que se se entende como uma variação linguística e não dialetos. Para fundamentá-la realizaram-se pesquisas sobre pratos típicos, ingredientes, colheita, preparação do alimento nas casas de sertanejo e o comer juntos, nesse sentido os indicadores dessa categoria são: alimentação e comensalidade. Na Categoria alimentação se analisa, nas letras cantadas por Gonzaga, a identificação de pratos regionais e ingredientes associados à cultura e identidade nordestina, já em comensalidade se analisa a colheita deste alimento, preparação do alimento e o comer juntos. Além de cantar e compor músicas sobre a realidade nordestina insere nessas canções parte da sua história e da sua identidade, retratos do que 210 vivenciou na sua rotina e, consequentemente, evidencia representações de suas raízes. “Feira de Caruaru” (1957), uma das mais importantes músicas cantada por Gonzaga, demostra a variedades de ingredientes e produtos encontrados lá. A feira de Caruaru/ Faz gosto da gente ver/ De tudo que há no mundo/ Nela tem pra vender/ Na feira de Caruaru/ Tem massa de mandioca/ Batata assada/ Tem ovo cru/ Banana, laranja e manga/ Batata doce, queijo e caju/ Cenoura, jabuticaba,/ Guiné, galinha,/ Pato e peru/ Tem bode, carneiro e porco/ Se duvidar isso é cururu / Tem cesto, balaio, corda/ Tamanco, greia, tem boi tatu/ Tem fumo, tem tabaqueiro/ Tem tudo e chifre/ De boi zebu/ Caneco, arcoviteiro/ Peneira, boi/ Mel de uruçu/ Tem carça de arvorada/ Qué pra matuto/ Não andar nu/ Na feira de Caruaru/ Tem coisa pra gente ver/ De tudo que há no mundo/ Nela tem pra vender/ Na feira de Caruaru/ Tem rede, tem baleeira,/ Mó de menino/ Caçar nhandu/ Maxixe, cebola verde,/ Tomate, coentro,/ Côco e xuxu/ Armoço feito na corda,/ Pirão mexido/ Que nem angu,/ Mobília de tamborete/ Feita de tronco de mulungu/ Tem louça,/ tem ferro véio,/ Sorvete de raspa/ Que faz jaú/ Gelado, caldo de cana/ Fruta de parme/ E mandacaru/ Boneco de vitalino/ Que são conhecido/ Inté no Sul,/ De tudo que há no mundo/ Tem na feira de Caruaru/ A feira de Caruaru. (ALMEIDA, 1957). Na letra composta por Onildo Almeida e cantada por Luiz Gonzaga, é demostrada a riqueza que a feira tem nos ingredientes regionais comercializados e usados no preparo de pratos nas cozinhas de casas e restaurantes da região. Ingredientes como carde do sol, carne seca, macaxeira, farinha, tapioca, frutas típicas e muito mais. A letra da música também enfatiza que tudo que há no mundo se encontra lá, ou seja, os autores demonstram a grande variedade de itens encontrados na feira. Além de alimentação e pratos regionais, ressaltam a importância do artesão de brinquedos, móveis e de decoração regional feita de barro, como por exemplo, os bonecos de Vitalino produzidos e vendidos na própria feira. Esta terra dá de tudo/ Que se possa imaginar/ Sapoti, jaboticaba/ Mangaba, maracujá/ Cajá, manga, murici/ Cana caiana, juá/ 211 Graviola, umbu, pitomba/ Araticum, araçá/ Engenho Velho ô, carnavial/ Favo de mel no meu quintal/ O fruto bom dá no tempo/ No pé pra gente tirar/ Quem colhe fora do tempo/ Não sabe o que o tempo dá/ Beber a água na fonte/ Ver o dia clarear/ Jogar o corpo na areia/ Ouvir as ondas do mar/ Engenho Velho ô, carnaval/ Favo de mel, no meu quintal (FEIRA, 1982). A música, “Frutos da terra” (1982) cantada por Gonzaga valoriza os frutos típicos do nordeste brasileiro, como cajá, mangaba, pitomba, graviola, manga. O cantor demonstra no seu histórico uma intensa preocupação em não perder suas referências originais, advindas da sua terra de origem, e a necessidade de ser porta voz de seu povo, divulgando para o Brasil e o mundo os hábitos e frutos da região nordeste. Além de valorizar os frutos e a terra produtiva, a música também tem um intuito de levar ao nordestino retirante do sudeste do Brasil, informações sobre a sua terra e o poder que ela ainda tem de gerar frutos, nas fazendas ou no quintal das casas dos nordestinos e demostra a valorização das frutas regionais. Ai que será?/ Tenho pratando/ Muita côve no quinta/ Ai o que será?/ Feijão com côve/ Que talento pode dá? } bis/ Cadê a banha?/ Pra panela refogá/ Cadê açúcar?/ Pro café açucara/ Cadê manteiga?/ Leite e pão/ Onde é que tá?/ Cadê o lombo?/ Cadê carne de jabá?/ Já tou cansado/ De escutá o doutor fala/ Que quarqué dia/ As coisa tem que melhorá/ Sem alimento/ Num se pode trabaiá/ Por que será?/ Feijão com côve/ Que talento pode dá?. (GONZAGA, PORTELLA, 1946). Baião intitulado “Feijão com Covê”, compostos por Luiz Gonzaga e José Portella, ambos os compositores apresentam nesta música, produtos típicos da alimentação no sertão nordestino valorizando os ingredientes, mas ao mesmo tempo questiona a falta deles. Apresenta as dificuldades do nordestino com a seca mostra a preocupação com a falta de alimento. Incorpora os problemas do povo e as falsas promessas feitas pelos políticos, que fazem promessas de fartura de alimentos no nordeste que nunca chegam. Gonzaga critica os políticos usando alimentos típicos da sua 212 região, e denuncia a miséria e o cansaço do seu povo no nordeste. O Sertão deixa de ser um lugar, oportuno e trona-se um mundo, abandonado pelas autoridades, de tristeza e miséria, de um povo cansado da pobreza. Capitão que moda é essa, deixe a tripa e a cuié/ Home não vai na/ cozinha, que é lugá só de mulhé/ Vô juntá feijão de corda, numa panela de arroz/ Capitão vai já pra sala, que hoje têm baião de dois/ Ai, ai ai, ó baião que bom tu sois/ Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois/ Se o baião é bom sozinho,/ que dirá baião de dois/ Ai ai, baião de dois, ai ai, baião de dois/ Capitão que moda é essa, deixe a tripa e a cuié/ Home não vai na/ cozinha, que é lugá só de mulhé/ Vô juntá feijão de corda, numa panela de arroz/ Capitão vai já pra sala, que hoje têm baião de dois/ Ai, ai ai, ó baião que bom tu sois/ Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois/ Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois/ Ai ai, baião de dois, ai ai, baião de dois. (TEIXEIRA, GONZAGA, 1977). Baião intitulado “Baião de Dois”, composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A música foi composta em homenagem a um dos maiores clássicos da culinária regional nordestina e um dos mais consumidos. Ao mesmo tempo faz também uma homenagem as mulheres cozinheira da região nordeste. Segundo Fernandes (2001) o baião de dois é um prato de origem simples feito à base das sobras de feijão e arroz, ao longo dos tempos foi sendo adaptado com pedaços de carnes secas, queijo coalho, manteiga de garrafa e linguiça. Ôi pisa o milho, penerô xerém/ Ôi pisa omilho,penerô xerém/ Eu num vou criar galinha/ Pra dar pinto pra ninguém } bis/ Na minha terra/ Dá de tudo que plantar/ O Brasil dá tanta coisa/ Que eu num posso decorar/ Dona Chiquinha/ Bote o milho pra pilar/ Pro angu, pra canjiquinha/ Pro xerém, pro munguzá/ Só passa fome/ Quem não sabe trabalhar/ Essa vida é muito boa/ Pra quem sabe aproveitar/ Pego na peneira/ Me dano a sacolejar/ De um lado fica o xerém/ Do outro sai o fubá/ Saculeja, saculeja, saculeja, já} bis/ Penerô xerém.( GONZAGA, LIMA, 1945). 213 Baião intitulado “Penerô Xerém” composta por Luiz Gonzaga e Miguel Lima. Apresenta o Xerém como subproduto do milho, utilizado para alimentação das granjas de galinhas e para a produção de pratos típicos da culinária nordestina. Do milho retiramos vários subprodutos usados na culinária nordestina, Gonzaga apresenta na música alguns pratos regionais, como o angu, canjiquinha e munguzá. Segundo Araújo (2009), o milho tem grande presença na alimentação humana e animal, pelas suas características nutricionais e grande fonte energética. Existem mais de 600 derivados do milho e destes 500 destinam-se para consumo humano, como: farinha de milho, xerém, canjiquinha, óleo. São utilizados na culinária brasileira, tendo participação efetiva de varias preparações cuscuz, polenta, canjica, pamonha, pipoca entre outros pratos da culinária regional. Eu sou do Norte/ Rumei para São Paulo/ Fui mudar de sorte/ Com o fole na mão/ Corní de tudo/ Comida italiana/ Bife parmegiana/ Canelão de macarrão/ Provei também/ A tal de passarela/ Bebí da caipirinha/ E vinho de garrafão/ Mas eu confesso/ Não é por ser de lá/ Cana pernambucana/ É a maior, meu irmão/ Oxente!/ Quando falo, não retruco/ Oxente!/ Cana só de Pernambuco } bis ( GONZAGA, SIMOM, 1954). Forro intitulado “Cana Só de Pernambuco”, composto por Luiz Gonzaga e Victor Simon. Apresenta a sua chegada a cidade de São Paulo e aproveita a vida gastronomia da culinária paulistana. A influência italiana na cozinha paulista na década de 50 e a regional mostrando a caipirinha. Mas sente saudades da sua cachaça pernambucana. Gonzaga fala em entrevista a Dreyfus (2004), sobre a particularidade em cada nordestino com sua cachaça, normalmente um bom nordestino toma a cachaça produzida em sua terra, fala “cachaça e quem nem filho e mulher, cada um tem a sua”. Em Pernambuco existe o museu da cachaça com mais de oito mil rótulos, só da cidade de Pernambuco. 214 Conclusão As canções de Luiz Gonzaga representam a cultura nordestina, evidenciam personagens, como o sertanejo, o migrante nordestino, o vaqueiro, os cangaceiros, a mulher guerreira etc. Além desses personagens Gonzaga canta o ambiente e o espaço cultural onde se desenvolvem estas histórias como: as casas de taipa, o sertão, as feiras, os mercados, a caatinga entre outros lugares importantes. Nas letras escritas por ele mesmo e por seus compositores evidenciam a cultura nordestina e, sobretudo reconstroem a cultura a partir de sentimentos pessoais vividos por ele ou por seu povo. Gonzaga foi um dos grandes difusores da cultura e identidade nordestina no Brasil e, com muito esforço em seu trabalho, sofrendo preconceitos da sociedade da época conseguiu quebrar barreiras, construir seu próprio ritmo, tornando-se um dos maiores cantores da atualidade. Criou seu próprio estilo, assumiu o papel de artista social, apresentando-se com roupas e chapéus de cangaceiro que lembrava Lampião, também registradas e legadas à posteridade na capa dos discos. Gonzaga assumiu este estilo primeiramente para ficar mais perto do seu povo e quebrar a barreira que os separava quando usava terno e gravata nos shows. A comensalidade e alimentação encontram-se em varias canções, pois Gonzaga adorava comer todo e qualquer tipo de comida, embora manifeste sua preferência pela cozinha nordestina. Dreyfus (1996) aponta que o cantor nunca se alimentava se sentava sozinho em uma mesa, seguindo os ensinamentos religiosos e paternais sempre compartilhava a mesa com alguém. Mesmo quando entrava sozinho em bares de outras cidades, sentava-se com pessoas desconhecidas e partilhava o alimento com elas, ou às vezes se acomodava no balcão e fazia sua refeição conversando com o atendente. Nas músicas como: “Feijão com Covê (1946)”, “Baião de Dois” (1977), “Frutos da Terra (1982)” entre outras apresenta produtos e pratos típicos da região nordeste, ao mesmo tempo em que descreve métodos de produção e ingredientes, aparece o agradecimento à fauna 215 e flora por terem lhe concebido estes produtos naturais. Os animais e a terra estão sempre presentes na vida do sertanejo, no seu trabalho, na colheita e na sua alimentação, dando o sustendo a família. Foram encontradas na analise alimentos e produtos, típicos da alimentação diária do nordestino, como manteiga de garrafa, carne seca, farinha, milho e feijão. Produtos que fazem parte da cesta básica popular. Com todo seu esforço e trabalho consegue ser um artista de renome nacional e internacional, divulgando através de suas músicas a cultura nordestina a partir de um estilo próprio. O seu povo e sua família foram incentivadores de Gonzaga ser representante da música popular do Nordeste. Temos que agradecer aos esforços e criações de ritmos como xaxado, baião, forró que fazem a alegria do nordeste e do povo brasileiro até hoje. Sou um artista feliz, muito feliz, com o dom de unir o povo, só cuido de unir o povo, é nunca se esqueça do povão. Luiz Gonzaga Referências • Fontes musicais Almeida. A Feira de Caruaru. 1957. 78 RPM, RCA. Rio de Janeiro. Gonzaga; Teixeira. Baião de Dois. 1977. LP: Chá Cutuba. RCA Rio de Janeiro. Gonzaga; Portella. Feijão com Covê. 1946. 78 RPM. RCA Rio de Janeiro. Feira. Frutos da terra. 1982. LP: Eterno Cantador. RCA Rio de Janeiro. Gonzaga; Simom. Cana só de Pernambuco. 1954. 78 RPM. RCA Rio de Janeiro. Gonzaga; lima. Penerô Xerém. 1945. 78 RPM. RCA Rio de Janeiro. • Artigos, dissertações, livros Albuquerque, Durval Muniz Junior. 2001. A invenção do nordeste e outras artes. São paulo: cortez . Barreto, Ronaldo Lopes Pontes. 2000. Passaporte para o sabor: tecnologias para eleboração de cardápios. São paulo: senac . 216 Bauer, Martins. 2002. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som . Petropolis, rj : vozes. Boutaud, Jean-Jacques Boutaud. 2004. “Commensalité: lê partage de la table”. In: Le livre de l’hospitalité, accueil de l’étranger dans l’histoire et les cultures, ed: Alain Montadon. France: Bayard. Carneiro, Henrique. 2003. Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de Janeiro: SENAC. Cascudo, Luiz da Câmara. 1979. Dicionario do foclore brasileiro. Rio de Janeiro: Tecnoprint. Ferreira, Leila da Costa. 2008. Diálogos em ambientes e sociadade no brasil (coleção cidadania e meio ambiente). São Paulo: AMPPAS. Freyre, Gilberto. 2002. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do nordeste. São Paulo: Companhia das Letras. Freyre, Gilberto 2009. Á mesa com Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Senac. Lody, Rau Giovanni da Motta. 2008. Brasil bom de boca: temas da antropologia da alimentação. São Paulo: SENAC. Cascudo, Luiz da Câmara. 2004. Historia da alimentação no brasil. São Paulo: Global. Oliveira, Gildison. 1991. Luiz Gonzaga: o matuto que conquistou o mundo. Recife: Comunicarte. Cascudo, Luiz da Câmara. 2009. Viajando o sertão. São Paulo: Global. Santos, José Farias dos. 2004. Luiz Gonzaga: a música como expressão do nordeste. São Paulo: IBRASA. Cordeiro, Betânia Silva. 2008. As canções de luiz gonzaga sob o olhar da análise cirtica do discurso. Recife. Dreyfus,Dominique. 1996. Vida de viajante: a saga de luiz goznaga. São Paulo. Ed. 34. Silva, Expedito Leandro. 2003. Forró no asfalto: mercado e indentidade sociocultural. São Paulo: FAPESP. 217 O samba e a cerveja como símbolos nacionais: eu sou Brahmeiro Antonio Layton Souza Maia Universidade Federal do Ceará [email protected] Resumo O presente artigo, partindo de uma propaganda da cerveja Brahma, busca entender como a cerveja e o samba tornaram-se elementos da identidade nacional brasileira. A partir de uma visão sócio-histórica, embasada pelas considerações de Schneider sobre a “brasilidade”, discute as principais características do imaginário nacional brasileiro, para, então apoiado pelos levantamentos de dados históricos de Vianna, Diniz e Coutinho, encontrar os principais elementos que elevaram tanto a cerveja quanto o samba ao patamar de símbolos nacionais. Palavras-chave identidade nacional, samba, cerveja, brasilidade 218 Introdução Este trabalho tem como mote um vt da cerveja Brahma veiculado em 20081. No referido comercial, um samba cantado por Zeca Pagodinho fala sobre o cotidiano e o orgulho de ser brasileiro, relacionando a cerveja a esses momentos de “brasilidade”. O vt tem um clima bem descontraído e o refrão é cantado num bar no meio de uma roda de samba. Contudo, para uma propaganda de cerveja poder se apropriar de uma situação, faz-se necessário que ela já tenha sido assimilada pelos indivíduos a serem atingidos pela comunicação. Em seu artigo, Tangriane Cella (2010) coloca que as propagandas surgem a partir de um momento sócio-histórico específico, mantendo uma relação intrínseca com seu contexto. Portanto, para que tais anúncios façam sentido, “é preciso manter relações com a exterioridade, com a historicidade [...]” (CELLA, 2010: 116). Sendo assim, para que a Brahma anuncie em grandes meios que também faz parte da brasilidade – ou que é a própria brasilidade, como alguns podem interpretar – é necessário que os elementos mais contundentes do vt já façam parte do imaginário coletivo brasileiro. Esses elementos são justamente o samba (trilha de fundo) e a cerveja (mote do anúncio). Este artigo surge, portanto, da necessidade de tentar compreender como esses dois objetos alcançaram o patamar de símbolos da identidade nacional e pretende organizar dados históricos de forma que se possa entender, pelo menos de forma inicial, que processos acarretaram tal mudança. A pesquisa bibliográfica realizada centrou-se em documentos de cunho histórico, tendo como base sociológica uma pesquisa de Jens Schneider, pesquisador alemão, acerca da identidade nacional brasileira. Brasilidade Antes de tratar sobre a identidade brasileira em si, precisa-se esclarecer alguns conceitos acerca de “identidade nacional”. Nos primeiros parágra1 Vídeo disponível em: <http://youtu.be/hpfh-IJRBic> Consulta: 08/2013. 219 fos de seu artigo, Jens Schneider (2004) pondera que “a identidade étnica funciona basicamente como um ‘dispositivo de rotulagem’” (SCHNEIDER, 2004: 98), ou seja, a identidade surge para diferenciar os indivíduos em grupos. A partir daí, surgem questões como: que fatores são relevantes para a “unidade nacional”? Como os grupos permanecem coesos? Em suas considerações, Schneider (Ibid.) coloca que o primeiro elemento que constitui de fato uma “unidade nacional” é o idioma. É a partir do idioma, acrescido de outros fatores socio-culturais, que o “discurso nacional”2 começa a ser construído. É importante entender também que tal discurso não é apenas uma expressão do nacionalismo, mas um mecanismo de construção da nação como comunidade. Sendo “comunidade” entendido aqui como: conjunto de indivíduos que partilham e replicam os mesmos símbolos, criando assim uma cultura unificada (Ibid.: 99-100). O “discurso brasileiro”, no entanto, parece ser um coro formado por várias vozes, diversos “idiomas” que culminam num único idioma. E essa heterogeneidade formadora do discurso brasileiro acaba sendo sua principal característica. Hermano Vianna (1995) coloca que é justamente a heterogeneidade que torna a cultura brasileira homogênea. Segundo ele, a indefinição (representada no brasileiro pela miscigenação) é a origem do que há de mais brasileiro no brasileiro. Ainda mais: “Sem heterogeneidade não há criatividade; a homogeneidade é comparável à morte do sistema, e só uma perturbação vinda do exterior pode produzir novamente alguma diferenciação interna, gerando ‘trabalho’ ou ‘energia’.” (VIANNA, 1995: 150). Essa heterogeneidade já foi interiorizada pelo brasileiro há algum tempo, de tal modo que de acordo com a pesquisa de Schneider3, o brasileiro vê 2 Discurso nacional é entendido aqui na mesma perspectiva adotada por Schneider: “sistema formativo inter ou supra-individual, voltado para as narrativas e para a construção de significados” (SCHNEIDER, 2004: 101). 3 O pesquisador entrevistou diversos alemães e brasileiros para compor um estudo antropológico sobre a germanidade, a brasilidade e o sentimento de pertencimento social. Segundo 220 sua sociedade como heterogênea e aberta às diferenças, “como um ‘gigante’ pacífico, cheio de alegria e criatividade, que não se deixa envolver em situação de guerra” (SCHNEIDER, 2004: 116). É curioso notar, entretanto, que essa visão do país averso à guerra, contrasta com os altos níveis atuais de violência do país. O brasileiro também enxerga seu país como uma “sociedade de imigrantes”, onde impera o princípio jus soli – o indivíduo possui a nacionalidade do país onde nasce. Princípio logicamente utilizado para promover a integração em um país que, durante a colonização, viveu uma imigração maciça. Também de acordo com a pesquisa supracitada, a maioria dos entrevistados utilizou-se do princípio jus soli para justificar o fato de ser brasileiro, enquanto que a maioria dos alemães entrevistados argumentou ser alemão devido a sua ascendência – princípio jus sanguinis: o indivíduo herda a nacionalidade de seus ascendentes. Percebe-se, através das linhas anteriores, que o conceito de pertencimento para o brasileiro está bastante ligado ao local de nascimento. Embora rígido em seus critérios de “nascimento”, o brasileiro, paradoxalmente, sempre se mostra receptivo aos novos imigrantes, que normalmente não encontram nenhum empecilho para o pleno reconhecimento de sua cidadania como brasileiros. Esse fato fortalece ainda mais a auto-imagem brasileira de uma “sociedade heterogênea e tolerante com a diferença” (SCHNEIDER, 2004: 110). Em relação ainda a auto-imagem, durante sua pesquisa, o autor percebe a formação de duas construções do brasileiro e sua “brasilidade”: o “modelo carioca de brasilidade” e o “modelo paulista de brasilidade”. O primeiro deles traz o carioca como o brasileiro típico, marcado pela miscigenação e visto como a encarnação da grande “mistura nacional”; o modelo carioca também mostra-se bastante apegado ao nacionalismo e a elementos do imaginário coletivo. O “modelo paulista”, por seu turno, ele, as entrevistas realizadas no Brasil ocorreram entre 2001 e 2003, sendo incorporadas no estudo as questões das diferenças regionais e a diversidade étnica. 221 entende o Brasil como uma sociedade multicultural resultante do contato de diversos imigrantes. Contudo, ao invés de pensar em uma grande “sopa cultural”, o paulista vê seu país como várias “ilhas étnicas” interligadas4. Nesse caso, o brasileiro típico seria aquele que pertence a distintos grupos de imigrantes. Desse modo, o autor afirma que São Paulo é uma cidade tipicamente brasileira, mais até que o Rio de Janeiro, em razão da forte e clara presença da imigração. Em outros termos, enquanto o “modelo paulista” centra-se na preservação das diferenças, o carioca preza pela “[...] convergência das diferenças originais na direção de um ‘amálgama’ comum de identidade brasileira.” (Ibid.: 112). Schneider, em sua pesquisa, pergunta o que faz de um imigrante, brasileiro. Um dos entrevistados não exita em responder: “[...] quando ele assume as características mais típicas do brasileiro: gostar de futebol, gostar da música, gostar da praia. Daí, […] ele se torna essa pessoa mais flexível, bem-humorada” (Ibid.: 113). Pode-se perceber, dessa forma, que o brasileiro também pode ser definido pelos objetos culturais que consome, tais como a música e o futebol, mas também – e principalmente – por seus eventos coletivos. Como exemplos de evento coletivo pode-se citar: jogar futebol com os amigos, pular carnaval, tomar cerveja depois do trabalho... Esses eventos mostram-se tão determinantes para a brasilidade que, em meio a uma das entrevistas, um brasileiro cogitou não ser brasileiro por não gostar de carnaval e futebol. Percebe-se assim como esses eventos deixaram de ser somente práticas culturais, tornando-se símbolos nacionais. Símbolos tão fortes que se difundem e replicam de modo quase automático, dispensando até mesmo a necessidade de um discurso (SCHNEIDER, 2004: passim). 4 Schneider cita uma frase de um entrevistado que explica bem esse conceito das “ilhas interligadas”: “Então, é difícil você, em São Paulo principalmente, se sentir exclusivamente dentro de uma cultura brasileira... Acaba sendo assim: pequenos países dentro de São Paulo. […] Eu acho que o Brasil é isso mesmo. Um pouco da identidade do mundo inteiro” (SCHNEIDER, Ibid.: 112, grifo nosso). 222 Schneider, nesse momento, aponta no território brasileiro uma proeminência dos símbolos em relação ao discurso, devido, segundo ele, a fatores como extensão do país, diversidade cultural e desigualdades sociais. O autor esclarece sobre a diferença entre o discurso e os símbolos no Brasil: […] os discursos sobre a identidade no Brasil centram-se na questão de classe ou outras questões sociais, enquanto a noção de identidade nacional é deixada a cargo das representações simbólicas – não somente símbolos oficiais do Estado, mas também o futebol, o samba e até mesmo a “paz”. (SCHNEIDER, 2004: 119). Por conta disso, enfim percebe-se a importância dos eventos na formação da “identidade brasileira”, com destaque para o futebol e o carnaval. Ainda assim, o estudo antropológico do Brasil mostra-se como um grande desafio para os pesquisadores. Vianna (1995) coloca que, no Brasil, O antigo mistura-se ao novo. As épocas históricas emaranhamse umas nas outras. […] Seria necessário, em lugar de conceitos rígidos, descobrir noções líquidas, capazes de descrever fenômenos de fusão, de ebulição, de interpretação, noções que se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua transformação. (BASTIDE, 1979, apud VIANNA, 1995: 158). Talvez apenas com esses conceitos líquidos entenda-se concretamente as nuances da “identidade nacional brasileira”, que mais parece um grande mosaico formado por peças advindas de diversos lugares do mundo. A samba e a cerveja: os objetos do estudo Nos próximos tópicos, analisaremos a história da cerveja e do samba, em busca dos elementos que contribuíram para o seu atual estado como símbolos nacionais. Será esclarecido, conforme o texto, a relação que ambos cultivaram com os dois grandes símbolos da brasilidade: o futebol e o carnaval. 223 No tópico seguinte, a título de esclarecimento, será abordada a história da cerveja no Brasil, contudo, antes de descrever a presença da bebida no país, analisar-se-á a presença das bebidas alcoólicas no Brasil, sendo necessário citar o vinho e a cachaça. Cerveja A origem da cerveja remonta às grandes civilizações euro-asiáticas e parece estar ligada a expansão de cereais como centeio e cevada, quando torna-se popular principalmente na Germânia. Já durante o século XVI, pode-se observar áreas de principal consumo do vinho e da cerveja. Enquanto o primeiro impera no Mediterrâneo, a cerveja “será, durante muito tempo, o símbolo da cultura germânica, e os pagãos usam-na em seus rituais para marcar sua oposição à sacralidade cristã do vinho” (MONATANARI, 1998 apud SOUZA, 2004: 57).5 No Brasil, no entanto, nunca houve uma real divisão de localidades onde predominasse determinado tipo de bebida. As mais consumidas em território brasileiro durante a colonização foram o vinho e a cachaça. Esta é considerada a primeira bebida largamente consumida pelo brasileiro, principalmente os das classes inferiores, e sua importância foi tamanha que tornou-se moeda de troca no tráfico negreiro (SOUZA, op. cit.: passim). O papel que a cachaça exerceu para as classes mais baixas, o vinho exerceu para a mais abastada. Sendo uma bebida social, seu consumo reservava-se às festividades e raramente se dava de modo individual, como ocorria com a cachaça; o apreciador do vinho sempre estava na presença de mais alguns companheiros que também desfrutavam da bebida. O vinho é, portanto, a primeira bebida socialmente aceita no Brasil, e mesmo o alcoolismo sendo visto com maus olhos naquela época, o vinho não 5 É importante salientar a forte ligação das bebidas alcoólicas com a religiosidade, sendo aquela há muito tempo objeto de cultos e celebrações. O próprio vinho era objeto de culto do deus Dioniso na Grécia Antiga. Embora tenham atualmente perdido seu caráter religioso, as bebidas continuam bastante presentes em festividades populares. 224 sofria tantas sanções políticas quanto a cachaça, que por diversas vezes acabou sendo produzida em alambiques clandestinos por ter sua produção proibida (Ibid.: 62). A cerveja, no entanto, só aparece no território brasileiro em 1808, sendo trazida pela família real portuguesa6. Coutinho acrescenta que até 1814, devido a acordos econômicos, a única cerveja consumida no Brasil é de origem inglesa. Durante esse período, a bebida já era fabricada no país, mas em pequena escala, apenas para consumo pessoal de alguns imigrantes. Apenas a partir de 1850, aproximadamente, os imigrantes passam a produzir cerveja para venda em comércio local. Nessa mesma época, a produção de cerveja começa a ser veiculada em jornais (COUTINHO). Em 1834 surge a primeira cervejaria brasileira, localizada no Rio de Janeiro e, em 1842, a primeira fábrica de cerveja brasileira (COUTINHO). A partir daí, até aproximadamente 1880, o número de cervejarias cresceu freneticamente, sendo este o principal fator, para Coutinho, que “levou a cerveja a se tornar a bebida mais popular entre os brasileiros” (Ibid.). Curiosamente, a cerveja expandiu-se principalmente entre as ruas cariocas, mesmo lugar que viu o desenvolvimento do samba. É provável, desse modo, que samba e cerveja tenham evoluído juntos, visto que o samba desenvolveu-se inicialmente em festas realizadas pelos negros cariocas, e, como dito anteriormente, as bebidas alcoólicas sempre estiveram presentes em festas – a cerveja não seria exceção. Souza (2004: 63) aponta que a cerveja só se torna popular em São Paulo através das cervejas finas alemãs. Mais tarde, devido a influências francesas, a cerveja perde sua popularidade na capital paulista para o gin e o whisky. 6 Outros autores afirmam que a introdução da cerveja no Brasil deu-se no século XVII através dos invasores holandeses. Estes, porém, quando foram expulsos, levaram a cerveja. Esta só retorna à história brasileira em fins do século XVIII e início do século XIX. Cf. SANTOS, Sergio de Paula. 2004. Os primórdios da cerveja no Brasil. - 2. ed. - Cotia: Ateliê Editorial. 225 Até 1882, as cervejas eram produzidas sem marca, tornando a tarefa de diferenciar uma fábrica da outra quase impossível. Diante desse problema, Louis Bucher e Joaquim Salles associam-se criando a primeira marca de cerveja brasileira: a “Antarctica”. No entanto, esta marca não ficaria por muito tempo sozinha no mercado. Em 1888, um imigrante suíço de nome Joseph Villiger, acostumado ao sabor das cervejas europeias e inconformado com a má qualidade das cervejas fabricadas no Brasil, resolveu abrir o seu próprio negócio, começando a fazer cerveja em casa. Deste modo, a 6 de setembro desse ano, é registrada a “Manufatura de Cerveja Brahma Villiger & Companhia” […], sendo então comercialmente lançada a Cerveja Brahma. (HISTÓRIA...)7. Já na primeira década do século XX, quase não havia mais importação de cerveja, sendo o mercado local totalmente abastecido pelas fábricas nacionais que cresciam vertiginosamente. Dessas fábricas, a Brahma foi a que mais cresceu, registrando quase doze novas marcas em menos de uma década.8 Segundo Coutinho, essa expansão deu-se principalmente pelas fortes campanhas publicitárias e o patrocínio dado a bares, botecos e artistas. Ary Barroso, por exemplo, compôs uma marcha para a Brahma intitulada Chopp em garrafa, em homenagem ao recente lançamento da empresa, a Brahma chopp9. A marchinha fez tanto sucesso, que a Brahma chopp foi largamente consumida no carnaval de 1934. Através da publicidade, portanto, a Brahma alcançou o lugar de cerveja mais consumida no Brasil em 1934 e principal marca de cerveja em 1937 (COUTINHO). 7 Citação encontrada na primeira parte do documento. 8 Para conseguir maiores fatias do mercado, era comum nessa época – assim como ainda é hoje – as empresas comprarem empresas menores ou lançarem novas marcas para atender a um público ainda não satisfeito. 9 Produto lançado em 1934. 226 Nas décadas seguintes, a Brahma continuou investindo em propaganda massiva e novas tecnologias. Outras versões do produto foram lançadas, como a Malt 90, em 1984, e a Chopp Brahma Black, em 2006. Antarctica e Brahma disputaram por muito tempo a preferência do consumidor brasileiro, até que, em 1999, as empresas fundiram-se na Companhia de Bebidas da América (AMBEV). Ainda assim, em notícia publicada em 201210, a Brahma figura como segunda cerveja mais consumida no Brasil – atrás apenas da Skol – e nona cerveja mais consumida no mundo. Por ser a cerveja internacional da Ambev, está também presente em mais de 15 países. Samba Falar sobre a origem do samba é um assunto complexo; não se sabe ao certo onde e quando o ritmo nasceu, no entanto, os pesquisadores são unânimes quanto a influência africana e europeia no ritmo e a sua ligação inicial com os morros. O samba, apesar de possuir estruturas musicais europeias desenvolveu-se plenamente, tal como o conhecemos hoje, através dos símbolos da cultura negra (DINIZ, 2010: 15). Esses elementos são tão fortes que durante o período pós-abolição, o samba também acaba sofrendo preconceito. Desse modo, Vianna (1995) destaca dois períodos da história do samba: “Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e enclausurado nos morros cariocas e nas ‘camadas populares’. Num segundo momento, os sambistas, conquistando o carnaval e as rádios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade […].” (VIANNA, 1995: 28-9). Segundo André Diniz (2010), a primeira menção ao termo “samba” foi feita pelo jornal satírico pernambucano O carapuceiro em 1838, mas nessa época, o termo era sinônimo de “batuque” e simbolizava qualquer festejo 10 Notícia disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1159839-skol-e-brahma-estao-entre-as-dez-cervejas-mais-vendidas-do-mundo.shtml >. Consulta: 08/2013. 227 que reunisse dança, canto e instrumentação negra. No fim do século XIX, no Rio de Janeiro, o termo ainda estava ligado ao universo negro e à ruralidade. No século XX, no entanto, o samba distancia-se de seu significado folclórico e passa a ser comparado a ritmos como o maxixe. A música popular urbana brasileira, por seu turno, era dominada no fim do século XIX pelo lundu (gênero africano), pela moda e pelo choro. O samba só começa a exercer maior influência sobre a cultura brasileira no início do século seguinte. Em fins do século XIX, bebendo de fontes como o lundu, o choro e o maxixe, o samba nasce no Rio de Janeiro, reduto de grande comunidade afrodescendente. Nasce em meio a festas e bebedeiras, nasce na Festa da Penha, nas sessões de capoeira, nas batucadas da Praça Onze. E toma forma de fato em 1916 com Pelo telefone, de Donga, considerado o primeiro samba registrado. O samba carnavalesco, nome que Donga e Mauro [de Almeida] deram ao gênero de sua composição, entrou para a história como o precursor do gênero. A partir daí, o termo ganhou intensa popularidade e, em apenas algumas décadas, passaria a ser identificado como símbolo da musicalidade brasileira. (DINIZ, op. cit.: 34-5). Pelo telefone pode não ter sido de fato o primeiro samba composto, mas deve ser lembrado por tornar o termo “samba” popular na cultura brasileira. Um dos primeiros fatores que alavancaram o samba como ritmo nacional, segundo Hermano Vianna (1995), foi a ação dos poetas modernistas, principalmente na pessoa de Mário de Andrade. Na busca pela “unidade pátria” e pelo “brasileiro de fato”, acabaram encontrando no samba a expressão da brasilidade musical. Assim, “O samba do morro, recém-inventado, passa a ser considerado o ritmo mais puro, não contaminado por influências alienígenas, e que precisa ser preservado […] com o intuito de se preservar também a ‘alma’ brasileira.” (VIANNA, op. cit.: 152-3). Para 228 torná-lo símbolo nacional, no entanto, seria necessário inventar um “mito do samba”, algo que fizesse com que o povo acreditasse que ele sempre esteve ali, pronto para ser ouvido. O mito formulado: o samba era inicialmente reprimido nos morros, mas hoje todo brasileiro tem samba no pé. (GUIMARÃES, 1978 apud VIANNA, 1995: 153). Abre-se aqui um parêntese para definir o “samba do morro”. Surgido entre as ruas do bairro carioca Estácio de Sá, esse samba é marcado pelo batuque e é característico do carnaval carioca – tanto que também é conhecido como “samba carnavalesco”. Em 1929, com o lançamento do disco Na pavuna pelo grupo Bando dos Tangarás, esse gênero marcado pela “batucada da escola de samba” (ALMIRANTE, 1977 apud VIANNA, op. cit.: 121) passa a ser difundido pelas ruas cariocas. Vianna fala mais sobre o samba de morro: […] não demorou muito tempo, desde o nascimento do “samba de morro” (que não nasceu exatamente no morro, mas sim em algum lugar entre os morros e as ruas da Cidade Nova), para encontrá-lo utilizado pelos músicos brancos da classe média. A turma de Noel Rosa participou inclusive do processo de definição desse samba “autêntico”. (VIANNA, op. cit.: 121). O “samba do morro”, dessa forma, distancia-se das influências orquestrais do maxixe e da cadência do lundu, adotando linhas – melódicas, harmônicas e rítmicas – mais sincopadas e temática voltada para a malandragem. Fecha parêntese.11 O samba ganha mais força na segunda década do século XX com a gravação eletrônica., principalmente a partir de 1922, com o advento do rádio no Brasil12. A evolução da técnica acarretou uma mudança da recepção 11 A discussão sobre a importância do carnaval e do samba carnavalesco na construção do samba como símbolo da brasilidade será retomada mais adiante. 12 Embora as transmissões radiofônicas tenham iniciado em 1922, apenas a partir da Revolução de 30, o rádio torna-se elemento de integração nacional. A programação an- 229 do público: os antes conhecidos grupos instrumentais (principalmente os de choro) deram lugar a música cantada, e junto dela veio o samba. Francisco Alves, por exemplo, conhecido como “O Rei da Voz”, foi responsável por unir o morro (a música mais lúdica, ainda marcada por traços folclóricos) e o asfalto (a música profissional, comercializada). Com repertório vasto, gravou sambas da Estácio como “Amor de malandro”, músicas para teatro de revista e foi pioneiro no chamado samba-exaltação ao gravar “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. Outro cantor cuja obra popularizou o samba foi Mário Reis. Este jovem elegante e intelectualizado trabalhou para retirar o caráter folclórico do samba, revolucionando a maneira de interpretá-lo, levando-o aos salões da alta sociedade carioca. André Diniz (2010) escreve sobre Mário Reis: “Sua voz macia, pronunciando as palavras com a ginga do samba e do português carioca, ecoava as características estilísticas de seus predecessores brasileiros e também do jazz. Com uma entonação coloquial […] Mário jogava para escanteio as interpretações à italiana, comuns em sua época.” (DINIZ, 2010: 45-6). É importante ressaltar também que ainda em meados da década de 1920, o samba perdia destaque, principalmente para a música nordestina, caracterizada por fortes aspectos folclóricos. Para resolver esta situação, Francisco Alves convidou Mário Reis para cantarem alguns sambas da Estácio, como “O que será de mim” e “Arrependido”. Tiro certeiro. A dupla fez um estrondoso sucesso e, em consequência disso, além do samba reaver seu lugar nas rádios, virou modismo cantar em dupla ou trio. Na década de 1930, Getúlio Vargas chega ao poder e, durante o seu governo adota uma política de valorização do brasileiro (tanto o cidadão tes elitista e de cunho educacional ganha na Era Vargas um caráter de entretenimento. E essa nova faceta da rádio brasileira tem como grande destaque Ademar Casé. “O pioneiro nesse estilo [programas de grande audiência] foi o Programa do Casé, colocado no ar pela primeira vez em 1932. A Rádio Nacional adotou a programação de música popular do Programa do Casé, tornando-se a emissora mais influente nos anos Getúlio Vargas.” (VIANNA, 1995: 109, grifo do autor). 230 como sua cultura). Dessa forma, quem mais saiu ganhando foi o samba. Através de incentivos fiscais, as festas populares foram beneficiadas, principalmente o carnaval. Aqui “O samba passa a ser o principal ritmo nacional [...]” (Ibid.: 78). Vianna (1995) também coloca o carnaval como um dos principais fatores de difusão do samba. Segundo ele, a importância do samba cresceu concomitantemente com o carnaval; através do festejo, o samba passou a ser consumido por grande parte da população brasileira e tornou-se a “música brasileira por excelência”. (VIANNA, 1995: 30). O carnaval, festa de natureza europeia, nem sempre, no entanto, foi dominado pelo samba. Os primeiros carnavais cariocas eram espaço de grande diversidade musical, onde se podia ouvir ópera, valsa, chula e mazurca (DINIZ, 2010: 93). O primeiro samba a fazer sucesso no carnaval foi “Pelo telefone” de Donga, já comentado anteriormente. A partir daí, aos poucos, o samba ia construindo seu império. Somente na segunda década do século XX, surgem as escolas de samba – resultado da síntese de blocos, ranchos, cordões e sociedades carnavalescas. A primeira delas, a “Deixa falar”, do bairro Estácio de Sá, é responsável pela criação do “samba carnavalesco”, o “samba do morro” já comentado. Ismael Silva, Bide e Marçal foram os principais nomes no desenvolvimento desse gênero dentro da Estácio segundo Diniz (Ibid.). Com o desenvolvimento das escolas de samba, o governo viu ali uma ponte para uma comunicação efetiva com o povo, passou então a financiá-las. Além do carnaval, o samba também foi bastante divulgado nos cinemas na década de 1930, principalmente com os musicais brasileiros Coisas nossas (1931, música de Noel Rosa) e Banana da terra (1938, músicas de Ary Barroso e Dorival Caymmi). 231 Chegamos enfim na década de 1940, onde nossa jornada musical termina. Nesse período o samba já é considerado a música tradicionalmente brasileira, e mesmo com a Segunda Guerra Mundial – que reduziu drasticamente os investimentos na indústria fonográfica -, todo o Brasil passa “a reconhecer no Rio de Janeiro os emblemas de sua identidade de povo ‘sambista’.” (VIANNA, 1995: 26). Nas décadas seguintes, o samba continuou a evoluir e ramificou-se com o tempo. Virou samba-jazz, samba-rock, samba-choro, samba-enredo, samba de exaltação... Conclusão Discriminar fatores que tenham levado um objeto ou outro a se tornar elementos da brasilidade é uma tarefa complexa; deve-se levar em consideração inúmeros outros fatores que não puderam ser postos aqui, tanto pela limitação do meio – um artigo científico deve ser objetivo, não podendo se estender em longas discussões e análises – quanto por não ser o propósito deste trabalho, que se dedica a um levantamento inicial de dados. Mas ainda assim, alguns fatores são claramente responsáveis pela “simbolização” do samba e da cerveja, como o carnaval, que esteve presente no desenvolvimento de ambos objetos. Acerca do samba, os principais elementos que parecem tê-lo levado ao hall dos símbolos nacionais foram as rádios, o carnaval e Getúlio Vargas. Mesmo hoje, quando o samba não possui todo o seu sucesso da década de 1930, continua influenciando de algum modo as músicas atuais. André Diniz (2010: 15) chega a dizer que “[...] o samba foi o recheio, por vezes inspiração, de quase todos os movimentos musicais desta terra carnavalesca”. Hermano Vianna (1995) comenta, por fim, sobre o samba como música nacional: 232 O samba não se transformou em música nacional através dos esforços de um grupo social ou étnico específico, atuando dentro de um território específico (o “morro”). Muitos grupos e indivíduos […] participaram, com maior ou menor tenacidade, de sua “fixação” como gênero musical e de sua nacionalização. Os dois processos não podem ser separados. Nunca existiu um samba pronto, “autêntico”, depois transformado em música nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado concomitantemente à sua nacionalização. (VIANNA, 1995: 151). Em relação a cerveja, de acordo com as colocações de Carlos Alberto Coutinho, as duas marcas que exerceram a principal influência para a fixação desta como símbolo nacional foram a “Antarctica” e a “Brahma”, tendo esta última uma maior importância devido a seus altos investimentos em propaganda e tecnologia durante a década de 1930. Sendo assim, por meio da propaganda, a cerveja fez-se cada vez mais presente nos eventos coletivos brasileiros, entre eles o carnaval. Ainda hoje, os investimentos da indústria de bebidas são grandes em relação a comunicação, sempre relacionando elementos como “o clima tropical, o futebol, o carnaval e o ‘jeitinho brasileiro de ser’” (CELLA, 2010: 125) às bebidas. A seguinte citação de Tangriane Cella (2010) ilustra bem como a relação propaganda – cerveja constrói o símbolo nacional “cerveja”: “Tais imagens que fazem parte do imaginário nacional [futebol, carnaval, praia], nas peças publicitárias […] são transferidas ou apropriadas pelo produto cerveja, de modo que o produto cerveja toma a cena e passa, também, a ser constitutivo da identidade nacional.” (CELLA, loc. cit.). Referências CELLA, Tangriane; DIAS, Luciana. 2010. Propagandas de cerveja e o imaginário nacional. Interfaces, [s.l.], v. 1, n. 1. Disponível em: <http://revistas.unicentro.br/index.php/ revista_interfaces>. 114-125. Consulta: 05/2013. COUTINHO, Carlos Alberto. [s.d.] A história da cerveja no Brasil. Disponível em: <http://www.cervisiafilia.com.br/ cervbras2.html>. Consulta: 05/2013. DINIZ, André. 2010. Almanaque do samba: a história do samba, o que ouvir, o que ler, onde curtir. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar. 233 HISTÓRIA da cerveja – Brasil. Disponível em: <http://cervejasdomundo.com/ brasil.htm>. Consulta: 05/2013. NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara. 2000. Desde que o samba é samba: a questão das origens no debate historiográfico sobre a música popular brasileira. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 20, n. 39: 167-189. SCHNEIDER, Jens. 2004. Discursos simbólicos e símbolos discursivos: considerações sobre a etnografia da identidade nacional. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 10: 97-129. SOUZA, Ricardo Luiz de. 2004. Cachaça, vinho, cerveja: da Colônia ao século XX. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 33: 56-75. VIANNA, Hermano. 1995. O mistério do samba. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: UFRJ. 234 Festa do Divino Espírito Santo: música e devoção no sertão baiano Thiago Marcelo Mendes Instituto de Estudos Brasileiros, IEB-USP [email protected] Resumo Nossa proposta aborda a Festa do Divino Espírito Santo em Brotas de Macaúbas, sertão da Bahia. Ela dura 50 dias, intervalo entre o domingo de Páscoa e o de Pentecostes. Percorre inúmeras comunidades do município, movimentando-se em 2370 km2 entre caatingas e cerrados. O principal símbolo da festa é a Bandeira do Divino. Por sua vez, os tocadores são os responsáveis pelas cantorias da Bandeira, sendo elas religiosas (Ladainha do Divino) e festivas (forró e ritmos regionais). Essas manifestações musicais acessam a memória afetiva do grupo, seja através da devoção ou através da diversão. Neste sentido, devoção e festa constituem um modo e um ethos de vida peculiares da população das comunidades brotenses. O ritual se complementa, na medida em que os moradores oferecem alimentos e bebidas aos acompanhantes da bandeira e tocadores, celebrando uma fartura gastronômica, bem como a renovação dos laços sociais e afetivos. Assim, a Bandeira do Divino reúne festa e devoção num mesmo espaço de bens e trocas simbólicas, onde a música desempenha papel fundamental, sendo o fio condutor destas manifestações e performances. Palavras-chave festa, música, devoção, ritual, comunidades 235 1. Introdução A escolha da Festa do Divino como objeto de estudo da pesquisa em andamento1, resulta de um trabalho etnográfico de coordenação de campo para mapeamento e registro das referências socioculturais e naturais do município de Brotas de Macaúbas2, através do Projeto Diagnóstico do Patrimônio, Cultural, Histórico, Arqueológico e Natural do Município de Brotas de Macaúbas, realizado em 2011. O projeto foi desenvolvido com a orientação e supervisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), 7ª superintendência de Salvador, e apoio da Desenvix – Parque Eólico da Bahia – Seabra/Macaúbas, perfazendo 8 meses de pesquisas e coletas de campo. A pesquisa de campo realizada em 2011 detectou, de maneira preliminar, que a Festa do Divino era considerada a maior do município, dada a complexidade de agentes, dimensões territoriais envolvidas e seu notável poder de mobilização social. Trata-se de uma festa complexa, em que há um longo intervalo de tempo dedicado à preparação dos festejos, onde são definidos, entre outras coisas, o roteiro de visitações da Bandeira, através da escolha das comunidades, o rodízio dos locais, a divisão do trabalho dos tocadores e escolha das casas de pouso, quando necessário. Ainda, os 50 dias de visitações e andanças da Bandeira chamam a atenção pela sua duração, pela presença musical intensa e pela peregrinação constante e diária. 1 Atualmente desenvolvida no PPG em Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros, IEB, Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Jaime Tadeu Oliva. 2 O município de Brotas de Macaúbas possui mais de 100 comunidades distribuídas pelos 2.372 quilômetros quadrados do município, sendo que 70% dos moradores residem na zona rural, segundo censo do IBGE de 2010. Estas chamadas ‘comunidades’ apresentam diversas origens étnicas, religiosas e sociais, bem como diferentes clivagens socioeconômicas, indicadores de escolaridade, distribuição por sexo, idade, representação e peso político/eleitores, etc., configurando territórios com singularidades e identidades específicas, sendo espaços estratégicos com interesses diversos. 236 A crença e a diversão estão agregadas à festa do Divino, sendo apoiadas pela música e incentivadas pela oferta abundante de comida e bebida, sobretudo a cachaça, largamente produzida nos engenhos artesanais e familiares da região. Dentre os alimentos e bebidas ofertados estão o chá, café, mandioca cozida, feijão, carne pilada com farinha de mandioca, frutas, bolos, água, suco, cachaça, vinho, refrigerante. Foto 1. Os Tocadores:, o elo mais forte entre a comunidade, a religiosidade e a conformação de sociabilidades. Arquivo Pessoal Existe um peso considerável no que tange o papel das comunidades na realização dos festejos e o papel da Bandeira em reforçar a existência social delas, através da sua visitação. Para ilustrar este raciocínio, Claval (2001) salienta que o processo de construção de identidade está ligado à organização territorial, onde O espaço é uma categoria vazia, que não contem qualquer referencia à sensibilidade, à percepção, ao sentimento. Na vida real atribuem-se muitos sentidos aos lugares e às pequenas e grandes pátrias. A construção de identidades está intimamente ligada à organização territorial e à maneira como é percebida por quem é responsável por essa organização ou a experimenta. (2001:66) 237 2. Estrutura da Festa O Divino mobiliza um grande número de pessoas em torno da Bandeira, tida pelos devotos como seu principal símbolo. O processo de apropriação deste símbolo, individualmente e coletivamente, através das visitações da Bandeira – levada pelos tocadores – de casa em casa e de comunidade em comunidade, ajuda na construção de certa legitimidade, unidade social e identidade aos moradores e devotos. Como afirmou o Imperador do ano de 2011, Edvando Oliveira3, a “Festa do Divino é uma espécie de DNA cultural de Brotas, um movimento que consegue costurar e ligar esta grande colcha de retalhos culturais e sociais”, referindo-se às comunidades que integram territorialmente o município de Brotas de Macaúbas; mas não somente, pois o tráfego também acontece em comunidades limítrofes com e de outros municípios vizinhos, como Morpará, Ipupiara, Oliveira dos Brejinhos, Seabra e Barra do Mendes. Durante os 50 dias da Festa, algumas comunidades chamaram atenção por apresentarem alguns elementos bastante peculiares, diferenciando-as das demais. As comunidades do Cocal, por exemplo, situadas em uma região de difícil acesso (serras e raras estradas), eram as únicas comunidades que ofereciam aos tocadores do Divino, núcleo principal dos festejos, as chamadas sobras, que são donativos em alimentos, bebidas, animais etc. Este ato simbólico de oferecimento das sobras era tido como um agradecimento ao santo, pelas graças recebidas; por consequência, era ofertada aos responsáveis pela Bandeira e representantes do santo, os tocadores. 3 Edvando Oliveira Santos foi padre da Paróquia de Brotas por 11 anos. Atualmente está licenciado das atividades de culto pela Diocese da Barra do Rio Grande, por possuir um filho. No ano de 2010 foi indicado (sorteado) para ser o Imperador do Divino de 2011, sendo um dos principais personagens e organizadores da festa de 2011. 238 Esta espécie de retribuição de presentes ou dádivas, foram observadas por Mauss (2003) em seu Ensaio Sobre a Dádiva, Para o autor, “O mais importante, entre esses mecanismos espirituais, é evidente o que obriga a retribuir o presente recebido”(2003:193) Os tocadores, além de responsáveis pela cantoria da Ladainha das Esmolas e ritmos dançantes e festivos, também são, junto com a Bandeira, o símbolo mais elementar que se sobressai durante as visitações pelas localidades do município. Outra peculiaridade das comunidades da região do Cocal é o modo como esses moradores se dirigiam aos tocadores, conferindo-lhes a designação própria de bandeiristas. É também nesta região onde se situam quase todos os grupos de reisados4 do município, que tradicionalmente recebem as sobras quando realizam seus festejos em janeiro. Podemos observar, pela descrição, uma clara relação entre som, imagem e movimento. Pinto (2001:8) destaca o papel da música na sociedade, mais precisamente a importância das etnografias de performances com influência musical. Para o autor, A etnografia da performance musical marca a passagem de uma análise das estruturas sonoras à análise do processo musical e suas especificidades. Abre mão do enfoque sobre a música enquanto “produto” para adotar um conceito mais abrangente, em que a música atua como “processo” de significado social, capaz de gerar estruturas que vão além dos seus aspectos meramente sonoros. Assim o estudo etnomusicológico da performance trata de todas as atividades musicais, seus ensejos e suas funções 4 Os grupos de reisados comemoram o dia de Santo Reis, em 6 de janeiro. Eles costumam sair de casa em casa e de comunidade em comunidade, cada um na sua microrregião, durante o período do natal e do dia de Reis. Nestas visitações anunciam a chegada do Deus Menino e dos Reis Magos através das cantorias, os chamados reisados. Também angariam donativos, esmolas e as sobras. Na região do Cocal concentra-se quase que a totalidade dos grupos de reisados do município, que são herdados hereditariamente, onde muitos já existem há algumas gerações. 239 dentro de uma comunidade ou grupo social maior, adotando uma perspectiva processual do acontecimento cultural. (Pinto, 2001:8) São muitos exemplos que permitem indicar a relação que cada comunidade tem com a Bandeira, único evento que circula entre todas elas, caracterizando-a, portanto, como uma festa móvel. Estruturalmente, a visita da Bandeira possui um momento de devoção intenso, quando se chega à casa dos moradores anfitriões e se canta a Ladainha das Esmolas5, que invariavelmente apresenta o mesmo texto e melodia; e um outro momento de descontração festiva, onde todos comem, bebem, tocam e dançam, numa confraternização e interação social constante. Também durante os festejos, grupos sociais distintos se encontram e se visitam. O papel desempenhado pelo corpo no Divino de Brotas tem diferentes aspectos. Sua relação tende a ser mais afetiva e atemporal. Observamos a reação corporal em alguns momentos recorrentes da festa: na devoção gestual, quase sempre de joelhos ou curvados, demonstrando a emoção em receber a Bandeira em sua casa; no ouvir e cantar a Ladainha, um misto de melancolia e euforia aliados ao choro; no ato de receber as bênçãos, ter o papel de anfitrião da festa reconhecido pelo grupo; na oferta e aceitação de alimentos e bebidas; nos momentos para risadas, descontrações e falas descomedidas, e nas danças variadas, onde o forró se sobressai, destacando o divertimento das mulheres, dançando muitas vezes entre elas mesmas. Acreditamos que essas visitações e cantorias, são espaços que permitem transgressões sociais que cotidianamente são pouco toleradas pela moral da sociedade em questão, como as de gênero, classe social, etnia, escolaridade, ocupação econômica, e assim por diante. Sobre o papel 5 A Ladainha das Esmolas é cantada em todas as casas visitadas , nas capelas e igrejas; exceto alguns raros casos, como a morte de algum ente da família do anfitrião. Ela é cantada pelos tocadores do Divino e relata em sua narrativa mítica a origem e feitos do Divino Espírito Santo. O tom de afinação é geralmente dado pela sanfona e as vozes se revezam entre 1ª. e 2ª. 240 do corpo e das danças que decorrem das performances musicais, Pinto (2001) salienta que Um aspecto essencial da corporalidade e que, em grande parte, depende da música, é a dança. No ritual a relação entre música e dança revela muito do significado e da importância dos preceitos religiosos e do mito. Aqui também o corpo é suporte de símbolos, o corpo, no entanto, que age e que se movimenta. (Pinto, 2001:12) A Ladainha das Esmolas e o descontraído forró são elementos estruturais do Divino ao lado da presença da Bandeira, principal símbolo material de devoção. A Bandeira na zona rural, no caso, as comunidades que retratamos, se assemelha muito ao caráter de folia proposto por Brandão (1977), onde os aspectos coletivos, informais e festivos se sobressaem. Durante a passagem da Bandeira, grande parte dos moradores das comunidades acompanham as visitações de casa em casa, desde o início das cantorias até o encerramento na capela ou última casa do dia. Atividades cotidianas, como plantar, garimpar ou qualquer tipo de ocupação, são suspensas temporariamente de forma voluntária, pelo fato de todos quererem comemorar a festa da passagem da Bandeira e se visitarem. Este movimento proporcionado pela Bandeira, acaba sendo um convite à celebração da coletividade e uma reafirmação de valores sociais dos grupos envolvidos. Pelo que observamos, a comunidade praticamente pára para saudar, cantar e festejar a Bandeira, durante o tempo em que ela estiver na comunidade. Este tempo depende, dentre outros fatores, do seu tamanho e da distância em relação à outra comunidade, podendo ser de 1 a 2 dias a parada comunitária. Este encadeamento de ações acaba definindo e compondo o processo ritual, conforme Turner (1969), constituído pelo espaço, tempo, circulação, trocas de bens e serviços simbólicos, grupos precatórios e habitantes do território. Neste caso, o palco é móvel, pois, dependendo da distância, a 241 bandeira visita ao menos uma comunidade por dia, numa espécie de circuito comunitário, sendo que devoção e festa ocupam o mesmo espaço de bens e trocas simbólicas: as comunidades e as casas dos moradores. Para Geertz (1978), no ritual ocorre uma fusão do mundo vivido com o mundo imaginado, mediado por um conjunto de formas simbólicas, onde ...os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo, e disposições morais estéticos – e sua visão de mundo – o quadro que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas ideias abrangentes sobre ordem. (1978:104,105) Sendo assim, ocorre uma fusão entre o ethos, sendo as características emotivas e subjetivas de um povo, com a visão de mundo dos grupos humanos. É através do ritual, ou melhor, na imersão do corpo no ritual que passamos a tornar-nos, e, por fim, “ser”. Acreditamos que algo semelhante ocorre com a festa do Divino nas comunidades brotenses. São nesses encontros e visitações que constatamos, através dos rituais e dos comportamentos simbólicos mediados pelos símbolos (Bandeira, Ladainha das Esmolas), o que eles representam para os indivíduos e coletividades. Verificamos, até então, uma espécie de simbiose entre mundo festivo e mundo cotidiano, numa relação complementar mútua, compondo uma característica sui generis das festas brasileiras, de acordo com Cavalcanti (2013). Para Damatta (1997), é por meio das dramatizações das ações, que os indivíduos adquirem consciência do mundo e das relações sociais, e passam a vê-las como tendo um sentido, como sendo sociais. É possivelmente através da dramatização que a Bandeira e a música se destacam e se complementam, onde o grupo individualiza o fenômeno social do Divino, dando-lhe identidades e singularidades específicas. 242 Foto 2 e 3. Chegada e cortejo da Bandeira. Arquivo Pessoal Por outro lado, as perspectivas do autor (Damatta: 1997) assinalam que os rituais populares são ritos que objetivam o encontro, a troca, a renovação dos laços sociais. Para que isso ocorra, �������������������������������� é������������������������������� necessário que as posições sociais ocupadas no cotidiano sejam neutralizadas, amortecidas ou invertidas, estabelecendo uma dialética entre o cotidiano e o extraordinário, tendo no ritual coletivo, uma maneira da sociedade ter a opção de uma visão alternativa de si mesma, sem as amarras seculares que compactam as relações sociais, as formações coletivas e as suas instituições. Complementando a visão de Damatta, Cavalcanti afirma que as festas 243 Atraem, encantam e integram participantes e admiradores. Envolvem ricos e pobres; brancos, mulatos(sic), caboclos, negros; distintas origens étnicas; sagrado e profano. Não resolvem conflitos e desigualdades sociais, mas expressam uma face das coletividades que se superpõe a essas diferenças (2013:2). Geertz (2001) coloca sua ênfase e interpretação na observação do sentido das ações performáticas. Essa é sua preocupação central ao defender a perspectiva antropológica interpretativa. O autor foca sua análise e interesse na compreensão do significado das ações simbólicas dos atores sociais, uma vez que ele define cultura como teia de significados tecida pelo próprio homem (hermenêutica). Fotos 4, 5, 6 e 7. Forró:dança e descontração; alimentação coletiva e benzimento da Bandeira. Arquivo Pessoal 244 Estas ações performáticas verificadas nos festejos comunitários durante as cantorias da bandeira do Divino estão ligadas aos elementos do processo ritual que enumeramos anteriormente. Sendo assim, os tocadores desempenham papel fundamental tanto no que se refere à devoção bem como os momentos de diversão, tendo na música o estímulo e a comunicação. Esta comunicação, que também é simbólica, determina a construção do “eu” e do “outro”, formando identidades individuais e coletivas. Sobre o papel da comunicação, Claval salienta que Sublinhando o papel da comunicação e diversidade de suas formas, a abordagem cultural coloca em evidencia o peso das interações na configuração das atitudes, habilidades e conhecimentos, assim como na construção dos valores. Revela a diversidade da ação humana e a multiplicidade das combinações regionais pelas quais ela é responsável na superfície da Terra. (2001:80) No caso específico, percebe-se que cada comunidade percorrida pela Bandeira agencia modalidades distintas de relação; o mesmo objeto proporciona significados diversos conforme a comunidade com que interage, o que demonstra que ele é apropriado a partir de visões de mundo, temporalidades e espaços sociais específicos. Este raciocínio converge com os pontos de vista de Claval (2001), onde as pessoas associam aos mesmos lugares atitudes e sentimentos diferentes, ou seja, não vivem os lugares do mesmo modo, não os percebem da mesma maneira. 245 Foto 8. Devota do Divino. Arquivo Pessoal Encontramos assim, nesta grande encenação performática, características e personagens específicos. O ritual (Damatta: 1997) manifesta aquilo que se deseja perene e eterno, e, por outro lado, é uma área crítica onde podemos entender as expressões identitárias, os valores e heranças de uma determinada formação social, assim como a continuidade enquanto grupo, uma vez que a construção de identidades está ligada à organização territorial, e a diferenciação cultural de uma região para outra está ligada à capacidade de se comunicar. (Claval: 2001). Este é um ponto central do Divino em Brotas, uma vez que as formações sociológicas e antropológicas de dado grupo ou comunidade está em relação com a ocupação e distribuição territorial realizada de diferentes formas e com apropriações e percepções diversas. 246 3. Tocadores e Cantadores A presença dos tocadores e cantadores com seus instrumentos musicais como a sanfona, pandeiro, zabumba e triângulo, é fundamental para a realização da cantoria no ritual de passagem da Bandeira pelas casas, como afirmamos ao longo do texto. Está tão arraigada na ação e na memória dos participantes que é possível afirmar que, sem os músicos, a Bandeira não sai, e o evento não acontece. As disposições dos instrumentos e das vozes (1ª. e 2ª.) são sempre as mesmas, invariavelmente, sendo que a sanfona fica entre o bumbo/caixa e o pandeiro. O triângulo completa a bateria. O tom da afinação é dado pela sanfona. Sobre este aspecto, Pinto (2001) nos chama a atenção pela seguinte característica A terça neutra nordestina como aspecto peculiar de afinação é uma característica que não só marca uma “paisagem sonora” especificamente nordestina, como também é responsável por uma série de procedimentos que dizem respeito até a própria concepção de mundo. Um exemplo disso é a convivência pacífica entre instrumentos como o acordeom, com seus intervalos diatônicos temperados, e os estilos vocais, como o aboio, ou as bandas de pífanos, estes últimos regidos pela terça neutra. Esta simultaneidade, que, aparentemente, não cria atritos intransponíveis, contradizendo assim tudo o que pregam as teorias musicais do ocidente, denota a abertura com que estruturas tradicionais da sociedade no Nordeste abarcam elementos da globalização, sem por isso destruir ou renegar os conceitos próprios mais genuínos. (Pinto, 2001:23) São os tocadores quem levam a Bandeira, ligando num movimento único a Bandeira e a cantoria. A existência de músicos e cantores populares é historicamente uma característica do município e suas influências culturais e sociais são presentes e fazem parte do dia a dia das pessoas e das localidades. 247 Foto 9. Bandeira e Tocadores: movimento único. Arquivo Pessoal A grande responsabilidade de interpretação e transmissão da emoção da Ladainha é dos tocadores. Eles narram a chegada do Divino, quem é ele, o que faz ali, como se relaciona e se comunica com seus devotos. Tem certo sabor nostálgico e atemporal. Possui a capacidade de deslocar-se no tempo e no espaço, acessando a memória e recriando imaginários. A Ladainha das Esmolas, os Cantadores e Tocadores são o que podemos classificar como elemento estrutural determinante (Núcleo Duro), força vital e motriz das “andanças” da Bandeira. O poder e o lado transcendental do Divino acontecem no momento de execução da ladainha. A memória coletiva é acessada através da música, e os sentimentos de pertencimento ancestral mítico se ligam ao religioso em uma viajem pela memória, parte operante de um imaginário construído coletivamente e partilhado pelos indivíduos e pelo grupo. Para melhor visualização, segue abaixo o texto da Ladainha das Esmolas cantada na Festa do Divino de Brotas de Macaúbas “É chegada em vossa casa Uma formosa bandeira (bis) 1ª. voz E nela vem retratada Uma pomba verdadeira (bis)2ª. voz 248 Divino Espírito Santo Em vossa morada entrou (bis) Vem correndo a freguesia Visitando os morador (bis) (Trecho cantado apenas quando repete a cantoria na mesma casa) Oh Deus salve esta Casa Santa (verso cantado nas igrejas) Onde Deus fez sua morada (bis) 1ª. Onde mora o cálice bento E a hóstia consagrada (bis)2ª (Trecho cantado apenas nas Igrejas ou capelas) Essa pomba que aqui vem É de Deus muito amada (bis) 1ª. São as mesmas três pessoas Da santíssima Trindade, Santíssima Trindade (bis) 2ª. Vem pedindo a sua esmola Que muito carece dela (bis)1ª. Para serem festejadas Dentro de sua capela (bis) 2ª. Divino Espírito Santo Dono do Sol que nos cobre (bis) 1ª. Ele é dono do tesouro Pede esmola como pobre (bis) 2ª. Ele pede é por pedir Mas não é porcarecer (bis) 1ª. Pede para experimentar Se seu devoto esqueceu (bis)2ª. Divino Espírito Santo Divino consolador (bis) 1ª. 249 Consolai as nossas almas Quando desse mundo for (bis) 2ª. Quem se benze com a bandeira Desse Divino Senhor (bis) 1ª. Benze Deus com sua graça Dentro do seu resplendor (bis) 2ª. Quem dá esmola a esse santo Não repara o que vai dar (bis) 1ª. Seja dez reais ou vinte Fica mil em seu lugar (bis) 2ª. Deus lhe pague a esmola Deus lhe dê muita saúde (bis) 1ª. A esmola é caridade A caridade é virtude (bis) 2ª. Deus lhe pague a esmola Se vos derem com grandeza (bis) Deus permita que por ela No reino do céus se veja” (bis) 4. Considerações finais A expressão dos músicos de Brotas se constrói em total relação com o universo religioso. Embora haja esta relação entre estes personagens e as festas religiosas, cada qual têm a sua história de vida, que inclui uma atividade produtiva ligada �������������������������������������������� à������������������������������������������� produção agrícola, garimpeira, além da relação com a música em função das relações de parentesco. As festas religiosas são a consequência do desejo de tocar e cantar, mas também, a causa. 250 Foto 10. Tocadores: personagens essenciais do Divino de Brotas. Arquivo Pessoal Os músicos, tratados regionalmente como tocadores e cantadores, foram bem salientados por Mário de Andrade em Vida do tocador (1993). Normalmente, eles cumprem um ciclo de festas religiosas em determinado conjunto de comunidades (no nosso caso, as festas dos santos padroeiros), geralmente vizinhas àquela onde residem; constituem também uma referência enquanto detentores de um saber e um fazer específicos, transmitidos oralmente através do contato com os tocadores e cantadores mais velhos (como o sanfoneiro Noé), geração após geração. 251 Foto 11. Noé: 53 anos de Divino e andanças com a Bandeira. Arquivo Pessoal Por fim, gostaríamos de assinalar algumas questões pertinentes à nossa investigação científica. Buscamos explorá-las, em vários momentos do texto, de modo que leitor pudesse ter uma leitura com detalhes e descrições do evento que abordamos. Entendemos que a descrição e interpretação são necessárias a qualquer análise comparativa, dada a complexidade de agentes e códigos presentes nesta grande festa do Divino de Brotas de Macaúbas. 5. Referências bibliográficas ANDRADE, Mário. Vida do Cantador, Villa Rica: Belo Horizonte – Rio de Janeiro, 1993 BRANDÃO, Carlos R. A Folia de Reis de Mossâmedes. Cadernos de Folclore, 20, MEC/Funarte. RJ, 1977 CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Ritual, drama e performance na cultura popular: uma conversa entre a 252 antropologia e o teatro. Série Passagens, 12, Fórum de Ciência e Cultura. UFRJ, 2011 . “As grandes festas.” Um Olhar sobre a cultura brasileira. (Orgs. Márcio de Souza e Francisco Weffort). Rio de Janeiro: FUNARTE/ Ministério da Cultura, pp. 293-311,1998 . A festa em perspectiva antropológica: carnaval e os folguedos do boi no Brasil. Extrait du Artelogie, n. 4, 2013. Website: http://cral.in2p3.fr/artelogie/ IMG/article_PDF/article_a183.pdf CLAVAL, Paul. “O papel da nova geografia cultural na compreensão da ação humana” IN: Matrizes da geografia cultural (Orgs.: Zeny Rosendahl e Roberto Lobato Corrêa), RJ, EdUERJ, 2001 DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª edição, Rio de Janeiro: Rocco, 1997 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de janeiro: Zahar, 1978 GERTEL, Sérgio. Território e Identidade: as Midia no Espaço Geográfico. Website: http:// observatoriogeograficoamericalatina.org. mx/egal6/Geografiasocioeconomica/ Geografiacultural/548.pdf MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia, vol. II, São Paulo: EPU e EDUSP, 1974 PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: Questões de uma Antropologia Sonora. Revista deAntopologia, SP, USP, 2001, V. 44 nº 1. SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. Philadelphia: The University of Pennsylvania Press, 1985. TURNER, Victor. The Anthropology of performance. New York: PAJ Publications, 1987. .O Processo Ritual. Estrutura e Antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1969. 253 O Festival do Folclore de Olímpia, o Grupo Sabor Marajoara e o Culto da Jurema: “invenções” sucessivas e complementares Estêvão Amaro dos Reis Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP [email protected] Resumo1 O Festival do Folclore de Olímpia – São Paulo (FEFOL) completou no ano de 2013 quarenta e nove edições ininterruptas e reúne manifestaçoes folclóricas de todas as regiões brasileiras. Entre os grupos participantes encontra-se o Grupo Sabor Marajoara da cidade de Belém (Pará), cuja fundação tem relação direta com o FEFOL. No presente trabalho, analisaremos como os integrantes do Sabor Marajoara aproximaram-se da tradição do Culto da Jurema – onde a bebida de mesmo nome (jurema) desempenha papel essencial no Culto – e utilizaram esta tradição como argumento e justificativa para sustentar sua relação com as manifestações folclóricas ou tradicionais que levam ao palco, estreitando as fronteiras entre esta tradição religiosa e o universo do espetáculo no qual o grupo transita. Para tal, utilizaremos o conceito de “tradição inventada” discutido por Hobsbawm (1997) e os estudos sobre o mito desenvolvidos por Canclini (2010) e Eliade (1991). Palavras-chave música, ritual, festivais de folclore, jurema, tradição inventada 1 Este trabalho foi originado a partir de pesquisa de Mestrado do autor realizada junto ao Instituto de Artes da Unicamp. 254 Olímpia e seu Festival Situada no noroeste paulista a 450 km de São Paulo, com uma população de aproximadamente cinquenta mil habitantes (50.024 habitantes segundo o Censo de 2010) Olímpia é uma tranquila cidade do interior que tem sua rotina transformada todos os anos no mês de agosto pelas atividades geradas pelo Festival de Folclore. Realizado ininterruptamente há quarenta e nove anos, o Festival do Folclore de Olímpia faz com que toda a cidade pare para assistir as apresentações dos mais de setenta grupos folclóricos2 e parafolclóricos3 participantes, oriundos de todas as regiões do país. Todos os anos chegam a Olímpia Congadas, Moçambiques, Bois, Cavalos Marinhos, Maracatus, Taieiras, Parafusos, Folias de Reis, Fandangos, Marabaixo, Reisados e Pastoris, enchendo a cidade de sons, cores e sabores, anunciando que mais um Festival se inicia. Dentre os grupos participantes encontra-se o Grupo Sabor Marajoara da cidade de Belém (Pará), cuja fundação está estritamente ligada ao Festival de Olímpia. O FEFOL – como o festival é chamado por seus habitantes – é o maior evento no gênero do país e além da grande quantidade e diversidade de grupos que reúne, abrange grande parte do que caracteriza a cultura popular brasileira como músicas, danças, jogos tradicionais infantis, comidas e bebidas típicas. Conta ainda um espaço próprio para a sua realização: a Praça de Atividades Folclóricas Professor José Sant´anna.4 Um 2 Longe de considerá-lo impregnado de conotações pejorativas, outorgadas a ele por algumas linhas de pensamento, trata-se aqui de pensar este termo como uma forma legítima de apresentar um saber tradicional. 3 Os grupos parafolclóricos ou de projeção folclórica, como também são chamados, têm nos grupos folclóricos uma fonte de inspiração e pesquisa e utilizam para a criação dos seus trabalhos artísticos os ritmos, os trajes e os passos de dança das manifestações folclóricas ou tradicionais da cultura popular brasileira. 4 José Sant´anna ou professor Sant´anna como ficou conhecido, nasceu no distrito de Ribeiro dos Santos em oito de julho de 1937 e faleceu em oito de janeiro de 1999. Foi um dos criadores e o responsável pelo desenvolvimento e consolidação do FEFOL. Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, professor de português, pesquisador e folclorista criou o Departamento 255 local com área de 96.800 m², com estacionamento, galpões de estrutura metálica em formato de barracas de tamanhos variados, área livre para montagem de um grande parque de diversões e um teatro de arena com capacidade para receber aproximadamente três mil pessoas sentadas, além de dois palcos, com som e iluminação profissionais. Figura 1. Grupos folclóricos em desfile na Arena do FEFOL. Fonte: Arquivo do FEFOL. O Sabor Marajoara no FEFOL “Põe tapioca, põe farinha d´agua, põe açúcar não põe nada, ou me bebe como um suco, que eu sou muito mais que um fruto, sou sabor marajoara...”5 O Grupo de Expressões Parafolclóricas Sabor Marajoara, idealizado por Paulo Parente6 e Alexandre Monteiro, inicia suas atividades no ano de de Folclore de Olímpia e tornou-se membro efetivo da Associação Brasileira de Folclore. Sua personalidade e seu modo de ser identificavam-se de tal maneira com os integrantes dos grupos folclóricos presentes no FEFOL que a sua figura tornou-se lendária para estes grupos, transformando-se em uma espécie de “mito”. 5 Trecho de canção do compositor paraense Nilson Chaves que deu origem ao nome do grupo Sabor Marajoara. 6 Paulo Parente, fundador e integrante do grupo Sabor Marajoara há vinte e quatro anos. 256 1985 na cidade de Belém, porém, sua fundação oficial ocorre somente no dia 24 de junho de 1989. Como integrante de outros grupos, Parente participara do FEFOL desde a sua 20ª edição, no ano de 1984 e por três anos residiu na cidade de Olímpia. [...] nós começamos a criar o grupo em 1985. Eu fazia parte de outro grupo folclórico e nesta época nós tínhamos uma quadrilha. Aí eu saí do grupo, permaneci com a quadrilha, eu, o outro fundador que foi o Alexandre Monteiro, que hoje não faz parte do grupo, é fundador, mas não está mais com a gente. E.. em 87 a gente começou a fazer a criação do grupo. [...] começamos com afinco mesmo a parte de grupo folclórico, começamos na casa de meu pai, o primeiro presidente foi meu pai. Minha mãe, meus irmãos né, os amigos por perto [...].7 Durante os anos em que residiu em Olímpia, Parente esteve muito próximo ao professor José Sant´anna e, dessa experiência, surge a ideia de criar o seu grupo, como nos conta em depoimento. [...] É, antes da vinda do grupo, eu vim, eu venho vindo pra Olímpia, desde do 20º Festival Folclórico. Ainda não era aqui no Recinto, era lá na praça da Matriz. E eu vim com o... grupo folclórico do Pará, depois eu vim com os Baioaras, oito anos e depois com o Sabor Marajoara. No período dos Baioaras, foi o período que eu vim morar pra cá, durante três anos [...] voltei e foi quando houve aquela vontade de formar o grupo. Ou seja, eu queria que aquelas pessoas que eu vivia com a quadrilha, viessem a Olímpia e conhecessem o Festival de Olímpia.8 O contato direto com o ambiente do FEFOL e a proximidade com o professor Sant´anna influenciaram-no de tal maneira que, ao retornar a Belém, sente a necessidade de criar seu próprio grupo. O motivo principal transparece em sua fala: Parente gostaria que as outras pessoas do seu 7 Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011. 8 Idem. 257 convívio pudessem experimentar a mesma sensação de valorização9 por ele vivenciada no contexto do FEFOL. Ao demonstrar como os grupos são vistos e valorizados em seu espaço10, o ambiente do FEFOL instiga a criação do Grupo Sabor Marajoara e incentiva-os a buscar as referências para a criação do grupo o mais próximo possível das suas tradições. A gente busca a essência mais próxima mesmo da rede de todas as danças que a gente faz no palco, que hoje são 16 danças, só do Estado do Pará. Isso, conhecidas! Tem muitas danças que a gente desconhece e que.. só sabe o nome, porque muita gente daquela época, já não sabe mais como é que era dançado. Pra gente poder buscar, tem que buscá alguém bem antiga, pra gente poder, apresentar essa dança pra gente.11 O Sabor Marajoara se enquadra na categoria dos chamados grupos parafolclóricos, inspirados em manifestações populares tradicionais ou folclóricas que, através da pesquisa, levam-nas para o palco em forma de espetáculo. Os grupos parafolclóricos não têm, necessariamente, uma relação direta, de uma perspectiva tradicionalista, com a manifestação que estão apresentando. No caso dos grupos folclóricos, os motivos pelos quais realizam suas atividades, seja em suas Festas ou mesmo quando representam suas práticas em um palco, são de outra ordem, e perpassam outras instâncias simbólicas. Em outras palavras, os grupos folclóricos são herdeiros e representantes de uma tradição, e os grupos parafolclóricos apresentam tradições não necessariamente a eles vinculadas. Enquanto os grupos folclóricos como Congos, Moçambiques, Maracatus, Folias de Reis, Bois, Cavalos Marinho, Reisados, Marujadas entre outros, 9 Para saber mais ver: Reis, Estêvão Amaro dos. O Festival do Folclore de Olímpia, São Paulo: uma festa imodesta. 2012. Dissertação de Mestrado em Música. Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. 10 Espaço como “o meio, o lugar material da possibilidade dos eventos” (Santos 1994, p. 41). 11 Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011. 258 são considerados representantes legítimos de uma tradição, transmitida de geração a geração, e diretamente vinculada a alguma crença ou manifestação religiosa,12 para os grupos parafolclóricos, este conceito não se aplica. Entretanto, o Sabor Marajoara tende a ser a exceção neste cenário, pois, como veremos, na sua busca por melhor conhecer as manifestações tradicionais, ou folclóricas, que seriam por eles levadas ao palco, se aproxima tão profundamente de algumas destas tradições que a linha que separa o folclórico do parafolclórico, torna-se quase imperceptível. Apesar de inserido no contexto parafolclórico, a proximidade máxima com o que apresentam é a justificativa para o trabalho que desenvolvem. Fenômeno semelhante – que ganhou visibilidade na última década – é observado por Elizabeth Travassos (2004) especialmente nos grandes centros urbanos: o interesse de jovens artistas e estudantes pela cultura tradicional ou folclórica brasileira. Segundo Travassos, emergiram nos últimos anos nestes cenários (especialmente Rio de Janeiro e São Paulo), recriações de celebrações e modos de expressão cujas raízes remetem a regiões muito distantes daquelas de seus atuais praticantes. Para estes jovens, “cuja história pessoal e familiar está atada a cultura e sociabilidade moderna” (TRAVASSOS, 2004, p. 10), e apesar da distancia geográfica que os separa, o objetivo não está apenas em aprender a música, os passos de dança ou algum outro aspecto isolado dessas manifestações folclóricas ou tradicionais, mas sim em apreendê-las na sua totalidade. O objetivo maior está em captar e apreender o “sentimento da brincadeira”, o espírito da festa. 12 No Brasil, no que diz respeito às manifestações populares tradicionais ou folclóricas, é praticamente impossível distinguir o que é somente religioso e o que é somente profano. Tomemos como exemplo o Maracatu, uma manifestação vinculada ao carnaval, uma festa profana por excelência, e ao mesmo tempo vinculada aos cultos de Xangô (como é chamado o Candomblé no Recife). 259 O aprendizado valorizado não é apenas técnico, tanto quanto a prática valorizada não é a da simples repetição habilidosa de gestos e cantigas. Trata-se de recriar o ambiente do “brinquedo” que mobiliza a participação coletiva e exige múltiplos talentos expressivos de cada indivíduo. (TRAVASSOS, 2004. p. 112 e 113). O fenômeno apontado por Travassos em parte se assemelha ao fenômeno observado junto ao grupo Sabor Marajoara. Em ambos os casos os novos praticantes destas manifestações não são herdeiros dos saberes e das tradições que estão sendo recriadas, porém, uma diferença contribui para torná-los distintos: os integrantes do Sabor Marajoara originam-se da mesma região onde estão enraizadas as manifestações folclóricas ou tradicionais que apresentam. Todos os integrantes do grupo Sabor Marajoara são paraenses e vivem no Estado do Pará. Soma-se a isto, o fato do grupo somente apresentar manifestações folclóricas daquele Estado. Pelo fato de estarem próximos geográfica e culturalmente dessas tradições o contato entre estes dois universos ocorre, ainda que em um primeiro momento de forma indireta, de maneira natural. Estes fatores favorecem o convívio entre os grupos sociais envolvidos e consequentemente propicia o intercambio e a troca de informações tanto no plano material, quanto no plano simbólico. No depoimento de Parente, há um episódio que demonstra a dimensão das experiências vivenciadas no FEFOL em sua vida e que, consequentemente, influenciaram o processo de criação e desenvolvimento do grupo Sabor Marajoara. O episódio diz respeito à visita do então Ministro da Cultura Francisco Weffort13 no ano de 1996 à cidade de Belém, onde o Sabor Marajoara apresentou-se numa cerimônia em homenagem ao ministro, realizada 13 Francisco Correia Weffort – Ministro da Cultura no período de 1995 a 2002, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. 260 no Teatro da Paz. Após a apresentação, que durou cerca de dez minutos, o ministro Weffort aparece sem ser esperado, no camarim do teatro. Ele passou por todo mundo, por cima da segurança e foi até nós. Queria conhecer o Sabor Marajoara, queria saber que grupo era aquele que estava se apresentando pra ele no teatro. Ele foi lá, cumprimentou, perguntou [...] ele veio, cumprimentou a gente e.. pra mim e pro Seu Alexandre ele perguntou assim: qual era o nosso maior desejo. A gente podia dizê, não, a gente qué uma sede, ou a gente qué um ônibus, aí me veio um estalo na cabeça, nós queremos ir pra um festival, ele disse: qual é o festival? O Festival Folclórico de Olímpia. Aí o nosso governador, que tava do lado dele, né? Ele disse: olha, então faça com que este grupo chegue até o Festival [de Olímpia].14 No ano seguinte, o Sabor Marajoara apresentou-se pela primeira vez no Festival do Folclore de Olímpia.15 Figura 2. Curimbós – tambores do Sabor Marajoara. Fonte: Estêvão Reis. 14 Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011. 15 Por coincidência o Sabor Marajoara encontrou-se com o ministro Weffort em Olímpia, que estava presente no FEFOL daquele ano. (Anuário do 33º Festival do Folclore, Olímpia, 1997, p. 124 e 134). 261 Figura 3. O Sabor Marajoara na Arena do FEFOL. Fonte: Estêvão Reis “Invenções” complementares Podemos compreender o Festival do Folclore de Olímpia como um festival “inventado”, ainda que sua invenção só tenha sido possível pelo fato destas tradições, reunidas posteriormente sob a forma de um festival de folclore, estarem presentes e vivas na cidade de Olímpia à época de sua “invenção”. O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas, construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e se estabeleceram com enorme rapidez. (HOBSBAWM, 1997, p. 9). A origem do FEFOL remete ao ambiente escolar, quando se iniciaram os primeiros movimentos impulsionados pelo professor Victório Sgorlon16 16 O professor Victório Sgorlon, trabalhou e acompanhou de perto a organização do FEFOL desde a sua concepção até o momento em que permaneceu na Praça da Matriz, em 1982. A partir 262 e seus alunos no antigo Ginásio Olímpia.17 A ideia inicial era simplesmente estudar o folclore no intuito de conhecer um pouco mais do que, naquela época, ainda estava muito presente na vida dos moradores da cidade. A professora Cidinha Manzolli18 nos informa que várias manifestações folclóricas ou tradicionais ainda podiam ser vistas com frequência em Olímpia, principalmente as de cunho religioso como, por exemplo, a “Recomenda de Almas”19, obedecendo ao calendário das famílias herdeiras destas tradições e das comunidades que as realizavam. Em um segundo momento, os grupos folclóricos responsáveis por estas manifestações são convidados e levados até a escola, com o intuito de demonstrar aos alunos o que havia sido discutido e apresentado conceitualmente. O fato destas manifestações folclóricas ou tradicionais estarem “vivas” na cidade, como destacou Manzolli, foi fundamental para que as atividades de pesquisa empreendidas pelos professores do Ginásio Olímpia se consolidassem na Olímpia dos anos 1960. Isto facilitou posteriormente a reunião destas manifestações na forma de um festival de folclore, anunciando a gênese de um festival “inventado”, o qual se tornaria parte das tradições da cidade de Olímpia. Neste sentido, a base na qual a “invenção” do FEFOL se assenta não está diretamente ligada a uma tradição de mesmo caráter, pré-existente na cidade de uma perspectiva histórica, e nem mesmo fruto de uma inide 1986, passa a ser realizado na Praça de Atividades Folclóricas Professor José Sant´anna, local construído especialmente para abrigá-lo. 17 Ginásio Olímpia, escola tradicional da cidade de Olímpia onde o professor Victório Sgorlon lecionava. 18 Maria Aparecida de Araújo Manzolli ou Dona Cidinha Manzolli: amiga e “discípula” do professor José Sant´anna, trabalharam juntos no FEFOL por quase quarenta anos. Por ser musicista e professora de música, foi procurada por Sant´anna para cuidar da parte musical das pesquisas que estavam sendo empreendidas. 19 “Recomenda de Almas” – Grupo de pessoas que saíam à época da quaresma cobertos com lençóis brancos, rezando pelas almas. Batiam de porta em porta ao som da matraca, os moradores colocavam comida na porta das casas, mas em hipótese alguma poderiam abri-las. Para saber mais ver: SANTANA, José. Aspectos folclóricos da quaresma no município de Olímpia. In: Anuário do Folclore, 24º Festival do Folclore, 1988, p. 7 et seq. 263 ciativa dos próprios grupos folclóricos da cidade. O FEFOL não remete a uma tradição de Festivais de Folclore existentes em Olímpia no passado, anteriormente à sua “invenção”. Ao contrário, o FEFOL está vinculado às manifestações folclóricas presentes em diferentes regiões do município. Ainda de acordo com o pensamento de Hobsbawm (1997). Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1997, p. 9). O FEFOL vincula-se às tradições das manifestações folclóricas ou tradicionais encontradas na região de Olímpia e a partir delas, incentivando-as, “inventa” a sua tradição. O Culto da Jurema O Culto da Jurema ou simplesmente Jurema é um culto de origem afro-indígena encontrado predominantemente no nordeste brasileiro, mas que também pode ser encontrado na região norte do país, principalmente no estado do Pará. Segundo Rosa (2009 apud Pinto 1995), o culto da Jurema pode ser observado – em diferentes formatos – desde o contexto rural, até os grandes centros urbanos de todos os estados do nordeste. A bebida sagrada de mesmo nome e o “reino dos encantados”20, cuja Cabocla Jurema é parte, são os elementos que regem e dão forma ao culto. Em cada lugar o culto toma forma específica, sendo a preservação da utilização da bebida jurema e da fumaça enquanto 20 Os Encantados são seres sobrenaturais que regem o Culto da Jurema e se assemelham aos Orixás do Candomblé. (Luizinho Lins, integrante do Balé Folclórico da Amazônia, em conversa informal ao autor em julho de 2013). 264 elementos fundamentais aos rituais, um forte elo entre os diferentes cultos de diferentes denominações e particularidades nas diferentes cidades (Rosa apud, Pinto, 1995, p. 37). O nome popular Jurema tem origem na língua tupi yu-re-ma (Rosa, 2009 apud Luzuriaga, 2001) e é empregado em relação a diversos aspectos ligados à religião. São dois os tipos de jurema; a preta (mimosa hostilis benth) e a branca (vitex agmus castus). Estes dois tipos são usados para o preparo da bebida sagrada, como também para banhos, remédios e defumações com objetivos terapêuticos para curar os males físicos e da alma. (Rosa, 2009 apud Assunção, 2006, p. 19). Segundo Rosa (2009) podem ser usadas até vinte e um tipos diferentes de ervas no preparo da bebida da jurema sagrada. A Jurema e o Sabor Marajoara Ao contrário do que acontece na Bahia e em outros Estados brasileiros, o Candomblé não é uma religião muito presente no Pará, onde a Umbanda é encontrada com maior frequência, assumindo para os paraenses o mesmo papel que o Candomblé representa na vida dos baianos. “A gente costuma dizer que em Belém, quem vai a missa às sete horas da manhã, no mesmo dia está no terreiro de Umbanda.” (THIAGO ROCHA, 2011).21 Esta constatação, sublinhada por Rocha, pode ser analisada como decorrência de que no Pará, assim como em toda a região amazônica, a influência que a cultura dos povos indígenas exerceu foi muito grande. Ainda hoje, o legado deixado por essa cultura se faz presente de maneira sistemática no cotidiano dos seus habitantes. Soma-se a isto a influência até hoje sentida pela proximidade com a floresta. Isso é facilmente observado, seja através da culinária, dos temperos, das frutas, ou dos cultos e 21 Thiago Rocha, integrante do Sabor Marajoara há quatorze anos, atualmente o ocupa o cargo de vice-presidente do grupo, além de desempenhar as funções de músico e apresentador. 265 rituais de influência indígena, como é o caso da Umbanda e consequenemente da Jurema. Como vimos anteriormente, no Nordeste o termo jurema além de dar nome ao culto representa a bebida sagrada Jurema. No Pará, no contexto do Grupo Sabor Marajoara, as referências à bebida Jurema se misturam aos relatos vinculados a uma entidade do “reino dos encantados” de nome Cabocla Jurema. Ao Culto da Jurema e, mais especificamente ao culto à Cabocla Jurema, os integrantes do Sabor Marajoara vincularam-se ao aproximarem-se, através de um intenso trabalho de pesquisa, das manifestações tradicionais ou folclóricas por eles estudadas. Por não trazerem intrínsecas estas tradições – da maneira como os grupos folclóricos as trazem – saem em busca de experiências que possam sustentar, e de alguma maneira legitimar o seu trabalho. O que está em jogo aqui é a legitimidade da apresentação artística, que deve explicitar a âncora firmada no chão de onde buscaram inspiração, e que a partir da apresentação se transforma no elo entre eles. Como nos relata Rocha, uma das entidades vinculadas ao culto da Umbanda no Pará é a Cabocla Jurema. A sua origem remete à lenda encontrada com frequência naquela região. A lenda da Jurema, ao mesmo tempo em que faz referência à época da escravidão, se mistura às histórias e lendas que dizem respeito à floresta. A Jurema é uma história lá da região amazônica. No tempo em que o Brasil era.. tinha como principal atividade o trabalho escravo, né? [...] Conta-se uma história, uma lenda, né? Que havia uma negra guerreira, uma negra forte que conseguiu fugir, conseguiu se soltar e escapar do seu Senhor e se escondeu no mato, se escondeu em Quilombos. E construiu ali grupos, que lutavam contra o domínio, contra o jugo do seu Senhor. O que ela fazia? Ela construiu grupos que iam até as fazendas, nas senzalas e tiravam os negros de lá. [...] ela ficou sendo louvada pelos negros da região amazônica, nas florestas que eles estavam. Por que região de floresta, por que na 266 África naturalmente a floresta predomina na maioria, não é? E aí ela tinha condições, a Jurema e seus grupos, de se esconder e lutar contras os Senhores. Bom, num determinado momento, essa negra foi novamente apreendida, colocaram nela algumas amarras e a machucaram bastante, açoitaram e ela acabou se transformando num mártir. Um símbolo da causa negra, do negro fugido, do negro que lutava contra esse domínio. E esse mártir ganhou proporções lendárias, proporções míticas. E é daí que vem justamente a história da dança, né? Essa dança, que faz louvação a Jurema, ela acaba contando um pouco da história, através da música, a dança chama batuque amazônico, né? Conta um pouco da história dessa negra que fugia e tentava ajudar os outros negros, e aí, como ela se tornou uma história mítica, conta-se nessa lenda que ela começou a ganhar poderes fantásticos, poderes paranormais, né? E ela aparecia aos negros explicando o que eles teriam que fazer pra fugir das suas senzalas. E nos terreiros de Umbanda em Belém, algumas pessoas que tocam, como se deve tocar o tambor, os atabazeros, não é? Algumas pessoas que dançam, que bailam em prol da negra Jurema, eles acabam recebendo, segundo os religiosos dessa crença, acabam recebendo essa cabocla, ela ficou assim conhecida, como cabocla Jurema. Daí que vem a dança e daí que vem a história da Jurema.22 Muitas danças apresentadas pelo Sabor Marajoara estão ligadas, de uma maneira ou de outra, ao culto da Jurema e principalmente ao culto à���� ����� Cabocla Jurema. Pode-se dizer que o culto à cabocla Jurema hoje está por trás e “sustenta”, através dos seus fundamentos religiosos, grande parte das danças que o Sabor Marajoara apresenta. Neste ponto surge a seguinte questão: se o Sabor Marajoara se situa na categoria dos grupos parafolclóricos, cuja principal característica, como vimos, é a sua total desvinculação com aquelas manifestações tradicionais ou folclóricas que serão por eles levadas ao palco, então, para que tanta preocupação e cuidado com o que estão apresentando? Para que se dar ao trabalho de ir até a Bahia, abençoar uma roupa ou se prepararem 22 Thiago Rocha em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011. 267 de maneira religiosa e ritualística para cada apresentação?23 Porque tanta preocupação e cuidado ao tratar das danças e dos assuntos da Jurema? Acompanhemos o pensamento de Eliade (1991). [...] por acaso é possível encontrar uma definição única capaz de abarcar todos os tipos e funções dos mitos em todas as sociedades, arcaicas e tradicionais? O mito é uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada por perspectivas múltiplas e complementárias. (ELIADE, 1991 p. 6). Isto considerado entende-se aqui por ritual o caráter simbólico desses eventos, com data, local e horário apropriado para sua realização; público determinado; e função específica dentro da comunidade a que está inserida. Sobre o mito, Eliade (1991) nos apresenta a seguinte definição. [...] o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Dito de outra maneira: o mito conta como, graças às façanhas dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja esta a realidade total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. [...] o mito se considera como uma história sagrada e, portanto, uma história verdadeira, posto que se refere sempre a realidades. (ELIADE, 1991, p. 6). Canclini (2003) corrobora o pensamento de Eliade e ao mesmo tempo nos apresenta outra definição. Costuma-se estudá-los como práticas de reprodução social. Supõese que são lugares onde a sociedade reafirma o que é, defende sua ordem e sua homogeneidade. [...] Há rituais pra confirmar as relações sociais e dar-lhes continuidade (as festas ligadas aos fenômenos “naturais”: nascimento, casamento, morte) [...]. Mas os rituais podem ser também movimentos em direção a uma ordem 23 O traje utilizado na Dança do Obaluê, do repertório de danças do grupo Sabor Marajoara, foi levado ao terreiro do Gantois em Salvador, para ser abençoado antes de ser utilizado pelo grupo em suas apresentações. 268 diferente, que a sociedade ainda rejeita ou proscreve. [...] destinados a efetuar em cenários simbólicos, ocasionais, transgressões impraticáveis de forma real ou permanente. (CANCLINI, 2003. p. 45). Nossa abordagem em relação ao “rito” alinha-se, neste ponto, ao pensamento de Canclini e sob esta ótica o espaço do FEFOL constituiria o novo cenário simbólico para os “rituais” dos grupos folclóricos inseridos em seu contexto, dentre eles o Sabor Marajoara. Na medida em que a “invenção” do FEFOL se consolida surgem em seu interior novas tradições, cuja “invenção” está diretamente ligada a sua própria “invenção”. Através de “ritos” também inventados, o grupo Sabor Marajoara busca o sustentáculo para os seus espetáculos artísticos e o espaço do FEFOL torna-se o ambiente ideal para a “invenção” constante de novas tradições, considerando que a “invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por referir-se ao passado”. (HOBSBAWM, 1997, p. 12). Os integrantes do Sabor Marajoara se preparam ritualisticamente para a realização das atividades ligadas ao grupo, principalmente no contexto do FEFOL. Nos seus espetáculos em muitos momentos mencionam e saúdam a Cabocla Jurema. Atualmente as suas apresentações artísticas Para os integrantes do Sabor Marajoara, essas práticas rituais são necessárias ao trabalho que será realizado. Desse modo, respeitam e valorizam as manifestações folclóricas que apresentam, aproximando-os ainda mais dos grupos folclóricos, estreitando, e mesmo diluindo a linha que os delimita e os separa. Neste sentido, o trabalho do Sabor Marajoara se desenvolve em direção oposta ao fenômeno observado por Travassos (2004), onde as manifestações folclóricas apresentadas localizam-se em regiões geográficas e culturais distantes e distintas, e que muitas vezes apenas o líder no novo 269 grupo teve a oportunidade de conhecer mais profundamente, transmitindo-a aos jovens interessados através de oficinas e aulas.24 Os integrantes do Sabor Marajoara se vêm e se entendem como parte daquela cultura, da cultura paraense de um modo geral e, consequentemente, da cultura do Culto da Jurema, que passa a reger as atividades do grupo. 24 O Maracatu é a manifestação que melhor se encaixa no fenômeno observado por Travassos. A partir do movimento Manguebeat, liderado pelo músico pernambucano Chico Cience na década de 1990, o Maracatu se popularizou e se espalhou pelo Brasil. Atualmente, mestres de Maracatu de Recife viajam por todo o Brasil ministrando oficinas em escolas, centros culturais e universidades, e a partir destas oficinas, em várias regiões brasileiras foram formados grupos de Maracatu. Bibliografia Carvalho, José Jorge. 2004. Metamorfoses das Tradições Performáticas AfroBrasileiras: de Patrimônio Cultural a Indústria de Entretenimento. Série Encontros e Estudos: 65-83. Canclini, N. G. Néstor. 2003. Culturas Híbridas, estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: EDUSP. Departamento de Folclore do Museu de História e Folclore “Maria Olímpia” da Prefeitura Municipal de Olímpia. 1971 a 2011. Anuário do Folclore. Eliade, Mircea. 1991. Mito y realidad. Tradução Luis Gil. Barcelona: Editorial Labor S.A. (Colecion Labor, nueva serie 8). Garcia, Canclini Néstor. 2010. Culturas Híbridas: estrategias para entrar y salir de la modernidad. Buenos Aires: Paidós. Hobsbawm, E.; Ranger, T. 1997. A invenção das Tradições. Traduzido por Celina Cardim. 3ª ed. Cavalcante. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Reis, Estêvão Amaro dos. 2012. O Festival do Folclore de Olímpia, São Paulo: uma festa imodesta. Dissertação de Mestrado em Música. Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas. Rosa, Laila. 2009. As juremeiras da nação Xambá (Olinda, PE): músicas, performances, representações de feminino em relações de gênero na jurema sagrada. Universidade Federal da Bahia. Santos, Milton. 1997. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Hucitec. Travassos, Elizabeth. 2004. Recriações contemporâneas dos folguedos tradicionais: a performance como modo de conhecimento da cultura popular. Patrimônio imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização. Brasília: ICS – UnB. Entrevistas Manzolli, Ap. M. de. Maria Aparecida de Araújo Manzolli: inédito. Olímpia, 11 de junho de 2011. Entrevista concedida a Estêvão dos Reis. Rocha, Thiago. Thiago Rocha: inédito. Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista concedida a Estêvão Amaro dos Reis. Parente, Paulo. Paulo Parente: inédito. Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista concedida a Estêvão Amaro dos Reis. Sampaio, George. George Sampaio: inédito. Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista concedida a Estêvão Amaro dos Reis. 270 O rock and roll carioca nos anos 50 Marcelo Garson Universidade de São Paulo [email protected] Resumo O objetivo deste artigo é iluminar alguns aspectos da gênese do rock and roll no Brasil. Analisando o curto período localizado entre 1955 e 1960, busca-se contestar a ideia de que, nessa época, o rock era praticamente inexistente enquanto pratica social, composto sobremedida por iniciativas esparsas de intérpretes já consagrados. Uma extensa análise dos jornais e revistas da época deixa claro que rock and roll era reconhecido como uma dança e não como um gênero musical. É justamente essa natureza que nos interessa analisar, o que nos leva à descoberta de um circuito de praticas sociais extremamente movimentado nos subúrbios cariocas. Nesses locais, os dançarinos disputavam concursos onde a superioridade técnica de suas acrobacias estava em jogo. Organizados a partir da lógica dos shows de variedades, esses eventos contavam com atrações das mais diversas, revelando, em grande medida, como a atmosfera do espetáculo é importante para compreender o papel social da música nessa época. Palavras-chave Juventude, rock and roll, anos 50, Rio de Janeiro 271 Em meados da década de 50 o rock and roll chega ao Brasil. É 55 a primeira gravação do gênero feita em território nacional, Ronda das Horas, interpretada por Nora Ney. No ano seguinte o filme que popularizou o ritmo em todo o mundo, Ao balanço da horas (Rock around the clock) estréia em São Paulo e em seguida no Rio de Janeiro. A mídia impressa da época1 dava conta de noticiar o quão excêntrico e contagiante parecia ser o novo ritmo, que já amealhava alguns entusiastas em solo nacional. Até fins da década, todavia, não tínhamos nenhum interprete brasileiro que se colocasse como representante exclusivo do gênero musical. Celly Campello é a única exceção e já em 59 chegaria às rádios com o sucesso Estúpido Cúpido. A jovem de Taubaté abriria caminho para uma série de cantores que a partir de São Paulo obteriam projeção nacional. Na década seguinte, a cidade se tornaria a meca do rock and roll nacional principalmente através do sucesso estrondoso da Jovem Guarda. Contada e recontada em fontes das mais diversas2, essa pequena historia tornou-se quase um senso comum a respeito da maneira como o rock chegou ao Brasil. Privilegiando o aparecimento de Celly Campello a narrativa se desenvolve de maneira progressiva e linear até a Jovem Guarda, fazendo acreditar que tudo o que se fez até 59 não merece maior atenção. O período se resumiria a alguns discos avulsos lançados por intérpretes que nada tinham de roqueiros, como a já citada Nora Ney. Surpreende, pois, constatar que é justamente nesse período esquecido que temos, no Rio de Janeiro, uma movimentação bastante expressiva ao redor do novo ritmo. Nos idos de 57 o jovem Carlos Imperial organizava jam-sessions na orla de Copacabana regadas a rock and roll para uma clientela jovem e de 1 Como verificado através dos jornais Correio da Manha, Folha de São Paulo, Folha da Manhã, Estado de São Paulo, Ultima Hora e também da Revista do Rádio. 2 Ela se repete com variações muito pequenas em materiais das naturezas mais diversas como revistas, (Bravo! Para Entender a Música Pop Brasileira, Contigo! Documento Musical Jovem Guarda, Caras, coleção Jovem Guarda), livros (FROES 2000, PUGIALI 2006, AGUILAR 2005) e sites (pt.wikipedia.org/wiki/Rock_no_Brasil) 272 classe média. Entretanto, foi bem longe dali que o ritmo expandiu-se de maneira bastante singular. Nos clubes de subúrbio, os roquianos, como eram chamados3, organizavam-se em grupos e dançavam em pares, inspirados nas coreografias exibidas nos filmes norte-americanos de rock. A técnica apurada e os movimentos acrobáticos estavam em jogo em uma série de concursos que tomavam de assalto os auditórios dos clubes atléticos, oferecendo troféus e até viagens ao exterior como prêmio. Nesses ambientes Imperial era bastante famoso. Entretanto, não foi dançando que seus conhecidos do subúrbio Erasmo Carlos, Roberto Carlos e Tim Maia, iniciaram suas carreiras. Como o próprio Roberto notara muito bem, as oportunidades para cantores estavam na região central da cidade, nos estúdios das rádios (ARAUJO, 2006). Nos clubes do subúrbio as grandes estrelas eram os dançarinos. O rock and roll que aí se praticava era bem diferente daquele que veio a consagrar os jovens intérpretes que fizeram fama na década seguinte em São Paulo. O objetivo deste artigo, portanto, é compreender a natureza muito particular dessa cena musical carioca em que as sonoridades não podem ser pensadas somente de forma autônoma. Coexistindo muitas vezes em um mesmo ambiente com atrações das mais diversas naturezas, ela fundamentalmente respondia à lógica do espetáculo onde o objetivo era fornecer estímulos sensoriais das mais diversas ordens ao espectador. Como primeiro movimento, cabe compreender a lógica estruturante das narrativas sobre o rock and roll desses primeiros anos. Ainda que escassos, os relatos sobre o período nos ajudam a compreender por que essa cena carioca foi sistematicamente deixada de lado. Através de uma maneira muito própria de se contar a historia, depreende-se que noção de rock and roll está em jogo e como ela opera excluindo tudo o que não possa ser contemplado por esse modelo. 3 O epíteto era freqüente na coluna social Luzes da Cidade comandada por Leda Rau e Carlos Renato no jornal Última Hora. 273 A História e as histórias do rock and roll Um de seus marcos indiscutíveis para a consolidação do rock no Brasil é o programa Jovem Guarda, que estréia em 65. Desde o início da década, entretanto, uma nova geração de cantores faziam fama em São Paulo, figurando em shows, discos, programas de rádio, TV e até revistas. Os jovens entusiastas do novo ritmo já constituíam um segmento de mercado a ser explorado; tudo indicava que a suposta moda poderia não ser tão passageira quanto se pensava. O sucesso de Tony e Celly Campello, Eduardo Araújo, Sergio Murilo, Demetrius e Ronnie Cord sinalizava a rentabilidade do empreendimento. Posteriormente, a Jovem Guarda daria uma unidade e expressão a um sem número de bandas e cantores que rumavam para a capital paulistana em busca de reconhecimento. Apoiado nos veículos midiáticos, o prestígio de seus ícones chegaria a ultrapassar fronteiras nacionais. Se a Jovem Guarda marca um momento de virada praticamente indiscutível, devemos tomar certas precauções para não tomá-la como o único paradigma de análise para tudo o que se fez antes. É bastante parca a bibliografia que trata do rock nesses primeiros anos, ainda assim ele segue uma linha argumentativa bastante similar. Nos trabalhos especificamente sobre a Jovem Guarda (FROES 2000, PUGIALI 2006, AGUILAR 2005) o período entre 55 e 65 entra como um preâmbulo para tudo o que se seguiria posteriormente. Até então, nenhuma surpresa. O mesmo ocorre, no entanto, na pesquisa cujo título parece anunciar a singularidade do período. Rock Brasileiro (1955-1965) Trajetória, Personagens e Discografia frustra nossas espectativas quando anuncia, logo de início, sua tarefa de “resgatar fatos e nomes desse período pouco estudado pelos críticos musicais e historiadores de rock, mas que foi sumamente importante por gerar o movimento Jovem Guarda”(..). Trata-se de uma narrativa que vê a década de 50 como um epílogo para os anos 60 em que tudo parece convergir para seu feito mais notável. 274 Há um valor indiscutivelmente documental e taxonômico de todo esse material escrito por insiders. Entretanto, seu tom excessivamente retrospectivo enviesa o relato no sentido de privilegiar todos os momentos que de alguma forma prefiguravam a Jovem Guarda. Como conseqüência, tudo o que não se encaixa nesse esquadro é deixado de lado. A história é contada já antecipando o seu fim. É como se o iê-iê-iê estivesse dado de antemão em tudo o que o antecedesse, sendo, portanto, o desenvolvimento “natural” do que veio antes. Guardadas as devidas proporções, é possível estabelecer um paralelo com a famosa idéia da “linha evolutiva” que nas palavras de Caetano Veloso explicaria como a MPB representava a evolução “natural” do samba, via bossa nova (NAPOLITANO, 2001). Através do prisma da Jovem Guarda, portanto, o período compreendido entre 60 e 65 é visto, na prática, como sua “pré-historia”, na medida em que vários dos componentes presentes no movimento já estariam sendo ensaiados em São Paulo: o apelo ao publico jovem, o uso de instrumentos elétricos, o acompanhamento de bandas e fundamentalmente a hegemonia dos intérpretes. Espelhados, portanto, no sucesso de norte americanos como Brenda Lee, Neil Sedaka e Paul Anka, teríamos uma nova geração de jovens dedicados que inaugurariam o nosso rock made in Brazil. E quanto ao período compreendido entre 55 e 60? Excetuando o sucesso de Celly Campello, que se inicia em 59, o que teríamos? Uma série de empreendimentos isolados e descontínuos de cantores já consagrados no meio radiofônico, como Nora Ney (Ronda das Horas) e Cauby Peixoto (Rock and Roll em Copacabana), que buscavam carona no sucesso do gênero no exterior. Somavam-se a isso alguns filmes importados com números musicais, uns poucos programas de rádio que tocavam majoritariamente música estrangeira e muito debate nos jornais acerca dos efeitos nocivos ou saudáveis da nova dança “louca e atraente”, nas palavras de Jair Alves. 275 Enquanto Bill Haley e Elvis Presley se afirmavam como ídolos da juventude norte americana, não tínhamos nada parecido no Brasil. Covers de Elvis cantando suas música nos rádios e em show de variedades era o máximo com o que poderíamos nos contentar. E quanto ao cenário carioca da década de 50? Não se trata de uma cultura de interpretes, sua natureza é tão distante do que veio a ser praticado a partir de década de 60 na capital paulistana que o nexo lógico parece sequer fazer sentido. Na impossibilidade de agrupar as manifestações carioca e paulista no mesmo grupo, acaba-se por excluir a primeira; eis como a tradição seletiva forjada a partir da Jovem Guarda encara os anos 50 no Rio de Janeiro. A normatização de um modelo interpretativo pressupõe a eliminação de tantos paradigmas possíveis e concorrentes (BOURDIEU 1974, 2005, 2007). A contribuição da sociologia, portanto, não é somente expor a parcialidade das narrativas, mas, ao de evidenciar a lógica do discurso, expor a quem ele serve e o que deixa de fora. A régua para medir o desenvolvimento do rock and roll nos primeiros anos foi calibrada a partir de uma certa interpretação do que seria o modus operandi norte-americano, baseado nos intérpretes e no formato canção que imortalizou-se através do disco. Representado por figuras como Elvis e Bill Halley, buscavam-se seus símiles nas cenas locais. Nessa linha de raciocínio teríamos verdadeiramente uma cena de rock no Brasil somente nos anos 60 e em São Paulo, pois é a partir dessa época que mal ou bem, acertamos o compasso com os Estados Unidos, se não em termos estruturais, ao menos simbólicos, por meio de nosso elenco de intérpretes que grassavam na indústria do disco e demais veículos midiáticos. Fica claro, portanto, que há uma dimensão mercadológica decisiva por trás do relato. São Paulo soube explorar o rock como um produto de maneiras muito mais rentáveis que no Rio. Na medida em que a historia do rock é também a historia de como ele se tornou um negócio, não surpre- 276 ende que essa cena carioca tenha tido tão pouca notoriedade. É justamente essa natureza bastante particular que nos interessa. O curto espaço de tempo, de 55 a 60, e a territorialidade do fenômeno não só interessam pela raridade do material empírico, mas por revelar que mesmo um fenômeno tão pouco documentado como o rock dos primeiros anos já possui uma narrativa hegemônica e que é passível de análise. A análise sociológica, portanto, guarda distância em relação a definições dadas a priori. Interessa-nos, observar a plasticidade da nomenclatura que por sua vez revela diferentes maneiras de vivenciar, perceber e classificar a realidade objetiva. Mesmo que não se enquadre no modelo paulistano, a rede de práticas sociais cariocas também se auto intitulava rock and roll. Nesse ponto, é dos atores, é não do pesquisador, a tarefa de definir. A este cabe investigar a lógica simbólica a partir do qual o conceito opera e em quais práticas sociais se materializa. Não podemos deixar de notar que nomenclaturas importadas como essa estão intimamente ligadas ao processo de ampliação do parque industrial nacional e abertura ao capital norte-americano que toma fôlego a partir dos anos 50. O rock and roll nos chega juntamente com a vitrola hi-fi, as batatas chips, o shampoo e os shopping centers. As modificações no consumo musical devem, portanto, ser circunscritas ao largo processo de modernização que remodelava tanto os espaços públicos quanto privados da sociedade brasileira (MELLO, NOVAIS, 1998). Ainda que inseridos em um movimento de contornos globais – já que a esfera de influência da cultura norte americana passa a adquirir dimensões planetárias – não se trata assinalar as conseqüências de um “pacote tecnológico pronto para ser montado no pais”, derivado de um “simples alinhamento ao modelo importador”, como acredita José Ramos Tinhorão (2004, p.325) que não por acaso usa a expressão rock brasileiro entre aspas. 277 Somos, portanto, chamados a compreender as variantes locais e singulares do processo de incorporação do ritmo estrangeiro, o que nos remete à estrutura pregressa de nossa cena musical. As exibições de rock and roll, como eram chamadas, fundiam-se a um variado circuito de eventos em que a lógica do espetáculo imperava, revelando, em grande medida, um certo lugar social da música em meados dos anos 50. Rock and roll e a cena musical na década de 50 Desde os anos 30, o teatro de revista e as chanchadas se juntavam com o rádio para formar o centro gravitacional do meio artístico. Como afirma Alcir Lenharo (1995), “ao redor desse tripé gravitavam a indústria do disco, as editoras de música, as revistas especializadas, a publicidade. (...) Cantores, compositores, músicos, artistas de teatro e rádio, (...) transitavam por um desses espaços culturais” (p.135). Até meados dos anos 50, o carnaval era um dos eventos centrais, sendo trabalhado nos programas de auditório das rádios, nos números musicais do teatro, e no espaço que as chanchadas concediam à música. O objetivo final era emplacar um tema carnavalesco. O samba, entretanto, convivia com uma série de outros estilos. Boleros, ritmos latinos – tangos, rumbas, guarânias – e também baião, xote e valsa ocupavam o espaço das rádios. O samba canção tinha um espaço especial também nas boates. A diversidade de idiomas não era novidade. Cantava-se em espanhol, inglês e até com sotaque lusitano. Um anúncio do Rei da Voz, uma das maiores cadeias de venda de disco do Rio de Janeiro, nos dá uma ideia de que a música consumida à época poderia vir tanto de Portugal, como do Paraguai, passando pelos Estados Unidos e Espanha. Nas paradas de sucesso, Cauby Peixoto, Dóris Day e The Platters (vendido à época como rock and roll) disputavam terreno. 278 . (Ultima Hora, 3º sessão, 12/05/57, p.4) Apesar da multiplicidade de estilos, não havia uma divisão muito clara em nichos de mercado. Os artistas, o público e as orquestras lidavam com os mais diferentes repertórios. Cantava-se principalmente ao vivo, em boates, teatros e principalmente nos auditórios das rádios. A música gravada ainda representava um alto investimento e de retorno incerto; discos e vitrolas tinham seu consumo restrito por conta do preço. Os custos disparavam quando se tratava de lançamentos internacionais, pois muitos selos estrangeiros, especialmente os norte americanos não 279 possuíam representantes por aqui. Para vencer o obstáculo, existiam maneiras muito específicas de lidar com o material importando. Regravar a música original, no mesmo idioma, mas com artistas brasileiros era uma possibilidade. Tínhamos ainda as versões, que consistiam na junção da melodia original a uma letra em português que podia, ou não, ter relação com a fonte. Esse mercado específico não foi uma invenção dos produtores de rock. Ele vinha de longa data e floresceu bastante junto aos astros do rádio, que vertiam temas cubanos, mexicanos e norte-americanos dos mais diversos. Havia ainda a possibilidade de se compor faixas inteiras em inglês (ARAUJO, 2006; LENHARO, 1995). Nesse ambiente surgiria o primeiro compacto de rock brasileiro, Ronda das Horas, uma regravação de Rock around the clock de Bill Haley and the Comets na voz de Nora Ney. A cantora fazia parte da mesma safra de astros do rádio, como Jorge Goulart e Ângela Maria, que ostentavam uma grande potência vocal. Tornado popular ao redor do mundo por servir de trilha sonora ao grande sucesso de bilheteria Sementes de Violência (Blackboard Jungle), o lançamento da faixa, ainda na voz de Hailey, chegava ao mercado brasileiro paralelamente à estréia do filme no Rio de Janeiro, ocorrida no início de outubro de 55. No final do mês, o disco já esgotava-se rapidamente nas lojas cariocas. O compacto de Nora Ney é lançado logo em seguida, desbancando o de Halley no ranking das mais vendidas da Revista do Rádio, situação que se repetiria no mercado paulista4. Eis que a primeira intérprete da música jovem no Brasil ultrapassava os trinta anos e tinha como carro chefe o samba canção derramado Ninguém me ama. Excêntrica aos olhos de hoje, a escolha é coerente e reveladora de muitas das convenções do mercado musical de então. Na inexistência de um homólogo nacional de Bill Haley, e sendo a guitarra 4 Tal como notado semanalmente no ranking das mais vendidas da Revista do Rádio, no período que vai de novembro de 55 a fevereiro de 56. 280 um instrumento pouco recorrente nos acompanhamentos, era preferível não arriscar. Nora Ney, ícone de um dos gêneros musicais mais populares, e um acordeon eram as concessões necessárias para se amoldar às preferências populares. Além disso, na medida em que os artistas não se repartiam por nichos de mercado estritos, entende-se como a incursão em um gênero aparentemente destoante não era visto com espanto, podendo, pelo contrário ser elogiada como sintoma de versatilidade. Era esse o ponto do crítico Claribalde Passos que considerava Nora Ney “uma das maiores figuras de nossa música popular e do rádio, cantora versátil e inteligente (..); aplaudimo-la, sim, por fazer valer sua grande classe diante do público e assinalar performance credora de encômios” (Correio da manha, 5º Caderno, 01/01/56). Não surpreende, pois que o verso do disco contivesse o samba choro Ciuminho Grande. Combinar samba e rock no mesmo lançamento não é pratica incomum nesses primeiro anos. Até logo jacaré, versão de See You Later, Alligator continha também dois sambas e um bolero. O intérprete Agostinho dos Santos explica sua escolha: A coisa que eu mais aprecio é o nosso fabuloso samba. Por isso, fiz questão de colocar na face A do disco do rock and roll um gostoso sambinha e não deixar passar em branco o nosso querido carnaval. O rock and roll, sendo um gênero novo, pareceume interessante gravar um pelo menos, para estar de acordo com a moda (Correio da manha, 5º Caderno, 20/01/57). A declaração aparentemente trivial é bastante reveladora das regras do jogo no cenário musical. A centralidade do samba, ainda que merecesse ser reconhecida, não abafava diversas outras expressões musicais. Já que as gravações eram custosas e de retorno incerto, as ondas passageiras representavam uma possibilidade de lucros. Assim, um mesmo suporte poderia mirar diferente gostos. “Estar de acordo com a moda”, portanto, era também uma estratégia comercial. É justamente nesse vai 281 e vem entre a “moda” e a “tradição” que o mercado se estruturava. Não se quer dizer com isso que vivíamos em uma democracia sonora. A chegada da Bossa Nova, logo em seguida, vai deixar claro o incômodo e as críticas de toda uma geração radiofônica que vê o seu espaço simbólico ser reconfigurado. No caso do rock, entretanto, o seu potencial para ameaçar as hierarquias em jogo é totalmente desacreditado. Como todas as epidemias musicais que já se desenvolveram nos EUA (..) só passará com o tempo. O tempo inexorável matará também o “Rock and Roll”. Será esquecido como foi o Charleston, o swing, a conga e tantas outras inovações musicais. Caem porque são musicas fictícias (..) queremos dizer que não pertencem ao coração do povo. São invencionices para fazer-se dinheiro. Sendo superficial, logo cansa. O público descobre isso com o tempo, sem o sentir. Fica então tudo para trás. Aguardemos, pois a hora do ‘Rock and Roll’ (Ultima Hora, tablóide, 16/02/57, p.5). A imprensa local não se cansava de anunciar a morte iminente do rock. Destituído de “raízes”, mais um produto descartável de um mercado ávido por lucro, seria varrido pelo tempo como o foram tantas outras modas musicais. A reportagem prosseguia comparando o rock ao jazz, sendo este considerado “perene e perpétuo (..) seus ídolos não caem, porque são ídolos de arte”. A trajetória de Elvis era acompanhada de perto e a qualquer sinal de declínio, como o seu ingresso no exército e seu posterior retorno aos palcos, recebido com frieza pelo público, eram sinal de que o rock agonizava. A comparação com seus possíveis sucessores, como o madison, cumpria a mesma função. A associação com a juventude era um outro fator que contribuiria para a descrença em seu futuro. A suposta audiência juvenil, alvo primeiro desse tipo de música no exterior, ainda não constituía um nicho de mercado no Brasil. A cena musical brasileira oferecia um amplo cardápio de esti282 los musicais, entretanto eles não estavam repartidos por critérios geracionais. É sintomático que a grande inspiração de Celly Campelo, antes do sucesso de Estúpido Cupido, fosse Ângela Maria. Durante a adolescência ela apresentava-se na rádio difusora de Taubaté não só seguindo o repertorio, mas todos os seus trejeitos vocais da estrela do rádio5. Ângela Maria e Cauby Peixoto conseguiam a façanha de atingir todas as faixas etárias, crianças inclusive. O quadro Artistas de Amanhã? que correu de 55 a 58 na Revista do Rádio, ocupava-se do perfil dos filhos das celebridades do meio artístico. Crianças, de no máximo 10 anos, eram quase unanimes em apontar a dupla de cantores como seus grandes ídolos. Mesmo no auge do sucesso de Celly Campello, em 1960, as publicações sobre o rádio exibiam uma grande incerteza em relação ao futuro de uma música juvenil Está aparecendo uma nova safra de artistas – a dos brotos. Na sua maioria cantores de ‘rocks’, esses jovens refletem a tremenda influência que a música norte americana exerce entre nossa juventude. Não discutiremos se eles trazem qualquer contribuição à nossa música, se a prejudicam com a invasão de novos ritmos. Consignamos simplesmente que eles representam o anseio da mocidade por artistas moços, artistas fotogênicos, que preencham o ideal cinematográfico de suas aspirações. Por quanto tempo permanecerão esses jovens em cartaz? Só o tempo pode dizer. No entanto, agora, constituem uma força. Significam ídolos novos para a juventude que busca ansiosamente modelos e inspirações diferentes (A Brotolândia canta, Radiolândia, 340, nov, 60, p. 37). Entretanto, a segunda metade da década de 50 não foi só um momento de incubação para o que viria depois: o estouro do rock paulista no inicio da década de 60, marcado pela proliferação de cantores e bandas jovens que ocupariam o rádio e a televisão. O que se chamava de rock and roll nesses primeiros anos é um fenômeno de natureza bastante diversa. 5 Segundo depoimento cedido por Celly Campello a Abraão Berman, dentro do projeto Rock Paulista dos anos 60 do Museu da Imagem e do Som em 28 de setembro de 1984 283 Rock como dança Em 57, o rock já é pauta é constante tanto das revistas de rádio quanto dos jornais de grande circulação. A imprensa se esforçava por compreender o novo fenômeno, estampando as opiniões de especialistas nos jornais de grande circulação. Jair Alves, célebre representante do baião, interpretava uma sátira que parecia captar bem o espírito da época. Assim é a letra de Baião Rock: A America nos mandou um ritmo singular dança louca e atraente que chegou para abafar por isso digo menina nao vá ficar maluca com o tal de rock and roll verdadeira sinuca é uma danca esquisita todo mundo se agita provoca confusão ainda acredito em nosso baião Dança. Esse era o termo mais usado para se caracterizar o rock até fins dos anos 50. As denominações de gênero e estilo eram raras; quando muito se falava em ritmo. O canto, portanto, não havia sido alçado ao topo da hierarquia. Tratava-se, antes, de uma performance em que o corpo se apresentava em sua inteireza, empolgando através de passos inusitados, piruetas e demais malabarismos. Os cantores, quando existiam, desempenhavam a função de covers e também dançavam. “Que achas do rock?” perguntava uma leitora da Revista do Rádio a Cauby Peixoto, o mesmo que gravara Rock and Roll em Copacabana, a primeira composição do tipo em português. A resposta: “Como dança é interessante pelo seu aspecto acrobático” (Revista do Rádio, 2/8/58, p.36). 284 Entendia-se, portanto, o rock como uma dança de pares extremamente coreografada que seguia passos e trejeito que necessitavam de aprendizado e prática. É compreensível que academias que já ofereciam aulas de cha-cha-cha, tango, mambo, salsa, merengue e fox-trot, também incluíssem o rock em seu cardápio. . (Folha de São Paulo, 09/10/1960, p.23) Ao Balanço das Horas, que estreava por aqui em dezembro de 56 ajudou a popularizar o rock enquanto dança. O filme contava com a mesma faixa consagrada em Sementes de Violência, o grande diferencial, entretanto era tê-la incorporada ao enredo. Enquanto Bill Halley executava a canção, pares desfilavam os mais inusitados passos em um salão de baile. A estreia da fita vinha cercada de uma publicidade que ressaltava seus efeitos hipnóticos, selvagens e alucinantes. As audiências jovens seriam as mais afetadas, destruindo cinemas, desacatando a polícia, estourando o vidro de carros e envolvendo-se em brigas. Seu destino natural parecia ser a prisão ou o hospital. De fato, tanto o Rio como São Paulo, presenciaram incidentes nas salas de cinema, o que resultou na elevação da censura para 18 anos e uma marcação mais cerrada nos eventos de rock na zona sul, o que não chegou a inviabilizá-los. Nem de longe se produziu o pânico moral que tomara os Estados Unidos na década de 50, resultando numa cruzada moralizante contra os filmes, revistas e músicas juvenis. 285 . (Folha da Manhã, 18/12/56, p.8) Apesar dos discos de Haley terem chegado antes do filme, são os números musicais exibidos no cinema que contribuíram para o vinculo entre rock e dança. Dentre as várias enquetes realizadas pela Revista do Rádio, em fevereiro de 57 buscou-se descobrir das celebridades musicais o que achavam do rock. Registraram-se as mais diversas opiniões: “A música é igual aos suingues americanos” (Emilinha Borba), “..ainda sou pelo ritmo contagiante de um samba batucada.. (João Dias), “Ainda sou pelo nosso frevo, é muito mais saltitante e alegre”, “A dança não conheço, mas a música é de contagiar a gente” (Olivinha Carvalho) (Revista do Rádio, 16/2/56, p. 11). Por mais discrepantes que fossem os testemunhos, todos pareciam caminhar no sentido de uma associação entre o rock e a dança. No Rio de 286 Janeiro e em seus arredores formavam-se pequenos grupos conhecidos como clubes do rock. Todos eles carregavam o nome de seu bairro – clube do rock de Niterói, de são Gonçalo, de Engenho de Dentro. Essas denominações atestavam a natureza de uma associação onde a territorialidade era marcada como signo distintivo. O mais celebre, e provavelmente o pioneiro, localizava-se em Copacabana. Suas reuniões semanais, realizadas nas tardes de domingo, ocupavam o Copa-Golf, restaurante localizado na orla carioca. O público, extremamente elitizado, era formado de jovens da alta sociedade carioca que se intitulavam sócios. As habilidades enquanto dançarino determinavam em grande medida o prestigio de cada um junto ao grupo. O auge da reunião contava com a apresentação do “rei” e da “rainha” no centro de uma roda. Aos menos habilidosos restava bater palmas, acompanhar o ritmo com os pés ou ainda jogar golf. O prestigio dentro do grupo, portanto, não era repartido segundo a mesma convenção dos conjuntos de rock que viriam a seguir, cuja hierarquia já se expressa em nomes como Renato e seus Blue Caps. Em relação à instrumentação, era composta por trompete, bateria e o piano: ao invés de banda, falava-se em orquestra. O foco, definitivamente, repousava sobre os dançarinos. Seus fundadores, Siegfried Chala e George Mehdi, franceses, defendiam, no entanto, que o rock que ali se praticava seria uma derivação de suas jam-sessions de be-bop realizadas ainda antes do sucesso dos filmes juvenis. Explicavam ao repórter do Correio da Manha que o surgimento do be-bop reclamava uma forma convencional de dança-lo, originaria em Saint Germain des Près, e é daí que derivaria o rock. “esse ‘ritmo quadrado’ que não serve para ser ouvido, mas para ser dançado. Em poucas palavra o ‘rock and roll’ não é nada mais, nada menos, que uma associação da música “bop” com o ritmo, música e estilo do ‘boogie-woogie’. ” (17/2/57, 5º caderno, p.1). A longa explicação sobre a origem francesa de sua prática social, que em nada se confundiria com a cultura massiva norte americana, revela um 287 habitus de classe e uma busca por distinção bastante evidente (BOURDIEU, 2007). Na mesma medida em que se ressaltava a inexistência dos vocais e, portanto, a presença do corpo, a experiência sensorial é despida de seus componentes catárticas ganhando ares de atividade semi-intelectual e de origem nobre. Presença assídua nas reuniões do Copa-Golf o jovem Carlos Imperial, que futuramente se tornaria uma personalidade destacada nos mais diversos veículos midiático, decidira conduzir um segundo Clube do Rock. A diferença fundamental é que desse participavam em peso os “suburbanos” como eram pejorativamente conhecidos os jovens que não moravam na Zona Sul carioca. Imperial e seu grupo seriam convidados para diversos números musicais em chanchadas, como De Vento em Popa de Carlos Manga. Já no inicio do filme vemos coreografias feitas em pares, muito semelhantes às apresentadas nos filmes de rock, animadas ao som de um contrabaixo, piano e bateria. Há, portanto, uma semelhança bastante grande com o clima de jam session tal como descrito pelos membros do Copa-Golf. É justamente nos subúrbios que o grupo de Imperial encontra seu meio de ascensão. Novos clubes de rock multiplicavam-se nas zonas pouco nobres da cidade. Os salões dos grêmios recreativos eram os locais onde os dançarinos disputavam a superioridade técnica, exibindo-se em eventos recheados das mais diversas expressões artísticas. Rock como espetáculo Como já citada, a pesquisa de Alcir Lenharo (1995) nos mostra como a música atravessava os mais diversos espaços como o teatro de revista, cinema e radio. A performance ao vivo aliada à dimensão de espetáculo são fundamentais para entendermos a mística desse cenário. O objetivo era estimular o público se utilizando dos mais diversos meios: esquetes de teatro, concursos, piadas e também números de música e dança. Os programas de variedades eram os melhores exemplos de que o en- 288 volvimento total dos sentidos, em grande medida, era uma das funções sociais da música. A lógica dos fait divers que se proliferavam desde o início do século, dentro e fora dos veículos massivos, mostrava a sua força (SINGER, 2001)6. O rock nesses primeiros anos, portanto, cativava o público por seu exotismo e novidade. Tomado como dança extremamente coreografada, ainda que desencorajasse participações espontâneas, atraía olhares curiosos. “Mesas à venda”, lembrete colado no anuncio de divulgação dos eventos, dava ideia do papel social reservado à audiência. Exibições e demonstrações eram, portanto, as palavras que melhor descreviam a maneira como o rock ocupava os salões dos clubes. Festa das elegantes, Rock na terra de noel, Do Samba ao rock eram alguns dos eventos que se multiplacavam no bairros da Tijuca, Olaria, Benfica, Rocha e Quintino Bocaiúva. Nesses locais enfrentavam-se os clubes de rock, que carregavam o nome de seus bairros. Até o ginásio do Caio Martins, em Niterói, foi palco de um evento desse porte, o Festival do Rock and Roll ocorrido em abril de 57. Algumas de suas características nos dão a ideia do quão movimentado era esse circuito. Patrocinado pela coluna social Luzes da cidade do jornal Última Hora, bem como pela revista Manchete Fluminense e pela TV Rio, a magnitude do evento impressionava. Sua programação iniciava-se com um duelo de orquestras que tinha inscritos até de São Paulo, prosseguia com a apresentação de cantores consagrados do rádio, dentre os quais Blecaute, e encerrava-se com a apresentação de dezenas de pares que disputavam a atenção de um júri composto de jornalistas e radialistas. A audiência chegava a 5 mil pessoas (Ultima hora, 3ª sessão, 05/04/57). Eventos como esse se multiplicavam na zona norte carioca. A dimensão de um show de variedades era fundamental para compreender a sua 6 Fica claro, portanto, que essa noção não tem qualquer afinidade com o famoso conceito desenvolvido por Guy Debord em Sociedade do Espetáculo. 289 lógica de funcionamento, que comportava apresentações de naturezas aparentemente discrepantes. Em uma mesma noite era possível ter contato com as mais diversas atrações: dançarinos de tango ou frevo, desfile de baianas ou de moda, exibições de castanhola, apresentação de sambistas e recitais de piano. A presença de celebridades e vencedoras de concursos de beleza era uma constante. Aqui, os roquianos não só se exibiam, mas também disputavam prêmios. A atmosfera lembrava bastante os programas exibidos nos auditórios das rádios. Nesses eventos, a coexistência aparentemente pacifica entre o rock e as danças nacionais, não pode, no entanto, nublar a existência de disputas simbólicas que existiam no cenário musical como um todo. Heitor do Prazeres e, ironicamente, Nora Ney7 fariam sambas repudiando o rock e Luiz Alves, o “rei do frevo”, garantia que a dança pernambucana era “muito mais buliçosa e cem por cento brasileira”, portanto “abdicar do espírito de nacionalidade em favor de pura imitação exibicionista não [seria] legitimo nem sincero”. Apesar de tudo, pouco se fazia para conter a proliferação da nova dança. Era de crença geral que seus dias estavam contados (Ultima Hora, tablóide, 24/4/57, p.4). Enquanto isso, a dimensão dó entretenimento chegava a flertar com o cômico, dando ao rock uma grande plasticidade no mundo dos espetáculos. 7 As composições se chamam, respectivamente de Nada de Rock, Rock (Moçada, nosso caso no Brasil é samba / É um pandeiro, uma mulata e um crioulo com passo de bamba / Um violão, uma cuíca, uma mulata cheia de missanga / Nada de rock rock, de rock rock / Nós queremos é samba/ Um samba ritmado bem tocado cheio de remelexo / Uma mulata bem cestosa requebrando faz cair o queixo / Sabe lá o que é isso?/ Onde tem um bamba,/Nada de rock rock, de rock rock / Nós queremos é samba ) e Cansei de Rock (Eu ligo o rádio e tome rock / Vou a boate e tome rock / Vejo filme italiano / Da Lolo ou da Mandano / E tome rock e tome rock / Compro parte de piano / Entro logo pelo cano / E tome rock e tome rock / É de amargar, não tem mais jeito / Eu vou me mandar no peito / Lá pra América do rock / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Compro parte de piano / Entro logo pelo cano / E tome rock e tome rock / É de amargar, não tem mais jeito / Eu vou me mandar no peito / Lá pra América do rock / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Toque cabalado, toque um samba, toque/Toque cabalado, já cansei de rock / Teco, telecoteco, teleco...) 290 Além de ser cantado e dançado pelo humorista e autor de marchinhas Moacyr Franco, sob o codinome Billy Fontana (PAVÃO, 1982), ocupava os palcos do teatro de revista servindo de mote para comédias tais como Vovó e Papai em Rock and roll e Rock and Roll no Carnaval que estreavam no início de 57 no Rio de Janeiro. Sua faceta burlesca chegaria ao auge quando até um circo resolveu apresentar um número de rock and roll desempenhado por nada menos que um elefante. . (Ultima Hora, tabloide, 04/7/57, p.3) . (Ultima Hora, tabloide, 29/7/57, p.7) Ainda que houvesse diferenças objetivas entre o que se via nos clubes, nas revistas e no circo, todas as expressões estavam circunscrita à lógica do espetáculo e respondiam pela mesma categoria nativa – todas se chamavam rock and roll – o que torna a comparação pertinente. Radio e TV Ao mesmo tempo em que participava desses concursos, Imperial buscava oportunidades para crescer no meio televisivo. A simpatia junto ao apresentador Jaci Campos lhe rendeu um quadro no programa Meio Dia um show de variedades que contava com receitas culinárias, animais amestrados, fisiculturismo e números musicais. Os dançarinos do Clube 291 do Rock agora tinham um local para exibir suas acrobacias e dublar os sucessos dos ídolos norte americanos. Entretanto, não raro sua participação era substituída de ultima hora por um cachorro que fazia acrobacias, ou algo do gênero, o que atestava que no mercado de espetáculos possuíam o mesmo valor simbólico (MONTEIRO, 2008, p. 27). Por seus palcos passariam Roberto Carlos e Tim Maia, ainda anônimos. Sua função se resumiria a dublar sucesso de astros internacionais o que lhes renderia a alcunha de Elvis Presley e Little Richard brasileiros. Não seria ai que a carreira dos dois encontraria um rumo. Desiludidos com o rock, o primeiro gravaria um compacto de bossa nova e o segundo rumaria para os Estados Unidos. O show encerraria suas atividades em 58. Sua sobrevida efêmera, entretanto, despertara a atenção do antigo disc jockey Jair de Taumaturgo para o novo ritmo. Veterano do rádio, transportaria para a Mayrink o clima dos bailes do subúrbio. Hoje é dia de rock é o nome de seu programa radiofônico apresentado a partir de 59, que promovia disputas entre os grupos, premiando não só os melhores dançarinos, como também os melhores cantores, leia-se covers, e os melhores mímicos. Essa ultima categoria, que ainda se repartia em individual ou em conjunto, masculina ou feminina, traduzia-se na imitação dos gestos e trejeitos do cantor cuja música estava tocando ao fundo. A exibição era extremamente sui generis: enquanto a plateia da emissora tinha acesso ao espetáculo todo, o público de casa escutava o playback e os berros dos espectadores (MOTA, 2000). O aspecto teatral, performático e espetacular da empreita ficam evidentes. Um novo cenário Já no final da década, o quadro modificava-se. O sucesso de Celly Campello era paradigmático. A jovem de Taubaté, extremamente comedida, possuía uma performance que transpirava seu habitus feminino e in- 292 teriorano. O adestramento corporal exprimia-se nos vocais suaves, nas letras extremamente pudicas, no figurino comportado e no desconhecimento absoluto dos passos de dança. No lugar das agitadas jam-sessions do Clube do Rock, teremos as lentas melodias, ausentes de conotações raciais ou sexuais, no estilo Paul Anka e Neil Sedaka, os novos ídolos da juventude norte americana branca e de classe média. Nesse sentido, o rock estabelecia um contato com uma tradição de canções melódicas que já faziam sucesso no Brasil durante a década de 40 e 50; sambas-canções, tangos, boleros, etc (ZAN, 1997). Tudo isso indicava que o rock and roll sofria um deslocamento; não mais se tratava de uma dança, mas sim um novo gênero musical, o que explica porque passou a ser tratado cada vez mais dentro das sessões de música popular nos jornais. A dança não desaparece, mas desce dos palcos e abandona progressivamente os traços acrobáticos e as coreografias. Em meio a essa reviravolta simbólica, os dançarinos e sua orquestração acústica são substituídos pelos intérpretes e suas bandas eletrificadas. As razões comerciais explicam em grande medida a nova configuração: se as performances acrobáticas só poderiam ser consumidas ao vivo, a canção oferecia a possibilidade do registro fonográfico, evidenciando seu potencial mercadológico superior. Aos que queriam se tornar ídolos das multidões, como Roberto Carlos, o privilégio pelos estúdios de gravação seria a escolha mais sensata. A indústria cultural entenderia perfeitamente o recado, explorando a nova música através do radio, cinema, TV e publicações especializadas. Os astros são consumidos com uma visibilidade até então inédita Estavam dadas as coordenadas para o florescimento da Jovem Guarda. O rock nunca mais seria o mesmo. Bibliografia Aguillar, Antonio. Histórias da Jovem Guarda. São Paulo: Globo, 2005. Araujo, Paulo César de. Roberto Carlos em detalhes. Rio de Janeiro: 293 intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Editora Planeta, 2006. Bourdieu, Pierre. As Regras da Arte. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2005. . A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. . A Distinção: Crítica Social do Julgamento. São Paulo: Zouk, 2007. Frith, Simon. 1996. Music and Identity, In Questions of Cultural Identity edited by Stuart Hall and Paul du Gay. London: Sage Publications. Pp. 108-127 Monteiro, Denílson. Dez! Nota Dez! Eu sou Carlos Imperial. São Paulo: Matrix, 2008. Mota, Nelson. Noites Tropicais. São Paulo: Objetiva, 2000. Napolitano. Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na MPB(19591969). São Paulo, Anna Blume / FAPESP, 2001. . (no prelo). Politically Engaged, Playboys and Hippies: Musical Movements and Symbolic Representations of Youth in Brazil in the 1960s. In Music and Youth Culture in Latin America. Editado por Pablo Vila. Oxford and New York: Oxford University Press. Froes, Marcelo. Jovem Guarda: em ritmo de aventura. São Paulo: Editora 34, 2000. Grossberg, Lawrence. The political status of youth and youth culture. In. EPSTEIN, Jonathon (ed.), Adolescents and their Music: If it’s too loud, you’re too old. New York: Garland, 1994, p. 25–46. Hall, Stuart. Quem precisa da identidade In. Silva, Tomás Tadeu da, Identidade e Diferença. A perspectiva dos Estudos Culturais, Vozes, Petrópolis, 2000 Lenharo, Alcir. Cantores do Rádio: A trajetória de Nora Ney e Jorge Goulart no meio artístico do seu tempo. Barão Geraldo: Editora da Unicamp, 1995. Mazzarella, Sharon R. Constructing Youth: Media, Youth, and the Politics of Representation. In, ANGHARAD, N. Valdivia. Malden, A Companion to Media Studies Blackwell Publishing Ltd, 2003. p. 227-246 Martins, Rui. A rebelião romântica da Jovem Guarda. São Paulo: Fulgor, 1966. Melo, João Manuel Cardoso; e Novais, Fernando. Capitalismo Tardio e Sociabilidade Moderna. In: Novais, Fernando A. História da Vida Privada no Brasil: Contrastes da Naves, Santuza Cambraia; Duarte, Paulo Sérgio (orgs.). Do Samba Canção à Tropicália. Rio de Janeiro: Faperj, 2003. Ortiz, Renato A moderna tradição brasileira. São Paulo: Ática, 1983. Palladino, Grace. Teenagers – An american history. Nova York: Basic Books, 1997. Pavão, Albert. Rock Brasileiro: 195565. São Paulo: Edicon, 1982. Pugiali, Ricardo. Almanaque da Jovem Guarda: os embalos de uma década cheia de brasa, mora?. São Paulo: Ediouro, 2006. Tinhorão, José Ramos, História Social da Música Popular Brasileira, São Paulo: Editora 34, 2004. Vila, Pablo. (no prelo) Introduction.In Music and Youth Culture in Latin America. Editado por Pablo Vila. Oxford and New York: Oxford University Press. Zan, José Roberto. Do fundo de quintal à vanguarda. Tese de Doutorado, IFCH/Unicamp, 1997 • Jornais Correio da Manhã Diário Carioca 294 Estado de São Paulo Jornal do Brasil Folha de São Paulo A Noite Folha da Manhã Última Hora • Revistas O Cruzeiro Revista da Semana Revista do Rádio Radiolândia • Sites Hemeroteca Digital Brasileira - http://hemerotecadigital.bn.br/ 295 Bebendo o blues: a bebida e o cigarro na obra de Celso Blues Boy Paulo Celso da Silva Professor e coordenador do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba [email protected] Resumo O trabalho analisa a obra do músico carioca Celso Ricardo Furtado de Carvalho (19572012) que escolheu para seu nome artístico o Blues Boy, em homenagem a seu ídolo da adolescência, Blues Boy King, ou simplesmente, B.B. King. Iniciou sua carreira acompanhando músicos brasileiros e, a partir dos anos 1980, desenvolveu sua carreira solo com 11 discos lançados, sendo que o título do último disco, de 2012 foi, Por um monte de Cerveja . O texto analisa a recorrência do tema bebida – Blues – cigarro, na obra de Celso Blues Boy, utilizando a metodologia de palavras-tema e palavras-chave, considerando que as primeiras são utilizadas pelo autor, mas de uso geral e, as segundas, caracterizam o poetamúsico. Isso possibilita compreender as particularidades desse estilo musical no Brasil, o fazer Blues no Brasil. O trabalho também mostra que a correspondência entre o BluesBebida-cigarro, nem sempre feliz, marcou, além do estilo e a temática, a vida do músico. 296 “Um monte de cerveja, invadindo a minha mesa, jorrando como fonte, um monte de cerveja” Celso Blues Boy Blue Shift1 Reconhecidamente o Blues nasce com os negros escravos norte-americanos trazidos para os campos de algodão no século XIX. Especificamente, no Delta do Rio Yazoo. A característica mais importante neste estilo de música é a utilização da escala pentatônica menor acrescentando a, denominada, Blue Notes, exemplificando temos uma terça menor sobre a tônica e a dominante (respectivamente 1º e 5º graus da escala. No acorde de Do maior (C) a Blues Notes é o Mi bemol (E♭) e Si Bemol (B♭), no acorde de Mi Bemol (E♭) é Sol Bemol (G♭) e Re bemol (D♭). A 5º bemol no acorde de Do (C) é Sol Bemol (G♭), no de Mi bemol (E♭) é Lá (A)2. O padrão mais comum é o Blues de 12 compassos, ou seja, a cada 12 compassos completamos cada ciclo da progressão de acordes, exemplificando em Mi (E) temos: E A B E A A E E E E E B Onde Mi (E) é a tônica ou I grau Lá (A) é a subdominante ou IV grau e 1 Desvio para o azul: deslocamento do espectro de um corpo celeste para os comprimentos de onda mais curtos, indicando aproximação. 2 A notação musical utiliza as Letras A-B-C-D-E-F-G para designar respectivamente as notas LA-SI-DO-RE-MI-FA-SOL. O bemol com o símbolo ♭ e sustenido ♯, são alterações nos valores das notas. Sétimas são grafadas com o número acima 7 297 SI (B) é a dominantes ou V grau. Didaticamente temos 12 compassos com 4 tempos onde podemos contar 1-2-3-4 para cada um. Também encontramos progressões de Blues de 12 compassos com sétimas E A B E A A E A B B E E E E7 E B7 Ou de 8 compassos: E A EA EB Acrescentamos a isso o fato de que o blues é caracterizado pelo ritmo, estilos de solos vocal e instrumental e progressões de acordes. Percebemos imediatamente que definir o estilo por este ou aquele aspecto não é possível e contraria, por outro lado, que a música nasce como resistência étnica à tonalidade européia. Conforme aponta Muggiatti (1999:27), “ninguém define melhor o blues do que seus criadores, como o próprio W.C. Handy: O blues veio do nada, da carência, do desejo. Há letras que dizem tudo : I love the blues, it hurts so Nice (adoro o blues, ele machuca tão gostoso)”. A temática do blues pode ser a mais variada, amor perdido, sexo, diversão, para dançar e beber, rural ou urbana, denúncia das condições de vida, automóveis, doença, trem, guitarra, violão. Um exemplo interessante do já citado blues de 12 compassos, e com um tema beirando a brincadeira, com sua base em uma frase, repetição e desfecho, pode ser: I’m going down and lay my head on the rairoad track, I’m going down and lay my head on the rairoad track, Whem the trains come along, I’m gonna snatch it back. 298 Neste pequeno verso temos um elemento importante para os negros norte-americanos, o trem. Mais que um novo transporte, representava para o imaginário a possibilidades de sair da condição de opressão, de vencer barreiras espaciais e sociais. Neste artigo, não teríamos espaço suficiente para abordar tudo o que é necessário e importante no Blues, assim, indicamos alguns textos que ajudarão o leitor a se aprofundar no assunto. Nossa intenção aqui é falar do Blues no Brasil, especificamente do carioca Celso Blues e sua produção como compositor e guitarrista, enfim como Bluesman Tupiniquim. Também a recorrência de temas em sua obra, dos quais destacaremos a bebida e o cigarro como elementos marcantes da vida-obra do seu autor. Celso Blues Boy — Biodiscografia — Blue Collar3 Como músico profissional o carioca Celso Ricardo Furtado de Carvalho (05/01/1956) escolheu para seu nome artístico o Blues Boy em homenagem a seu ídolo da adolescência, Blues Boy King, ou simplesmente, B.B. King, lendário Bluesman norte-americano. Iniciou sua carreira acompanhando músicos como Raul Seixas, Sá e Guarabira, Luiz Melodia e Renato e seus Blue Caps. Em 1976 fundou o grupo de Blues-Hard-Rock Legião Estrangeira. No ano de 1980 inicia sua carreira solo, um ano depois desiste de tocar e retoma no ano seguinte, 1982, na coletânea lançada pela WEA Rock Voador com grupos que tocavam na sala de espetáculo do Circo Voador. Registra e lança pela mesma gravadora um Compacto Simples (hoje single) com Fugindo de mim e Sinto Tanta Saudade. Participa do filme Bete Balanço com uma ‘ponta’ na película e na trilha sonora com a canção Blues Motel. Retorna ao cinema em 1985 participando da trilha sonora do filme Tropclip cantando Tempos Difíceis. Lançou na década de 1990 a grife Blues Boy com óculos escuros e paletas para guitarra e baixo. 3 operário de produção 299 Do Rio de Janeiro viveu uma temporada na Europa, mas retornou ao Brasil e em 1996 fixou residência em Joinville, local que havia vivido quando criança. Em 2008 comemorou sua carreira lançando o DVD gravado ao vivo no Disco Voador (Rio de Janeiro). Retorna ao CD em 2011 com “Por um monte de cerveja” e, no ano seguinte, falece em 06 de agosto, vitimado por um câncer na garganta que, conforme os amigos mais chegados, o guitarrista recusava a tratar. Seu corpo foi cremado na mesma cidade. Em ordem cronológica temos os seguintes registros musicais: • Fugindo de mim/Sinto Tanta Saudade – WEA • Som na Guitarra (1984) – Philips 824.151-1 • Marginal Blues (1986) – Philips 826884-1 • Celso Blues Boy 3 (1987) – Philips 832.258-1 • Blues Forever (1988) – Retoque Especial 60.001-B • Quando a Noite Cai (1989) – Retoque Especial 841.699-1 • Vivo – Celso Blues Boy (1991) – Philips 510.561-1 • Indiana Blues (1996) – Spotlight Records MO63012864-2 • Nuvens Negras Choram (1998) – Velas V20275 • Vagabundo Errante (1999) – Blues Boy Records BBR001 • Quem foi que falou que acabou o rock n’ roll? (2008) (DVD Gravado ao vivo no Circo Voador) – Distribuidora Go2 Music • 2011 - Por um monte de cerveja – Penedo Music 300 Conforme destacado em vários blogs e jornais, o primeiro e o último discos guardam semelhanças tanto dos temas como da produção pois, como descreveu o próprio Blues Boy4 Foram anos e anos compondo, e quando alguém chegou e disse “agora você vai gravar seu primeiro Lp”, eu tinha um leque de escolhas enorme. O que acontece depois? você grava esse primeiro Lp, ele faz sucesso pra caramba e você começa a tocar, praticamente de quarta a sábado, no Brasil inteiro. E onde fica o tempo pra compor? A gravadora exige que você lance, e o que você vai dizer? Não vou lançar? Mas eu não podia fazer uma obra tão boa quanto a anterior, porque tive anos pra fazer a primeira, e quanto tempo pra fazer a segunda? Tanto é que na mídia existe a tal da “síndrome do segundo disco”. Esse processo durou dos anos 80 até o final dos 90, no Rio. Quando chegou em 2000, 2001, falei: “Peraí, não aguento mais. Quero parar, quero voltar a compor como compunha, com tempo pra analisar, ver arranjo”. Então me fechei, tanto pra mídia quanto pra obrigações, pra me recompor como compositor. Não é que eu fosse mau compositor nas outras coisas que fiz, mas não era aquilo que eu sabia que poderia extrair. A temática das canções — Bluely5 Pode-se trabalhar com a análise dos textos poéticos partindo da frequência de certas palavras revelando maior ou menor índice de utilização delas. Conforme Augusto de Campos6, “..essa preferência do escritor por algumas palavras é um dado relevante para a interpretação da obra literária, de particular importância no âmbito da poesia, em virtude da rarefação da área semântica que nela ocorre, e da conseqüente dificuldade em descrevê-la através de critérios puramente lógicos, da impossibilidade – em suma – de traduzir o poema linearmente em prosa”. 4 HERBST, Rubens. O troco de Celso Blues Boy. Disponível em http://wp.clicrbs.com.br/ orelhada/2011/07/31/o-troco-de-celso-blues-boy/ . Acesso em 13.08.2013. 5 De tom azul 6 CAMPOS, Augusto. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985, págs..51-56 301 Dessa forma, podemos dividir as palavras em: palavras-tema e palavras-chave. Sendo que a primeira são aquelas mais empregadas pelo autor e não tem traços específicos por serem de uso comum; as segundas são palavras características do autor7. Não é nosso propósito ou a pretensão aqui de um estudo dessa natureza. Mas mesmo assim, cremos necessário indicar as palavras e os temas de maior freqüência nas canções de Celso Blues Boy para podermos demonstrar aquilo que é específico no fazer Blues no Brasil. Analisando a temática de Celso Blues Boy em seus onze discos lançados nos últimos trinta anos, vemos que, para o primeiro disco – Som na Guitarra de 1984 – a opção foi para guitarras, bebida e cigarros, o próprio blues, temas sociais e amor. O carro chefe do disco de estréia é a canção Aumenta que isso aí é Rock and Roll, naquele ano, sucesso nas rádios cariocas. O disco é composto de 9 canções e um encarte onde o autor explica: Não esperem de mim mais um disco pasteurizado. Este primeiro PL procura retratar o sabor existencial de uma geração que luta pela verdade, no amor, nas artes, no destino do mundo. Este disco é um pedaço de mim, de minha arte. Uma forma de participar com uma cota de verdade de tudo que está acontecendo por aí. No encarte, com as letras das canções ainda encontramos, ao estilo dos músicos independentes, a ficha técnica dos equipamentos utilizados, uma forma de dizer aos ouvintes que está mesmo tocando e os únicos efeitos utilizados são os pedais, com destaque para os de efeito Wah Wah e as guitarras da marca Fender modelos Stratocaster e Telecaster, uma espécie de marca registrada do músico. Apenas para ilustrar esse dado, existe uma certa preferência entre os guitarristas da sonoridade das marcas norte-americanas Fender e Gibson, normalmente fazem suas escolha por uma ou outra marca, alguns chegando ao exagero de não tocar se não 7 CAMPOS, Augusto. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985, pág..52 302 tiverem a sua preferida, como é o caso de Arnaldo Dias Baptista, ex-Mutantes, e sua conhecida ficção pelas Gibson e amplificadores valvulados. Para Marginal Blues (1986), segundo disco, a parceria com Cazuza, então conhecido e sucesso como letrista cantor do grupo Barão Vermelho, inclusive com participação no Rock in Rio, tem a canção Marginal abrindo o LP com uma temática social, contudo a predominância é o amor, aparecendo em seis ocasiões, além de cigarros e bebidas, cidade com incidências. Em ordem cronológica temos a predominância dos temas pelos LPs e CDs: • Quando a noite cai (1989) – amor (6), blues (2), bebida, morte e destino (1); • Indiana Blues (1996) – amor (5), cigarro (2), noite, bebida e liberdade (1); • Nuvens Negras choram (1998) – amor (5), cigarro (2), bebida, mulher anjos (1); • Vagabundo Errante (1999) – amor (2), trem, saudades, social, cigarro, bebidas e blues (1). • Por um monte de cerveja (2011) – Bebida, Morte, Blues(4), amor, solidão (3), cigarro e cidade(2), carro, mar, rock, viagens(1) • Blues Forever (1988) e Vivo (1991) – são Cds de covers e hits, respectivamente. Destacando em Blues Forever uma seleção que começa com Willie Dixon passando por Lennon & McCartney, Stones, Bob Dylan e terminando com J.J. Cale na nona canção, demonstrando o ecletismo e as possibilidades da interpretação no estilo Blues do músico. Vivo destaca a interpretação de Aquarela do Brasil de Ary Barroso com arranjos e guitarra de Blues Boy terminando com uma canção incidental, Até a Próxima, Blues. 303 Assim, baseando-se na metodologia de Guiraud, podemos dizer que as palavras-tema de Celso Blues Boy são amor, bebida e cigarro mesmo aparecendo em contextos diversos como na canção Fumando na Escuridão do primeiro LP (1984): Expresso da noite Na estação/ Mas com esse trem Meu coração/ Luzes da cidade Ficam pra traz/ Não há ninguém nesse maldito vagão/ Eu continuo fumando na escuridão/ Expresso da noite/ O que você me arrumou?/ Que roupa eu fui?/ Agora tenho que esperar/ Até a outra estação/Na solidão/ Aqui nesse trem só a o teto e o chão/ É trem! Do segundo Lp, Marginal Blues (1986) podemos destacar a canção Dry Blue Gyn que mistura a atmosfera das blues notes, solos de guitarra, bebida e desilusão amorosa. Um “oh senhor” relembra “Oh lord” americano: Teias de aranha nos cantos/ Luzes desbotadas/ Mulheres sorrindo/ E homens bebendo/ Quando eu penso em você/ Quando eu caio em mim/ Oh ddry blues gyn/ Oh Senhor me dê/ Uma guitarra pra tocar/ Algum vinho vagabundo/ Eu nada tenho pra sonhar/ Dry blues gyn. Em Celso Blues Boy 3, a canção damas da noite demarcava o território predileto dos bluesman, a mesa do bar acompanhados das personagens noturnas e regados com copo de uísque e cigarros. Comemorando algo inexistente, a noite etílica tem tons vermelhos e azuis. Amanhã, diferente, tudo se repete: Homens perdidos/ Procurando alguém/ Se esgueiram nas calçadas/ Alucinados por prazer/ A noite chega e ela vem/ Não se sabe de onde vem/ Universo enevoado/ Tão negro quanto um blues/ Apenas sombras solitárias/ A procura de uma luz/ Miragem no deserto/ Vermelho coração/ São as damas da noite/ São as damas da noite/ São as damas da noite/ Com quem fugimos da solidão/ Contando histórias tristes/ Na mesa de um bar/ Entre um trago de uísque/ E o retoque no batom/ Eu e você longe de casa/ Sem jamais poder voltar/ Eu quero taças erguidas/ Essa mesa é o nosso lar/ Eu quero taças erguidas/ Essa mesa é o nosso lar/ Miragem no 304 deserto/ Vermelho coração/ São as damas da noite/ São as damas da noite/ São as damas da noite/ Com quem fugimos da solidão. O final da década de 1990 fecha com o LP Quando a noite cai (1989). A canção Musa da Perdição retrata ainda a tríade bebida-mulher-solidão: Simples presa indefesa, ela não era não/ E quando ela disse que tinha e mostrava um pecado à mais/ Duas pernas que eu não sei aonde, ela foi arrumar/ E com aquele olhar de deboche na cara se arrastava pra mim/ Me chamou e Me chamou e pediu uma champagne suave/ E brincando bridou a nossa velha amizade/ Eu pensei com meus botões Isso pode não dar em nada/ Ele se estende errada/ E fez amor em grupo/ Aquele lá de casa/ Ah ela se estende errada. Negras Nuvens Choram, que nomeia o CD de 1998 fecha o Blues de Celso no século XX. Passaria uma década para o novo e derradeiro trabalho do guitarrista/cantor. Destacamos a canção que intitula álbum, com a temática do amor : Quero confessar/ Que o amor é uma lição/ Estúpida e Cruel/ Mas é inútil avisar/ Que essa dor/Não compensa/Só o tempo irá mostrar/Que terás o coração/Onde nuvens negras choram/. Já em seu último trabalho, Por um monte de Cerveja (2011), provavelmente em decorrência de seu estado de saúde que, se ele não sabia do câncer, tudo leva a crer que intuía algo diferente, os temas ficaram mais sombrios mas, ainda assim, o bom humor prevalecia nas conversas, Blues Boy afirmava para todos que “a cerveja me salvou do alcoolismo”. Na canção ‘A vida faz mal a saúde’, o tema da bebida, comida, cigarro estão presentes ironizando a vida mais regrada de algumas pessoas, vida que ele não aceitaria para si. Diz a canção: Acho que a vida faz mal a saúde,/É o que me leva a crer/ Até que não é difícil de se entender/ Beba água, abandone a cerveja, /Carne vermelha e cigarro não dá /Seja um bom cordeiro e aos cem anos chegará /Quero viver cem anos pra quê/ Se tenho muito mais o que fazer/ Eu não vou, eu não vou mudar / Não vai dar, o tédio iria me matar/ Sei que a vida faz mal a saúde/E a saúde fará mal a você/ 305 Esqueça o guia de sobrevivência você pode crer/ Isso nem é jeito de viver, / Que se dane tanta precaução/ Pois mesmo tendo saúde um dia desses você vai pro chão/ Quero viver cem anos pra que Se tenho muito mais o que fazer/Eu não vou, eu não vou mudar/ Não vai dar, o tédio iria me matar/ Dizem que há outra vida no além/ E isso até me faria um gosto/ Outra existência sem nada de imposto ou proibição/ Isso nem é jeito de se viver / Que se dane tanta precaução/ Pois mesmo tendo saúde um dia desses você vai pro chão/ Quero viver cem anos pra quê/ Se tenho muito mais o que fazer/ Eu não vou, eu não vou mudar/ Não vai dar, o tédio iria me matar. Vinho vermelho é sintomática da situação de saúde de Celso Blues Boy, depois da desilusão o pedido é para ir onde possa ter paz, que tanto pode ser um pedido à morte, como um pedido para que o vinho o leve para um estado inconsciente: Vinho vermelho igual os meus olhos/ Que só refletem ilusão/ A liberdade é uma corrente/ Que sem você me prende ao chão/ Destino amargo e indigente/ Eu rogo ao fogo e ao trovão/ Que você quebre o feitiço/ Que arrebente os elos da prisão/ Vinho vermelho/ Vinho vermelho/ Vinho vermelho/ Me leve para onde eu tenha paz... Os exemplos utilizados aqui podem dar uma ideia da relação bebida-cigarro-blues como palavras-tema da produção de Celso Blues Boy, contudo demandariam um estudo muito mais aprofundado, pois é uma temática que exige mais análises, inclusive relacionando a vida e obra. Entretanto, já temos “pistas” para refletir a possibilidade do fazer Blues em língua portuguesa e as temáticas aqui desenvolvidas. Blue Peter8 Observando e, principalmente, ouvindo o Blues produzido na América do Norte vemos que a temática das canções, assim como as palavras-tema e palavras-chave são, evidentemente, distintas daquelas ouvidas 8 Sinal (bandeira) de partida 306 no Brasil. Conforme analisa Postali, “o reconhecimento do blues como cultura norte-americana parecia ser algo impossível aos afro-estadunidenses.. A partir da década de 1960... o interesse da população em consumir essa musicalidade, fizeram com que os estadunidenses tomassem conhecimento de sua própria cultura” (2011, p. 166-7) Como afirma outro bluesman brasileiro, o guitarrista paulista, André Christovam: “Não acho que estou sendo ,mais um músico de blues e sim um músico bluesy. É uma carga muito pesada ser um bluesman branco nascido em Santa Cecília (SP)...”9 mostrando a dificuldade do músico neste estilo no Brasil, apesar de ser, ao mesmo tempo e tanto quanto o rock, um estilo musical universal. A classe média branca brasileira, na qual Celso Blues Boy se desenvolveu, não poderia - e talvez nem deva – aventurar-se pelos temas que deram origem ao Blues, o sofrimento de um povo desterritorializado, lutando para garantir um mínimo de dignidade em uma sociedade com uma parcela de sua população conservadora e racista, como a encontrada pelos músicos norte-americanos. É o que Beltrão classifica como cultura popular onde o essencial dessa definição está na tensão sempre presente com a cultura dos dominadores (POSTALI, 2011, p. 47). Contudo, essa relação conflituoso, não pode ser vista linearmente, mas de forma que um interfere e influencia a outra. O Blues, música de resistência em sua forma, temas, modo de tocar/cantar e no contexto em que se desenvolveu, demonstra que Estética e Ética andam juntas e não devem ser analisadas e refletidas individualmente. Finalizando, a canção do último álbum de Celso Blues Boy, ‘Ele sabia que as luzes se apagam’, deixa a mensagem, talvez mesmo de amor, para os bluesman: 9 MUGGIATI, Roberto. Blues – da lama à fama. 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora 34, 1999, pág. 199 307 Ao cair não encontrou quem lhe tivesse piedade/ Na última noite que sofreu/ Caminhava despercebido como um manto maltrapilho Pelas luzes de neon do centro da cidade/ Ele sabia que as luzes se apagam/ Mas depois disso nem lhe deram a mão/ Esquecido por tudo e por todos o velho se foi Partiu com dor no coração/ O Velho homem abandonado nas esquinas do pecado/ Como se fosse a sombra das suas canções/ Ao cair não encontrou quem lhe tivesse piedade/ Na última noite que sofreu/ Caminhava despercebido como um manto maltrapilho/ Pelas luzes de neon do centro da cidade/ Ele sabia que as luzes se apagam/ Mas depois disso nem lhe deram a mão/ Esquecido por tudo e por todos o velho se foi/ Partiu com dor no coração. Guarde este abraço No coração do Blues Celso Blues Boy - 1984 Referências – Bluethroat10 ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss Ilustrado Música Popular Brasileira Criação e Supervisão Geral Ricardo Cravo Albin. Rio de Janeiro: Instituto Antônio Houaiss, Instituto Cultural Cravo Albin e Editora Paracatu, 2006. também disponível em http://www. dicionariompb.com.br/celso-blues-boy/ dados-artisticos . Acesso em 10.08.2013. BLASCO, Arturo. ESCALAS PARA GUITARRA. Barcelona: Music Distribución, 2002. CAMPOS, Augusto. REVISÃO DE KILKERRY. São Paulo: Brasiliense, 1985 CAZNOK, Yara Borges. MÚSICA. ENTRE O AUDÍVEL E O VISÍVEL. 10 Espécie de rouxinol, de peito azul (Luscinia suecica). São Paulo:Unesp, 2003. ENCICLOPEDIA DO ROCK, DE A à Z. São Paulo:Somtrês, 1984. ENCYCLOPEDIA OF JAZZ IMPROVISATIONS. 6 GREAT BOOKS IN ONE FOR ALL BASS CLEF INSTRUMENTS. Charles Colin, 315 W.53rd St., New York, NY 1978. HERBST, Rubens. O troco de Celso Blues Boy in disponível em http://wp.clicrbs. com.br/orelhada/2011/07/31/o-troco-decelso-blues-boy/ . Acesso em 13.08.2013. MUGGIATI, Roberto. BLUES – DA LAMA À FAMA. 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora 34, 1999. MUGGIATI, Roberto. ROCK. O GRITO E O MITO. Petrópolis:Vozes, 1981. POSTALI, Thífani. Blues e Hip Hop . Uma perspectiva folckcomunicacional. São Paulo: Paco/EDUNISO, 2011. • LPs, CDs e DVD de Celso Blues Boy Fugindo de mim/Sinto Tanta Saudade (1983) – WEA Caminhando/ E Eu disse Adeus (1983) WEA Som na Guitarra (1984) – Philips 824.151-1 308 Marginal Blues (1986) – Philips 826884-1 Celso Blues Boy 3 (1987) – Philips 832.258-1 Blues Forever (1988) – Retoque Especial 60.001-B Quando a Noite Cai (1989) – Retoque Especial 841.699-1 Vivo – Celso Blues Boy (1991) – Philips 510.561-1 Indiana Blues (1996) – Spotlight Records MO63012864-2 Nuvens Negras Choram (1998) – Velas V20275 Vagabundo Errante (1999) – Blues Boy Records BBR001 Quem foi que falou que acabou o rock n’ roll? (2008) (DVD Gravado ao vivo no Circo Voador) – Distribuidora Go2 Music Por um monte de cerveja (2011) Penedo Music - AA 1000 309 “O mundo não para de girar” — a juventude roqueira dos anos de 1980 e suas relações com as bebidas alcoólicas Gustavo dos Santos Prado Doutorando e Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [email protected] Resumo Uma grande parcela das composições de rock nacional da década de 1980, trazem em seu bojo uma trama cultural complexa, resultado das aspirações que vários jovens artistas tiveram e que foram experienciadas em um dado cotidiano urbano. Assim, é comum as músicas abordarem temáticas que polarizavam a atenção dos jovens, tais como relacionamentos, festas, relações familiares, dentre várias. Diante desse universo de temáticas, que já foram relativamente exploradas na esfera acadêmica, a comunicação em questão, visa abordar as formas que, uma parcela do movimento roqueiro da década de 1980, representaram em suas composições, as suas relações com as bebidas alcoólicas. O resultado desse envolvimento permite que problematizemos a relação do jovem consigo mesmo, bem como com seu cotidiano vivido. Para tanto, foram trazidas para análise cinco canções, de grupos e artistas diversos, que fizeram parte do movimento musical em questão. Palavras–chave rock, juventude, álcool. 310 Introdução O rock nacional da década de 1980 emerge no cenário acadêmico, demonstrando-se fértil para inúmeras análises e reflexões.1 Tal característica, assim se coloca, pois os artistas que seguiram esse universo cultural, colocaram em suas composições, diversos dilemas e conflitos que foram vividos em um dado cotidiano urbano. 2 O movimento roqueiro dos anos 80 foi resultado de uma trama complexa, que envolvera um período no qual o direito a liberdade política, foi sendo reconquistado de forma gradativa. Naquele momento, uma parcela da juventude3, após uma “longa transição” (KINZO, 2001, s.p.) para o regime democrático, possuiu maior possiblidade de manifestação, se comparada aos jovens de anos anteriores. Nota-se assim que, o quadro político denotava protesto, reinvindicação e luta por liberdade de expressão. Outrora, esse engajamento político foi obrigado a conviver com anos de recessão econômica, que possuiu sua gênese com o choque mundial do petróleo de 19734 e que foi agravada com a política econômica do governo Sarney, que visava, sem sucesso, a contenção da bolha inflacionária. Assim, 1 Não é possível detectar aspectos de determinadas épocas no nível do seu “sentir” senão pela arte e mais precisamente pela música. Não há vestígio histórico mais envolvente, ainda que não raras vezes mais imperceptível, enquanto conceitualidade, do que a música em determinados períodos (WISNIK; SQUEFF, 1982, p. 15). 2 A vida cotidiana é também vista como um espaço onde o acaso, o inesperado, o prazer profundo de repente descoberto em um dia qualquer eleva os homens dessa cotidianidade, retornando a ela de forma modificada. É um palco de insurreição, já que nele atravessam informações, buscas, trocas, que fermentam sua transformação. (CARVALHO; NETTO, 1996, p. 14) 3 A juventude, nesse artigo, é vista como uma etapa de transição, sendo seus marcos delimitadores de difícil interpretação. Nesse ínterim, reconhecemos que tal etapa de vida está em simbiose com a transição e passagem, aproximando – se assim, das proposições de Abramo (1994). 4 A manutenção do crescimento econômico a taxas históricas durante o período só foi possível com o recurso ao endividamento externo, que retardou o ajuste da economia à nova situação internacional. (CARNEIRO, 1991, p. 9) 311 Entre 1985 e 1989, a política econômica do governo Sarney passou por diversas reviravoltas, com planos e choques heterodoxos e retornos ao “feijão com arroz” ortodoxo, oscilando entre o maciço apoio da população e a total perda de credibilidade. Nesse período, a inflação multiplicou-se por quatro, chegando a 1.000% ao ano, e às portas da hiperinflação. (ALMEIDA, 2011, p. 68) Enquanto movimento cultural, o rock traz em seu bojo, uma interação complexa de diversas sonoridades, espacialidades e temáticas, resultado e resultante de uma trama que possui a “circularidade” (BAKTHIN, 1993) desde sua gênese, pois a “origem do ritmo nasceu do jazz, do country, do blues e da miscigenação étnica de seus elementos.” (RAMOS, 2009, p. 8) Com isso, nota-se que, uma parcela significativa das bandas de rock, dos anos 80, receberam influências do punk britânico, em suas melodias, poesias e comportamento, com destaque a formação de bandas de garagem5, bem como ao lema “do it yourself”. (faça você mesmo). Assim, iniciaram suas trajetórias artísticas, compondo suas letras e melodias, montando sua banda e fazendo o seu som. (OLIVERIA, 2007, p. 19-59). Portanto, [...] eram grupos de jovens descontentes com o estado geral das coisas, num leque amplo e difuso, que vai das alternativas de lazer às perspectivas profissionais, às normas sociais, à situação do país e com um anseio por agitação. Esses jovens encontraram, no ideário punk, uma maneira de atuar, algo em torno do qual estruturar uma divisão genuína, intensa, que fornecesse ao mesmo tempo uma identidade singular e uma forma de expressar a insatisfação. (ABRAMO, 1994, p. 93) 5 [...] uma boa parte das bandas de garagem constituem-se em torno de identidades dissidentes, como se sua experiência refletisse tensões, contradições e contestações em relação à cultura dominante ou aos modos esvaziados de significado. Nesses sentidos, os nomes das bandas acabam por metaforizar identidades. A metáfora é a base semântica que permite criar uma identidade. O meu nome é metáfora do meu corpo, de modo que o nome de uma banda é o que permite ser identificada. As bandas jogam com nomes da mesma forma que os estilos (visuais ou sonoros), também eles elementos de identificação que ajudam a recriar tendências estéticas-musicais em um malabarismo de criatividade orientado para o prazer e o arranjo musical. (PAIS, 2006, p. 32) 312 Nesse leque de possibilidades de análise temática, trouxemos à baila, as formas que, os grupos de rock daquele momento, representaram6 em suas composições, as relações com as bebidas alcoólicas. Para tanto, algumas perguntas devem ser realizadas: Qual a simbologia dada à esse tipo de bebida por tais grupos? De que forma o álcool foi representado nas canções? Em quais eventos cotidianos o álcool se fez presente? Que relações culturais podemos problematizar a partir da relação jovem, rock e bebida alcóolica?. Para dar cabo das perguntas elencadas, o texto segue com a análise de cinco canções, de grupos e artistas diversos, que chamaram à atenção do mercado fonográfico daquele momento.7 Ainda, tal como exige o documento sonoro, procede-se com um diálogo inter-multi e transdisciplinar, em especial com a semiótica, enfatizando que, não há pretensão de fazer uma análise essencialmente musicológica.8 Ao final, chegaremos à alguns apontamentos conclusivos, frente a importante temática elencada, pois, o álcool “abre a ordem dos possíveis, alivia coerções sociais e propícia que se passe dos atos”. (MAFESSOLI, 1985, p. 142.) 6 Segundo Chartier (1990, p. 17) “As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.” 7 Para ver mais sobre o funcionamento do mercado fonográfico daquele momento: Dias (2000); Brandini (2004). 8 Ocorre, no entanto, que, por ter como objeto todo e qualquer tipo de mensagem, todo e qualquer tipo de produção de sentido ou de não sentido, de transmissão de informação e de processo interpretativo de qualquer espécie que seja, a semiótica acaba tendo, por sua própria natureza, um caráter híbrido, sendo ao mesmo tempo uma especialidade e um campo de conexão entre disciplinas, do que decorre sua inter, multi e transdiciplinaridade. (SANTANELLA, 1998, p. 24-25) 313 A juventude roqueira dos anos de 1980 e suas relações com as bebida alcoólicas. As canções de rock nacional, dos anos de 1980, trouxeram inúmeras representações de bebidas alcoólicas. Em grande medida, essas, supostamente, trariam para o sujeito expresso na poética, um “ar desinibido”, aventureiro e conquistador. Visava assim, consumar os seus desejos emocionais e subjetivos9, rumo à felicidade entre os pares: Mais uma dose? É claro que eu estou a fim A noite nunca tem fim Por que que a gente é assim? Agora fica comigo E vê se não desgruda de mim Vê se ao menos me engole Mas não me mastiga assim Canibais de nós mesmos Antes que a terra nos coma Cem gramas, sem dramas Por que que a gente é assim? Mais uma dose? É claro que eu tô a fim A noite nunca tem fim Baby, por que a gente é assim? Você tem exatamente Três mil horas pra parar de me beijar Hum, meu bem, você tem tudo Pra me conquistar 9 [...] tematizar a subjetividade permite problematizar a noção de sujeito universal, unilateral, isolável, emergindo a centralidade nos processos de diferenciação e na possibilidade de construção singular da existência nas configurações assumidas pelas apreensões que os sujeitos fazem de si mesmo e do mundo [...] A emergência de subjetividades plurais, livre do julgo do sujeito abstrato e universal, além de libertar as dicotomias como branco/preto, homem/ mulher, cultura/ natureza, igualdade/diferença, onde toda a posicionalidade está aberta a mudança no processo de desconstrução e devir social. (MATOS, 2005, p. 27-28). 314 Você tem exatamente Um segundo pra aprender a me amar Você tem a vida inteira Pra me devorar Pra me devorar! Mais uma dose? É claro que eu tô a fim A noite nunca tem fim Por que a gente é assim?10 Iniciada por uma melodia11 vagarosa e tensa, o narrador entoa a letra de forma lenta e arrastada.12 Com ela, o sujeito procura reiterar o desejo de consumar sua relação, sendo que, o consumo da bebida, seria crucial para um prolongamento do momento vivido: “Mais uma dose?/ É claro que eu estou afim/ A noite nunca tem fim/ Por que a gente é assim?/ Agora fica comigo/ E vê se não desgruda de mim/ Vê se ao menos me engole/ Não me mastigue assim/”. Posteriormente, o andamento13 da canção, passa a ficar mais rápido e intenso. Assim, o narrador projetou sua relação de forma intensa, forte e prazerosa, indicando que, seus objetivos iniciais haviam tido o resultado esperado: “Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem gramas, sem dramas/ Por que a gente é assim?/. 10 Barão Vermelho. Por que a gente é assim?. Álbum: Maior Abandonado. Som Livre, 1984. 11 De forma genérica, certa sequência de notas organizadas sobre uma estrutura rítmica que encerra algum sentido musical (DOURADO, 2004, p. 200). 12 A reflexão sobre música remete-nos também aos jogos do simbólico, na medida em que, por intermédio dos símbolos, tomamos o mundo e a nós próprios como objeto de significação. O discurso musical é, assim, algo que cabe na categoria dos símbolos: notas, pausas, regras, leis, sistemas, todos códigos repertoriados em uma cultura (SEKEFF, 1998, p. 34). 13 Indicativo de tempo e/ou de caráter, determina como a peça ou trecho devem ser executados (DOURADO, 2004, p. 26). 315 Modificando a postura melódica inicial, a música passa a se constituir mais alegre e felicita. Tal quadro, assim se fez, pois o narrador sentiu que, poderia ter a pessoa desejada, por um período mais longo. Logrando êxito em suas sentimentalidades, o sujeito expressou uma poética carregada de prognóstico de futuro: “ Você tem exatamente/ Três mil horas pra parar de me beijar/ Hum, meu bem, você tem tudo/ Pra me conquistar/ Você tem exatamente/ Um segundo pra apreender a me amar/ Você tem a vida inteira/ Pra me devorar/ Pra me devorar/”. Tal desejo, de acordo com a poética, só foi correspondido à partir de uma aproximação que foi possibilitada pelo consumo de álcool.14 Assim, nota-se que, as relações com as drogas, em especial com o álcool, deve ser compreendida de uma forma dinâmica, tendo em vista que a motivação para o consumo modifica-se no decorrer do tempo e da cultura. ( CUSTÓDIO,2009, p. 27) Dentro do universo cultural do rock, não foi incomum encontrar canções que procuraram associar o consumo de álcool a festas e diversão. Assim, o consumo de bebidas levaria o jovem representado a um “escapismo” do cotidiano, trazendo assim, outras interpretações diante do assunto abordado até então: Depois de duas ou três garrafas às vezes eu fico tonto, é que o mundo não para de girar nem de transladar! O álcool aumenta a minha sensibilidade e eu começo a perceber que o mundo não para de girar! Ainda bem que eu não sou nenhum lunático pois ficar bêbado na lua 14 Nesse contexto, o amor moderno se desenvolve como código de comunicação capaz de mediar o intercâmbio entre duas pessoas muito exclusivas e que manipulam dois mundos de significados singulares, recortados de maneira extremamente individualizada. (COSTA, 2005, p. 120) 316 deve ser bem pior! Pois a lua gira em torno da Terra que gira sobre si mesma que gira em torno do Sol e ainda tem o movimento de precessão que a lua faz em seu próprio eixo! O mundo não para de girar por isso eu estou tonto!15 Marcada por uma melodia rápida e aguçada, o sujeito expresso na poética, passa a declamar os “benefícios” que o consumo de álcool, traria para sua existencialidade. Em um cotidiano rápido, moderno e virulento, para o adstrito, seria necessário a ingestão de álcool, pois, somente assim, entraria em compasso com o mundo ao seu entorno:16 “Depois de duas ou três garrafas/ às vezes eu fico tonto/ é que o mundo não para de girar/ nem de transladar!/ O álcool aumenta a minha sensibilidade/ e eu começo a perceber/ que o mundo não para de girar!”. Mantendo a melodia inicial, o adstrito passou a representar o efeito que o álcool gerou no organismo bem como em seu momento vivido. Sua suposta “embriaguez”, emerge como um caminho à ser seguido, frente à busca de uma dada visão de mundo, que apareceu em constante mutação. Com esse intuito, o narrador procurou situar e intervir em seu cotidiano: “Ainda bem que eu não sou nenhum lunático/ Pois ficar bêbado na Lua/ Deve ser bem pior!/ Pois a Lua gira em torno da Terra/ Que gira em torno de si mesma/ Que gira em torno do Sol/ E ainda tem o movimento de precessão/ Que a lua faz em seu próprio eixo/ O mundo não para de 15 Garotos Podres. O mundo não para de girar. Live in Rio. Gravadora Independente, 2001. 16 [...] o ser moderno é viver uma vida de paradoxos e contradições. E sentir-se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detém o poder de controlar e frequentemente destruir comunidades, valores e vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando em nosso mundo [...] e ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiências e aventuras aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda em quanto tudo em volta se desfaz. (BERMAN, 1986, p. 12). 317 girar/ Por isso eu estou tonto”. Como pontou Mafessoli (1985 p. 141), o “álcool permite uma circulação de palavras e de corpo que lhe asseguram sua carga simbólica”. Em outras composições, a junção/reflexão álcool - festa, ao invés de fortalecer as convicções do indivíduo, traz as aflições provenientes de tal binômio. Com isso, a alegria e felicidade, cederam espaço para outras subjetividades e sensibilidades: A vida até parece uma festa, Em certas horas isso é o que nos resta. Não se esquece o preço que ela cobra, Em certas horas isso é o que nos sobra. Ficar frágil feito uma criança, Só por medo ou por insegurança. Ficar bem ou mal acompanhado, Não importa se der tudo errado. Às vezes qualquer um faz qualquer coisa Por sexo, drogas e diversão. Tudo isso às vezes só aumenta A angústia e a insatisfação. Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool Atrás de distração. Nada disso às vezes diminui A dor e a solidão. Tudo isso, às vezes tudo é fútil, Ficar ébrio atrás de diversão. Nada disso, às vezes nada importa, Ficar sóbrio não é solução. Diversão é solução sim, Diversão é solução prá mim. Diversão é solução sim, Diversão é solução prá mim. Diversão é solução sim, 318 Diversão é solução prá mim. Diversão! Diversão!17 A melodia alegre e festiva, mescla-se ��������������������������������� à�������������������������������� momentos de relativa tensividade.18 Tal quadro, assim se fez, pois o narrador encara a festa e seus desdobramentos, como um grande paradoxo. Afinal, festa e diversão, não carregam em seu bojo, somente, alegria e felicidade, pois, traria à tona algumas dificuldades inerentes ao momento vivido: “A vida até parece uma festa/ Em certas horas é o que nos resta/ Não se esquece o preço que ela cobra/ Em certas horas isso é o que nos sobra/ Fica frágil feito uma criança/ Só por medo ou por insegurança/ Ficar bem ou mal acompanhado/ Não importa se der tudo errado/” . Tentando uma fuga, frente as dificuldades vividas, o sujeito expresso na poética, passou a pontuar em seu discurso, sua relação com o álcool. Diferentemente de outras canções, a bebida não foi vista, somente, como sinônimo de felicidade. Pelo contrário, a diversão cedeu espaço para a tristeza, angústia e infelicidade, aumentando a tensividade da trama exposta: “Às vezes qualquer um faz qualquer coisa/ Por sexo, drogas e diversão/ Tudo isso às vezes só aumenta/ A angústia e a insatisfação/ Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool/ Atrás de distração/ Nada disso às vezes diminui/ A dor e a Solidão/ Tudo isso, às vezes tudo é fútil/ Ficar ébrio atrás de diversão/ Nada disso, às vezes nada importa/ Ficar sóbrio não é a solução/”. Com essa tensão cotidiana, o narrador sintetiza seu momento vivido: “Diversão é solução sim/ Diversão é solução prá mim.”. Dai então, a diversão não seria sinônimo de festas, prazer e hedonismo. Pelo contrário, em seu 17 Titãs. Diversão. Álbum: Jesus não tem dente no país de banguelas. WEA, 1987. 18 Alimentada por um repertório sociocultural, ela (a melodia) diz respeito ao ritmo sentimental, característico de cada indivíduo, estrutura particular de respostas emocionais. E como participa das bases fisiológicas da gênese das emoções, a experiência melódica acaba por colaborar na mediatização das emoções. (SEKEFF, 2009, p. 115) 319 universo, traz inúmeras dificuldades vividas pelo sujeito em sua esfera subjetiva. Assim, poder ser notado que: a experiência do sujeito contemporâneo seria então marcada pela necessidade de lidar ao mesmo tempo com o desamparo básico – constitutivo da condição humana – e sua intensificação, provocada por aquela “insuficiência do estoque identificatório. O narcisismo contemporâneo surge aí como uma defesa possível para o sujeito diante desse quadro, facultando-lhe a construção de identidades, que embora frágeis e passageiras, permitiram sua sobrevivência. (COELHO, 2006, p. 179). Nessa perspectiva, como poderá ser notado, a bebida significou fuga, escapismo, sendo uma tentativa do sujeito expresso de esquecer os problemas que foram sendo experienciados. Foi comum encontrar composições, nas quais o consumo de álcool veio acompanhada de vazio, tristeza e solidão: Eu que falei nem pensar Agora me arrependo roendo as unhas Frágeis testemunhas De um crime sem perdão Mas eu falei nem pensar Coração na mão Como um refrão de um bolero Eu fui sincero como não se pode ser E um erro assim, tão vulgar Nos persegue a noite inteira E quando acaba a bebedeira Ele consegue nos achar Num bar, Com um vinho barato Um cigarro no cinzeiro E uma cara embriagada No espelho do banheiro 320 Teus lábios são labirintos Que atraem os meus instintos mais sacanas E o teu olhar sempre distante sempre me engana Eu entro sempre na tua dança de cigana. Eu que falei nem pensar Agora me arrependo roendo as unhas Frágeis testemunhas De um crime sem perdão Mas eu falei sem pensar Coração na mão Como o refrão de um bolero Eu fui sincero Eu fui sincero Ana, teus lábios são labirintos Ana, que atraem os meus instintos mais sacanas E o teu olhar sempre me engana É o fim do mundo todo dia da semana. Ana, teus lábios são labirintos Ana, que atraem os meus instintos mais sacanas E o teu olhar sempre me engana É o fim do mundo todo dia da semana.19 A melodia aparece vagarosa, triste e melancólica.20 Com ela, o sujeito começou a pontuar os fatores motivadores de sua tristeza, que estão intimamente ligados, com as discordâncias e impasses frente a sua relação amorosa. Notar-se-á que, o consumo de álcool, sintetiza as reflexões provenientes de tal momento vivido: “Eu que falei nem pensar/ Agora me arrependo roendo as unhas/ Frágeis testemunhas/ De um crime sem 19 Engenheiros do Hawaii. Refrão de Bolero. Álbum: A revolta dos dândis, BMG, 1987. 20 Para a semiótica não há percepção de conteúdos semânticos (biológicos, sociais e psicológicos) sem envolvimento afetivo do sujeito. Não há análise de conteúdo que não implique um sentimento anterior como primeiro critério de categorização: fatos que nos atraem, nos repelem ou nos causam indiferença. (TATIT, 1997, p. 94) 321 perdão/ Mas eu falei nem pensar/ Coração na mão como um refrão de um bolero/ E fui sincero como não se pode ser/ E um erro assim, tão vulgar/ Nos persegue a noite inteira/ E quando acaba a bebedeira/ Ele nos consegue nos achar/”. Posteriormente, o narrador passou a descrever o espaço onde está situado, trazendo junto de si, inúmeras memórias com relação �������������� à������������� seu relacionamento. Assim, detalhes da cena emergem, junto com saudades, contradições e afetividades. O ato e consumo de bebida alcóolica, sintetizou essa trajetória, experienciada pelo narrador: “Num bar/ Com um vinho barato/ Um cigarro no cinzeiro/ E uma cara embriagada/ No espelho do banheiro/ Teus lábios são labirintos/ Que atraem os meus instintos mais sacanas/ E o teu olhar sempre distante me engana/ E eu entro na tua dança de cigana”. Formou-se assim, um “binômio”, bebida e solidão, no qual as frustrações amorosas são latentes nesse. Pode-se afirmar que, Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como determinar quando um começa o outro. Na maior parte do tempo, esses dois avatares coabitam embora em diferentes níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos de ambivalência. É por isso, podemos garantir, que se encontram tão firmemente no cerne das atenções dos modernos e líquidos indivíduos-pordecreto, e no topo de sua agenda existencial. (BAUMAN, 2004, p.6) Em outras composições, a relação do jovem com o álcool apareceu diferente da anterior. Nela, a bebida surgiu como um sinônimo de polarização e referência juvenil, rumo à identificação e socialização: O álcool, o álcool O álcool domina minha mente, O álcool, o álcool 322 Álcool domina minha mente Saio a noite com os amigos Para provar o gosto do álcool Todos alegres em volta da mesa Cantam e veneram o álcool O álcool, o álcool O álcool domina minha mente, O álcool, o álcool Álcool domina minha mente Minha juventude prometo desligar Dessa merda não vem acabar Sexta-feira quando saio pra vila O álcool não pode faltar O álcool, o álcool O álcool domina minha mente, O álcool, o álcool O álcool domina minha mente Dominou essa porra. 21 Em uma melodia alegre, o sujeito pontua a importância do álcool, no que se refere a identificação dos jovens. Assim, deixou nítida a impressão que, a diversão em grupo, só seria possível se caso tivesse o consumo de bebida alcoólica: “O álcool, o álcool domina a minha mente/ O álcool, o álcool domina a minha mente/ Saio a noite com os amigos/ Para provar o gosto do álcool/ Todos alegres em volta da mesa/ Cantam e veneram o álcool/ O álcool, o álcool/ Álcool domina minha mente”. Nota-se assim, como o álcool emergiu da canção, como sinônimo de conversas, iniciação, diversão e socialização. Afinal, 21 Garotos Podres. O Hino do Álcool. Disponível em: http://www.ouvirmusica.com.br/garotos-podres/1086001/#mais-acessadas/1086001. Acesso em 19/07/2013. 323 As relações sociais, que caracterizam os seres humanos, vão se delineando e se modificando em termos de estrutura e de importância no decorrer da vida. É na adolescência que os grupos passam a aumentar seu nível de importância e de influência, de modo que o adolescente, ao se inserir em um grupo, se torna um membro funcional e assimila a cultura que lhe é própria, se apropriando de comportamentos e atitudes, modelando-os por valores, crenças e normas. As relações no seio do grupo de colegas fornecem-nos algumas pistas para a compreensão do desenvolvimento psicológico e social (SPRINTHALL; COLLINS, 1998. Apud CUSTÓDIO, 2009, p. 65.). Apontamentos conclusivos Ao longo do texto, podemos notar que, o álcool foi associado a vários eventos da vida cotidiana. Assim, via de regra, representou alegrias, tristezas, angústias, felicidades, variando de acordo com o momento vivido pelo sujeito; em uma dada poética musical. Na canção do Barão Vermelho, podemos perceber que, o consumo de bebida alcoólica foi crucial para a manutenção da relação. É a partir daquela que, o sujeito representado, aproximou-se de quem possuía afeição. A melodia vagarosa e felicita, concedeu a atmosfera para que a representação do relacionamento ocorresse, dando condições para que o sujeito representado lograsse êxito na relação. Já na canção dos Garotos Podres, a melodia rápida e aguçada, deu condições para que o sujeito colocasse em questão, não só o efeito do álcool em seu organismo. Em outra via, o consumo de tal bebida, serviu para que o sujeito intervisse em seu cotidiano turbulento, rápido e confuso. Na poética dos Titãs, a diversão foi trazida de forma paradoxal e ambígua. Tal quadro, assim se mostrou, pois, a festa não foi sinônimo de alegria e felicidade. Ao contrário, foi nela que o sujeito representado, extravasou suas angústias, tristezas e frustrações. Diante desse quadro confuso, não restou ao sujeito outra saída, que não fosse o consumo exacerbado de bebida alcoólica, tendo à luz o momento que foi experienciado. 324 Refletindo o término do relacionamento, a canção dos Engenheiros do Hawaii, trouxe a bebida alcoólica como sinônimo de solidão, tristeza e frustração. A melodia lenta, arrastada e triste, concedeu a condição necessária, para que o sujeito colocasse em discussão, suas aflições subjetivas. Por fim, em outra canção, também dos Garotos Podres, nota-se que o consumo de álcool promoveu a identificação entre os jovens. Assim, a bebida em questão foi elo que promoveu reconhecimento entre os sujeitos expressos na trama. Nesse contexto, a melodia alegre e festiva, respaldou o discurso do sujeito. Podemos concluir que, o álcool acompanhou inúmeros momentos vividos pelos sujeitos expressos nas canções trazidas para análise. Não ao acaso, a bebida em questão, foi trazida de forma constante, ganhando espaço significativo nas produções de rock nacional da década de 1980. Assim, representou e subjetivou inúmeros sentimentos e emoções, que foram vividos em um dado momento. Referências ABRAMO, Helena Wendell. Cenas Juvenis. São Paulo: Página Aberta, 1994. Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. ALMEIDA, Gelsom Rozentino de. História de uma década quase perdida: PT, CUT, crise e democracia no Brasil (19781989). Rio de Janeiro: Garamond, 2011. BRANDINI, Valéria. Cenários do Rock: mercado produção e tendências. São Paulo: Olho d´Água, 2004. BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo Brasília: HUCITEC-EDUNB, 1993. CARNEIRO, Ricardo de Medeiros. Crise, Estagnação e Hiperinflação – A economia brasileira dos anos 80. Tese (Doutorado em Economia), Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Campinas - SP, 1991. BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2004. CARVALHO, Maria do Carmo Brant de; NETTO, José Paulo. Cotidiano: conhecimento e crítica. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 1996. BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução de CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução: Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro, Editora Bertrand Brasil, 1990. 325 COSTA, Sérgio. “Amores fáceis: romantismo e consumo na modernidade tardia”. Novos estud. - CEBRAP , 2005, n.73, pp. 111-124. Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/nec/n73/a08n73. pdf. Acesso em 10/07/2013. OLIVEIRA, Valdir da Silva. O anarquismo do movimento punk: cidade de São Paulo, 1980-1990. Dissertação (Mestrado em História Social), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007. COELHO, Maria Cláudia. “Juventude e sentimentos de vazio: idolatria e relações amorosas”. In ALMEIDA, Maria Isabel Mendes; EUGÊNIO, Fernanda (org.). Culturas Jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2006. RAMOS, Eliana Batista. Anos 60 e 70: “Brasil, juventude e rock”. Revista Ágora. n.10. Vitória, 2009, p. 1-20. Disponível em: http://www.ufes.br/ppghis/agora/ Documentos/Revista_10_PDFs/ agora_Eliana%20Batista%20RamosOk.pdf. Acesso em: 05/06/2013. CUSTÓDIO, Débora Karla Sampaio Alves. Álcool e Sociabilidade: A farra dos adolescentes. Dissertação (Mestrado em Psicologia), Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2009. SANTANELLA, Lucia. “Panorama da semiótica geral”. In: TOMÁS, Lia (org.). De sons e signos: música, mídia e contemporaneidade. São Paulo: Educ, 1998, p. 24-25. DIAS, Marcia Tosta. Os donos da voz: indústria fonográfica brasileira e mundialização da cultura. São Paulo: Boitempo, 2000. SEKEFF, Maria de Lourdes. “Música e Semiótica”. In TOMÁS, Lia (Org.). De sons e signos: música, mídia e contemporaneidade. São Paulo: Educ, 1998. DOURADO, Henrique Autran. Dicionário de termos e expressões da música. São Paulo: Editora 34. . Música, estética de subjetivação: Tema com variações. São Paulo: Anablume, 2009. KINZO, Maria D´ ALVA G. “A democratização brasileira: um balanço do processo político desde a transição.” Revista São Paulo em Perspectiva. Vol.15, n. 4, São Paulo: Outubro-dezembro, 2001. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010288392001000400002&script=sci_ arttext&tlng=es. Acesso em: 17/01/2013. TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica: ensaios. São Paulo: Annablume, 1997. MAFESSOLI, Michel. A sombra de Dionísio: contribuições para uma sociologia da orgia. Tradução de Roberto Leal Ferreira. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. SPRINTHALL, N. A; COLLINS, W. A. Psicologia do adolescente: uma abordagem desenvolvimentista. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. MATOS, Maria Izilda Santos de. Âncora de Emoções: corpos, subjetividades e sensibilidades. Bauru - SP: Edusc, 2005. WISNIK, José Miguel; SQUEFF, Enio. Música. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. PAIS, José Machado. “Bandas de Garagem e Identidades Juvenis”. In: COSTA, Márcia Regina da; SILVA; Elisabeth Murilho da (orgs.). Sociabilidade Juvenil e Cultura Urbana. São Paulo: Educ, 2006. Fontes Barão Vermelho. Por que a gente é assim?. Álbum: Maior Abandonado. Som Livre, 1984. Engenheiros do Hawaii. Refrão de Bolero. Álbum: A revolta dos dândis, BMG, 1987. Garotos Podres. O mundo não para de girar. Live in Rio. Gravadora Independente, 2001. 326 . O Hino do Álcool. Disponível em: http://www.ouvirmusica.com. br/garotos-podres/1086001/#mais- acessadas/1086001. Acesso em 19/07/2013. Titãs. Diversão. Álbum: Jesus não tem dente no país de banguelas. WEA, 1987. 327 Alguém colocou algo em meu drink. Análise semiótica de temas relacionados à ingestão de bebidas e de outras substâncias na obra dos Ramones Daniel Pala Abeche Pontifícia Universidade Católica de São Paulo [email protected] Resumo O grupo musical Ramones, representante referencial e um dos fundadores/precursores do gênero punk rock, abordou amiúde temáticas relacionadas à subversão e desestruturação de modos e padrões socialmente convencionais, tendo como elemento lírico constante a alusão à ingestão de álcool e substâncias ilícitas. Essa temática, presente em letras de músicas como “Somebody put something in my drink” e “Now I wanna sniff some glue”, também permeia títulos e capas de álbuns como Acid eaters inclusive proliferando signos em materiais audiovisuais, como o videoclip de “I wanna be sedated”, em que o grupo protagoniza um verdadeiro ritual subversivo, como uma santa ceia às avessas. O presente trabalho tem como objetivo estudar os signos relacionados à ingestão de bebidas, drogas e alimentos na obra dos Ramones, em âmbito lírico, visual e audiovisual, e verificar a influência desses elementos na construção identitária do grupo, veiculada pelos media e também presente no imaginário de seu público. A metodologia inclui levantamento do arquivo midiático dos Ramones (letras de músicas, capas de álbuns, encartes e videografia), estudo detalhado da obra e posterior análise crítica embasada teoricamente por autores que abordam a análise de discurso, a semiótica da cultura, os estudos culturais e as teorias da comunicação. Palavras-chave Ramones, bebidas, drogas, alimentos, discurso 328 1. Punk Rock e Ramones O estilo musical rock and roll, no final da década de 1960 e primeira metade da década de 1970, dominado pelos experimentalismos do progressivo, com flertes profundos com a música clássica e parcerias de estúdio com os músicos de conservatório, afastava-se paulatinamente de sua premissa “rebelde”. Alguns grupos norte-americanos, desgostosos com tal rumo, buscavam uma saída alternativa: um retorno às origens, com mais “barulho e atitude”. Grupos como The Stooges, MC 5 e New York Dolls, posteriormente denominados proto-punks, constroem a premissa que os Ramones viriam a utilizar poucos anos depois. E se uma característica definiu esses grupos (e embasou todo o movimento punk rock), e em especial os Ramones, foi a simplicidade. Marca do gênero, o slogan “do it yourself”, sintetiza algo talvez inédito até então, a possibilidade de não saber tocar um instrumento, ou saber muito pouco, e fazer música; e mais, enfrentar as barreiras intransponíveis da indústria cultural, ao produzir e divulgar um trabalho autoral de maneira independente, mesmo que com recursos escassos e produção precária. Os Ramones foram um produto da Indústria Cultural norte-americana, afinal, apesar de o grupo apresentar uma proposta provocativa, com letras pouco digeríveis e instrumentos altos e distorcidos, as métricas e ritmos simples eram facilmente decoráveis e assoviáveis, além disso, o grupo sempre esteve presente nas principais emissoras de rádio, programas de auditório, grandes festivais e produziu dezenas de videoclipes com ampla veiculação na MTV. Entretanto, o “barulho” proferido pelos Ramones jamais poderia ser considerado música ou arte por Adorno, por exemplo; aliás, a muitos críticos do jornalismo cultural contemporâneos aos lançamentos dos primeiros trabalhos do conjunto, esses, efetivamente não eram musicais, mas anárquicos. Nesse trabalho, foi realizada a divisão da carreira do grupo em 3 períodos relacionados estritamente a questões de áudio e orientação estilís- 329 tica musical, com foco na produção dos álbuns. Essa divisão, realizada para tornar o estudo e abordagem dos temais mais organizados, denota características peculiares a cada época distinta, conforme descrito em cada tópico específico a cada período. 1º período – 1974 – 1980 É o período inicial da banda, que se forma em 1974, mas grava o primeiro álbum em 1976. Os álbuns preferidos dos ouvintes, imprensa e dos próprios integrantes (End of Century, 2003) encontra-se nessa época. Considerado, criativamente, o período áureo do grupo, corresponde à época em que se encontram as temáticas mais subversivas nas músicas dos Ramones. 2º período – 1981 – 1989 O segundo período do grupo compreende a fase em que experimentações de estúdio e produções tecnicamente mais elaboradas permeiam as faixas, conferindo, aos mais atentos, diferentes sonoridades, que, em suas devidas proporções, se afastam minuciosamente da proposta inicial. Vale a ressalva de que a sonoridade do grupo permaneceu dotada de forte identidade durante toda a carreira dos Ramones, e que essas diferenças podem soar extremamente sutis ao ouvinte casual. 3º período – 1990 – 1996 O período final do grupo, marcado por uma tentativa de retorno à sonoridade mais crua inicial é também pautado pela saída do principal compositor do conjunto Dee Dee Ramone (substituído por CJ Ramone), mas que continuaria a escrever para os Ramones, mesmo não sendo mais um membro oficial. As características que marcaram a carreira dos Ramones, em especial no primeiro período, foram: músicas extremamente simples, com poucos acordes (em média, de 3 a 5), letras simplistas, muitas vezes com pou- 330 quíssimas frases/versos, repetitivas, e com teor provocativo, amiúde, infantilóide. E nesse universo que aborda a psicopatia, lobotomia juvenil, o tratamento de choque – a demência, doenças psíquicas e seus tratamentos são temas extremamente presentes também nas canções do grupo – que se encontram, com frequência acima do comum, as temáticas relacionadas ao consumo de bebidas, alimentos e drogas. 2. Um pouco de cola. E de DDT. E de LSD. O início. As temáticas do grupo foram consideradas mórbidas, carregadas de humor negro, de mal gosto ou provocativas em diversas colunas de crítica musical nos mais variados veículos de comunicação norte-americanos, na época do lançamento do primeiro álbum homônimo, lançado em 1976 (RAMONE, 2012). Temas como a violência juvenil banalizada, retratada em “Beat on the brat”, filmes de terror, retratados em “Chainsaw”, a prostituição, retratada em “53&3rd” e a utilização de drogas “baratas”, todos presentes nesse disco, colaboraram para a construção da imagem subversiva, que acompanhou a banda por toda a carreira. A primeira música que apresenta referência ao consumo de drogas é “Now I wanna sniff some glue”, cuja letra é apresentada na íntegra abaixo. Now I wanna sniff some glue Now I wanna have something to do All the kids wanna sniff some glue All the kids wanna have something to do Presente no debut do grupo (1976), em que tais versos são cantados incessantemente e à exaustão, embasados por apenas duas notas de fundo, denotam a catarse sonora que a banda queria causar: velocidade, simplicidade, primitivismo e choque. O foco aqui não é uma substância com algum status entre usuários ou uma droga com consumo em destaque no momento, mas a cola, comumente utilizada por marginalizados sociais. A priori, tal temática parece possuir tom provocativo ou com a intenção 331 de causar choque. Entretanto, os integrantes diziam que as canções da primeira fase não foram compostas com o intuito de suscitar provocação ou não foram feitas para chamar a atenção, mas que essa era a realidade presente no cotidiano, ações e conversas de suas vidas, atestam a essas letras, inclusive, um tom ingênuo, ao compô-las. A premissa é parcialmente válida, visto que os integrantes admitiram utilizar cola à exaustão no início da carreira e o baixista Dee Dee Ramone, compositor de “53 & 3rd” confessa ter se prostituído antes de se juntar ao grupo na esquina das ruas que dá nome à música (End of Century, 2003). No segundo álbum (Leave Home, 1977), a temática relacionada ao uso de cola persiste, e em uma canção, “Carbona not glue”, é adicionado o nome de uma importante companhia (Carbona, fabricante e distribuidora de produtos químicos e solventes) no título e letra da música, questão que trouxe problemas judiciais ao grupo, que precisou substituir a canção nas prensagens seguintes do disco. And I’m not sorry for the things I do My brain is stuck from shooting glue I’m not sorry for the things I do Carbona not Glue Wondering what I’m doing tonight I’ve been in the closet and I feel all right Ran out of Carbona Mom trown out the glue Ran out of paint and roach spray Ao utilizar o nome de uma importante companhia, o grupo atinge mais um patamar na escala de provocação e polêmica; na mesma letra cita o uso de spray contra baratas, além da cola, como droga. Tal fato (a utilização de produtos esdrúxulos como drogas), como já sinalizado anteriormente, será uma constante na obra dos Ramones. Em “I wanna be well”, presente no terceiro álbum Rocket to Russia (1977), mais uma vez a utilização de drogas aliada ao tom de deboche é utiliza- 332 da. Suscita-se o questionamento se a intenção do grupo era de fato uma manifestação natural do ambiente em que encontrava-se ou uma provocação premeditada. A música, como amiúde explorado pelo grupo, apela para o minimalismo, utilizando repetição contínua de palavras/frases focando no uso de drogas. Yeah, I wanna be well I wanna be well I wanna be I want, I want, I want, I want, I want ,I want I want my LSD, golly gee, DDT, wowee! Daddy’s broke Holy smoke My future’s bleak Ain’t it neat? A frase final atesta o tom de sarcasmo presente nas letras do grupo, que tornou-se marca registrada nessa primeira fase, e traz à tona a questão discursiva do autor, afinal, com que intenção os membros abordavam amiúde tal temática. A análise dessa indagação será realizada na conclusão deste trabalho. 3. Bebidas e mais substâncias. Consolidação da imagem. Na segunda fase dos Ramones, quando lançam a música Somebody put something in my drink, presente no disco Animal Boy (1986), o grupo já possuía a imagem consolidada relacionada a drogas e bebidas que permearia por toda a sua carreira. Expões, aqui, o início da letra desta, seguida da análise discursiva. Another night out on the street Stopping for my usual seat Oh, bartender, please 333 Dacquary & tonic’s my favorite drink I don’t like anything colored pink That just stinks...it’s not for me Aqui, a estrutura semântica enfatiza o hábito de beber, ressaltado pela utilização do assento usual no bar e a suposição de alguma intimidade com o atendente (barman). Foca-se também na construção identitária aqui, de um sujeito masculinizado ao beber, ao citar o estilo de drink predileto e ao refutar bebidas de cores róseas. A representatividade nesse caso é de uma atitude firme, robusta e máscula. Esse é mais elemento constituinte da representatividade identitária dos Ramones e diversas bandas de rock: o sujeito “mau” e “macho”. Outras substâncias continuam permeando o trabalho da banda, como em “Psycho therapy” ou “Go mental”, em que há a retratação do acometimento de doenças metais em consequência do uso abusivo de substâncias ilícitas, entre elas, solventes químicos e produtos farmacêuticos. A música “Love kills,” presente no mesmo álbum, retrata a vida e morte de Sid Vicious (baixista do icônico grupo punk Sex Pistols) e sua mulher Nancy, com foco no abuso de drogas. Composta pelo baixista Dee Dee Ramone, esse foi o tributo do músico ao casal. Curioso observar que o próprio integrante sempre teve problemas com drogas e morreu de overdose. Essa é a única música dos Ramones que retrata a droga de maneira negativa. 4. Comendo feijões requentados e vegetais. Alimentos na obra dos Ramones. Alimentos aparecem, também, com frequência na obra dos Ramones, em situações curiosas e com teor degenerativo. Expõe-se preliminarmente a letra de “We’re a happy Family”, do álbum Rocket to Russia (1997) Sitting here in queens Eating refried beans 334 We’re in all the magazines Gulpin’ down thorazines We ain’t got no friends Our troubles never end No christmas cards to send Daddy likes men Daddy’s telling lies Baby’s eating flies Mommy’s on pills Baby’s got the chills I’m friends with the president I’m friends with the pope We’re all making a fortune Selling daddy’s dope Aqui, o grupo sintetiza a temática decadente presente constantemente em sua obra ao utilizar do sarcasmo ao definir uma família feliz. A letra inicia-se com foco no bairro em que foram criados os integrantes e detalha ações cotidianas dessa família, comendo feijão requentado; mais uma vez, as drogas estão presentes: na citação do tráfico dos entorpecentes do próprio pai e a utilização de thorazines. Assim, utiliza-se novamente o uso de substâncias e drogas não comuns, e sua relação constante com doenças mentais, e fortalece a premissa da construção identitária decadente através das temáticas das músicas do grupo. A abordagem de alimentos na obra do grupo é geralmente elemento diminuidor, contribuinte para a formação do teor decadente e provocativo nas letras. Aliado a elementos como o bairro em que os integrantes moravam e a sátira com estilo de vida norte-americano, os alimentos apresentam-se como formatadores contribuintes da identidade subversiva da banda, colaborando inclusive para o entendimento do que posteriormente seria conhecido também como punk. Os alimentos na obra dos Ramones são sempre utilizados de maneira pejorativa, negativa, com a intenção de denegrir a imagem de algo que 335 é exposto, como visto em “We’re a happy Family”. Outro exemplo ilustra bem essa premissa. A letra de “Mama’s boy”, do álbum Too tought to die (1984) em que Joey Ramone vocifera, sobre uma base instrumental pesada e densa, contra um sujeito mimado e inescrupuloso, apresenta o trabalho em uma barraca de cachorro quente como modelo a não ser seguido, como um trabalho que não deve ser realizado, algo vergonhoso. Don’t want to work in a hot dog stand Be a busboy messenger or a doorman It’s an abstract world you’re an A única música em que a banda apresenta o consumo de alimentos saudáveis e de maneira não decadente, é mostrada de maneira satírica. Em Everytime I eat vegetables, do álbum Subterranean Jungle (1983), Joey Ramone canta sobre uma garota que se envolve em drogas e agora está em pedaços em uma mala rumo a Berlim e finaliza a letra dizendo que toda vez que come vegetais, lembra-se dessa pessoa, como pode-se verificar na letra abaixo. She was a really good friend, a really Good friend to me, yeah. She was a really Good friend, a really good friend to me, yeah But they took her away tossed her in the bin Now she’s hanging out in East Berlin, ow-ooo She had a very bad affair with some cat from Hiroshima she turned into a head of lettuce She eats Thorazine in her farina but they took Her away tossed her in the bin now she’s hanging Out un East Berlin, ow-ooo And everytime I eat vegetables it makes me think Of you and everytime I eat vegetables I don’t know 336 5. Ácidos e sedativos. Além da música. As temáticas relacionadas a drogas, bebidas e álcool transcendem o universo lírico dos Ramones, e aportam, inclusive, nos alhures da arte visual e audiovisual. Nesse trabalho, analisa-se um exemplo de cada obra. Sendo a estrutura física (e visual) do álbum Acid eaters (1993) e o videoclipe de I wanna be sedated (1978) as selecionadas. A capa do álbum Acid eaters (1993) denota, demonstra e colabora com a identidade, já consolidada publicamente do grupo, relacionada ao abuso de drogas por parte da banda. O nome e capa com referências à psicodelia e aos grupos do final dos anos 60, realizam uma alusão ao repertório encontrado no título: covers de bandas dessa mesma época. Nesse caso, o “ácido” é uma referência ao LSD. Na ilustração, os membros são representados interligados aos olhos de um usuário de LSD, com um comprimido em forma de caveira na língua, em que tudo parece estar derretendo; uma analogia aos efeitos documentados pelos usuários da droga. Ao redor da imagem, encontram-se zíperes que representam as jaquetas perfecto, modelo utilizado pela banda, que tornou-se um signo referencial do grupo. Se a psicodelia imagética de outrora era algo mais sutil, a encontrada neste trabalho dos Ramones ampara elementos mais agressivos, com entornos e influências punk. Esta temática permeia todo o material físico, incluindo encarte e o próprio C.D., que apresenta, também, imagens com teor “punk psicodélico”. Nesse caso, parece que o grupo utiliza-se dos elementos gráficos explicitamente referentes à droga em um disco “menor” em seu catálogo, que não apresentou músicas inéditas, grande campanha de lançamento ou uma turnê de lançamento. Aparentemente, há uma liberdade maior para a utilização desses elementos gráficos em um disco menos “sério” na carreira da banda. No videoclipe de “I wanna be sedated”, os Ramones encontram-se sentados simetricamente em uma mesa no centro da tela, lêem revistas e co- 337 mem, enquanto o vocalista Joey Ramone repete diversas vezes o verso “24 horas por dia, eu quero estar sedado”; ao redor personagens caricatos rondam o grupo em um movimento incessante de vai-e-vem, inclusive trazendo pizzas à mesa central e carregando bebidas. É possível realizar uma analogia com a Santa Ceia; a distribuição dos membros ao redor da mesa centralizada e focada, assemelha-se à icônica imagem. Nesse caso, uma Santa Ceia às avessas, provocativa, repleta de tentações e pecados, como o excesso de alimentos, bebidas, erotismo e festas. Mais uma vez, o grupo subverte os padrões sociais e morais vigentes, apologizando o ócio. A pressão normativa da necessidade de sempre se realizar algo e aproveitar o tempo vigente, aqui é contestada pela premissa de que deseja-se estar sedado a todo momento e nada fazer. 6. Gabba Gabba. Conclusão. Ao realizar a análise do conteúdo utilizado nas letras dos primeiros trabalhos, recorre-se a Eco. “Todo signo linguístico compõe-se de elementos constituintes e surge em combinação com outros signos: é um contexto, e se insere num contexto” (ECO, 1979: 92). Os integrantes dos Ramones, oriundos do Queers, bairro periférico de Nova York, vivenciavam cotidianamente situações relacionadas ao uso de substâncias ilícitas de alto grau degenerativo, ou seja, drogas baratas e altamente nocivas. Não obstante, possuíam comportamento subversivo e violento, refletido principalmente nas letras dos três primeiros álbuns do grupo. O guitarrista Johnny Ramone afirma em sua autobiografia que ele era efetivamente mau, a todo momento maquinava algo de ruim para se realizar; era um sujeito explosivo e violento (RAMONE, 2012). A abordagem temática e semântica dos Ramones também encontra em Morin, embasamento teórico. Assim como Morin (p.62-66) aborda a cultura de massa como um retorno à cultura arcaica, a mesma analogia pode-se fazer com os Ramones, relacionando as suas músicas como um retorno às origens, ao primitivismo; não só à origem do rock and roll 338 (primitivismo esse em que eles levam às últimas consequências), mas ao modo de compor e tocar as músicas; a métrica muitas vezes remete à canções infantis, de ciranda (D-U-M-B, everyone’s accusing me; refrão de “Pinhead”, presente no disco Leave Home, de 1977), a contagem constante e que depois tornou-se marca registrada do grupo antes de cada música (1-2-3-4), as frases simples, repetitivas, de impacto, como se fossem “gritos de guerra”(gabba gabba hey; hey ho let’s go); e a desconstrução de padrões morais e sociais vigentes. Os Ramones compuseram músicas com a limitação técnica que lhes era peculiar e encontraram no humor esdrúxulo, na provocação, na desconstrução, e muitas vez, na escatologia, o teor identitário lírico, sonoro e visual. Esses fatores foram responsáveis não pela repulsa ao grupo, mas ao contrário, pelo sucesso do mesmo, pois “procurando o público universal a cultura de massa se dirige também ao anthropos comum, ao tronco mental universal que é, em parte, o homem arcaico que cada um traz em si mesmo” (MORIN, 2002: 65). Morin cita a necessidade de evasão que o homem contemporâneo necessita. A música dos Ramones proporciona um encontro do sujeito com o descompromisso, com a ausência de valores, com a desburocratização e com o primitivismo. A cultura industrial se dirige também ao homem novo das sociedades evoluídas, mas esse homem do trabalho parcelar e burocratizado, enclausurado no meio técnico, na maquinaria monótona das grandes cidades sente necessidades de evasão, e sua evasão procura tanto a selva, a savana, a floresta virgem quanto os ritmos e as presenças da cultura arcaica. (MORIN, 2002: 65). A relação da imagem do grupo com as drogas deve-se a alguns fatores: a. o slogan “sexo, drogas e rock and roll” trouxe a premissa de que a maioria dos grupos de rock possuíam relação com drogas e bebidas; 339 b. o visual constituído de jeans rasgados, jaquetas perfecto, all star e cabelos compridos, visual posteriormente tornado icônico, quebrava alguns padrões ainda vigentes por indivíduos mais conservadores, contribuindo para a construção pública imagem subversiva da banda. A isso aliava-se a atitude do grupo no palco e nas entrevistas; c. Os signos encontrados nas diversas manifestações mediáticas da banda, em especial nas letras, vídeos e capas de álbuns. Enquanto bandas britânicas e outras estadunidenses utilizaram o estilo punk rock como instrumento de contestação política e ideológica (que tornou-se referência temática do estilo, inclusive nos grupos brasileiros), os Ramones, que influenciaram grande parte desses mesmos grupos, prezou por temáticas subversivas e provocativas, apelando para a acidez. Inclusive, o membro Johnny Ramone sempre apresentou um direcionamento ideológico conservador de direita, contrastando com o comumente conhecido dos membros dos outros grupos do gênero (RAMONE, 2012). Em um primeiro momento, conclui-se que a temática abordada preliminarmente na carreira do grupo aparenta ser espontânea e ausente de maiores perspectivas de “impressão” ou criação de uma identidade forjada. Entretanto, em algum nível, mesmo que raso, a pretensão de construção identitária deve ser considerada, e essa premissa é reforçada na análise cronológica das letras do grupo, como foi realizada no segundo tópico desse trabalho. Pelo menos uma música com temática relacionada a bebidas/comidas/ drogas aparece em cada álbum da discografia do grupo, que compreende o período de 1976 a 1996. As temáticas desconstrutivas são frequentes, com destaque maior para o primeiro período do grupo. A provocação aos padrões morais vigentes está presente na discografia dos Ramones, além da utilização de drogas e bebidas, nos alimentos. O grupo desestrutura slogans comuns como “alimentação saudável” ou “cuide de sua saúde”, primando pela desestruturação das práticas sociais 340 disseminadas e aceitas, do politicamente correto, e da maneira usual que a sociedade encara tais fatores. É possível, reservadas as devidas proporções, realizar uma relação entre a desconstrução dos Ramones com a desconstrução proposta pelo filósofo francês Jacques Derrida, na década de 1960. “A atividade de desconstrução não é simplesmente uma forma de análise, mas se delineia a partir da “desnaturalização” das questões tomadas como “naturais”, sobretudo na medida em que estão ligadas à linguagem, ao discurso e à escrita” (MARTINO, 2010: 35) Esses elementos líricos, visuais e sonoros contribuíram grandemente para a construção identitária do grupo. Muitas vezes, tais elementos foram estruturados para tal, sem realmente condizer com o modo de vida de todos os seus integrantes, como afirmado pelos mesmos, mas sim na busca por uma imagem mediática que os tornasse únicos ou diferenciados. “Em termos lógicos, a categoria “identidade” se liga diretamente a outra, responsável por estabelecer suas fronteiras e limites: a diferença. Só é possível estabelecer relações de identidade a partir de um jogo formal entre o igual e o diferente” (MARTINO, 2010: 36). Referências bibliográficas CANCLINI, Nestor García. 2003 Culturas híbridas. São Paulo: Edusp. CANEVACCI, Massimo. 1996. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel. CHARAUDEAU, Patrick. 2006. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto. ECO, Umberto. 1979. Apocalípticos e Integrados. São Paulo: Perspectiva. HABERMAS, Jürgen. 2000. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes. MARTINO, Luís Mauro Sá. 2010. Comunicação e identidade. Quem você pensa que é?. São Paulo: Paulus. MORIN, Edgar. 2002. Cultura de massas no século XX. Volume 1: Neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária. RAMONE, Johhny. 2012. Commando. A autobigrafia de Johnny Ramone. São Paulo: Leya. RIDLEY, Aaron. 2008. A filosofia da música. São Paulo: Loyola. JOURDAIN, Robert. 1997. Música, cérebro e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva. 341 Referências discográficas Ramones. LP. Ramones. 1976. Sire Records. EUA. Ramones. C.D. Subterranean jungle. 1983. Sire Records. EUA. Ramones. LP. Leave home. 1977. Sire Records. EUA. Ramones. C.D. Too tough to die. 1984. Sire Records. EUA. Ramones. LP. Rocket to Russia. 1977. Sire Records. EUA. Ramones. C.D. Animal boy. 1986. Sire Records. EUA. Ramones. LP. Road to ruin. 1978. Sire Records. EUA. Ramones. C.D. Acid eaters. 1993. Radioactive Records. EUA. Referências videográficas Ramones. DVD. End of Century: The story of The Ramones. 2003. Ramones. DVD. It’s Alive. 1977. Ramones. Videoclipe. I wanna be sedated. 1978. 342 Educação musical e indústria cultural Marcelo Fernandes Pereira UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul [email protected] Resumo Há uma grande cisão em termos de paradigma científico e referencial bibliográfico extra-musical entre as produções em educação musical dos anos 70, 80 e início dos anos 90 do século passado e as publicações ocorridas a partir da virada do século XXI. Por isso, este artigo - que faz parte de uma pesquisa em andamento - pretende justapor dois diferentes posicionamentos a respeito da cultura musical legada pela mídia aos alunos do ensino regular: o primeiro posicionamento decorre de um referencial moderno, que vê a mídia a partir do processo de regressão da audição formulado por Theodor Adorno e enxerga a educação musical como uma espécie de contraponto a esse processo; e o segundo, decorrente de teorias multiculturalistas – sobretudo inspiradas nas ideias de Garcia Canclini – que vê com otimismo as mudanças oferecidas pela mídia, não as considerando como regressões, mas como hibridismos que resultam, não em perdas, mas em transformações na sensibilidade musical contemporânea. Nosso objetivo é desnudar os limites epistemológicos de aplicação de cada posicionamento e as propostas em educação musical que deles decorrem, sem, no entanto buscar quaisquer tipos de sínteses. Nossa metodologia é eminentemente bibliográfica e tem como referencial teórico, além dos sociólogos acima citados e de estudiosos de ambas as teorias, as publicações de Maura Penna, Nilceia Campos e Jusamara Souza, entre outras ligadas à área de educação musical. Palavras-chave educação musical, multiculturalismo, indústria cultural 343 Introdução A educação musical está a serviço do homem, mas o que seria educar o homem em termos musicais? Essa questão se coloca na gênese da árdua tarefa do educador musical e evidentemente as vivências pessoal e acadêmica do educador influem na resposta, mas esse não é nosso assunto principal e mesmo se fosse, seria impraticável nas proporções de um artigo acadêmico. Se o abordamos nesta introdução, é porque o assunto aqui tratado liga-se diretamente ao sentido do trabalho do educador musical. A música é uma arte extremamente consumida e ao mesmo tempo extremamente identitária – características que a colocam na agenda central da indústria do entretenimento. Em um tempo não muito distante, essa indústria e seus mecanismos de estimulação do consumo eram mal vistos por grande parte dos estudos ligados à difusão musical e a música feita para/pelas massas era considerada inferior, cabendo ao processo de educação mostrar ao indivíduo os limites dessa produção musical massificada e apresentar-lhe a “grande arte”. Essa educação musical que partia da crítica à sociedade do consumo e execrava a indústria cultural tinha como sua principal base epistemológica a produção intelectual da Escola de Frankfurt - mais especificamente os escritos de Theodor Adorno, uma vez que este, dentre seu pares, foi o que mais se ocupou de questões ligadas à música. No caso brasileiro, especialmente, essa visão é bastante encontrável e balizou o discurso, não só de professores, mas de compositores e músicos ligados à academia. Tomaremos como exemplo o artigo da professora Nilceia Campos que trata da questão da passividade musical diante do que Perez-Gomez chamaria de “sociedade do espetáculo”: assim como os produtos são industrializados e vendidos no mercado, há também uma indústria que promove a música, impondo gostos e tendências e movimentando o mercado artístico. A indústria cultural comercializa a música, bem como outras produções artísticas (...). Desse modo, pensamentos, comportamentos e gostos também 344 são produzidos em série, tornando os indivíduos cada vez menos diferenciados. A convergência, ou a homogeneidade imposta e aceita, acaba por aniquilar a individualidade de tantos, que, sem compreender a realidade, não têm condições de atuar sobre ela. Além disso, estes três elementos – repetição, técnica e consumo – estão tão interligados que seria difícil torná-los independentes quando se trata de indústria cultural, pois a repetição só é possível graças à técnica avançada para tal; e o consumo acontece na medida em que os produtos tecnologicamente desenvolvidos são oferecidos para a sociedade que está disposta e motivada a consumir. (CAMPOS, 2005, p 77) Dentro dessa visão, os alunos estão presos ao simulacro da indústria cultural e a escola é o espaço natural de uma prática musical alternativa a esse sistema: diante da “lógica infernal do espetáculo”, refletimos sobre as práticas musicais escolares (...). Portanto, despertar a sensibilidade musical, promover o desenvolvimento da criatividade, ampliar as experiências musicais dos alunos e propiciar práticas que favoreçam a expressão individual e coletiva, constituem uma das funções da escola. (CAMPOS, 2005, p 81) E a autora encerra o texto afirmando categoricamente: “torna-se necessário ver além dos meios de comunicação, transpor as barreiras da indústria cultural, e compreender a amplitude e a riqueza da linguagem musical.” (CAMPOS, 2005, p. 81). Dessa forma, a escola é vista como um espaço de resistência, como uma maneria de transpor a sensibilidade musical do espetáculo forjada a partir dos efeitos da indústria cultural. É verdade que o discurso adorniano encontrado no texto que serviu de referência para o artigo em questão é bem mais radical e traz uma defesa estética da produção da Segunda Escola de Viena, em oposição ao Jazz e à música de cinema. Mesmo assim, o raciocínio fundante é comum a ambos os textos e pode ser resumido na seguinte prerrogativa: o gosto musical das pessoas é formado por um processo acrítico, a partir das identificações fornecidas pela atuação da industria cultural: 345 se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase exatamente o mesmo que reconhecê-lo (ADORNO, 1980, p. 65) Nesse caso, os consumidores de arte seriam mesmo vítimas dessa indústria e por isso que haveria a necessidade de quebra desse círculo através da reflexão e da compreensão mais profunda do sentido da arte - e a escola teria então esse papel educacional e libertário. É necessário lembrar que essa proposta de educação musical acentua a dicotomia arte versus produto cultural, excluindo o folclórico por ser uma patrimônio puro e portanto necessário. Essa dicotomia – e especialmente em termos de combate aos efeitos da indústria cultural – torna-se então a agenda central da educação musical de base adorniana. Encontramos, entretanto, propostas mais recentes e alternativas à teoria adorniana, nas quais o consumo de bens culturais não se dá por processos tão passivos quanto propõe Adorno. Mancebo et. al afirmam que: Canclini (1999) e Bauman (2001), partindo de análises com suportes empíricos distintos, chamam a atenção para o fato de que o consumo poderia ser analisado como uma forma de tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. (...). “Ir às compras” poderia significar, assim, um certo grau de liberdade para se selecionar a própria identidade ou uma tentativa de tornar mais lento o seu fluxo de mudança, ou ainda de solidificar o fluido ou dar forma ao disforme. (MANCEBO et.al., p.330) Passando as idéias acima a termos musicais, diríamos que escolher a música que tocará no seu celular pode significar também um certo grau de liberdade para selecionar sua própria identidade. Mas ainda assim a proposição não resistiria à crítica adorniana – que argumentaria que os 346 critérios para essa seleção são também fornecidos pela indústria cultural. Nesse sentido, aclaram os mesmos autores acima, que na visão de Nestor Canclini “os contextos familiares, de bairro e de trabalho também controlam o consumo, os desvios nos gostos, nos gastos e a seleção do “exógeno” (MANCEBO et. al, p.331) e assim, a construção do gosto musical não seria passivo ou imposto, mas ativo e também ligado à fatores locais. Desse referencial, surgem publicações que passam a rever a função da educação musical e a se utilizar de práticas musicais e repertórios que anteriormente eram tidos como inaptos para o trabalho musicalizador. Dentre essas publicações utilizaremos – em caráter de estudo de caso - dos trabalhos de Maura Penna, Jusamara Souza e Luis Fernando Lazzarin. Esses trabalhos tem como características comuns a valorização da pluralidade e o sublinhamento da multifacetada identidade cultural brasileira e dessa forma enfatizam o valor da identidade e da vivência musical prévia do aluno dentro do projeto de educação musical a ser desenvolvido. Esses aspectos trazem um novo caráter aos fins da educação musical em seu aspecto estético, pois se antes os efeitos da indústria cultural eram males a serem combatidos dentro da identidade dos alunos - que dela foram vítimas - , nesse novo projeto esses “efeitos” da indústria cultural são justamente o precioso material identitário trazido pelo aluno – material esse, que serve de objeto de estudo para proeminentes pesquisadores em educação musical, que se ocupam em saber qual repertório povoa o celular de determinada classe de aluno, para entender as preferências e vinculações culturais desse aluno. Nesse novo paradigma, a hibridização também é preferível, em termos de produto cultural, e o conceito termina por se opor à busca do puro e do seminal – tidos como desejáveis dentro do conceito moderno de produção artística. Essa educação musical de base multiculturalista, em sua versão mais comedida, considera a música erudita ou de concerto como mais um elemento no panteão dos repertórios possíveis e fomentáveis para a manutenção da diversidade. Sobretudo Penna, afirma categoricamente essa 347 posição e reafirma a validade da tradição musical de verve intelectual no processo musicalizador, preocupando-se ainda com a possibilidade de que, uma vez coexistindo no ensino regular diversidade de tradições, cada tradição se feche em seu próprio gueto: Pois é preciso evitar a guetização e, mais ainda, evitar que essa guetização resulte na inversão da oposição entre popular e erudito, e, de certo modo, exclua as possibilidades de diálogo com as formas artísticas eruditas, por serem estas julgadas a expressão da civilização europeia e ocidental, responsável pela opressão de padrões culturais outros, de grupos não dominantes. Certamente, as formas eruditas retratam, em grande medida, esse modelo da cultura européia. Entretanto, por um lado, a arte erudita é também parte do patrimônio cultural da humanidade, é mais uma manifestação, ao lado das demais. (PENNA, 2005, p. 14) Como vemos, Penna considera negativa a exclusão da tradição erudita ou intelectual musical - evitando o simplório argumento de que esta seria o legado do colonizador ou opressor - e iniste na necessidade de diálogo entre as diversas tradições. Sua visão dos processos que envolvem a indústria cultural foge do maniqueísmo primário que considera como negativo tudo o que provém da produção de massa, mas não exclui uma leitura crítica dos efeitos dessa indústria sobre a sociedade. Contudo, na área da educação musical, as apropriações menos conservadoras da teoria multiculturalista tendem a enfatizar, a identidade do educando e o caráter híbrido encontrável mais facilmente na produção midiática e esses aspectos passaram a preponderar para a escolha de repertório no processo educativo. O resultado é que a música culta, seja brasileira ou européia, termina – na maioria dos casos - excluída da discussão da área. Um bom exemplo dessa constatação é o texto de Jusamara Souza, que tratando de “Cultura e diversidade na América latina: o papel da educação musical” , em certa altura, defende quais seriam bons exemplos de culturas híbridas, em se tratando de produção brasileira e se expressa da seguinte forma: 348 Pensar sobre a música brasileira hoje significa analisar as trocas culturais que hoje atravessam o país e que fazem com que os limites entre litoral/sertão ou morro/asfalto se dissolvam. Dessa forma, a música brasileira produzida nos últimos anos parece distanciar-se definitivamente das oposições entre música culta e música popular. Os criadores e intérpretes da atual música popular brasileira tornamse intérpretes privilegiados do nosso cotidiano. Como cronistas, cantam as questões de seu tempo e espaço (SOUZA, 2007 P. 17) Na citação acima – como no restante do texto – Jussamara Souza entende por música brasileira, apenas a música popular ou midiática, exclui a música culta da discussão e trata o músico por cronista. Não podemos deixar de notar que a produção musical de verve mais intelecutal passou de preferível, no paradigma moderno – que se materializa como crítica à indústria cultural sob tutela de Adorno – a preterida, no paradigma multiculturalsita. Esse fato é esperado, pois o projeto em questão prioriza o educando, seus gostos e vivências e está claro que esse aluno – que recebe e devolve valores e repertório musicais dentro da indústria cultural – dificilmente terá contato com a produção musical de caráter mais erudito, ou se o tiver, provavelmente não possuirá ferramentas cognitivas para compreende-las. Assim, se anteriomente os educadores viam a escola como um espaço para a apreciação de um repertório e de uma estética musical menos ligados aos valores midiáticos, neste momento o multiculturalismo advoga a legitimidade da cultura desse aluno – midiática ou não – e a necessidade de uma educacão musical que parta dos saberes dos alunos. Como colocado anteriormente, este artigo não pretende forjar qualquer juízo sobre a questão, pois trata-se de uma pesqusia em andamento. Mesmo assim, é relevante frizarmos que enquanto a educação musical de base adorniana entende a tradição erudita como uma tradição necessária para a educação do homem, para visão multiculturalista a cultura musical trazida pelo aluno é cara e legítima e por isso, não necessariamente passível de duras críticas ou de processos educacionais que 349 intencionalmente busquem sua alteração ou desconstrução em prol de determinado repertório. Por fim, citamos o artigo de Luis Fernado Lazzarim, que trata de forma mais desenvolvida a questão do multiculturalismo em educação musical e se coloca claramente contra o concerto e a apreciação estética contemplativa nele engendradas: A atitude contemplativa do freqüentador que ouve a execução do concerto é análoga à do visitante do museu que se detém diante do quadro ou da escultura. Ao assumir o discurso da arte de museu, a educação musical torna-se anacrônica no sentido de que, como adverte Shusterman (1998), na continuidade da crítica pragmatista, o isolamento da ética social e política somente se justificou quando a arte tinha que se libertar de tutelas ideológicas e religiosas, às quais servia como instrumento. Todavia, a separação entre práxis da vida e a arte não é, nos dias de hoje, nem proveitosa, nem crível.(LAZZARIN, 2008, p. 126) O texto do qual foi retirada a citação acima traz uma discussão vívida sobre diversos aspectos da apropriação que os educadores musicais tem feito da teoria multiculturalista e discute questões que promovem a superação da abordagem simplista do binômio popular/erudito em música. Entretanto, atrelar o concerto e a atitude contemplativa nele engendrada às “tutelas ideológicas e religiosas, às quais servia como instrumento” nos parece uma associação um pouco violenta, afinal, o concerto – bem como seu repertório – ainda não tiveram seu papel ressignificado para a maior parte de nossa sociedade e quando há investimentos que facultam o ensino do repertório de concerto nas periferias urbanas, esses investimentos se materializam em empresas bem sucedidas – pelo menos na maioria dos casos. Nesse sentido, podemos afirmar que o modelo venezuelano, “El Sistema”, seja um exemplo de como o concerto e seu repertório não necessariamente promovem a “separação entre práxis da vida e a arte”. Contudo para que essa separação não ocorresse no caso brasileiro, seria necessária uma discussão, em termos musicais, sobre a 350 relação entre o que a mídia oferece e as apropriações que o indivíduo faz dessa oferta. Sem essa discussão, o repertório chamado erudito e o ato contemplativo vão seguir cada vez mais distantes da sociedade e possivelmente se tornarão arte de museu - não pelo objeto em si, mas pela incompreensão generalizada de suas potencialidades humanizadoras no tempo atual. Referências bibliográficas Adorno, Theodor W. 1980. O fetichismo na música. In: Textos escolhidos. São Paulo. Abril Cultural (Coleção Os Pensadores) Campos, Nilcéia Protásio. 2005. Luz, câmera, ação e… música: os efeitos do espetáculo nas práticas musicais escolares. Revista da ABEM no. 13, Porto Alegre, p. 75-83 Lazzarin, Luís Fernando. 2008. Multiculturalismo e multiculturalidade: recorrências discursivas na educação musical. Revista da ABEM no. 19. Porto Alegre: Associação Brasileira de Educação Musical. Mancebo, Deise; Fonseca, Jorge G. T.; Oliveira, Dayse M.; Silva, Luciana Vanzan. 2002. Consumo e subjetividade: trajetórias teóricas. Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Estudos de Psicologia 2002, 7(2). Penna, Maura. 2005. Poéticas musicais e práticas sociais: reflexões sobre a educação musical diante da diversidade. Revista da ABEM no. 13. Porto Alegre: Associação Brasileira de Educação Musical. Souza, Jusamara. 2007. Cultura e diversidade na América Latina: o lugar da educação musical. Revista da ABEM no. 18, Porto Alegre, p. 15-20. 351 O “culinário” em Adorno, Benjamin e Brecht: entre o prazer e a regressão Luiz Fernando de Prince Fukushiro Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo [email protected] Resumo Em alemão, o adjetivo “kulinarische”, culinário, indica pejorativamente aquilo que é para ser consumido rapidamente, em um gozo sem esforços. Embora valha para toda a língua, o termo esteve bastante em voga no início do século XX na crítica e teoria de arte. Adorno coloca em seus textos musicais a “música culinária” como algo ruim, de prazer rápido e sem reflexão, talvez na esteira da escuta estruturada de Hanslick, que dizia que a música era para ser contemplada atentamente, não degustada como um vinho. Em contraponto, Benjamin via na “ópera culinária” de Brecht uma nova possibilidade de experiência, já que o prazer de degustar algo bom ao paladar poderia também trazer a crítica à tona. Este trabalho tentará delinear então como o termo “culinário” aparece na obra desses autores e também tecer relações entre a escuta e o paladar a partir deles. Palavras-chave arte culinária, Bertolt Brecht, Theodor W. Adorno, Walter Benjamin 352 O adjetivo culinário designa aquilo que pertence à cozinha, e em especial se relaciona ao ato de cozinhar. No entanto, no alemão, kulinarisch possui mais um sentido além do habitual, ainda mais no âmbito da estética: aponta, de forma pejorativa, aquilo que oferece um prazer espiritual fácil e sem esforço. Ou seja, quando se fala em uma arte culinária, uma kulinarische Kunst, fala-se tanto da arte da cozinha, gastronômica, como de uma arte que aponta ao mero sensorial, ao prazer rápido e sem esforços. Pode-se arriscar a dizer que o termo é algo bastante peculiar à arte ocidental, em especial a erudita, das belas-artes e da arte dos cânones, em que o sensível é visto como fora do controle da razão e deve ser recalcado. Desde Platão, em A república, a música considerada mole, de harmonias plangentes e lassas, deveria ser banida.1 O canto gregoriano, “herdeiro, neoplatônico, da harmonia das esferas” (WISNIK, 1989, p. 105), desconfia de tudo aquilo que pode trazer sedução pelo ouvido, e por isso proíbe os instrumentos de entrarem na igreja. A música que mexe com os sentidos de forma que escapa à palavra litúrgica é vista como pecado: “Quando, às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam, confesso com dor que pequei”, dizia Santo Agostinho (apud ibid., p. 107). Na estética, disciplina surgida no século XIX no Ocidente, o pensamento se mantém. Em Hegel, “o sensível da arte somente se relaciona com os dois sentidos teóricos da visão e da audição, enquanto que o olfato, o paladar e o tato têm a ver com o que é material enquanto tal e com suas qualidades sensíveis imediatas” (HEGEL, 2001, p. 59), o que explica, mesmo que indiretamente, o sentido figurado do adjetivo kulinarisch: o prazer da sensibilidade imediata meramente ligada ao material é tachado como menor, que não atinge a alma. Mesmo a música sendo a arte da alma por excelência, segundo o filósofo, não a atinge qualquer música. A música dita “esotérica” nada tem a colaborar no desenvolvimento da estética, pois “somente quando o elemento sensível dos sons serve para 1 Platão fala sobre harmonia, ritmo e os instrumentos por meio de um diálogo entre Sócrates e Adamanto (PLATÃO, 2004, p. 91–94). 353 exprimir o espiritual de uma forma mais ou menos adequada, que a música se eleva ao nível duma verdadeira arte” (HEGEL, 1974, p. 200). Hegel vai mais longe e duvida da música sem o uso de palavras, chegando a dizer que esta poderia ser vazia de sentido se não acompanhada da poesia. Outro momento da estética musical válido de nota em que música e paladar foram conectados2 é em O belo musical, de Eduard Hanslick, que critica quem percebe uma obra sonora como quem degusta um vinho ou um cachimbo: A crítica de uma obra sonora inicia-se sempre com a “sensação” que ela provoca, e determina-se o louvor ou a censura de acordo com a própria afecção subjetiva. Como se alguém explorasse a essência do vinho quando se embebeda! (HANSLICK, 2000, p. 18) É sob essa tradição da escuta estruturada, da sensação objetificada, que escrevem Theodor W. Adorno (1903–1969) e Bertolt Brecht (1898–1956) sobre a arte. Ambos escreveram diversos textos em que abordam a dimensão prazerosa da arte, utilizando o termo culinário como adjetivo— sendo o segundo o que mais o empregou. É importante ressaltar que toda a tradição do pensamento germânico, por sua vez ocidental, de forte racionalização, encontra-se refletida em ambos, de formas diferentes. Tanto para Adorno como para Brecht, o culinário é de certa forma um sinônimo para diversão, mas não para qualquer uma: somente a diversão pela diversão, a que oculta e aliena, a que impede a reflexão, ou até mesmo a que não diverte. Adorno Em Adorno, a música culinária é criticada não só pelo seu teor superficial, de “música ligeira”, mas também pelas artimanhas do que ele chamará 2 Um dos poucos termos musicais que fazem menção ao paladar é Tafelmusik, “música de mesa”, um gênero nomeado no século XVI para acompanhar festas e banquetes, à altura da música sacra e da música de câmara (UNVERRICHT, 2004). 354 posteriormente de indústria cultural, em que a obra musical é mera mercadoria, padronizada e feita para o gosto do consumidor. O kulinarisch então passa a ser sinônimo não só da produção musical a ser veiculada no rádio e vendida pelas gravadoras, com mero fim de cair no gosto do público, mas também de elementos dentro da música erudita feitos para o fim culinário. A exemplo deste último caso, Adorno, em Filosofia da nova música, qualifica Petruschka, de Stravinsky, como “elaborado culinariamente”,3 já que, em certo tom raivoso, ele classifica a obra como “a apoteose da opereta”, pelo uso de efeitos que lembram realejos e outras simplicidades infantis. Esse tipo de crítica perpassa toda a obra de Adorno, desde os primeiros textos sobre música até sua Teoria estética, dada sua preocupação com as mudanças estéticas e sociais da música em especial em relação à influência dos meios de comunicação de massa. Focaremos aqui o texto O fetichismo da música e a regressão da audição, de 1938, pela proximidade temporal em relação aos pensamentos de Brecht assim como pela concisão de temas que são importantes para se pensar sobre a música culinária, mesmo que estejam ainda em maturação se pensados na obra de Adorno como um todo.4 A primeira característica da crítica adorniana ao prazer rápido da música ligeira não é meramente ao sensorial, como apontavam Hegel e Hanslick, mas sim ao seu desprendimento do todo da obra. O perigo do culinário se dava ao se mostrar em “momentos parciais”: O prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo. 3 Curiosamente, na edição brasileira do texto (ADORNO, 2004, p. 116), a tradução de “kulinarisch zubereiten” foi “elaborado cuidadosamente”, e não “culinariamente”. 4 Nesta época, Adorno não havia cunhado o termo “indústria cultural”, que aparece em sua obra escrita juntamente a Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento (1947). 355 Os momentos parciais já não exercem função crítica em relação ao todo pré-fabricado, mas suspendem a crítica que a autêntica globalidade estética exerce em relação aos males da sociedade. A unidade sintética é sacrificada aos momentos parciais, que já não produzem nenhum outro momento próprio a não ser os codificados, e mostram-se condescendentes a estes últimos. (ADORNO, 1989, p. 82) A não percepção do todo seria a responsável pela “regressão da audição”, fenômeno que deixa a escuta contemporânea em um estado infantil, focada em momentos atrativos, cheios de cores e timbres. Isso não quer dizer que Adorno seja contra o prazer na música. Uma obra que retira tudo que é “culinariamente gostoso” somente para resultar em ascese, não possui verdade, “como se na arte os valores dos sentidos não fossem portadores dos valores do espírito”. O problema para Adorno é que os momentos culinários, além de deslocados do todo, são falsos, carecem de verdade: Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem como expressão, para a incapacidade de comunicação. A música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade de escravos sem exigências. (ibid., p. 80) O prazer culinário revela duas facetas da sociedade de massas. A primeira é a da ilusão do tempo livre, que não passa de mero descanso para o outro dia. Nesse tempo, o ouvinte, exausto, precisa de algo de “fácil digestão” para sustentar assim a segunda faceta: a do privilégio que não é concedido a todos para compreender a música moderna. “Manifestam, sempre que lhes é permitido, o ódio reprimido daquele tem a ideia de uma outra coisa, mas a adia, para poder viver tranquilo, e por isso prefere deixar morrer uma possibilidade de algo melhor” (ibid., p. 94). Adorno dirá posteriormente, na Introdução a sociologia da música, que a “qua- 356 lidade culinária […] é a única que a consciência extra-artística consegue degustar” (ADORNO, 2011, p. 114). O culinário representa para Adorno um barramento nas possibilidades da música, o que no pós-guerra significará em seu pensamento a defesa da nova música, que não prima por seus momentos culinários, mas sim por seu elevado “teor de verdade”: para ele, a única música de sua época capaz de representar o período que vivia a sociedade mantendo a totalidade de uma obra. Brecht Brecht associava o prazer culinário da arte ao “velho teatro”, a dizer, aquele de cunho naturalista, “sinônimo de dramaturgia de ‘consumo’, baseada no fascínio e na reprodução da ideologia dominante” (PAVIS, 1999, p. 376 apud TEIXEIRA, 2003, p. 30). O termo, de forma geral, tinha cunho pejorativo. Em seu texto Über der kulinarische Kritik [Sobre a crítica culinária] (BRECHT, 1967), Brecht fala de uma crítica que se baseia em gostos pessoais e se atém a detalhes, de coisas prontas para serem consumidas. No entanto, o dramaturgo não era contra a diversão em si: teria ele dito que “um teatro em que é proibido rir-se é um teatro do qual devemos rir-nos. As pessoas sem humor são ridículas”. A diversão do público do esporte era algo que fascinava Brecht. Era um público “especializado”, “conhecedor”, que assistia a um espetáculo de pessoas interessadas. Brecht não se preocupava apenas com a recepção do público, mas também de como isso seria exibido: “A preocupação com o ator era tão central quanto a com o espectador, porque a relação palco–plateia precisava urgentemente ser transformada” (TEIXEIRA, 2003, p. 20). Nesse ímpeto pela transformação do “velho teatro”, baseando-se nas formas já existentes de atrações para o público geral, Brecht utiliza-se não só do esporte mas justamente de uma das características do teatro de consumo: o culinário. 357 Se não era problema—e talvez fosse até necessidade—haver diversão no teatro, bastava para Brecht mudar a função do culinário na obra. Ou seja, o problema não era a ópera, mas sim seu uso. Não à toa, Brecht se utiliza da forma ópera para seu teatro épico, em peças como Mahagonny e Ópera dos três vinténs, já que o gênero mostrava um potencial de diversão, porém era utilizado de forma alienante. Até então, a diversão da ópera era paralisante e meramente relaxante, servia à ideologia vigente: “Todas as inovações que não ameaçam a função social da engrenagem, ou seja, a função de diversão noturna, poderiam ser postas por ela em discussão” (BRECHT, 1978, p. 8). Essa engrenagem aqui se trata da ópera baseada no conceito de “obra de arte total”, de Wagner, que para Brecht se tratava de uma espécie de “magia”. “É necessário renunciar a tudo o que represente uma tentativa de hipnose, que provoque êxtases condenáveis, que produza efeito de obnubilação” (ibid., p. 17). A hipnose deve ser combatida, mas não a embriaguez: “As ilusões que ela [a velha ópera] procura preenchem uma função social da maior importância. A embriaguez é necessária: nada pode substituí-la” (BRECHT5 apud TEIXEIRA, 2003, p. 47). Essa aparente contradição entre hipnose e embriaguez, que Jameson diz ser possível resolver de forma dialética, é explicada pelo próprio Brecht: Quanto mais imprecisa, mais irreal se tornar a realidade, através da música—é uma terceira dimensão que surge, algo muito complexo, algo que é, por sua vez, plenamente real e de que se podem extrair efeitos plenamente reais, não obstante se encontrar já muito distante do seu objeto, ou seja, da realidade utilizada—, tanto mais estimulante se tornará o fenômeno global; o grau de prazer depende diretamente do grau de irrealidade. […] Esse quê de absurdo, de irreal e de não-sério, colocado no plano devido, deverá, assim, anular-se a si próprio por um duplo sentido. O absurdo que aqui se depara é apenas adequado ao local onde surge. (BRECHT, 1978, p. 14) 5 BRECHT, Berltolt. “Função social do teatro”. In: Sociologia da Arte III. Rio de Janeiro: Zahar Editores,1967. 358 A separação dos elementos da obra de arte total—palavra, som e drama—serviria para derrubar a sua “magia” e transformar o culinário em diversão com reflexão. É importante notar que Brecht não só era um teórico como também dramaturgo: seu pensamento tenta se materializar em sua obra, e não é qualquer diversão que Brecht busca para seu teatro, ele almeja um prazer objetivo, centrado, de metas definidas. Segundo o dramaturgo, o prazer é o tema e a forma de Mahagonny. Esse prazer do absurdo tem o poder de anular-se e assim resultar em uma reflexão e aprendizado—meta final de Brecht. “O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde que seja bom teatro, diverte” (BRECHT, 1978b, p. 50). A ópera dos três vinténs A ópera foi motivo de grandes debates na década de 20. O legado de Wagner deixara um vazio: no conceito, a obra de arte total, e na estrutura, o leitmotiv, já não mais serviam aos compositores como herança, mas sim como fantasma. Kurt Weill, compositor de A ópera dos três vinténs de Brecht, resumiu em 1926 o dilema: “todos queriam se libertar de Wagner, mas a destruição dos pontos de apoio da tonalidade e a necessidade de pensar uma nova relação entre texto e música—que entretanto garantisse a unidade da forma—tornava extremamente difícil o estabelecimento do caminho para uma ‘nova ópera’ (ALMEIDA, 2007, p. 183). A problemática estaria não só no material musical (a crise da tonalidade), mas também na relação entre os elementos da ópera: o drama, a música e o texto. Wagner buscava uma totalidade em sua obra de arte total, que os compositores na década de 20 achavam falsa. É nesse contexto que surge A ópera dos três vinténs, texto de Brecht e música de Weill, apresentada pela primeira vez em 1928 e inspirada na obra de John Gay, do século XVIII. A escolha da adaptação já mostra a relação de Brecht com o culinário: “Esta versão da ópera de Gay nos dá pouco mais do que o livro de ponto de uma peça que faça parte do reper359 tório teatral; dirige-se ao entendido, em vez de se dirigir a quem procura simplesmente prazer.” A obra de Gay era uma ballad opera, um gênero de entretenimento do século XVIII, e a escolha não é aleatória: tratava-se de uma obra que fala do capitalismo e cuja meta é o entretenimento. O sucesso foi rápido e a peça reconhecida momentaneamente. Em 1933, a peça já tinha sido traduzida para 18 línguas e executada mais de 10 mil vezes na Europa (WEBER6 apud CHAMBERLAIN, 2009, p. 22). Weill não duvidava da possibilidade do sucesso de Três vinténs, justamente pelo caráter musical da obra. Essa discussão esbarra outro tema importante da época, a Gebrauchmusik [música utilitária], da qual Weill era partidário. A ideia da Gebrauchmusik conseguiu hoje se impor em todos os âmbitos da música moderna nos quais ela podia ser encontrada. Nós desparafusamos nossas pretensões estéticas. Percebemos que deveríamos novamente criar para nossa produção seu solo natural, que o significado da música como mais simples das necessidades humanas pode conviver com meios de expressão artística mais elevados, que as fronteiras entre ‘música artística’ e ‘música para uso’ [Verbrauchmusik] se aproximaram e paulatinamente foram suspensas. (WEILL7 apud ALMEIDA, 2007, p. 148) Ao retirar elementos da ópera de entretenimento do século XVIII, Weill e Brecht colocam uma nova função a eles, diferente da função original. Como já dito, o entretenimento aqui surge como estranhamento. Adorno duvidava dessa possibilidade, pois por trás deste pensamento da música cotidiana estava o pensamento sobre comunidade, que não era mais possível na Europa do século XX. Portanto, quanto às estilizações da Gebrauchmusik, “isso não significa, como sua ideologia ensina, a proximidade com a vida concreta que gera a arte, mas apenas que a concretude 6 WEBER, Carl. “Brecht and the American theater”. In: MEWS, Siegfried Mews (ed.). A Bertolt Brecht reference companion. Westport CN/London: Greenwood Press, 1997, p. 343. 7 WEILL, Kurt. “Die Oper—Wohin?”. In: . Musik und Theater, Gesammelte Schriften. Berlin: Henschel, 1990, p. 68. 360 escapou da arte, assim como da vida” (ADORNO8 apud ALMEIDA, 2007, p. 150). Especificamente sobre Três vinténs, Adorno comenta que os fragmentos de passado coletados e transformados por Weill são como fantasmas de uma burguesia morta e sem dúvida há uma paródia ali. No entanto, o que se pode fazer dela, o todo da obra não revela, e pode recair no mero culinário atomístico, que Adorno sempre criticou. “Mesmo quando consumida puramente por prazer, A ópera dos três vinténs permanece ameaçadora: nenhuma ideologia de comunidade está presente, nem em termos de sujeito nem musicalmente” (ADORNO, 1990, p. 133). É justamente na transposição de função que Dahlhaus vê em Weill e Brecht o elemento progressivo. “Brecht sem dúvidas mudou as relações entre texto e música. Mas ele mante intacto o o hábito do público de sentir respostas musicais mais convencionais em óperas do que em um concerto; ele até mesmo explorou esse hábito” (DAHLHAUS, 1982, p. 68, tradução nossa). Para ele, a dupla não avança a arte de forma absoluta, mas só consegue o feito em relação à fadiga do que veio antes: “na concepção de ópera de Brecht […] algo de progressivo e algo de tradicional estão interligados. E a contradição não é algo inerte; pelo contrário, é produtiva” (ibid. p. 69). Para Jameson (1998), é na representação alegre do capitalismo na música de Três vinténs, assim como em outras peças, que está o jogo de Brecht. Ao mostrar o fascínio perante o “perverso e o suspeito”, coloca os outsiders ao lado dos que são extremamente decorosos com as injustiças do capital. É uma sátira, que Benjamin também elogia. Ambos autores associam esse caráter alegre e desrespeitoso a Marx: o desdém da direita pelos negócios e pela cultura da classe média que o marxismo herdou das primeiras críticas anticapitalistas do período Romântico, embora persista como uma tendência dentro do Marxismo posterior, tornou-se ambíguo, para não dizer ambivalente, a partir da relação mais complexa entre o movimento da classe 8 ADORNO, Theodor W. “Gebrauchtmusik’. In: . Gesammelte Schriften, v. 19, p. 447. 361 trabalhadora e um desenvolvimento industrial que esta em seu pressuposto fundamental e portanto julga ser tão progressivo como perigoso e devastador. (JAMESON, 1998, p. 148, tradução nossa) A sátira, que sempre tem sido uma arte materialista, é também nele [Brecht] uma arte dialética. Marx está por trás de sua novela. (BENJAMIN, 1975, p. 114) Comentadores de Brecht veem sua sátira culinária como dialética. Ao mesmo tempo que faz rir, faz uma crítica ao objeto de diversão, não por identificação ou raiva, mas por estranhamento. Goza-se de tanto, talvez seja motivo de gozar-se da situação ruim para daí partir para um outro passo. O culinário pode ser mais profundo que o sentimento da alma, segundo Benjamin: Seus meios e seus fins [de Brecht] são mais modestos que os do teatro tradicional. Seu objetivo não é tanto alimentar o público com sentimentos, ainda que sejam de revolta, quanto aliená-lo sistematicamente, pelo pensamento, das situações em que vive. Observe-se de passagem que não há melhor ponto de partida para o pensamento que o riso. As vibrações físicas produzidas pelo riso oferecem melhores ocasioões para o pensamento que as vibrações da alma. O teatro épico só é luxuriante nas ocasiões que oferece para o riso. (BENJAMIN, 1994, p. 134) A indicação do sucesso e dos comentários gerados a partir da obra de Brecht parecem apontar para uma nova função do culinário que leve diretamente à reflexão. No entanto, talvez, a dialética do culinário, de que há um potencial transformador dentro do que é prazeroso, não se encontre apenas dentro do pensamento brechtiano, como apontam Jameson e Benjamin. Talvez somente com uma nova tensão, entre o culinário de Adorno e de Brecht é que se poderia extrair mais um potencial: quando o culinário brechtiano se coloca fronte às facilidades do culinário e de sua fácil tendência à fragmentação e o prazer que simplesmente conforta. Embora um prazer simples, o culinário na arte ocidental, é bastante complexo. 362 Referências bibliográficas ADORNO, Theodor W. “O fetichismo na música e a regressão da audição”. Tradução de Luiz João Baraúna. In: HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultura, 1989 (Os Pensadores). . ‘The threepenny opera’. In: HINTON, Stephen (ed.). Kurt Weill: The threepenny opera. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 129–134. . Filosofia da nova música. Tradução de Magda França. São Paulo: Perspectiva, 2004. ALMEIDA, Jorge de. Crítica dialética em Theodor Adorno: música e verdade nos anos vinte. Cotia: Ateliê Editorial, 2007. BENJAMIN, Walter. “La novela de cuatro contos, de Brecht”. In: . Tentativas sobre Brecht. Tradução de Jesus Aguirre. Madrid: Taurus, 1975. p. 103–114. . “O autor como produtor”. In: Magia e técnica, arte e política. Tradução de Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994. . Introdução à sociologia da música. Tradução de Fernando R. de Moraes Barros. São Paulo: Editora Unesp, 2011. BRECHT, Bertolt. “Über die kulinarische Kritik”. In: . Schriften zur Theater 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1963. p. 235–237. . “Notas sobre a ópera Grandeza e decadência da cidade de Mahagonny”. In: . Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978a. . “Teatro recreativo ou teatro didático?”. In: . Estudos sobre teatro. Tradução de Fiama Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978b. CHAMBERLAIN, Jane H. “Threepenny politics in translation”. ATA Source, n. 45, Summer, 2009. p. 20–31. DAHLHAUS, Carl. Esthetics of music. Cambridge: Cambridge University Press, 1982. HANSLICK, Eduard. Do belo musical. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2000. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Cursos de estética I. Tradução de Marco Aurélio Werle. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. JAMESON, Fredric. O método Brecht. London/New York: Verso, 1998. PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004. TEIXEIRA, Francimara Nogueira. Prazer e crítica: o conceito de diversão do teatro de Bertolt Brecht. São Paulo: Annablume, 2003. UNVERRICHT, Hubert. “Tafelmusik (i)”. In: SADIE, Stanley; TYRRELL, John (ed.). The new Grove dictionary of music and musicians. 2. ed. London: Macmillan Publishers, 2001. WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 363 A música da mídia na mente: uma análise da recepção dos jingles e uma reflexão sobre o gosto musical contemporâneo Ana Lúcia Iara Gaborim Moreira Universidade de São Paulo [email protected] Antonio Deusany de Carvalho Júnior Universidade de São Paulo [email protected] Resumo Este artigo apresenta os resultados da segunda parte de uma pesquisa iniciada em 2012, acerca da presença da mídia na paisagem sonora - conceito estabelecido por Murray Schafer (2011). Segundo o autor, a paisagem sonora muda com o tempo, mas deixa algumas impressões que se perpetuam, no pensamento das pessoas, independentemente de período ou local. Da mesma maneira, percebemos na paisagem sonora brasileira a presença de jingles que permanecem na mente das pessoas mesmo com o passar dos anos, e fazem parte não só do repertório musical do rádio e da televisão, mas da linguagem cotidiana, na reprodução de frases e expressões que divulgam ainda mais a mensagem comercial e trazem à tona a lembrança da mídia. Assim, a pesquisa realizada neste ano, além de abordar a recepção das “canções da mídia” (VALENTE, 2004) em análise comparativa dos anos de 2012 e 2013, buscou ampliar as investigações no campo dessas músicas compostas especialmente para fins de divulgação de um produto, ou seja, os jingles - que se fixam na memória, mais do que as imagens a eles associadas (BAITELLO JR., 1997). A pesquisa também aprofundou as reflexões acerca do gosto musical, que é algo individual e nos revela muito sobre aspectos psicológicos do ouvinte-receptor. Partimos do uso de novas tecnologias, como questionários online, enviados através de redes sociais e e-mails com várias perguntas conceituais e pessoais. Com a análise destas respostas, chegamos a conclusões semelhantes às expostas por Schaffer em todas as suas análises, enfatizando a realidade brasileira e considerando que muitas pessoas se alimentam da música da mídia às vezes sem total percepção. Palavras-chave jingles, música da mídia, paisagem sonora 364 1. Introdução Os jingles, que são essencialmente um tipo de música feita para a mídia, formam um repertório à parte dentro do cenário musical. Nos sites www. letras.com.br e www.ouvirmusica.com.br, por exemplo, há uma categoria específica para as músicas comerciais, definida como letras-de-comerciais ou temas-de-comerciais, possuindo, inclusive, marcadores de acessos. Curtos e diretos, os jingles atendem a propósitos bem definidos e delimitados nas áreas de comunicação, propaganda e marketing, sendo, inclusive, tema de diversas pesquisas e estudos nessas áreas. Sendo a principal característica do jingle “a sua facilidade de memorização, uma vez que a melodia facilita a assimilação da mensagem verbal, permitindo que o nome do produto seja repetido mais vezes e assim assimilado pelo receptor da mesma, sem que este se canse do texto” (MELO et. al. p.1), poucos escritos sobre o jingle são encontrados na área de música. A música se torna, nesse caso, uma ferramenta para o trabalho desenvolvido nas áreas acima citadas e desta forma pensamos que o jingle não se constitui como um objeto de análise enquanto obra de arte, em seu âmbito estético, ou enquanto linguagem, em uma análise harmônica ou estrutural. Sendo assim, trataremos neste artigo apenas da investigação de seus fenômenos de reprodução e recepção. A INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, em seu XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Campo Grande - MS, definiu o jingle como “uma propaganda cuja mensagem é musicada e fácil de ser cantarolada e recordada. A melodia do jingle é criada por um músico e a letra pode ser feita pelo redator da agência publicitária ou por um poeta. A música contribui para a fixação desse tipo de propaganda.” (apud MONTEIRO; RIOS, p.1). Melo et. al. (p.1) especificam os tipos de jingles que encontramos no rádio e na TV: o termo jingle vem do inglês e significa tinir, retinir, soar. Na linguagem publicitária, entretanto, ele é definido como uma composição musical e verbal de longa (15 a 30 segundos, às vezes, 365 mais, contendo as características de uma canção) ou curta duração (uma frase ou fragmento de frase musical associado a um nome de marca ou de um slogan; são estes respectivamente jingle-assinatura e jingle-slogan) feita especificamente para um produto ou serviço. Utilizado de forma coloquial também na língua portuguesa, esse termo técnico é reconhecido e identificado no cotidiano das pessoas. Os participantes de nossa pesquisa souberam identificar o que é um jingle, com exceção de uma única resposta que se referiu à frase veiculada em um comercial, e não a uma música. Pesquisa: a recepção dos jingles O questionário on-line para esta pesquisa foi publicado nos meses de maio e junho de 2013 através da tecnologia Google Docs, e as respostas foram disponibilizadas para os autores da pesquisa através de uma planilha chamada Google Spreadsheet, onde os dados puderam ser tratados e analisados. A divulgação do questionário foi feita por e-mails a contatos pessoais dos participantes e associações, e por meio da rede social “Facebook”. Em 2012, obtivemos a participação de 260 pessoas; neste ano, obtivemos apenas 68 pessoas, entre 18 e 59 anos, residentes em diversas cidades do Brasil – principalmente nos estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraíba. No entanto, as poucas respostas nos levaram a constatação de dados muito interessantes sobre a maneira como esses participantes percebem e interpretam as mensagens contidas nos jingles veiculados no rádio e na televisão. Na primeira e nas últimas questões, procuramos traçar um perfil dos participantes, onde constatamos que a grande maioria tem conhecimento musical (54 pessoas) e, portanto, deduzimos que esse público tem maior interesse em participar voluntariamente de uma pesquisa sobre música. Entre as respostas dadas para a questão 2 - “cite algum jingle vinculado atualmente na TV ou rádio”, cerca de 10% das pessoas declara não se lembrar de nenhum jingle e entre essas respostas, algumas afirmam que 366 nem assistem à TV, nem ouvem rádio. Entre os jingles citados nas respostas, o que consta mais vezes é o do comercial da FIAT, intitulado “Vem pra rua”, composto e cantado pela banda “O Rappa”. No entanto, não se trata de um jingle composto especificamente para o comercial da fábrica automobilística, mas de uma música que faz parte do repertório da banda. Essa categoria de música associada a algum produto – e que não foi concebida como jingle - consta na questão seguinte, e por esse motivo será analisada posteriormente. Vários outros jingles e seus produtos figuraram entre as respostas, e entre os que foram citados mais de uma vez estão os de produtos diversos: Dolly Guaraná, rede de supermercados Pão de Açúcar, refrigerante Coca-Cola, bancos Itaú e Caixa Econômica Federal, sanduíche Big Mac, produtos de limpeza Ypê e Assolan e remédio Apracur. No caso do jingle de Dolly, que figura como o mais acessado na categoria letras-de-comerciais no site www.letras.com.br (http://www.letras.com. br/#!temas-de-comerciais/guarana-dolly-(dolly)), podemos inferir que sua primeira versão era facilmente memorizada por ter um texto de poucas palavras – que, obviamente, são o nome do produto e seu slogan – “o sabor brasileiro”. Aos poucos, o jingle foi se modificando e ganhou novas versões, com um texto maior e em ritmo de samba. Podemos também inferir que o conjunto de jingles da rede de supermercados Pão-de-Açúcar nos chama a atenção por seu diferencial, embora a produção seja muito simples. A jovem Clarice Falcão, que se tornou a cantora-propaganda do supermercado, aparece solando uma melodia repetitiva em prosódia não convencional – às vezes o texto é pronunciado tão rapidamente que precisamos prestar atenção para entender -, com o acompanhamento simples de um violão (e, às vezes, a aparição de outros instrumentos, como o clarinete). Essa combinação induz o ouvinte a refletir sobre o slogan da campanha altruísta: “o que você faz pra ser feliz?”. A pergunta fica associada ao supermercado, e fatores como a duração do comercial e a sua repetição contínua durante a programação contribuem 367 para que seja facilmente fixada na mente dos telespectadores e radiospectadores. O Banco Itaú, que também foi citado na pesquisa, tem diversificado suas propagandas, com o slogan “isso muda o mundo”, abordando da mesma forma temas altruístas que vão se alternando, como a sustentabilidade, a educação e a solidariedade. Temas culturais também são apresentados, chegando até mesmo a mostrar a relação das crianças com a música clássica, o que também nos chama a atenção – afinal, podemos dizer que as pessoas se identificam com as causas apresentadas e não necessariamente com os jingles apresentados ou trilhas sonoras das campanhas publicitárias. No caso da Caixa Econômica Federal - outro banco citado nas respostas -, a atual propaganda não traz o jingle que foi veiculado nas propagandas durante muitos anos (“vem pra Caixa você também, vem!”). A campanha atual “o Dudu está lendo” traz à cena um menino que lê a logomarca da Caixa por onde passa; mas, pelo que pudemos interpretar, o jingle continua na memória das pessoas, mesmo não sendo veiculado atualmente junto às imagens. Outros jingles foram se modificando, como é o caso da Coca-Cola, que atualmente associa o consumo de seu produto à torcida brasileira para a copa do mundo de 2014 – um tema com o qual os brasileiros tem se identificado bastante. No caso do sanduíche Big Mac, a melodia e o texto que são veiculados no Brasil desde a década de 1980 (“dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles num pão com gergelim: é o Bic Mac”) persistem principalmente na mente da chamada “geração Mc Donald’s”, que vivenciou na infância ou juventude a chegada da rede internacional de hambúrgueres no Brasil. Nos anos 2000, o famoso Jingle foi reapresentado com uma versão em rap. No gráfico abaixo, observamos a ocorrência das respostas da pesquisa: 368 Apracur Caixa Econômica Federal Coca-cola McDonalds Dolly Série1 Ipê Pão de Açucar Não lembra Vem pra rua Outros 0 5 10 15 20 25 Com relação à questão 3, “você conhece algum produto associado a uma música conhecida (que não seja um jingle) vinculado atualmente? Qual é o produto e qual é a música?”, novamente alguns participantes se confundiram, embora a questão esteja claramente explicitada (em negrito). Algumas respostas trazem jingles que estariam melhor posicionados como resposta da questão 2, como é o caso da propaganda das lojas Marisa (“de mulher pra mulher, Marisa”). A música “Vem pra rua”, já citada anteriormente como resposta na questão 2, figura novamente na questão 3, onde melhor se enquadra por ser uma música do repertório da banda brasileira “O Rappa” – que, segundo o site Wikipédia, é “uma banda brasileira conhecida por suas letras de forte impacto social”. Ainda segundo a fonte de consulta da Internet, “seu ritmo não é exatamente definido nem mesmo pela própria banda”. Não se trata de um jingle composto especificamente para o comercial da fábrica automobilística, e seu texto traz à tona o espírito de uma unidade patriótica. Curioso é que essa música que tem sido usada tanto para embalar a revolta das manifestações populares que se alastraram pelo Brasil e que se originaram com o aumento das 369 passagens de ônibus na cidade de São Paulo, a maior metrópole do Brasil (há vídeos no Youtube que trazem imagens das manifestações e sobre as imagens, soa a música em questão), quanto para evocar o espírito da torcida brasileira: “vem pra rua, que é a maior arquibancada do Brasil”. A propaganda da FIAT traz imagens alusivas à Copa do Mundo que se realizará no Brasil em 2014, e assim, ao contrário da revolta política, invoca a paixão pelo esporte (futebol). Entre as músicas associadas a um produto, a mais citada foi a da propagada do telefone celular Samsung Galaxy, que traz a música “Verão”, de “As quatro estações” de Vivaldi – embora somente o nome do compositor tenha sido referenciado, e não a música. Compositores e bandas de rock brasileiras, com suas respectivas composições foram lembrados nessa categoria – como Tom Jobim, Lulu Santos, Lô Borges, Frejat (da banda Barão Vermelho) e Legião Urbana. Várias outras músicas foram citadas, sendo que as seguintes constaram mais de uma vez nas respostas: “Rosa”, de Pixinguinha, no comercial de cosméticos do Boticário e “É o amor”, de Zezé de Camargo e Luciano, que é cantada no comercial do tempero Sazon. Mas o mais curioso é a associação entre o funk “Lelek lek lek” (de autoria de Passinho do Volante e interpretada por Mc Federado e os Leleques) e o carro novo da fábrica Mercedes Benz (Novo Classe A), que nos leva a refletir nas razões que estabeleceram esta associação - como apontam as duras críticas apresentadas no vídeo da propaganda postado no site do Youtube - http://www.youtube.com/watch?v=bRKnw4HdhyI. Ou, em contraposição, nos leva a pensar se a escolha da música (cujo clipe tem mais de 37 milhões de acessos no site do Youtube) foi criteriosa, se foi pensada além do fato de sua popularidade. Outros tipos de produto foram lembrados, como sabonete e cervejas, sem especificar a música utilizada para a campanha comercial. A palavra “sim” refere-se às respostas positivas para a pergunta (indicando que a pessoa se lembra de um produto associado a uma música conhecida, 370 sem, no entanto, especificar a música ou o produto). Tais respostas são representadas no gráfico abaixo: Sim Sabonete Boticário Sazon Samsung Galaxy Série1 Telesena Vem pra rua Cerveja Não lembro Outros 0 5 10 15 20 25 A questão 4 levou os participantes a pensarem sobre músicas que ficaram na lembrança: “algum anúncio marcou sua infância de modo que você se recorde ainda hoje da música ou jingle? Qual é o produto e qual é a música (ou parte dela) ?”. Vários produtos foram lembrados juntamente com seus jingles, sendo que o mais citado foi o do Guaraná Antártica (“pipoca na panela começa a arrebentar, pipoca com sal, que sede que dá”). Esse jingle traz uma música que nos lembra o ritmo de rock dos anos 1960. Depois do jingle do guaraná, os dois mais citados, em mesma quantidade, são o das Lojas Pernambucanas (“é o frio: não adianta bater, que eu não deixo você entrar, é lá nas Pernambucanas que eu vou aquecer o meu lar”) e do Café Seleto, que foi bastante veiculado na década de 1980 e recebeu uma paródia muito difundida entre as crianças na época – o que, talvez, contribuiu para que a melodia se fixasse na memória. No gráfico abaixo, encontramos ainda outros jingles mencionados, como o da lanchonete Mc Donalds, das lojas Mappim, da companhia aérea Va371 rig e dos produtos Cremogema, Biotônico (Fontoura) e Bombril. A música do iogurte Danoninho è uma paródia da composição para piano “Schopsticks”, popularmente conhecida como “O bife”. McDonalds Mapim Cremogema Biotônico Varig Parmalat Danoninho Série1 Bombril Não lembro Café Seleto Pernambucanas Guaraná Antártica Outros 0 5 10 15 20 25 Nessa questão, novamente houve uma confusão entre as respostas, pois a música “Aquarela”, de Toquinho, é citada por duas pessoas como jingle dos lápis de cor da Faber Castell. No entanto, a música foi composta anteriormente, e não com o objetivo de se vender lápis de cor – sendo, portanto, melhor posicionada entre as respostas da questão 3. O site “Clube do Jingle” (www.clubedojingle.com) traz uma seleção de jingles apresentados em forma de vídeos do Youtube e informações sobre os mesmos, como a data de criação e a biografia de seus autores, e ainda traz o ranking dos mais acessados. Entre eles, o já citado comercial do Guaraná Antártica (que segundo o Clube do Jingle, é de autoria de Mineiro, Brunetti, Novaes, Simão e Campanelli), e também dois outros jingles citados nas respostas da pesquisa: o da Parmalat (dos mesmos 372 criadores, segundo o site) e o do Shampoo Johnson’s, de autoria do compositor Hélio Ziskind (compositor de músicas infantis para a TV Cultura). O fato de termos em mente jingles de nossa infância e juventude nos leva a refletir sobre o nosso próprio processo de memorização musical em âmbito psicológico e muitas vezes irreflexivo. Sem intenção de julgar a qualidade musical, é interessante pensarmos no modo como a mensagem foi por nós recebida e arquivada. Os criadores de jingles conseguem captar o que nos motiva, o que nos emociona, o que agrada e o que nos chama a atenção e procuram aplicar à música em associação ao produto; no entanto, a reflexão de uma das participantes nos leva a pensar na eficácia da propaganda quando somente a música é lembrada: “vejo muitas vezes pessoas cantando e comentando jingles que ouviram na TV ou rádio. O que acho curioso é que muitas vezes ouvimos e até reproduzimos a música mas não lembramos a marca do produto”. 3. A música da mídia na mente Conforme já exposto, muitas vezes a música da mídia também é utilizada em associação a um determinado produto para promover suas vendas, sendo, inclusive, confundida com um “ jingle”. Esse tipo de composição, sem dúvida, também toma parte da paisagem sonora contemporânea, não sendo só veiculado no rádio e na televisão, mas também sendo cantado e lembrado na linguagem oral do cotidiano. No ano de 2012, nossa pesquisa sobre a paisagem sonora (CARVALHO JR; MOREIRA, 2012) abordou principalmente a maneira como as pessoas percebiam os sons em seu cotidiano e como percebiam a música da mídia, questionando como sons e música afetavam o seu dia-a-dia. Assim, constatamos que, entre os 260 participantes da pesquisa, a maioria se sentia afetada negativamente tanto pelos sons ao seu redor, quanto pela música da mídia. Mas o que realmente nos chamou a atenção foi o fato de que muitas pessoas em 2012 e 2013, ao serem questionadas sobre a música mais tocada na mídia, responderam que não sabiam ou não se lembravam, o que demonstra o desinte- 373 resse ou a distância desse tipo de manifestação musical de certa parcela da população. Encontramos um exemplo deste pensamento na fala de um participante (2013): “Ando bem distante da mídia, (...) justamente pelo que ela tem de: 1) imposição de gosto, 2) cardápio limitado, 3) nivelado por baixo, devido a 4) interesses puramente comerciais.” Muitas pessoas, principalmente músicos, tem analisado criticamente como a música tem se manifestado nos meios midiáticos e como influencia o seu público-alvo, assim como percebemos na fala deste outro participante (2013): “para quem ouve rádio e vê televisão várias horas por dia, esta música e os valores ligados a ela acabam por ser uma imposição social/ cultural. Assim as pessoas se vêm “obrigadas” a aprender, decorar a letra, saber a coreografia dela, pois se forem a uma festa, tem que saber cantar e dançar. Não podem ficar “por fora”. Da mesma forma, vão se vestir como o “ídolo” cantor se veste, pentear o cabelo do jeito dele. Usar os produtos que ele usa, ou os que ele faz propaganda (e as vezes nem usa). Vão comprar o CD, baixar o clipe e a música do youtube... Comprar a revista que tem ele na capa, para saber detalhes da sua vida... Vão falar do jeito que ele fala. Algumas partes das letras tornam-se chavões no vocabulário do povo.” No caso dos jingles, percebemos também que muitas pessoas estão atentas aos efeitos da mídia na manipulação da música: “No sentido comercial, a música, quando bem feita e vinculada à algum produto, aumenta consideravelmente as vendas, à exemplo das campanhas da Coca-Cola. Já as que não servem de veículo de venda de outros produtos, influenciam o modo de comportamento da maioria da população. As canções mais tocadas refletem o senso-comum do público que a consome, assim como as ideias e o comportamento de uma geração.” Porém, ao mesmo tempo e de forma contrastante percebemos, em muitos casos, um senso comum predominante de certos participantes: “a letra da música pode até não ser interessante, mas de tanto tocar acaba 374 ficando”; “a música entra na cabeça das pessoas e toma conta, lembramos a todo instante”. Na questão “você tem observado como a música da mídia afeta o dia-a-dia das pessoas ?”, apenas 6 participantes – todos músicos - responderam que não, pois não estão atentos à música da mídia, ou então, argumentam o contrário: que a mídia é que reflete o que o grande público quer ouvir. Já a grande maioria dos participantes respondeu que sim, observando que a música da mídia influencia as pessoas em seu dia-a-dia. Obtivemos várias respostas interessantes. Uma delas afirmou que a partir da pergunta, refletiu sobre o assunto: “quando uma música ‘está na boca do povo’ ela tem grande exposição na mídia... mas é difícil diferenciar se a música está na mídia pois muitos comentam sobre ela, ou vice-versa. A mídia influencia sim o dia-a-dia das pessoas”. Já afirmamos, na pesquisa de 2012, que embora os gestores de mídia argumentem que as músicas mais tocadas tem relação direta com o gosto musical do público, existe uma parcela da população brasileira que possui um gosto diferenciado e que não escolhe o que ouvir segundo as tendências da mídia – embora seja atingido por ela, em situações onde não é possível “fechar os ouvidos”. Em outras palavras, pessoas que se recusam a aceitar o que lhes é imposto pelos meios de comunicação de massa, constituindo o que denominamos “contracultura midiática” (CARVALHO JR; MOREIRA, p.12). No entanto, constatamos também um grupo que sobrevive inconsciente da imposição e domínio dos meios midiáticos na produção comercial de música. Com relação à música mais tocada na mídia, observamos que no ano passado a música de Michel Teló (“Ai, se eu te pego”) foi, seguramente, a grande revelação das paradas de sucesso, superando qualquer outra música mencionada na nossa pesquisa e também nos sites da Internet. A música foi, inclusive, citada na pesquisa de 2013. Mas neste ano, notamos que os participantes tiveram mais dificuldade para definir a música da mídia. Como no ano passado, as respostas “não sei” ou “não me lembro” 375 lideraram a pesquisa; no entanto, houve várias músicas citadas e não houve nenhuma música em destaque, com número de votos bem superior em relação às outras. As mais citadas foram “Show das poderosas”, da funkeira Anita, e “Camaro Amarelo”, da dupla sertaneja Munhoz e Mariano. conforme mostra o gráfico: Quadradinho de 8 piradinha "tche re re tche tche" Naldo lék, lék.... Esse cara sou eu Série1 ai se eu te pego Show das Poderosas Camaro Amarelo Não sei. Outros 0 5 10 15 20 25 30 4. Algumas considerações sobre o gosto musical A proposta de continuidade da pesquisa sobre Música e Mídia partiu da premissa de que levamos as pessoas a refletirem sobre sua maneira de ouvir a paisagem sonora à sua volta, levando em conta que a música da mídia toma grande parte dessa paisagem. Participantes da primeira pesquisa (2012) afirmam que mudaram sua escuta a partir das reflexões que se iniciaram com o questionário: “sim, passei a refletir sobre a música da mídia, sua interferência na vida das pessoas”. Com relação à questão sobre mudanças na música da mídia entre 2012 e 2013, é interessante ressaltar que nenhuma resposta foi positiva, no senti- 376 do de perceber uma suposta mudança “para melhor” com relação às músicas que são apresentadas. Uma participante afirmou: “está cada vez pior com algumas exceções. Com a invasão dos funks e afins está quase intolerável. Acabo sabendo das ditas músicas porque é quase impossível não escutar, de tanto que elas insistem em tocar. Afinal, ouvido não tem porta”. No caso dos jingles, consideramos importante ressaltar a participação desse tipo de composição no cenário musical, pois apesar de serem veiculados diariamente e serem assistidos por milhões de pessoas em nosso país, poucas são as análises críticas feitas a respeito desse vasto repertório. Estudos mais aprofundados, portanto, ainda podem – e devem - ser realizados, sobretudo no campo da educação musical. Deixamos aqui uma questão para reflexão: por que os jingles sobrevivem em nossa cultura, enquanto nossas melodias folclóricas tem sido esquecidas? E finalmente, encerramos com uma frase que nos incentiva a continuarmos nossa pesquisa: “na verdade, sempre me chamou a atenção a parte musical das propagandas, e essa pesquisa é muito importante, pode trazer dados que venham despertar aqueles mais distraídos!”. É isso aí ! Referências Bibliográficas Baitello Jr., Norval. 1997. A cultura do ouvir. Seminários Especiais de Rádio e Áudio - Arte da Escuta - ECO. 1997. http://revista.cisc.org.br . Consulta em 04/2013 Carvalho Jr, Deusany; Moreira, Ana Lúcia I.Gaborim. 2012. Paisagem sonora no século XXI: sons e música como elementos incômodos ou abstraídos. Anais do 8º Encontro Internacional de Música e Mídia. Universidade de São Paulo, 2012. Melo, Solange Tavares; Nascimento, Marta Rocha; Santos, Cláudia da Silva. SANTOS, Clerivaldo M.S. 2006. A importância dos Jingles na construção de cases de sucesso. Trabalho apresentado no Congresso Anual da Intercom – Núcleo de Pesquisa, Publicidade e Propaganda, 2006. http://www.portcom.intercom.org.br/pdf s/12338439378153583207825177155574 9705441.pdf. Consulta em 05/2013. Monteiro, Maria Clara Sidou; Rios, Riverson. As representações dos jingles para as crianças dos anos 80 e 90 e os jovens adultos de hoje. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação XI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste. Teresina,14 a 16 de maio de 2009. Schafer, Raymond M. 2011. A afinação do mundo. 2.ed. São Paulo: Ed. Unesp. Valente, Heloísa. A. D. Música é informação! - Música e mídia a partir de alguns conceitos de Paul Zumthor. V Congresso da Seção Latino-Americana da Associação Internacional para o Estudo da Música Popular, IASPM-LA, 2004. 377 Dá meu Danoninho pra eu virar herói: encantamento e persuasão no jingle Danuza Pessoa Polistchuk Universidade Municipal de São Caetano do Sul [email protected] Resumo Este artigo, que permeia as disciplinas propaganda, música e filosofia, objetiva encontrar uma possível relação entre a simbologia do herói e o jingle Me Dá Danoninho, do fabricante de iogurtes Danone, por meio da análise da letra e do texto musical, e observar se esse simbolismo caracteriza finalidades de encantamento e/ou persuasão. Para atingir esses objetivos, a análise será feita sob a luz da semiótica da cultura, justamente por tratar-se de simbolismo e significação. A análise da letra e do texto musical não se limitará aos aspectos explícitos apresentados no jingle, mas também àqueles que ofereçam a possibilidade de relacioná-los ao simbolismo do herói. A relevância deste artigo está na possibilidade de se encontrar na propaganda cantada aspectos simbólicos do herói, comumente usados na propaganda impressa, e apontar se essa simbologia é usada como persuasão, com intenção clara de convencimento, ou também como encantamento, contribuindo para a sedução. Palavras-chave jingle, herói, persuasão, encantamento 378 Introdução A propaganda, um produto cultural do nosso tempo a serviço da comunicação de marcas, produtos e serviços, utiliza-se de estratégias discursivas diferentes para cada tipo de público. A argumentação de uma peça publicitária também varia de acordo com os propósitos do anunciante e, obviamente, do seu consumidor alvo. Nesse sentido, os criadores das peças publicitárias buscam apelos em diferentes fontes da própria sociedade. A vida cotidiana, aspectos culturais, assim como o mito e os elementos simbólicos podem ser motes criativos da propaganda na tentativa de alcançar a sedução e a persuasão. No que se refere ao jingle publicitário pode-se dizer que é uma peça com discurso híbrido, que mistura argumentos racionais e emocionais, a fim de aproximar a mensagem do consumidor, de persuadir e encantar ao mesmo tempo. O principal objetivo de um jingle é que ele perdure na memória do ouvinte, mesmo após anos de sua veiculação, conforme afirma Sampaio (2003, p. 72): A grande vantagem do jingle é que, por ser música, acaba tendo um expressivo poder de “recall”, pois é aquilo que a sabedoria popular chama “chiclete de orelha”. As pessoas ouvem e não esquecem. Assobiam ou cantam, mas guardam o tema consigo. O jingle é algo que fica, como provam as peças veiculadas durante um período e tiradas do ar, mas que muitos e muitos anos depois ainda são lembradas pelos consumidores. Para que isso aconteça, letra e texto musical se complementam para que o ouvinte, além de lembrar da peça após anos, reconheça a marca, produto ou serviço como uma alternativa válida na hora de consumir. Se, por um lado, a letra deve ser objetiva, direta e repetitiva, o texto musical deve envolver esse consumidor, geralmente, pela emoção, e reforçar sonoramente as ideias descritas na letra. Nesse sentido, o jingle Me dá Danoninho, da fabricante de iogurtes Danone, possui uma letra repetitiva (sem ser apelativa), objetiva e que carrega em si os benefícios cen379 trais do produto, ou seja, seus elementos nutricionais. Já o texto musical, uma paródia da música Chopsticks, de De Lulli, por sua vez, é alegre e vibrante, sobre uma valsa tocada no piano. Após uma análise mais detalhada, pode-se reconhecer nessa peça publicitária a simbologia do herói, como se o jingle fizesse do produto uma espécie de elemento mágico que transforma a criança no herói de suas próprias aventuras. Sob essa temática, esse artigo de caráter exploratório tem o objetivo de reconhecer, por meio da análise da letra e do texto musical desse jingle, elementos que possam ser associados ao simbolismo do herói. 1. O herói O herói teve origem nos mitos, cujos mais destacados são os da Grécia antiga, como o mito de Prometeu, Pandora e Epimeteu. Os mitos são narrativas que ensejam verdades coletivas, que tratam da realidade segundo a interpretação de certa comunidade, que tentam explicar as mudanças e os reflexos dessas mudanças numa sociedade que julga ter perdido algo justamente por essas mudanças terem acontecido. Conforme afirma Feijó (1984, p. 3): “O mito seria, então, um consolo contra a história. E o herói, um consolo contra a fraqueza humana”. A psicanálise aprofundou os estudos sobre o mito do herói e buscou entender porque eles nos fascinam desde sua origem até os dias atuais. Sigmund Freud foi primordial esses estudos, quando descobriu que era possível interpretar os sonhos, e que os sonhos são manifestações do nosso inconsciente reprimido. O segundo psicanalista que contribui para o entendimento do assunto foi Carl G. Jung, que relacionou os sonhos humanos com os símbolos da nossa cultura, chamando esses símbolos de arquétipos ou imagens primordiais, descrevendo-os como tendências do inconsciente, que não dominamos, que manifestam-se pelos sentidos, pela fantasia, e revelam-se por meio de imagens simbólicas. Nesse sentido, Feijó (1984, p. 20) afirma: “A criação e a sobrevivência do mito é obra do inconsciente que se torna parte da vida cultural de um povo”. 380 O mito do herói, sendo uma manifestação simbólica do nosso inconsciente por meio da fantasia, está presente em diversas criações humanas: em histórias orais, na literatura, nos filmes, nas artes plásticas, na propaganda, entre outros, e apresenta-se como tipos diferentes de heróis, embora todos realizem feitos que marcam seus grupos sociais ou onde sua aventura acontece. Para que a análise do jingle possa ser realizada, este artigo abordará dois tipos de herói: o herói do conto de fadas e o forte de Friedrich W. Nietzsche, que, embora não tenha a nomenclatura de herói, tem origem nos mitos da Grécia antiga, onde o herói possuía certas características que serão discutidas ao longo desse item. 1.1. A saga do herói Para que o herói seja merecedor desse título, não precisa simplesmente ter as características físicas do forte de Nietzsche, dos heróis da mitologia grega, nem a sensibilidade dos grandes dos contos de fadas. Ele precisa realizar uma proeza, algo que seja registrado na história. Joseph Campbell (1990) descreve dois tipos de proezas: a proeza física, em que o herói, utilizando a força física, numa batalha, por exemplo, salva uma vida em um ato de coragem; e a proeza espiritual, em que ele consegue entender a superioridade da vida espiritual, e sai, ao fim da aventura, com uma mensagem de transformação. Usualmente, o herói é alguém que, percebendo a necessidade de algo para si ou para a sociedade, sai em busca desse algo, numa aventura fora do padrão de sua vida cotidiana, e retorna dessa experiência com aquilo que buscava e, geralmente, modificado. Joseph Campbell (2003) afirma que a saga do herói está centrada, então, em três atos: a partida, a iniciação e o retorno. A partida é quando ele sai em busca de uma aventura, o que só acontece quando encontra uma razão que o desperte para a empreitada. O eleito pode recusar a empreitada, mas sua vida tende a ser direcionada para sucessivos problemas, como um efeito dominó, quando um problema não resolvido desencadeia outros problemas. No entanto, 381 quando o herói aceita o desafio, ele sempre terá a ajuda de coisas exteriores, seja um amuleto com poderes sobrenaturais que irá protegê-lo, ou a presença de alguém mais velho que detém informações importantes, que possui conhecimento superior para aconselhá-lo e dar confiança em sua jornada. O segundo ato da saga do herói, a iniciação, é quando ele tem que enfrentar as adversidades da trajetória para conseguir sair vitorioso. Essas provas que ele enfrenta podem ser os seus medos, suas fraquezas, ou os adversários que querem impedi-lo de ir adiante. Toda a prova passada, ajuda a fortalecê-lo em sua jornada. É durante as provas que o herói recebe ajuda exterior (de um amuleto ou de alguém superior a ele) e que o protegerá para que consiga vencer essas adversidades. Nessa etapa, o herói precisa ter a confiança em si e nos poderes superiores do amuleto ou da pessoa mais sábia para que, persistindo em seu propósito, vença. Aqui, geralmente, é o ponto alto de toda aventura heroica. Como se as dificuldades fossem necessárias para que o herói possa comprovar sua grandeza, sua superioridade, e faça o feito valer a pena. A última etapa da saga, o retorno, é representada pelo caminho de volta que o herói tem que percorrer para, com aqueles que o cercam em seu grupo social, compartilhar sua conquista e sua vitória. O caminho de volta nem sempre é fácil e tranquilo. Ele pode ter dificuldades para retornar a origem por estar cansado ou extasiado com o estágio áureo que alcançou ao realizar o feito. Entretanto, o retorno é indispensável porque geralmente carrega também a sabedoria adquirida na aventura e que deverá ser partilhada com os demais. Para que isso aconteça, o herói contará novamente com a ajuda do amuleto ou da pessoa sábia que o ajudou no ápice da aventura. Apesar de a saga ser comum a todos os tipos de heróis, as características de cada um deles são um pouco diferentes. Nesse artigo serão abordados os heróis dos contos de fadas e a moral do forte de Nietzsche, conforme abaixo. 382 1.2. O herói do conto de fadas Geralmente é alguém comum, com vida cotidiana comum, sem fatos destacados, mas que tem uma missão designada a cumprir seja para ele próprio, para a família ou para a sociedade. Não é alguém dotado de poderes extraordinários, nem possuidor de força física notável ou inteligência superior. No meio da aventura, será auxiliado por forças extraordinárias representadas por animais, objetos ou pessoas, que lhe conferirão poderes diferenciados, sabedoria extra ou apresentarão objetos que lhe permitam dar continuidade a jornada para que ele tenha êxito em sua aventura. Segundo o psicanalista infantil Bruno Bettelheim (2002, p. 23): Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade - mas apenas se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. Estas estórias prometem à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá. O herói do conto de fadas parte do seu local cômodo em busca daquilo que lhe falta ou que lhe é solicitado, sem nada de extraordinário. No meio da aventura, o herói passa por diversas situações adversas, recebe ajuda externa e sai triunfante, geralmente modificado e fortalecido, mas no fim sempre retorna a sua vida normal, como qualquer ser humano comum. 1.3. A moral do forte de Nietzsche O forte de Nietzsche é um homem cuja distinção perante os demais está na força física, na vitalidade, na astúcia, na criatividade e no desejo de vitória. Esse homem forte, que não está submetido à moral cristã, é sempre vencedor, não importando para ele os princípios éticos que regem a sociedade. O que o impulsiona é a vida que vibra latente em seu corpo saudável, forte, disposto, belo. A vitalidade que brota dentro do forte Nietzschiano está ligada a tudo que é bom, a tudo que lhe enche de vida, que lhe permite sentir-se energizado, satisfeito, vivo, como descreve Chaui 383 (2005, p. 328): “A força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso os fortes desconhecem angústia, medo, remorso, humildade, inveja”. A moral do forte Nietzschiano relaciona-se com a palavra grega aristol, que significa, segundo Chaui (2005, p. 328), os melhores. “Essa palavra referia-se àqueles que realizavam de um certo modo excelente os valores gregos de coragem na guerra, da beleza física e do respeito aos deuses. São a elite ou a classe dominante”, e que Nietzsche chamou de vontade de potência. A vontade de potência tem seus moldes nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas, como se pode encontrar na citação de Chaui (2005, p. 328): Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou a ética dos melhores, dos aristol, a moral aristocrática, fundada nos instintos vitais, nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas, baseadas na guerra, nos combates e nos jogos, nas disputas pela glória e pela fama, na busca da honra e da coragem. Pela a imagem simbólica do herói ser muito latente nos seres humanos e despertar sentimentos inerentes, a propaganda utiliza esse ponto comum como artifício de venda, em seu mote criativo na busca de persuadir consumidores alvo. O discurso persuasivo da propaganda e os tipos de argumentação usados para atingir os objetivos de mercado serão discutidos no próximo item. 2. Propaganda, persuasão e discurso A propaganda, geralmente, é parte de uma ação mercadológica de marcas, produtos ou serviços, e tem a finalidade de gerar ação positiva no espectador1 a respeito de um anunciante, por meio de mensagens favorá1 Aqui, atribui-se espectador ao indivíduo que interage com qualquer mensagem, de qualquer meio de comunicação, e não exclusivamente das mídias televisivas, do teatro e do cinema. 384 veis sobre ele, que sejam capazes de impactar esse espectador. As formas de propaganda podem ser eletrônicas, impressas, sonoras, audiovisuais e digitais, e todas elas são dotadas de um discurso pensado, formulado com propósito definido, que invariavelmente, é o de persuadir. Nesse sentido Carrascoza afirma que: Se há, portanto, um proselitismo natural em tudo o que é falado ou escrito – pois sempre se visa convencer ou persuadir -, e nenhum emissor quer ver sua mensagem perdida no vazio, qualquer peça publicitária intenta alcançar um alto grau de persuasão, uma vez que idealmente deve desencadear uma ação, o ato de consumo, ainda que num futuro impreciso. (CARRASCOZA, 1999, p. 18). A persuasão almejada pelos publicitários e pelos anunciantes acontece quando o consumidor reconhece na peça publicitária determinados atributos diferenciados da marca, produto ou serviço, e esses atributos despertam-lhe o desejo de consumo. Os atributos de uma marca, produto ou serviço podem ser tangíveis (percebidos no campo físico) ou intangíveis (percebidos no campo emocional e psicológico). Dependendo do tipo de atributo ou benefício percebido, a mensagem o apresenta por meio de argumentos racionais ou emocionais. O discurso com argumento racional visa persuadir o consumidor pela razão, pelo raciocínio, e para isso, a mensagem destaca os atributos tangíveis do anunciante, que fará com que o consumidor reconheça os benefícios físicos. No discurso que se apoia em um argumento emocional, intenta-se persuadir o consumidor, como o nome sugere, pela emoção. Nesse tipo de argumento, os benefícios apresentados são intangíveis, e relacionam-se com os sentimentos do consumidor, com seus anseios íntimos, que podem ser de estima, status, afeto, diferenciação etc. Sobre os tipos de argumentos racionais e emocionais na comunicação e no marketing, Schiffman e Kanuk (2000, p. 63) afirmam que: No contexto de marketing, o termo “racionalidade” implica que os consumidores elegem metas com base em critérios 385 totalmente objetivos, como tamanho, peso, preço ou quilômetros por litro. Os motivos “emocionais” implicam a seleção de objetivos de acordo com critérios pessoais ou subjetivos (ex., o desejo de individualidade, orgulho, medo, afeição, status). É bastante coerente que muitos discursos persuasivos da publicidade utilizem argumentos racionais e emocionais para tentar aproximar o interlocutor da mensagem, e assim, alcançar os objetivos mercadológicos intentados pelo anunciante. Nesse sentido, razão e emoção causam impressões distintas, porém complementares, que de certa forma, se relacionarão com as necessidades e os desejos do consumidor, parecendo-lhe agradável e com chances de satisfazer essas necessidades e desejos. Nas peças publicitárias os argumentos racionais e emotivos são apresentados em forma de textos, imagens e sons, dependendo da mídia utilizada. No caso específico do jingle, essas argumentações aparecem no texto (letra) e na música (melodia, ritmo, harmonia, efeitos sonoros etc.). A letra do jingle tanto pode apresentar argumentos racionais quanto emocionais, de acordo com o público e o tipo de produto referenciado na peça sonora. Já na música, todos os elementos poderão sugerir argumentações emocionais, recorrendo ao apelo sensorial do ouvinte. 3. Música e emoção Muitos estudos foram feitos na tentativa de compreender de que maneira a música pode resgatar ou despertar emoções, nas áreas da psicologia, da neuropsicologia, da filosofia, da comunicação e das artes. Como exemplo, há a teoria do contorno, estudada por Pellon (2006), os estudos de Wazlawick (2006) sobre as emoções que a música sugere em grupos definidos, analisados segundo a psicologia, e um dos mais citados, os estudos de Juslin & Sloboda (2001) sobre música e emoção. Para esse artigo, será abordada a sugestão de emoções pela ótica do compositor/executor e do ouvinte2. 2 Muito embora a recepção não seja objeto de estudo, considera-se indispensável sua citação como o conjunto de sujeitos ao qual se dirige a sugestão emotiva da propaganda. 386 O compositor/executor pode pretender causar certas emoções no ouvinte. Para tanto, ele pode escolher elementos sonoros que sugiram certas emoções. Para Patrik Juslin (2001, apud LISBOA e SANTIAGO, 2006): [...] o executante comunica a emoção para o ouvinte através do que ele chama de dicas. Estas dicas seriam alterações em elementos como: andamento, ritmo, articulação, volume, ou seja, todo elemento musical passível de alteração pelo executante, sem que modifique os elementos básicos da partitura. Essas alterações sugerem alguma emoção ao ouvinte, que poderá percebê-la mesmo sem sentir determinada emoção no momento em que ouve a música. No que se refere ao ouvinte, a sugestão de emoção pode estar relacionada a alguns fatores culturais, à sua experiência prévia com música, ao seu estado emocional, ao seu humor, à sua memória e à sua capacidade de associação, o que Scherer e Zentner chamaram de listener features, ou características do ouvinte. Segundo os autores: As características do ouvinte são baseadas na identidade individual e sociocultural do ouvinte e na convenção predominante do código simbólico em uma determinada cultura ou subcultura. Eles podem consistir em regras de interpretação (ex. sistemas musicais) que são compartilhadas em um grupo ou cultura, ou na disposição de inferências baseadas na personalidade, experiências anteriores e talento musical. Estes fatores podem ser resumidos em expertise musical, incluindo as expectativas culturais sobre os significados musicais, e disposições estáveis não relacionadas à música, tais como personalidades e hábitos de percepção. Além disso, estados transitórios do ouvinte como estados motivacionais, concentração ou humor podem também afetar a inferência musical da música (SCHERER; ZENTNER, 2001, P. 4).3 3 Texto original: “Listener features are based on the individual and sociocultural identity of the listener and on the symbolic coding convention prevalent in a particular culture or subculture. They can consist of interpretation rules (e.g. musical systems) that are shared in a group or culture, or of inference dispositions based on personality, prior experiences, and musical talent. These factors can be summarized into musical expertise, including cultural expectations about musical meaning, and stable dispositions unrelated to music, such as personality 387 Assim, pode-se considerar que os aspectos culturais e pessoais podem ser determinantes na sugestão de emoções na música, uma vez que, tanto compositor/executor, quanto ouvinte são parte de determinada cultura ou subcultura e são influenciados por elas na hora de compor e na hora de ouvir a peça. 4. Semiótica da cultura: interdisciplinaridade na análise A semiótica da cultura vale-se das correlações de diversas áreas do conhecimento, que vão desde o mito até relações lógico-matemáticas. A interdisciplinaridade na composição dessa corrente teórica permite que se analise diferentes campos da cultura em um mesmo produto cultural. Como afirma Irene Machado (2003, p. 56): Na melhor tradição da cultura eslava, a ETM [Escola de TártuMoscou] desenvolve-se tendo por objetivo a correlação, temática e estrutural, entre vários campos da investigação científica. Se o objetivo foi a formulação conceitual para a descrição e comparação dos vários sistemas de signos, era evidente a necessidade de buscar correlações e instrumentos em várias áreas do conhecimento. O campo de investigação da cultura já nasceu abrangente, conforme indica a autora: A necessidade de compreender problemas de linguagem fez com que a semiótica da cultura já nascesse, não como uma teoria geral dos signos e das significações, mas como uma teoria de caráter aplicado voltado para o estudo das mediações ocorridas entre fenômenos diversificados. Por isso, o eixo básico das investigações se orientou para os mecanismos semióticos que se manifestam em diferentes sistemas (MACHADO, 2003, p. 25). or perceptual habits. In addition, transient listener states such as motivational state, concentration, or mood may also affect emotional inference from music”. 388 O mito herói é um produto cultural que sobreviveu ao tempo e está presente, até hoje, em diversas sociedades. A propaganda também é um produto cultural, com signos próprios e com significações diferentes para determinados grupos sociais. A música, por sua vez, possui códigos específicos que podem ser decodificados por grupos que partilham esses mesmos códigos, e percebidos de maneira igualmente diferente em diversas culturas. Assim, compreende-se que este artigo pode ser melhor entendido com base nos conceitos da semiótica da cultura, pois sua multidisciplinaridade (propaganda, música e filosofia) são, em primeiro plano, linguagens dotadas de signos próprios, mas que combinados podem virar um subproduto cultural, gerando outros sistemas com significados diferentes. 5. Análise do jingle Me dá Danoninho, jingle composto em 1988 por José Mário e Luis Orquestra e produzido pela Orchestra & Co, extinta produtora de áudio, é uma paródia do famoso Bif, como é conhecida popularmente a música Chopsticks, composta por De Lulli, muito utilizada como exercício por estudantes de piano erudito. A letra composta para o arranjo feito para o jingle do produto, e pouco modificado quando comparado com a partitura original, carrega, essencialmente, os atributos centrais do produto Danoninho, conforme apresentado abaixo: Dá Danoninho dá Me dá Danoninho, Danoninho já Danoninho dá, Danoninho dá Toda proteína que eu vou precisar, já já Me dá, me dá, me dá Me dá Danoninho, Danoninho já Me dá Danoninho, Danoninho dá Cálcio e vitamina pra gente brincar Me dá. Lipídios, Glicídios, Protídeos, Cálcio, Ferro, Fósforo, Vitamina A. 389 Me dá mais saúde, mais inteligência Me dá Danoninho, Danoninho já. Me dá. A letra do jingle indica que a composição nutricional do produto é importante para que a criança esteja melhor para desempenhar suas atividades, para vivenciar suas experiências, para ser o herói de suas histórias. Nesse sentido, as palavras que levam a esta associação são: pra gente brincar, me dá mais saúde, mais inteligência. Se levado em consideração o herói dos contos de fadas, que é sempre uma pessoa comum, que leva uma vida como a maioria das pessoas, mas que vive uma aventura ao longo da história. Que, embora, ele não possua poderes extraordinários como os da mitologia, mas, por ser alguém com boas intenções, recebe uma ajuda mágica para finalizar com êxito a sua jornada, especialmente nas adversidades. Para o herói dos contos de fada, a ajuda pode vir de um ser inanimado, como uma cadeira, de um animal falante, de uma fada madrinha que balança sua varinha e transforma a sua realidade, ou de um alimento que dê mais força e vigor ao herói, como acontece ao Popeye quando come espinafre, que o deixa mais forte e em condições de superar os obstáculos de sua aventura. Nesse sentido, a relação fica explicitada na letra do jingle de Danoninho no trecho citado, como se o produto fosse o aliado que a criança precisa para vencer as adversidades da vida e se tornar o herói da sua história. Outra relação possível de encontrar é com a teoria da Moral do Forte, de Nietzsche, em que o herói é mais saudável, mais inteligente, mais bonito, mais corajoso que os fracos ou que os cidadãos comuns, e pronto para vivenciar e sair vitorioso das aventuras que vêm em seu caminho. Mais uma vez, Danoninho aparece como o elemento que dá o apoio necessário para que o herói permaneça saudável, inteligente, por possuir ingredientes essenciais para que isso aconteça. Uma parte da letra em que se pode encontrar outra relação com o herói é na descrição rimada de alguns dos ingredientes nutricionais: lipídios, 390 glicídios, protídeos, que, além de serem os responsáveis para ajudá-lo em sua saga, a combinação da rima pode levar o ouvinte a completar o raciocínio com a palavra prodígio. O herói ou já é um prodígio, como os da mitologia, que em sua maioria são deuses ou semideuses, ou se torna um prodígio, alguém diferenciado, superior aos demais, seja pela inteligência, seja pela força, mesmo que venha da ajuda recebida no decorrer da trajetória. A letra do jingle destaca essas informações nutricionais, uma vez que esses são os argumentos racionais, os principais atributos do produto, que reforçam a mensagem do anunciante e contribuem para que os objetivos mercadológicos sejam atingidos. A letra tem o propósito claro de persuadir o público-alvo, que no produto em questão são as crianças e as mães, cabendo à ela dialogar principalmente com a mãe, apresentando-lhe tudo aquilo que o produto tem de melhor, o seu diferencial perante a concorrência, aquilo que o torna especial, e, principalmente, o benefício que seu filho terá ao consumir o produto. Essa abordagem racional tem o objetivo de convencer a mãe por meio da razão, e tenta levá-la a conclusão de que o produto é a melhor opção, o que pode persuadi-la, e motivá-la a compra. No texto musical, podem-se considerar alguns pontos que reforçam a associação do jingle de Danoninho com a simbologia do herói. O primeiro a ressaltar é a utilização da notação musical staccato, que aparece na partitura original de Chopsticks e que os compositores do jingle mantiveram ao compô-lo. O staccato indica que as notas devem ser tocadas com movimento seco e rápido, sem que a tecla seja pressionada e mantida até o fim, sem sustentação, acelerando, de certa forma, a música, sem alterar o compasso. Essa notação musical pode sugerir alegria e vivacidade à peça, e é justamente nesse sentido que, ao sugerir tais aspectos, pode-se encontrar uma relação com o herói em sua saga, sua aventura. A sensação de aceleração que o staccato promove pode ser relacionada à própria aceleração do herói na sua empreitada, servindo como pano 391 de fundo da narrativa das ações. Por outro lado, se a criança é um dos públicos alvo de Danoninho, a alegria e a vivacidade sugeridas por essa notação musical podem contribuir para o encantamento e a persuasão desse público, contagiando e despertando o desejo no pequeno consumidor. De acordo com estudos feitos por Patrik Juslin, alguns elementos musicais quando inseridos na composição ou alterados, podem sugerir emoções no ouvinte. Para o pesquisador (2001, apud LISBOA e SANTIAGO, 2006), o compositor/executor pode “fazer uma pequena variação de tempo, usar a articulação staccato, ou usar grande variação de articulação, alto nível do som, timbre brilhante, ataques rápidos, fazer pequenas variações no andamento, contrastar notas curtas e longas, fazer uma pequena extensão de vibrato” para sugerir alegria na música. Dessa forma, o staccato realizado na peça original e mantido na execução da paródia, pode contribuir para deixar o jingle alegre e vivo, sugerindo uma relação positiva com a simbologia das ações do herói. Outro ponto que reforça essa possível relação é a alteração de intensidade para forte (f) no decorrer da música, sinalizada no quinto compasso da terceira linha do pentagrama (Figura 1). Essa intensidade também indica ao executor que a música, nesse trecho específico, deve ser tocada com mais força, mais intensamente que as demais partes. Ao sincronizar música e letra, pode-se notar que essa alteração de intensidade ocorre no trecho em que a letra menciona as principais fontes nutricionais do produto: lipídios, glicídios, protídeos, cálcio, ferro, fósforo, vitamina A. Ao recorrer à saga do herói, em que o ponto ápice acontece quando o elemento mágico externo o ajuda a vencer a adversidade de sua aventura, a maior intensidade na execução desse trecho pode ser associada a esse ponto áureo, contribuindo para a sugestão do simbolismo do herói, não apenas como argumento lógico-racional na letra, mas como argumento emocional na música, envolvendo o ouvinte em um clima que pode sugerir a vitória. 392 O jingle é interpretado por crianças que pedem o produto em coro (Me dá, me dá, me dá, me dá Danoninho, Danoninho já), como se atestasse o reconhecimento, por parte da criança, da importância do produto na trajetória de herói de suas próprias histórias, assim como Popeye e o espinafre, e essa característica também pode contribuir para persuadir e encantar as mães. Figura 1.˜Primeira parte da partitura da música Chopsticks, base para a paródia do jingle de Danoninho. 393 Considerações finais Os aspectos abordados neste artigo só foram passíveis de resultados por ter sido utilizada a semiótica da cultura como uma das bases teóricas, o que permitiu que os assuntos do tema - música, propaganda e filosofia pudessem ser colocados e analisados conjuntamente. A partir da articulação do referencial teórico com a análise do jingle Me Dá Danoninho, é possível reconhecer uma maneira de representação dos elementos simbólicos do herói e sua saga na peça publicitária sonora. Na letra, bem composta, fica mais fácil reconhecer a simbologia do herói dos contos de fadas e do forte Nietzschiano. Ela também consegue transmitir ao seu público-alvo (a mãe) os argumentos racionais necessários para que a persuasão aconteça. Da mesma forma que esses argumentos apresentados são racionais, eles também atingem o nível emocional do público, porque incitam aspirações comuns a toda mãe: ver o filho forte, saudável e inteligente. O texto musical reforça determinados aspectos do jingle que podem ser relacionados com o herói e seu simbolismo. A alegria que uma valsa transmite, a notação musical que acelera a música, a mudança de intensidade que sugere mais vivacidade e energia, são pontos que, somados à letra, contribuem para se possa fazer essa relação. O texto musical pode sugerir emoção, no caso a alegria, muito associada ao fim da saga vitoriosa do herói. Tal correlação só é possível porque o herói, sendo imagem simbólica do inconsciente presente em nós, faz reverberar o sentimento coletivo, atuando então, como atributo emocional, cujo papel é seduzir e encantar tanto a criança, quanto a mãe. Assim, consegue-se reconhecer o simbolismo do herói na letra e na música do jingle e observar de que maneira persuasão e encantamento aparecem nessa peça publicitária sonora. Referências BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 394 CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 13ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003. CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990. CARRASCOZA, João Anzanello. A evolução do texto publicitário: a associação de palavras como elemento de sedução na publicidade. 2ª ed. São Paulo: Futura, 1999. CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2005. DE LULLI. Chopsticks. Partitura disponível em: <http://pt.scribd. com/doc/2473709/Chopsticks-DeLulli>. Acessado em: 03 jun. 2012. FEIJÓ, Martin Cezar. O que é o herói. São Paulo: Brasiliense, 1984. JUSLIN, P. N; SLOBODA, J.A. (org). Music and emotion: theory and research. Oxford: Oxford University Press, 2001. LISBOA, Christian Alessandro; SANTIAGO, Diana. A utilização das emoções como guia para a performance musical. XVI Congresso da Associação Nacional de Pequisa e Pós-graduação em Música – ANPPOM. Brasília, ago./set. 2006. MACHADO, Irene. Escola de semiótica: a experiência de Tártu-Moscou para o estudo da cultura. Cotia: Ateliê Editorial, 2003. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A genealogia da moral. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d. PELLON, Bernardo. A teoria do contorno no estudo da emoção em música. Anais do SIMCAM4 - IV Simpósio de Cognição e Artes Musicais. São Paulo, mai. 2008. SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z: como usar a propaganda para construir marcas e empresas de sucesso. 3ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2003. SCHERER, Klaus R.; ZENTNER, Marcel R. Emotional effects of music: production rules. In: JUSLIN, P.N; SLOBODA, J.A. (org). Music and emotion: theory and research. Oxford: Oxford University Press, 2001, p.361-364. WAZLAWICK, Patrícia. Vivências em contextos coletivos e singulares onde a música entra em ressonância com as emoções. Psicologia Argumento, Curitiba, v. 24, n. 47, out./dez. 2006, p. 73-83. 395 Muito além do hit: considerações sobre a junk music Alex Kantorowicz Buck Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” - UNESP [email protected] Resumo Acreditando na potência do encontro interdisciplinar, o presente trabalho problematiza a escuta musical no Brasil atual apoiando-se em duas pesquisas recentes que compartilham do mesmo objeto de estudo, a saber, os efeitos da alimentação de produtos industrializados e a consequente pandemia de obesidade. O documentário brasileiro ‘Muito Além do Peso’ e o livro ‘Salt, Fat, Sugar: How de Giants of Food Hooked Us’ tratam da impotência da sociedade - em escalas macro (políticas governamentais) e micro (orientação familiar) – no enfrentamento as ações das grandes corporações do segmento alimentício que manipulam as taxas de sal, açúcar e gordura dos alimentos (processo denominado ‘otimização’) como estratégia de sedução, captura e manutenção de consumidores. A questão principal deste trabalho se faz a partir da observação de que um hit1 musical é elaborado com a mesma finalidade com que são sintetizados os alimentos industrializados: existe uma intenção comercial evidente, a de se efetuar e “contaminar” o maior número de pessoas. Em música, o sal, a gordura e o açúcar parecem ser substituídos por padrões tonais simples, métricas binárias, pulsos regulares, discursos curtos, letras fáceis de se decorar e compreender. Encontrados os denominadores comuns entre a maioria da produção de músicas comerciais pode-se especular sobre os efeitos da presença hegemônica deste tipo de música nos meios de comunicação de massa no Brasil, além da possível existência de efeitos maléficos à saúde quando da exposição a estas músicas grudentas e descartáveis que cotidianamente são lançadas pelos diferentes tipos de mídia. Palavras-chave hit1 musical, jingle, indústria musical, indústria alimentícia, junk music, junk food 396 Introdução: a Analogia entre junk food e junk music Duas pesquisas recentemente lançadas que tratam da produção e consumo de alimentos industrializados, nos servem como base para problematizar a escuta musical no Brasil atual. A primeira destas pesquisas (MOSS, 2013) nos apresenta em detalhes como se dão as estratégias dos químicos contratados pelas empresas do segmento alimentício para a elaboração dos diversos tipos de alimentos industrializados. A outra pesquisa, uma produção nacional em forma de vídeo-documentário (RENNER, 2010), trata dos efeitos do consumo em excesso desses produtos, sobretudo pelo público infantil, relacionando tais efeitos à pandemia de obesidade que se espalha por diversos países industrializados. Inúmeras doenças provocadas pelo sobrepeso - tais como diabetes, problemas no coração ou desnutrição - vêm aumentando as taxas de mortalidade e diminuindo a expectativa de vida das novas gerações. Trata-se de um problema muito complexo e sua raiz encontra-se na maneira como as empresas do segmento alimentício construíram seu modelo de negócio: encaram a sociedade como um coletivo de pessoas potenciais consumidoras; o objetivo destas empresas seria o de persuadir os consumidores a comprarem seus produtos e para isso investem muitos recursos em publicidade e em pesquisas para elaborar alimentos saborosos e viciantes. Com efeito, a junk food tomou conta das prateleiras de supermercados, lojas de conveniência, da grande maioria dos estabelecimentos destinados à comercialização de alimentos. O acesso a esse tipo de alimento tornou-se muito fácil. Tais produtos são baratos, prontos para o consumo, com sabores atrativos mas de qualidade questionável pois não possuem os valores nutricionais que o organismo humano necessita. Mas o que isso teria a ver com música? 397 Nossa percepção é a de que o segmento musical vêm enfrentando problemas muito semelhantes. Problemas, estes, que têm sua origem também no modelo de negócio industrial que sustenta toda a rede de produção e consumo de músicas, e estão diretamente ligados ao surgimento e estruturação das mídias: “Desde seu advento, a mídia formou uma dupla indissociável com a música. Não há filme, programa de televisão ou de rádio que não a tenha como elemento construtivo. É tão intensa a propagação da música pelos meios de comunicação que ela adquiriu ares de onipresença e, hoje em dia, considera-se essa presença como natural. No entanto, tal fenômeno surgiu somente no início do século XX... Certamente, as mídias contribuíram para que a música se tornasse uma das artes mais acessíveis e populares, em especial uma de suas modalidades: a canção.” (VALENTE, 2007) De meados do século XX, quando os aparelhos de televisão e rádio se popularizaram e passaram a ser prioridade nas compras das famílias, aos dias atuais, com a popularização dos aparelhos capazes de armazenar e reproduzir arquivos em MP3 e o aumento da acessibilidade à internet, o mercado que está envolvido direta ou indiretamente com a produção, difusão e consumo de música assumiu uma enorme importância econômica. Comporta as empresas que desenvolvem instrumentos musicais, instrumentos de escuta, as produtoras fonográficas (majors), os conglomerados de comunicação (rádio, TV), os estúdios de cinema e as empresas de publicidade. A música, a partir do século XX, transformou-se num grande negócio, e é hoje em dia um ativo que pode gerar lucro. As pesquisas que tratam do problema da obesidade relacionada ao excesso de consumo de junk food têm contribuído para revelar a impotência da sociedade - em escalas macro (políticas governamentais) e micro (orientação familiar) – no enfrentamento às ações das grandes corporações do segmento alimentício. A presente pesquisa pretende demonstrar como a indústria musical constrói sua rede sob as mesmas bases, utilizando os mesmos preceitos que a indústria alimentícia e comercializa 398 um produto sonoro tão vazio quanto o alimento empacotado pronto para o consumo. Daí surge a analogia proposta entre junk food e junk music. Na primeira parte do artigo estão contidas informações extraídas das duas pesquisas sobre alimentação supracitadas e as respectivas relações feitas com o segmento industrial da música. A segunda parte concentra-se na tarefa de definir os critérios e delimitar o repertório de músicas que fariam parte do que por aqui denomina-se junk music. 1. Sal, açucar e gordura: o processo de Otimização e a constituição de um alimento junk Substâncias essenciais ao organismo humano, o sal, o açúcar e a gordura são ingredientes indispensáveis para a constituição de um alimento industrializado de sucesso. Ao menos um desses três elementos assume papel protagonista entre os ingredientes de um alimento junk. Para que um hit do segmento alimentício seja produzido, este produto necessariamente passou por um processo denominado otimização - optimization (MOSS, 2013) . Tal procedimento pode ser dividido em duas etapas: a primeira consiste em criar algumas variações de uma fórmula de um produto, alterando apenas as taxas de sal, gordura ou açúcar do alimento em questão. Sobre o inventor dessa técnica, o jornalista escreve: “Ele manipula o alimento propriamente dito, brincando (playing) com formulas mágicas de sal, gordura e açúcar. [...] Moskowitz procura pela quantidade precisa de alguns ingredientes para conseguir o maior apelo possível entre os consumidores. Um pouco menos disso ou um pouco mais daquilo pode não alterar tanto o sabor e a textura de um alimento, mas a falha aparecerá nas vendas, quando até mesmo os menores erros podem causar a demissão de executivos das companhias alimentícias. [...] Utilizando matemática avançada e computadores ele cria os alimentos com apenas um objetivo em mente: criar o maior poder de vício.” (MOSS, 2013, p.28) Em seguida, o jornalista apresenta uma fala do próprio Moskowitz: 399 “As pessoas dizem: ‘eu sou viciado em chocolate’. Mas porque as pessoas se viciam em chocolate ou batatas chip? E como fazer para criar esse vício por esses e outros alimentos? [...] O que eu digo é, vamos deixar a cargo da ciência. Façamos trinta ou quarenta versões [do produto]. Ao fazê-lo veremos que gostamos de umas versões mais do que outras. [...] Os modelos matemáticos associam os ingredientes às respectivas percepções sensoriais que provocam, assim posso trabalhar um novo produto. [...] Você pode, então, construir um modelo matemático que te mostra exatamente o que está a seu controle e a resposta dos consumidores. Bingo. Você construiu um produto.” (MOSS, 2013, p.29) O processo de otimização não se encerra no laboratório. Na segunda etapa do processo, os químicos, já com as versões do produto, submetem-nas à prova. Um exemplo para ilustrar o processo é a descrição de como se deu o processo para a formulação do refrigerante ‘Cherry Vanilla Dr Pepper’: “Para encontrar o bliss point 4 (“ponto sublime”) foram necessárias sessenta e uma versões de formulas distintas – trinta e uma para a versão original e trinta para a versão dietética. [...] As formulas eram então apresentadas aos degustadores que precisavam ser cuidadosamente supervisionados para que fossem obtidos os resultados mais precisos. Vez em quando alguém gosta de mentir, geralmente para apressar o processo de degustação. Mas o sistema de avaliação de Moskovitz é especialmente desenhado para engajar os degustadores e convence-los da seriedade do teste. [...] Os escritórios parecem profissionais, equipados com computadores. [...] os participantes são bem pagos e o moderador os avisa que não podem se comunicar nem discutir sobre os produtos. Eles devem desligar seus telefones celulares. Aí sim começam a achar que a opinião deles contam.” (MOSS, 2013, p.41) Fica evidente, pelos depoimentos do criador do processo de otimização, que trata-se de um procedimento para criar um alimento que desperte interesse instantâneo no consumidor. O processo de otimização não prevê um acompanhamento a longo prazo para revelar os efeitos provocados 400 no organismo pelo consumo destes alimentos. Os entrevistados não são convidados, depois de meses consumindo o produto, a fazer avaliações físicas ou algo do gênero. O imediatismo de tal procedimento nos aponta para a intenção dos químicos em avaliar apenas, dentre as dezenas de variações da fórmula do produto, qual a que despertaria maior interesse entre os degustadores. E tal interesse, dos participantes da pesquisa, se daria apenas pelo sabor dos alimentos em questão. Daí que a preocupação dos profissionais em criar alimentos saborosos se confirma já que, aparentemente, a grande maioria das pessoas utiliza, como critério para escolha dos alimentos, apenas o sabor que manifestam, legando a segundo plano o valor nutricional e os efeitos maléficos à saúde que podem provocar: “Quem entre nós baseia suas escolhas dos alimentos pelo valor nutricional? As pessoas pegam os alimentos das prateleiras dos mercados baseadas em como vão senti-las em sua boca, os sabores que experimentar, sem falar nos sinais de prazer que seus cérebros vão descarregar como recompensa por terem escolhido os alimentos mais saborosos. Nutrição não é a prioridade na cabeça das pessoas na hora de escolher os alimentos mas sim o gosto, o sabor, a satisfação sensorial.” (MOSS, 2013, p.11) Ao tomarmos conhecimento do processo de elaboração dos alimentos industrializados e transportando-o para o universo o musical: quais seriam, então, as estratégias da indústria fonográfica para produzir músicas com apelo comercial? Quais os materiais sonoros e quais as técnicas, utilizadas pelos compositores e produtores musicais, para organiza-los em forma de músicas atrativas e, portanto, comerciáveis? Na segunda parte deste artigo, quando pretende-se apresentar os elementos e as técnicas composicionais para constituir a junk music, estas e outras questões, esperamos, serão respondidas. 401 1.2 Segunda Etapa: a distribuição Depois da elaboração do produto, outra estratégia das empresas, no intuito de alavancarem suas vendas e manterem suas marcas no topo como as mais vendidas, é apresentada com o nome extensões de linha – “line extentions” (MOSS, 2013). A ideia das extensões de linha apareceu num momento de crise das empresas de alimentos industrializados e surgiu da reflexão do mesmo cientista que criou o processo de otimização: “Moskovitz mergulhou profundamente na leitura e interpretação dos dados dos testes que fizera até então. Neles, e nos testes subsequentes, ele fez uma importante observação. Os dados mostravam que as pessoas tinham preferencias diversas por café, que poderiam ser divididas em três formas de torra: fraca, média e forte. Cada um dos pontos de torra era considerado perfeito pelos respectivos fãs. Esse era um conceito completamente novo.” (MOSS, 2013, p.35) Essa nova maneira de se pensar os produtos, de criar categorias que atendessem à várias demandas, pôde ser transposta para outros produtos. Marcas de refrigerantes como a “Coca-Cola” e a “Pepsi” enfrentavam dificuldades para manter os postos de primeiro e segundo lugares no mercado de refrigerantes norte-americano. Foi quando os produtos dietéticos, junto com os de vanilla, laranja e limão, começaram a aparecer sendo distribuídos conjuntamente com a fórmula original do produto, ocupando, fisicamente, os espaços que poderiam servir à concorrência: “As extensões de linha não foram concebidas para substituir os produtos originais. Pelo contrário, servem para trazer frescor e excitação à marca, e não raras as vezes acabam por fazer isso tão bem que as pessoas começam a comer ou beber mais o produto original também.” (MOSS, 2013, p.26) E conclui: “O objetivo principal de produção das extensões de linha é o de ganhar mais espaço nas prateleiras. [...] Adicionando 402 novas cores e novos sabores criam-se novos produtos que demandam mais espaço físico e quanto maiores as chances da marca ser vista pelos consumidores, maiores suas chances de ter seus produtos comprados.” (MOSS, 2013, p.28) Como pudemos constatar, as grandes empresas do segmento alimentício têm utilizado estratégias no sentido de excluir qualquer possibilidade de concorrência para com suas mercadorias. Criam pequenas variações de uma mesma fórmula, a partir da introdução de corantes e sabores criados artificialmente, e seduzem os consumidores com novas embalagens a comprar os “novos produtos”. Essa pratica configurasse como um problema já que interfere diretamente na possibilidade de escolha das pessoas: “as pessoas não podem fazer boas escolhas a não ser que existam boas escolhas para serem feitas. Em muitas de nossas cidades a comida não está realmente disponível [...] alimentos saudáveis estão menos disponíveis em muitos lugares.” (RENNER, 2010, 09’10’’) O segmento musical enfrenta problema muito semelhante. A hegemonia da forma-canção nas programações das emissoras de rádio e TV dificulta o acesso à práticas musicais diversas. No Brasil, de meados do século XX aos dias de hoje, a capacidade de difusão da indústria fonográfica aumentou exponencialmente. Sobretudo a partir da década de 70, quando a difusão por frequência modulada (FM) se expandiu à capacidade de cobertura de quase todo território nacional. A indústria fonográfica, principal financiadora das emissoras de rádio, é responsável pela definição do conteúdo musical a ser difundido. A estratégia é a de ocupar os espaços de tempo das programações oferecendo produtos sonoros aparentemente diversos mas que, essencialmente, possuem a mesma fórmula de composição: “é necessário levar em consideração que uma grande parte destas novidades deve-se, prioritariamente, apenas à estratégias de marketing. As majors não cessam de inventar novos produtos, a fim de realimentar seu sistema.” (VALENTE, 2007, p.89) 403 Os gêneros seriam, portanto, criados para ludibriar o consumidor a comprar um produto novo e diferente, quando na verdade são produtos com pequenas variações desenvolvidos a partir de uma formula já conhecida. A aparente multiplicidade de gêneros parece sucumbir diante de uma análise mais aprofundada, de uma escuta analítica focada apenas no objeto musical, que descarta todas as características extramusicais, imagéticas, que nos possibilitariam diferenciar um gênero musical de outro. Talvez o único parâmetro musical que nos auxiliaria na distinção destes gêneros seja o timbre. “Glenn Schellenberg, na universidade de Toronto [...] realizou uma extensão da minha pesquisa na qual ele tocava fragmentos de 40 canções famosas que duravam até um décimo de segundo, quase a mesma duração de um estalo de dedos. Os participantes recebiam uma lista com os nomes das canções que deveriam ligar ao excerto que ouviam. Com tão pouco tempo para ouvir cada fragmento, os participantes não poderiam se basear na melodia ou no ritmo para identificar as músicas. [...] Podiam apenas se basear no timbre, o aspecto sonoro aparente da canção. [...] Mesmo quando os excertos eram apresentados ao contrário [...] os participantes ainda eram capazes de reconhecer as canções.” (LEVITIN, 2006, pg. 151) Não por coincidência, frequentemente utiliza-se a analogia da cor para explicar o que seria o timbre de um som. O timbre é o parâmetro que nos serve para diferenciar um som de um piano em relação ao som de um clarinete, por exemplo. O ouvido humano é capaz, como aponta a pesquisa supracitada, de diferenciar pequenas variações timbrísticas, é capaz de detectar detalhes sutis do campo sonoro. O timbre, enquanto aspecto aparente de um som, servindo como principal critério para diferenciar um gênero musical de outro, nos alude à prática das empresas do segmento alimentício que utilizam, como grau de variabilidade entre as extensões de linha de um produto e sua fórmula original, apenas a cor e o sabor dos alimentos. Apresentados ao público como gêneros musicais distintos, brega, arrocha, por rock, sertanejo universitário, pop romântico e tantos outros, seriam estilos diferentes de um só gênero: junk music. 404 Fato é que, no Brasil existem hoje três mil novecentas e quarenta emissoras de radio que se dividem entre difusão por frequência modulada (FM) e por amplitude modulada AM (não estamos incorporando aos dados as rádios comunitárias e as webradios).5 Dentre estas emissoras de rádio, apenas nove dedicam sua programação exclusivamente à música erudita6, o que representaria uma porcentagem de 0,23% de participação na programação cotidiana das rádios. As emissoras que se dedicam a difundir música instrumental e jazz somam, ao todo, dez emissoras,7 o mesmo grau de representatividade das emissoras dedicadas à música erudita, 0,23%. Somados os dois dados temos 0,46% de emissoras que se dedicam à difusão de músicas instrumentais, que fogem ao formato canção. Se fizéssemos uma estimativa entre quantos programas, dentro da programação destas emissoras, se dedicam a divulgar músicas de gêneros contemporâneos tais como música erudita dos séculos XX e XXI, música eletroacústica, improvisação livre, jazz contemporâneo, free jazz e tantos outros, esta porcentagem diminuiria próxima a zero. Os efeitos dessa presença hegemônica das canções nos veículos de comunicação de massa e, especificamente, a forte presença do gênero junk music, já podem ser detectados: “ “Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi, Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso tempo não existe para a classe culta brasileira.” Esse diagnóstico preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes. Ele indicava uma estranha ausência no “sistema nacional das artes”: a ausência de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas. Não se trata de reeditar aqui uma querela bizantina entre música popular e erudita, mas é inegável que algo acontece quando um país é incapaz de ver, em uma música que não seja a popular, um momento fundamental de sua reflexão cultural. Da mesma forma que algo de peculiar aconteceria se um país reduzisse seu sistema 405 literário à produção de crônicas. Talvez seja o caso de se perguntar se a ideologia cultural nacional não precisaria alimentar a visão de que música é questão de expressividade, processo produtivo que brota quase “naturalmente”. Linguagem prisioneira de uma gramática dos sentimentos que poderia ser codificada no tempo de uma canção. Mas o que significa uma ideologia cultural para a qual, fora da forma-canção, só haveria a ausência da imediaticidade da vida? Ou por que nossa ideologia cultural prefere ignorar tudo o que não se submete às amarras da forma-canção?” (SAFATLE, 2009) Evidentemente que gêneros como jazz, música instrumental brasileira, improvisação livre, live coding, música erudita contemporânea, música eletroacústica e tantos outros gêneros, tão diversos em suas propostas estéticas, são ofuscados pela forte ocupação imposta pela indústria fonográfica. Com efeito, não raras as vezes, um ouvinte com pouco contato com esses diversos tipos de repertório não tem condições de criar diferenciações entre os mesmos: soam um amontoado de sons desorganizados, caóticos. Daí o paradoxo criado pelo cultivo de uma escuta centrada em uma única maneira de se fazer música (a forma-canção): o ouvinte, expert em diferenciar os diversos estilos de junk music – sertanejo universitário, pop rock, arrocha etc. – não tem recursos para lidar com a real multiplicidade de gêneros musicais quando a encontra. Não por acaso o interesse por parte do grande público em consumir músicas instrumentais, composições que não se “submetem às amarras da forma-canção”, é ínfimo. 1.3 Jabá e Tô Contigo: Fidelização dos pontos de venda. Por se tratarem de práticas comerciais ilegais é muito difícil encontrar dados concretos que comprovem a participação das empresas nesses tipos de transações. Fato é que, depois do alto investimento de recursos no processo de elaboração do produto (otimização), e da criação das extensões de linha - que visam atender aos gostos mais variados além de ocupar os espaços das prateleiras impedindo a entrada de produtos da concorrência - as empresas encontraram meios para conseguir a garan406 tia de que todo esse processo e investimento de recursos não tenham sido em vão. A prática é chamada de fidelização de pontos de venda, e foi apelidada como “Tô Contigo”. Esse programa de fidelização consiste, basicamente, em um acordo entre as empresas produtoras/fornecedoras e os pontos que dão vazão a seus produtos, os revendedores. Neste acordo as empresas fornecedoras oferecem diversos benefícios em troca de exclusividade de compra e venda de seus produtos. Um exemplo, no mercado de bebidas, aconteceu com a multinacional AMBEV, detentora de 70% do mercado cervejeiro nacional (CABRAL, 2012). A empresa foi multada em 352,7 milhões de reais pela confirmação da prática apelidada “Tô Contigo”. O acordo envolvia bares, restaurantes, mercearias e supermercados: “O programa “Tô Contigo” virou alvo de investigação da Secretaria de Direito Econômico (SDE) em 2004, após denúncia da cervejaria Schincariol. Pelo programa, os estabelecimentos recebem pontos de acordo com as quantidades de cervejas adquiridas da AmBev. A bonificação é então trocada por prêmios, como descontos nas compras de novos produtos. Nos contratos e no material de propaganda do programa, a AmBev afirma não haver exigência de exclusividade ou redução de vendas das marcas rivais. No entanto, a SDE apurou - entrevistando proprietários de estabelecimentos varejistas - que, na prática, as regras do programa não eram claras e os agentes de venda da AmBev faziam sugestões de retaliações, caso não fosse dada a exclusividade nas vendas ou não se reduzisse o espaço para os concorrentes.” (SOBRAL, 2009, grifo nosso) Em alguns casos as empresas fornecedoras de produtos chegam a equipar o estabelecimento comercial que se beneficia com novos copos, porta-copos, mesas, cadeiras, geladeiras, e, em troca, os beneficiados só podem comprar e vender produtos da empresa que os ajudou. Acordo parecido acontece entre as grandes empresas da indústria fonográfica e as emissoras de rádios. A comercialização do espaço na programação das rádios, igualmente uma prática ilegal de comercio, foi apeli- 407 dada no Brasil como jabá. Existem escalas de preços que são estipulados de acordo à quantidade de vezes que determinada música será difundida, de acordo com o tempo de cada música e de acordo com os horários das difusões. Os valores variam também de emissora para emissora, cada emissora cria sua tabela de acordo com a importância que assume no mercado (importância, essa, mensurável pelo índice de acessos que cada emissora possui). Em seminário organizado pelo Ministério da Cultura em 2008, o maestro Amilson Godoy fez uma dura crítica à prática do Jabá apresentando dados sobre como a presença hegemônica de músicas produzidas pelas grandes gravadoras nos principais meios de comunicação interferem em todo o resto da cadeia produtora de música: “O jabá é uma prática nefasta. A imoralidade desse negócio atinge não só os músicos autoprodutores e outros elementos da cadeia produtiva, mas também toda sociedade, refém da escolha de poucos que utilizam do poder desse capital para girarem seus negócios, na maioria das vezes despreocupadas com a questão cultural. [...] As gravadoras brasileiras atuais, somadas aos autoprodutores, já representam mais de 80% da produção fonográfica brasileira, mas com um sério problema: dominam apenas 6% da execução pública nas rádios. Dizem que reside aí uma das práticas do Jabá, pois as grandes gravadoras, favorecidas que são pelos altos recebimentos de Direitos Conexos e Incentivos Fiscais, reaplicam parte desses recursos no próprio organismo que as beneficia, ou seja, na compra das programações das rádios. [...] Para que as novas gerações musicais tenham espaço nas Rádios e TV. Para que se permita a livre concorrência da produção musical. Para que não se permita mais o direcionamento criminoso do gosto musical, nas compras das programações pela indústria cultural da música, prática considerada como “jabá”. Para que este costume não se perpetue no nosso País. Que o Jabá seja considerado, no Brasil crime contra o patrimônio e a identidade cultural.” (GODOY, 2008) São muitas, portanto, as coincidências entre as práticas das empresas em ambos os segmentos industriais, de alimentos e de músicas. O mo408 delo de negócio parece ser o mesmo. Mas quanto ao produto que comercializam: haveriam semelhanças também entre os alimentos junk e as musicas industrializadas? Seria possível adotarmos uma terminologia como junk music para descrever esse repertório musical? Em resposta afirmativa, quais os critérios possíveis de serem adotados para identificar uma música junk? 2. O que é Junk Music? A partir de uma compilação de definições da expressão junk food, obtemos: “alimento altamente calórico, atrativo ou agradável que possui pouco valor nutricional, tipicamente produzido em porções empacotadas com pouca ou nenhuma necessidade de preparo.” A palvra junk, sem ser associada à outra qualquer, significa: “Artigo velho ou descartável, considerado inútil ou de pouco valor.” (OXFORD, 2. Ed.) O termo junk é, portanto, frequentemente associado a outro no intuito de (des)qualifica-lo, de criar uma dicotomia entre, por exemplo, food e junk food, science e junk science. Nossa intenção é de propor essa terminologia para criar uma cesura também no segmento musical. Para tanto, inicialmente será necessário definir aspectos gerais do repertório de músicas junk. Por possuir forte ligação com o verbo, a junk music pode ser considerada uma subcategoria da forma-canção. A partir de uma compilação de definições sobre a Canção foram extraídos: “oito elementos a ela associados com maior frequência: (1) o canto / (2) um texto poético / (3) geralmente acompanhado por instrumento (4) dentro de uma determinada forma musical / (5) de duração geralmente breve / (6) com certa interação entre musica e poesia / (7) relacionado com diversos contextos, como dança, trabalho, acalanto, reza / (8) de âmbito erudito e popular.” (VALENTE org. VAZ, 2007, p.13) Sendo a junk music um repertório que está contido dentro dessa categoria musical, destacamos e adaptamos algumas dessas oito características afim de descrever mais adequadamente o repertório musical junk: (1) 409 O canto / (2) um texto não-poético / (3) acompanhado por instrumento acústico, na maioria das vezes eletrônico (o que barateia o custo de produção) / (4) há sempre um ritmo organizado sobre pulsos regulares / (5) dentro de uma determinada forma musical / (6) de duração breve / (7) relacionado com diversos contextos, como dança, shows e entretenimento / (8) de âmbito popular. 2.1 Problemas da terminologia Logo de início nos deparamos com dois problema básicos que dificultam a adoção imediata da terminologia: 1) Se os elementos primários dos alimentos junk, de onde provém a analogia, podem ser analisados em laboratórios e mensurados a ponto de sabermos que de fato têm alto índice calórico e pouco valor nutricional; se comprovamos que o consumo destes alimentos não traz benefícios ao organismo, pelo contrário, o consumo em excesso dos mesmos é considerado uma das principais causas das epidemias de obesidade3; o mesmo não podemos dizer acerca da junk music. Não podemos comprovar nem a existência tão pouco a qualidade dos possíveis efeitos maléficos de se escutar o repertório musical em questão excessivamente. Se tais efeitos existem, definitivamente não são facilmente detectados como são as alterações corporais, na forma de sobrepeso, provocadas pelo excesso de consumo de junk food. Tratar-se-ia, portanto, de um problema invisível. 2) Problema maior talvez esteja em definir os limites desse repertório: o que seria música e o que seria música junk? O que ou quem definiria essas fronteiras? Uma instituição? O governo? A academia? Como medir o valor ‘nutricional’ de uma música? Do que consiste esse valor? O que para uns pode ser considerado ‘lixo’, descartável, inútil, para outro pode ser extremamente útil. Entramos no delicado campo da subjetividade, do gosto musical. 410 Com relação ao primeiro problema - a dificuldade em se comprovar a existência de efeitos maléficos ao organismo humano produzidos pela escuta excessiva de junk music – podemos pensa-lo a partir da questão proposta pelo musicólogo Emmanuel Bigand: “sabe-se que a música modifica a organização cerebral de quem a ouve e a pratica intensamente, com efeitos positivos sobre muitas capacidades cognitivas. Mas todo tipo de música é igualmente capaz de estimular as atividades intelectuais?” (BIGAND, 2007, p. 73) A pesquisa desenvolvida pelo musicólogo procurou investigar os efeitos que as músicas produzidas pelos compositores de música contemporânea erudita, em especial as composições dodecafônicas e serialistas, provocam no cérebro. Um dos apontamentos da pesquisa nos mostra que o simples contato com sons organizados por outras técnicas, diferentes das consolidadas historicamente pelos sistemas tonal e modal, influenciariam beneficamente o cérebro humano: “O estudo revelou que os ouvintes compreendem de modo implícito algumas transformações efetuadas em obras seriais. Isso tende a provar que a mente humana tem, sob certas condições, a capacidade de aprender gramáticas seriais. Sem dúvida, o ponto mais importante é que essa aprendizagem se processa de forma implícita. Em outras palavras, o ouvido e o cérebro musical adaptam-se progressivamente às estruturas complexas da música contemporânea e do sistema serial, sem que o sujeito tenha consciência disso. Assim, mesmo se o ouvinte ficar muito desconcertado com este tipo de música, seu cérebro assimila a organização dessa concepção musical e, assim, modifica seus hábitos de escuta. [...] Poderíamos então concluir que o cérebro humano está pronto para aceitar o desafio que lhe foi lançado pela música contemporânea? A resposta é positiva. [...] Habituar-se a novos sistemas musicais leva tempo: em 1600 Givanni Maria Artusi, em L’Artusi, Overro delle Imperfettione, definiu como “insuportáveis ao ouvido” os madrigais de Monteverdi. Se nosso cérebro consegue pouco a pouco assimilar as estruturas sonoras que ontem nos pareciam complexas demais, ou realmente impossíveis de ouvir, não se poderia dizer que a música modificou nossa mente fazendo- 411 nos descobrir novos horizontes sonoros? É prematuro afirmar que “o efeito Mozart” será em breve completado por um “efeito Stockhausen”, mas pode-se pensar que a assimilação dessas novas linguagens musicais conduz nosso cérebro em direção a novas formas de pensamento e de representação do mundo, que não teríamos desenvolvido se tivéssemos permanecido apegados a nossos hábitos perceptivos e cognitivos. Aliás, não teria a arte a função essencial de estimular nossos sistemas de percepção para conduzi-los sempre um pouco mais adiante, como se a criação artística fosse um motor da evolução do cérebro humano?” (BIGAND, 2007, p. 76-77, grifo nosso) Portanto, mesmo que seja impossível, no presente momento, a comprovação cientifica da existência de efeitos maléficos produzidos no cérebro pelo consumo de junk music, é possível diagnosticar um problema em como a sociedade brasileira vem lidando com o meio musical: a falta de acesso à linguagens musicais que fujam das “amarras da forma-canção” impede que grande parte da sociedade tenha contato e, consequentemente, possa incorporar em suas práticas diárias de audição músicas que trariam benefícios ao organismo, práticas de escuta que auxiliariam no desenvolvimento do cérebro humano. A pouca representatividade nos meios de comunicação de massa de gêneros musicais contemporâneos como música eletroacústica e erudita contemporânea, jazz, free jazz, música instrumental brasileira e improvisação livre, para citar alguns, é um indício de que a indústria cultural tem sido eficiente na ocupação dos espaços das mídias. Já com relação ao segundo problema – o de definir critérios objetivos, que transcendam o campo subjetivo do gosto musical para identificarmos músicas junk – propomos nos apoiar em alguns conceitos, dentro do campo investigativo da estética, do autor italiano Umberto Eco. Sobre a dialética entre a cultura de massa e a vanguarda, o autor propõe dois tipos de discurso, o discurso aberto e o discurso persuasivo, e os define da seguinte maneira: 412 “O discurso aberto, que é típico da arte, e da arte de vanguarda em particular, tem duas características. Acima de tudo é ambíguo: não tende a nos definir a realidade de modo unívoco, definitivo, já confeccionado. [...] O discurso artístico nos coloca numa posição de “estranhamento”, de “despaisamento”; apresenta-nos as coisas de um modo novo, para além dos hábitos conquistados, infringindo as normas de linguagem, às quais havíamos sido habituados. As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luz estranha, como se a víssemos agora pela primeira vez; precisamos fazer um esforço para compreendê-las, para tornalas familiares, precisamos intervir com atos de escolha, construirnos a realidade sob o impulso da mensagem estética, sem que esta nos obrigue a vê-la de um modo predeterminado. Assim a minha compreensão difere da sua, e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos, e para cada um de nós é uma continua descoberta do mundo. A segunda característica do discurso aberto é que ele me reenvia antes de tudo não às coisas, mas ao modo pelo qual ele as diz. O discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para a imaginação, para a inteligência. Por isso a grande arte é sempre difícil e sempre imprevista, não quer agradar e consolar, quer colocar problemas, renovar a nossa percepção e o nosso modo de compreender as coisas.” (ECO, 1968, pg. 280, grifo nosso) O discurso persuasivo seria aquele que: “ao contrário, quer levar-nos a conclusões definitivas; prescrevenos o que devemos desejar, compreender, temer, querer e não querer. [...] o discurso persuasivo tende a nos fazer chorar, a estimular nossas lagrimas, como pode acontecer com uma fotonovela. [...] quer convencer o ouvinte com base naquilo que ele já sabe, já deseja, quer ou teme. O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniões e convenções. Não lhe propõe nada de novo, não o provoca, mas o consola.” 413 O discurso persuasivo seria próprio da cultura de massa e, nesse sentido: “as mensagens de massa são mensagens inspiradas numa ampla redundância: repetem para o público aquilo que ele já sabe e aquilo que deseja saber, [a cultura de massa] difunde, por assim dizer, sobre o universo uma confortável cortina de obviedade.” (ECO, 1968, p. 281, grifo nosso) O valor nutricional de uma música se encontraria, portanto, no efeito estético que é capaz de suscitar. E tal efeito seria possível apenas a partir da organização não convencional das estruturas. O gênero da junk music, por seu lado, pertenceria à segunda categoria de discurso proposta pelo autor italiano: o discurso persuasivo. 2.2 Padrões tonais, métricas binárias e letras apreensíveis: constituindo a junk music A música junk se enquadraria neste tipo de discurso, o persuasivo, por se tratar de um discurso musical criado a partir de redundâncias, da recorrente utilização de materiais e das mesmas técnicas para organizá-los. Tivéssemos de dividir os planos estruturais que compõe uma canção teríamos: • 1º plano - Melodia • 2º plano - Texto (letra) • 3º plano - Acompanhamento instrumental No primeiro plano da estrutura temos, então, uma sequência de notas (alturas definidas), organizadas sucessivamente no tempo. A grande maioria do repertório de canções veiculadas pelos diversos tipos de mídia, no Brasil, é composto por melodias tonais. O que vale dizer que, quando foram elaboradas, obedeciam à regras de probabilidade particulares da gramática tonal. As notas são organizadas de modo a fazer sentido dentro desse sistema de referencia: 414 “a adesão a uma convenção probabilista e a certa redundância concorrem para tornar claro e unívoco o significado da mensagem musical. A regra de probabilidade é a da gramática tonal, em cujos moldes a sensibilidade do ouvinte ocidental pós-medieval é habitualmente educada: nela, os intervalos não constituem simples diferenças de frequência mas implicam na introdução de relações orgânicas dentro de um contexto. O ouvido escolherá sempre o caminho mais fácil para captar essas relações, segundo um índice de racionalidade” (ECO, 1968, p. 164) Os compositores de músicas junk se utilizam desta mesma gramática para construírem suas melodias. Mas o que torna sua produção particular é o fato de construírem o material melódico a partir de repetições de pequenos fragmentos, pequenos padrões tonais estrategicamente elaborados para “grudar”8 em nossas mentes. Esses padrões tonais são facilmente apreensíveis e memorizáveis justamente por seguirem os índices de racionalidade e obviedade que a gramática tonal permite. O ouvido e o cérebro se satisfazem com tamanha facilidade em processar a informação, característica esta fundamental para o sucesso de uma música junk. Os padrões tonais configuram-se, portanto, como um dos três elementos básicos para a elaboração de um produto sonoro comercial. Como segundo plano de estruturação do discurso musical da Canção temos o material verbal, a letra da música. Material, este, que também é construído a partir de uma gramática, a da língua portuguesa no caso das canções brasileiras. A estratégia dos compositores-letristas, neste caso, é construir frases que produzam significados também unívocos, e que sejam, tal como o material melódico, apreensíveis numa primeira escuta. “A teoria da informação, em suas formulações no campo matemático [...] fala-nos de uma diferença radical entre “significado” e “informação”. O significado de uma mensagem [...] se estabelece na proporção da ordem, da convencionalidade e, portanto, da “redundância” da estrutura. O significado torna-se tanto mais claro e inequívoco quanto mais observo as regras de probabilidade, as leis organizativas 415 prefixadas – e reiteradas através da repetição dos elementos previsíveis. Em algumas condições de comunicação tem-se em mira o significado, a ordem, o óbvio: é o caso da comunicação de uso prático, da carta ao símbolo visual de sinalização rodoviária, que visam ser compreendidos univocamente, sem possibilidades de equívocos e interpretações pessoais.” (ECO, 1968, p.162, grifo nosso) A maneira com que as palavras são escolhidas e dispostas no tempo obedece rigorosamente à lógica racional do discurso, à lógica do significado. Não há ambiguidade na interpretação do texto, não existem rupturas de linguagem. O conteúdo das letras não deixa margens à segundas interpretações. Recursos poéticos jamais são utilizados para construir as letras deste gênero de canção. Tais recursos seriam de outra ordem, pertenceriam à outra forma de comunicação, a artística: “quanto mais a estrutura se torna improvável, ambígua, imprevisível e desordenada, tanto mais aumenta a informação. Informação entendida, portanto, como possibilidade informativa, incoatividade de ordens possíveis. [...] É o caso da comunicação artística e do efeito estético [...] [quando] devemos buscar o valor da informação, a riqueza ilimitada dos significados possíveis..”(ECO, 1968, p.163) No terceiro plano de estruturação do discurso musical junk, temos o acompanhamento instrumental, que poderia ainda ser subdividido em outras duas camadas: a harmônica e a rítmica. Com relação à primeira camada, a harmônica, seria necessário acrescentar apenas que está sempre subjugada ao padrão tonal que acompanha. Não há choque na relação entre os acordes e as funções harmônicas que a melodia tonal suscita. As progressões harmônicas também obedecem a linearidade e previsibilidade do discurso melódico tonal. Não raras as vezes, em alguns estilos de junk music, o acompanhamento harmônico é suprimido e a canção é composta apenas por padrões tonais organizadas sobre um ritmo. 416 O plano de estruturação rítmica merece maiores considerações pela importância que assume no gênero musical por aqui investigado. O pulso regular é indispensável para a constituição de uma canção junk e se caracteriza pela repetição de estímulos em intervalos idênticos de tempo. É uma maneira rígida de organizar os pulsos e obedece ao grau mais elevado das leis de probabilidade: a repetição idêntica. Essa maneira metronômica de organizar o tempo musical, alude ao universo das máquinas, do relógio e da produção em escala industrial: repetitiva, eficiente e ininterrupta. No gênero de músicas junk esses pulsos regulares são organizado em métricas binárias, o que significa dizer que a cada dois pulsos um é acentuado. E esse padrão é repetido do começo ao fim da música, sem alterações. É, talvez, a forma de organização métrica mais elementar que existe. Durante todo o discurso de uma música junk sua métrica e seu ritmo mantém-se intactos. Essa se configura como uma das principais característica do gênero junk de música pois é a responsável por suscitar movimentos do corpo, por estimula-lo a dançar. Tal como o fez o jornalista Michael Moss, ao revelar as três substâncias indispensáveis a um hit do segmento alimentício (o sal, o açúcar e a gordura), nos parece termos encontrado os três elementos primários que são comuns à todo o repertório produzido e comercializado pelas grandes empresas do segmento musical: • Padrões tonais facilmente apreensíveis (acompanhados ou não por progressões harmônicas) • Letras facilmente compreensíveis • Pulsos regulares organizados em métricas binárias Estes seriam os elementos primários, o material musical utilizado pelos compositores para criar os produtos sonoros que serão futuramente “empacotados” para comercialização. 417 A técnica de organização do material que subjaz todo o processo de elaboração do produto sonoro junk está em encontrar a “forma mais simples de disposição segundo as leis da probabilidade, segundo a forma mais elementar de redundância, que é a repetição simétrica dos elementos.” (ECO, 1968, p.167) O compositor concatena seus elementos afim de criar estruturas cada vez maiores. Os padrões tonais, geralmetne motivos musicais, são organizados em frases que, por sua vez, formam estruturas maiores, os períodos musicais. Cada uma destas estruturas foi construída seguindo a lógica da redundância: repetição simétrica dos elementos. As formas musicais criadas a partir dessa técnica resultam quase sempre em formas binárias acrescidas de um refrão (seção A + seção B + refrão). Já com relação ao tamanho da musica, ou o espaço de tempo que esta ocupa, tais como os alimentos junk, que são empacotados e oferecidos prontos para o consumo nas prateleiras dos supermercados, o repertório de junk music já é concebido para se adequar aos espaços onde serão distribuídos: emissoras de rádio, TV etc. Pudemos constatar que, por vezes, esses espaços na mídia são comercializados e dois dos fatores que alterariam o preço pela veiculação nas programações são, justamente, a quantidade de tempo necessário para difundi-la do começo ao fim e o número de vezes que a música será repetida durante a programação. Esses fatores atravessam diretamente o processo de elaboração do produto que, parecem ter, em média entre dois a cinco minutos. 2.3 Outras considerações sobre a junk music Outra condição sinequanon para a música tornar-se hit é a repetição da mesma na programação das emissoras de rádio e televisão. Quanto mais determinada música for repetida durante as respectivas programações se possível em diferentes tipos de mídia - maiores suas chances de tornar-se hit. A repetição, como já apontamos, é um procedimento caríssimo ao hit, está presente também na sua estrutura interna. Muito provavelmente o que o elevará à tal condição, de música de sucesso, é um bom refrão. O 418 refrão é a seção da música que será repetida diversas vezes, é o artifício que o compositor utilizará para que a música seja memorizada. O bom refrão seria aquele que atinge esse objetivo: o de “grudar” na cabeça das pessoas. O fato de não haver espaço para qualquer tipo de improvisação reforça o caráter comercial desse tipo de repertório já que, um produto de qualidade, bem acabado e pronto para o consumo, não pode conter erros. A improvisação têm como principal característica a convivência com o risco, com a incerteza do que se sucederá. Nesse sentido a junk music é, tal como a junk food, uma música pronta para o consumo. As industrias fonográfica e publicitária são as grandes produtoras desse gênero musical. São músicas elaboradas desde o início com propósitos comerciais, objetivando, de alguma maneira, retorno lucrativo. Esses produtos em forma de sons, estão totalmente imersos à lógica do sucesso-fracasso e estão sempre a atender (ou até mesmo a criar) as demandas do mercado. Apesar de dividirem esse mesmo propósito, há uma distinção importante entre músicas publicitárias – ou jingles – e as músicas lançadas pelo mercado fonográfico. Geralmente um jingle é elaborado com a finalidade se efetuar no indivíduo para transmitir e imprimir uma mensagem que está atrelada à empresa que pagou um compositor para cria-lo. A música candidata à hit seria um fim em si mesma, ela é o próprio produto a ser perpetuado e por isso seu efeito pode ser fugaz, sazonal e momentâneo. Essa é uma estratégia também utilizada pela indústria alimentícia: criar produtos enjoativos, para que os consumidores sintam necessidade de novidades. A sazonalidade é uma poderosa característica do hit, é fundamental para a continuação da linha de produção da indústria fonográfica. O jingle, por outro lado, justamente por ter essa finalidade de imprimir e associar-se a uma marca, pode ter uma vida mais duradoura. 419 2.4 O que não seria junk music? Todas as considerações supracitadas sobre o gênero excluiriam deste repertório todo e qualquer gênero de música que seja considerado de raiz, folclórica, étnica, que nasça espontaneamente de um segmento da sociedade, que não tenha surgido a partir de motivações meramente comerciais mesmo se utilizando, muitas vezes, dos mesmos elementos primários que as do gênero em questão – padrões tonais, progressões harmônicas convencionais, letras facilmente apreensíveis e pulsos regulares. Não raras as vezes, percebendo o apelo comercial destes gêneros que nascem espontaneamente do corpo social, o que acontece é a apropriação, por parte das empresas fonográficas, que lançam no mercado suas versões industrializadas, suas versões junk. Aqui no Brasil esse fenômeno aconteceu algumas vezes. As duplas sertanejas de raiz, por exemplo, tradicionalmente acompanhadas por violas caipiras, ganharam suas versões pop na década de 90. Uma explosão de duplas subiam aos palcos acompanhados de instrumentos do universo da música pop internacional: bateria, contrabaixo, guitarras com efeitos de distorção, teclados e cantoras de fundo. Ainda hoje o estilo sertanejo de junk music é um dos mais cultuados no Brasil. Existe, ainda, uma outra categoria de canção na qual os compositores-letristas utilizam os mesmos recursos técnicos de estruturação do discurso musical que os da junk music, mas investem em procedimentos poéticos para a formulação das letras, o que os excluiriam do gênero junk. São os casos de compositores como Arnaldo Antunes, Lenine, Zeca Baleiro, Caetano Veloso que simplificam as estruturas musicais ao máximo, legando a linguagem musical a segundo plano, e também se valem de formações instrumentais do universo pop internacional. A preocupação destes artistas parece estar em suas criações poéticas. 420 Conclusão Há indícios de que música e comida tenham em comum muitas outras características. Para citar um exemplo, recentes pesquisas revelaram que escutar músicas prazerosas fazem com que o cérebro libere uma substância chamada dopamina (SALIMPOOR: 2009), a mesma liberada quando consome-se alimentos gordurosos e doces, ou quando ingere-se drogas como a cocaína. Outras pesquisas (SACKS: 2007, BENNET: 2002) nos apontam para a existência de um aparato específico de memória de longa duração no cérebro humano, específico para o armazenamento de informações musicais. Junte-se a esse fato a enorme capacidade que esses padrões tonais, tão caros ao gênero junk, têm em grudar em nossas mentes: estaríamos diante de um problema de saúde? O fato de carregarmos conosco, durante anos, um repertório de músicas descartáveis – jingles de empresas, musicas natalinas, hits musicais – traria algum malefício ao funcionamento do cérebro? Algo como uma obesidade musical? Frequentemente, profissionais ligados ao segmento alimentício utilizam o termo empty calories, ou “calorias vazias” (RENNER, 2010) para designar a matéria prima dos alimentos junk. São alimentos esvaziados do que um alimento têm de essencial: capacidade de nutrir o organismo humano. Uma outra terminologia já consolidada e também presente nos dicionários de língua inglesa é Junk Science: “teorias não testadas ou não comprovadas, apresentadas como fatos científicos”. (OXFORD 2.ed.) Também neste caso existe um esvaziamento do que a ciência tem de essencial: seu rigor metodológico. Por tudo isso acreditamos ser pertinente a adoção do termo junk para designar esse repertório de músicas industrializadas, de músicas vazias. Esse esvaziamento se daria pela ausência do que uma música tem de essencial: seu valor artístico e seu efeito estético. 1 Hit é um termo inglês que significa obter sucesso, ou tornar-se popular. No caso do mercado musical as duas noções se confundem já que o sucesso de um ‘single’ (uma música) é justamente tornar-se popular. Existem rankings semanais que medem a capacidade de venda dos ‘singles’. O ranking mais respeitado é o da revista Billboard. 421 2 O termo junk music já existe, foi criado pelo compositor e percussionista Donald Knaak, no entanto com conotação totalmente diferente da proposta neste artigo. Para o compositor, que se auto intitula ‘junkman’, junk music é aquela produzida a partir de instrumentos construídos por materiais cem por cento recicláveis. http://www.junkmusic.org/ 4 O bliss point seria o objetivo final do processo de otimização. É o ponto em que o produto atinge “a quantidade de doçura precisa – nem mais nem menos – que torna a comida ou bebida mais prazerosos” (MOSS, 2013), em outras palavras, atinge sua máxima potência comercial. A palavra bliss têm o seguinte significado, de acordo com o Oxford American Dictionary: “bliss - alegria perfeita […] um estado spiritual abençoado, alcançado tipicamente após a morte”. Traduzimos bliss point como “ponto sublime”. 5-6-7 8 Todos estes dados foram extraídos do site http://www.radios.com.br. Referência ao termo ‘sticky music’ utilizado por Oliver Sacks para descrever músicas constituídas por padrões tonais e que recorrentemente surgem como alucinações musicais em vários de seus pacientes. Dentre os gêneros que mais aparecem como causadoras desse tipo de sintoma estão as canções natalinas. Referências bibliográficas • Livros Bennet, Sean. 2002. Musical Imagery repetition, Cambridge: Cambridge Univesity. Moss, Michael. 2013. Salt, Fat, Sugar: How the Food Giants Hooked Us. New York: Random House. Eco, Umberto. 1968. A Obra Aberta, São Paulo: Perspectiva. Sacks, Oliver. 2007. Musicophilia: Tales of music and the Brain. New York, Toronto: Alfred A. Knopf. Holbrook, MB; Schlinder, RM. 1989. Some Exploratoty Findings in the Developments of Musical Taste, Journal of Consumer research, vol. 16, The University of Chicago Press. Levitin, Daniel J. 2006. This is your brain on music : the science of a human obsession, Dutton. Likkannen, LA. 2010 Inducing involuntary musical imagery: an experimental study. Finland. Salimpoor, VN.; Benovoy, M.; Longo, G.; Cooperstock, J.; Zatorre, RJ. 2009. The Rewarding Aspects of Music Listening Are Related to Degree of Emotional Arousal. PLoS ONE 4(10): e7487. doi:10.1371/journal.pone.0007487. Valente, Heloisa (organizadora); VAZ, Gil N…[et al.] 2007. Música e Mídia: novas abordagens sobre a canção, São Paulo: Via Lettera / Fapesp. • Dicionários OXFORD. The New Oxford American Edition - 2nd edition, New York: Oxford university Press, 2005. WEBSTER, M. Merriam-Webster’s Collegiate® Dictionary - Eleventh Edition, Springfield: Merriam-Webster, Inc, 2013. 422 • Documentários “Muito além do Peso”. Estela Renner, São Paulo, 84 minutos, 2012. • Artigos de revistas Bigand, Emmanuel; Lalitte, Phillipe, 2007. “Impacto Sonoro: ao romper com as regularidades melódica, rítmica e tonal, a música erudite contemporânea lança um desafio ao cérebro: adaptar-se à complexidade de novas estruturas musicais de modo progressive e inconsciente”. Revista Mente & Cérebro 3:73-77. • Artigos na internet Cabral, Marcelo. 2012. “A Vitoria Suada da Ambev.” IstoÉDinheiro http://www. istoedinheiro.com.br/noticias/81757_ A+VITORIA+SUADA+DA+AMBEV, Consulta: 07/2013. Sobral, Isabel. 2009. “Cade dá multa record à Ambev e suspende programa de ‘fidelidade’.” Estadão, http://www.estadao. com.br/noticias/impresso,cade-da-multa- recorde-a-ambev-e-suspende-programa-defidelidade,406961,0.htm, Consulta: 07/2013 Godoy, Amilson. 2008. “A Prática do Jaba e os Critérios de Distribuição: Autores e Artistas Estão Satisfeitos?” http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/ uploads/2008/08/palestra-amilsongodoy-mesa-6.pdf, Consulta 07/2013 423 O triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações culturais de uma prática ambulante Thaís Amorim Aragão Universidade Federal do Rio Grande do Sul [email protected] Resumo O som do triângulo e o sabor do chegadinho são frequentemente associados por habitantes de Fortaleza a uma memória de infância, que também pode ser acionada ao mero presenciar do evento sonoro que é a passagem do vendedor desse biscoito pelas ruas da cidade. Neste trabalho serão apresentados dados que emergiram do contato com um grupo de vendedores, sobre a forma como eles articulam o som para se comunicar com a população em seus percursos, além de como conseguem seus instrumentos e como percebem sua própria relação com o tocar - e também com o cozinhar, pois muitos fazem os biscoitos que vendem. Desenvolvida em nível de mestrado no Programa de Pós-graduação em Plenejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PROPUR-UFRGS), a pesquisa traz um panorama sobre a combinação desse alimento e desse instrumento de percussão em uma prática que persiste em várias cidades do país, da América hispanofalante e da Península Ibérica, além de sua profunda influência na música popular brasileira, notadamente a nordestina. Palavras-chave triângulo, paisagem sonora, vendedor ambulante, comida, cidade 424 Biscoito fino para as massas urbanas Há alguns anos, quando estava iniciando minha pesquisa de mestrado, vim ao Encontro de Música e Mídia - Musimid discutir o evento sonoro da passagem do vendedor de chegadinho como pertencente ao conjunto de músicas das ruas da cidade de Fortaleza. Isso a partir de uma perspectiva que admite a escuta como gesto poiético, em que o ouvinte pode conferir seu próprio sentido musical aos sons do ambiente. Novos dados surgiram a partir da investigação, que tomou como objeto empírico as práticas desses ambulantes e como objeto teórico o som, como elemento constituinte de um processo de territorialização1. Aqui deixarei de lado a discussão mais específica acerca do território, mas não sem antes assinalar que identidade e território foram trabalhados como categorias que se constituem afirmando-se mutuamente – o que nos auxilia a pensar as músicas e os lugares. O chegadinho é o nome que se dá, em Fortaleza, a um biscoito que também é apregoado tocando-se um triângulo, pelas ruas de cidades numa faixa que vai, pelo menos, de Salvador, na Bahia, até Manaus, no estado do Amazonas2. Foram encontrados registros da guloseima a partir de 1950, em Alagoas. Sobre a relação entre a escuta do som do triângulo e uma consequente vontade de degustar a iguaria que se anuncia, Gilberto Freyre dedica algumas linhas: Interessante de observar-se é que a certos doces, vendidos por ambulantes, estão associados, no Nordeste, sons que, como o da campainha de Pavlov, em cachorros, despertam em meninos e 1 Os processos de territorialização podem ser definidos como resultado da “interação entre relações sociais e controle do/pelo espaço, relações de poder em sentido amplo, ao mesmo tempo de forma mais concreta (dominação) e mais simbólica (um tipo de apropriação)”, como concebido por Haesbaert (2009, p. 235). 2 Podendo variar de forma, como de canudo ou de cone, o biscoito leva nomes como taboca (Salvador), cascalho (Belém, Manaus) e cavaco chinês (Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal), ou ainda cavaquinho, especialmente na capital pernambucana. Em outros lugares do Brasil, é vendido com outros instrumentos e outros nomes (biju, triguilim ou tringuilim, encrenca, casquinha etc). Em Fortaleza, pode ser chamado também de chegadinha ou chegadim. 425 adultos predisposições específicas de paladar: o som do triângulo dos chamados cavaquinhos, por exemplo. (FREYRE, 2007, p. 59) No caso de Fortaleza, a partir da década de 1990 há indícios de que essas relações são ou se tornaram mais complexas. Relatos registrados na imprensa desde então expressam que o som de um triângulo soando pela rua não é associado apenas à experiência de desfrutar do biscoito em si, mas também é capaz de acionar memórias de uma infância na cidade. Nem o ouvinte nem o lugar seriam mais os mesmos, sendo a passagem do vendedor de chegadinho uma espécie de fator de permanência que permite que se intua isso, notadamente nos últimos vinte anos. De fato, esta prática ambulante persiste não só em Fortaleza, mas em diversas cidades, inclusive fora do Brasil. O próprio biscoito nos liga a uma culinária muito mais antiga. Cronista de cultura gastronômica, Néstor Luján escreveu que na Catalunha os barquillos (neules, em catalão) fazem parte das tradições natalinas (LUJÁN, 1975, p. 88). Segundo ele, as neules são citadas em um convite real do Rei Jaime “O Conquistador” em 1267 e aparecem pela primeira vez em texto catalão no livro “Félix - o Livro das Maravilhas”, de Lúlio, do século XIV. Barquillos e cañutillos de suplicaciones (como também se chamavam por volta do ano de 1600) também podem ser encontrados nas narrativas de “Dom Quixote” e outras obras literárias da época, editadas em Madri. O barquillo, guloseima ainda encontrada atualmente em outros países latinoamericanos e em partes do território da Espanha e de Portugal (onde se chama barquilho), guarda semelhanças com o chegadinho tanto na forma de vender como na de fazer. A não ser pelo acréscimo de farinha de goma de mandioca, herança ameríndia, a receita e o modo de preparo em Fortaleza coincidem com os do produto feito na Espanha: uma massa de farinha de trigo, açúcar e água, assada entre duas pranchas de ferro. Também esses utensílios de assar encontrados nas cozinhas cearenses se assemelham aos de produtores espanhóis contemporâneos (Figura 1). 426 Figura 1. Modos de fazer chegadinho no Ceará e de fazer barquillo na Espanha. Fonte: Pesquisa própria (chegadinho) e de Marta Sánchez Marcos (barquillo). Em Fortaleza, apenas alguns vendedores possuem as prensas onde são assados os chegadinhos – e que por eles são chamadas de máquinas. Trabalham mais, pois acordam muito cedo, às vezes ainda durante a madrugada, para começar a fazer e empacotar os biscoitos que venderão à tarde, junto com outros ambulantes que costumam receber o produto em consignação. Ainda assim, quem assume a dupla jornada o faz por entender que a situação de autonomia vale o esforço. Embora os biscoitos sejam levados pelas ruas de cidades íbero-americanas no interior de tambores cilíndricos também presentes na prática observada tanto na Espanha como em Portugal, até o momento o uso do triângulo não se revelou na península, o que pode caracterizar um desafio a pesquisas futuras. Aqui, nos deteremos em alguns dados que emergiram do contato com os ambulantes de Fortaleza, para verificar como os vendedores de chegadinho articulam o som em seus percursos urbanos e que importância é dada por eles ao instrumento que tocam em sua lida diária. Na época dos antigos produtores de Fortaleza, quando não eram estes que faziam os triângulos, as peças eram encomendadas em qualquer ferreiro. Processo simples, sem segredo: era só entortar um ferro que soasse bem. Alguns vendedores hoje autônomos mencionaram que consegui- 427 ram seu triângulo pedindo a conhecidos que trabalham em canteiros de obras pela cidade, como favor. “Tinha cabra zeloso que deixava aquilo bem brilhosim! Parecia de inox, viu?”, observa o filho de um antigo patrão. Apesar do cuidado que pode ser dispensado por alguns, é comum que o instrumento se parta, ao longo de algum tempo, seja pela qualidade do material, seja pela intensidade e frequência de uso. Dessa forma, não é difícil encontrar quem tenha mais de um triângulo – assim como mais de um tambor. Triângulo se gasta em três, quatro anos. Se quebra, se gasta. Mas anima o cara. O barulho é perturbador, mas a vontade de vender anima. Tem dia que o cabra volta para casa sem vender tudo. Tem dia que, num quarteirão, seca a lata. Venda é cheia de mistério. (Raimundo, produtor e vendedor) Entre eles, há quem já tivesse intimidade com a música, tendo tocado em forrós e reisados antes de terem se lançado com o triângulo solo pelos caminhos da cidade – e continuam tocando ocasionalmente em festas, porque é comum surgirem convites quando são ouvidos nas ruas. – Cê já sabia tocar antes? – Não. Aprendi com eles. Aliás, nem aprendi. Porque lá no meu interior, a gente tocava. Tem o meu tio lá que tocava aqueles forrozim pé-de-serra, aí eu batia o triângulo já, lá. Aí quando eu vim de lá, já vim… Como se diz…? Foi a única coisa que não me deu dificuldade pra mim, na chegadinha, foi isso aqui. O mais trabalho que deu na chegadinha, pra mim, foi eu fazer a chegadinha, que é um negócio muito quente. (Francisco, vendedor e produtor) Outros ambulantes, porém, nunca haviam tocado triângulo antes. Aprenderam para que pudessem desempenhar a função de vendedor de chegadinho. Alguns nem dizem que tocam: simplesmente “batem o triângulo”. “O pessoal me chama pra tocar forró nos bares e eu não sei. Só sei fazer a zoadinha”, admite José, vendedor de 45 anos. Não era cobrada qualquer habilidade musical para ingressar na atividade. “O triângulo é 428 só pra chamar a atenção. Você passa ali, você escuta alguma coisa, você vai querer dar uma olhada. Naquele tempo a gente olhava, pra ver o que era. Só isso. Pra chamar a atenção, o triângulo”, explica o filho de um antigo fabricante de chegadinho. A habilidade não era considerada pré-requisito para ingressar na atividade, sendo muitas vezes aprendida no imediato desempenho da venda nas ruas. Mas há também aqueles que fazem questão de demonstrar sua destreza, executando vários ritmos e rindo da pouca desenvoltura de outros colegas. Quem apenas escuta o som, pode não imaginar que Miguel, 62 anos, toca o triângulo com uma só mão, movendo-o junto com a baqueta entre os cinco dedos e fazendo com que soem, à semelhança de sino e badalo. Como as entrevistas foram feitas individualmente, raramente tendo sido realizadas em grupos de vendedores, não presenciei nenhum desafio de triângulo entre eles. Mas alguns comentários – tanto dos próprios vendedores entrevistados quanto do registro dos jornalistas José Paulo de Araújo e Tarcísio Matos no fim dos anos 1980 – me fazem crer que uma pequena competição pode, de fato, fazer parte do universo de brincadeiras entre os vendedores de chegadinho. Até porque se costuma atribuir principalmente ao toque do triângulo o sucesso da venda. Tem que saber tocar. Se o sujeito não souber tocar, não vende nada, viu? (Jorge, vendedor, março de 2011) Se andar com a chegadinha, só com o tambor, sem fazer zoada, o pessoal não tá escutando. Só vende se tiver a zoada: o triângulo. É uma ciência, né? Só vende se tocar. Se não tocar, não vende. (Sebastião, vendedor, março de 2011) Se não tiver o triângulo, como é que eu vou vender? […] Como é que eu vou vender a chegadinha sem… Eu vou batendo palma? [ri] Não tem nem condições! (Francisco, produtor e vendedor, março de 2011) 429 Embora seja a finalidade primeira da atividade, é importante comentar que nem todas as performances de vendedores de chegadinho ao triângulo são orientadas exclusivamente ao propósito de realizar uma venda. Para muitos deles, o triângulo diverte, entretém, torna a caminhada mais leve. “Eu acho um divertimento pra mim. Porque se passam ligeiras as horas. A gente vai tocando. Fico tão divertido que eu só ando tocando assobiando”, diz o fortalezense Sebastião, que no momento de nossa conversa já estava há 32 anos no ramo. Para Raimundo, vendedor e produtor, são “duas coisas que divertem o vendedor de chegadinho: o triângulo e R$ 5 aqui, outro ali”. O triângulo também é usado como autodefesa, principalmente quando os vendedores são alvo de escárnio nas ruas. Quando intimidados, alguns buscam evocar a festa, aliviando tensões, criando ou estreitando laços por meio da música. Depois de anos de caminhadas com o triângulo, esses homens acabam por assimilar formas mais eficientes não apenas de comunicar sua passagem, mas também de se sentirem cômodos com sua ocupação. Isso se reflete nas canções de pelo menos dois ambulantes que foram identificados como compositores. Feitas para serem entoadas na rua, elas falam sobre a própria profissão: quem são os vendedores de chegadinho, o que desejam, por onde andam, quem encontram, como as pessoas os consideram e o que elas acham do chegadinho. Um dia, quando um desses vendedores tomava um ônibus, uma senhora passou a lhe observar e, julgando que o tambor de chegadinho, assim como o triângulo, se tratava de um instrumento musical, perguntou-lhe se era músico. “Não, sou não”, ele respondeu. Percebe-se aí que dissocia sua profissão daquela de músico, embora seja capaz de tocar um instrumento e compor canções. Essa percepção pode se dar porque o tocar triângulo está firmemente amalgado à prática, quase ficando subentendido que a parte (o toque do instrumento) pode ser tida também como o todo (a venda itinerante de chegadinho). Essa relação surge, por exemplo, quando as próprias pala430 vras chegadinho, chegadinha ou chegadim são, por vezes, associadas a outros elementos da prática, seja pelos próprios vendedores, seja pelos consumidores. Um dos ambulantes chega a ser tratado pela onomatopeia que traz o próprio som do triângulo: “Me conhecem mais por ‘diguilingue’ do que por chegadim. Por causa do barulho”. Já outro se apresenta como Chegadinho, uma vez que, pelos lugares onde anda, ele é muito chamado assim, pelo nome do produto que vende. Isso se repete com o principal vendedor do documentário “Lá Vem o Chegadim! – Memórias e Resistências”, de Djaci José3, que chega a afirmar que ele, que vende a chegadinha, é o próprio chegadinho, enquanto chegadinha, no feminino, se trataria do biscoito. Um outro vendedor apresenta uma quarta versão: A chegadinha, que eu saiba mesmo, é o triângulo. Porque a gente vai batendo, a pessoa pergunta o que é, aí a gente apresenta aquele material, que é exatamente o chegadinho. Mas o chegadim mesmo, [como é] chamado, é o triângulo, porque a gente vai batendo, a pessoa chega, despacha. Aí, isso aí é que é a chegadinha. (Francisco, produtor e vendedor) Nesta última fala, o vendedor passa a ideia de chegadinho como sendo aquilo – ou aquele, considerando os demais depoimentos – que chega. Aonde? Aos ouvidos e ao lugar – ao encontro – daquele a quem se dirige: o habitante da cidade. A chegada pressupõe uma ausência substituída pela presença do vendedor de chegadinho. Sua prática, quando se realiza, não é apenas um fato, mas um evento. Dotado de duração, estende-se no tempo e no espaço. Tal evento não é apenas anunciado pelo som do triângulo, mas também existe enquanto som, tendo sua própria existência baseada nessa emissão sonora – se entendermos a tomada de consciência do ouvinte como a própria finalidade de existir do som (como parte) e da prática (como o todo, como o amálgama de seus elementos constitutivos). 3 Em fase de produção. 431 Baião de três Idiofones são instrumentos de percussão “cuja produção sonora é feita pela vibração do próprio corpo, sem necessitar de tensão como as cordas ou as membranas” (FRUNGILLO, 2003, p. 358). É o caso do triângulo, cuja característica sonora “é de som metálico, agudo e de longa duração”. Segundo Frungillo, durante a Idade Média era mais conhecido na Europa pelo nome latino de tripos colebaeus, aparecendo como triangle em uma partitura musical no ano de 1589. Percutido com uma pequena vareta metálica, o triângulo pode ser suspenso por um cordão, mas na música popular brasileira é muito comum que seja “segurado pela ‘mão’ do ‘instrumentista’ que realiza movimentos de dedos para ‘abafamentos’ rítmicos e percutidos internamente no lado maior (base) e num dos menores em movimentos verticais” (FRUNGILLO, 2003, p. 358). O instrumentista também é conhecido popularmente como tocador e o abafamento é o ato de diminuir ou cortar as vibrações do instrumento musical – que, no caso do triângulo, como tocado no Brasil, é feito com a mão. O dicionarista considera que, na música brasileira, esse instrumento é “indispensável em conjuntos da região norte e nordeste” para tocar baiões. Quando esta pesquisa se iniciou, também fiz a associação entre o triângulo dos vendedores de chegadinho e o utilizado por tais grupos musicais. Suspeitava que a prática dos ambulantes podia ser de alguma forma influenciada pela referência a essa música, que contribuiu sobremaneira para a própria consolidação identitária regional. Tal suspeita era reforçada pelo fato de também haver identificado que em outras regiões do país o triângulo era substituído por outros instrumentos. O vendedor na praia de Capão da Canoa-RS, por exemplo, anuncia a casquinha com uma matraca, como se pode ver nas imagens da Figura 2, registradas em março e janeiro de 2011, respectivamente. 432 Figura 2. Vendedor de chegadinho no Ceará e vendedor de casquinha no Rio Grande do Sul. Fonte: Pesquisa própria. Hoje uma das manifestações mais destacadas no âmbito da música brasileira, o baião aponta para duas manifestações que em nossa cultura costumamos hoje tratar de forma separada: dança e música. Com base principalmente em registros de Silvio Romero no século XIX, e de Rodrigues de Carvalho e da Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura do Estado da Paraíba nas primeiras décadas do século XX, a pesquisadora Oneyda Alvarenga apresenta o baião – ou baiano – como uma dança popular da Bahia para o norte, em primeiro lugar. Seus pares solistas sapateavam, batiam palmas e usavam castanholas, estalando os dedos na ausência destas. Tanto Silvio Romero como Rodrigues de Carvalho dão o Baiano como a dança característica do samba, usando esta palavra no seu sentido genérico de baile popular em que se executam danças movimentadas. O segundo desses autores é o único, de meu conhecimento, que se detém um pouco mais para descrever o Baiano. Só ele esclarece que na dança a mulher mantém os braços ‘abertos em compostura de abraço, e os dedos castanholando’. A observação interessa, porque parece dar mais estreitamento ao Baiano, as mesmas atitudes do Lundu. Realmente, creio possível a suposição de que o Baiano seja mesmo um outro nome do Lundu. […] De uma provável expressão Lundu baiano, denominadora pelo menos de um Lundu do século XIX, o povo fixou apenas a indicação regional. (ALVARENGA, 1960, p. 156) 433 Para a pesquisadora, a particularidade do baiano em relação ao lundu em si – “este tão provavelmente afroamericano” (ANDRADE, M., 1962, p. 142) que Mario de Andrade localiza entre as primeiras expressões da música popular brasileira4 (ANDRADE, M., 1965, p. 31) – estaria nos improvisos e nos desafios que cantadores faziam durante a dança. A viola aparece como principal instrumento acompanhador, “a que se juntam, segundo as informações de que disponho, pandeiro em Sergipe, botijão5 na Paraíba e rabeca no Maranhão” (ALVARENGA, 1960, p. 157). Dança à parte, o baião ou rojão são também formas como era conhecido o trecho instrumental que servia de intervalo entre o desafio de um cantador e a resposta de outro. Para Câmara Cascudo, essa “breve introdução musical” (CASCUDO, 2001, p. 41) podia ser realizada com um toque de viola, de rabeca ou com ambos os instrumentos. Já Baptista Siqueira defende que a palavra viria de “bailão”, ou “baile grande” (SIQUEIRA, 1951 apud GUERRA PEIXE, 1955). O autor é citado por Guerra Peixe, compositor que trabalhou na sistematização das características melódicas, rítmicas e harmônicas do baião em meados do século XX. Curiosamente, o triângulo não aparece no instrumental relacionado ao baião levantado por essas pesquisas, nem nas notas que Alvarenga preparou, entre 1944 e 1945, sobre os instrumentos citados em sua obra “Música popular brasileira”. Também não possui verbete no Dicionário de Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo (2001), publicado pela primeira vez em 1954 e reeditado com frequência desde então. A partir de 1946, porém, o baião em uma forma estilizada seria lançado em plena época 4 “É só no fim do século XVIII, já nas vésperas da Independência, que um povo nacional vai se delineando musicalmente, e certas formas e constâncias brasileiras principiam se tradicionalizando na comunidade, com o lundú, a modinha, a sincopação.” In. “Evolução Social da Música no Brasil”, de 1939, publicado em Aspectos da música brasileira, volume XI das Obras completas de Mário de Andrade (ANDRADE, M., 1965, p. 31). 5 Instrumento que consiste em um vaso de vidro ou cerâmica atritado por uma moeda ou por uma chave. (ALVARENGA, p. 306; FRUNGILLO, p. 46-47). 434 de ouro do rádio no Brasil, transformando-se imediatamente em sucesso nacional. Aí, o triângulo aparecerá. Os principais responsáveis por essa estilização foram o pernambucano Luiz Gonzaga e o cearense Humberto Teixeira. O baião que a dupla apresentou era a porta de entrada nos meios de comunicação de massa para um conjunto de sonoridades de sua região, cujas características foram realçadas e retrabalhadas para cair no gosto dos ouvintes dos grandes centros urbanos brasileiros. Humberto Teixeira, em depoimento a Nirez6, afirmou que difundir a música do Nordeste se tratava mesmo de um projeto de Gonzaga, e que o baião teria sido a música escolhida “porque era a que tinha a característica mais fácil, mais uniforme de se lançar” (DREYFUS, 2007, p. 122; SEVERIANO, 2008, p. 280). Assim, foi possível que o baião se estabelecesse a partir do final dos anos 1940 com uma nova instrumentação, criada por Luiz Gonzaga – que levou a alcunha de Rei do Baião. Esse instrumental foi baseado no trio de sanfona, zabumba e triângulo. Assim como os primeiros intérpretes desse novo baião o apresentaram às massas cantando “Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião”7, esse formato de conjunto ou grupo musical, que se tornou característico dessa música (TAVARES, 2008, p. 28), foi firmado e reafirmado nas próprias letras das canções. É o caso de “Tesouro e meio”, de Luiz Gonzaga, gravado e lançado em 1956: “Ô baião; Faz a gente lembrar, esquecer; Ô baião; Traz saudade gostosa de ter; Um triângulo, uma sanfona, um zabumba”. Bem depois, Luiz Gonzaga explicaria o que o levou a reunir os instrumentos: Eu vinha cantando sozinho, mas eu precisava de um ritmo. Porque a música nordestina precisava de côro. Côro, que eu digo, é couro 6 Miguel Ângelo de Azevedo, jornalista e historiador fortalezense. 7 O gênero foi lançado em 1946, com a gravação da música “Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, pelo cojunto Quatro Ases e Um Coringa. 435 de cachorro, couro de bode. Negócio para bater, como no Rio de Janeiro se usa couro de gato, né? Então, primeiramente, eu criei o zabumba baseado nas bandas de couro lá do sertão, aquelas que nós chamamos de esquenta-muié. Mas a zabumba, só… eu fiquei assim, com a asa quebrada. Eu precisava descobrir um instrumento bastante vibrante, agudo, pra brigar com a zabumba. Até que vi no Recife passar um menino vendendo cavaco chinês, com aquele tubo nas costas, tocando o tinguilim, como eles chamavam – o tinguilim. Aí ele fazia aquilo com certa cadência, né? E pronto! Achei o marido da zabumba. Olha que casamento!8 A história reaparece em depoimento de Gonzaga à sua biógrafa Dominique Dreyfus, no qual ele expressa sua preferência pelo som agudo do triângulo, em detrimento daquele produzido pelo pífano9, em função da força da projeção sonora do idiofone: Só depois é que eu precisei de uma banda. Foi quando me lembrei das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do Araripe e que tinham zabumba e às vezes também um triângulo. Quando não havia um triângulo pra fazer o agudo, o pessoal tanto podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro, eu botei zabumba me acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um menino que vendia biscoitinho, e o pregão dele era tocando triângulo. Eu gostei […]. Havia os pífanos, que têm o som agudo, mas eu não quis utilizá-los porque a sanfona, com aquele sonzão dela, ia cobrir os pífanos todinhos. (DREYFUS, 2007, p. 152) Estes dois depoimentos ajudam a esclarecer melhor algumas questões. A primeira delas é que o triângulo do vendedor de cavaco chinês parece ter exercido papel especial em uma espécie de desfecho de um processo criativo protagonizado por Luiz Gonzaga. Talvez não explique totalmente a adesão da sonoridade desse instrumento como característica da mú8 “Luiz Gonzaga - Arquivo Trama/Radiola 03/11/08”, vídeo disponível em http://www.youtube. com/watch?v=7G5sK7kNr4U. Consulta: 04/2011. 9 “Instrumento de sopro feito de madeira, taquara ou bambu. É um tipo de flautim, com furos ao longo do comprimento, também denominado pífaro ou pife. […] A banda de pífanos [é] conhecida também como esquenta-mulher.” (CASCUDO, 2001, p. 515) 436 sica nordestina, pois esse som já fazia parte do repertório dos habitantes na região, estando “na novena lá do Araripe”. É importante lembrar que, em Portugal, a presença dos ferrinhos – como o triângulo é comumente chamado por lá – não passa despercebida na música popular. Ainda na primeira metade do século XX, o instrumento também marcava o ritmo das polcas marchas nos bailes de roda de Algarve, estava em cena nos fandangos de Beira Alta e nas estúrdias e nas rondas das vareiras do Minho (LEÇA, s/d). Nos registros do compositor, folclorista e etnomusicólogo português Armando Leça (idem, ibidem), eles aparecem nos acompanhamentos musicais dos folguedos populares, especialmente fogueiras de junho, autos natalinos e reisados, ligados a festividades do calendário cristão e trazidos pelos colonizadores portugueses ao Brasil. São ainda hoje muito expressivos na cultura dos estados da região Nordeste e em especial no Cariri, que culturalmente transborda as divisas do Ceará e engloba o lugar onde nasceu e cresceu Luiz Gonzaga, no interior de Pernambuco. Curiosamente, um dos folguedos em que se observa um destaque bastante diferenciado dado ao triângulo é a Folia do Divino, manifestação relevante em várias outras partes do território brasileiro. Esta festa está relacionada à devoção ao Espírito Santo e culmina no dia de Pentecostes, no primeiro semestre do ano. Assim como nas Folias de Reis ou Reisados, que tomam a visita dos reis magos ao menino Jesus e estão mais ligados ao ciclo natalino, nas Folias do Divino também são empreendidas peregrinações pelas vizinhanças e é dada importância a uma série de mesuras em que as folias – ou seja, os grupos ambulantes – podem chegar às portas das casas, pedir licença para entrar, realizar louvações, receber doações e se retirar, em despedida, para seguir em direção às outras casas. As Folias do Divino costumam ser compostas por um grupo de tocadores que saem cantando em procissão para anunciar a festa e receber contribuições. Em alguns lugares, como o interior paulista, por exemplo, é 437 liderado por um mestre e os demais levam nomes conforme o timbre de sua voz nas cantorias, nomes estes provavelmente reformados pelo uso popular. Assim, o contrato de algumas folias viria a ser o tocador cuja voz apresentaria um registro semelhante ao de contralto. O tipe parece ser uma corruptela de tiple, uma palavra cuja etimologia aponta para uma possível origem espanhola e que significaria “a mais aguda das vozes”10. Segundo registros dos anos 1960, muitas vezes o lugar de tipe nas folias do estado cabia a crianças e, não raro, eram elas quem tocavam os triângulos. A fotografia de um menino documentada pela Comissão Paulista de Folclore e publicada no jornal A Gazeta, em 1959, trazia a seguinte legenda: “Este menino integrava a folia do Divino de Tietê, a tocar triângulo e a realizar, na cantoria, o que se denomina ‘voz tipe’ – ‘tipe’, na linguagem dos foliões – isto é, aquela que dá os sons mais agudos”. Esses detalhes se tornam interessantes também ao percebermos o uso desse instrumento por praticantes de caminhadas que, com a ajuda da música, procuram envolver os habitantes do lugar, encerrados em suas casas, e engajá-los na atividade que anunciam – neste caso, uma festa de cunho religioso e popular. Esse tipo de abordagem, que não é tão diferente do que fazem os próprios vendedores de chegadinho, também se faz presente nos reisados nordestinos. E estes se servem do triângulo, embora durante a pesquisa não tenham sido encontradas referências ao lugar atribuído àquele que toca o instrumento nos grupos de tocadores e cantadores da região, com o nível de especificidade presente nos relatos sobre as Folias do Divino no estado de São Paulo. A esta altura da pesquisa, acredito que a representatividade maior do som do triângulo no cotidiano dos habitantes do lugar (Nordeste), no contexto anterior ao baião estilizado, possa ainda se dever ao seu uso nas festas populares de cunho religioso, como os reisados. Mas também fica enfraquecida a ideia de que os vendedores de cavaco chinês, e por 10 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, da biblioteca digital do Universo Online (UOL). Disponível em http://houaiss.uol.com.br. Acesso em 22/08/2011, às 09:16. 438 conseguinte os de chegadinho, tocam triângulo por influência do uso do instrumento no baião. O triângulo associado à prática da venda desse doce pode ser mesmo anterior à incorporação do idiofone ao instrumental que se consolidou nos conjuntos musicais especializados nesse gênero fonográfico, de meados do século XX em diante – o que não implica dizer que o baião que foi ao rádio deixou de influenciar a prática dos vendedores de chegadinho, por exemplo, nos dias de hoje. A isso se soma o fato de que também tocam triângulo vendedores barquillos e obleas11 em atividade em cidades mexicanas, como Querétaro12 e Puebla, e também na capital uruguaia de Montevidéu (Figura 3). Figura 3. Vendedor de chegadinho em Fortaleza e vendedores de obleas e barquillos em Puebla (México) e Montevidéu (Uruguai). Fonte: Acervos de Thaís Amorim Aragão (Fortaleza), Alicia Moya-Sanchez (Puebla) e www.stonek.com (Montevidéu), respectivamente. Portanto, assim como em Fortaleza e outras cidades das regiões Nordeste e Norte brasileiras, em outros centros urbanos da Íbero-América também é possível encontrar o triângulo nas mãos de ambulantes anunciando esses biscoitos pelas ruas, o que aponta para novos caminhos que 11 Geralmente, refere-se a barquillos quando biscoitos são enrolados em canudos e a obleas quando planas. 12 “Dulce recuerdo”, de Edgardo López Mañón. Texto disponível em http://lascronicasdelviejo. blogspot.com/2008/02/dulce-recuerdo.html. Acesso em 03/04/11. 439 a investigação pode percorrer. É fascinante lembrar que esta pesquisa se iniciou com a assunção preliminar de que o som da passagem do vendedor de chegadinho pelas ruas se tratava de uma marca do entorno sonoro da cidade de Fortaleza. Isto não deixou de ser. Mas agora sabemos que este evento acaba por relacionar a capital cearense as outros contextos urbanos, não só no Brasil como na América Latina, e renova nossas perguntas sobre o uso e a difusão do triângulo. Referências bibliográficas Alvarenga, Oneyda. Música popular brasileira. Porto Alegre: Globo, 1960. Andrade, Mário de. Aspectos da música brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1965. . Ensaio sôbre a música brasileira. São Paulo: Livraria Martins, 1962. Aragão, Thaís Amorim. “Como vendedores de chegadinho usam o som em seus percursos urbanos”. Anais da Reunião de Antropologia do Mercosul, IX, 2011. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2011. CD-ROM. Cascudo, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Global, 2001. Dreyfus, Domenique. Vida do viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34, 2007. Freyre, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Global, 2007. Frungillo, Mário D. Dicionário de Percussão. São Paulo: Ed.UNESP/ Imprensa Oficial do Estado, 2003. Haesbaert, Rogério. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. Leça, Armando. Música popular portuguesa. Porto: Editorial Domingos Barbosa, [194-?] década provável. Luján, Nestor, 1975. “Pequeña história de los turrones”. Historia y Vida, Madri, 82: p. 82-88. Marcos, Marta Sánchez. De obleas y barquillos. Salamanca: Diputación de Salamanca, 2003. Severiano, Jairo. Uma história da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 2007. Siqueira, Batista. Influência Ameríndia na Música Folclórica do Nordeste, apud Guerra Peixe, César. “Variações sobre o baião”. Revista da Música Popular, Rio de Janeiro, v. 5, fev. 1955. http://www.guerrapeixe.com/textos/ texto15.html, Consultra: 06/2013. Tavares, Braulio, 2008. “O baião é carioca”. Revista de História da Biblioteca Nacional 35: 26-33. 440 Rock com sabor de Mupy: o gosto da música na cena cosplay Mônica Rebecca Ferrari Nunes PPGCOM ESPM [email protected] Vera da Cunha Pasqualin PPGCOM ESPM [email protected] Resumo Este trabalho integra o projeto de pesquisa Comunicação, Consumo e Memória: Cosplay e Culturas Juvenis (CNPq) em desenvolvimento junto ao PPGCOM- ESPM. Analisa a cena cosplay em eventos da cidade de São Paulo nas dimensões do espaço aúdiotátil proposto por McLuhan e das paisagens sonoras, propostas por Murray Schafer. A pele convoca os sentidos a se misturarem, como avalia Michel Serres, e, na cena, sons de rádios webs, de bandas de anime songs, de espadas medievais, de vocaloides, de trilhas de animês e de HQs misturam-se à pele de jovens por sua vez imiscuídas às materialidades que reinventam narrativas midiáticas mediatizadas também pelo gosto de alimentos glocais: sucos mupy, yakisobas, coca-colas e cachorros-quentes. Palavras-chave paisagens sonoras; cena cosplay; culturas juvenis 441 A cena cosplay Este trabalho participa do projeto de pesquisa intitulado Comunicação, consumo e memória: cosplay e culturas juvenis (MCTI/CNPq/MEC/CAPES n.18/12.) em desenvolvimento junto ao PPGCOM-ESPM, abrigando dez pesquisadores de Centros de Pesquisa diversos. Investigamos a prática cosplay em eventos nas capitais da região Sudeste e há alguns relatos de eventos do nordeste brasileiro que serão também anexados ao resultado final da pesquisa. Originário da contração de costume play, o cosplay, roupas de brincar/fantasiar refere-se aos sujeitos que se vestem e atuam como personagens midiáticos das mais variadas procedências. De origem estadunidense, estas manifestações iniciam-se no final dos anos de 1930, com os concursos de fantasias de personagens da ficção científica. A prática chegou ao Japão por volta dos anos de 1980, quando se deu a expansão dos animês, animações japonesas, e dos mangás, histórias em quadrinhos, para o Ocidente. Vale dizer que em terras orientais, os jovens se vestiam como personagens destas produções. No Brasil, em meados dos anos de 1990, o cosplay começa a atrair os fãs da cultura pop japonesa que passam a se reunir nas convenções de animês e mangás. Temos nomeado esta prática comunicativa, de significação e de sociabilidade como cena cosplay. O conceito de cena foi gestado pelo músico canadense Will Straw ( 2004) e parece oportuno para esta pesquisa, pois se refere à esfera circunscrita de sociabilidade, criatividade e conexão que toma forma em torno de certos tipos de objetos culturais no transcurso da vida social destes objetos (Straw apud Janotti, 2012). Pode-se considerar a cena dotada de sentido amplo de teatralidade pública (Blum, 2003), e a trajetórias de circulação de atores sociais e de narrativas, ampliando a tessitura das culturas urbanas. A cidade se transforma em lugar de cena, mediatizada por narrativas de consumo: animês, mangás, tokusatsus,1 filmes, séries estadunidenses, 1 Tokusatsus são produções japonesas de filmes que misturam heróis humanos a monstros. 442 cartoons, peças publicitárias ou mesmo o próprio cosplay considerado por nós como narrativas metonímicas das ficções que os geraram. Nestas cenas urbanas, constatamos a importância do espaço sonoro para a construção das subjetividades e das memórias que nos habitam, e, a partir destas articulações, exploramos o gosto da música na cena cosplay materializado nas paisagens sonoras geradas, por seu turno, convivendo com o consumo de alimentos glocais. Compreendemos o glocal na dimensão que nos traz Massimo Canevacci (1996, p. 24-25) “(...) a atual trama - confusa, multilinear, opaca [é]- feita de acesas globalizações e localizações igualmente acesas”. Como as paisagens da cena cosplay, sonora, tátil, gustativa: narrativas e músicas japonesas, estadunidenses, coreanas mediatizadas pelos alimentos de origem oriental, tal qual o yakisoba, mais presentes nos encontros de São Paulo, e por aqueles regionais, como o é o caso do creme de galinha nos eventos em Teresina, Piauí, que, por sua vez, não contam com os alimentos nipônicos. Neste trabalho, selecionamos os seguintes eventos para apresentar partes de nossa cartografia: CosRok, Zelda Day 2013 – edição São Paulo, Anime Party 2012, Anime Dreams 2013, todos na capital, e Anime Festival Winter, em Belo Horizonte – pois, a pesquisa também cartografa capitais da região sudeste do Brasil. Haverá rápidas referências ao Anime Power, Teresina, Piauí, graças à pesquisa de Penélope Melo e Lira,2 uma das integrantes da pesquisa em pauta. 2 Penélope Maria de Melo e Lira é mestranda do PPGCOM-ESPM e participante do Projeto Comunicação, consumo e memória: cosplay e culturas juvenis, e, nesta etapa da pesquisa, analisou, em campo, o evento Anime Power, Teresina, Piauí, 07 de julho de 2013. 443 O som e o leite Refletir sobre o gosto da música na cena cosplay é atentar à construção do espaço aúdio-tátil do qual nos fala Marshall McLuhan, retomado 100 anos depois por Jesús Elizondo Martinez, o espaço é considerado como “o mundo criado pelo som”, então temos que estar conscientes de que suas características serão totalmente diferentes daquelas do espaço visual. Este espaço não terá limites fixos ou centro, nem um limitado sentido da orientação. Além disso, estará mais eficientemente conectado ao sistema nervoso central que qualquer outro elemento visual: a imagem nunca é tão forte como é a sensação espacial direta. (Curvello; Russi [Org.], 2012, p. 8-9. Tradução livre das autoras). Espaço que é som e tempo, gerador de paisagens sonoras que ali se configuram. Percebemos não apenas os alimentos consumidos pelos cosplayers, mas, igualmente, relevamos a importância do espaço sonoro, áudio-tátil, e suas relações com os sentidos, com o paladar, que podemos depreender das primeiras manifestações de oralidade do lactente, assinaladas na literatura psicanalítica e em pesquisas que envolvem música e inconsciente. Vale lembrar que o universo sonoro-musical precede o nascimento (Groddeck, 1972). O trabalho de Denis Vasse, O umbigo e a voz (1977), demonstra a importância do grito e da primeira respiração para desamarrotar os alvéolos pulmonares, fundamentais para acalmarem o ritmo cardíaco do lactente. O grito, que mobiliza a atividade do sopro respiratório, corresponde à rotura umbilical, à separação entre o corpo materno e o corpo do filho, por sua vez, esta rotura encontra correlato na abertura da boca. O grito, a respiração, o choro infantil marcam o corpo do recém-nascido e o introduzem em um universo de sons. Para Vasse, o espaço sonoro forma o lugar em que o infans irá individualizar-se. 444 Lugar da comunicação audiofônica que se estabelece entre ele e os pais; corpo a corpo mediado pela voz. Sujeito tomado por um fluxo rítmico, por movimentos periódicos da fala dispersos ao acaso, antes mesmo da linguagem ter sentido. Antes do sentido, o ruído da linguagem, e, depois, seus ritmos, sua música, como nos ensinam Michel Serres (2001) e Gilles Deleuze (1988). “A voz materna nina e aleita. Sua fala, atividade rítmica e melódica, soa música ao lactente, destinatário de um discurso que só compreende como som analógico, como objeto musical” (Nunes, 1999, p. 18). O gosto da música sabe, então, à memória de cuidados maternos, aos modos ritmados da introdução dos líquidos no pequeno corpo acolhido pela mediação de vozes que o entrega ao mundo extrauterino. Das ancoragens fundadas nos ritmos e curvas melódicas da voz da mãe e no prazer de brincar com a própria voz, proporcionado desde as tímidas vocalizações, advém o interesse de todas as culturas pela música, pelo canto (Rose, 2006). Lâmina sensória, “lençol musical que traz todos os sentidos, universal antes do sentido, a linguagem refinada, diferenciada, escolhe no interior desse geometral aquele ou aqueles que ela emite ou destaca” (Serres, 2001, p. 117). Assim se passa na cena cosplay. Como texto cultural, esta prática também reverbera o gosto ancestral pela voz como música e pela música como linguagem. Todo evento analisado até o momento tais como os organizados pela Yamato Corporation ou o AnimeCon apresentam em suas programações atrações como os animekês, uma sorte de karaokê, porém de trilhas sonoras de animês, tokusatsus, games ou filmes – e também shows de bandas covers que cantam os hits dos desenhos ou exibem produção musical própria. Além, do som das rádios de animês transmitidas via web “rolando” durante a festa. O CosRock, evento independente que será comentado adiante, na edição analisada foi patrocinada pela Rádio 89 FM, conhecida como Rádio Rock e, Zelda Day, totalmente articulado por fãs, é um dia para homenagear 445 o videogame musical, Zelda. Nesta celebração bastante curiosa, os fãs combinam, pelas redes sociais, seus lugares de encontro. Em São Paulo, participamos em agosto último, do primeiro Zelda Day, no Parque do Ibirapuera, e sob o rumor das árvores, jovens tocavam violão e flauta doce enquanto outros acionavam seus Nintendos DSs, consoles de videogames portáteis, ou brincavam de tiro ao alvo em um cenário improvisado. Os sons da casa materna em seus espaços iluminados ou secretos justificam, muitas vezes, os interesses dos cosplayers em estarem ali, na cena. Grande parte dos depoimentos refere-se à memória da televisão, às vozes de seus heróis, às músicas temas dos animês vistos na infância. Não à toa. A televisão remete a certos lugares de mediação: a cotidianidade familiar, a temporalidade social e a competência cultural, como explica Martin-Barbero (2008). O autor reforça a importância da família como um espaço de leitura e de decodificação da televisão além de destacar a inscrição das marcas familiares no próprio discurso televisivo, reforçando a simulação do contato e a retórica do direto, particularmente interessantes no que tange ao entendimento da proximidade conquistada por estes desenhos experimentados primeiramente em casa, no espaço do dentro, na presença de irmãos mais velhos, primos que, não raro, estimularam os cosplayers a materializarem a ficção em seus corpos. Barbero argumenta que a simulação do contato se vale de um intermediário para facilitar o trânsito entre a realidade cotidiana e o espetáculo ficcional. Podemos nos remeter aos apresentadores de programas infantis que organizam a exibição dos desenhos ou, na ausência deles, à voz em off, dublada, que apresenta o título, a produção ou a “versão brasileira”, do mesmo modo a retórica do direto passa a ser compreendida como um dispositivo que garante a proximidade do ver e do escutar, a sensação de imediatez. Por outro lado, a temporalidade social aponta a conjunção do tempo valorizado pelo capital, tempo medido da produção excessiva dos lançamentos de animês e games, ao tempo da cotidianidade, repetitivo que “acaba para recomeçar”, ou, como assevera o pensador espanhol, “o 446 tempo do seriado fala a língua do sistema produtivo – da estandartização – mas por trás dele também se podem ouvir outras linguagens: a do conto popular, a canção com refrão, a narrativa aventuresca.” (op. cit, 2008, p. 298). Estes elementos condensados na estética da repetição talvez nos projetem igualmente aos contatos repetitivos e ritmados pelos jogos vocais que acompanham os cuidados alimentares na primeira infância. O tempo do ver e do escutar os animês, no espaço áudio-tátil da casa, faz-se na duração deste tempo musical primordial em que os sons têm gosto. Kimi3, entrevistada no Anime Party 2012, é animekeira, diz cantar por prazer, para se divertir. Ao perguntarmos por que cantava aquele tipo de música, respondeu: “sei lá, eu comecei a ter contato com estas músicas, eu era muito pequena (...).” Da mesma maneira, Fernando4 se empolga na plateia ao repetir, junto com a banda, o refrão de Dragon Ball e depois nos fala que ouvir aquilo é escutar os sons de sua infância. Assistir à rede Manchete, aos Cavaleiros do Zodíaco é quase sempre mencionado como o modo de iniciação destes jovens à cultura pop japonesa. Da paixão pelos animês e mangás à prática de fazer cosplay corresponde, para alguns, à passagem da infância à adolescência, conforme nos conta Camila Marotta durante o evento que ela mesmo organiza, o CosRock Fest. Camila tem 27 anos, nasceu e mora em São Paulo. Formada em Comunicação Social, Rádio e TV, pela Universidade São Judas (2005-2008), trabalha como operadora de telemarketing para a Vivo e organiza o CosRock Fest desde 2010 como uma ação paralela, pois não consegue sobreviver economicamente apenas com os rendimentos dos encontros. Começou a se encantar pela cultura japonesa quando assistia aos Cavaleiros do Zodíaco e outros animês pela TV Manchete. Descobriu-se otaku, fã da cultura japonesa, na infância. Não saía da frente da tevê, mesmo com 3 Kimi foi entrevistada em abril de 2012, durante o Anime Party 2012. Faculdades Cantareira. São Paulo, SP. 4 Fernando foi entrevistado em abril de 2012 durante o Anime Party 2012. Faculdades Cantareira. São Paulo, SP. 447 imagens em preto e branco e com as reclamações de sua bisavó. Durante a adolescência, afastou-se deste universo, até que chegou a internet de banda larga e voltou a mergulhar naquela cultura, agora com o objetivo de divulgá-la. Camila nos recebe em uma sala cheirando a mofo, no segundo piso de um prédio pequeno, que naquele domingo à tarde sediava a terceira edição do CosRock. O local serve à Associação Beneficente dos Provincianos de Osaka Naniwa-kai, na Vila Mariana, região sul da cidade de São Paulo. Quadros de senhores japoneses nas paredes, uma grande mesa em torno da qual nos acomodamos, sofás repletos de coisas umas sobre as outras. Fechamos a porta para nos isolarmos do som que vinha do palco – “ ter um palco é uma das condições para promover um evento, além da data não coincidir com aqueles de maior estrutura,” revela a jovem. Ela fez cosplay pela primeira vez aos 21 anos, quando soube de uma convenção organizada pela Yamato por meio do Orkut. Na ocasião, confeccionou sua roupa com ajuda de uma amiga, mas não ficou muito bem caracterizada, nos diz. Durante a realização desta pesquisa, percebemos como é comum o fato dos organizadores dos eventos terem sido cosplayers, colecionadores de mangás, de fitas de animês ou algo semelhante.5 Não foi diferente com Camila, que de cosplayer passou a cobrir as festas como fotógrafa e depois se aventurou como organizadora. Para a realização do CosRock Fest conta com a ajuda de seu próprio investimento econômico para alugar o espaço e providenciar tudo o que é necessário, mesmo para um evento de pequeno porte como aquele. 5 Cesar Ikko, sócio-fundador do Anime Com, empresa responsável pela organização de eventos em São Paulo e Belo Horizonte, também fez esta trajetória: fã, cosplayer, organizador de eventos. Foi entrevistado em 17 de agosto de 2013 durante Anime Festival Winter, UNIBH, Belo Horizonte, MG. No Piauí, segundo a pesquisa de Penélope Melo e Lira, este percurso também se repete, a exemplo de Adriano Hally, organizador do Anime Power, Teresina, Piauí, entrevistado em 07 de julho de 2013 durante o Anime Power, no Centro de Artesanato de Teresina, Pi. 448 Trata-se de um encontro relacionado ao cosplay e marcado pela pulsação do rock. Esta junção – cosplay e rock – é explicada por Camila que identifica o gosto musical do cosplayer ao dizer que “o público cosplay tem muito a ver com o rock. Você não vai achar um cosplayer que goste de funk, sertanejo, forró, essas coisas. Os cosplayers geralmente são roqueiros, curtem um som mais pesado.”6 As ligações entre a cena cosplay e o rock também podem ser percebidas nas trilhas sonoras dos animês. A partir da década de 1980, o mercado de animê songs expandiu e à medida que novos títulos de animês e games foram surgindo, o termo se consolidou e se mesclou com o J pop, o pop japonês – e graças aos ritmos mais próximos do rock atraiu o público adolescente, e não só o infantil que originalmente consumia o gênero. “Não existe um ritmo ou batida específicos, já que animê song indica a finalidade da música, mas as do sub-gênero hero song, com músicas de ritmo vibrante, tão comuns em desenhos de ação e seriados de tokusatsu, são mais fáceis de serem reconhecidas”, explica Alexandre Nagado (2005, p. 54). A organizadora do CosRock Fest nos contou que planejava incluir na programação, a participação de bandas cover de rock, como Iron Maiden Cover, além de bandas de animê songs, J-Rock, rock japonês e K-Rock, rock coreano, que agrada bastante o público otaku, porém, o evento viabilizou-se com o patrocínio da Rádio 89-FM, que exigiu, como contrapartida, que fossem apresentadas apenas bandas de rock parceiras da rádio, o que a obrigou a retirar da programação as bandas que tocariam as trilhas sonoras dos desenhos animados japoneses. De qualquer forma, mesmo com a alteração de repertório, o estilo musical agradou aos frequentadores, uma vez que as bandas selecionadas também demons- 6 Camila Marotta concedeu este depoimento em 09 de junho de 2013, na Associação Beneficente dos Provincianos de Osaka Naniwa-kai, onde ocorreu o CosRock Fest. Rua Domingos de Moraes, 2013. Vila Mariana, São Paulo, SP. 449 traram aderência ao gosto musical deste público, entretanto, bastante diferente do estereótipo normalmente atribuído aos roqueiros. Aqui você vê um evento que é família. Vem pai, vem criança... Todo mundo está se divertindo, ninguém precisa beber, ninguém precisa usar drogas, não precisa bater em ninguém. É tranquilo. A gente não precisa nem de segurança porque o pessoal é tranquilo. (...) Se eu fizesse um show só de rock, tenho certeza que ia vir um pessoalzinho que ia querer arrumar confusão, ia querer beber cerveja e ia começar a causar. Mas em evento de animê você não vê isso. Você vê família tomando Mupy, pai com filho de cosplay e isso é legal. Durante a cena cosplay, é comum perceber a ausência de bebida alcóolica e em seu lugar, vemos os jovens, inclusive os maiores de idade, apreciando Mupy, suco de leite de soja, ou outros sucos e refrigerantes, ao menos entre as cenas paulistas cartografadas até agora, mesmo nos lugares em que não há controle sobre a venda ou o porte de álcool, como no CosRock ou Zelda Day. Podemos nos perguntar: será apenas nestes encontros que rock tem gosto de Mupy? A cartografia com outros espaços pode nos permitir algumas respostas sobre a construção das paisagens sonoras mediadas pelos sabores de bebidas e alimentos glocais. Afinal, como afirma Michel Serres (2001, p. 108), “todo audível possível encontra locais de escuta e de regulação”. Pensamos sobre os espaços áudio-táteis controlados em que o gozo da voz pode ser amalgamado à vigilância do gosto. Paisagens sonoras O gosto dura acionado pela memória que, por sua vez, seleciona, da extensa rede midiática, uma personagem e promove um tipo de uso para a narrativa: o cosplay - que segue assim como uso de um gênero, do animê, mangá, game ou outra ficção. 450 Se é possível dizer que o cosplay é um texto-memória porque, comportando-se como um modo de usar o conteúdo midiático, refaz seu personagem de pixels em EVAs, tecidos suaves, drapeados, isopor, madeira, pelúcia, etc, gerando novas significações para a antiga narrativa – é também texto-memória porque se faz sobre a pele – que convoca todos os sentidos a se misturarem, conforme sugere Serres (2001, p.77) ao apostar na mistura e não mais no meio: A pele é uma variedade de contingência: nela, por ela, com ela tocam-se o mundo e o meu corpo, o que sente e o que é sentido, ela define sua borda comum. Contingência quer dizer tangência comum: mundo e corpo cortam-se nela, acariciam-se nela. Não gosto de dizer meio como o lugar em que meu corpo habita, prefiro dizer que as coisas se misturam ao mundo que se mistura a mim. A pele intervém em várias coisas do mundo e faz que se misturem. Vale lembrar que ouvimos com a pele, testemunham os pesquisadores que trabalham com portadores de surdez. A música é percebida como sequência vibratória que chega ao cérebro por outras vias que não são os órgãos auditivos. O nosso corpo funciona como uma caixa de ressonância, tais vibrações podem ser sentidas pela pele, pelos ossos de partes do corpo (Bang, 1991). Desta pele-mistura, pele-mundo, pele-memória, talvez seja possível supor, na cena cosplay, a emergência de um formato contraditório de gozo e interdito que vincula música e paladar associados ao espaço áudio-tátil do qual nos fala McLuhan e às paisagens sonoras. Murray Schafer (2001) considera que qualquer campo acústico pode ser tomado como paisagem sonora: sons de base, sons de fundo, sons arquetípicos – e todo analista deste ambiente deve perscrutar as marcas sonoras mais significativas. Na cena cosplay, vozes vivas, sintetizadas - como as das vocaloides – personagens holográficas-cantoras, baseadas em um banco de vozes; os sons de espadas de plástico, imitando espadas medievais, de cards, sons repetitivos e metálicos de videogames, de latas de refrigerante, pacotes de Doritos e sacos de Mupys, yakisobas espargidos 451 em hashis, de pés e corpos esbarrando uns nos outros, violão e flauta, e os sons da infância midiatizada, a exemplo dos animê songs e sua hibridação com o rock, inevitavelmente apresentados durante as convenções por meio das bandas que se inscrevem nestes encontros, compõem a paisagem sonora desta cena. Algumas destas bandas têm longas trajetórias e passaram de bandas covers para produtoras de suas próprias músicas, como a Animadness, que criou seu primeiro single em 2005, com Labyrinth. (Barros, 2011). Outras são grupos mais jovens, como a banda Ikage, formada em 2008. Camila, 20 anos, vocalista da banda, atesta os motivos pelos quais foram levados a tocar apenas animês songs: “tem a ver com a infância, com a nostalgia, porque a gente toca as músicas que passaram na tevê há 10 anos. É um gosto que a gente tem”. 7 A presença da infância na cena cosplay é referida por muitos jovens para situar a iniciação à cultura pop, para autorizar a lembrança musical, e, em alguns depoimentos, aparece como modo de escolher os cosplays, como narrou Paulo,8 no Anime Friends 2013. Sob a máscara de um Super Pato,9 noz diz procurar por personagens que marcaram sua infância, mesmo os mais antigos. Em tantos outros relatos, a infância serve para explicar o preconceito sofrido por muitos jovens ao reclamarem que diversas pessoas entendem a prática cosplay como algo infantil, coisa de criança, e, portanto, sem importância ou boba para algum adulto gastar tempo e dinheiro com isso. 7 A banda Iikagem, em japonês, randômico – é formada por Camila, vocal, Raoni, baixista, e Lucas, na guitarra. Jovens de São Bernardo do Campo, SP. Foram entrevistados durante o Anime Party 2012, nas Faculdades Cantareira. São Paulo, SP. 8 Paulo, 27 anos, despachante aduaneiro do Porto de Suape, PE, foi entrevistado no Anime Friends, 2013. Campo de Marte, São Paulo, SP. 9 Mighty Ducks (Os Super Patos no Brasil) desenho animado da Disney. Conta a história de seis patos antropomórficos alienígenas que aterrissam na Terra e fundam um time de hóquei enquanto tentam voltar para casa. Exibidos no Brasil, no extinto programa Disney Club, da emissora televisiva SBT no final dos anos 90, entre 1998 a 2000. Disponível em http:// pt.wikipedia.org/wiki/Mighty_ Ducks acesso em 1 de setembro de 2013. 452 Não é possível ainda responder se é graças a esta permanência da infância e do caráter lúdico destes encontros, que cena cosplay ressoe a um ambiente familiar, no sentido mais tradicional do termo. Os cosplayers apropriam-se de personagens e narrativas, vivem suas fantasias, porém de modo protegido. Os encontros organizados por empresas de eventos, como a Yamato e a AnimeCon cuidam de alimentar a utopia destes espaços: revista à porta, impedindo o porte de bebidas alcóolicas, de objetos cortantes, pontiagudos, - o que significa que os cosplayers devem construir as armas, que muitas vezes integram o indumento das personagens, com materiais menos agressivos. No interior dos eventos, o mesmo controle do gosto. Por mais que o espírito lúdico esteja presente, não estamos em meio aos excessos da festa, da qual os efeitos do álcool poderiam fazer parte, mas sim, em um evento controlado, em um espaço sonoro, aúdio-tátil regulado. É interessante observar que os discursos dos cosplayers reforçam este ideário: o “evento bom, é evento sem bagunça,” afirma Ana Regina.10 Do mesmo modo, os encontros organizados por fãs, como o Zelda Day e o próprio Cosrock, embora não tenham nenhum elemento coercitivo, mantêm a mesma dinâmica e nas palavras de Camila, “é um evento família, não é preciso beber ou usar droga pra se divertir.” Entretanto, a cartografia em Belo Horizonte, ofereceu-nos outras pistas. Ainda que exista o “clima familiar”, com muitos pais vestidos como seus filhos, ou apenas acompanhando os jovens, o próprio sócio-diretor do AnimeCon, empresa responsável pelo Anime Fest Winter, que ocorreu na UNIBH, mencionou na entrevista que iria instalar um bafômetro na próxima edição do evento e afirmou que havia retirado do ginásio dois rapazes passando mal em função da ingestão de bebida. A pesquisadora Mônica Nunes, quem realizou a pesquisa de campo em Belo Horizonte, portava uma garrafa de água ao entrar no evento e foi barrada pela se10 Ana Regina, cosplayer, foi entrevistada no Anime Dreams 2012. Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, SP. 453 gurança que abriu a garrafa para cheirar o líquido. Este episódio denota que os participantes do encontro devem tentar burlar as leis de proibição de bebidas alcoólicas com certa frequência. Foi comum assistir aos jovens, em grupos, trajando camisetas pretas adornadas por muitos cordões, nos arredores da Universidade, bebendo consideravelmente. Em Beagá, são poucas as barracas de cup noodles ou yakisoba. Sobressai a cantina da Instituição, o cachorro-quente, a coca-cola, a barraca de pastel e a bebida alcoólica circula nas imediações de modo mais visível do que nos eventos pesquisados na capital paulista, demonstrando que fatores locais modificam a construção da cena. Considerações em processo Com base nos encontros e depoimentos pesquisados, a cena cosplay revela, em muitos momentos, conexões entre o espaço áudio-tátil da casa da infância - tempo-espaço das vozes de personagens e músicas temas de animês – e a iniciação à prática cosplay. Sabemos que o desejo da escuta, pulsão invocante, em Jacques Lacan (1985), associa-se ao prazer gerado pela voz materna, que, por seu turno, compõe a tessitura em que se dá a partilha do alimento primordial. Boris Cyrulink, em Do sexto sentido (1997), apresenta pesquisas que demonstram que, durante a amamentação, quando a mãe fala em baixas frequências, as sucções do bebê aceleram. Acreditamos que conjunto funcional palavras maternas e boca do bebê, tão ancestral e fundamental à sobrevivência da espécie, responde pelo gosto dos sons, que permanece no prazer de cantar canções da infância, em forma de animekês ou dos hits dos animes songs – por sua vez compostos com batidas do rock. A cena cosplay constitui-se, então, como paisagem sonora-tátil-gustativa graças também à orquestração dos sentidos, à presença de alimentos, sólidos e líquidos, regulados ou permitidos, globais e locais. Na mescla do global com o local, também surge um novo território sensorial: o rock 454 tem gosto de Mupy, o J pop, de creme de galinha, a água pode ser destilado e o leite pode continuar sendo som. Referências bibliográficas Bang, Claus. 1991. Um mundo de som e música. In: RUUD, Even (org.). Música e Saúde. São Paulo: Summus. Barros, Akira. 2011.Yume no Tamashi – o espírito do sonho. Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – apresentado ao Instituto de Ciências Sociais e Comunicação da Universidade Paulista, São Paulo. Psicanálise.Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Martín-Barbero, Jesus. 2008. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. Martínez, Jesus O. Elizondo. 2012. McLuhan en el espacio acústico. In: Sousa, Janara; Curvello, João; Russi, Pedro (org). 100 anos de McLuhan. Brasília: Casa das Musas. Blum, A. 2003. The Imaginative Structure of the City. Montreal: McGuill-Queen´s University Press. McLuhan, Marshall. 1974. Os Meios de Comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix. Canevacci, Massimo. 1996. Sincretismos: uma exploração das hibridações culturais. São Paulo: Studio Nobel,1996. Nagado, A. 2005 .“O Mangá no Contexto da Cultura Pop Japonesa e Universal”; in: LUYTEN, S.(org) Cultura Pop Japonesa. SP: Hedra.. Cyrulnik, Boris. 1997. Do sexton sentido: o homem e o encantamento do mundo.Lisboa: Instituto Piaget. Deleuze, Gilles. 1988. Lógica do Sentido. São Paulo: Perspectiva. Groddeck, G. 1969. « Musique et Inconscient. ». In: SCHNEIDER, Michel(org.) Musique em Jeu, Psychanalise. Musique, n.9. Paris : Seuil. Janotti, J.. 2012. Entrevista – Will Straw e a importância da ideia de cenas musicais nos estudos. In: Revista ECompós. Focando na escuta: som, música e comunicação.Vol. 15, No 2 (2012). Disponível em <http://www.compos.org.br/ seer/index.php/e-compos/issue/current> Último acesso em 12 de novembro de 2012. Lacan, Jacques. 1985. O Seminário, livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Nunes, Mônica. 1999. O Mito no Rádio: A Voz e os Signos de Renovação Periódica. SP: Annablume. Rose, S. 2006. O Cérebro no século XXI. Trad. Helena Londres. SP: Globo. Serres, Michel. 2001. Os cinco sentidos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. Schafer, Murray. 2001.A afinação do mundo. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista. Straw, Will. 2004. Cultural Scenes. Loisir et societé/society and leisure, vol.27, n.2., 2004. Disponível em http://strawresearch. mcgill.ca/straw/loisirarticle.pdf último acesso em 25 de agosto de 2013. Vasse, Denis 1977. O Umbigo e a Voz. SP: Loyola. 455 Som, linguagem e significado musical Paulo C. Chagas University of Califórnia, Riverside [email protected] Resumo Nesse artigo investigo a compreensão e o significado musical a partir de diferentes pontos de vista. Primeiramente, apresento uma reflexão sobre a simultaneidade e polifonia como qualidades inerentes do fato musical. Em seguida, abordo as seguintes questões: (1) a oposição entre o som musical e o ruído como base para a elaboração de estéticas musicais; (2) a analogia entre música e linguagem e as teorias de semiótica musical fundamentadas na linguística e no estruturalismo; (3) a analogia entre a música e o mito a partir de LéviStrauss e a sua crítica do serialismo e da música electroacústica; (4) a questão da autonomia musical e o debate sobre o distanciamento da música contemporânea em relação aos ouvintes; (5) o pensamento de Adorno sobre a verdade como ideal da arte e a questão da significação musical sob o ponto de vista da mimese. Finalmente, apresento a teoria do sphota, introduzida pelos gramáticos hindus, a qual propõe a ideia do som como origem de toda criação e a visão de que a linguagem e o significado formam uma totalidade invisível. Palavras-chave som; linguagem; significado; semiótica musical; sphota. 456 1. Simultaneidade e Polifonia O que é a compreensão musical? O que é escutar uma música com compreensão? O que é compreender a música na era da globalização e digitalização? A reflexão sobre o a música no mundo contemporâneo pode ser colocada nos seguintes termos: por outro lado, podemos usufruir de uma variedade de obras, gêneros e estilos – as músicas criadas em diferentes partes do mundo; por outro lado as novas sonoridades e linguagens da música contemporânea desafiam o nosso ouvido e imaginação. O mundo sonoro-musical apresenta-se como uma simultaneidade de fatos e eventos múltiplos e contrastantes, às vezes até mesmo paradoxais. Será que devemos fazer o esforço de compreender o todo ou devemos nos limitar à compreensão de aspectos parciais? Caso optemos por desconsiderar a totalidade, então o estudo da compreensão musical pode nos levar a conclusões bem específicas que podem ser úteis para entender certas manifestações musicais mas inúteis para explicar outras. Mas será que não seria esta nossa única opção? A perspectiva que aqui adotamos é de natureza evolucionista. Consideramos que a música é um universo em expansão contínua, assim como a expansão caracteriza o ser humano e o universo propriamente dito. Ao longo da história da música observamos o aparecimento de formas e estéticas que vão se transformando e desdobrando-se em movas formas e estéticas. A tecnologia de gravação e reprodução sonora, inventada na segunda metade do século XIX e aperfeiçoada no século XX, impulsionou o processo de diferenciação artístico e musical, o qual, mais recentemente, acelerou-se com a popularização do computador e da distribuição da música através das redes informáticas. Durante muito tempo, a tradição da música erudita, de origem européia, constituiu a referência dos estudos sobre a música. Hoje, entretanto, dispomos não apenas um vasto repertório de obras criadas ao longo de séculos, como também estamos expostos às manifestações musicais de culturas e sociedades que nos chegam, por exemplo, através da internet, e cujos sons se misturam 457 às sonoridades emergentes das mídias eletrônicas e digitais. Portanto, retomando as questões acima levantas, investigar a compreensão musical coloca-nos diante de um dilema: será que devemos pesquisar as bases comuns às diferentes manifestações musicais, tratar de descobrir a unidade da diversidade? Ou será que devemos valorizar a qualidade inerente à própria diversidade, considerar as diferentes manifestações como fenômenos independentes sem nos preocuparmos em estabelecer critérios comuns? O princípio da simultaneidade, que caracteriza a diversidade de linguagens musicais do presente, é observada na própria essência do fenômeno sonoro. A existência da música está relacionada à nossa capacidade de distinguir e diferenciar a multiplicidade de sons que se manifestam no mundo, e também produzir e articular sons próprios, produzidos pela vibração de corpos e objetos. O objeto sonoro, por mais abstrato e desconectado que seja de uma existência humana, é sempre a exteriorização de uma presença física. Mesmo os sons produzidos eletronicamente precisam da vibração de objetos – as membranas dos alto-falantes – para serem percebidos pelo ouvido. Ouvir e criar sons – qualquer que seja a sua origem e o contexto – são dois aspectos indissolúveis de um mesmo fenômeno, que é atribuir significado às vibrações sonoras. Sob a superfície do som manifesta-se a nossa consciência. A música é justamente a operação da consciência que estabelece uma diferença entre os sons musicais e os sons do ambiente acústico. Para escutar música, temos de reconhecer seletivamente certos sons, ao qual atribuímos significado musical, e suprimir outros que passam a fazer parte do ambiente que ignoramos. Essa nossa capacidade de percepção auditiva simultânea e seletiva – a habilidade de reconhecer eventos múltiplos e simultâneos e excluir outros eventos – está diretamente associada à construção de polifonia musical. A polifonia constitui uma das características essenciais da música em geral, e particularmente da música Ocidental. Distinguir sons no meio ambiente e distinguir polifonia como forma de organização musical são operações cognitivas semelhantes que evidenciam nos458 sa capacidade de criar significado no meio acústico. No meu ensaio intitulado Polyphony and Embodiment: a Critical Approach to the Theory of Autopoiesis (Chagas 2005) propus a seguinte definição: polifonia é o modo específico de operação da percepção auditiva que distingue eventos múltiplos e independentes e cria uma diferença musical entre som e ambiente. O sistema da polifonia, surgido na Europa durante a Idade Média, foi uma das invenções mais influentes na evolução da música. A composição polifônica, subordinada aos princípios da multiplicidade e individualidade, impulsionou o desenvolvimento da música vocal e instrumental; as tecnologias da composição polifônica, como o contraponto e a harmonia, constituem ainda hoje os pilares do ensino musical. O processo de transformação da polifonia foi impulsionado, a partir do final do século XIX, por movimentos artísticos e musicais como o impressionismo, o expressionismo, o atonalismo, a música dodecafônica, o serialismo, etc., os quais ampliaram a gramática e o vocabulário da linguagem musical. Por outro lado, os meios eletrônicos de produção e reprodução do som introduziram novos materiais e tecnologias que, a partir da segunda metade do século XX, foram articulados e elaborados por estéticas que emergiram no universo da música concreta, eletrônica e digital. Todos esses desenvolvimentos estabeleceram novas identidades sonoras e musicais que diversificaram o campo da música e, ao mesmo tempo, colocaram em cheque o próprio conceito de obra musical. Ao lado das formas tradicionalmente reconhecidas como “música”, organizam-se sistemas de comunicação mais ou menos autônomos – artísticos, para-artísticos e meta-artísticos – que valorizam o “som organizado” , mas que se diferenciam do sistema musical. A autonomia da música é questionada pela explosão da cultura de massa que transformou a música em objeto de consumo e também pela vinculação da música às mídias tecnológicas de informação e comunicação, as quais estabelecem novas relações “interdisciplinares” entre som, imagem, corpo, espaço, etc. O 459 advento da arte cinematográfica teve um forte impacto sobre o status da música na sociedade. Enquanto que no século XIX a criação artística audiovisual tinha como referência as grandes obras musicais – tanto a música de concerto como os espetáculos de ópera –, hoje a referência principal é o cinema, no qual a música ocupa uma posição subalterna. No mundo contemporâneo das imagens técnicas o som está em segundo plano; a fascinação pelas imagens técnicas predomina, por exemplo, nos grandes espetáculos da música pop internacional, que se tornaram uma espécie de cinema ao vivo, reproduzindo as narrativas cinematográficas de Hollywood. As relações enredadas entre arte, técnica, ciência, design, economia, etc. colocam em cheque o próprio conceito de música como sistema artístico. Um dos efeitos da filosofia de Wittgenstein, conforme apontou Luhmann, foi mostrar a impossibilidade de definir o que é arte a partir de um conceito de “essência” que possa ser claramente definido por um observador (Luhmann 1995, 393). Luhmann define a arte como um sub-sistema do sistema social, constituído pela sociedade como um todo. É o próprio sistema artístico que estabelece as regras para definir e delimitar os seus domínios. A arte tem a possibilidade de se auto-definir – ou se auto-descrever – através de distinções inerentes às diferentes culturas e grupos sociais. A obra de arte se reproduz através de uma rede de interações e referências, que são tanto interiores quanto exteriores à obra. Essas interações apontam para a autonomia da arte e, ao mesmo tempo, vinculam a arte à sociedade. A auto-descrição é o que garante a identidade de uma “obra” musical, mesmo que esta seja interpretada de maneiras diferentes ou em situações diferentes. É a capacidade autodescritiva do sistema artístico que permite, por exemplo, diferenciar a música “eletrônica” tocada nas pistas de dança das baladas da música “eletroacústica” tocada nas salas de concerto. A possibilidade de interpretação, que atualiza o significado da obra, é uma das características essenciais da música. A questão da compreensão musical emerge então de um espaço intertextual, que não se restringe apenas às referencias interiores da obra nem ao sistema 460 artístico, mas inclui também toda essa rede de interações que conecta a arte aos demais sistemas da sociedade. É preciso considerar que as formas artísticas se agregam e desagregam a uma velocidade vertiginosa nas mídias contemporâneas – sonoras, visuais, espaciais, informáticas, midiáticas, etc. – o que nos obriga a redesenhar constantemente os mapas e as fronteiras dos sistemas de referência. Absorvidos nesse turbilhão, temos de nos questionar se a investigação é capaz de acompanhar os processos de diferenciação ou se não estávamos fadados a desaparecer nos vetores de alta velocidade da sociedade capitalista pós-industrial que tendem a eliminar o espaço de reflexão e de crítica. Portanto, retomando o nosso ponto de partida, temos de admitir que a questão da compreensão musical coloca-nos diante da necessidade de definir os próprios limites da música como objeto de reflexão. Como compreender os diferentes tipos de manifestação musical? Qual a diferença entre a obra de música erudita e a obra de música popular; entre a música de concerto e a música de cinema; entre a obra de arte musical ouvida em salas de concerto e a instalação de “arte sonora” exibida em galerias e museus? Se, de acordo com Wittgenstein, pensarmos a compreensão musical como “uma manifestação da vida humana” (VB 550), vemos então aparecer manifestações de vida possuindo suas próprias expressões, escutas, movimentos e jogos de linguagem. Mas além de reunir e diferenciar, é preciso também comparar todos os elementos com a complexidade de formas e valores culturais que constituem a história da música e da arte. Seria assim possível encontrar bases comuns, “constantes lógicas” (Wittgenstein TLP 4.0312) que nos permitam abordar a questão da compreensão musical através de princípios unificadores? Ou devemos então concentrar-nos somente nas diferenças? Finalmente, colocando a questão em termos ainda mais radicais, podemos nos perguntar: compreender o “significado musical” de alguma coisa que se manifesta no mundo? 461 2. Som e Ruído A experiência da música requer que a consciência realize, pelo menos, dois tipos de distinções fundamentais: por um lado a oposição entre o som musical e ruído, por outro lado a oposição entre música e linguagem. A distinção entre som musical e ruído evidencia a nossa capacidade de analisar as vibrações sonoras percebidas pelo ouvido, selecionando aquelas que consideramos pertencentes ao domínio da música e eliminar as que consideramos ruído. O som musical é portanto um processo abrangente que seleciona informações no ambiente do ruído; reduzimos complexidade do ruído a um conjunto de parâmetros ao qual atribuímos significado musical. A sensação de altura, que é talvez a mais determinante para definir a musicalidade de um som, está associada primordialmente à nossa capacidade de quantificar temporalmente o fenômeno sonoro em termos de vibrações periódicas – as freqüências – e vibrações aperiódicas, que associamos ao ruído. As vibrações periódicas lentas produzem sons graves, as vibrações periódicas rápidas produzem sons agudos. As vibrações aperiódicas produzem sons sem altura definida, que são mais ou menos “ruidosos” dependendo das irregularidades das vibrações. As vibrações periódicas são classificadas por meio de sistemas de intervalos e escalas, cuja função é dividir e quantificar o contínuo sonoro. A música ocidental utiliza desde há alguns séculos a escala cromática na qual o intervalo de oitava é dividido em doze semitons iguais – as “notas” musicais. O intervalo de oitava ocorre quando as frequências estão em proporção de 2 para 1. Ou seja, a oitava estabelece uma relação de similaridade que permite identificar as mesmas “notas” em diferentes registros do contínuo sonoro. Outras escalas – como as de cinco sons, sete sons, etc. – são usadas em músicas de diferentes culturas e civilizações. De uma forma geral, considera-se que o conjunto de possibilidades de uma escala é determinado culturalmente. Além da altura, há três outras propriedades do som que são tradicionalmente associadas à música: a intensidade, a duração e o timbre. As corre- 462 lações entre as propriedades do som e a música vêm sendo estudadas há vários séculos por filósofos e cientistas. O grego Pitágoras foi o primeiro a observar as proporções dos intervalos musicais como fundamento da harmonia. Ele esboçou a visão de um mundo descrito por meio das relações lógicas e matemáticas entre os sons, onde a harmonia do microcosmo sonoro projeta-se no macrocosmo do universo e vive-versa. A idéia de que a harmonia dos indivíduos na sociedade e a harmonia dos corpos celestes pode ser expressa em termos sonoro-musicais – que está implícita nessa visão pitagoriana – continua estimulando até hoje nossa imaginação. A ciência do mundo moderno elaborou a noção física de espectro sonoro que está relacionada à noção perceptual do timbre de um som. O timbre é o que caracteriza a cor ou a qualidade de um som, o que diferencia a mesma nota musical produzida por diferentes instrumentos – por exemplo uma flauta ou um violino – ou por diferentes meios sonoros – o som acústico ou eletroacústico. Ao contrário da altura e da intensidade, não é possível construir uma “escala” para ordenar as diferenças entre os timbres. Trata-se de uma propriedade multidimensional do som que só pode ser descrita de forma subjetiva através de analogias e oposições. Por exemplo, escuro/claro, opaco/brilhante, suave/duro, frio/quente, puro/rico, estático/dinâmico, compacto/disperso, liso/rugoso, etc. Os atributos do timbre são descrições perceptuais, que estão relacionadas tanto à percepção dos sons do ambiente – os timbres que identificamos na natureza, os ruídos das máquinas e aparelhos – quanto à nossa capacidade de construir sonoridades por meio de voz, instrumento, meios mecânicos, eletrônicos, etc. O timbre é um elemento básico da expressão musical que diferencia, por exemplo, a qualidade da interpretação de um cantor ou de um instrumentista. A preocupação com o timbre motivou o desenvolvimento de corpos sonoros coletivos destinados a produzir uma multiplicidade e diversidade de timbres; por exemplo a orquestra sinfônica ocidental, o gamelão (orquestra de percussões metálicas da Indonésia), as orquestras de tambores da África Ocidental, etc. A música eletroacústica ampliou consideravelmente importância do tim463 bre na composição musical, na medida em incorporou o ruído da natureza e da sociedade, e praticamente qualquer som existente ou imaginável. O timbre tornou-se também uma preocupação fundamental da música acústica – vocal e instrumental – do século XX, através de sistemas de composição baseados em metáforas sonoras, como por exemplo a chamada “música espectral” européia. Os sons musicais consistem geralmente em espectros complexos, formados por um grande número de constituintes ou parciais, que podem estar harmonicamente relacionados ou não. O ouvido funciona como uma espécie de analisador “biológico” do espectro. A complexidade de um espectro pode ser comparada a uma composição para orquestra sinfônica. O músico treinado pode perceber diferentes partes numa partitura complexa, enquanto que um ouvinte não treinado percebe apenas uma massa sonora amorfa ou difusa. Os elementos constitutivos da linguagem musical estão correlacionados a essa nova capacidade de realizar distinções analíticas no espectro. Por exemplo, os experimentos realizado por Helmholtz, em meados do século dezenove, demonstram que as sensações de consonância e dissonância podem ser explicadas pela nossa capacidade em distinguir batimentos e outras interferências que ocorrem entre os parciais do espectro. A dissonância é associada à rugosidade causada pelo batimento de parciais, a consonância é associada à ausência de batimentos. A dissonância estaria portanto mais próxima da concepção do ruído em oposição à consonância que está mais próxima do som musical. As relações de consonância e dissonância mostram que a oposição som musical/ruído é uma função recorrente e fractal, ou seja trata-se de uma operação que entra nela própria desdobrando novas oposições que, por sua vez, representam novas categorias estéticas. A história da música pode ser analisada como um desdobramento cada vez mais sutil e profundo da oposição fundamental entre o som musical e o ruído: a consciência musical, à medida que vai evoluindo, apropria-se cada vez mais do ruído, percebendo as diferenças internas, valorizando-as e transformando-as em sons musicais. Assim, a música eletroacústica pode ser 464 estudada como uma manifestação recente da conquista consciente do ruído como meio de expressão musical. Na verdade, assim como a escala expressa o conjunto de possibilidades de uma cultura, as noções de consonância e dissonância não são determinadas somente por leis acústicas ou fisiológicas, mas representam igualmente valores culturais. 3. Música e Linguagem A distinção fundamental entre música e linguagem pode ser abordada a partir da voz, que é o elemento comum a esses dois sistemas de comunicação acústica. Do ponto de vista evolucionário, a voz é uma manifestação unicamente humana. Embora muitos animais possam emitir sons, somente os seres humanos produzem essa forma de organização sonora que reconhecemos como linguagem. O primeiro som significativo produzida pela voz é o choro. Estudos realizados sobre o choro do bebê demonstram que este som compartilha certas características de estímulos acústicos que têm a capacidade de despertar, alertar e atrair a atenção do ouvinte, e que possuem também certas propriedades acústicas que permitem reconhecer uma situação de necessidade ou de alarme (Cf. Oswald 1963, 39-48). A aquisição de uma linguagem é um processo inconsciente, em que a criança começa a falar imitando sons dos seus pais e prossegue com o reconhecimento das regras linguísticas que organizam os sons em palavras e frases. Posteriormente, o processo de aprendizado da linguagem vai sendo influenciado e moldado por experiências individuais e sociais que podem durar até mesmo a vida inteira. Do ponto de vista da semiótica existencial, a voz é a manifestação do movimento do imanente para o manifesto, o qual constituiu a essência da significação (Tarasti 2002, 157). Todo ato vocal, como aponta Tarasti, implica o esforço da projeção de um signo que “nos leva dar o salto do Dasein de nossa própria identidade para uma outras identidade e seu Dasein (Tarasti 2000, 30-2). A voz que emana de um sujeito é uma forma de escapar do mundo do Dasein individual, um esforço para romper os limites do solipsismo e conectar-se com o social. Isso fica evidente quan465 do vemos um cantor, o produtor da voz, diante de uma platéia. Os gestos e tensões musculares que se manifestam no ato de cantar, segundo Tarasti, enfatizam a síntese entre o esforço físico e intelectual, a qual está implícita na concepção de toda linguagem. A linguagem que usa a voz para produzir a fala é o principal sistema de comunicação da sociedade. Ela utiliza um número bastante reduzido de sons – os fonemas – que não têm valor em si mesmo, mas adquirem valor na medida que se opõem a outros sons. Ou seja, o valor dos fonemas é estritamente diferencial e relacional. As oposições fonológicas, que organizam o material sonoro da fala, são os elementos distintivos da linguagem. A presença de um traço distintivo indica uma unidade significante que se opõe a uma outra unidade que poderia ocorrer com outra característica. A ideia de que a música e a linguagem são sistemas simbólicos de comunicação que compartilham a elaboração do material sonoro como elemento distintivo, alimentou comparações entre música e linguagem. A linguística de Saussure, as idéias do estruturalismo filosófico e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss – na medida em que refletiram sobre as relações de equivalência entre os diferentes processos de significação como a linguagem, as artes, os mitos, os parentescos, os ritos, a economia, etc. – tiveram forte influência nos estudos de semiótica musical do século XX. Uma das características das abordagens semióticas da música inspiradas pela lingüística, foi reproduzir a distinção fundamental da teoria saussuriana entre língua [langue] e fala [parole] como base da compreensão musical. Na linguística de Saussure, a língua é o sistema de valores organizado através das oposições distintivas, regras e normas gramaticais, que funciona como uma espécie infraestrutura. A fala é o ato de utilização da língua pelo indivíduo que está vinculado a fatores diversos, não necessariamente lingüísticos – situação, personalidade, ambiente cultura e social, etc. A língua é primordialmente um conceito, um repertório de possibilidades visto do exterior. A fala está associada à imagem acústica como um todo, não apenas à materialidade física do som mas também ao esforço muscular e à impressão psíquica. 466 A língua representa o domínio do virtual, onde nada ainda é dito e a fala representa o domínio da corporalidade do processo de individuação. De acordo com a terminologia de Tarasti, a distinção entre língua e fala representa o movimento do imanente para o manifesto do qual emerge a significação. O signo linguístico de Saussure representa a síntese dessa oposição fundamental entre o conceito (a língua) e a imagem acústica (a fala). Na definição do signo, as noções de conceito e imagem acústica são associadas respectivamente aos termos significado [signifié] e significante [signifiant] (Saussure 1972, 99). Saussure desenvolve assim uma concepção de linguagem como um sistema de diferenças articulado em dois planos distintos formando uma unidade. A ideia de que a música possa ser analisada também como um sistema articulado unificando conceitos a imagens acústicas é o ponto de partida para as comparações entre a música e a linguagem. A música é linguagem. Isso quer dizer, entre outros, que ela é um sistema de comunicações através do qual os homens trocam significados e valores. Para existir, ser eficiente, a música tem portanto de obedecer às regras que tornam possível, de uma forma geral, o funcionamento de um sistema de comunicação (Ruwet 1972, 26). Ruwet faz uma distinção entre os diferentes modos de relações humanas. Por um lado, estão os modos que não são articulados como linguagem, como o grito, o olhar, as carícias, etc. Eles possuem uma grande riqueza, uma variedade infinita de possibilidades, mas trata-se de uma riqueza confusa, indiferenciada, inefável. É o caso, por exemplo da riqueza do ruído, que é virtualmente inesgotável, mas que precisa ser articulada num sistema musical para tornar-se significativo. Por outro lado, estão os sistemas articulados e diferenciados como os mitos, ritos, linguagens, sistemas econômicos, de parentesco, etc. Esses sistemas exprimem a totalidade de uma forma complexa, mas implicam também certas regras e 467 limitações. A música, obviamente, integra a categoria dos sistemas articulados. Mas quais seriam as regras que articulam a linguagem musical? O modelo de discurso musical proposto por Tarasti desenvolve a distinção fundamental da linguagem – a dupla articulação do signo – a partir dos conceitos de imanente e manifesto. A oposição fundamental entre um nível manifesto e um nível imanente desdobra-se recursivamente em duas oposições secundárias que ocorrem no interior desses níveis. No interior do nível manifesto ocorre a oposição os modelos tecnológicos e ideológicos, no interior do nível imanente a oposição entre as estruturas de comunicação e as estruturas de significação (Tarasti 1994, 16-20). Os modelos tecnológicos e ideológicos determinam o universo simbólico da música. Os modelos ideológicos são os conceitos e normas que avaliam a música de uma cultura ou sociedade; na música Ocidental estão representados pela estética musical, que inclui o discurso crítico e acadêmico sobre a musica. Os modelos tecnológicos são constituídos pelos sistemas e regras da composição; por exemplo as técnicas da harmonia, do contraponto, do serialismo, etc.; nessa categoria pode-se incluir também as técnicas de composição contemporânea, eletroacústicas, digitais, etc. A oposição entre os modelos ideológicos e tecnológicos influencia o discurso musical na medida em que reflete-se sobre as estruturas de comunicação e significação. As estruturas de comunicação são os processos que servem para comunicar as idéias musicais; por exemplo as estruturas estilísticas, que limitam as escolhas e oferecem soluções para o compositor criar a obra musical. As estruturas de significação representam a liberdade de produzir um significado próprio através da obra musical. É a essência estética da música. A oposição entre as estruturas de comunicação e significação é um processo dinâmico na medida em que o valor estético de uma obra pode consistir, por exemplo, na ruptura com as normas vigentes de uma época. É o que se observa com frequência ao longo da história da música. 468 4. Música e Mito O antropólogo Claude Lévi-Strauss propõe uma reflexão sobre as relações entre música, mito e linguagem na introdução de O Cru e o Cozido (Lévi-Strauss 1964). Trata-se do primeiro volume do seu monumental estudo sobre os mitos dos índios Bororo do Centro-Oeste brasileiro e de outros grupos indígenas da chamada “América tropical”, que ele visitou e pesquisou durante suas viagens etnográficas, na década de 1930. O texto introdutório, denominado Ouverture, tem um interesse particular para o estudo da compreensão musical, por causa da critica formulada por Lévi-Strauss contra as estéticas que dominaram a música européia em meados do século XX: a música atonal e serial (instrumental e vocal) e a música concreta (eletroacústica). Essa critica é também interessante do ponto de vista histórico, por ter causado uma polêmica envolvendo Pierre Boulez, compositor ícone da vanguarda musical européia, e Pierre Schaeffer, criador e mentor da música concreta que emergiu nos estúdios da rádio estatal de Paris no início da década de 1950. Lévi-Strauss levanta a hipótese de que o pensamento musical associado às estéticas do atonalismo e serialismo carece de um fundamental natural que justifique objetivamente o sistema de relações entre os sons, o qual, em última análise, assegura a compreensibilidade da música. No caso da música concreta, a rejeição é ainda mais radical: Lévi-Strauss reconhece que a música concreta estabelece uma relação direta com o fenômeno sonoro natural, pelo fato de operar com os ruídos, mas que, ao invés de explorar o valor representativo do ruído, optou por “desnaturar” os ruídos e torná-los irreconhecíveis para os ouvintes. A crítica levantada por Lévi-Strauss é emblemática da dificuldade em se compreender a música contemporânea em geral, sobretudo a música eletroacústica, a partir de modelos inspirados da lingüística. O pensamento estruturalista, que persiste sob variadas formas nos estudos de semiótica musical, opera através da articulação fundamental de dois níveis de significação que, em última análise, pode ser reduzida à oposição 469 entre cultura e natureza. A ideia de que a cultura é uma separação, um dilaceramento do homem em relação à natureza que traduz a impossibilidade de ter acesso à realidade do mundo, permeia tantos os estudos antropológicos quanto psicanalíticos. A cultura introduz no âmbito do ser uma lacuna que é impossível de ser preenchida ou restituída: “o real está sempre no limite da experiência”, afirma Lacan (citado por Ruwet); o homem só tem acesso ao real por intermédio de um conjunto de sistemas significativos (linguagem, mito, ritos, sistemas de parentescos, sistemas econômicos, arte); cada um desses sistemas impõe sua marca no real e permanece sempre irredutível mesmo aos outros sistemas significantes, apesar das relações de equivalência ou de transformação que se possa estabelecer entre as estruturas dos diferentes sistemas (Ruwet 1972, 67). Lévi-Strauss faz uma aproximação estrutural do mito com a música. O mito e a obra musical, segundo ele, têm em comum o fato de serem linguagens temporais que transcendem, cada uma à sua maneira, o plano da linguagem articulada, preenchendo ou dissimulando assim a lacuna do real. Tanto a música como o mito operam com a temporalidade, mas ao mesmo tempo tratam de negar o tempo. Ambas funcionam como “máquinas para suprimir o tempo” (Lévi-Strauss 1964, 24). Sob a superfície dos sons e dos ritmos, a música explora um terreno bruto, que é o tempo fisiológico do ouvinte; trata-se de um tempo irreversível, mas que a música transforma numa totalidade sincrônica e fechada sobre si mesma. Assim, a música supera a irreversibilidade do tempo histórico criando obras que são estruturas compactas e permanentes. As óperas de Wagner, a ópera Pélleas et Melissande de Debussy e o balé Les Noces de Stravinsky são exemplos de obras musicais cuja escuta inspirou Lévi-Strauss a associar a música à mitologia e a desenvolver uma análise estrutural dos mitos orientada pela escuta musical: A escuta da obra musical, devido à organização interna da mesma, imobiliza o tempo que passa; como uma toalha de mesa 470 levantada pelo vento, ela pega e dobra o tempo. Por isso é que, ao escutar a música e durante a escuta da música, atingimos uma espécie de imortalidade (Lévi-Strauss 1964, 24). Para Lévi-Strauss a música cria significação através de duas redes de relações, uma interna e outra externa. A rede externa, ou cultural, consiste no sistema de intervalos (alturas) e nas relações hierárquicas entre as notas da escala, como tônica, dominante e sensível. Os sons musicais são objetos culturais pelo fato de se oporem aos ruídos da natureza. A rede interna, ou natural, é reiterada por uma segunda rede interna, ainda mais natural: a dos “ritmos viscerais”. Consequentemente, a música articula a mediação entre natureza e cultura no interior de sua própria linguagem, tornando-se uma espécie de hiper-mediação. Em outras palavras, Lévi-Strauss aponta aqui para um processo recursivo em que a oposição natureza/cultura desdobra-se no lado da natureza como uma estrutura fractal a fim de produzir significação. Tanto do lado da natureza quanto da cultura, “a música ousa ir mais longe” que todas as outras artes. Isso explica “o poder extraordinário da música de atuar simultaneamente na mente e na sensibilidade,” de desencadear ao mesmo tempo idéias e emoções, de criar uma fusão entre esses universos (Lévi-Strauss 1964, 36). O pensamento de Lévi-Strauss sintetiza dois pontos de vistas: (1) as propriedades físicas e fisiológicas do som constituem o fundamento da música; (2) a tonalidade é o sistema adequado para explorar significativamente essas propriedades. A ideia de que a música desenvolve uma organização natural da experiência sensível, explorando e selecionando as combinações e os contrastes que servem para elaborar um código de distinções significativas cristaliza-se na tonalidade. As relações entre os sons como os intervalos, acordes, funções tonais, etc. constituiriam assim o primeiro nível de articulação, comparável ao sistema fonológico da linguagem. Em outra palavras: a música opera com sons musicais (e não com os ruídos do ambiente), os quais são produto de uma cultura, mas que ela organiza de acordo com as leis da natureza. A música concreta, 471 na medida em que rejeita os sons musicais para explorar exclusivamente os ruídos, desintegra o sistema de significações que poderia constituir a base de uma segunda articulação: “A música concreta cultiva a ilusão de estar dizendo alguma coisa; mas na verdade ela está apenas patinhando na não-significação” (Lévi-Strauss 1964, 31). Para que uma linguagem seja compreendida, segundo Lévi-Strauss, é preciso que os elementos extraídos da natureza sejam organizados num sistema de primeira articulação, de relações fixas e reconhecíveis. Os elementos que adquirem uma função significativa pela segunda articulação devem estar marcados para que haja significação. Para Lévi-Strauss, tanto a música concreta quanto a música serial tentam constituir um sistema de signos com um único nível de articulação: a música concreta rejeita a matéria sonora e a música serial rejeita a forma. O problema do pensamento serial e por extensão de todas as estéticas que rejeitam o sistema tonal como princípio de organização, é ter desviado o foco das particularidades físicas e fisiológicas do som – as relações hierárquicas e os fundamentos naturais –, para explorar apenas o jogo de combinações entre os sons que é predominantemente de ordem cultural. O antropólogo e etnólogo Lévi-Strauss, que se aventurou pelo mundo para estudar as estruturas do pensamento mitológico de diferentes povos e culturas, chega a uma conclusão pessimista sobre os rumos da música serial: é como um barco sem vela que flutua à deriva, depois que o comandante resolveu cortar as suas amarras; talvez essa aventura leve o barco a descobrir novas terras; mas não será por vontade e conhecimento dos navegadores (Lévi-Strauss 1964, 33). 5. Música e Autonomia A crítica de Lévi-Strauss reacendeu o debate histórico sobre a autonomia da música, que teve grande importância durante o século XIX, polarizando a discussão entre “música absoluta” e “música programática”. O crítico alemão Eduard Hanslick, no seu emblemático ensaio Vom musikalis- 472 ch Schönen [Do Belo Musical] de 1854, defende a idéia de que “a musica é composta de seqüência de sons, formas sonoras não têm outro conteúdo senão a si mesmo. [...] a música não fala através de sons, mas fala apenas sons” (Abegg 1974: 29; ênfase no original). Essa idéia de linguagem musical está vinculada ao conceitos de formalismo musical e autonomia da arte, que persistiram ao longo de todo século XX, com a Segunda Escola de Viena (Schönberg, Webern, Berg) e a música de vanguarda acústica e eletroacústica. O axioma da autonomia da música pode ser colocado nos seguintes termos: a música é auto-referencial, na medida em que não necessita de nenhuma referencia à linguagem, porque ela própria é uma linguagem autônoma. Essa idéia domina também filosofia de Wittgenstein. Para ele, a música é parte de uma rede social de inúmeros jogos de linguagem. A articulação da linguagem musical não se dá entre forma e conteúdo, mas entre forma e uso. Não existe nenhum objeto no exterior dos nossos jogos de linguagem. Não devemos falar de propriedades objetivas da música e sim da múltiplas relações da música com outras músicas e com a nossa cultura de uma forma geral. Ou seja, não devemos examinar o conteúdo da música em oposição à sua forma, mas sim em relação às suas “regras” e “uso”. Toda música se refere – voluntária ou involuntariamente – à totalidade de manifestações composicionais que surgiram antes dela, embora essas em si sejam únicas. A música remete a si própria, à cultura e ao momento específico em que ela surgiu. Isto compreende a “totalidade de formas de vida” – tudo que marca uma cultura, como afirma Wittgenstein – incluindo estruturas mitológicas, religiosas, artísticas, etc. Assim, no início do século XX, abriu-se o caminho para uma música que não está mais enraizadas nas linhas da tradição, uma música que não recorre aos modelos formais existentes e cujas estruturas harmônicas, tonais, sonoras etc. são renovadas em cada obra. Portanto uma música que pode ser considerada uma “perda de linguagem”. Em meados do século XX, a questão da autonomia musical, nas estéticas da música serial, concreta e eletroacústica, insere-se num movimento de contestação política e social, 473 representando anseios de buscar novos espaços de liberdade por meio de um distanciamento do indivíduo em relação às regras. Eles afirmam, ao mesmo tempo, a singularidade da transgressão, através da prática da arte, e a utopia estética da autonomia da arte. No ensaio Penser la musique aujourd’hui [Pensar a música hoje] de 1963, Pierre Boulez descreve a técnica musical do serialismo como a de universo musical relativo, “onde as relações estruturais não são definidas uma vez por todas de acordo com critérios absolutos, mas, ao contrário, se organizam segundo esquemas variáveis” (Boulez 1963, 35). A noção de relatividade elimina assim a oposição entre níveis de significação. A concepção dualista de que o material da música seria o conjunto de elementos sonoros e a obra seria a organização desse material no tempo reduz-se à unidimensionalidade da forma: o material sonoro já é uma forma, pois cada obra musical é uma composição tanto do material quanto da forma. Assim, a utopia da música do século XX é a de uma linguagem que não se constrói a partir de materiais ou formas pré-existentes, mas é deduzida a cada obra. Essa utopia foi definida por uma analogia da astronomia que se tornou emblemática: “O pensamento tonal clássico está fundamentado sobre um universo definido pela gravitação e atração; o pensamento serial sobre um universo em perpétua expansão” (Boulez 1966, 296). Para os estruturalistas de orientação linguística, entretanto, a música do século XX fracassa em criar um discurso autônomo. Há uma contradição fundamental entre a complexidade da composição e a simplicidade do ponto de vista da escuta musical. A analogia da expansão do universo exprime apenas uma falácia, um abismo entre os objetivos e a realidade da obra, como afirma Ruwet numa crítica às contradições da música serial, formulada em 1959. Mesmo que a música consiga desenvolver “belas” sonoridades, o discurso musical não consegue atrair a atenção do ouvinte: “tudo se passa como se a música caísse no estado de indiferença da natureza pura, como se ela renunciasse a criar uma linguagem, uma história” (Ruwet 1972, 24). Lévi-Strauss insiste na mesma crítica, ao questionar se a escola serial conseguirá superar a tradicional lacuna entre o 474 compositor e o ouvinte. Ao retirar do ouvinte a possibilidade de se referir inconscientemente a um sistema geral, a música serial obrigará o ouvinte a “reproduzir por si próprio o ato individual da criação” caso ele queira compreender a música. Através do poder de uma lógica interna e sempre nova, cada obra arrancará o ouvinte de sua passividade para fazê-lo participar do impulso criador, de forma que a diferença entre inventar e escutar a música não será mais de natureza, mas somente de grau. Ou então as coisas acontecerão de maneira bem diferente. Lévi-Strauss inverte a analogia da astronomia para afirmar que a música serial talvez pertença a um mundo onde a música ao invés de levar o ouvinte na sua trajetória, se afastaria dele: Em vão [o ouvinte] se esforçaria em alcançá-la: a cada dia ela lhe pareceria mais distante e inapreensível. Em breve, estaria distante demais para emocioná-lo, apenas a idéia musical continuaria ainda acessível, antes que acabe se perdendo sob o arco noturno do silêncio, os homens só a reconheceriam como cintilações breves e fugazes (Lévi-Strauss 1964, 34). No início do século XXI, a música contemporânea encontra-se distante do ouvinte. A apreciação da música contemporânea “erudita”, sobretudo a de caráter experimental, atingiu um grau de relevância marginal na sociedade, contrastando com a influência e o poder de penetração da música “popular”. A maioria dos compositores da chamada música “séria” [E-Musik] acostumou-se a ver as suas obras executadas diante de platéias mínimas ou reduzidas; a música contemporânea vive praticamente na obscuridade da mídia, em oposição à música de “entretenimento” [U-Musik] que é executada em eventos de massa globais e amplamente divulgada pelos canais mediáticos.1 As poucas obras musicais do século XX 1 Os termos alemães E-Musik e U-Musik foram cunhados pela crítica alemã no século XX para diferenciar as funções da música na sociedade. A letra “E” é a inicial da palavra Ernst (= séria) e a letra “U” é a inicial da palavra Unterhaltung [= diversão, entretenimento). Ou seja, o termo E-Musik distingue a música séria, da arte erudita, e o termo U-Musik refere-se à música de entretenimento, popular, etc. Como apontou Landy, a cultura da E-Musik, altamente subvencio- 475 que atingiram um grande público, como observou Landy, resultaram de uma utilização da música em contextos audiovisuais, não relacionados à narrativa original da música. É o caso, por exemplo, das obras de Györgi Ligeti usadas no filme 2001 Uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick (Landy 2007, 24). Landy critica o fato de que a investigação musical tem valorizado o problema da criação, o ponto de vista do compositor e negligenciado a experiência da escuta, o ponto de vista do ouvinte. Landy identificou algumas propriedades que ajudariam a tornar mais compreensíveis o que ele chama de “sound-based composition”, ou seja composição baseada no som. Trata-se de um amplo domínio de criação sonora que inclui, por exemplo, estéticas derivadas da música concreta, como a acusmática, soundscape, ecologia acústica, música eletrônica ao vivo, música mista (acústica e eletroacústica), obras audiovisuais, arte sonora, instalações sonoras, obras radiofônicas, música para internet, etc. que facilitariam a escuta musical e tornariam mais acessíveis a recepção e apreciação da obra. 6. Música e Mimese O debate sobre a música contemporânea foi dominado, no século XX, pela figura de Adorno. Seu pensamento, de inspiração marxista, analisa o efeito alienador da indústria cultural. A dialética negativa de Adorno é uma reflexão implacável sobre o aparente fracasso da civilização ocidental. A destruição da Segunda Guerra Mundial e o horror perpetrado pelo Holocausto nazista – o extermínio sistemático de milhões de judeus – abalou a crença nos valores da cultura e da arte. Em a Dialética do Iluminismo (1944) [Dialektik der Aufklãrung], obra escrita durante o seu exílio em Los Angeles, Adorno contesta o potencial de liberação do pensamento iluminista na era do capitalismo monopolista. Vivendo próximo a Hollywood, e distante das ruínas da guerra e do pós-guerra europeu, Adorno refletiu sobre a marcha triunfal da indústria cultural. A critica à nada pelo Estado e as organizações de rádio e televisão, constitui uma exceção a nível global (Ver Landy 2007: 23). 476 ideologia da indústria cultural e à cultura de massa dominam a Filosofia da Nova Música (Adorno 1949) [Philosophie der neuen Musik], uma reflexão ampla e complexa sobre a substância social da música e a estética da música atonal e serial. A obra atraiu enorme atenção por causa da discussão levantada por Adorno, sobre o valor e potencial histórico da música contemporânea, opondo a música de Schönberg à de Stravinsky, dois compositores ícones da primeira metade do século XX. A estética de Adorno elabora o conceito de verdade da filosofia de Hegel, exposta nos Cursos sobre Estética [Vorlesungen über die Ästhetik]. Para Hegel, o ideal da arte é representar a verdade, enquanto manifestação do espírito absoluto inserida no contexto da historicidade. A arte possui assim objetivos comuns com a religião e a filosofia. As obras de arte são manifestações sensíveis da verdade, são formas do espírito absoluto mais verdadeiras que a própria verdade do mundo cotidiano. Assim como Benjamin, Adorno constata a modificação sofrida pela arte na era da reprodutibilidade técnica. A arte transformou-se em mercadoria; não é mais possível ter certeza sobre sua relevância como fonte de conhecimento e verdade. Porém, ao contrário de Benjamin, Adorno não considerava que a aura da obra de arte havia desaparecido por causa da reprodução técnica. Para ele, a arte encerra um enorme potencial de transformação social, as obras de arte possuem uma mensagem de esperança da qual ele não está disposto a abrir mão. É justamente este o valor da música atonal e serial de Schönberg, que Adorno considerava como a síntese de uma dialética negativa, opondo as atitudes de inexorabilidade (radicalismo) e de conciliação (aceitação). A atitude inexorável da musica de Schönberg consiste na sua estética radical de rejeição da música tonal; ela representa a verdade social de uma música que se opõe ao mercantilismo da sociedade capitalista. A atitude conciliadora reconhece o direito da música existir na sociedade, mesmo na “falsa” sociedade, oferecendo elementos que contribuem para a sobrevivência da própria sociedade. Isto se manifesta, por exemplo, quando Schönberg incorpora elementos da tonalidade na sua música atonal e serial. Em suma, essa 477 oposição entre as atitudes negativa (radicalismo estético) e afirmativa (reconciliação histórica) torna a musica de Schönberg “a mais representativa de uma consciência estética avançada” (Adorno 1975, 116). Para Adorno, Schönberg utiliza o material da racionalidade e da modernidade contra a própria cultura dominante da sociedade de massas. Adorno aplica essa mesma dialética negativa/positiva na análise da música Stravinsky, mas para chegar a uma conclusão diametralmente oposta. Stravinsky é o vilão da “música nova” em oposição ao herói Schönberg. Adorno considera que as narrativas mitológicas da música do período inicial de Stravinsky, por exemplo suas obras orquestrais para balé incluindo a emblemática A Sagração da Primavera, desenvolvem uma visão alienada e deturpada de mitos pagãos – como o mito da morte – com o intuito de celebrar uma espécie de primitivismo musical e social. Da mesma forma, Stravinsky manipula a consciência histórica quando se apropria de estilos musicais e reintroduz a tonalidade nas suas obras posteriores do chamado período neoclássico. Adorno considera que a música de Stravinsky cria uma série de máscaras que obscurecem e banalizam o sofrimento humano, tema que move o progresso da música na modernidade; a música corteja o poder e por isso desenvolve uma espécie de proto-facismo. Em Stravinsky, “a subjetividade assume o caráter da vítima mas – e zombando assim da tradição humanística da arte – a música se identifica não com a vitima mas com a autoridade aniquiladora” (Adorno 1975, 133). A polarização entre as figuras de Schönberg e Stravinsky provocou uma profunda polêmica que se estendeu ao longo do todo século XX, influenciando diretamente estética dos compositores da várias gerações. A reputação de Stravinsky foi resgatada posteriormente pelos compositores da geração do pós-guerra, como Boulez e Pousseur, que ressaltaram a originalidade e a diversidade estética da música de Stravinsky [ XX]. Assim como Adorno, tanto Schöenberg quanto Stravinsky deram as costas à Europa, fugindo ou não do nazismo, e emigraram para os Estados 478 Unidos. Todos eles estiveram, de uma forma ou outra, em contato com a realidade de Hollywood. Schönberg resistiu aos inúmeros convites para escrever música para cinema; Stravinsky teve trechos de A Sagração da Primavera utilizada no desenho animado Fantasia produzido pelos estúdios da Disney. A sequência começa com a formação do planeta e conclui com o ritual “primitivista” da luta de dinossauros em extinção. Na sua análise de Fantasia, Tarasti mostrou que o universo de Disney desenvolve significados a partir de relações totêmicas que emergem de referências ao primitivismo e à consciência selvagem. Esses temas, como mostrou Lévi-Strauss, são fenômenos universais, o que explicaria o sucesso de Fantasia no mundo inteiro. Para Tarasti, a estética cinematográfica de Disney representa a essência da civilização americana, a qual está “baseada no fenômeno do nada [nothingness], pois os totens têm de compensar a falta de estruturas sociais, como as que existem na Europa” (Tarasti 2000, 189). Adorno examina o problema da significação musical no seu curto texto Fragmento sobre Música e Linguagem (1956), publicado como introdução ao ensaio Quasi una Fantasia (1963), Logo no início do texto, ele abre uma discussão comparando a música à linguagem. Música é semelhante à linguagem. Expressões como idioma musical, intonação musical não são metáforas. Mas a música não é linguagem. Sua semelhança com a linguagem aponta o caminho para o interior, mas também para o vago. Quem considerar a música literalmente como linguagem, está enganado. A música é semelhante à linguagem no sentido de que é uma sucessão temporal de sons articulados, que são mais do que simplesmente sons. Eles dizem alguma coisa, quase sempre alguma coisa humana. Quanto mais elevada a música, com mais ênfase eles dizem. A sucessão de sons está relacionada à lógica: há certo e errado. Mas o que é dito não pode ser separado da música. A música não cria nenhum sistema de signos (Adorno 1978, 251). 479 Para Adorno, a similaridade entre música e linguagem ocorre em vários níveis, desde o nível da obra como um todo até o nível de um som individual. A teoria da música está repleta de analogias linguísticas como frases, períodos, perguntas, pontuações, parênteses, etc. Assim como a linguagem, a música utiliza elementos recorrentes, signos que, aplicando-se a terminologia da semiótica de Peirce, funcionam como índices e símbolos (Peirce 1998). É o que ocorre, por exemplo, com elementos que identificam a tonalidade: acordes usados com as mesmas funções, progressões fixas de acordes como cadências, figuras melódicas com funções harmônicas, etc. Esses signos funcionam como conceitos abstratos, assim com os conceitos da linguagem. Mas ao contrário da linguagem, os conceitos musicais possuem identidade própria e não exterior. O processo de fixar identidades gera uma segunda natureza, que, na terminologia estruturalista, poderia ser chamado de segundo nível de articulação da música. Mas Adorno considera que essa “segunda natureza” não passa de uma ilusão – são fórmulas estereotipadas, mecanismos e outros procedimentos, que música “nova” trata de rejeitar. A diferença fundamental entre a música e a linguagem, segundo Adorno, consiste no fato de que a música aspira a ser uma linguagem não intencional. A música diz e ao mesmo tempo esconde. Este é o aspecto teológico da música, que a aproxima da religião; “sua idéia é a forma [Gestalt] do nome divino” (Adorno 1978, 252). Para Adorno a música é uma oração desmistificada, uma prece que se libertou da obrigação de invocar o nome [divino], e não comunicar nenhum significado. A música pretende ser uma linguagem sem intenção mas, na verdade, ela articula uma dialética permeada de intencionalidade, cuja principal característica é a ambigüidade. A música está sempre indicando alguma coisa e, ao mesmo tempo, escondendo as suas intenções. Esse é o seu aspecto mítico. A intencionalidade musical está relacionada à interpretação. Tanto a linguagem quanto a música precisam ser interpretadas. Interpretar a linguagem significa entender a linguagem; interpretar a música significa fazer música. 480 Ao abordar a questão da interpretação musical, Adorno introduz a sua tese de que a execução não é um acessório e sim um atributo essencial da musica. Essa tese fundamenta-se na idéia de mimese, que retoma, de uma certa forma, a estética de Hegel. Porém, não se trata mais de uma mimese da natureza, rejeitada por Hegel, nem do espírito absoluto, afirmada por Hegel, mas uma de uma mimese auto-referencial da própria música. A música revela-se na prática mimética: trata-se da “imitação de si mesmo, e não um processo de decodificação” (Adorno 1978, 253). O conceito de mimese, comum ao pensamento de Benjamin e Adorno, exprime a possibilidade de criar uma semelhança com o objeto. A experiência mimética não significa imitar a aparência de uma objeto, mas comunicar-se com ele e assim preencher a lacuna entre sujeito e objeto, transformando ao mesmo tempo tanto o sujeito como o objeto. A questão da mimese foi insistentemente tratada por Adorno nos fragmentos que compõem a obra Para uma teoria da reprodução musical [Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion], a qual só foi publicada pela primeira vez em 2001. Ao tentar desenvolver uma teoria sobre a reprodução musical, Adorno tinha em mente restabelecer o mimético através da representação: A verdadeira reprodução é a imagem em raio x da obra. Sua tarefa é tornar visível todas as relações, todos os momentos de contexto e contrastes da construção que estão escondidos sobre a superfície do som perceptível – e isto ocorre justamente através da articulação dessa manifestação perceptível (Adorno 2001, 9). 7. Som e Misticismo Quando compreendemos uma música, compreendemos o significado dos diferentes elementos que formam a música, ou compreendemos a música como um todo? Considerando-se que os sons são as unidades significativas da música, compreender uma música significa então compreender a sucessão de sons ou a totalidade da obra musical? 481 Para responder a essa questão vamos invocar mais uma vez a linguagem como paradigma da compreensão. A teoria do sphota é uma das contribuições mais interessantes dos gramáticos indianos para o estudo da lingüística e da filosofia da linguagem. Ela afirma que uma palavra ou uma frase não se reduz a uma seqüência de sons ordenados, mas constitui uma unidade, um todo indivisível que carrega um sentido. Os sons audíveis das palavras e sentenças são apenas os meios através dos quais o sphota se revela. Etimologicamente o termo sânscrito sphota significa “estouro”, “explosão”. Por conseguinte, sphota é a explosão de significado revelada pelos sons. O termo sphota foi usado por Patanjali, no século II a.C., para denotar a qualidade universal de uma linguagem (shabda), enquanto que o som (dhavani) é a qualidade particular. O sphota é o que se mantém constante; o som é a qualidade variável, que depende das particularidades individuais. Posteriormente, no século V, do filósofo Bhatrhari desenvolveu a idéia de que o sphota é o substrato real da linguagem, idêntico ao significado. Bhatrhari abole assim a distinção entre o “significante” e “significado” da linguística estrutural. Sua contribuição para a filosofia da linguagem é fundamentada numa teoria metafísica de caráter monístico e idealista. Ele re refere a uma palavra-essência transcendental, que constituiria o princípio do universo. Sua doutrina do sphota está associada com a realidade suprema chamada sadha-brahma, conceito que pode ser traduzido por “linguagem-ser supremo”. O som e o sentido compõem uma totalidade indivisível, que o ser humano divide para poder compreendê-la. Não existe pensamento sem linguagem, não há conhecimento desassociado de uma palavra. A consciência vibra através das palavras, e essa consciência vibrante, ou um modo particular de cognição, nos faz agir e obter resultados. Consequentemente, a linguagem oferece o substrato sobre o qual se baseia a atividade humana. A linguagem e o significado não são duas realidades separadas de forma que uma conduza a outra. Elas são essencialmente duas faces de uma mesma moeda. O sphota é o princípio unitário no qual o símbolo e o que é significado 482 são uma só coisa. Para compreender a falar como outra pessoa e para nos comunicarmos nós separamos o inseparável, o som do sentido. Mas isso é apenas um instrumento para a compreensão mútua. No nível superior eles são uma coisa só (Matilal 1990: 95). Essa visão da linguagem como uma totalidade indivisível, não poderia aplicar-se também à música? A caracterização da linguagem como uma experiência que nos coloca em relação direta com o supremo, valoriza a consciência mística, a qual nos distancia do universo da lógica e da consciência lógica. A realidade mística estaria assim além da linguagem e da nossa capacidade de apreender o mundo através do raciocínio fundamentado pela lógica. A ideia do som como origem de toda a criação, está presente no sistema da filosofia Vedanta, que tem origem na cultura védica, cujo principal registro é o conjunto de textos sagrados dos Upanishads. O som é a manifestação do microcosmo humano, condicionado por nomes e formas, e o conhecimento do microcosmo deve levar necessariamente ao conhecimento do macrocosmo. Por detrás de todos os sons – dos nomes e formas – está a teoria de um big-bang sonoro como essência da criação. Essa explosão eterna e inefável é representada em sânscrito pela palavra Sphota – a matéria essencial e eterna de todas as idéias e nomes, a energia geradora e unificadora do universo. Na teoria do sphota identificamos a idéia de um som-símbolo que representa todo o pensamento e através do qual o universo se manifesta. Este som místico é expresso pela silaba OM, que sintetiza a totalidade dos sons possíveis. A sílaba é formada por três fonemas – A, U e M – que são pronunciados em sequência formando o som OM: a seqüência representa o impulso criador, que começa na raiz da língua e termina nos lábios: o fonema A, o menos diferenciado de todos os sons, é produzido na proximidade da garganta; o fonema M, é produzido na extremidade dos lábios; e o fonema U é produzido no espaço intermediário entre o A e o M como uma transição. O significado simbólico do OM fica evidente através dessas palavras de Vivekananda: 483 Se for pronunciado corretamente, este OM irá representar todo o fenômeno de produção de som, e nenhuma outra palavra pode fazer isso; e isso, portanto, é o mais símbolo mais apropriado do sphota, que é o verdadeiro significado de OM. E como o símbolo nunca pode ser separada da coisa significada, o OM e a sphota são uma coisa só (Vivekananda 1923). A teoria do sphota foi rejeitada pela maioria das outras escolas filosóficas indianas. Sem querer entrar em detalhes, que desviariam o foco da nova reflexão, limitamo-nos aqui a constatar a controvérsia sobre a questão do significado que opõe tradicionalmente duas diferentes filosofias de linguagem: o princípio de unidades de significação ou o princípio da contextualidade. As filosofias que defendem as unidades de significação são, por sua vez, de dois tipos: as que defendem o princípio holístico da indivisibilidade da frase, como a teoria do sphota, e as que defendem o princípio da divisilidade, como argumentam os criticos teoria do sphota,. O princípio da contextualidade pode ser resumido pela idéia fundamental de que o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem, como afirmou Wittgenstein. Referências bibliográficas Aufzeichnungen, ein Entwurf und zwei Schemata. Frankfurt am Main: Suhrkamp. As obras de Wittgenstein são citadas de acordo com as usuais abreviaturas: TLP_Wittgenstein, Ludwig. 1984. Tractatus logico-philosophicus. Werkausgabe Bd. 1. Suhrkamp: Frankfurt am Main. Abegg, Werner. 1974. Musikästhetik und Musikkritik bei Eduard Hanslick. Regensburg: G. Bosse. VBWittgenstein, Ludwig. 1980. Vermischte Bemerkungen. Werkausgabe Bd. 8. Suhrkamp: Frankfurt am Main. Boulez, Pierre. 1963. Penser la musique aujourd’hui. Paris: Gallimard. Adorno, Theodor W. 1975. Philosophie der neuen Musik. Gesammelte Schriften Band 12. Frankfurt am Main: Suhrkmap. . 1978. Quasi una fantasia. Musikalische Schriften I-III. Frankfurt am Main: Suhrkamp. . 2001. Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion: . 1966. Relevés d’apprenti. Paris: Seuil. Chagas, Paulo C. 2005. “Polyphony and embodiment: a critical approach of the theory of autopoiesis.” Trans – Revista Transcultural de Musica 9 http://www.sibetrans.com/trans/trans9/ chagas.htm (acessado em 01/08/2013) Helmholtz, Hermann von. 2000 [1913]. 484 Die Lehre von den Tonempfindungen. Als Physiologische Grundlage für die Theorie der Musik. Hildesheim: Georg Olms Verlag. Landy, Leigh. 2007. Understanding the Art of Sound Organization. Cambridge, MA: The MIT Press. Lévi-Strauss, Claude. 1964. Le Cru et Le Cuit. Mythologiques 1. Paris: Plon. Matilal, Bimal Krishna. 1990. The Word and the World. India’s Contribution to the Study of Language. Delhi: Oxford University Press. Ostwald, Peter. 1963. Soundmaking: The Acoustic Communication of Emotion. Springfield, ILL: C. C. Thomas. Peirce, Charles S. 1998. “What Is a Sign?” In The Essential Peirce. Selected Philosophical Writings, Vol. 2, edited by N. Houser and C. Kloesel, 4-10. Bloomington: Indiana University Press. Ruwet, Nicolas. 1972. Langage, Musique, Poésie. Paris: Seuil. Saussure, Ferdinand de. 1972. Cours de linguistique générale. Paris: Payot. Sethares, William A. 2005. Tuning, Timbre, Spectrum, Scale. 2nd ed.. New York: Springer-Verlag. Tarasti, Eero. 1994. A Theory of Musical Semiotics. Bloomington and Indianápolis, IN: Indiana University Press. . 2000. Existential Semiotics. Bloomington and Indianápolis, IN: Indiana University Press. . 2002. Signs of Music. A Guide of Musical Semiotics. Berlin: Mouton de Gruyter. . 2012. Semiotics of Classical Music: How Mozart, Brahms and Wagner Talk to Us. Berlin; New York: Mouton de Gruyter. Vivekananda, Swami. 1923. Bhakti-Yoga. The Complete Works of Swami Vivekananda. Vol. 3. http://en.wikisource.org/wiki/ The_Complete_Works_of_Swami_ Vivekananda/Volume_3/Bhakti-Yoga/ The_Mantra:_Om:_Word_and_ Wisdom. (acessado em 01/08/2013) Virilio, Paul. 1988. La machine de vision. Paris: Galilée. . 1990. L’inértie polaire. Paris: Christian Bourgois. 485 Celebrações e deleites de um outro tempo: o bem viver ao gosto dos harpistas do Egito Antigo Cássio de A. Duarte Museu de Arqueologia e Etnologia - USP [email protected] Resumo Incontestável ícone da mídia que foi impulsionado pelas grandes descobertas arqueológicas dos dois últimos séculos, o Egito antigo se sedimentou no imaginário popular como sendo uma terra exótica e mística; uma cultura icônica por seus monumentos de proporções divinas, por sua escrita misteriosa cercada por imagens animais e humanas singulares, e por suas práticas funerárias tão estranhas quanto fascinantes. Sob um olhar minucioso, entretanto, algumas destas visões se revelam como uma verdadeira miragem provocada pelos veículos de informação, os quais utilizam múmias, pirâmides e tumbas como elementos sedutores à mente Ocidental mas de maneira completamente empobrecida de significado. Mas as mesmas sepulturas e outras fontes milenares persistem em eternizar na rocha o clamor da riqueza humana ao transmitir uma realidade diversa: os egípcios antigos não ansiavam ou sequer eram obcecados pela ideia da morte; ao contrário, foram verdadeiros cultuadores da vida e das delícias do bem-viver, querendo que estas perdurassem para sempre no cenário da terra à qual estavam tão enraizados. Objetivamos com este trabalho o vislumbre de algumas fontes que enfocam o prazer da vida no Egito antigo e sua celebração por meio dos produtos da terra e das artes. Palavras-chave Egito antigo; canto do harpista; alimento; vida; música 486 Célebres por suas pirâmides, templos monumentais e por suas múmias, os antigos egípcios são uma presença constante em produções cinematográficas, televisivas ou em publicações de grande difusão. O multifacetado imaginário que se desenvolveu em torno dessa sociedade é complexo e com raízes antigas, tendo recebido contribuições da literatura bíblica, dos antigos gregos e romanos e de diversos personagens da Europa e de mais além desde o Renascimento até os dias de hoje (Donadoni 1990: 12-99). Pela perspectiva bíblica há, por um lado, um Egito obstinado a expulsar os israelitas que se contrapõe, por outro, ao país que os recebeu e que, mais tarde, também foi refúgio da Sagrada Família. Sob o olhar dos autores clássicos, o Egito foi tanto um país de hábitos estranhos povoado por bárbaros quanto o centro de um conhecimento muito antigo herdado do período dos deuses - uma parada obrigatória na biografia de diversos pensadores helenos. Deste olhar simpático, mas muito influenciado pelo misticismo, vingou o hermetismo, uma filosofia esotérica que ganhou força considerável durante o Renascimento italiano. Foi somente após a publicação da Descritpion de l’Égypte (1809-1829), produto da expedição de Napoleão ao Egito que a Europa e, a partir dela, o restante do mundo, passaram a conhecer os egípcios (tanto os antigos quanto os contemporâneos) em seu contexto geográfico por uma perspectiva enciclopedista e científica. Mas se o caráter exótico das terras do Nilo já estava presente nos relatos de diversos autores até essa época, com essa publicação se constroi e se cristaliza todo um imaginário orientalista que, como uma febre, se alastra com a reprodução ad infinitum de motivos egípcios na arquitetura, nas artes decorativas e da bijuteria. Toda essa bagagem de conceitos e preconceitos foi legada ao mundo contemporâneo o qual, por sua vez, tem contribuído para mantê-la e amplificá-la. Este movimento, que é continuamente insuflado pelas������������������� mídia������������� s, sofre pouquíssima influência das discussões do mundo acadêmico, as quais se restringem à documentários e exposições em museus. Em países como o Brasil, onde a educação é deficitária - os museus com coleções egípcias (quase ausentes ou mal aproveitadas) e as redes de televisão privilegian487 do a difusão de programas de categoria duvidosa -, não é de se estranhar que prevaleça um imaginário fantástico e distorcido acerca da cultura egípcia. Entre esteriótipos como as pirâmides e sua presumível energia, a equivocada e mal interpretada “lei da frontalidade” – que inspira um tipo de coreografia muito particular -, as riquezas faraônicas e o exotismo de Cleópatra, o tema mais presente é o das múmias (incluindo aqui seus ataúdes) e da fixação egípcia pela morte. São inúmeras, por exemplo, as produções cinematográficas que tocam no assunto direta ou indiretamente, e nos museus internacionais está entre as seções mais visitadas. Estojos de lápis em forma de ataúdes e brinquedos educativos que ensinam a mumificar são muito populares em lojas dessas instituições. A morte vende bem. Mas de toda a variada cultura material produzida pela cultura egípcia, com seus requintados objetos de toalete, seriam as múmias e seus sarcófagos os melhores representantes dela, tal como se tornou comum considerar? A preservação de uma quantidade desproporcional de túmulos em relação a de vestígios urbanos além do tempo estimado para a preparação destes - os quais deveriam ser encomendados desde cedo durante a vida de seus proprietários - são fatores que pesam em favor da interpretação de que os egípcios viviam para a morte. Neste raciocínio, faz sentido pensarmos que tudo aquilo simbolize a morte automaticamente representará bem a civilização egípcia como um todo, dado todo o aparato simbólico e cultual que esta desenvolveu no decorrer dos séculos para lidar com essa circunstância. Mas até que ponto isso é verdade, se nas próprias capelas funerárias privadas a maior proporção de cenas retrata aspectos da vida do dia-a-dia? Ainda que expressem uma simbologia funerária camuflada, essas imagens soam plausivelmente como “retratos” da vida cotidiana. 488 Outros indícios nos auxiliam a refletir sobre o assunto e sinalizam para um cenário bastante diferente na maneira como os antigos egípcios encaravam a vida. Um texto pertencente à categoria dos “cantos de harpistas” que se encontra em estado fragmentário em uma das paredes da capela de Paatonemheb (Lichtheim 1945: 142; Schneider, Raven 1981: 94-95) e cujo conteúdo é conhecido na íntegra por sua transcrição no papiro Harris 500 diz (E. Araújo 2000: 372-374): (...) “Uma geração passa, outra fica em seu lugar, Desde o tempo dos antepassados. Os deuses que viveram outrora repousam em suas pirâmides, Assim como os bem-aventurados enterrados em suas pirâmides. Construíram residências, mas seu local desapareceu. O que foi feito delas? Ouvi as palavras de Im-hotep e Hordedef, Cujos ditos são repetidos, Mas onde estão suas casas? Suas paredes esfacelaram-se, Seu local desapareceu Como se nunca tivessem existido. Ninguém volta do lugar onde se acha Para contar como está, Para dizer o que precisa, Para serenar nosso coração Até irmos para onde eles foram. Por isso, alegra teu coração, Esquece que serás um espírito luminoso, Segue teu desejo por mais que vivas. Põe mirra em tua cabeça, Veste linho fino, Unta a ti mesmo com as genuínas maravilhas de um deus. Aumenta teus deleites, Que teu coração não se entristeça! Segue teu desejo e os prazeres a que aspiras, Faze tuas coisas na terra ao pedido de teu coração. Quando chegar-te o dia de luto 489 O Inerte de Coração (Osíris) não ouvirá os lamentos por ti, E os gemidos não livram o homem da sepultura. Faze do dia uma festa E não te canses! Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo, Eis que ninguém que parte volta de novo!” . Harpista ilustrado na capela de Paatonemheb. Rijksmuseum van Oudheden, Leiden. Foto do autor A composição acima, conhecida como o “Canto do harpista para Antef”, outrora decorava a sepultura de um rei do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) com esse nome, entretanto, seu conteúdo só nos é conhecido pelas transcrições posteriores datadas da 18ª e 19ª dinastia (c. 1550-1186 a.C.). Textos desta categoria eram registrados nas capelas funerárias, no contexto das representações de banquetes, onde a imagem de um harpista – via-de-regra cego - se destaca. De uma outra versão, descrita no túmulo de Neferhotep (TT 50), citamos a seguinte parte (Lalouette 1984: 229-230; Lichtheim op. cit.: 195-197): (...) “Faz um dia feliz. Ponha junto o incenso e o óleo fino para tua narina, guirlandas de lótus e de flores sobre teu peito, ao passo que tua irmã, doce ao teu coração, está sentada ao teu lado. Que os cantos e as danças estejam diante de ti , rejeita as preocupções atrás de ti. Não te lembres que da felicidade, até que venha o dia de se chegar à terra que ama o silêncio, onde o coração do filho amado não se cansa”. (...) 490 O teor epicuriano avant la lettre desses escritos é percebido em outro tipo de composição literária que nada tinha a ver com o contexto funerário: os cantos de amor. Em um ostracon proveniente da região tebana (Feneuille 2010: 140-141; Mathieu 2008: 113-114) a ambientação que cria a sensação de felicidade inclui – além da presença do amado – o consumo de cerveja, a queima de incenso e a presença de músicos e cantores: “Dia feliz de te ver, irmão, é um encantamento te olhar. Possas-tu penetrar no meu lar, com cerveja e cantores com seus instrumentos, Suas bocas providas de divertimentos para a felicidade e alegria! (...) Tua irmã te presta uma homenagem e se prosterna à tua visão. Aceita-a com cerveja e incenso como oferenda a um deus!” Em outra cantiga também datada do Reinado Novo (c. 1550-1069 a.C.), a amada se refere à fala e a aparência de seu amante como um verdadeiro banquete para os sentidos: “Ouvir a tua voz é como vinho doce, vivo só para a ouvir. Cada vez que olho para ti, fico mais alimentada do que comer e beber” (L. Araújo 2000: 285). Em um poema de amor oriundo da coletânea de um escriba, notamos tons mais carregados sobre as imagens eróticas (L. Araújo op. cit.: 276): “Apresentas-te à porta da casa da tua amada E entras para a sala de recepção, Bem decorada, como uma pérgula. Ela oferece canto e dança, vinho e cerveja. Cabe-te excitar os seus desejos E ganhá-la para sua noite. Então ela te dirá: “Toma-me nos teus braços, e pela alvorada estaremos na mesma posição!” ” Se nem sempre a totalidade desses elementos – música, bebida, comida – é exposta em um mesmo texto, sua inter-relação por meio da iconografia é constante nas cenas de banquete desde o Reinado Antigo. Nestas, o falecido, acompanhado de seus familiares e convidados aparece em meio 491 a uma profusão de quitutes de toda a espécie, experimentando todas as delícias do bem-viver em meio a dançarinas esbeltas embaladas pelo som de uma orquestra de harpistas, flautistas e percussionistas acompanhadas por um cantor. Na capela do túmulo de Rekhmirê (Brancaglion Jr. 1999: 262, pr. XXV – 1; Peters-Destéract 2005: 353-354), que foi governador de Tebas e vizir durante a 18ª dinastia (c. 1550-1295 a.C.), em uma cena de banquete encontramos uma passagem bastante evocativa sobre a associação de todos esses prazeres: “Regozija o coração, vê que coisas belas, As preces, as danças, os cantos, Perfuma-te com mirra, cobre-te com óleo perfumado, Aspira uma flor de lótus, O pão, a cerveja, as doçuras e todas as coisas Trazidas ás tuas mãos. Para o príncipe e vizir Rekhmirê, Que se encontra em companhia de sua mulher, Aquela que seu coração ama, A senhora da casa, Merit.” . Cena de banquete da tumba de Rekhmirê (Davies 1943: pr. LXVI). 492 Ainda que sejam encontradas em contexto funerário e que não haja certeza a respeito de seu real teor – se representavam de forma idealizada os banquetes celebrados em vida ou aqueles que eram feitos na sepultura pelos parentes e amigos do morto para celebrar sua memória de maneira simbólica (Brancaglion Jr op. cit.) – a mensagem dessas cenas de festim, a qual se cruza com registros de outra natureza como, por exemplo, as cenas agrárias, é voltada à celebração da vida, da abundância, da fertilidade e do bem-viver. E próprio pós-vida egípcio era um reflexo da vida às margens do Nilo, com suas atividades de subsistência mas ainda com os seus prazeres, como ilustra esta passagem do capítulo 110 do “Livro dos mortos” (Trindade Lopes 1991: 143): “Eu equipo este meu campo, o teu campo bem-amado, senhora da brisa; aqui me alegro e sou forte, aqui como e bebo, aqui trabalho e ceifo, aqui coito e faço amor, os meus encantamentos mágicos são aqui poderosos; não tenho censuras nem inquietude e o meu coração está feliz” Desconhecemos como os textos dos túmulos eram pronunciados por seus visitantes, contudo alguns estudos sugerem que alguns destes, por sua������������������������������������������������������������������ métrica particular����������������������������������������������� , foram elaborados para serem ser cantados (Lawergreen 2001: 453). Se considerarmos a importância da voz e sua entonação na elocução desses textos, das fórmulas mágicas e das oferendas tradicionais (funerárias ou não) – compostas de “pão, cerveja, linho, alabastro e todas as coisas puras e boas” - como substitutos das coisas reais, percebemos o quanto os sentidos se mesclavam na consciência dos antigos egípcios e a grande distância que nos separa deles na forma de ver o mundo. E assim voltamos à questão de se a ideia da morte, as práticas funerárias e a cultura material ����������������������������������������������������� à���������������������������������������������������� elas relacionada representaria bem os antigos egípcios. Ainda que disponhamos de uma gama de fontes desproporcional no que concerne às informações acerca da vida cotidiana no campo e nas cidades em relação com aquela proveniente das necrópoles, talvez 493 possamos acenar positivamente à questão. Isto porque não é a morte em si e como os egípcios se comportavam diante dessa circunstância que serve como parâmetro para os compreendermos, mas sim como eles projetaram seus valores e percepções do mundo real no luxuriante e mágico vale do Nilo na maneira como a concepção do além foi construída. Quando visitamos as coleções em museus, as vemos de maneira descontestualizada, classificada segundo um parâmetro que faz sentido em nossa cultura, mas que engessa todo um mundo mental e sensorial interligado que os egípcios viviam. De nossa inaptidão para compreender aquilo que escapa à nossa lógica, acabamos por eleger o tema da morte em si como um sinônimo para o Egito antigo, esquecendo das formas como estes celebravam muito bem a vida por meio de suas diversas qualidades de cerveja e vinho, e ouvindo e cantando músicas enquanto se deliciavam com os produtos da terra e das artes culinárias. Em síntese, os egípcios antigos são associados à morte porque é isso que nos condicionamos a enxergar neles, e mesmo ao interpretá-la nessa sociedade o fazemos com um olhar alienado, misturando múmias caminhantes com conde Drácula e Frankenstein. Um bom aferidor desta impressão é a celebridade adquirida pelo “Livro dos mortos” e a força que o título dessa obra exerce sobre o imaginário do mundo contemporâneo, evocando sempre uma impressão de mistério e obscuridade. Nome conferido pela arqueologia do século XIX a um conjunto particular de textos com vinhetas encontrados nas sepulturas, esta alcunha não faz justiça nem ao conteúdo nem ao título original da obra, chamada de “fórmulas para sair à luz do dia” Conclusão Para além de uma cultura que valorizava a morte mais do que a própria experiência da vida, encontramos nos testemunhos documentais deixados pelos antigos egípcios uma paixão vibrante pelas delícias do bem viver que eles esperavam que se estendessem para a eternidade. 494 Orquestras constituídas de instrumentistas diversos acompanhadas de cantores embalavam jovens dançarinas desnudas a disseminar com seus movimentos acrobáticos rápidos o odor dos incensos e dos perfumes que tomavam o ambiente dos suntuosos banquetes, onde os anfitriãos degustavam juntamente com seus convidados os melhores produtos da terra e das artes culinárias. Articuladores hábeis dos sentidos e da imaginação mágico-simbólica, os egípcios continuam a não se adequar aos conceitos esteriotipados e auto-referenciais que o Ocidente continua a projetar sobre eles na contemporaneidade. Bibliografia Araújo, Emanuel. 2000. Escrito para a eternidade. A literatura no Egito faraônico. Brasília: Ed. UnB. Araújo, Luís Manuel de. 2000. Estudos sobre erotismo no antigo Egito. Lisboa: Edições Colibri. Brancaglion Jr., Antonio. 1999. O banquete funerário no Egito antigo – Tebas e Saqqara: tumbas privadas do Novo Império (1570-1293 a.C.). Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. São Paulo: Universidade de São Paulo. siglo XVIII”. In Egipto del mito a la egiptologia. Milão. Fabbri/ Istituto bancario San Paolo di Torino: 74-103. Feneuille, Serge. 2010. Paroles d’amour. Paris: CNRS éditions. Lalouette, Claire. 1984. Textes sacrés et textes profanes de l’ancienne Egypte, des pharaons et des hommes. Paris : Gallimard. Lichtheim, Miriam. 1945. “The songs of the harpers” Journal of Near Eastern Studies, 4, nº 3: 178-212. Davies, Norman de Garis. 1943. The tomb of Rekhmirē at Thebes, 2 vols. Nova York: Metropolitan Museum of Art. Mathieu, Bernard. 2008 La poésie amoureuse de l’Égypte ancienne. Recherches sur un genre littéraire au Nouvel Empire. Cairo: Institut Français d’Archéologie Orientale. Donadoni, Sergio. 1990. « El Egipto del mundo clasico”. In Egipto del mito a la egiptologia. Milão. Fabbri/ Istituto bancario San Paolo di Torino: 12-39. Peters-Destéract, Madeleine. 2005. Pain, bière et toutes bonnes choses… l’alimentation dans l’Égypte ancienne. Monaco: Éditions du Rocher. Donadoni, Sergio. 1990. « El Egipto del Renacimiento”. In Egipto del mito a la egiptologia. Milão. Fabbri/ Istituto bancario San Paolo di Torino: 40-60. Lawergreen, Bo. 2001. “Music”. In The Oxford encyclopaedia of ancient Egypt, V.2. Nova York, Oxford University Press: 450-454 Donadoni, Sergio. 1990. « El Egipto de la edad barroca”. In Egipto del mito a la egiptologia. Milão. Fabbri/ Istituto bancario San Paolo di Torino: 61-73. Donadoni, Sergio. 1990. « El Egipto del Schneider, Hans. D., Raven, Maarten. J. 1981 De Egyptische oudheid. Haia: Staatsuitgeverij’s. Trindade Lopes, Maria Helena. 1991. O livro dos mortos do antigo Egipto. Lisboa: Assírio e Alvim. 495 Retrato de Cora: do natural ao artístico Silvia Maria Pires Cabrera Berg Departamento de Música da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto — Universidade de São Paulo [email protected] Resumo Retrato de Cora para piano solo é a II obra da Série Memórias de um Mundo Antigo (Silvia Berg 2004), encomendada pela pianista Valéria Zanini em 2004, e que teve sua primeira audição em Copenhagen no mesmo ano. A obra, composta a partir de um retrato de Cora Coralina (que se definia primeiramente quituteira e cozinheira e depois poetiza), remete a uma correlação estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano na medida em que são analisados os processos composicionais do natural (material composicional) ao artístico (a superação do material e suas sistematizações). Na análise dos processos composicionais de Retrato de Cora são tomados como referência “O Princípio Cinematográfico”, de 1929, do diretor russo Serguei Eisenstein, que evidencia a correlação entre o principio de montagem ideográfica e o principio de montagem cinematográfica principalmente no tocante à decomposição “natural” em desproporcionalidades para efeitos de expressividade, tal como a fragmentação cronológica dos acontecimentos no eixo do tempo ou do espaço em planos ou retardamento de ações e movimentos, resultante da oposição de dois elementos. Palavras-chave Retrato de Cora, piano solo, Claude Lévi-Strauss, Serguei Eisenstein, montagem ideográfica. 496 Introdução A série para piano solo Lembranças de um mundo antigo foi composta em 2004 em Copenhagen, por encomenda de, e dedicada à pianista brasileira Valéria Zanini, radicada na Dinamarca. Retrato de Cora é a segunda obra da série que teve sua primeira audição em Copenhagen no mesmo ano. Sobre a série Lembranças de um mundo antigo: I. Agreste (o lugar) refere-se às lembranças do Planalto Central, berço da pianista Valéria Zanini, com suas imensidões agrestes e silêncios. II. Retrato de Cora (a pessoa) composta sobre uma das últimas fotografias de Cora Coralina, onde palavras e poemas misturam-se com as reminiscências da minha infância especialmente minha avó e das pessoas marcantes que moldaram essa fase da minha vida. III. Jogo (o espaço) em homenagem à Villa-Lobos, é um jogo harmônico e tímbrico utilizando as regiões agudas e graves do piano onde as teclas do instrumento são pensadas como “superfícies geográficas” gerando combinações harmônicas, rítmicas e citações. ��������������������������������� O processo de composição de II. Retrato de Cora analisado neste artigo inicia-se com a composição a partir de um retrato de Cora Coralina (que se definia primeiramente quituteira e cozinheira e depois poetiza), e remete a uma correlação estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano na medida em que são analisados os processos composicionais do natural (material composicional) ao artístico (a superação do material e suas sistematizações). Sob a influência da cozinha portuguesa, que tem como princípio que “o que é doce não amarga” os doces de duas ou mais espécies nunca faltaram na cozinha vilaboense. O escritor Bariani Ortencio, autor do clássico “Cozinha Goiana” afirma que Cora Coralina era a maior doceira de Goiás, especialista em doces de figo, laranja, banana, cidra e passas de caju. Dois doces se impõem pela excelência: o doce de buriti e o “pastelinho” (doce) versão dos famosos pastéis de Belém portugueses. (Lima 2008, p.115). 497 Sou mais doceira e cozinheira do que escritora, sendo a culinária a mais nobre de todas as Artes: objetiva, concreta, jamais abstrata a que está ligada a vida e à saúde humana (Cora Coralina, apud Lima, idem, p. 114) Cora planejava produzir um livro de receitas: embora não o tivesse feito em vida, várias de suas receitas foram copiadas e reproduzidas; os livros de receitas familiares sempre foram uma constante na Cidade de Goiás, passando de uma geração para outra. O que antecede nas refeições aos doces segundo esse princípio; o milho poetizado por Cora Coralina sob várias formas, congrega um cerimonial para prepara-lo, como por exemplo, na preparação da pamonha, um fato social que congrega várias pessoas em sua preparação e degustação: Convidar alguém para uma pamonhada é uma cortesia que introduz o convidado na intimidade da família. Inicia-se com a pamonha frita, depois, com a cozida seguida da pamonha assada e finaliza-se com o curau como sobremesa. (Lima, 2008, p.114) A estreita relação entre Cozinha e Arte em Cora Coralina, transforma-se em um elemento estrutural nos processos composicionais do Retrato de Cora. A preponderância da relação entre os objetos em suas diversas camadas de significação e a sucessiva relação de transformações do material composicional em o Retrato de Cora geram um leque de imagens via a metáfora da função poética: sob esse viés analisaremos os processos composicionais da obra. 1. A correlação estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano Em O cru e o cozido, que, segundo Claude Lévi-Strauss, poderia também ser chamado de “representações míticas da passagem da natureza à cul- 498 tura”, foram analisados 187 mitos coletados por diversos pesquisadores entre povos indígenas do Brasil. Todos os 187 mitos utilizados referem-se “direta ou indiretamente à invenção do fogo e, portanto, da cozinha, enquanto símbolo no pensamento indígena. Se da passagem da natureza à cultura” (Lévi-Strauss, 1986, p. 51) a dicotomia básica é o cru e o cozido, nos processos de composição esta dicotomia básica poderia ser representada pela natureza do material composicional a superação deste através de suas sistematizações, sendo que o resultante, a obra artística, estaria em outro patamar, aquem da cultura. Na Introdução de O cru e o cozido, Lévi-Strauss utiliza-se da metáfora cósmica para se referir às transformações dos sistemas mitológicos: À medida que a nebulosa se expande, portanto, o seu núcleo se condensa e se organiza. Filamentos esparsos se soldam, lacunas se preenchem, conexões se estabelecem, algo que se assemelha a uma ordem transparece sobre o caos. Como numa molécula germinal, seqüências onde ondas em grupos de transformações vêm agregar-se ao grupo inicial, reproduzindo-lhe a estrutura e as determinações. Nasce um corpo multidimensional, cuja organização é revelada nas partes centrais, enquanto em sua periferia reinam ainda a incerteza e a confusão. (Lévi-Strauss, 1986, p. 21). Ao considerar os sistemas mitológicos como sistemas em transformações, entende-se que a análise dos mitos somente é possível de ser feita por seus fragmentos, pois «trata-se de uma realidade instável permanentemente à mercê dos golpes de um passado que a arruina e de um futuro que a modifica” (Lévi-Strauss, 2006, p. 21). A teoria transformacional de Chomsky influenciou Lévi-Strauss que por analogia buscou o termo mitema para designar uma unidade constitutiva do mito.1 A partir da 1 Noam Chomsky – professor do Massachussets Institute of Technology, em Boston – publicava o livro Syntatic structures (Haia, Mouton & Co., 1957), responsável “pela ampliação dos modelos já existentes ao se estipularem [...] as regras de transformação – pedra angular da teoria chomskyana – e ao postularem dois tipos de estruturas ligadas pelas regras de transformação: a estrutura subjacente e a estrutura de superfície” (Lemle e Leite [orgs.], Novas perspectivas lingüísticas, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 6) apud Roque de Barros Laraia: Claude Lévi-Strauss, 499 formulação transformacionista, entende-se que a análise dos mitos somente é possível de ser feita por seus fragmentos, pois “trata-se de uma realidade instável permanentemente à mercê dos golpes de um passado que a arruina e de um futuro que a modifica (idem, 2006, p. 21) Em 1988, em entrevista a Didier Eribon, Lévi-Strauss explicou por que em sua Abertura faz referência a Wagner, a quem reconhece como uma grande influência em sua formação. Afirmou que “Wagner não só construiu suas óperas sobre mitos, mas deles propõem um recorte que o emprego dos leitmotive torna explícito: o leitmotiv prefigura o mitema (da mesma natureza do fonema)”. (Laraia, 2006) 2. Retrato de Cora e a Lógica da Montagem por Analogia Aos 25 anos, Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908) chega ao Japão para assumir a cadeira de Filosofia na Universidade de Tóquio (posteriormente chamada de Universidade Imperial de Tóquio). Orientalista, filósofo de formação atravessa o oceano em 1878 para ministrar aulas de filosofia e economia política, no Japão recém-descoberto ao mundo após dois séculos e meio de reclusão peninsular decretado pelo xogunato Tokugawa. O estudo que Fenollosa realiza sobre a vida cultura e artes japonesas e da poesia chinesa através dos mestres japoneses representa um encontro de saberes e valores; de um lado a lógica aristotélica, em latu sensu, formadora da base do pensamento ocidental e do outro a lógica analógica chinesa, que se articula em uma linguagem baseada em relações. Escrito pouco antes de sua morte em 1908 em Londres e editado postumamente em 1919 por intermédio de Esra Pound, o ensaio “Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia” servem de base para a Antologia de cinco ensaios introduzida por Haroldo de Campos, utilizados no corpo teórico das análises aqui apresentadas. O fundamento da escrita ideográfica tem no pensamento de “síntese” e “fusão” a mais quatro décadas depois: as mitológicas. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0102-69092006000100010 consulta 22.8.2013 500 ampla vocação transcultural fenollosiana no sentido de intercâmbio Oriente/Ocidente (Campos, 2004, p. 18). A preponderância da relação entre os objetos gera um leque de imagens via a metáfora da função poética, o que implica em uma ação ou um processo de elaboração grafo-semântica das palavras. O significado do ideograma, expressa assim um conceito ou um contexto intelectual, e não a somente a somatória dos seus componentes semânticos. A lógica da correlação, que privilegia a interrelação entre os objetos, a complementaridade de contrários dada a relação entre os semas que compõe o ideograma e das relações entre signos na concatenação não linear de ideias. O conceito é uma fórmula pura e simples; sua ornamentação (uma expansão devida aos materiais adicionais) transforma a fórmula em imagem - uma forma acabada (Eisenstein, 1929, apud Campos, 1994). A metáfora, o jogo de imagens é a essência da escrita ideográfica, que se articula em uma linguagem de relações baseada na analogia da correlação ou da dualidade correlativa, que privilegia a interrelação entre os objetos em nexo de complementaridade entre contrários interdependentes, em contraponto à lógica aristotélica, base do pensamento ocidental latu sensu, que se articula em proposições concatenadas em termos de sujeito e predicado, em que a noção de substância, da qual deriva a causalidade, gera o átomo, princípio do Materialismo. Em “O Princípio Cinematográfico”, de 1929, o diretor russo Serguei Eisenstein, evidencia, assim como Fenollosa, a correlação entre o principio de montagem ideográfica e o principio de montagem cinematográfica, quando dois objetos (ou tomadas) se combinam para gerar um conceito ou um contexto intelectual. 3. Pequena análise dos processos composicionais do Retrato de Cora O material desta peça compõe-se de dois pares de oitavas intermediados por um intervalo de quinta (e de quarta na inversão) que remetem indubitavelmente à reminiscências tonais: La, mi, lá e dó, sol, dó. Embora 501 contenha reminiscências e referências tonais, esse material não é transformado segundo as regras do sistema tonal nem possui cadências que o caracterizem como tal. A transformação ocorre em pequenos fragmentos: Figura 1. Compassos de 1 a 4 Os quatro primeiros compassos são repetidos de 5 ao 8, e do compasso 9 ao 16 as transformações ocorrerão por camadas de “rimas” de dois em dois compassos ou em proporção 3 compassos – 1 compasso. Figura 2. Compassos de 9 a 16 As transformações geradas nos primeiros 24 compassos conterão o repertório de “rimas” Figura 3. Expansão das transformações 502 que culminarão na criação do canto do pássaro nos compassos 38-39 e 42-43 que é uma citação imaginária de um pássaro imaginário cujo canto foi completamente criado a partir dos materias da peça: a ornamentação (uma expansão devida aos materiais adicionais) transforma a fórmula em imagem, reiterando aqui Eisenstein. A combinatória de construção e expansão dos fragmentos assume nos compassos de 37 a 53 uma nova forma, onde os pedais são citados nos compassos 37 e 39 e 42 e 44, mas suprmidos nos outros compassos, muito embora continuem como reminiscentes. As transformações das oitavas iniciais conduzem a novas trasnformações como as citações das notas Mib, Solb e Sib (ascendentes) e Reb, Sib e Solb (descendentes) que são sobrepostos em movimentos por espelhamento com transformações métricas e supressões Figura 4. Ornamentação e canto do pássaro que conduzirão à reexposição dos primeiros compassos e Coda, Figura 5. Condução por espelhamento 503 que evidencia a correlação entre o principio de montagem ideográfica e o principio de montagem cinematográfica principalmente no tocante à decomposição “natural” em desproporcionalidades para efeitos de expressividade, tal como a fragmentação cronológica dos acontecimentos no eixo do tempo ou do espaço em planos ou retardamento de ações e movimentos, resultante da oposição de dois elementos. Referências bibliográficas Berg, Silvia 2004, “Retrato de Cora” in “Lembranças de um Mundo Antigo”. Partitura. Berg, Silvia, “Retrato de Cora” gravação ao vivo por Valéria Zanini piano . Cine teatro São Joaquim - Cidade de Goiás 18.07.2009. https://www. youtube.com/watch?v=fXaSNEDxR8E acessado em 22.8.2013 Campos, H. 2004. Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem. Haroldo de Campos (Org.) Ed. de São Paulo-SP. Eisenstein, S. 1929. “O Princípio Cinematográfico” http://monografiacisme.wordpress. com/2010/04/11/capitulo-ii-eisensteino-ideograma-e-a-cultura-japonesa/ consultado em 22.08.2013. Laraia, R. de Barros, 2006 “Claude LéviStrauss, quatro décadas depois: as mitológicas” Rev. bras. Ci. Soc. vol.21 no.60 suppl.60 São Paulo Feb. 2006 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar ttext&pid=S0102-69092006000100010 Consulta 22.8.2013. Claude Lévi-Strauss, 2004. O cru e o cozido. Mitológicas 1. São Paulo, CosacNaify. Lima, Elder Rocha, 2008. Itinerário Cora Coralina, Elder Rocha de Lima. Brasília Suzuki 1995 504 Música – sabor na língua e carícia na pele Déa E. Berttran Mestre em Psicologia Clínica – Instituto de Psicologia, IP-USP 505 Música e gosto, paladar e sabor – a brasileira, para mim, tanto em sua forma musical quanto culinária, desponta por sua variedade e capacidade de despertar uniões insuperáveis... Os maliciosos lundus e maxixes irrequietos casam perfeitamente com a canjiquinha quente; o samba, em todas as suas vertentes, do terreiro, da roda, da zona sul carioca, das comunidades alojadas nos morros, ai ai ai, deliciosamente se harmoniza com todas as variações de bolinhos – bacalhau, camarão, carne seca... Óleo fervente que atiça as ancas e faz soltar os pés! Forró e macaxeira, xaxado e manteiga de garrafa, xote e milho assado a estalar nos dentes! O baião correndo solto junto às tapiocas de coco ou queijo coalho... E o choro e a feijoada, encantando ouvidos e gostos pelos sábados afora? ‘Travessia’, ‘Andança’, ‘Ronda’ nas vozes noturnas em centenas de barzinhos com seus shows ao vivo, hoje já substituídas, por vezes, pela façanha de ‘Ai se te pego’, acompanhadas de opções infindáveis de porções apetitosas. O rock tupiniquim em meio à cozinha internacional no centro de poder brasileiro, o pop que a todos convoca com a marcação de seus sintetizadores e suas baquetes em meio aos burgers e cheeses, e a vanguarda paulistana a expandir seus agudos em meio ao consumo compulsivo de pipocas quentinhas, sob a garoa... Música e gosto, o gosto da música e o gosto do que alimenta, sacia, nutre e apazigua, música e alimento enquanto fontes de prazer e comunhão. Em minha clínica psicológica, caminho para as partes sensíveis do ser, intocadas pela racionalidade. 506 Festa do Divino em Mogi das Cruzes: o percurso da Fé e a conquista do alimento santificado Luci Bonini UMC - GRUPPU Eliana Meneses de Melo UMC- GRUPPU Resumo Com olhar voltado às manifestações culturais populares, o estudo avalia o percurso do sagrado em território urbano onde a tradição recorta caminhos possíveis entre as novas edificações, alterando o cotidiano da cidade, as antigas canções constroem diálogos com o presente em cerimoniais de Fé no Divino Espírito Santo. Contemplando as representações simbólicas, analisam-se as etapas que formam o percurso semiótico que tem início com a evocação da Santidade, a personificação da Fé no sujeito participante e a trajetória ritualística, que comina na saciedade do corpo pelo alimento. A novena ao Divino Espírito Santo caminha pelas ruas desde as cinco da manhã até às seis, quando então, os devotos se alinham em fila diante do salão paroquial para o café, alimentando o corpo depois de ter alimentado a alma rezando e cantando a Coroa do Divino. Revestido pelo sagrado, o sentido do gosto expressa a fechamento da manifestação e situa o sujeito participando no nível de servidor da fé, que, após o justo trabalho, é merecedor do sagrado alimento. O que se observou foi que embora os componentes da festividade façam parte da tradição do evento, o alimento servido dialoga diretamente com o contemporâneo. Neste sentido o gosto adicional está contido na crença no sagrado e nos ritos. Por fim, o estudo de natureza interdisciplinar foi realizado privilegiando a Semiótica. É o resultado desta leitura que se pretende apresentar. Palavras-chave semiótica, cultura popular, territorialidade, Festa do Divino 507 Apresentação Pesquisas em semiótica se destacam entre as que buscam elementos reflexivos nas fronteiras entre as disciplinas. Diversos olharem realizam percursos que vão da estética e das pesquisas nas ciências sociais e políticas, de forma que se possa descobrir como diferentes áreas iluminam pontos sobre a vida em sociedade. Quando se tem o interesse investigativo votado para as manifestações culturais populares, a multiplicidade das produções populares são reveladores das dimensões subjetivas nas quais encontramos o humano traduzido em seus valores em um diálogo constante com a natureza,com profano, com o sagrado. Este estudo abarca as manifestações populares no universo das Políticas Públicas, ao ter como corpus a Festa do Divino em Mogi das Cruzes, visa essencialmente o patrimônio cultural que ao mesmo tempo em que preserva tradições, alia-se ao urbano em desenvolvimento. Em essência, é o humano nas delimitações do território cultural aliado ao universo religioso que demarca os caminhos trilhados nesta pesquisa. Qual o gosto no universo do sagrado? Por quais caminhos o gosto se sacraliza? O permitido e proibido manifestam-se nos rituais da Festa do Divino? Em busca das emanações de sentido voltadas ao gosto, o recorte escolhido foram os cantos das rezadeiras realizados no período o antecede o principal dia da festividade. As marcas temporais recaem sobre a alvorada, antecedendo o espaço destinado ao café da manhã santificado pelo evento em sua complexidade. O discurso da festa e a festa enquanto discurso conduziram as leituras a serem expressas neste artigo. Entre as características das linguagens humanas está a intercomunicação entre os diferentes universos de discursos que se configuram como uma rede sistêmica de sentidos produzidos nas convergências e conexões das diversidades culturais, sociais. Acultura, assim como a linguagem, se entretece de signos que se alimentam, ao longo de eras, de inúmeros significados. Para além dos interdiscursos 508 intensificados pelos aparelhos tecnológicos contemporâneos, faz parte da cultura e da evolução humana a criação e a recriação. Discursos se sobrepõem, negam-se, afirmam-se, transformam-se nas dinâmicas sociais. 1. Cenário ambulante e o patrimônio imaterial As heranças imateriais são dignas de preservação porque estão ligadas à identidade de uma nação, de uma região ou de uma comunidade. No caso da Festa do Divino Espírito Santo no Brasil, muitos são os fazeres nas diversas celebrações ao longo de todo território nacional que merecem ser tombados como patrimônios, antes que a cultura de massa anule completamente as diferenças. Esta festa originária de Portugal se espalhou pelo Brasil e, em cada região, foi adquirindo singularidades que fazem de cada uma delas uma celebração que conserva as mesmas vibrações religiosas da fé, por um lado, e por outro, tão diferentes em seus fazeres e saberes. Em Mogi das Cruzes, cidade localizada na região do Alto Tietê do estado de São Paulo, a devoção ao Divino Espírito Santo é a mais antiga do Brasil, documentos encontrados nos arquivos da Câmara Municipal demonstram que em 1613 a população da Vila da Senhora de Santa Ana, já mantinha a devoção por ocasião da celebração de Pentecostes (CAMPOS, 2013). Entre os vários eventos desta festa, alguns já foram objetos de pesquisas mais profundas como é o caso da Entrada dos Palmitos, uma procissão que serpenteia pelo centro da cidade na véspera do dia de Pentecostes, com milhares de devotos segurando suas bandeiras, carros de boi enfeitados e inúmeros grupos folclóricos que agradecem as graças recebidas. Esta procissão foi alvo de visita do escritor e defensor da cultura brasileira Mario de Andrade no ano de 1936. (RODRIGUES F° & DE CARLO F°; s/d). Este estudo preliminar faz parte de um projeto de pesquisa que busca inventariar as referências culturais da região do Alto Tietê, suas festas 509 folclórico-religiosas, entre as quais se destaca a Festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes, de modo que este registro seja uma forma de convidar a uma reflexão mais profunda sobre a importância dos registros do patrimônio imaterial das expressões folclórico-religiosas da região em questão para o fortalecimento de políticas culturais adequadas de preservação da memória coletiva. As discussões sobre patrimônio imaterial no Brasil ainda são recentes. As preocupações mais antigas com a herança cultural são aquelas ligadas aos bens materiais, já que seus valores podem ser mais facilmente percebidos. Para KUUTMA (2009) o debate sobre a preservação de bens imateriais é recente e vem crescendo de forma global, porém, faz emergir uma contradição, pois a herança cultural imaterial é uma abstração e por isso mesmo está sujeita ao caráter subjetivo que cada legado tem para os sujeitos. São diversas interpretações possíveis diante de fazeres e saberes, e, cabe aos pesquisadores decidirem quais devem ser preservadas, o que não é tarefa fácil. O autor ainda afirma que a expansão da preocupação com a preservação do passado e com o legado patrimonial popular vem num movimento crescente desde que veio a lume A Convenção para proteção do patrimônio mundial cultural e natural na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, (UNESCO), de 1972, e depois de três décadas, em 2013, com A Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Segundo o Instituto Nacional de Patrimônio Histórico e Artístico, IPHAN: A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) define como Patrimônio Cultural Imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.” Esta definição está de acordo com 510 a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em março de 2006. A herança é o produto de um emaranhamento temporal: embora haja um apelo ao ‘enraizamento diacrônico’, a concepção de sua salvaguarda é um produto novo: é o presente pensando de que forma o futuro vai ver o passado preservado (KUUTMA, 2009). Por ser novo é carregado de significados contemporâneos e ideologias que despejam novos olhares recheados de novos valores e reificados com a intenção de manifestar a etnicidade, a localidade, a história e as políticas culturais envolvidas no processo de catalogação, de armazenamento, descrição etc., de algo que já surgiu num tempo remoto, que pode estar em extinção ou não, que vem sendo valorado com o olhar de agora. Recentemente a defesa de valores como qualidade de vida, proteção do meio ambiente e a preservação de referências culturais passou a ser entendida como direito do cidadão, pois por meio das garantias de preservação dos bens culturais é que grupos, antes sem voz própria, começam a ter reconhecidos seus direitos de preservar seu sentimento de pertencimento. (FONSECA, 2000) Por isso, a herança cultural, para KUUTMA (2009), só se torna real quando alguém a identifica como tal. Assim, o que é intangível passa a ter importância para alguém que mantenha um olhar mais atento e mais especulativo aos fenômenos culturais. As questões culturais têm sido objeto de pesquisa sob vários aspectos: antropológicos, sociológicos, psicológicos, semióticos, museológicos, folclóricos e por causa disto mesmo, é que entendemos que este recente despertar para os estudos ligados à questão da herança cultural é um desafio multi e interdisciplinar. Várias áreas do conhecimento têm concorrido para o debate acerca das políticas de cultura no mundo, uma vez que já se sabe que a evolução das sociedades, altamente influenciadas pela cultura de massa, vem sufocando certas práticas rituais e muitos fazeres: alguns beiram à extinção, outros 511 já desapareceram e nem mesmo uma memória dos mais velhos pode, sequer, recuperar. A massificação desenfreada que ocorre no ocidente vem contaminando lentamente outras culturas e práticas de consumo oferecidas pela industrialização, mais ‘higiênicas’, menos duradouras e mais ‘espetacularizadas’ e que chamam mais atenção do que certas práticas consideradas antiquadas pelos mais jovens, adeptos das tecnologias que oferecem uma gama de produtos culturais efêmeros e plenos de significados das culturas desenvolvedoras destes produtos. Há um medo crescente de que as culturas ao redor do mundo venham a se tornar mais uniformes, justamente por causa da globalização, que por seu turno vem conduzindo, lentamente a uma diminuição da diversidade cultural e da riqueza que advém dela. (PIETROBRUNO, 2009) Diferentemente destes bens culturais passageiros, as heranças culturais, sejam materiais ou imateriais, falam de um lugar, trazem um sentimento de pertencimento, por isso, o primeiro passo para preservá-las é ativar nos representantes das comunidades a sua importância, pois só assim, cria-se uma responsividade pública que alerte as autoridades para sua preservação. FONSECA (2000) afirma que para que se protejam as referências é necessário conhecer, identificar suas características mais evidentes, adentrar seus detalhes e suas características intrínsecas. Enunciando-se, assim os detalhes, as minúcias, a fim de preservar traços culturais.Quando se trata de preservar traços de cultura, também, se trata de demonstrar poder, da mesma forma que na medida em que uma comunidade demonstra sua vontade de perpetuar seus saberes, ela está sob uma ótica política de poder, é uma resposta responsável às autoridades políticas para a reafirmação do seu sentimento de pertencimento. Os desejos da comunidade vêm referendando a proteção dos bens culturais por duas vertentes: a primeira delas é a vontade de pesquisadores 512 de preservar certos fazeres e saberes e daí estimulam as comunidades a participar de pesquisas onde há relatos de vida, da mesma forma que esses intelectuais e pesquisadores ficam encarregados de construir e gerenciar museus, e, uma segunda vertente que é aquela em que líderes dessas comunidades percebem que a cada dia que passa, certos saberes despontam interesses econômicos ao redor do turismo, e que isso produz uma economia local que pode salvaguardar não só os bens culturais como prover recursos, mudar a economia de uma determinada localidade, como vem acontecendo no país. FERRETTI (2005) afirma que identificar um repertório de manifestações culturais que merece ser alcançado pelas políticas de salvaguarda, por ratificarem o amplo sentido da diversidade cultural do país e a identidade étnica desses grupos é de extrema importância e o Brasil, embora venha se preocupando de modo geral, tem ainda um grande caminho a percorrer, dada a diversidade fazeres espalhada por todo o território nacional. O que se percebe num olhar mais rápido sobre as pesquisas é que, na maioria dos casos, há um jogo de interesses quando da escolha do que é prioridade, ou melhor, é difícil escolher quais são os bens merecedores de salvaguarda. 2. O percurso do espetáculo e as rezadeiras: os sujeitos na construção do sagrado A devoção ao Espírito Santo tem suas origens em Portugal, com a Rainha Isabel, esposa de D. Diniz (1261-1325), com o viés da caridade e do agradecimento pelas graças recebidas, à fartura. Para Mariano (2005; 99): “Mesmo subordinada à religião católica, a festividade mantinha o caráter de culto dos vegetais e à natureza, incorporada, entre outros momentos, nas homenagens ao Divino Espírito Santo.” Este é apenas um exemplo de outras celebrações católicas que sufocaram festas e comemorações pagãs na Europa. 513 A Festa do Divino de Mogi das Cruzes tem características próprias (ARAUJO, 2004), pois vem se mantendo há mais de um século com características bem demarcadas, ainda que dentro de uma cidade que esta bem demarcada pela verticalização e com forte influência da mídia, que, no contexto atual, transformou a festa num espetáculo midiático bem conhecido na região do Alto Tietê. Campos (2013) aponta que em 1613, a cidade de Mogi das Cruzes já cultivava a devoção ainda na categoria de Vila de Santa Ana de Mogi Mirim, pois um documento oficial da câmara revela que os moradores deveriam se dispor a arrumar o caminho de entrada da vila, depois do Espírito Santo. Esta festa é um evento que dura dez dias e termina no domingo de Pentecostes, mas não é só isso. Há uma série de eventos que precedem estes dez dias, entre eles as coroas do divino, uma reza que visita a casa dos devotos e se estende do mês de janeiro até a semana que precede a festa. As rezas têm dois objetivos: i) preparar os devotos para a celebração maior e ii) buscar fundos para auxiliar as despesas da festa. Como as muitas festas populares, esta não é diferente, pois apresenta uma divisão de atividades, que podem ou não trazer provisionamento de fundos, que podem ser folclóricas ou religiosas, nosso foco está nesta última. A festa de Mogi das Cruzes é uma das maiores e mais antigas do Brasil, e como todos os grandes eventos que atualmente interferem na estrutura econômica e turística de uma localidade, fez emergir a Associação Pro Festa do Divino, formada por ex-festeiros com o objetivo de auxiliar os mais jovens. Acompanhando a modernidade, a organização criou um site na internet onde divulga algumas ações e notícias veiculadas pela mídia. Embora esta fonte de informação não venha sendo atualizada constantemente, é possível encontrar dados históricos, notícias e endere- 514 ços úteis que fundamentam os eventos folclóricos e religiosos que juntos fazem a festa. Segundo o site da associação, a festa se compõe dos seguintes eventos: preparativos e abertura da festa, alvoradas e passeatas, quermesse, entrada dos palmitos e procissão. Os preparativos vão desde a escolha dos festeiros para o ano seguinte, tão logo se encerre a festa, promovem-se eventos mensais para angariar fundos um deles é a pré-novena que acontece no segundo domingo de cada mês, com a Coroa do Divino com as rezadeiras, na casa da festa, como é conhecida a sede da Associação. Neste evento mensal, que tem início em Agosto, logo após a reza, é servido um café e realiza-se um bingo. Há também pré-novenas nas casas dos devotos. As rezadeiras vão Há também pré-novede casa em casa, orando e recolhendo os pedidos dos devotos e captando doações. A abertura da festa se dá 10 dias antes do domingo de Pentecostes, numa quinta feira com a passeata das bandeiras que inaugura o Império, altar construído na praça principal da cidade em frente à catedral, para onde todos os devotos se dirigem a fim de receberem as bênçãos em suas bandeiras, durante os dez dias que seguirão o Divino Espírito Santo reinará na cidade. Nas madrugadas que seguem acontecerão as Alvoradas, uma procissão que começa às cinco horas da manha partindo do Império e caminhando pelas ruas da cidade, durante a semana, este evento atrai em torno de 500 a 800 pessoas, já nos finais de semana e no Domingo de Pentecostes, há em média 1200 pessoas, calculados pelos organizadores do café, que é distribuído no salão paroquial, tão logo termine a procissão. Durante as Alvoradas reza-se a Coroa do Divino, mesma oração entoada pelas rezadeiras. Para cada dia são convidados os puxadores da reza, que são pessoas e organizações ligadas à festa. Como o número de pessoas vem aumentando ao longo dos anos providenciou-se um carro de som para que todos ouçam e respondam a oração. 515 2.1. Rezadeiras: emanações femininas na Festa do Divino A presença e valorização do universo feminino nas manifestações populares são recobertas pelo lugar permitido e pela conquista construída a partir da respeitabilidade conquistada na comunidade. O saber/poder dialogar com a universo mágico de forma mais intensa que os demais legitima o feminino no sagrado popular . Assim são as rezadeiras e a forma como elas empreendem o fortalecimento da fé dos devotos, captam recursos para auxiliar nas despesas da festa e como se desdobram nas suas atividades nos quase cinco meses que antecedem a festa que movimenta, mais de duzentas mil pessoas, entre turistas, devotos e voluntários. A história das rezadeiras é recente em relação às outras atividades que se desenrolam na festa do Divino de Mogi das Cruzes. Suas atividades surgiram no ano de 1974 a pedido de uma das voluntárias da equipe que servia o café na casa paroquial, depois das alvoradas. (CAMPOS, 2013) No dizer de COSTA & CASTRO (2008:128): Patrimonializar uma tradição local atribuindo a ela importância de relevância nacional para a construção da memória, da identidade e da formação da sociedade brasileira por mais venerável que seja é, de certa forma, expropriar as experiências vivenciadas possibilitando que esses saberes não mais se vinculem às paixões individuais que os mantêm vivos no interior do seu grupo portador. Por esta razão, este trabalho procura descrever e avaliar o saber-fazer das rezadeiras gerando conhecimento a respeito de sua existência a importância no contexto da festa, porque, embora recente, este patrimônio imaterial é uma referência cultural que partiu de um representante do povo, uma devota que obteve autorização do Bispo, em 1974, para levar a imagem do Divino às casas de outros devotos. 516 A atitude de D. Rita se espalhou, e, alguns anos depois, em 1989, às pessoas que já rezavam o terço, passaram a fazê-lo com apenas sete ave-marias, uma para cada dom atribuído ao Espírito Santo (CAMPOS, 2013). SANTOS & REGATO (2010:25) assim descrevem a precursora das rezas: Dona Rita, que faleceu em outubro de 2008, foi uma das precursoras dos grupos de rezadeiras – antigamente formado só por mulheres, mas, que hoje também admitem homens. Orgulhava-se de nunca ter deixado de participar da festa durante toda sua vida. Segundo ela, que nunca revelou a idade, eram as andanças, orando de casa em casa, que renovavam sua fé no Divino e, principalmente no ser humano. Dois anos depois se criou a Reza comunitária do Terço do Divino Espírito Santo, com um texto que enfatizava os sete dons e na conta maior rezava-se: “Oh Maria, que por obra do Divino Espírito Santo, concebestes o Salvador, rogai por nos!”. A prática estendeu-se pelos bairros da cidade, havia os pedidos dos devotos para a realização das rezas ou em função da festa que estava por vir ou para agradecer as graças recebidas. A relação que se estabelece entre Deus e os homens sempre vem intermediada pelas orações ou pelas rezas. O verbo rezar, etimologicamente vem do latim – recitare, que por sua vez denota falar em voz alta, de modo claro e cadenciado. Justamente a tarefa das rezadeiras: puxar a reza de todos que querem em uníssono pedir ou dar graças ao Espírito Santo. Em 1993, uma das rezadeiras e voluntarias da festa, Amália Manna de Deus, cujo nome batizou um dos museus da cidade, numa viagem para Minas Gerais, aprendeu a Coroa do Divino, trouxe para Mogi das Cruzes e apresentou ao bispo. A reza foi autorizada oficialmente, a partir de então todos os anos, os folhetos são impressos em papel couche vermelho, que traz na capa que o logo da festa, os nomes do casal de festeiros e do casal de capitães do mastro, na contra capa vem uma palavra do bispo, na quarta capa, vêm o endereço da página na web da Associação Pro Festa do Divino. 517 As primeiras páginas trazem as sete divisões da coroa, uma para cada dom do Espírito Santo, e em seguida aparecem outras orações que podem ser feitas escolhidas pelas rezadeiras ou pelos donos da casa que as recebe. Algumas letras de música também acompanham as orações, são músicas conhecidas entre os devotos que entoam as canções ao final da coroa. A coroa do Divino leva este nome em homenagem ao símbolo real, memória de sua origem portuguesa, e é uma oração, em parte cantada, em parte recitada. Algumas partes apenas pelas rezadeiras, outras por todos os presentes, neste percurso percebem-se as dimensões coletivas e individuais bem demarcadas pela hierarquia entre a rezadeira/rezador, pessoa escolhida pelas suas virtudes, pelas suas constantes presenças como voluntários dedicados à festa, exatamente como manda a tradição. São os voluntários mais devotados que recebem a missão de ser rezadeira ou rezador. Em 2013, quando se celebraram os 400 anos de devoção, a missa do envio das rezadeiras, que acontece sempre em janeiro, contava com quase cem membros. Do mês de janeiro até uma semana antes da festa elas agendam suas visitas nas casas dos devotos, que o fazem com antecedência com a rezadeira. 3. Linguagem, alimento: a configuração do gosto O universo da religiosidade contempla em si o sagrado e um alto nível de simbolizações. O sagrado, o mítico elo entre o divino e o humano composto por signos intermiados nas práticas do cotidiano e os espaços de rupturas. O alimento no espaço do sagrado conduz o pedido, o sentido materializado da fé no não visível. Neles há um diálogo com o cotidiano na medida em que conduzem substâncias das celebrações. No contexto do gosto no universo do sagrado observa-se a presença de dois eixos o gosto afirmado na celebração diante do não visível e a au- 518 sência do gosto para ter proximidade com o divino No caso das festas populares fundadas na religiosidade, o gosto é motivado na dimensão da alegria ,da felicidade. O alimento é resultado de uma conquista, após o trabalho: ganhar o pão. Barthes (2003,p.208/9) analisa o alimento em três níveis: os ritmos, as substancias, as práticas. Nestes termos destaca os horários das refeições nas comunidades, os alimentos proibidos ( o interdito no alimento). A circularidade desses elementos atuam na formação do gosto, ou de uma semiologia para este estudo, nos termos de Barthes: O sujeito leitor ouvinte tem uma relação diferenciada com com as palavras e função de seus referentes.Esta seria uma via de pesquisa da filologia ativa,desejada por Nietzsche: filologia das forças,das diferenças,das intencionalidades.( op,cit,p.208) Assim, o alimento em termos simbólico tem um percurso que passa por três universos de discursos: o discurso construído a partir do natural que se reveste em religioso e que se transfigura com novos traços de sentido motivados a partir das aparências sociais, fator que carrega o gosto em polissemias. Uma vez que o gosto carrega em si marcas do discurso afetivo construído a partir do contexto de ocorrência gerador de subjetividades . Na Festa do Divino, o café teve seu cardápio formado a partir de doações e acompanhou o próprio crescimento do café como parte integrante do evento. Foi o gosto popular que trouxe o bolo de fubá, o pão, a mortadela, o bicoito cangalhinha. Subverte aspecto rítmico da alimentação na medida em que se situa no pós trabalho: trabalho religioso, sagrado. Portanto a denotação da metáfora “ ganhar o pão de cada dia”. Em termos de linguagem, uma desconstrução metafórica. Um dos elementos aparente contraditórios nas manifestações culturais reside no contraditório assinalado no par conservação/mudança. Parte definidora do estatuto discursivo das festas populares, a presença do outro, 519 realimenta o processo discursivo de tal forma que gera modificações,seja pela presença do turista, seja pelos elementos midiáticos em circulação. No caso de Mogi, a alimentação /realimentação também é observada, mas de uma tradição a outra. Em 2013, quando se celebraram os 400 anos de devoção, a missa do envio das rezadeiras, que acontece sempre em janeiro, contava com quase cem membros. Do mês de janeiro até uma semana antes da festa elas agendam suas visitas nas casas dos devotos, que o fazem com antecedência com a rezadeira mais próxima da sua casa. As rezadeiras da festa do Divino de Mogi das Cruzes fazem o trabalho preparatório para a realização das promessas. A oração, objeto de análise, é dividida em três partes: o rito inicial, os pedidos pelos dons do Divino Espírito Santo e o rito final.O rito inicial contém as invocações ao Divino, em seguida faz-se a leitura do Evangelho do dia, não havendo necessidade de interpretações, todo este ritual contém falas da rezadeira e dos devotos. A segunda parte é composta de sete orações, cada uma se refere a um dom, e ela está dividida numa invocação cantada por todos, numa fala individual, por um leitor convidado pelo dono da casa ou pelo próprio dono, e a fala conjunta, em que todos irmanados, se concentram e se preparam para seus pedidos e agradecimentos. Para compor este ritual, normalmente a rezadeira pede ao dono da casa que escolha entre os presentes os leitores para os dons e para as invocações à Maria. Normalmente quem recebe as tarefas de leitores, sentem-se honrados pelos donos da casa. Assim se divide esta parte: 1° Mistério: Dom da Sabedoria, onde todos entoam o cântico: Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos sabedoria, que faz ver tudo como Deus 520 quis, e assim faremos da Eucaristia o grande meio de ser feliz. Dános Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus!’ Em seguida o primeiro leitor, lê a explicação sobre o dom da sabedoria, explica que sua cor e o azul claro e pede: Leitor no. 1: ‘Vinde Espírito da Sabedoria, desprendei-nos das coisas da Terra e infundi-nos o amor pelas coisas do céu.’ Todos repetem por sete vezes: Vinde Espírito Santo, enchei os corações de vossos fieis e acendei neles o fogo do vosso amor, vinde e renovai a face da Terra.’ Ao final, todos dizem: ‘Oh Maria, que por obra do Espírito Santo, concebestes o Salvador, Rogai por nos!’ Na sequência vêm os outros mistérios, cada um apresentando o pedido de um dom e as jaculatórias que se repetem: 2º Mistério Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, o entendimento, que tudo ajuda a compreender para nós vermos como é alimento o pão e o vinho que Deus quer ser. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no. 2: Vinde Espírito de Entendimento, iluminai a nossa mente com a luz da Eterna Verdade e enriquecei-a de puros e santos pensamentos. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … 521 3º Mistério Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, o teu conselho, que nos faz sábios para guiar: homem, mulher, jovem e velho, nós guiaremos ao santo altar. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no. 3 Vinde Espírito de Bom Conselho, fazei-nos dóceis às Vossas santas aspirações e guiai-nos no caminho da salvação. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … 4º Mistério Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos a fortaleza, a santa força do coração. Só quem vencer vai sentar-se à mesa: para quem luta Deus quer ser pão. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no.5: Vinde Espírito de Fortaleza, dai-nos força, constância e vitória nas batalhas contra os nossos inimigos espirituais e corporais. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … 5º Mistério Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos a divina ciência, que como o eterno, faz ver sem véus: Tu vês por fora, Deus vê a essência, pensas que é pão, mas é nosso Deus. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no.5: Vinde Espírito de Ciência, sede o Mestre de nossas almas e ajudai-nos a praticar os Vossos santos ensinamentos. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … 522 6º Mistério Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, filial piedade, a doce forma de amar enfim: para que amemos quem na verdade, aqui amou-nos até o fim. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no.6: Vinde Espírito de Piedade, vinde morar em nossos corações, tomai conta deles e santificai todos os seus afetos. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … 7º Mistério Cântico: ‘Dá-nos, enfim, temor sublime, de nãO AMÁLOS COMO CONVÉM: O Cristo-Hóstia, que nos redime, o pai celeste, que nos quer bem. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus! Leitor no.7: Vinde Espírito do Santo Temor de Deus, reinai em nossa vontade e fazei que estejamos sempre dispostos a antes sofrer e morrer que Vos ofender. Vinde Espírito Santo, … (sete vezes) Ó Maria, … Encerrada esta segunda parte, vem o rito final, onde há as três invocações a Maria, Oração ao Divino Espírito Santo, a oração do Pai Nosso e a oração final. 3.1 Do rito ao café:o gosto nas dimensões do pão O cântico em análise se apresenta como discurso vocativo.É um chamamento à Jesus, configurado em relação metonímica na qual o pão é Jesus, posto ser ele o alimento. O pão é o alimento básico, se é Jesus, o 523 alimento é desprovido do gosto terreno da saciedade dos sentidos gustativos. Remete ao gosto por estar vivo através e em Jesus. Neste caso, há uma outra estância de sentido para onde se desloca o prazer. O café da manhã, após a caminhada e cânticos da alvorada, atua como a materialidade do simbólico. Celebração e Festa, não nos termos dionisíacos, mas sim no sentido cristão da comunhão.Compartilha-se o alimento por todos consagrado e que traz para o tempo do café a presença de Jesus. Ao gosto terreno é somado o sagrado. O cheiro do café domina o lugar ,o pão quente atua como um sujeito personificado que chama todos para a comunhão. O prazer se manifesta na satisfação do dever cumprido que envolve de legitimidade o alimento. Considerações finais Revisitar o território do sagrado a partir das festas populares, faz com que o pesquisador esteja presente a muitas possibilidades de leituras. A Festa do Divino em Mogi das Cruzes se situa no amplo cenário da diversidade cultural brasileira. O recorte aqui apresentado é apenas um demonstrativo desta riqueza. Canções religiosas são formadas por elementos simbólicos que se repetem, posto serem representativos de uma visão de mundo que se reafirma a partir dos símbolos ritualísticos. Em outros termos: o discurso religioso é um discurso conservador. Por outro lado, apesar de conservador, é um discurso dinâmico. Reside, portanto, nas mudanças sociais a inovação na materialidade dos signos na elaboração da significação.As referências culturais aqui descritas, levam a outras reflexões sobre a herança imaterial que cada uma leva junto de si: os cânticos, as entonações de vozes, a escolha de vozes para complementar ou modular os tons, a escolha das músicas, cantadas ou tocadas eletronicamente, as diferentes concepções na criação dos alta- 524 res, dos terços de sete mistérios e das bandeiras que complementam os rituais. As referências culturais imateriais ou intangíveis não são peças acabadas de museu, são, sim, organismos vivos, em constante processo de mutação, dada a singularidade de cada um, de seus aprendizes e sucessores que se renovam e se recriam nos rituais, nos objetos e nas orações, mesmo, pois na história das rezadeiras vê-se que elas chegaram a um modelo anos depois de a ideia ter sido colocada em prática, foi um constante movimento para se chagar a um padrão de texto, vozes e papéis que cada um dos presentes desempenha no ritual e isto não cabe como peça de museu. O registro destes bens deve ser constante, ser realizado diferentemente do que vem sendo feito com o patrimônio material, não se pode quantificar celebrações, ofícios, formas de expressão e modos de fazer porque se corre o risco de separá-los do fenômeno complexo de que fazem parte. Há que se considerar que novas formas de registro e armazenamento destas informações, assim como profissionais preparados para lidar com novos métodos de catalogação, descrição e armazenamento, para que se dê o devido trato na divulgação destas referências. Tradições orais, práticas sociais, saberes e fazeres que representam a identidade de uma comunidade, que mantêm um sentimento de pertencimento precisam ser preservados. Referências ARAUJO. A. M. R.C. A cultura e a memória da festa do Divino de Mogi das Cruzes. Proj. História São Paulo, (28). 2004. 419-423 ASSOCIAÇÃO PRO FESTA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO. www.festadodivino.org.br BARTHES, R. Como viver juntos. Trad. Leila Perone- Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2003 CAMPOS, J.F. (Org. e Dir.) O Divino em Mogi das Cruzes: quatrocentos anos de devoção, aspectos históricos e iconográficos. Mogi das Cruzes: Associação pro festa do Divino Espírito Santo. 2013. CHAVES, R.B. Festa do Divino Espírito Santo em Mogi das Cruzes. Rev. Nures. Pontifícia Universidade Católica SP. n. 15 mai/ago 2010 COSTA, M.L. & CASTRO, R.V. Patrimônio imaterial nacional: preservando memórias 525 ou construindo historias? Estudos de Psicologia 13(2), 125-131. 2008. COROA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO. Folheto da Festa do Divino 2013. Mogi das Cruzes: Associação pro festa do Divino Espírito Santo. 2013. FERRETTI, S. F. Catálogo da exposição Divino Toque do Maranhão. Rio de janeiro: Centro Nacional de Folclore e cultura Popular/ IPHAN/MEC. 9-2. 2005. FONSECA, M. C. L. Referências culturais: base para novas políticas de patrimônio. In. O registro do Patrimônio Imaterial. 2000. In: http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo. do?id=3305. Acesso em 14.07.2012 GONÇALVES, J.R.S. & CONTINS, M. Entre o divino e os homens: a arte nas festas do Divino Espírito Santo. Horizontes antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 29, p. 67-94, jan/jun 2008 INVENTARIO NACIONAL DE REFERENCIAS CULTURAIS: Manual de aplicação. Apresentação de Celia Maria Corsino. Introdução de Antônio Arantes Neto. Brasilia: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. 2000. http://portal.iphan.gov.br/portal/ montarPaginaSecao.do?id=10852&retorn o=paginaIphan. Acesso em: 12/07/2013 Nacional de Geografia Agrária. São Paulo. 8575-8588. 2009 MOGI NEWS. Rezadeiras querem visitar 2 mil famílias. Jornal Mogi News. 13/04/2010 PIETROBRUNO, S. Cultural research and intangible heritage. Cultural Unbound. J of Current Cultural research. Vol.1 2009: 227-247 O DIÁRIO. Rezadeiras levam fé às casas. 27.05.2009 RODRIGUES F°, J.M. & F° DE CARLO, J. Das origens à Festa do Divino. Mogi das Cruzes SP. s/d SANTOS, L. & REGATO, R. Festa do Divino Espírito Santo de Mogi das Cruzes: três séculos de tradição. São Paulo: Ed. dos Autores. 2010 SCHMIDT, C. Sabores populares na mídia do Alto Tietê. RIF Vol. 10(20),. Ponta Grossa. PR. 21-43. 2012. SOUZA F°., B., ANDRADE, M.P. Patrimônio imaterial de quilombolas – limites da metodologia de inventario de referências culturais. In: Horizontes Antropológicos. Porto Alegre. Ano 18, no. 38, 75-99. jul/dez 2012 KUUTMA, K. Cultural heritage: na introduction to entanglements of knowledge, politics and property. Estonian Literary Museum. University of Tartu. Vol. 3(2): 5-12. 2009. MARIANO, N.F. O Divino de Mogi: uma festa tradicional na metrópole. Anais do X Encontro de Geógrafos da América Latina. Universidade de São Paulo. 1-26. Mar de 2005. . Religiosidade popular e espetáculo: a Festa do Divino de Mogi das Cruzes – SP. Cadernos CERU, serie 2, v. 9, n°. 2. 93-111. Dez 2008. . De todas as cruzes de Mogi – O Divino Espírito Santo também faz festa em Biritiba Ussu. XIX Encontro 526 O exótico no Banquete de Mário de Andrade – discussão sobre a negritude e o projeto de recepção da música erudita nacional Theophilo Augusto Pinto FFLCH-USP [email protected] Resumo Mário de Andrade, em 1943, imaginou um banquete onde um grupo de comensais discute questões ligadas à música de sua época. Um compositor erudito, uma cantora lírica, um estudante de direito, um político e a rica anfitriã são usados pelo autor para tipificar a recepção da música nacional pelo público estrangeiro que, segundo o autor, está interessado no “vatapá” musical brasileiro, isto é, no exótico. Palavras-chave música, etnicidade, nacionalismo 527 ‘O quê que esses críticos musicais estrangeiros pedem de nós? Negro, só negro! E o quê que os brasileiros pedem? Branco, só branco! E durma-se com um barulho desses! São todos uns idiotas!’1 Apresentação Janjão é um compositor erudito que tem a simpatia da rica Sara Light, que promove um banquete. Para a ocasião, são convidados um político, uma cantora e um estudante de direito. O objetivo da senhora Light é apresentar o compositor a esses distintos membros da sociedade. Ao longo da reunião, esses personagens vão tecendo comentários sobre música e estética e também sobre como esses assuntos são tratados no cotidiano do meio artístico brasileiro indicando como o autor, Mário de Andrade, pensa tudo isso em 1943, ano em que saíram esses artigos na Folha da Manhã. Uma reflexão importante sobre o texto como um todo está na edição de 1977, onde Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas apresentam-no e o localizam dentro da obra do autor. Aqui, vamos nos concentrar no trecho em epígrafe, que revela alguns pontos que pretendemos desenvolver mais amiúde ao longo deste texto. Em primeiro lugar, há a expectativa aparentemente conflituosa de dois grupos de pessoas cujos interesses em comum são a música: os estrangeiros e os brasileiros. O objeto desse conflito é outro ponto: de um lado há o que é chamado de ‘tradição europeia’, perseguida pelos brasileiros e do outro o ‘exótico’, ‘estranho’ e, claro, ‘negro’ vistos pelos estrangeiros como características inerentes à nossa identidade nacional. Este debate sobre música erudita ambientado em um banquete será extendido a outras áreas da música como aquela veiculada pelo rádio – uma música popular, sim, mas, aos olhos do escritor e de outros, excessivamente comprometida com as mediações que o meio urbano, a tecnologia e a motivação comercial impõem. 1 ANDRADE, M. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977 528 A questão do negro e do exótico Quando Mário de Andrade falou pela boca de Janjão que os estrangeiros pedem ‘Negro, só negro!’2, ele não está se referindo simplesmente a uma questão racial ou cultural, mas falando metaforicamente sobre algo que se dá por meio do estranhamento, quando alguém externo a uma cultura sente uma diferença em relação à sua própria quando confrontado com elementos daquela. Contextualizando, Mário relativizou a música erudita produzida no Brasil como algo nem tão estranhável assim como também não totalmente de acordo com padrões europeus estabelecidos: ‘O Brasil não é nenhuma esquimolândia, nem a nossa música é o gamelã [sic] javanês! Nossa tradição é europeia, nossa vida de arte erudita é a da civilização contemporânea...’3. Claro, Mário tentou, nessa frase, mostrar exemplos extremos onde o estranhamento seria evidente: uma suposta terra habitada por esquimós e/ou uma música feita por um conjunto de instrumentos de percussão bastante particular, encontrado na Indonésia (da qual Java faz parte, ainda que não contenha todas as manifestações de gamelão existentes). De qualquer forma, foi exposta a ideia de que a música brasileira não seria tão radicalmente estranha assim aos ouvidos dos (críticos) estrangeiros. Mário citou primeiro Boris de Schloezer, crítico francês de origem russa que cobrara de Villa Lobos uma música que não se utilizasse da orquestra sinfônica, pois, segundo ele (apud Mário de Andrade), tal orquestra seria a manifestação de cultura europeia, ‘que burrada!’. O modernista segue argumentando os motivos para que a orquestra não seja assim considerada e, por isso, possa ser utilizada para a criação de uma música legitimamente brasileira. Independentemente dos seus argumentos, ele parece não acreditar que eles venham a mudar a opinião daqueles críticos. ‘... essa é a visão geral, realmente tonta, da crítica europeia a nosso respeito e do Brasil: somos uns exóticos [...] querem vatapá, querem gamelão’. 2 Idem. 3 Todas as próximas referências são do mesmo livro. 529 O vatapá e o gamelão citados por Janjão/Mário são os equivalentes aos ‘Camelos de Borges’, animais que, de tão comuns na Arábia, nem seriam citados em livros genuinamente árabes por fazerem parte do cenário, sendo desnecessária sua menção por parte de um autor nativo como Maomé4. Imagens como essas são comumente simplificadas e demonstram certa pobreza em suas concepções estereotipadas mas, ao mesmo tempo, fascinam a imaginação coletiva e colaboram para produzir a identificação nacional. Dentro desse raciocínio, pensa-se nesses elementos – metaforicamente citados como o vatapá ou o negro - como ‘naturalmente’ nacionais, ‘genuínos’ da cultura e/ou da nação onde se localizam. Mário de Andrade jogou com essas ideias citando dois elementos considerados não-europeus, o vatapá brasileiro e o gamelão javanês. Esses elementos não interessam tanto pela nacionalidade original que carregam, mas sim pelo estranhamento e interesse que causariam ao europeu. Dentro desse diálogo que pensa o estranho e o exótico, Mário de Andrade fez, pela boca de Janjão, uma espécie de salto generalizador: ‘Negro, só negro!’5, isto é, converteu o exótico esperado pelo estrangeiro e metaforizado no vatapá e no gamelão em algo que pode ser entendido tanto no substantivo quanto no adjetivo, a palavra ‘negro’. Ora, por que ele não continuou citando esquimós ou javaneses que poderiam lhe dar inclusive uma ‘unidade temática’ maior ao texto? Por que voltar-se à ideia do negro numa discussão sobre a música erudita brasileira? Uma explicação possível está na ideia do ‘negro’ usada por Mário de Andrade como um símbolo tácito associado ao estranho, ao exótico e ao nacional. Esta associação foi construída ao longo dos séculos no Ocidente e 4 Essa ideia, escrita no texto ‘El escritor argentino y La tradición’, tem sido bastante utilizada para ilustrar a questão do estranhamento e do típico. Por exemplo, ela aparece em SALIBA, E. T. Raízes do Riso - a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 e FISCHERMAN, D. Efecto Beethoven: Complejidad y valor en la música de tradición popular (Coleção Diagonales). Buenos Aires: Paidós, 2004 . 5 (Andrade, op. cit.) 530 vem desde pelo menos a época dos descobrimentos. Um cenário bastante interessante e geral foi pintado por Felipe Fernández-Armesto6. Diz ele que, embora até a Idade Média fosse possível acreditar que não houvesse nenhuma associação particular entre a negritude a escravidão, isso mudou a partir do século XV não só por causa do sistema escravista mas também por conta do descobrimento de reinos e comunidades negras pobres ou rústicas. A familiaridade com reinos ricos embora decadentes posteriormente gerou desprezo e zombaria, caso de Mali onde o rei, antes visto como poderoso, passou a ser retratado como vulgar, pouco inteligente e com atributos físicos caricatos7. A implantação da escravidão exclusivamente de pessoas negras8 contribuiu também para um desprestígio e até mesmo um afastamento dessas pessoas em relação aos brancos. Nessa ‘era dos encontros’9, onde as navegações mostraram aos europeus culturas bastante diferentes da sua, o negro, em especial os membros de sociedades como os hotentotes (com quadris muito grandes) ou os aborígenes australianos passaram a ser considerados sub-humanos pelo estranhamento que causavam ao que os europeus consideravam até então como humano. Do ponto de vista cultural, as religiões da maioria das sociedades negras eram vistas não apenas como não-cristãs, mas pagãs ou mesmo demoníacas, jogando seus membros ainda mais para fora da civilização europeia10. A filosofia kantiana buscou afastar a humanidade europeia por oposição a todas as demais sociedades humanas, colocando os negros num degrau inferior em relação ao branco na escada da 6 FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (R. Eichemberg, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [2004]. 7 (FERNÁNDEZ-ARMESTO, op cit.: 76-7) 8 Op cit:73-7. Para Manuela C. Cunha, um ‘africano livre’ era uma contradição em termos. Tentava-se coincidir status e cor de pele CUNHA, M. C. Negros, estrangeiros - os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985 . 9 Idem:80 10 Idem p. 102 531 532 evolução11. Quando começam as grandes navegações com circuitos de produção e circulação de mercadorias produzidas em sistema de plantation, valendo-se exclusivamente do negro como escravo, vem a reboque a experiência do ‘terror racial’12, algo inexprimível para muitos narradores, por ser muito dolorosa. Dando estofo a essa ideia do terror estão momentos singulares na vida daqueles que se tornaram escravos, como a travessia da África para a América pelo Atlântico – chamada ‘passagem’ por alguns escritores - e a fragmentação da coesão identitária de grandes grupos num termo emprestado da experiência do exílio judaico, a ‘diáspora’. Esses termos que tentam encapsular e transmitir como único e extremo a experiência desse sofrimento, uma ‘narração da experiência’, vivida, lembrada, subjetiva e, num certo sentido, intransferível. Se é possível construir a história com base numa experiência - na memória, como propõe Walter Benjamin - outros críticos levantam o problema de que a dos velhos pode ser intransferível para futuras gerações. Sua reconstrução pelo relato tornou-se frágil e o estruturalismo ganhou terreno, embora acabe havendo uma consolidação da primazia do sujeito e das subjetividades13. No entanto, se esse terror da escravidão é indizível, não é inexprimível, e uma das maneiras de expressá-lo está na música14. Nesse mundo de coisas dos escravos negros, a palavra e a literatura perdem parte da importância, pois, como Rodolfo Vilhena observa, objetos de folclore, poesia ou literatura oral no país terão pouca representatividade, já que a língua principal é a do colonizador. Outras formas de expressão como música, dança e gesto parecem ter mais contribuições de diversos segmentos 11 GUIMARÃES, A. S. A. (2004?). Intelectuais negros e modernidade no Brasil, (artigo online). disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/. Acessado em 28/11/2008. 12 GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (C. Knipel, Trad.). São Paulo, Rio de Janeiro: Ed. 34, Univ. Candido Mendes, 2001 [1993]. 13 SARLO, B. Tempo Passado - Cultura da Memória e guinada subjetiva (R. Freire, Trad.). São Paulo, Belo Horizonte: Companhia das Letras, UFMG, 2007 14 (GILROY, op cit: 159-164) 533 culturais15. Mas, se por um lado a música ‘negra’ pôde ser vista como uma manifestação cultural distinta da branca, por outro, ela foi chamada de ‘primitiva’ devido ao etnocentrismo. Essa manifestação cultural distinta - ou expressiva, como chama Gilroy - guarda funções de culto e podem invocar a antimodernidade com sua anterioridade pró-escravista16. O que havia de tão exótico assim nessa música que exprime negritude? Por que Mário de Andrade se lembrou dessa palavra como um resumo para suprir as expectativas de estranhamento dos críticos estrangeiros? Talvez o referido ‘salto metafórico’ não tenha sido dele, e sim nosso. Mesmo assim, cremos que vale a pena continuar desenvolvendo a ideia genérica de negritude associada ao exótico na música para depois detalharmos mais a música feita para o disco e o rádio. Antes, é preciso fazer uma observação sobre o elencar elementos típicos de uma música qualquer, sob o risco de trazer essencialidade a uma manifestação cultural construída ao longo do tempo. Alguns autores afirmam que africanismos consistem mais em princípios gerais do que elementos específicos17. Para citar alguns desses princípios, há a participação coletiva, que tende a promover o talento musical num grau maior do que nas sociedades estratificadas, o uso de certos ritmos de maneira diferenciada em relação à Europa (por exemplo, a síncopa e o uso mais intenso e recente de instrumentos de percussão18); o aspecto de pergunta e resposta19 e também 15 VILHENA, L. R. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997 16 (GILROY, op cit: 129-130) 17 ALVARENGA, O. Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950 , (MANUEL, BILBY, & LARGEY, 1995:7) 18 Para uma ótima descrição etnomusicológica da síncopa no samba e sua ‘africanização’, isto é, o gradual incremento de instrumentos percussivos nessa música, ver SANDRONI, C. Feitiço Decente - transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar e UFRJ, 2001 19 Obviamente não se está buscando aqui uma ‘origem’ desses elementos numa África imaginada, mas na incorporação destes no Brasil por meio dela. Para ficarmos num exemplo de como essa perseguição ao ‘mito das origens’ é infinita lembramos que Peter Fryer propõe que 534 o uso de riffs ou padrões mais do que formas contrastantes europeias como a Sonata20. Um outro fator de estranhamento, podemos dizer, está no fato de que a essa música africana está negado seu caráter histórico, ao contrário da música Ocidental, que ‘evolui’ constantemente: Todos os europeus e seus descendentes brasileiros seriam históricos, civilizados, brancos, superiores, dominantes. Todos os outros, no caso do Brasil, índios e negros, seriam nãohistóricos, fetichistas, bárbaros, inferiores, dominados.21 Esse não-historismo cultural não só é esperado como também é cobrado na forma de uma construção de uma autenticidade apoiada numa tradição, invocada para asseverar o parentesco de diversas práticas culturais dentro da diversidade da experiência negra. Ela é uma espécie de ‘biombo fechado para a tempestade do modernismo que se abate lá fora’22; especificamente, uma música diferente da europeia entre outras coisas por não caminhar se modificar ao longo do tempo23. Uma música estranha ao modernismo, onde este se fascina com ela ao mesmo tempo em que a pretende conservá-la assim. o ‘canto desafio’ do Nordeste teria uma tripla paternidade, ou seja, africana, árabe e portuguesa. FRYER, P. Rhytms of Resistance - African Musical Heritage in Brazil. Hanover: Wesleyan University Press, 2000 20 MANUEL, P.; BILBY, K.; & LARGEY, M. Caribbean Music - From Rumba to Reggae. Philadelphia: Temple University Press, 1995 21 IANNI, O. A ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1992]. 22 (GILROY, op. cit: 352) 23 Essa assunção não é privilégio da música negra. Houve um tempo onde cria-se que as culturas não ocidentais tinham na música uma estabilidade absoluta e qualquer mudança seria considerada um distúrbio causado principalmente pela intervenção de sociedades mais fortes, como a europeia NETTL, B. The Study of Ethnomusicology - Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1983 . 535 O exótico e a modernidade no Brasil Se o negro e sua cultura foram vistos como exóticos – ou, pelo menos, usados como metáfora – por Mário de Andrade, isso estava inserido em um debate muito maior do que uma discussão estético-musical. Desde a década de 1920 começaram a aparecer em várias partes do Ocidente movimentos rumo à inserção das identidades negras rumo à modernidade. Note-se que usamos a palavra ‘identidades’ no plural, pois a palavra ‘negro’ ou ‘negritude’ pode abranger diversas personas não necessariamente juntas entre si, como o escravo, o liberto, o africano, o crioulo, o mestiço, o mulato etc. Esse movimento também não foi homogêneo em todo o mundo – nem mesmo na periferia. Guimarães, por exemplo, mostrou como esta modernidade é diferente em lugares como os EUA, o Caribe e a América Latina, por exemplo24. No caso brasileiro, essas identidades estão enlaçadas na ideia de mestiçagem. ‘Vistas como negras pelos europeus e vendo-se a si mesmas como brancas’. Mas, ao invés de ‘negro’, o que que se criou foi o ‘popular’, muitas vezes confundida com o ‘nacional’25. Esse nacional-popular específico acabou tendo um discurso onde as classes subalternas se fizeram ouvir através dele, mas a um preço, ou seja, com a criação de um discurso de massa, reconhecível pelas maiorias26, onde, independentemente do caráter econômico ou ideológico desse discurso, vale a pena estudar suas mediações, isto é, o espaço cultural onde se articula o sentido daquele. Escolhemos como ponto privilegiado desse estudo a música como elemento capaz de incorporar negros e mulatos, isto é, pessoas pertencentes à sociedade mas considerados anteriormente como ‘cidadãos de segunda categoria’27. 24 GUIMARÃES. Intelectuais negros e modernidade no Brasil.disponível Acessado em. 25 Idem. 26 MARTÍN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações - Comunicação, Cultura e Hegemonia (R. Polito & S. Alcides, Trad.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 27 ORTIZ, R. Cultura Brasileira & Identidade Nacional 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003 [1994]. 536 Uma boa parte deste espaço de mediação – o disco e o rádio -, ainda que com uma penetração limitada na década de 1920 e 1930 em relação ao que terá um pouco mais tarde, foi cenário para a atuação de diversas forças. Na virada dos anos 1920 para 1930, a crise econômica e a política tornaram forte a corrente do populismo que, por sua vez buscou sua legitimação como representante do que podemos chamar de popular. O popular, por sua vez, quis em troca de seu apoio o reconhecimento oficial de sua cidadania, e este veio, dentre outras formas, pelo rádio e por parte da música que dele emanava, a música negra (uma parte cada vez maior e cada vez mais nacional). No meio desse processo, genericamente falando, essa música negra precisou negociar barreiras como a que a ‘verdadeira’ música estaria ligada ao meio rural, menos corrompido pelos modernos meios de comunicação. De fato, muitos comentaristas e estudiosos mostram como isso foi um ponto de tensão muito forte28. O rádio passou, portanto, a ser um destino para a música e músicos negros, num processo bastante diferenciado em relação a outros setores destas empresas. ‘O negro... passa a ser o seu assunto predileto, embora não o exclusivo’29, numa imbricação de interesses políticos e ideológicos com vistas a alcançar a chamada democracia racial: ‘Rádio e poética popular não conseguem escapar aos envolvimentos de interesses mais amplos que passam a dominar em diferentes fases históricas’30. Se o rá28 Uma lista mais ou menos compreensiva de fontes que ilustram essa ideia seria por demais extensa para o propósito deste trabalho. No entanto, uma breve discussão sobre como os intelectuais viam essa necessidade de se voltar para a parcela rural e não urbana, pode ser vista em WISNIK, J. M. Getúlio da Paixão Cearense. IN: Música. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1982]. p. 192., MCCANN, B. Hello, Hello Brazil - Popular Music in the Making of Modern Brazil. Durham: Duke University Press, 2004 , em especial nas pgs 222-223, ANDRADE, M. Ensaio sobre a Música Brasileira 4ª ed. (Coleção Excelsior, vol. 42). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006 [1928]. e (ALVARENGA, op cit) 29 PEREIRA, J. B. B. O Negro e o Rádio de São Paulo 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001 Nos setores técnicos e administrativos a incidência de pessoas negras ainda tendia a ser bem menor, mostrando como todo esse processo não era tão inclusivo assim, isto é, filtrava pessoas e culturas para pontos onde lhe interessava. (Idem: 147) 30 (Idem: 207-8) 537 dio deu notoriedade e dinheiro, também contribuiu para a manutenção do negro como um sujeito social e politicamente afastado de debates mais ‘sérios’, como se ele não fosse percebido como sujeito social e político, mas apenas artístico31. Ligado a esta ideia esteve um dos primeiros estereótipos do negro no rádio, o malandro. Neste figura está o ‘orgulho em ser vadio’32, proprietária de uma ética oculta onde o ócio é uma conquista para alguém que foi associado à escravidão. Claro que isso não durou muito, pois com o Estado Novo apareceu a intenção da ‘erradicação’ deste mal, embora esse samba malandro ‘regenerado’ continuasse com suas síncopas e gírias de intenções ambíguas para com o regime em voga33. No entanto, esse malandro ‘ambíguo’ não foi a única figura que pode ser incorporada a esse grupo. Há também o que Gilroy e Sansone chamaram de ‘dupla consciência’, isto é, o sentimento de sentir-se negro e brasileiro ao mesmo tempo, ‘comprometidos tanto com a nação quanto com seus irmãos de cor’34. Até o fim da 2ª Guerra Mundial o rádio passou a ter uma posição bastante significativa na construção do imaginário nacional. Desde o início da década de 1940, programas jornalísticos como o Repórter Esso, a criação do Ibope e a consolidação da Rádio Nacional como principal emissora no país, dentre outros fatores, incrementaram a penetração do rádio no cotidiano da sociedade brasileira. O samba, cujo processo de nacionalização teve um importante momento na década de 193035, aproveitou-se desse 31 CHAUÍ, M. Brasil - Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Fundação Perseu Abramo, 2000 32 Trecho do samba ‘Lenço no Pescoço’, de Wilson Batista, gravado por Silvio Caldas em 1937. 33 Sobre o chamado ‘samba malandro’, ver MATOS, C. Acertei no Milhar - Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio (Coleção Literatura e Teoria Literária, vol. 46). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 . 34 SANSONE, L. Negritude sem Etnicidade - o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA/Pallas, 2004 35 VIANNA, H. O mistério do Samba 4ª ed. (Coleção Antropologia Social). Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1995 538 novo veículo, naturalmente. As representações36 do negro pela sociedade brasileira assim foram mediadas intensamente. Note-se que não estamos falando de uma representação do negro para si, mas sim de outra que a própria sociedade cria: ‘quem inventa o negro do branco é o branco’37. Um exemplo da representação do negro pelo rádio A título de ilustração, pretendemos mostrar como algumas dessas ideias citadas acima apareceram em apenas um programa radiofônico de 194738. Nas Asas de um Clipper foi um programa radiofônico semanal, e, além do Brasil, produzido localmente no México, na Argentina e em Cuba durante o ano de 194739. No Brasil, foi transmitido às sextas-feiras, às 21:30 com meia hora de duração, ocupando, portanto, o horário nobre da programação. Como muitos outros programas do período, era realizado ao vivo com uma orquestra – chamada Típica Corrientes - associada ao maestro argentino Eduardo Patané, mas com a regência de um dos mais importantes maestros da Nacional, Radamés Gnattali. Além da orquestra, cantores do meio artístico brasileiro e eventualmente dos outros países participantes faziam suas apresentações, conduzidas por dois locutores de modo a criar um ambiente dinâmico e vivo ao longo do programa. Assim como outros programas da Rádio Nacional nesse horário, este tinha uma enorme popularidade. Cada um dos três países – Argentina, Cuba e México – era ‘ilustrado’ no programa durante seis semanas. Foram duas rodadas pelos quatro países ao longo de 1947. 36 CHARTIER, R. A História Cultural - entre práticas e representações (M. M. Galhardo, Trad.) (Coleção Memória e Sociedade). Rio de Janeiro: Bertrand, 1990 [1987]. 37 IANNI. A ideia de Brasil Moderno. 38 Esta série foi estudada por mim mais detalhadamente e apresentada no XXIV Simpósio Nacional de História, 2007, em São Leopoldo – RS. 39 Coincidentemente, foram esses os quatro países apontados por GUIMARÃES. Intelectuais negros e modernidade no Brasil.disponível Acessado em. como os que mais contribuíram para dar um ‘tingimento latino’ às cores da música popular americana . 539 Alguns ritmos40 foram citados pelos locutores do programa. O mais frequente deles foi a rumba, descrita como uma dança “...que nasceu espontânea, que é como uma chama viva nascida do sol tropical, ardente como o verão antilhano, contagiante, embriagadora”41. Ou, como diz a letra da música ‘Escandalosa’42, ‘a rumba por si é maliciosa... escandalosa’. Um ritmo sensual, portanto, como foi conhecido também o samba brasileiro. Sensualidade e negritude são dois aspectos importantes nas duas representações desses ritmos. Negros idealizados que passaram pelo sofrimento da escravidão, que ajudaram a construir uma pátria ou que se esquecem das durezas da vida dançando rumbas ou sambas são encontrados nas narrativas entre uma e outra música do programa, de modo a uni-las tematicamente. Como exemplos de temas ligados à negritude, cite-se Ruy Rey cantando ‘Tabu’, de Margarita Lecuona e ‘Yo Soy el Batalá’43, atribuída a Ruy Rey. Em outro programa Jorge Fernandes canta ‘Banzo’, de Heckel Tavares, seguido de ‘Babalu’, de Margarita Lecuona – esta cantada em português. Para todas essas músicas havia uma breve apresentação pelo locutor do assunto ao qual elas se referiam. Apresentando ‘Banzo”, o locutor diz: Os mesmos navios negreiros que trouxeram para o Brasil o ritmo binário dos tan tans africanos levaram para Cuba a nostalgia dos negros cativos. No Brasil, o negro trabalhou nas casas de ouro, plantou os cafezais, ajudou a ganhar as guerras e a construir a paz. Fez tudo isso e cantou. Banzo, a doença da saudade, reflete a alma doída do negro brasileiro.44 40 A classificação de músicas pelo seu ritmo ou gênero em música popular não se baseia apenas em aspectos técnico-musicais e deve ser examinada com muita cautela, como já se falou no caso dos africanismos. No entanto, para o propósito do texto, cremos ser apropriado o uso da terminologia que os próprios atores envolvidos deram a essas músicas. 41 Extraído do programa NADC: 9/5/1947. 42 NADC: 23/5/1947 43 NADC: 16/5/1947 44 NADC: 12/9/1947 540 Há, por parte do texto, uma intenção em associar parte da experiência inexprimível do negro a um ritmo binário ou a um instrumento de percussão, naturalizando o terror da escravidão num som musical. Uma das consequências desse raciocínio seria pensar que a música negra (e, por extensão qualquer outra música) estaria irremediavelmente atada a uma experiência que lhe daria um significado inerente, ainda que subjetivo. Não foi diferente a apresentação de “Tabu”. “A influência do negro se faz notar a cada passo na arte cubana principalmente na música do país centroamericano. Ouçam, por exemplo, Tabu, um lamento cubano em que o negro deixou à sombra do seu vulto e o calor de seu sangue” 45 Veja-se também “Babalu” “Em Cuba, esse mesmo negro africano plantou fumo, cuidou dos canaviais imensos, ajudou a construir uma pátria e cantou...Babalu é um lamento negro; saiu como um gemido do peito largo do negro cubano” 46 Todas essas referências ao lamento, ao gemido, à saudade e à dor mostram como o terror pode ser ‘exprimível’, ainda que pelas palavras do branco, consumidor final dessa temática (afinal, o programa era transmitido com o patrocínio de uma empresa aérea norte-americana onde os únicos negros que apareciam nos cartazes estavam trabalhando, carregando cargas ou vendendo quitutes nas praias47). A temática da sensualidade também apareceu em diversas músicas. Ruy Rey e Nuno Roland cantaram, em dias distintos, versões de ‘Param-pam45 NADC: 23/5/1947 46 NADC: 12/9/1947 47 A referência que tenho sobre isso foi extraída do site da nova Pan Am, onde há alguns cartazes da década de 1940 e onde se pode comprovar esse dado. Veja a seção histórica do site http://www.panam.org. 541 -pam’48, de Sérgio Di Karlo e ‘Negra consentida’49, de Joaquin Pardavé. Houve até uma rumba composta por Ruy Rey, ‘Ana Martí’50, falando de uma musa sensual adorada pelo cantor. Isso fora músicas como ‘Sambolândia’51, de Pedro Caetano e a referida ‘Escandalosa’, cuja letra fala de uma mulher que, ao dançar uma rumba em Cuba foi assim chamada. Nesse sentido, a mulher e a rumba se equivaliam como pontos focais de uma representação da sensualidade natural. Ao longo deste texto, tentou-se indicar como a música recebe uma série de atributos que não lhes são inerentes, mas que são passados como tal. Dentre eles, foram encontrados nos programas radiofônicos uma categorização para a música onde ela podia ser ouvida como moderna ou como arcaica, negra ou branca, europeia ou africana, ingênua ou sofisticada, variando-se conforme a temática. Algumas pessoas que a escutaram e fizeram sua significação de modo mais específico, se tiveram acesso à produção crítica ou historiográfica, fizeram valer sua opinião. Quero dizer com isso que a historiografia pode enfatizar em maior ou menor grau determinado tema ou movimento, em função daquilo que se pretende especificamente. Parte dela escolheu enfatizar algumas descontinuidades históricas e, desse modo, passou a ‘saltar’ a narrativa, salto que às vezes passou por cima da Era do Rádio. Mas isto é assunto para um estudo bem maior. Referências bibliográficas 48 NADC: 9/5/1947 e 19/9/1947 49 NADC: 12/9/1947 e 17/10/1947 50 NADC: 16/5/1947 51 NADC: 23/5/1947 ALVARENGA, O. Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950 ANDRADE, M. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977 ANDRADE, M. Ensaio sobre a Música Brasileira 4ª ed. (Coleção Excelsior, vol. 42). Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006 [1928]. BORGES, J. L. Discusión. IN: Obras Completas. Buenos Aires: Emecé, 1996 [1932]. p. 173-285. 542 CHARTIER, R. A História Cultural - entre práticas e representações (M. M. Galhardo, Trad.) (Coleção Memória e Sociedade). Rio de Janeiro: Bertrand, 1990 [1987]. CHAUÍ, M. Brasil - Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Fundação Perseu Abramo, 2000 CUNHA, M. C. Negros, estrangeiros - os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985 FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (R. Eichemberg, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [2004]. FISCHERMAN, D. Efecto Beethoven: Complejidad y valor en la música de tradición popular (Coleção Diagonales). Buenos Aires: Paidós, 2004 FRYER, P. Rhytms of Resistance - African Musical Heritage in Brazil. Hanover: Wesleyan University Press, 2000 GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (C. Knipel, Trad.). São Paulo, Rio de Janeiro: Ed. 34, Univ. Candido Mendes, 2001 [1993]. GUIMARÃES, A. S. A. (2004?). Intelectuais negros e modernidade no Brasil, (artigo online).disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/ asag/. Acessado em 28/11/2008. IANNI, O. A ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1992]. MANUEL, P.; BILBY, K.; & LARGEY, M. Caribbean Music - From Rumba to Reggae. Philadelphia: Temple University Press, 1995 MARTÍN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações - Comunicação, Cultura e Hegemonia (R. Polito & S. Alcides, Trad.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997 MATOS, C. Acertei no Milhar - Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio (Coleção Literatura e Teoria Literária, vol. 46). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982 MCCANN, B. Hello, Hello Brazil - Popular Music in the Making of Modern Brazil. Durham: Duke University Press, 2004 NETTL, B. The Study of Ethnomusicology - Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1983 ORTIZ, R. Cultura Brasileira & Identidade Nacional 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003 [1994]. PEREIRA, J. B. B. O Negro e o Rádio de São Paulo 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001 SALIBA, E. T. Raízes do Riso - a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 SANDRONI, C. Feitiço Decente transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar e UFRJ, 2001 SANSONE, L. Negritude sem Etnicidade - o local e o global nas relações raciais e na produção cultural negra do Brasil. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA/Pallas, 2004 SARLO, B. Tempo Passado - Cultura da Memória e guinada subjetiva (R. Freire, Trad.). São Paulo, Belo Horizonte: Companhia das Letras, UFMG, 2007 VIANNA, H. O mistério do Samba 4ª ed. (Coleção Antropologia Social). Rio de Janeiro: Jorge Zahar/UFRJ, 1995 VILHENA, L. R. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (19471964). Rio de Janeiro: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997 WISNIK, J. M. Getúlio da Paixão Cearense. IN: Música. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1982]. p. 192. 543