do Rock

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1
ISBN 978-85-62959-30-1
Sumário
Eixos temáticos
7
Indústria da cultura e indústria de alimentos: causa ou
consequência da homogeneização e degeneração dos gostos na
sociedade de massas?
9
Juliano de Oliveira
Ronaldo Novaes
Os 10 anos do Musimid na pesquisa musical: depoimento de
Teresinha Prada
25
Teresinha Prada
Saraus, récitas líricas, bailes e concertos ituanos: as sinhazinhas,
e seus dons musicais, embebidos em gengibirra e quitutes 26
Marcos Júlio Sergl
Para comer e para levar, para cantar e para bailar: Estudo da
música salsa como patrimônio imaterial musical da diáspora afrolatino-caribenha
46
Julio Moracen Naranjo
“Piquenique Classe C”: música, alimento, história, literatura e
sociedade
62
Guilherme Gustavo Simões de Castro
Hardcore, sobriedade e direitos dos animais: reflexões sobre as
relações entre produção musical, veganismo e abstinência na
subcultura straightedge
83
Jhessica Reia
2
O Yoga no ocidente: sonoridade, alimentação e ritual
103
Julicristie M. Oliveira
O significado musical: expectativas
114
Karin Segalla Ferreira
A ‘áudio-imagem’ segundo J.E. Berendt
129
Luiza Spínola Amaral
A ritualização nas repúblicas federais de Ouro Preto–MG: dos
hinos às “rezas de cachaça” e suas implicações
148
Leonardo Corrêa Bomfim
Bebida, canto e alma — os índios Ticuna e a imortalidade 179
Edson Tosta Matarezio Filho
O samba e a culinária mineira: análise etnográfica de um samba
de Toninho Geraes e Paulinho Rezende
190
Ana Lúcia Fontenele
A música como expressão gastronômica: o baião de Luiz
Gonzaga
200
Moacir Ribeiro Barreto Sobral
Sênia Regina Bastos
O samba e a cerveja como símbolos nacionais: eu sou
Brahmeiro
218
Antonio Layton Souza Maia
Festa do Divino Espírito Santo: música e devoção no sertão
baiano
235
Thiago Marcelo Mendes
3
O Festival do Folclore de Olímpia, o Grupo Sabor Marajoara e o
Culto da Jurema: “invenções” sucessivas e complementares254
Estêvão Amaro dos Reis
O rock and roll carioca nos anos 50
271
Marcelo Garson
Bebendo o blues: a bebida e o cigarro na obra de Celso Blues Boy296
Paulo Celso da Silva
“O mundo não para de girar” — a juventude roqueira dos anos de
1980 e suas relações com as bebidas alcoólicas
310
Gustavo dos Santos Prado
Alguém colocou algo em meu drink. Análise semiótica de temas
relacionados à ingestão de bebidas e de outras substâncias na
obra dos Ramones
328
Daniel Pala Abeche
Educação musical e indústria cultural 343
Marcelo Fernandes Pereira
O “culinário” em Adorno, Benjamin e Brecht: entre o prazer e a
regressão
352
Luiz Fernando de Prince Fukushiro
A música da mídia na mente: uma análise da recepção dos jingles
e uma reflexão sobre o gosto musical contemporâneo 364
Ana Lúcia Iara Gaborim Moreira
Antonio Deusany de Carvalho Júnior
Dá meu Danoninho pra eu virar herói: encantamento e persuasão
no jingle 378
Danuza Pessoa Polistchuk
4
Muito além do hit: considerações sobre a junk music
396
Alex Kantorowicz Buck
O triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações
culturais de uma prática ambulante
424
Thaís Amorim Aragão
Rock com sabor de Mupy: o gosto da música na cena cosplay4 41
Mônica Rebecca Ferrari Nunes
Vera da Cunha Pasqualin
Som, linguagem e significado musical
456
Paulo C. Chagas
Celebrações e deleites de um outro tempo: o bem viver ao gosto
dos harpistas do Egito Antigo
486
Cássio de A. Duarte
Retrato de Cora: do natural ao artístico
496
Silvia Maria Pires Cabrera Berg
Música – sabor na língua e carícia na pele
505
Déa E. Berttran
Festa do Divino em Mogi das Cruzes: o percurso da Fé e a
conquista do alimento santificado
507
Luci Bonini
Eliana Meneses de Melo
O exótico no Banquete de Mário de Andrade – discussão sobre a
negritude e o projeto de recepção da música erudita nacional527
Theophilo Augusto Pinto
5
Apresentação
O sabor do saber… Se etimologicamente as duas palavras são sinônimas,
no uso cotidiano esta afinidade parece ter-se perdido. A proposta deste
ano pretende recuperar a experiência sensível e sensorial pela música, tendo, como aproximação, o próprio consumo: do material sólido
(alimento) ou líquido (bebidas) ao sígnico (as criações, em várias instâncias). Enfim, o tema deste ano convida os interessados a ajudar a conhecer
melhor como gostos e sabores conduzem a saberes particulares.
O 9º Encontro Internacional de Música e Mídia é uma iniciativa do
Centro de Estudos em Música e Mídia—MusiMid. O Grupo de Pesquisa —registrado no Sistema Grupos, do CNPq e vinculado ao Programa de
Pós-graduação em Música do Departamento de Música da ECA–USP— é
formado por profissionais do meio acadêmico e artístico de formação multidisciplinar, além de estudantes de graduação e pós-graduação. Provenientes das universidades mais conceituadas do país e do exterior, esses
pesquisadores têm como centro de interesse comum o estudo das múltiplas relações entre música e suas formas de comunicação e recepção.
Visando ampliar os debates e estendê-los à comunidade interessada no
tema, o grupo vem realizando anualmente os Encontros de Música e Mídia: As múltiplas vozes da cidade (2005); Verbalidades, musicalidades: temas, tramas e trânsitos (2006), As imagens da música (2007),
O Brasil dos Gilbertos: Gilberto Freyre, João Gilberto, Gilberto Gil e
Gilberto Mendes (2008), E(st)éticas do som (2009), Música: De/Para
(2010), Música, memória: tramas em trânsito (2011), Tão longe… Tão
perto… A música nômade (2012) realizados no SESC–Santos e nos auditórios da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA–USP). Em sua nona edição, o tema do encontro será O gosto da música, dividido em quatro temas principais.
6
Neste ano de 2013, o evento tem como coordenadores externos os professores doutores Eduardo Paiva (Unicamp) e Magda D. Pucci (Mawaca).
O evento conta com o apoio do Programa de Pós-Graduação em Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(PPGMUS/ECA–USP) e do Programa de Mestrado em Políticas Públicas
da Universidade de Mogi das Cruzes.
Eixos temáticos
Música + comida + bebida = ritual
A música está invariavelmente presente nas culturas antigas e contemporâneas,
em cerimônias laicas ou religiosas, bem como nos hábitos individuais. Presente
na prática coletiva, em caráter informal (rodas de samba, saraus domésticos, blocos
carnavalescos), bem como nas apresentações profissionais em locais públicos, a
associação entre bebida e música é constante (couvert em casa de espetáculo).
Música + bebida = viagem ao inconsciente
O poder que a música detém de potencializar efeitos químicos, após a
ingestão de alimentos e bebidas. As culturas do processo decorrentes (“sexo,
drogas e rock-and-roll”, por exemplo). O apelo ao consumo simultâneo é
ato contínuo. Os rituais dionisíacos. Voracidade; overdose, abstinência. A
noção de corpo perfeito, esguio e anoréxico, versus o underground.
Gêneros musicais + bebidas = criação de signos artísticos
A correspondência entre gêneros musicais e bebidas é notável: uísque,
bossa nova, jazz; cerveja e pagode, champanhe e valsa… O vinho está
estreitamente ligado a gêneros particulares de canção de caráter tradicional
(fado, tango), figurando no próprio título, tema, enredo da obra, ou texto
poético. No desfecho da ópera O morcego, o champanhe é o “culpado pelos
mal-entendidos”. A música também acompanha a comida: um interlúdio
é uma obra breve que acompanha a entrada de um prato, num banquete.
7
Música + bebida + imagem (visual) = compre-me!
Sobretudo na publicidade, obras musicais e jingles ultrapassam a
finalidade de promover o produto. A maneira como obras já conhecidas
são ressignificadas, transformadas em trilhas sonora, promove uma
ressignificação, face à mudança de função e contexto inicial.
Música + Muzak = “alimento” do corpo
Consumo alimentar e música ambiente: espaços sonoros e sua
adequação à “alimentação adequada”, no tempo certo, das “academias” de
ginástica, sessões de yoga, spas, aos restaurantes de fast food etc.
8
Indústria da cultura e
indústria de alimentos:
causa ou consequência
da homogeneização e
degeneração dos gostos na
sociedade de massas?
Juliano de Oliveira
Universidade de São Paulo
[email protected]
Ronaldo Novaes
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
É bastante conhecida a crítica dos frankfurtianos, notadamente Theodore Adorno e Max
Horkheimer, de que a música vinculada à Indústria da Cultura, com suas estruturas
formais altamente previsíveis e repetitivas, melodias fáceis e padrões familiares, teria sido
responsável por certa infantilização da audição e poderia haver contribuído, igualmente,
para a “regressão da escuta”. Também é bastante comum nos tempos atuais a crítica, por
parte de sociólogos, nutricionistas e profissionais da área da alimentação, à indústria dos
alimentos por haver ocasionado uma homogeneização dos gostos e contribuído para
a criação de paladares infantilizados, que, neste caso, se caracterizaria pela predileção
por sabores adocicados e pela aversão a verduras, frutas, alimentos desconhecidos e
temperos fortes. Nesse artigo buscar-se-á, portanto, estabelecer possíveis relações entre
as críticas auferidas às indústrias da música de consumo e de “fast” e “ junk food” tendo
por base as seguintes questões: haveria, de fato, a cultura de massas (ou para as massas)
ocasionado uma homogeneização e infantilização de todos os gostos? Até que ponto
é possível relacionar uma experiência estética com uma experiência alimentar? Não
seria, em certa medida, a apreciação gustativa também uma experiência estética em
algum sentido? Até que ponto podemos conceituar como “infantilizada” uma cultura
pautada nos gostos de uma sociedade de massa construída sob a égide do consumo?
Palavras-chave
sociedade de consumo, indústria da cultura, indústria de alimentos, gosto
9
Introdução – a Indústria da Cultura1
Em Indústria Cultural: o esclarecimento como mistificação das massas
Adorno e Horkheimer “denunciam que, a despeito de sua postura aparentemente democrática e liberal, a cultura massificada realiza impiedosamente os ditames de um sistema de dominação econômica que necessita, entretanto, de uma concordância – pelo menos tácita – das pessoas
para a legitimação de sua existência.” (DUARTE, 2002, p. 9). Segundo os
autores, a Indústria da Cultura, ao aplicar ao âmbito cultural e artístico a
lógica capitalista do mercado, cuja finalidade principal está em transformar todos os seus componentes em mercadoria, revoga a “autonomia da
arte através das estratégias da cultura de massa – totalmente tecnificada,
portanto submetida à esfera da racionalidade técnico científica.” (DUARTE, 2002, p. 51). A arte perde, então, segundo Adorno e Horkheimer, sua
função de emancipação e crítica e serve à alienação. A relevância dessa
formulação, sobretudo, está no fato de que, pela primeira vez na história
humana, a cultura se define como uma indústria, outrossim, de grande
viabilidade econômica.
1
Optamos pela tradução do termo Kulturindustrie como sendo indústria da cultura ao invés
de indústria cultural, como comumente se é traduzido, não só por entender que seria mais
bem adequado ao sentido original alemão (talvez mesmo duplamente pejorativo, tanto em
relação à “indústria” como à “cultura”) como também pela realidade de expressões de algum
modo análogas, entre outras, tais como indústria da ciência, indústria da consciência, indústria da fé, indústria da eleição, indústria do mensalão, indústria da corrupção civil, indústria da beleza, indústria da pornografia, indústria do sexo, indústria do turismo, indústria da
moda, indústria do seguro, indústria da doença, indústria da seca, indústria da multa, indústria do dano moral, indústria da madeira, indústria da carne, indústria da pesca, indústria do
fast food, indústria da comunicação, indústria da informação, ou ainda indústria motorizada
da alimentação – expressão, esta última, conferida pelo próprio Heidegger - hoje chamada
também de agronegócio ou agrobusiness. Em todos estes casos os interesses financeiros são
tão decisivos que, ao superar qualquer questionamento ético-estético, se de um lado, já houve
uma indústria da morte (lembremo-nos da racionalidade dos nazistas), de outro, já se fala
também de uma indústria do holocausto. Enfim, realidades inexoráveis do capitalismo em
que tudo vira negócio. Trata-se da ditadura do desempenho do lucro, excluindo-se desde então qualquer discussão ético-estética. (Kothe, 2002, p. 15)
10
Adorno e Horkheimer privilegiam o termo indústria da cultura em detrimento de cultura de massa, já que, segundo esses autores, os bens culturais produzidos por essa indústria se mantém numa relação vertical
dos produtores para com os consumidores e se legitimam segundo uma
lógica capitalista, portanto, nada teria a ver com os interesses autênticos
dos consumidores.
Segundo Duarte (2002, p.39), “uma das contribuições mais importante
da crítica à mercantilização da cultura na Dialética do Esclarecimento,
se expressa na denúncia de que ela realiza uma apropriação da capacidade de ‘esquematismo’ das pessoas”. Assim, para os autores,
“já que a indústria cultural decompõe o que podemos perceber
em suas partes elementares e rearranja de um modo que lhe seja
interessante, ela adquire o enorme poder de influir no modo como
nós percebemos a realidade sensível – em última instância, na
maneira pela qual nós percebemos o mundo”. (DUARTE, 2002, p. 39).
Para Adorno e Horkheimer, a indústria da cultura cria uma ideia de “real”
através da repetição contínua, tornando-se então uma máquina de disseminação de ideologias conformistas.
“A ideologia fica cindida entre a fotografia de uma vida estupidamente
monótona e a mentira nua e crua sobre o seu sentido, que não chega
a ser proferida, é verdade, mas, apenas sugerida, e inculcada nas
pessoas. Para demonstrar a divindade do real, a indústria cultural
limita-se a repeti-lo cinicamente”. (ADORNO; HORKHEIMER, 1947, p. 70)
Daí Adorno dizer que a cultura de massa, de modo geral, é narcisista,
“pois ela vende a seus consumidores a satisfação manipulada de se sentirem representados nas telas do cinema e da televisão, nas músicas e nos
vários espetáculos.” (FREITAS, 2003, p. 19). A indústria cultural destitui a
individualidade dos seres em prol de uma felicidade coletiva e vende a
ideia de uma felicidade que nunca se realiza.
11
O olhar sobre as indústrias de fast e junk food a partir de um ponto de
vista cultural e social possibilita a transposição da crítica adorniana para
o campo da alimentação. Procuraremos entender a formação do paladar
e do gosto alimentar a partir de uma perspectiva sociológica e cultural,
objetivando entender a semelhança das estratégias utilizadas por ambas
as indústrias, da cultura e de alimentos, na atual sociedade do consumo
e a influência na formação do paladar e dos gostos alimentares dos consumidores.
Os produtores da sociedade de consumo se apropriam de meios estratégicos que colocam em prática um tipo de obsolescência planejada, cujo
principal objetivo consiste em criar uma aura de fetiche em torno do
novo e, em contrapartida, tornar obsoleto tudo que possa ser visto como
ultrapassado. No caso da música, esse tipo de obsolescência é gerado
através da criação ou reformulação contínua de novos rótulos (gêneros)
que, não obstante, revelam o velho e conhecido arquétipo formal tanto
mais previsível quanto mais se lhe é familiar. Ao longo da história da
indústria da cultura, alguns gêneros surgidos no seio da sociedade de
consumo ganharam destaque. Hennion destaca que a predileção pelo
rock e pop, por exemplo, deve-se a uma gama de fatores, dentre eles, o
fato de haverem combinado mais sistematicamente “uma mistura de rituais, estruturas linguísticas e sociais, tecnologias e estratégias de marketing, instrumentos e objetos musicais, políticas e corpos” (HENNION,
2003, p.85). Podemos notar facilmente uma onda de novos gêneros que
se tem criado a partir da apropriação e fusão de outros gêneros já consolidados: sertanejo universitário, funk ostentação, funknejo, pagode baiano, tecnobrega etc. Na indústria de fast e junk foods, a tensão repetição/
novidade se dá principalmente pela mudança das embalagens, formatos
dos alimentos e tipos de experiência com a ingestão – entram aí o som
produzido pelo alimento, a textura, a ocasião e local de consumo etc.
Em contrapartida às críticas de Adorno e Horkheimer, os apologistas
da Indústria da Cultura argumentam que a grande demanda para seus
12
produtos justificaria sua existência. Além disso, a baixa qualidade das
mercadorias e sua padronização seriam ocasionadas pela necessidade
dos próprios consumidores, que buscariam sempre as mesmas sensações, desfechos semelhantes, resoluções “satisfatórias”, finais felizes etc.
Alguns fabricantes de alimentos e bebidas também defendem que o uso
em excesso de açúcar, gordura e sal visa atender a própria exigência
dos consumidores, de modo que, na rivalidade comercial, as empresas
que satisfazem melhor essas exigências obtém maior número de vendas.
Por conta disso, não é difícil encontrar empresas, inclusive fabricantes
de cervejas, que alegam terem tido a necessidade de alterar a receita
de seus produtos com vistas a aumentar a quantidade de sal, gordura e,
principalmente, açúcar para atender ao paladar de seus consumidores. A
refutação de Adorno e Horkheimer, no entanto, caminha no sentido da
afirmação de que, na verdade, a indústria da cultura atenderia a necessidade dos consumidores, entretanto, de um modo que seus anseios são
apenas apropriados por ela no intuito de obter lucro e controle social. (DUARTE, 2002, p. 38–39). Logo, os consumidores seriam mais vítimas que
agentes ativos das indústrias do consumo, estas, em processo constante
de especialização em busca dos mecanismos que fazem o consumidor
querer sempre mais. Por essa perspectiva, é compreensível o fato de que
as grandes companhias se empenham cada vez mais em pesquisas que
buscam as fórmulas mais eficazes para intensificar ao máximo a sensação de prazer e bem estar. Com isso, conseguem refinar constantemente
o apelo publicitário e a química de cada um de seus produtos.
2. A indústria cultural como modeladora dos gostos
Para Hennion, “o gosto não é um registro ou as propriedades fixas de um
objeto, um atributo estável de uma pessoa, um jogo entre entidades existentes, mas sim uma conquista” (HENNION, 2003, p. 90). O autor propõe,
ademais, a ideia do gosto como “uma modalidade problemática de ligação com o mundo” (HENNION, 2005, p.1). Em O fetichismo na Música e a
Regressão da Audição, Adorno destaca que “o próprio conceito de gosto
13
está ultrapassado”. E continua: “O comportamento valorativo se tornou
uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias musicais padronizadas”. (ADORNO, 1999, p. 66). E comenta:
“Se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de
sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos
à suspeita de que o gostar e o não gostar não correspondem
ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se expresse
em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria
coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso
ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase
exatamente o mesmo que reconhecê-lo”. (ADORNO, 1999, p. 66).
Segundo Adorno, “nas queixas atuais acerca da decadência do gosto,
há certos motivos que se repetem constantemente. Tais motivos estão
presentes nas considerações rançosas e sentimentais dedicadas à atual
massificação da música, considerando-a uma ‘degeneração’”. (ADORNO,
1999, p. 67) Para este autor, a música produzida pela indústria da cultura
é dominada pelo fetichismo que, por sua vez, se consubstancia no valor
que é agregado à música por meios extrínsecos, independentes de seu
valor como obra. Segundo o autor: “o conceito de fetichismo musical não
se pode definir por meios puramente psicológicos. O fato de que “valores”
sejam consumidos e atraiam os afetos sobre si, sem que suas qualidades específicas sejam sequer compreendidas ou apreendidas pelo consumidor, constitui uma evidência da sua característica de mercadoria.”
(ADORNO, 1999, p.67)
Com a noção de coisificação e “fetichismo na música” Adorno procura
“transpor a concepção de fetichismo da mercadoria, tal como aparece no
livro I de O Capital [Karl Marx], para a análise crítica da cultura mercantilizada, a qual se encontrava, já então, em franco progresso em todo o
mundo ocidental”. (DUARTE, 2002, p. 19).
No caso do cinema não é diferente. O sistema cinematográfico comercial,
que se apropria de fórmulas pré-existentes como padrões e conjuntos
14
de expectativas familiares, realimenta-se constantemente. Nessa perspectiva, é fácil entender comercialmente a permanência dos gêneros cinematográficos, por exemplo. De acordo com Bernardet (2010, p.75), “os
produtores, ao repetir as fórmulas de sucesso, consolidam os gostos do
público, e o público, ao gostar dos filmes, leva os produtores a repetir as
fórmulas.” Mas fórmulas também se gastam e caem em desuso. Surge
daí uma tensão constante: a necessidade de repetição e a necessidade
de renovação, sendo que esta renovação guarda muito mais de seus modelos anteriores que ela faz supor. Ela está na maioria das vezes ligada
aos elementos de superfície (atores, enredo...), mas mantém praticamente
intacta sua estrutura narrativa (BERNARDET, 2010, p.76).
A indústria da cultura atua, deste modo, na mais tenra idade, quando os
gostos e hábitos estão em formação e criam, consequentemente, uma
tendência à padronização dos gostos e pensamentos. O juízo crítico
mantém-se atrofiado diante da falta de estímulos e desafios para a interpretação... E molda desde cedo os comportamentos e gostos infantis que
serão canalizados, por sua vez, para o consumo deliberado e imediatista.
A indústria da cultura opera, assim, pelo princípio de prazer, onde os desejos são satisfeitos de forma imediata e ilusória.
3. Alimentação: gosto e deleite como elementos
simbólicos de distinção social
Entender os fatores que regem a questão do gosto e paladar na alimentação é questão complexa, pois o consumo de alimentos não se restringe
às necessidades biológicas, mas se submente a um intrincado sistema
simbólico que envolve acepções históricas, sociais, religiosas, geográficas, econômicas, éticas e estéticas vinculadas à cultura e ao poder. De
acordo com Pilla (2005), “desde meados do século XVII, o significado
de “gosto” deixou de ser exclusivamente ligado ao paladar, campo da
alimentação. Nos dicionários franceses do final do século XVII, seu sig-
15
nificado é bem mais extenso no sentido figurado” (Pilla, 2005, p. 62). De
fato, em sem Dicionário Filosófico, de 1764, Voltaire afirma que:
“O gosto, esse sentido, esse dom de distinguir nossos alimentos,
produziu em todas as línguas conhecidas a metáfora que com
o termo gosto expressa o sentimento das belezas e dos defeitos
em todas as artes: é um discernimento pronto, como o da língua
e do palato, e que como ele antecede a reflexão; como ele, é
sensível e voluptuoso com relação ao bom; como ele, rejeita o
mau com revolta”. (FLANDRIN, apud CHARTIER p.295)
A questão do “bom gosto” também parece ocorrer como distinção étnica:
no prefácio do Cuisinier royal et bourgeois (1691), Massialot defende que:
“só na Europa reinam a limpeza, o bom gosto e a destreza no tempero das
viandas” (Idem, p.293). Ainda no século XVII, escreve o padre Bouhours:
“o bom gosto é um sentimento natural que se deve à alma: é uma espécie
de instinto da razão correta”. (Idem, p.296). Em muitos de seus textos,
em especial seu Dicionário Filosófico, Voltaire desenvolve uma série de
analogias entre o bom gosto na alimentação e o bom gosto artístico e
literário: “como o mau gosto, no [plano] físico, consiste em apreciar tão
somente temperos demasiado picantes e rebuscados, assim o mau gosto
nas artes consiste em comprazer-se apenas com os ornamentos estudados e não sentir a bela natureza (ibidem)”.
Pilla (2005) ainda sustenta que, tal como na literatura, os livros de culinária do século XVII atacavam a zombavam a burguesia da época, denunciando as práticas e os gostos dos burgueses e das classes inferiores. Neste sentido, o “bom gosto” foi tido, também, como um símbolo de
distinção social. A autora ainda destaca que “a rivalidade de classes no
interior das elites parece contribuir para a elaboração da noção de gosto
e ideologia do progresso das artes” (Pilla, 2005, p. 62). De fato, no século
XVII as antigas famílias aristocráticas sentiam-se ameaçadas pela ascensão social da burguesia:
16
“Sabemos das lutas que elas travaram no plano político para
conservar um pouco de seu poder: seu programa de reação
nobiliária, enunciado em meados do século XVII, concretizouse em grande parte no XVIII. Todavia, essa rivalidade com os
burgueses enriquecidos ocorria também no plano mais simbólico
do fausto. (...) Desde alguns séculos os reis editavam leis suntuárias
para combater a insolência dos burgueses enriquecidos. De nada
serviam. Não impediram esses burgueses de vestir-se como grandes
fidalgos, comprar cargos e títulos de nobreza, terras, castelos,
construir mansões luxuosas e realizar faustosos festins. Em tais
circunstâncias, o bom gosto não seria a arma forjada pela
aristocracia para conservar um pouco de sua preeminência
simbólica? (...) Na literatura do século XVII há constantes ataques
aos burgueses: fosse para zombar de seu modo de ser específico e
natural, como Furerière em Le romant comique [O romance cômico],
ou de seus esforços para imitar a aristocracia, como Molière em O
burguês fidalgo ou As preciosas ridículas, só se falava deles para rir
a suas custas.” [grifo nosso] (FLANDRIN, apud CHARTIER p.297)
Muito embora a questão do gosto tenha sido forjada como elemento simbólico de distinção social, nada evidencia que o gosto esteja relacionado com a riqueza, ou que pudesse ser hereditário e pertencer apenas a
pessoas bem nascidas. Como afirma Pilla (2005), “O caráter de elite e
não sua origem, aristocrática ou burguesa, vai abrir precedente para a
conservação da expressão “bom gosto” para as sociedades democráticas”
(Pilla, 2005, p. 63). Certamente, isto tem alguma relação com o fato de
que:
“Os grandes senhores, que a partir do século XVII definitivamente
perderam a maioria de seus antigos poderes políticos e militares,
passam a ser, sobretudo grandes consumidores; e também
está ligado ao fato de que o campo do consumo e do luxo é
aquele em que as diversas classes componentes das elites
sociais nos séculos XVII e XVIII podem comunicar-se com maior
facilidade”.[grifo nosso]. (FLANDRIN, apud CHARTIER p.297)
17
Destarte, o “bom gosto” torna-se uma importante virtude social, de robusta significação simbólica, a ser reconhecida pelos outros e pelo próprio indivíduo que a possui, reafirmando sua identidade social. Pode-se
afirmar que, de forma análoga, gêneros musicais considerados de “sucesso” são capazes de distinguir simbolicamente seu consumidor, reafirmando sua identidade social. Partindo desta premissa, o mesmo pode
ser aplicado aos amantes da música dita “clássica”, que se se alinham ao
possível “status” (valor extrínseco), que esta possa lhe oferecer.
A sociedade assume, então, nessa perspectiva, papel fundamental e contínuo na formação do “bom gosto”. Em outras palavras, a cozinha, como
dizia Lévi-Strauss, está entre a natureza e a cultura. O homem, ao cozinhar os alimentos, transforma a natureza em cultura e, assim, opera
uma transformação a si mesmo de homem biológico a homem social. Os
alimentos cozidos, por sua vez, apodrecem e retornam à natureza – obtemos, assim, a ideia de “triângulo culinário” (cru/cozido/podre) de que
nos fala Lévi-Strauss e que está presente de formas particulares em todas
as sociedades.
Hoje se entende que aprendemos a apreciar um alimento socialmente da
mesma forma como aprendemos a ver, sentir, ouvir, tocar e saborear, ou
seja, dentro dos hábitos de uma cultura. Logo, podemos constatar que
a formação dos gostos de modo geral é realizada dentro de um recorte
cultural, ou seja, dentro de um sistema de representações compartilhado
social e culturalmente. Desse modo, todo o ritual intrínseco à alimentação influencia na formação do paladar e, de modo geral, pelo gosto por
determinada culinária e pela predileção de padrões gustativos que pertençam a uma gramática e uma sintaxe culinária específica. Essa consideração é importante por vários aspectos, dentre eles: 1) nos autoriza a
afirmar que é falsa a pressuposição de que pudesse existir o sabor em si,
centrado apenas no conjunto de qualidades gustativas de um alimento,
ou seja, nas características detectadas pelas papilas gustativas e, portanto, destituído de fatores extrínsecos. E 2) de que o gosto alimentar é cons-
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tantemente construído e “refinado” ao longo da vida de um indivíduo e
de uma cultura.
A primeira afirmação possibilita uma correlação direta com a ideia de
uma música absoluta. Ou seja, uma música destituída de sentido e que
pudesse ser tomada como ícone puro ou som em si. Tal possibilidade,
como proposta por Pierre Schaeffer com a música concreta se mostrou
inviável, como tem demonstrado a nova geração de teóricos da música
eletroacústica, dentre eles Denis Smalley e Michel Chion ou mesmo teóricos da nova musicologia. Em outras palavras, podemos afirmar que
não existe percepção imaculada. Toda interpretação ou percepção é contextual, intertextual, intratextual e politextual.
A segunda afirmação aponta para o constante processo de construção
do gosto a nível social e individual e abre caminho para que possamos
pensar em uma educação voltada para o aperfeiçoamento dos sentidos
ou, em outras palavras, para o remodelamento dos gostos a favor de um
“refinamento” gustativo, estético e funcional2, levando em conta outros
critérios que não os fornecidos pela indústria de Fast e Junk food3.
De início, o paladar infantil distingue comumente quatro sabores básicos: doce, salgado, amargo e azedo. É sabido também que na primeira
infância o sabor doce é o preferido, seguido do salgado. O desenvolvimento dos receptores responsáveis por detectar esses sabores tende a
se desenvolver mais rapidamente, provavelmente para favorecer o interesse por alimentos ricos em energia, e a predileção por esses sabores,
geralmente, tendem a ser mantidos na maioria dos indivíduos. O gosto
pelos demais sabores devem ser mais estimulados e são incorporados
2
Alimentação funcional: alimentação cujo objetivo principal está nos benefícios causados ao
corpo.
3
Junk food (em uma tradução literal: comida lixo, porcaria) é um tipo de alimento industrializado com pouco valor nutritivo ou qualidades nutritivas prejudiciais, cujas características que
lhe tornam baratos, com longo prazo de validade, propício ao consumo em diferentes temperaturas e condições, além do fato de não requerer preparo, o torna altamente atrativo para a
indústria de alimentos.
19
gradualmente na dieta das crianças e, de acordo com influências diversas (sociais, culturais, ambientais, econômicas etc.) e educação alimentar,
os sujeitos podem vir a desenvolver uma ampla capacidade gustativa e,
possivelmente, podemos considerar que houve um “refinamento” do paladar e do gosto, ou seja, houve uma melhora na capacidade de se apreciar qualitativamente diferentes alimentos e distinguir diversos sabores.
O interesse por hábitos alimentares permeia toda a obra de Lévi-Strauss
e divide sua importância com a vastidão de assuntos estudados pelo antropólogo francês. Mais recentemente, alguns sociólogos, principalmente de língua inglesa e francesa, têm se interessado especificamente pelo
estudo da alimentação enquanto ritual e, portanto, como elemento chave para a compreensão de perspectivas e costumes de uma sociedade.
Dentre eles, o antropólogo e sociólogo francês Claude Fischler merece
destaque ao relacionar em seus trabalhos os hábitos alimentares e componentes nutricionais como fatores de saúde e socialização. Segundo
Fischler (2001, p.81), os alimentos “são utilizados em conformidade às representações sociais e usos compartilhados pelos membros de uma classe, grupo ou cultura; a natureza da ocasião, a qualidade e o número de
convidados, o tipo de ritual em torno do consumo, constituem elementos
ao mesmo tempo necessários, significantes e significativos”.
A infantilização cultural e a degeneração dos gostos
O uso de padrões e expectativas altamente familiares, a previsibilidade
da estrutura formal, a preferência por fórmulas simples, a homogeneidade de sabores e fórmulas poderiam causar uma infantilização e degeneração dos gostos. O termo infantilização assume aqui uma conotação
não exatamente idêntica à de criança, mas próxima à ideia de imaturidade. Utilizamos principalmente o termo para nos referir a uma imaturidade de gostos, ou seja, a ausência de um refinamento dos aparelhos
receptivos que apenas é satisfatoriamente adquirido através de contato,
aprendizado constante e experiências estéticas e artísticas com grandes
20
obras, boa culinária e com bons mestres. Etimologicamente, o termo infância provém do latim infans, infantis, portanto, aquele que não fala.
No nosso uso, essa acepção pode ser entendida como a incapacidade de
falar, pensar por seus próprios meios. Milton José de Almeida utiliza o
termo infância cultural como metáfora para explicar
“um conjunto de estados sociais e psicológicos, tais como: interação
com produtos da indústria cultural de maneira singela e repetitiva.
A necessidade de sempre ver/ouvir o mesmo; absorção imediata
e ingênua das novidades culturais, principalmente as de grande
divulgação, e o consequente abandono quando a estimulação
mercadológica diminui e a moda passa; rejeição a coisas da
cultura que demandem esforço de entendimento, sensibilidade ou
atenção, como filmes ou textos considerados difíceis ou complexos;
insegurança e medo ante objetos da cultura que não se apresentem
já legitimados e autorizados pelos produtores de opinião ou pelo
mercado. Dificuldades em ter uma visão pessoal, levando à busca
de juízos de autoridade ou a defender-se em conceitos opacos como:
elitista, popular, moderno, pós-moderno, conservador, progressista,
avançado, de vanguarda, atual etc., que produzem no usuário certa
sensação de segurança intelectual.” (ALMEIDA, 2004, p. 27 - 28)
Segundo o autor,
“As pessoas urbanas com baixa densidade cultural procuram sempre
estar em meio a muita gente, ao barulho de rádios e música (que
chama de “som”), a uma oralidade excessiva e vazia de sentido
interior, utilizando os sons para simplesmente manter-se em
contato fora de si próprios. Observem-se os bares, restaurantes,
discotecas, periferias das grandes cidades, casas com aparelhos
de som ou TV ligados o tempo todo.” (ALMEIDA, 2004, p. 27 - 28)
A metáfora com a infantilidade também se dá em outros sentidos: ao se
basear no princípio de prazer para criar suas estratégias de consumo, as
indústrias da sociedade de consumo se apropriam de uma característica
tipicamente infantil, a incapacidade de adiar o prazer submetendo-se submeter às exigências do mundo real e objetivando recompensas futuras.
21
Segundo Freitas,
“O modelo básico da receptividade da indústria cultural é o do vídeogame, que dá aos adolescentes e às crianças o prazer de percepções
esquematizadas previamente pelo autor do jogo. Essa atitude é muito
semelhante à requerida no trabalho, que normalmente é monótono,
repetitivo, sem criatividade, impessoal.” (FREITAS, 2003, p. 20)
Conclusão
A crítica à indústria da cultura realizada, ainda na primeira metade do
século XX, pelos autores de Dialética do iluminismo indica o quão necessário se faz ainda hoje o debate em torno das questões ali levantadas.
Certamente é viável a atualização da crítica para a era da informática a
fim de abarcar as transformações sofridas pelos sistemas industriais com
o advento da Internet. Por uma perspectiva positiva, as novas possibilidades de democratização dos bens culturais e artísticos trazidas por ela
abriram caminhos para o florescimento de outras formas de consumo e
relação com os bens culturais, inclusive a possibilidade de democratização e libertação dos ditames da indústria. Vê-se, no entanto, que logo
surgem outras formas de manipulação e controle que visam direcionar
os gostos e interesses e, assim, mais uma vez, novas empresas cumprem
as funções que outrora os grandes meios de comunicação em massa, a
saber, o rádio, o cinema e a TV, assumiam no século XX. Exemplos podem
ser encontrados nas empresas especializadas em criar trafego e visualizações para sites, blogs, vídeos e outros conteúdos na Internet. O que a crítica realizada por Adorno e Horkheimer aos veículos de comunicação de massa tem em comum com as críticas proferidas às indústrias de alimentos, mais especificamente às indústrias de fast food e
de junk food? Como pudemos constatar, as indústrias cultural e de alimentos, notadamente de fast e junk food, atuam dentro de uma lógica de
mercado e influenciam fortemente na formação do gosto de seus consu-
22
midores através de estratégias publicitárias, psicológicas, de associação4,
familiaridade e novidade ilusória cujos modus operandi são semelhantes.
Ambas baseiam-se substancialmente nos mecanismos de repetição e
novidade falseada que visam criar dependência e, consequentemente,
manter os níveis de consumo. Os
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alimentos pré-cozidos ou semi-assados se assemelham aos produtos “pré-digeridos da indústria cultural. As
canções melodiosas e as harmonias consonantes no remetem aos sabores adocicados e gordurosos. Do mesmo modo, a previsibilidade de padrões harmônicos e familiaridade das estruturas formais nos remetem
ao conjunto de ingredientes típicos, e bastante familiares ao paladar, que
são a base da cozinha comercial. O doce, o gorduroso e o salgado formam as três funções principais de nossas canções tonais. A limitação na
gramática culinária, do mesmo modo se assemelha à limitada variedade
formal das músicas que permeiam a indústria da cultura.
Ao valer-se da repetição excessiva, de sabores e fórmulas familiares, de
padrões altamente difundidos, enunciados facilmente assimiláveis e ao
remover a possibilidade da frustração no conjunto de expectativas, as
indústrias da cultura e de alimentos liberam o indivíduo do mal estar
gerado pelo livre pensamento, da agonia causada pela liberdade de escolha e pelo medo do que lhe é estranho. Logo, libera-os do dever e da
necessidade de tomar decisões e de enfrentar seus medos, saindo de sua
zona de conforto. Consequentemente, libera os indivíduos da responsabilidade de tornarem-se adultos e maduros.
Bibliografia
4
A capacidade de associar alimentos a coisas, lugares e ideias, o que envolve a crença na agregação
de valores sociais e morais aos indivíduos que os consomem, é chamado por Claude Fischler (2001)
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24
Os 10 anos do Musimid na
pesquisa musical: depoimento
de Teresinha Prada
Teresinha Prada
25
Saraus, récitas líricas,
bailes e concertos ituanos:
as sinhazinhas, e seus dons
musicais, embebidos em
gengibirra e quitutes
Marcos Júlio Sergl
Professor da área de Comunicação da Faculdade Paulus de
Tecnologia e Comunicação – FAPCOM e na área de Produção
Musical da Universidade Anhembi Morumbi
Resumo
As reuniões familiares com intuito artístico ganham força no Brasil no século XIX, sobretudo,
para apresentar os dotes musicais das moças. As práticas musicais socialmente aceitáveis
realizadas pelas sinhazinhas estão ligadas ao espaço doméstico, por meio dos saraus,
concertos, récitas líricas e bailes. O preparo para esses eventos muda a rotina da localidade.
A decoração esmerada é composta por arcos de folhas e festões sobre as portas e janelas,
grandes vasos com buquês de flores e arbustos, no exterior e no interior dos edifícios. Os
doces e licores especiais são parte essencial dessas festas. E a localidade conta nessa época
com Maria Custódia, que ajudada por duas escravas, arma mesas de doces, que parecem
obra técnica de engenharia. A ópera italiana tem aceitação plena e constitui a base do
repertório musical. As companhias italianas e nacionais, que apresentam suas mais recentes
criações, ditam a moda e o comportamento da sociedade local. E os jornais dedicam páginas
inteiras à descrição dessas festas, às quais todos comparecem. A partir da divulgação
de eventos por parte da imprensa ituana, destacamos uma grande quantidade de bailes,
saraus, peças e concertos na localidade. Festas escolares de término do período letivo, atos
governamentais, solenidades religiosas e cívicas, aniversários, tudo é motivo para festejo.
Assim, a monotonia da cidade provinciana é quebrada. Nesta pesquisa iremos analisar esses
eventos de lazer cultural e social que destacam Itu no cenário da Província de São Paulo.
26
Introdução
“A história de uma cidade pode ser um espelho da
história de uma província, estado, região, nação. Se não
um espelho fiel, ao menos um reflexo de muitos traços,
que a história da nação esconde.” Octavio Ianni
A partir do momento em que a sociedade ituana se estrutura e se firma economicamente, as artes começam a ser produzidas e reproduzidas.
Toda a prática musical da localidade é influenciada pela música clássica
vienense, pela ópera italiana e pela música de salão. Observamos isso a
partir da análise das festas civis e religiosas ituanas na segunda metade
do século XIX, em particular os bailes1 e saraus2.
Essas influências são transmitidas pelos compositores europeus, que se
radicam no Brasil, como os portugueses: Marcos Portugal, André da Silva Gomes, Rafael Coelho Machado e Pedro Gomes Cardim e o alemão
Sigismund Neukomm, e pelos concertistas que vêm para longas turnês
e aqui se estabelecem, como Louis Moreau Gottschalk.
Atentamos para o detalhe de que ocorre ainda um processo de fusão de
elementos mais antigos e mais novos da terra, que vão sendo assimilados pelo povo, seja na música popular, erudita, sacra ou folclórica. Nos
compositores ituanos percebemos esses elementos na maneira de compor os recitativos em duetos de terças e sextas paralelas e na forma de
executar essa música.
Por outro lado, as companhias italianas que percorreram a Província de
São Paulo no século XIX ditaram a moda, as formas de representação e
de comportamento social. A aceitação plena da ópera é confirmada pela
grande afluência de público nos espetáculos dessas companhias, que
1
Reunião festiva, cujo fim é a dança. (Houaiss, 2001, p. 380)
2
Evento noturno realizado geralmente em casa particular onde as pessoas se encontram para
se expressarem artísticamente. Um sarau pode envolver dança, poesia, leitura de livros, música, pintura e teatro (Houaiss, 2001, p. 2520)
27
para cá traziam as mais recentes criações, tornando-a a forma musical
mais popular da época.
Os saraus, concertos e récitas líricas
“Os salões inundados de um oceano de luz que em torrentes emitiam
um soberbo lustre de cristal e as serpentinas colocadas em todos os
seus ângulos, e cheios de senhoras que vestiam com graça e apurado
gosto, ofereciam um soberbo espetáculo.” (Imprensa Ituana, 22.11.1883)
As reuniões familiares com intuito artístico ganham força no Brasil Imperial, sobretudo, para apresentar os dotes musicais das moças. As práticas musicais realizadas por mulheres estavam bastante divididas, entre
aquelas socialmente aceitáveis e ligadas ao espaço doméstico e aquelas
não tão aceitáveis e ligadas ao espaço cênicoprofissional. As oportunidades que possuíam as mulheres de realizar uma aproximação aos círculos
de música ou às academias de arte estavam bastante dificultadas pelo
fato de que as atividades artísticas eram, nesse momento, consideradas
somente aos homens.
O instrumento preferido para a educação musical das moças no final
do século XIX era o piano. Símbolo de status social, refinamento e boa
educação, o piano era o centro dos saraus domésticos, onde elas podiam
mostrar seus dotes cantando, tocando piano e recitando poesias, preferencialmente em francês.
“Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhado abaixo.
Em um sarau todo mundo tem o que fazer. Todos murmuram e não
há quem deixe de ser murmurado; as moças são no sarau como as
estrelas no céu; estão no seu elemento; aqui uma, cantando suave
cavatina3, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais
surge, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do
jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida do écarté, mesmo
3
Pequena canção para solista, com seção única, sem repetição. (Houaiss, 2011, p. 661)
28
na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando
um sustenido”. (Morais, Maneiras de Ler no Brasil no Século XIX)
Em Minas Gerais nas últimas décadas do século XVIII, “fazia-se música
em casa, não raro integrada por pessoas da família, completadas por um
ou mais escravos, ou libertos mulatos, que sabiam tocar instrumentos.
Havia trios, quartetos, quintetos, etc. que ilustravam os saraus elegantes,
ou saíam os músicos pelas ruas, em noites enluaradas, a fazer serenatas
românticas...” (Mariz, 1983, p. 39) “Nos saraus dos ricos fazia-se muita
música, as moças estudavam piano e havia seções de música até em revistas de moda feminina” (Ibidem, p. 58)
Por outro lado, o baile era o divertimento preferido dos jovens de então.
Todos os homens se apressavam em ceder um lugar, um assento e todos
buscavam ser agradáveis uns aos outros. Todas as moças deveriam ser
chamadas de senhora, V. Sª ou V. Exª. Quanto às moças dessa época, não
poderiam confundir os cavalheiros que a convidassem para dançar. Se
acontecesse e houvesse alguma disputa entre eles, a moça deveria se
dizer cansada e não dançar mais com nenhum cavalheiro, conservando um ar sempre alegre, porém contido. Os rapazes não deveriam tirar
para dançar a mesma moça mais de uma vez no baile, ainda que fosse a
mais bonita, a mais bem vestida. Ao oferecerem a mão a uma moça, não
ofereciam a palma da mão, mas as costas, para que a mão da senhora
repousasse sobre ela. Os cavalheiros deveriam trajar-se sempre com gravata branca, colete branco, luvas brancas, meia de seda e calça comprida
e segurar a senhora pela cintura e nunca pelas pregas do vestido.
Na passagem do século XIX para o século XX, as danças da moda eram
a valsa, o galope, o cotillon, a polca, a contradança, a mazurca, o xote e
a quadrilha que, naquela época, era uma dança refinada, apropriada aos
salões aristocráticos4. O próprio Imperador D. Pedro II foi um grande
4
Foi encontrado recentemente na Biblioteca Municipal de Poços de Caldas o “Manual de Dança Methodo Facil para Aprender a Dançar sem Professor”, provavelmente do século XIX, impresso na Typografia da Livraria Magalhães, no qual estão explicadas as danças mais expres-
29
apreciador das quadrilhas, dançando todas que eram tocadas nos bailes
a que comparecia. Até a década de 1960, o baile era um dos eventos sociais mais importantes e populares de todas as idades e camadas sociais.
A primeira informação sobre a vida artística ituana de que dispomos
(O Ituano, 16.03.1873) descreve o sarau realizado no dia 9 de março de
1873 na residência do Dr. Antônio de Queiroz Teles sob a supervisão de
Elias Álvares Lobo e Tristão Mariano da Costa. Boa parte do programa
constitui-se de árias de ópera. Cantou-se a ária final de La Sonnanbula; a
cavatina do Belizario; a cavatina da ópera Robert, le Diable; a cavatina da
ópera La Favorita; o dueto Tutte le Feste al Tempio, do Rigoletto; o dueto
Qual voce!... , da ópera Il Trovatore; o dueto Ciel! che vegg’io, de Lucrezia
Borgia. E também ópera brasileira: de Elias Lobo, o dueto de A Noite de
São João. Essas peças foram acompanhadas por piano, flauta transversal, violino, violoncelo e clarinete.
Constou ainda de uma parte instrumental com piano, oficleide, sax, violino e piano, a duas, quatro e seis mãos! Também nessa parte sente-se a
predominância da música italiana para cena. Foram tocadas peças sobre
motivos de ópera, fantasia da ópera Il Guarany; a abertura da ópera Tancredo, fantasia da Norma, de Bellini.
A banda tocou várias vezes nesse sarau dividido em três partes, sendo
que “no 1º intervalo foram os convidados servidos de finíssimos licores,
no 2º o chá, e no final pastéis e diversos espíritos.”5 Observa-se pelo decorrer do artigo, que os alunos mais experientes de Elias Lobo e Tristão
Mariano apresentam-se no sarau, um grande acontecimento na pacata
cidade, pois reúne um grande contingente de músicos.
sivas desse período, suas características e como dançá-las. Ver: BISPO, Antonio Alexandre.
1971. O Papel da Dança na História da Música no Brasil do Século XIX. WWW.akademiebrasileuropa.org
5
O espírito citado no texto é uma espécie de cachaça, que podia ser obtida por meio da destilação caseira da cana ou do vinho, muito comum na época. Era também o nome para bebidas
alcoólicas em geral.
30
A decoração nesses saraus é composta por arcos de folhas e festões sobre as portas e janelas, grandes vasos com buquês de flores e arbustos,
no exterior e no interior dos edifícios.
Os doces e licores especiais são parte essencial dessas festas. E a localidade conta nessa época com Maria Custódia, que ajudada por duas escravas, arma mesas de doces, que parecem obra técnica de engenharia.
A tradição de quituteiras e doceiras permanece até hoje na cidade.
A partir da divulgação de eventos por parte da imprensa ituana, destacamos uma grande quantidade de bailes, saraus, peças e concertos na localidade. Festas escolares de término do período letivo, atos governamentais, solenidades religiosas e cívicas, aniversários, tudo é motivo para
festejo. Assim, a monotonia da cidade provinciana é quebrada.
Apresenta-se no Teatro São Domingos, no dia 27 de julho de 1873, a Companhia Dramática, dirigida por Nuno de Melo Viana, com récita em favor
da atriz Francisca Marques, que apresenta o drama A Conversão de um
Cínico; a comédia A Dama das Camélias, e o dueto Quimquim e Sinhá
Rosa. Essa companhia deve ter agradado, pois em abril de 1874 está de
volta, e apresenta O Médico das Crianças e A Filha do Lavrador.
Itu conta com uma sociedade de atores intitulada Amor ao Palco, que,
ao longo de sua existência, se apresenta regularmente no teatro ituano.
No dia 22 de agosto de 1874, representa o drama em três atos Procela e
Bonança, e a comédias Brinquem com Mulheres e Um Quarto com duas
Camas. Em finais de outubro desse mesmo ano, a companhia apresenta
o drama Os Mártires do Coração, de autoria de Carlos Ferreira; e, uma
comédia em um ato, com música composta por Tristão Mariano da Costa.
Em fevereiro de 1876, está na cidade a Companhia Lírica Italiana, sob a
direção de Jorge Mirandola, após se apresentar em São Paulo e Campinas. Na récita do dia 15, é encenada a ópera Ernani, de Verdi; no dia 18,
Lucia de Lammermoor, de Donizetti; no dia 20, Il Barbieri di Siviglia, de
Rossini: e no dia 23, La Traviata, de Verdi. Pela diversidade e dificulda31
des de toda ordem do programa, cremos que eram encenados apenas
os trechos mais conhecidos das óperas. O cenário constava de painéis
pintados. Também deixa-nos dúvida que tipo de encenação seria essa;
provavelmente muito simplória, para poder se adaptar aos pequenos teatros da Província.
A companhia conta com oito artistas principais, e entre eles a festejada
cantora Augusta Cortezi, os Srs. Mirandola, Signoretti, Frizero, e o barítono Spalazzi, além do coro. A orquestra é da localidade; provavelmente de
Tristão Mariano da Costa. Do artigo de 13 de fevereiro de 1876, publicado
no jornal Imprensa Ituana, selecionamos o trecho a seguir, que mostra
com clareza a preferência pela ópera italiana, “acreditamos não haver outra igual na Província... E não é só devida a sua superioridade, ao gênero
italiano, que é incomparavelmente superior ao francês, e bufo, é que são
melhores artistas...”; e, ainda, “quatorze anos fui assíduo freqüentador do
teatro lírico, no tempo em que na Corte havia teatro italiano, no tempo
em que o alcazar e o mau gosto ainda não tinham dominado, e feito
domiciliar-se essa intitulada música, essa corriqueira e leviana música
francesa, que tem pervertido o gosto.”
As críticas elogiosas vão todas para Augusta Cortezi, cantora experiente,
com direito a vários buquês de flores e até a versos publicados por admiradores. As moças ficam hipnotizadas com as vestimentas e o modo
de conduta dela, e tentam copiar seu jeito de ser; os homens ficam perdidamente apaixonados. Diz o articulista, no dia 20 de fevereiro de 1876:
“sua voz maviosa, sentida, de uma flexibilidade realmente rara, e educada
com esmero notável, dão-lhe direito a uma distinção incontestável entre
as cantoras mais estimadas...”
Novas críticas à ópera francesa aparecem no artigo escrito no dia 27 de
fevereiro, em meio aos elogios à ópera italiana:
“La Traviata é destas que fazem o verdadeiro efeito da boa música, que
elevanos a um mundo superior, em que nos engolfamos em êxtases
32
celestes. Não é como estas corriqueiras francesas, que convidam a
dançar, brincar, e não dão idéias, senão estas pequeninas de uma
vida trivial e baixa. É esta ópera cheia de saudades e lágrimas, é
o transbordamento de um coração que muito sofre porque muito
amou... Mozart, Rossini, Bellini, Beethoven, mostram que a música
exprime a cólera, o ciúme, o galanteio, a grandeza heróica, com a
expressão tão precisa, que as faz reconhecer imediatamente... Os
músicos italianos e alemães fazem proféticas revelações, expandem
sua alma em cantos belíssimos. Bellini, sobre todos, é o intérprete do
século... Offenbach e os franceses só pensam no prazer, na dança, e
bebedeira e só querem disfarçar com loucuras as dores da alma...”6
Fica acertada a vinda da mesma companhia para cantar o Stabat Mater,
de Rossini na Semana Santa desse mesmo ano de 1876. Diz o articulista:
“Esta música é uma verdadeira ópera, cantada na Igreja.”
Apresenta-se em Itu ainda nesse mesmo ano de 1876, a Companhia de
Zarzuela, sob a direção de André Ortiz. No dia 24 de dezembro de 1876,
é levada à cena O Visconde e A Cauda do Diabo. Merece destaque a
atuação da cantora Purificacion Ávila e dos artistas Aragon e Bonaplata.
No dia 26 de dezembro, encena-se O Cavalheiro Particular e A Sensitiva.
É por essa última representação, acompanhada pela orquestra dos alunos do Externato Tristão Mariano, que Feliciano Leite Pacheco Júnior
faz duras críticas ao acompanhamento instrumental, nos seguintes termos: “... por um supremo esforço mostraram o seu belo desempenho e a
beleza da música; dizemos por um supremo esforço porque a orquestra
não os pode ajudar, decaindo muito...”, gerando um mal estar, minimizado pela resposta, publicada no dia 14 de janeiro de 1877, na Imprensa
Ituana, do diretor da companhia. Fica nítido que o relacionamento entre
os dois mestres de capela não é dos melhores.
No mês de março de 1877, apresenta-se a Companhia Riosa, composta
por três membros da família. São apresentadas pequenas comédias can6
O periódico Imprensa Ituana publicou artigos sobre essa companhia nos dias 13.02.1876;
20.02.1876 e 27.02.1876.
33
tadas, árias, duetos e habaneras, sempre acompanhadas pela orquestra
de Tristão Mariano.
No mês de junho do mesmo ano, é a vez da Companhia Lírica do Sr. Barcena, que traz as artistas Pezoli, Ávila e Canepa; os Srs. Aragon, Barcena
e Pons, além do coral. No repertório consta: Norma, La Traviata e Ernani.
Nesse elenco estão dois cantores da Companhia de Zarzuelas, Purificacion Ávila e o tenor Aragon, deixandonos claro que essas companhias
eram montadas, reunindo-se os cantores disponíveis para realizar as turnês, e que os mesmos cantavam um variado repertório. Os ensaios deveriam ser realizados nas próprias cidades, com um resultado duvidoso
para os nossos padrões atuais.
Também a orquestra, composta por alunos, não realizava tantos ensaios
para que o repertório fosse assimilado por músicos ainda inexperientes.
Além disso, a orquestra tocava nas cerimônias religiosas, que eram constantes.
Na representação ópera da La Traviata, a imprensa local destaca a atuação da cantora E. Pezoli, “que veio justificar a merecida fama de que goza.
Realmente esta artista, além da excelente voz de soprano, terna e melodiosa que possui, sabe haver-se com notável distinção nas situações mais
trabalhosas e difíceis. A sua atitude, olhar, o gesto e a naturalidade de posições, demonstram o estudo pertinaz, e um robusto talento artístico.”7
Também a orquestra recebe elogios por essas representações. Ainda no
mês de junho, a cidade recebe a Companhia Dramática Fênix Paulista,
sob a direção do ator José Alves Louro.
As últimas décadas do século XIX
No mês de dezembro de 1878, a companhia do ator Dias Braga apresenta
diversas peças no Teatro São Domingos. No dia 9 de agosto de 1879, tem
7
Imprensa Ituana, 27.05.1877. Outros artigos sobre essa companhia foram publicados nos dias
06.05.1877 e 20.05.1877.
34
vez a companhia de Guilherme da Silveira, com o drama A Judia, do escritor português Pinheiro Chagas. Destaca-se a atuação de Ismênia dos
Santos, artista bastante conhecida no Rio de Janeiro.
A ópera está presente nos mais diversos espetáculos, como na soirée do
professor Kaldan, apresentada no Teatro São Domingos, no dia 30 de
agosto de 1879. Essa palestra sobre a vida dos anfíbios do fundo do mar
termina com trechos de ópera lírica, cantados pela Sra. Sertã. No dia 20
de setembro do mesmo ano, a Companhia Dramática, dirigida por Luís
Braga Júnior apresenta a peça sacra Milagre de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
A partir de meados da década de 1870, começam a se tornar mais frequentes os concertos de instrumentistas. No dia 24 de dezembro de 1878,
apresenta-se em Itu a violinista Júlia Beltran, acompanhada pelo maestro Canepa. O repertório apresentado demonstra o gosto da época para o
virtuosismo. A crítica escrita na Imprensa Ituana, no dia 27 de dezembro,
caminha sempre para comentários em torno dos trinados, das escalas e
das apogiaturas. Não podemos considerar uma seleção de clássicos do
instrumento, tendo em vista que não está presente nenhuma das obras
mais sólidas do repertório violinístico. Nesse dia, Julia Beltran tocou,
acompanhada pelo maestro Canepa, no violoncelo e pelo Sr. Fhlor, no
piano, Fantasia, de Beriot; O Rouxinol sobre a Árvore, fantasia, de Hanser;
La Figlia del Regimento, fantasia, de Alad; Canto de Amor, de Beethoven.
Artistas da Companhia Dramática de Luís Braga Júnior tomam parte na
segunda récita de Júlia Beltran, juntamente com a orquestra de Tristão
Mariano, e a apresentação torna-se extremamente diversificada. O programa inicia-se com uma Sinfonia, executada pela orquestra; segue com
a comédia em um ato Uma Esperança, dirigida pelo maestro Canepa. A
segunda parte do programa é iniciada com outra Sinfonia, pela orquestra, seguida do Concerto para violino e piano de Beriot, de um potpourri
sobre motivos da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes; do Trio de Oelschlegel, para violino, violoncelo e piano; e, do Concerto para violino e piano,
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de Alard. Na terceira parte, ouve-se uma nova Sinfonia, pela orquestra,
seguida da vaudeville, Uma Criada Impagável, sob a direção do maestro
Canepa. As sinfonias apresentadas no programa são aberturas à italiana.
O ano de 1881 é repleto de novas companhias dramáticas atuando em Itu.
No dia 9 de abril apresenta-se a Companhia dos Srs. Castro e Violante,
com o drama Filha Única. Em maio, é a vez da companhia Borel. No mês
de junho, a companhia ituana de atores Amor ao Palco apresenta os dramas A Morgadinha de Val-Flor, de Pinheiro Chagas e A Virgem do Mosteiro, em benefício da reforma do Teatro São Domingos. Por essa época,
ele deveria estar com sérios problemas, pois, a partir de 1882, notamos
que os concertos passam a ser realizados em outros locais. Também um
artigo de 13 de agosto de 1882, publicado na Imprensa Ituana, salienta a
importância da reforma da sala e de a cidade ter uma companhia-escola
de atores. Nesse mesmo dia e jornal, há uma chamada a respeito do pianista Henrique Braga.
Esse músico vem a Itu para se apresentar na casa de Teolinda de Souza.
Com um currículo já respeitável, tendo estudado em Paris, apresentando-se na Sala Pleyel daquela cidade. Em Itu é acompanhado por diversos
artistas locais, entre eles, Tristão Mariano, José Mariano, Abrão de Barros, Felipe Bauer Júnior e Maria Augusta, filha de Tristão. Novamente no
programa, compositores italianos, destacando-se a peça I Juramenti, de
Mercadante.
No dia 24 de junho de 1883, apresenta-se no Teatro São Domingos, a
Grande Companhia Dramática, dirigida por Ribeiro Guimarães, com o
drama em um prólogo e seis atos Os Pobres de Paris, de F. Barriere.
O Barão de Parnaíba abre seu solar para um grande baile no dia 13 de
novembro de 1883, conforme artigo publicado na Imprensa Ituana no dia
22 de novembro.
“Os salões inundados de um oceano de luz que em torrentes emitiam
um soberbo lustre de cristal e as serpentinas colocadas em todos os
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seus ângulos, e cheios de senhoras que vestiam com graça e apurado
gosto, ofereciam um soberbo espetáculo.
Às nove horas a orquestra dá o sinal. Os pares se arrojam ao salão
principal e dançam a primeira quadrilha. As harmonias desta como
que seduzindo os espíritos, neles produziram um entusiasmo delirante
e dentro um pouco as danças sucediam-se com curtos intervalos.
Em um destes, fomos despertados por umas notas habilmente tiradas
ao piano por um distinto cavalheiro. Em seguida uma voz suave e
melodiosa se fez ouvir e cantou a Cavatina da Semiramis.
Surpresa encantadora, e que produziu impressão tão agradável no
auditório que a Exma. D. Augusta não pode furtar-se à satisfação
de um pedido que lhe foi dirigido e fez-se de novo ouvir, entoando
magistralmente o Brinde da Galathée.
Foram servidos às onze horas um chá e às duas horas uma
lauta ceia... A festa continuou depois e dançou-se ainda
muitas polcas, quadrilhas, etc. até as quatro da manhã...”
No mês de maio de 1884, os cidadãos ituanos são brindados com a Companhia Lírica Italiana, de Vicenzo Tartini. O programa apresentado no
dia 10 constou do quarto ato de Il Trovatore, da ária do Barbeiro de Sevilha,
intitulada A Calúnia, da ária da Favorita, do dueto da ópera I Juramenti,
e do dueto de Il Puritani. O programa apresentado no dia 11 compôs-se
do segundo ato da ópera La Traviata, do dueto da Semiramide, do segundo ato da ópera I due Foscari, da canção Mia Piccirella da ópera Salvator
Rosa e da Balada do Il Guarany.
Pela crítica da Imprensa Ituana no dia 22 de maio de 1884, deduz-se que
esses espetáculos eram, na verdade, cortinas líricas. Em nenhum momento se toca no aspecto da representação; somente na qualidade vocal
dos cantores.
“Ao público agradou o desempenho dado pelos artistas, principalmente
pelo Sr. S. Soffietti, que é um excelente barítono e cantou muito bem, e
pela Sra. Zani.
O Sr. Dal Negro é um artista antigo, mas apesar da idade ainda tem
uma boa voz e foi bem no Barbeiro de Sevilha. A Sra. Ida Giglioni que
cantou no 2o ato da La Traviata com o Sr. Soffietti não se deu mal, mas
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a sua voz é fraca e ficou suplantada pela deste.
A Sra. Leone é que tem uma voz forte, mas faltamlhe outros requisitos para ser boa cantora...”
Ainda a inclusão de solos para violoncelo e oboé, executados por músicos da própria Companhia, os professores Cousigli e Boyer, levam-nos a
pensar mais em um sarau ou cortina lírica.
No segundo semestre desse mesmo ano, apresentam-se no Teatro São
Domingos dois grupos teatrais ituanos. No dia 21 de setembro, realiza-se
um espetáculo em benefício de Maria Lima, sendo representado o drama
em quatro atos, O Órfão e o Mendigo, e a comédia em um ato, A Ordem
é Ressonar; e no dia 26 de outubro, o Grêmio Dramático Ituano encena
o drama em um prólogo e cinco atos, Estátua de Carne, com o objetivo
de guarnecer os camarotes do teatro com cadeiras. Até o momento, os
assentos do mesmo eram tamboretes tecidos de palhinha, com certeza
muito incômodos, fato pelo qual as famílias mandavam levar cadeiras
próprias para os espetáculos.
No dia 30 de março de 1885, a Companhia Braga Júnior apresenta a opereta Os Sinos de Corneville; e no dia 12 de maio, amadores ituanos encenam o drama Diana, com destaque para Maria Lima, no papel principal,
e a comédia Guerra dos Nunes.
No dia 31 de maio do mesmo ano de 1885, o Dr. José Manoel de Arruda
Alvim abre as portas de seu solar para um concerto vocal e instrumental.
Participam do evento, Giovanni Scolari, artista da Companhia Lírica Italiana, baixo profundo; Francisco Santini, regente de orquestra, professor
de piano e canto; Elisgena Santini e Julia Santini.
No programa constam canções e trechos de ópera, entre eles a ária para
baixo da ópera Salvator Rosa, de Carlos Gomes; Non è Ver, romance de
Tito Mattei; fantasia sobre motivos da ópera La Sonnanbula, de Bellini;
dueto da ópera Marino Faliero, de Donizetti; Marinesca, de Tito Mattei;
Quero Sim, valsa de concerto, composta por Francisco Santini; A Canção
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do Aventureiro, da ópera Il Guarany, de Carlos Gomes; A Violeta, composição de Francisco Santini, sobre versos de Casemiro de Abreu; e, o
dueto de Adina e Dulcamara, da ópera L’Elisir d’Amore, de Donizetti.
O concerto deve ter sido um sucesso, pois os artistas resolvem repeti-lo,
com pequenas alterações no programa, no dia 7 de junho, no salão da
residência de Bento Paes de Barros. São acrescentadas a ária para baixo
da ópera Don Carlos, de Verdi; o dueto Maria e Rizzio, de Fábio Campana; Pátria, romance para baixo, de Tito Mattei; A Estrela Confidente, de
Palloni, e repetidas algumas peças do concerto anterior.
Chama-nos a atenção no programa impresso na Imprensa Ituana, para
o destaque Grande Concerto-Baile Vocal e Instrumental. Depois do concerto haverá baile! Francisco Santini gosta muito da localidade, pois decide fixar residência em Itu.
No dia 16 de agosto de 1885, o Dr. Francisco Egídio da Fonseca Pacheco oferece um baile ao Visconde de Parnaíba. A orquestra regida pelo
maestro José Mariano iniciou o baile com uma quadrilha, e as danças
prolongaram-se até perto de 4 horas da madrugada, com cerca de 60 pares. Consideramos de grande interesse a descrição feita pelo articulista
da Imprensa Ituana, a respeito da decoração, publicada no dia 18.08.1885.
“O Saguão. À entrada despertava curiosidade e atenção dos
convidados um quadro sobremaneira majestoso: uma cascata artificial,
preparada com muito gosto e arte, sobressaia no fundo; em cima
da mesma havia uma inscrição em letras de cor e movediças, de
magnífico efeito, onde se lia a seguinte inscrição: - Ao Visconde de
Parnaíba – Os seus amigos. Para completar este belíssimo quadro,
havia uma variada iluminação de lanternas venezianas, destacandose com especialidade o lustre central, circundado por mais de trinta
lanternas, que davam ao local uma perspectiva verdadeiramente
oriental. Tocava aí a excelente banda de música dos Artistas.
A escada toda enfeitada de palmeiras e folhagens, tinha no fundo
um espelho oval, circundado por dois grandes vasos com flôres,
guarnecidos por muitas rosas esparsas, predispostas em harmonia
artística. No topo da mesma sobressaía um grande espelho
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quadrangular, com idêntica ornamentação à que se via no de baixo.
Salas do baile. Duas eram as salas destinadas às danças. A primeira
tinha nos quatro ângulos quatro cantoneiras, que sustentavam ricos
vasos com bouquets artisticamente preparados; cortinas riquíssimas,
vários candelabros, onde brilhavam mais de quarenta luzes, davam
à sala um aspecto brilhantíssimo. A segunda sala, um pouco menor,
oferecia um bonito aspecto pela suntuosidade da ornamentação,
achando-se luxuosamente entapetada (sic) e dispondo de grandes
espelhos, jarras com flores, serpentinas e muitas luzes..
O boufet (sic), de cujo serviço foram incumbidos os Srs. Joaquim
Leitão e José Xavier, achava-se preparado com muito gosto.
Construído em forma triangular, adornado com lanternas
venezianas, suspensas por colunas enfeitadas por papéis de
cores e folhagens, tinha no centro o seguinte dístico: V. P...”
Observamos pela descrição acima o gosto pelo exótico, imperando por
todo o século XIX, além do excesso de adereços.
O dia 9 de junho de 1887 é marcado pela presença do grande violinista
Vincenzo Cernicchiaro. Ele realiza um concerto no salão do Clube 6 de
Julho, acompanhado pelo pianista Eugênio Hollander e pelos artistas
da terra, José Mariano, no violoncelo; as cantoras Ida Meyer e Adelaide
Escobar; e, João Escobar, na flauta transversal. Cernicchiaro, já bastante
conhecido no Rio de Janeiro, interpreta, entre outras peças, Andante e
Polaca de Concerto, de sua autoria; e Fantasia Caprice, de Vieuxtemps.
Ida Meier canta a ária da Favorita. Adelaide Escobar intepreta Romance,
de Dancla. José Mariano, Eugênio Hollander e João Escobar acompanham os solistas, além de executarem o Terceto, de Tito Mattei.
O concerto esteve acima das expectativas, a se julgar pelas críticas na
imprensa local. Salientamos que, mais uma vez, apesar de o concerto
ser predominantemente instrumental, a ópera se faz presente na voz das
cantoras.
As sociedades Amor ao Palco e Amor à Arte, formadas por amadores,
apresentam diversas peças teatrais durante a década de 1880, sempre
com acompanhamento musical da orquestra regida por José Mariano ou
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Tristão Mariano; além de trazer a Itu o conhecido ator Xisto Bahia, que
se apresenta na primeira semana de março e na última semana de abril
de 1889, no Teatro São Domingos.
O tenente coronel José Feliciano Mendes oferece o salão de sua residência para a realização do concerto da harpista Matilde Cerutti, que
acontece no dia 6 de fevereiro de 1890, com a participação de José Mariano, João Escobar e João Narciso. No programa são ouvidas obras de
Godefroid, Pinsuti, Gottschalk, Francisco Braga, e a Fantasia do Robert,
le Diable, de Meyerbeer, adaptação para oficleide.
Nos dias 5 e 6 de abril desse mesmo ano de 1890, o Grupo Dramático
Particular João Caetano encena no Teatro São Domingos o drama Remorso Vivo, em um prólogo e cinco atos, representado dezenas de vezes
no Rio de Janeiro. A música é lavra de Arthur Napoleão, com arranjos
de Tristão Mariano, e os painéis da cenografia são pintados pelo ituano
Jonas de Barros. A orquestra é regida por José Mariano. Ou seja, é uma
coprodução em parceria com artistas da cidade.
O duo de violonistas Martinez Toboso e Praxedes Orosco realizam um
concerto no dia 10 de dezembro de 1890 no salão do Clube Recreio Ituano. No programa constam, entre outras peças, valsas de Waldteufel e a
fantasia da ópera Un Ballo in Maschera, de Verdi.
O início de 1891 é marcado pela presença de diversas companhias teatrais. No dia 28 de janeiro, apresenta-se a Companhia Dramática dirigida
pelo ator Machado, com o drama realista Arnaldo, do escritor Damasceno Vieira; no dia 31 de janeiro, é representada a peça Os Milagres de São
Benedito, de Antonio de Souza Pinto, tendo entre os atores, Julio de Oliveira e como regente e autor da parte musical, o ator Lannes; no dia 5 de
fevereiro, faz-se uma noite em benefício de Julio de Oliveira, na qual são
representados: o drama As Lágrimas de Santa Cecília; o prólogo Mulato
Jornalista e o quadro A República Brasileira.
41
No início de 1894, a cidade está em polvorosa. Estréia no Teatro São Domingos a Companhia Lírica Italiana de A. Verdini. A Companhia vem
com um elenco grande para os padrões da época: diversas solistas, dois
primeiros tenores, dois barítonos, dois baixos, orquestra de quinze professores, sob a regência do maestro Pezzoni. Fazem parte do elenco: o
tenor Simoni e Gayarre; o barítono Verdini (diretor da Companhia); o
baixo Coscollano; a contralto Cescati Verdini; a sra. Coscollano; os srs.
Pecci e Molteni.
São encenados Il Barbieri di Siviglia, de Rossini; Rigoletto e Ernani, de
Verdi; La Favorita, de Donizetti. A companhia ainda tem em seu repertório: Il Trovatore e La Traviata, de Verdi; Lucia de Lammermoor, de Donizetti; Cavalleria Rusticana, de Pietro Macagni; Il Guarany, de Carlos
Gomes e Carmem, de Bizet!
Ainda ativa e atuante na década de 1890, a Sociedade Dramática Particular Amor ao Palco de Itu apresenta no dia 10 de junho de 1894 a comédia
em um ato de Alfredo Ataíde, O Tio Torquato e a comédia em três atos,
versão de Camilo Castelo Branco, O Assassino de Macário; intercaladas
por trechos da Fosca, de Carlos Gomes, e um variado repertório, interpretado pela orquestra montada para auxiliar a sociedade nesse espetáculo. Entre os intérpretes destacam-se Tristão Mariano, João Narciso,
Luiz Buscaglia.
Nos dias 14 e 15 de abril de 1895, a violinista Giulietta Donesi e o pianista Almicare Zanella, auxiliados por Tristão Mariano, Tescari, Buscaglia,
Settimi e Vettorazzo, realizam concertos no Teatro São Domingos. No
repertório o intermezzo da Cavalleria Rusticana, Gounod, Hauser, Viniawski, Santana Gomes e Pinsuti.
No início do século XX, a cidade recebe Giovanni Scolari, conhecido cantor, que apresenta a ária da ópera Ernani, de Verdi; Povera Mama, de Tosti; O di tu?, de Mattei; o dueto de I Masnadieri, de Verdi; e transcrições
para piano de Aída, Nabucodonosor, La Sonnanbula e Salvator Rosa. É
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acompanhado por Sinésia Carneiro e Etelvina Pacheco e Silva e pelo
professor C. Guimarães.
Em 1906, a cidade recebe um músico já consagrado, Patápio Silva. Formado pelo Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro é um dos
maiores virtuoses brasileiros. O flautista apresenta obras do repertório
de concerto do instrumento, tais como o Concerto, de Popp; o Capricho
Brilhante, de Buchner, a Fantasia, de Rubinstein e a Rapsódia Húngara,
de Hauser. É coadjudado pela orquestra, regida por Tristão Mariano, que
executa, além do programa do flautista, fantasias das óperas Ernani e
Anna Bolena.
Dessa varredura em periódicos ituanos, pudemos observar a importância da música italiana, incorporada aos hábitos da localidade, influenciando uma linhagem de compositores dos mais expressivos da Província de São Paulo: Elias Álvares Lobo, Tristão Mariano da Costa e José
Mariano da Costa Lobo.8
Conclusões
Mostramos que a ópera tem aceitação plena nos concertos e saraus ituanos. As companhias italianas e nacionais, que apresentavam suas mais
recentes criações, ditaram a moda e o comportamento da sociedade local.
Suas representações transformavam a vida pacata dos cidadãos que,
nesses momentos, vestiam suas melhores roupas e transportavam-se em
8
Os mestres-de-capela de Itu eram pessoas que viviam próximas do quotidiano de sua comunidade, estando sempre atentas às suas tendências. Sem ideais estéticos próprios, seguiam
as tendências ditadas pela Corte. A necessidade definia o tipo de música a ser composta e
executada. Como profissionais contratados pela igreja, tinham a missão de compor uma música que proporcionasse a todos os fiéis um estado de enlevo espiritual, e, para atingir esse
fim, precisavam estar atentos ao gosto musical cultivado pela sua comunidade. Vivendo em
um momento de troca de ricas experiências, propiciadas pela vinda dos imigrantes italianos,
nada mais natural do que assimilar aspectos de sua música, que, na época, domina as salas
de concerto de todos os países ocidentais. Uma análise detalhada da biografia, da atuação
e do estilo de composição desses músicos, bem como a atuação de músicos no Colégio São
Luiz foge do objeto de pesquisa deste artigo. Ver: Sergl, Ópera e Música Sacra em Itu, 1999.
43
pensamento para os grandes centros. A ópera reinava absoluta nesses
espetáculos.
Nessas circunstâncias, é natural que Elias Lobo, Tristão e José Mariano,
façam parte desse universo ítalo-brasileiro. É fundamental destacar que
eles assimilam elementos, sobretudo melódicos, dessa tendência dominante na localidade, porém sem abandonar o estilo dos antigos mestres
ituanos. Mesmo fiéis à tradição ituana, eles não se imobilizam no passado. Ao contrário, vão em busca das novas tendências que se firmam no
Rio de Janeiro.
De maneira natural, incorporam essas tendências e criam uma nova estética musical ituana, uma verdadeira escola de composição local. Assim,
esses elementos interagem entre si, formando um todo coerente e uniforme. Não soam como invasores nessa nova linguagem. Ressurgem como
elementos novos, absolutamente imbricados nessa nova trama, que destaca as composições sacras e profanas ituanas.
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A Imprensa Ituana – 1876 a 1890
A Esperança (Itu) - 1871
O Ituano (Itu) – 1873-1875
A Federação (Itu)– 1905-1912; 08.01.1966;
15.01.1966; 20.01.1973; 16.09.1978
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A República ( Itu ) – 1906-1908
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danceadois.com.br acesso em 13/04/2013
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educacaoonline.pro.br acesso em 17/11/2011
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Para comer e para levar, para
cantar e para bailar: Estudo da
música salsa como patrimônio
imaterial musical da diáspora
afro-latino-caribenha
Julio Moracen Naranjo
Universidade Federal de São Paulo
[email protected]
Resumo
O trabalho trata do estudo da música salsa no Caribe e no Brasil, enquanto acontecimento
espetacular-musical patrimonial que se desenvolve em espaços culturais da diáspora atlântica.
A salsa como movimento musical e cultural ganha amplitude face à Globalização, por
conter um estilo performático e musical que interfere nas culturas brasileiras e caribenhas
por suas narrativas sonoras transnacionais e interculturais. Analisando-a no sentido de
potencializar “abordagens cosmopolitas”, pensamos poder contribuir com questões para
alargar, teórica e analiticamente, discussões sobre as mediações entre música + comida +
bebida, em um enfoque de diálogo local/ regional e transregional, onde a salsa, e patrimônio
imaterial espetacular-musical transculturado, na perspectiva de Fernando Ortiz em seu
livro “Contrapunteo Cubano del Tabaco y del Azucar”. A pesquisa e apresentada a partir da
analise de artistas, dançarinos e bailadores, espaços culturais e mestres (tesouros humanos
vivos), trazendo ao primeiro plano diálogos antropológicos e uma história das interrelações
culturais no espaço conhecido como afro-latino-caribenho a partir do Caribe e do Brasil
Palavras-chave
música salsa, patrimônio cultural imaterial, transculturação, diáspora
* Acompanha este texto uma breve performance de música e dança
interpretada pelo mestre cubano José Luis Medina.
46
1. A Cultura: para comer e para levar
Salsa: Molho, um líquido aromatizado, normalmente de espessura, é
utilizado para temperar, dar sabor e melhorar o sabor de um prato.
Os molhos adicionados aos pratos têm as seguintes qualidades:
Umidade, Sabor, As enriquece, Aparência (cor), Interesse do público.
De acordo com a história da América Latina e o Caribe, nas estruturas
comportamentais das culturas afro-latino-caribenha como a brasileira,
sua identidade ainda referencia-se a relações corpo-música-performance
em diálogos onde a música constitui-se espaço de memórias, reafirmação
de identidades, transmissor de mensagens e tradições. A música como
suporte de memória oral e meio de construção histórica da identidade
musical, síndone do entendimento da fé na afro-descendência cultural
chamada consciência étnica encontrando-se gêneros,movimentos,ritmos
musicais como o samba, o forró, o maxixe, etc unido a cumbia, o kompas
e a salsa.
O latino-caribenho comunica-se na performance corporal e musical. Vale
dizer, a presença do atuante, receptor ou transmissor - segundo Barthes
“maquina cibernética” -, o que fica fora do etno-metodológico de sujeito e
objeto, constituindo relações sujeito-sujeito. Segundo Zumthor, relação
complexa pela quais mensagens poéticas sempre se encontram no aqui
e agora, simultaneamente na transmissão e na recepção.
Cada aspecto da música e da performance afro-latino-caribenha é governado por polissemias e significados conotativos e denotativos versáteis. Não existem relações representacionais preestabelecidas in absoluto; existem continuum subjetivos, animados-inanimados através do qual
se movem os veículos sígnicos na encenação, constituindo um momento crucial em série de operações que perfazem as fases de produção à
transmissão e à recepção.
Dentro de nós, hoje se instaura a mesma quebra de simetria que existe
fora de nós. Os seres e a matéria são colocados dentro de um mesmo
47
processo de diferenciação e de pertença que impõe elaborar a angustia
vida/morte, não mais negando-a, senão inscrevendo a própria morte na
afirmação de uma vida que tem sua existência no presente, não mais
oprimida pelo débito de ancestralidades e da culpa.
O frame deste diálogo música-performance é o produto de junção de
convenções que regem as expectativas dos participantes; sua atitude
performática traz a oralidade, a herança e as tradições dialogando na
comunhão com as diversas sinfonias dos signos intertextuais. É uma
permutação de textos, diria Kristeva; eu diria que é o som fluindo do homem ao homem como revelação, poesia atuante, retornando na forma de
diálogo rítmico que celebra uma sinfonia de vozes e culturas.
De onde provém este ritmo? Do homem latino-caribenho. Assim, pode-se dizer que a performance espetacular do corpo está ditada por seus
ritmos interiores, sendo o ritmo uma relação semiótica (música-corpo-performance), levada por uma pujança controversial e contrapontística.
Não somente na sua essência, mas também em gestos que remetem ao
corpo. Em sentido geral à alteridade, ao popular, ao disjuntivo, policêntrico, poético, sangüíneo, instintivo, muscular. O ritmo/polirritmia é uma
apercepção interna que interatua com a música em forma de diálogo. De
resto o tambor, instrumento essencial em toda cultura latino-caribenha,
tem uma alma. O diálogo/ritmo - de matriz africana - tem sua tipicidade;
sai, desce, freia e se expande, desconcertando as regras de uma explicação, podendo realizar-se com as mãos ou objetos de madeira, ferro, ou
qualquer material.
Sobre isso o músico e semiólogo Luiz Tatit nos diz: em geral, os compositores populares [...]não são músicos. Precisaríamos expandir extraordinariamente o conceito de músico para poder abarcá-los e talvez isso
não compensasse. Se nunca passaram por escolas musicais e nunca tiveram necessidade deste aprendizado para compor o cantar suas canções,
e se, além disso, jamais conceberam suas obras em termos de relações
sonoras stricto sensu, onde prevaleceriam a riqueza rítmico-melódica, a
48
inteligência harmônica ou o material timbrístico, porque insistimos em
classificá-los como tais?
As heranças musicais-espetaculares brasileiras e latino-caribenhas são
ainda vistas como matéria a ser academicamente vendida, comprada e
estudada no horizonte de interesses de valores da ocidentalização; tudo
isto pode ser o domínio que nos instaura a “world music” como fenômeno imediato e visível no nível das cadeias de lojas de discos e CDs de
musica internacional em todos os países ocidentais, algo ao que temos
a obrigação de ficar atentos ante a proliferação incontrolada de interpretações ao redor da idéia de uma globalização que promove a economia
imperialista turística no sentido nacionalista de expressar aspectos de
identidades disfarçadas em conceitos como sincretismo, miscigenação,
democracia racial e mestiçagem.
2. A História: para cantar e para bailar
[...]
En Catalina me encontré lo no pensado,
La voz de aquel que pregonaba así: “Salsa”
En Catalina me encontré lo no pensado,
La voz de aquel que pregonaba así:
Échale salsita, échale salsita,
Ah, ah, ah, ah...
Letra música “Échale Salsita”(1930)
Compositor Ignacio Piñeiro
Ao analisar a música brasileira do ponto do vista histórico em dialogo com
a música latino-americana e caribenha, e elemento fundamental entender
o que Moisei Kagan chama de investigação focada de maneira tripartida:
como teoria, como história e como crítica, explicando a relação que possuem entre si enquanto fonte de preocupação política, cultural e social1.
1
KAGAN, Moisei S – Lecciones de estética marxista leninista, Editorial Arte y Literatura, La
Habana, 1984.
49
Esta relação se observa na construção da identidade musical brasileira
aparecendo materializada por meio de poucas pesquisas que têm preenchido diversas opiniões científicas ao redor desta problemática. Assim a
indagação avança, sem que tenham aparecido níveis de exploração e buscas anteriores produzidos pela ideologia de pensamentos e conceituações
de etapas sócio - político - econômicas determinadas.
Nessa miragem estética desde o século XIX encontramos um dialogo
Brasil-Latinoamerica-Caribe, o que nos permitiria dizer que existem vasos comunicantes2 na música brasileira os quais podem ajudar a entender dinâmicas de conflito e negociação na reconfiguração da identidade
da música brasileira.
No ano de 1868 aparece nos espaços cariocas da corte do Imperador
Dom Pedro II o pianista, instrumentista e diretor de orquestra Louis Moreau Gottschalk nascido em New Orleans, USA, em 1829 e falecido no
Rio de Janeiro aos 40 anos em 1869. Gottschalk tem a importância de
unir os anseios musicais das Antilhas, Cuba, Latinoamerica e Brasil já
que viajou por diferentes paises de latinoamerica abrangendo conhecimentos musicais de diversas culturas latino-americanas e caribenhas
em composições de sua autoria que influenciaram a seus colegas da época destacando-se na música brasileira Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e
Manuel Saumell Robredo (1817-1870) na música cubana; em Brasil deixo
seu “imprinting”3 nacional em seu Fantasia Triunfal sobre o Hino Nacional Brasileiro.4
2
A noção de vasos comunicantes e do poeta cubano Jose lezama Lima (1910-1976) quem nos
fala também:“Em América Latina onde quer que surja a possibilidade de paisagens tem que
existir a possibilidade de cultura”
3
pegada, sindone
4
Louis Moureau Gottchaltk e um dos mais famosos compositores norte americanos do século
XIX. Nasceu em Nova Orleans e estudou piano em Paris. Aos quinze anos fez seu “debut” perante o grande público causando uma boa impressão em Chopin e Berlioz. Voltou para os Estados Unidos durante a Guerra Civil, compondo uma série de músicas de forte cunho nacionalista. Sua peça “L’Union”, foi executada durante os serviços fúnebres de Abraham Lincoln.
Gottchalk viveu cinco anos no Caribe, principalmente em Havana e Guadeloupe, ali escre-
50
Ao início do século XX encontramos exemplos como nos carnavais cariocas dos anos 1915 e 1916 uma versão de Caraboo – canção composta
na Jamaica, do ritmo dançante one step já era cantada pela dupla “Os
Geraldos” formada por a cantora mulata gaúcha Nina Teixeira e o cantor
do Rio Grande do Sul, Geraldo Magalhães. A canção Caraboo no Brasil
teve sua versão com letra em português de Alfredo de Albuquerque com
subtítulo de Amores de uma princesa sendo grande sucesso do Carnaval
carioca de 1916.5
Já nas decadas de 1940 e 1950 os ritmos e sonoridades musiquais latino-americanos fizeram sucesso no país e trouxe músicos cubanos e latino-americanos em tournées ao Brasil, atuando em cabarés e cassinos, favorecendo o auge de gravações de seus ritmos por cantores brasileiros.
A influencia produziu frutos posteriormente, com a formação de orquestras brasileiras profissionais, como “Ruy Rey e sua Orquestra”, fundada
em 1948, retratando etapa de destaque no período da política de boa vizinhança, estimulada pelos Estados Unidos durante e após a Segunda
Guerra Mundial.
Posteriormente, surgiram orquestras como a de Waldir Calmon, e a mais
popular de todas, “Românticos de Cuba”, A música latina foi tão forte nos
anos 50 que Tom e Vinícius lançaram a música-de-protesto “Só danço
vendo sua Sinfonia nº 1 “La Nuit des Tropiques”. Durante sua estada em Montevidéu, no ano
de 1868, escreveu A “Marcha Solemne Brasileira”, dedicada ao Imperador Dom Pedro II que
o havia recebido no Brasil com cordialidade e honrarias. Esta obra, composta para orquestra,
banda militar e canhões termina com uma brilhante elaboração do Hino Nacional Brasileiro. Algumas composições de Gottschalk evelam uma forte influência de Berlioz e Wagner e
muitas de suas obras foram escritas para uma orquestra com 150 músicos. Sua Sinfonia nº2
“Montevideo” entrelaça temas patrióticos, como um arranjo do Hino Nacional Uruguaio e do
Yankee Doodle. Seu fim foi dramático. Participava de um concerto no Rio deJaneiro, quando
após executar ao piano sua composição Opus 60 chamada “Morte”, desmaiou no palco vindo
a falecer poucos dias após, de febre amarela.
5
A dupla os Geraldos adquiriu muita fama internacional entre os anos 1908 e 1920 cantando
e dançando maxixes famosos, principalmente o “Vem cá, mulata!”, de Bastos Tigre,cativando
franceses e portugueses.
51
Samba”, onde declaravam guerra à hegemonia do Calypso e do Cha-Cha-Cha. que tiveram sua época de ouro até o auge da música rock,
estabelecendo o final do período das “Big Bands” e o nascimento da cultura roqueira mundial.
1959 é o ano oficial do surgimento da Bossa Nova. Neste ano, reuniram-se todas os substâncias do maior movimento musical do Brasil acoplado
a um nacionalismo crescente, favorecendo o olhar a música caribenha
relacionada ao “brega” da ocasião, associado ao triunfo da Revolução
Cubana e ao discurso de unificação cultural de uma América Latina em
oposição à ditadura militar, estabelecida entre 1964 e 1985. nessa época
uma musica autenticamente brasileira como a música sertaneja6, desapareceu dos meios de comunicação e sua excomunhão teve a ver com as
influencias do mundo latino-caipira-mexicano. Ela resistiu e nos anos 80
voltou a ser notada pelo grande publico – por «grande publico» entenda-se o «Sul maravilha», consumidor da música das FMs e trilhas de novelas.
A ditadura militar trouxe a luz o movimento musical tropicalista, com
vestimentas extravagantes, utilização de produtos da sociedade industrial, como plástico, roupas iluminadas, etc., e da sociedade rural, como
bananas e pés descalços. Introduzindo letras obscuras de associações
subconscientes, harmonias dissonantes e repetições irritantes - como as
dos cantos monótonos dos cegos nas feiras do nordeste - o movimento
tropicalista evidenciou rebeldia à ditadura militar e ao americanismo jazzístico da Bossa Nova, com sua polida perfeição de letras. Não obstante,
a maldição brasileira aos ritmos latinos cedeu um pouco ao final dos
anos sessenta, graças ao álbum Tropicália, de 1968, onde os músicos tropicalistas Tom Zé, Caetano Veloso e Gilberto Gil colocaram ritmos latinos na musica cubana “Três Caravelas”, e incluíram o bolero melancólico
“Lindonéia”.
6
Música Sertaneja ou música caipira: gênero musical brasileiro produzido a partir da década
de 1910, por compositores rurais e urbanos, também chamada genericamente de modas de
viola , toadas, cateretês, chulas, emboladas e batuques, cujo som da viola é predominante.
52
No Brasil dos anos 1970, a música caribenha foi lembrada por cantores
como Ney Matogrosso, que incluiu clássicos em seu repertório, como
“Kubanacan” (1975) e “Paranpanpan” (1976); nos anos 80, artistas e intelectuais promoveram a unificação dos povos latino-americanos como
resistência às ditaduras militares. A liderança de Milton Nascimento e
Chico Buarque fez que se produzissem canções com os cubanos Pablo
Milanés e Silvio Rodriguez, além de diálogos com a música dos argentinos Mercedes Sosa e Fito Páez.
Tambem muitos músicos brasileiros visitaram Cuba e Porto Rico, e voltaram do Caribe com novas concepções musicais, o que proporcionou
o nascimento de ritmos como o Sambareggae e a musica Axé. E fundamental a participação dialógica de músicos brasileiros fora do Brasil, na
formação do jazz latino nestes anos. Entre muitos, destacamos a pianista
e cantora Tania Maria, o percusionista,ex-integrante do mitico “Quarteto
Novo” Airto Moreira e a cantora Flora Purim.
A época rica na produção da música caribenha fora do Brasil iniciou
com o fenômeno salsa, estabelecido em concerto no Yankee Stadium, de
Nova York, da orquestra Fania All Star (composta pela união de músicos
de quatro orquestras: as dos veteranos Ray Barreto e Johnny Pacheco e
as dos jovens Larry Harlow e Willie Colon). A revolução musical trazida
por este evento frutificou nos anos seguintes, quando o movimento expandiu-se pelo mundo até globalizar-se. Conforme o músico panamenho
Ruben Blades, a salsa é a identificação de ritmos procedentes da área do
Caribe para vende-los aos americanos e ao resto do mundo.
Nos anos 1990, o advento da salsa no Brasil veio com os ares da abertura,
contribuindo para expansão da música latino-caribenha e de músicos de
outras latitudes, que se instalaram no Brasil, interagindo com os músicos
brasileiros. Nessa década foi admirável na Bahia a presença do músico e
cantor Gerônimo e o surgimento do grupo Rumbahiana (1982), fundado
pelo chileno Keko Villarroel, o italiano Gino Zambelli, o alemão Claus
53
Jake e o baiano Gum. Reuniram os melhores músicos de Salvador, Bahia,
para tocar ritmos caribenhos agrupados no fenômeno salsa.
De imediato, uniram-se ao grupo músicos como Carlinhos Brown, ícone
da música produzida na Bahia na emergência da concepção do axé music, no qual Rumbahiana colaborou com seu estilo musical, influenciando cantoras como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Margareth Menezes.
Eventos fundamentais nesses anos foram à presença, em São Paulo, da
cantora Célia Cruz e o grupo do portoriquenho Jose Alberto “El canário”;
incursões ao redor da salsa nos meios televisivos, como o documentário
musical “Baila Caribe” (1997), sob direção de Belisário Franca e apresentação do cantor Gilberto Gil, para a TV Cultura; e a novela “Salsa e Merengue”, de Miguel Falabella e Maria Carmem Barbosa, direção de Wolf
Maia, exibida pela rede de televisão Globo, em 1996.
O final desta década em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro abre o
auge das danças de salão, com o consumo da musica salsa restrita a intelectuais e a uma classe de baixo e médio poder econômico, além de estudantes.7 A proliferação de cantores e grupos musicais com repertório de
salsa, em suas vertentes bolero, son, merengue e pop; evidenciou-se com
a cantora Nana Caimmi, o cantor Fagner, o compositor e cantor Roberto
Patino, os grupos Mambolada, Edwin Pitre e sua Banda, Pedro la Colina
e sua Banda, Banda Kaduna, Guga Stroeter & Heart Breaker, Habana
Brasil, Banda Sabor a Cuba, Banda Esencia Latina, Sonora Caribe, Perfume de Gardênias entre outros. Também marca presença na cena musical
paulista do cantor cubano Issac Delgado, do grupo Havana Ensemble,
dos pianistas Gonzalo Rubalcaba e Ernàn Lopez Nussa, junto ao percussionista Tata Guines; no Rio de Janeiro os grupos NG la Banda e Síntesis
e a participação de percussionistas cubanos no Festival Internacional de
Percussão (PERCPAN) em Salvador, Bahia. Neste âmbito, o mais significativo foi a chegada ao Brasil do projeto de musica cubana conhecido mun7
Tudo isto fora da tradiçao do consumo desta musica pelo grupo conhecido como “terceira
idade”
54
dialmente como “Buenavista Social Club”, devido ao sucesso do filme
dirigido pelo cineasta alemão Wim Wenders. Ali se apresenta o trabalho
do premiado músico norte-americano Ry Cooder, reunindo alguns dos
maiores nomes da música cubana como Rubén Gonzàlez, Ibrahim Ferrer,
Eliades Ochoa, Omara Portuondo e Compay Segundo na gravação do
álbum Buena Vista Social Club, premiado com o Grammy (1998).
Com o advento do século XXI o auge da música salsa com suas trocas
e aceitações, tornou-se significativo na formação de novas identidades
musicais. Além de interesses econômicos, traduziu-se na abertura de espaços artísticos e culturais em geral.8 Os novos rumos da aceitação e
dialogo das músicas latinas e caribenhas no Brasil trazem uma reflexão
a ser debatida trazendo à tona o diálogo música-performance fora de afirmações totais e para alem de essencialismos, conforme debate nos estudos culturais
3. Música salsa como patrimônio imaterial musical
da diáspora afro-latino-caribenha
« Estou encantada com a maneira como o senhor me acompanhou
nesta toada »
E o modesto Josué,com o rubor lhe aflorando à pele escura :
« É que eu sou o autor da letra e da música... »
Carmen Miranda ainda não famosa, em seu encontro com o
compositor baiano Josué de Castro
Contado por Ruy Castro em Carmen :uma biografia
No contexto caribenho e brasileiro, e importante o esforço de Athur Ramos que, sob patrocínio da UNESCO promoveu estudos da musica popular
como patrimônio artístico nacional. Para suprir a carência de pesquisas,
dos livros foram escritos por encargo do Fundo de Cultura Econômica,
8
Um exemplo é o auge de bailes caribenhos como zouk e reggae; este ultimo já tem uma marcada presença
brasileira com cantores, músicas e até produções nacionais, radicando-se principalmente em São Luis de Maranhão e Salvador, Bahia.
55
editorial mexicana que também solicitou a outros musicólogos do continente estudos historiográficos de seus países, e somente recebeu respostas de dois intelectuais, o escritor Alejo Carpentier, La música en Cuba
(1946), e a folclorista brasileira Oneida Alvarenga, A música popular brasileira (1947); eles levantaram similitudes e distanciamentos culturais na
América Latina e Caribe, a partir de movimentos da musica popular em
Cuba e no Brasil. Este encargo ainda que estivesse dirigido a um publico
massivo respondeu ao objetivo de abordagens iniciais de paralelos e continuidade no eixo musical Cuba-Brasil-Caribe, sem deixar de mencionar
a contribuição que trouxeram para aproximação das questões culturais
inerentes a estas regiões.
Em 1950, em artigo publicado no “Mensário de Arte, Literatura, História
e Cultura”, da Direção de Cultura do Ministério de Educação de Cuba,
Fernando Ortiz elogiou o livro de Alvarenga, onde a autora fala textualmente da influência dos ritmos cubanos na música brasileira. Percepção
exemplificada com a música “O que a Baiana Tem” (disco Odeon do Brasil, No. 194-984), que se fez conhecida mundialmente pela atriz e cantora
lusobrasileira Carmen Miranda.
Segundo Alvarenga, essa música, de brasileira, só tem a língua na qual é
cantada; o resto – melodia, ritmo, linha do canto, tratamento dos instrumentos acompanhantes – são de evidente influência cubana. Essa passagem ajuda a entender como este livro respondeu ao objetivo de abordagens iniciais, de paralelos e continuidade no eixo cultural Cuba, Brasil,
Caribe, como aporte de aproximação das performances culturais destas regiões; aproximação que o historiador e folclorista cubano Samuel
Feijoo nomeia de proximidade rítmica, enquanto Benitez Rojo chama de
construção da música popular como projeto de identidade nacional.
É precisamente de Ortiz e suas obras “Los Bailes y el Teatro de los Negros en el Folklore de Cuba (1985) e Contrapunteo cubano del tabaco y
del azucar (1940) , que retomamos o conceito transculturação, em sua
56
perspectiva histórico-teórica, considerando-o como um conceito aberto,
em expansão no contexto dos cultural studies.
Segundo Ortiz o conceito transcultração pressupoe tres momentos indissoluveis : aculturação ou encontro com novos elementos culturais; deculturação ou seleção de determinados elementos culturais; neoculturação
ou criação, transformação, resignificação de novas realidades culturais.
Sua importancia na chamada Antropologia da Transculturação permite articulá-lo a outras discussões, uma vez que tais processos históricos
constituem sistemas para o reconhecimento de diferenças culturais
como conflituosas experiências vivenciadas em processos de reelaboração cultural ou incorporações seletivas, conforme Raymond Williams.
Na emergência de princípios, valores, interesses fundadores de projetos culturais e estéticos, diferentes dos vividos nas diásporas negras da
chamada “modernidade”, processos de transculturação possibilitaram
devires espirituais, mentais, psicológicos, com que foram enfrentadas
a escravização e as transgressões reconstituintes de matrizes africanas
como a salsa como um gênero ou subgênero musical, noção discutida
na musicologia e em outros campos afins. Agora somente me limitarei
a conceituar sua presença espetacular, como performance, fenômeno,
acontecimento, estilo, movimento
Desde conjunturas de escravização, imigrações, até épocas de globalização, encontros e fusões entre diferenciados fluxos e tradições culturais,
vêm-se pluralizando tensões, conflitos, interações, conforme estudos de
Paul Gilroy (1993), Shusei Hosokawa (1999) e Antonio Benitez Rojo (1998).
O sentido da performance salsera está saturada de valores políticos e
encontra na música e teatralidade do corpo a estrutura de ascendência
primária para veicular contestações via uma linguagem subliminal, que
une os fenômenos culturais da atualidade e heranças de antepassados.
A pesquisa sobre música salsa remete aos estudos sobre a diáspora, em
que são importantes as análises de estudiosos como Kwane Anthony
57
Appiah e Henry Louis Gates Jr, no Dictionary of Global Culture (1996),
e de Robin Cohen, intitulada Global Diásporas (1997), em que o autor se
expressa partindo da experiência hebraica nas questões de língua, religião e culturas de origem. Neste caso, Cohen toma em consideração as
diversas formas que a diáspora tem se manifestado, distinguindo entre
diásporas produtos dos impérios, da colonização e da segregação racial
e étnica; diásporas produtos da necessidade de movimento em busca de
trabalho e outras diásporas, como as movidas por fome, pobreza, perseguição religiosa e política, discriminações que obrigam comunidades
inteiras a migrarem.
As teses de Cohen nos leva a pensar sobre as diásporas africanas pelo
ponto em que os pesquisadores têm-nas explicado, como processo da
rememory, ou seja, a construção da própria história, compreendida como
releitura da história do Ocidente, que não pode continuar a manter na
escuridão a contribuição africana na sua própria edificação.
A salsa como evento espetacular-performático possui uma condição
diaspórica, de perpetuação da cultura negro-africana, conforme estudos de Bogg (1992), Quintero Herencia (1997) e Hosokawa (1999). Para
pensar a música salsa, devemos pensar tambem o termo caribenho no
sentido cultural, altamente valorizado desde a década de 70. O termo caribenho esta estreitamente ligado ao de crioulização (creolizatión). Este
conceito foi criado pelo escritor e teórico do mundo antilhano Edouard
Glissant, como um processo imprevisível, no sentido de ser uma mestiçagem consciente de si mesma. Para ele, as sociedades crioulas têm um
passado colonial vencedor. Diante dessa constatação, ele propõe que a
pesquisa da identidade seja explorada como ‘‘terapia’’ para recuperação
dos espaços conquistados pelos colonizadores, resgate da história que
foi ocultada pelos anos de escravidão. A identidade deve ser buscada no
desejo de dar luz às feridas sociais, objetivando completar os silêncios e
a ausência da memória coletiva.
58
A especificidade da uma cultura crioula deve ser investigada na sua própria diversidade de herança cultural. Somente assim a crioulização pode
ser compreendida como um processo de construção de identidade intensa e plural como e a música salsa.
No mundo globalizado, os conceitos de fluxo e espacialidade adquirem
grande relevância teórica e a musica salsa tem como característica pertencer a todos e a nenhum lugar, criando novas condições, que requerem
novas metodologias e teorias para enfrentar velhas questões.
Somando-se a esta reflexão, penso que dentro do chamado Music Studies, devemos pensar a música salsa como patrimônio imaterial musical
da diáspora latinocaribenha . Uma música popular de tradição veiculada
nos mass-media, como o rock, o rap, o reggae, delineiando novos horizontes, desenvolvendo-se, através do conceito gramsciano de hegemonia versus subalternidade, na leitura de Raymond Williams, em noções
de musical subcultures, supercultures e intercultures, aplicadas à micro-música do mundo ocidental, influindo como música diaspórica nos contextos multiculturais e como diz Edward Said, uma música que [...] ainda
se mantém dentro do contexto social como uma variedade especial de
experiência estética e cultural, contribuindo para produção da sociedade
civil (Said, 1991. 57).
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61
“Piquenique Classe C”:
música, alimento, história,
literatura e sociedade
Guilherme Gustavo Simões de Castro
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Resumo
“Piquenique Classe C” e “Nossa Cidade” são duas crônicas do jornalista e produtor Osvaldo
Moles. Narram personagens e cenários na cidade de São Paulo entre os anos 1940 e 1950.
Abordam de maneira espontânea aspectos sociais através das histórias de dois domingos,
um trivial e outro diferente: a história de um convescote em Santos que fizeram os operários
da Tecelagem da Virgem S/A, Rua Catumbi em São Paulo. As manifestações musicais e
gastronômicas dos habitantes paulistanos aparecem nas narrativas. Numa interface entre
História e Literatura quero relacionar o texto ficcional com o contexto histórico e material da
expansão urbana da capital no período. Os costumes e experiências musicais e de hábitos de
alimentação são de extrema relevância como dados para construção do conhecimento histórico
de uma sociedade. A historiografia deve aproximar-se da música, da literatura e das mídias
e buscar, em todos os tipos de linguagens, fontes e documentos, indícios de determinados
contextos e experiências históricas da vida das pessoas e sua relação com o mundo.
Palavras-chave
costumes paulistanos; pós-guerra; expansão urbana.
62
Duas crônicas sobre dois domingos distintos e imprecisos na temporalidade histórica. Repletos de costumes musicais e alimentícios. Narrativas de personagens e situações fictícias inspiradas nas experiências das
pessoas comuns. Personagens habitantes da cidade de São Paulo nos
últimos anos da década de 1940 e inicio da década de 1950. O primeiro domingo literário é a crônica narrada no programa da Rádio Record
“Nossa Cidade” de setembro de 1949 e o segundo é a crônica “Piquenique
Classe C”, sem data de publicação, ambos de autoria de Osvaldo Moles.
O programa “Nossa Cidade” foi ao ar pela Rádio Record no ano de 1949.
Narra um domingo de setembro, os lugares, os personagens, os sons, as
situações da cidade dominical. Este programa foi um grande sucesso
de audiência. Osvaldo Moles, com uma habilidade de transitar entre o
popular e o erudito, fazia para cada programa um tema específico da
cidade. A chamada do programa era São Paulo, “a babel de estrangeiros
de todas as pátrias”. (CAMPOS JR, 2009, p. 201).
As situações narradas como os pregões, vendedores de rua, aos domingos, que tecem no ar uma sinfonia de guloseimas: (coro) Olha a cocada!
Ó doce de batata doce! Ó doce de batata doce! Olha a cocada! Ou então,
as mulheres das periferias que no domingo a tarde, faziam sabão e bananada, cada coisa em um tacho. E Dona Camila, da pensão, que avisa que
aos domingos não tem lanche, pois o almoço foi ajantarado. E que nos
cinemas, no final da tarde, as filas eram enormes para assistir aqueles
enlatados de Hollywood. Ou ainda as casas de instrumentos musicais
na Rua Direita que mantinham, aos domingos, as luzes das vitrines acesas e que alimentavam os sonhos musicais das pessoas que não podiam
comprar aqueles instrumentos.
A crônica “Piquenique Classe C” foi publicada junto a uma coletânea de
crônicas do autor que tratam de flagrantes vividos na cidade de São Paulo entre as décadas de 1940 e 1950. A edição da coletânea leva o mesmo
nome da crônica citada e foi produzida pela Editora Boa Leitura S/A, sem
data. A crônica mencionada aborda personagens e aspectos dos costu-
63
mes alimentícios e musicais. Trata de uma narrativa da história de uma
viagem para um convescote em Santos que fizeram os operários da “Tecelagem da Virgem S/A”, localizada pelo narrador na Rua Catumbi em
São Paulo. Operários de todos os sotaques que levam marmitas, frangos
assados, garrafões de vinho nacional, “piquenicando” e cantando “O Sole
Mio” e também baião. Osvaldo Moles conduz a narrativa com maestria,
registrando de maneira caricaturada os costumes comuns dos operários
de diferentes origens. Utilizados como mão-de-obra barata pelo capital
e pelo progresso. Gente que foi para São Paulo para trabalhar e construiu também a cidade do trabalho. Os passeios que algumas fábricas e
indústrias da capital promoviam para o litoral no final de semana. Praia
Grande era um dos locais. E os piqueniques e as cantorias improvisadas
com violas e violões em meio aos goles de vinho de garrafão. Para aquelas pessoas a viagem, a ressaca, as recordações vão marcar por muitas
semanas (...) “aquela fabulosa fuga da realidade”. (MOLES, s/d, p. 27).
Estas histórias poderiam ser utilizadas como fontes de pesquisa pelo historiador? Que tipo de informações elas nos comunicam enquanto fontes?
Poderiam ser cruzadas com análises de intensões historiográficas e literárias ao mesmo tempo? Ao menos é este movimento intelectual que proponho neste artigo. Osvaldo Moles foi produtor de programas nas rádios
paulistanas, principalmente na Rádio Record e na Rádio Bandeirantes.
Famoso por realizar, ao lado de Adoniran Barbosa, e outros tantos rádio
atores como Mariamélia, Celina Amaral, Leonor de Abreu, José Rubens,
Vicente Leporato, Osvaldo de Barros, entre outros para quem escrevia
vários personagens. Entre 1941 até 1951, produziu os programas “Casa da
Sogra”, “Escola Risonha e Franca”, “PRGessy”, “O Crime Não Compensa”,
“Nossa Cidade”, “Universidade Record”. Posteriormente, Osvaldo Moles
vai trabalhar na Rádio Bandeirantes e após seu retorno para a Rádio Record, para a partir de 1955, escreve e produz o clássico “História das Malocas”, entre outros. (MORAES, 2000, p. 82). A primeira localização da Rádio Record foi na Praça da República. O segundo prédio da PRB-9, Rádio
Record, estava localizado na esquina da Rua Quintino Bocaiúva com a
64
Praça da Sé. Isto ocorreu entre 1941 e 1951. Personagens como o negro Zé
Conversa e sua parceira Catarina, dupla que Moles escrevia para Adoniran e a rádio atriz paulistana Mariamélia. O Zé Conversa que representava a figura do “malandro paulistano”, se é que podemos dizer assim,
que não era muito chegado à labuta diária. O Barbosinha mal-educado
da Silva, na “Escola Risonha e Franca”, interpretado por Adoniran , ao
lado Durvalino Botani que fazia o João Bobo e o docente interpretado
por José Pinaguel. Segundo o historiador e jornalista Celso Campos Jr,
o professor tinha um papel interessante e era
(...) caracterizado como um velho de barbas brancas, representava
o velho conselheiro, amigo dos alunos, que preferia dialogar a
usar a palmatória na hora da reprimenda – algo nem tão comum
no Brasil da década de 1940, em que muitos professores faziam da
sala de aula sua ditadura particular. (CAMPOS JR, 2009, p. 130).
O rádio, entre as décadas de 1940 e 1950, foi um dos meios de transmissão
de informações mais importantes em atuação na cidade de São Paulo e
no mundo. Segundo José Geraldo Vinci de Moraes entre os anos de 1923
até 1934, dez rádios foram fundadas na cidade de São Paulo. Entre 1934
e 1935 as rádios paulistanas Cruzeiro do Sul, Record e Kosmos tinham
programas típicos e específicos voltadas para as diversas comunidades
estrangeiras. (MORAES, 2000, p. 76). Ainda esta questão dos imigrantes
é mais complexa como aponta Adriano Duarte. Havia diferenças entre
os italianos como os napolitanos da Mooca, os calabreses do Bexiga e os
bareses do Brás. (DUARTE, 2013, s/p.).
Já durante os anos 30 o rádio se consolidou como meio de transmissão
com enorme potencialidade para os fins comerciais. Seus usos para diversas finalidades como fins militares e também como instrumento de
propaganda política. Alguns depoimentos e documentos sobre a história
do rádio apontam que as rádios paulistanas tiveram uma atuação preponderante como instrumento de guerra dos paulistas contra as tropas
de Getúlio Vargas em 1932. Durante a década de 1930 e 1940, além do
65
uso do rádio para propaganda de Estado passa a ser disseminado seu
uso como instrumento de publicidade. Muitas empresas, principalmente
as grandes corporações como Gessy, Colgate-Palmolive, Bayer, entre outras, passaram a utilizar o rádio como instrumento de publicidade para
invadir as ruas, os lares, as repartições e da vida íntima das pessoas.
A publicidade realizada por empresas, entre as nacionais e as multinacionais patrocinaram os diversos programas jornalísticos como o Repórter
Esso. Na Rádio Record, que é um dos focos deste trabalho, a publicidade
se fazia presente nos programas de humor como o Conhaque Montezano
que patrocinava o “Nossa Cidade” de Osvaldo Moles, ou no carnaval de
1949 com anúncios intermitentes de Cafiaspirina da Bayer. E isto é uma
coisa interessante. Em 1945 a Record fez a cobertura da participação dos
soldados e oficias brasileiros na Itália e do retorno das tropas à São Paulo,
sendo recebidas�����������������������������������������������������
no Estádio do Pacaembu em meio com festividades, reportagens durante a programação da rádio paulistana. Quatro anos mais
tarde, e somente quatro anos mais tarde, uma indústria química alemã
patrocinava o carnaval paulistano.
Entre as décadas de 40 e 50 a Rádio Record fazia parte do cotidiano dos
habitantes de São Paulo. Osvaldo Moles trabalhava para esta rádio neste
período e produziu o programa já citado “Nossa Cidade”. O programa
tem 23 minutos de duração e tinha o patrocínio de dois tipos de produtos
diferentes: Vermute e Conhaque, ambos Montezano. Com a produção
musical do maestro Hervé Cordovil, que trabalhou na rádio paulistana
de 1945 até sua aposentadoria no ano de 1971. A narração do programa
foi realizada por Raul Duarte. Atores participantes foram: Mariamélia,
Celina Amaral, Leonor de Abreu, José Rubens, Adoniran Barbosa, Vicente Leporato, Osvaldo de Barros e Mario Sena. Através da gravação
disponível no Museu da Imagem e do Som de São Paulo, percebe-se que
há um auditório repleto de espectadores acompanhando e interagindo
com risadas e outras manifestações.
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O roteiro do programa redigido por Osvaldo Moles retrata um domingo
de setembro na cidade de São Paulo. Tem início com a narrativa musical que dá ambientação ao ouvinte. No rádio as cores do cenário são
sugeridas pelas tonalidades musicais que as músicas incidentais faziam
com intensidade. A crônica se passa em vários lugares da cidade com
diversos personagens. Os moradores do Brás, os vendedores de rua, as
crianças nas ruas e quintais aprontando travessuras, os transeuntes e os
passarinhos no Parque da Luz, as corridas e apostas no Jóquei, com um
cavalo antropomorfizado que reclama trabalhar aos domingos na Cidade
Jardim, o subúrbio, o cortiço, a favela, as opções de lazer, o Palácio do Ipiranga e o cinema no final da tarde. A história roda a cidade ao domingo
retratando de maneira cômica e satírica o cotidiano, as peculiaridades
de diferentes classes sociais e invenções tecnológicas. Antropomórficos
são os personagens do cavalo e do ventilador. O cavalo que sacaneia os
apostadores por estes fazê-lo labutar no dia do descanso semanal. E o
ventilador que domou a brisa de domingo. Aquele tornado doméstico.
O autor tem um estilo marcante que é possível de ser observado tanto
no roteiro deste programa como também nas crônicas de “Piquenique
Classe C”. Este estilo apresenta uma mescla de erudito ou culto, com
fatos da história mundial, com a linguagem popular, os sotaques que representam a diversidade cultural dos habitantes pobres e ricos da cidade. Segundo dados disponíveis no site da Prefeitura Municipal de São
Paulo, na década de 1950 a cidade de São Paulo contava com 2.151.313
habitantes segundo o censo de 1950. Já na década de 1960, conforme o
recenseamento deste ano, a cidade contava com 3.667.889 habitantes, ou
seja, um crescimento de mais de 50% da população em dez anos. Tanto é
que o chavão do programa era: “São Paulo, Nossa Cidade, Terra de todos,
pátria de todos”. Na crônica do convescote em Santos, também se passa
num domingo. Um domingo especial de passeio e comilança. Ambas
crônicas do mesmo autor. As duas se passam no dia de descanso, de
passeio, dos momentos lúdicos, de contato, de cantoria, de comer e beber.
67
Para tentar entender de maneira mais profunda estes costumes musicais, vou citar um trecho de uma crônica bem curta chamada “Conflito
na Barra Funda”, escrita por Osvaldo Moles e publicada em “Piquenique
Classe C”. O interesse é pela expressão “samba de porão”, contida nesta
crônica. As referências aos “sambas de porão” são raras e se resumem
na sequência de ações, enredos e contextos, imagens mentais fictícias
na crônica “Conflito na Barra Funda”. As noitadas de samba os espaços
sociais onde ocorriam as experiências dos personagens.
Anacleto vinha pela Glete, na última calda da madrugada. Ora,
esperança de cafuzo, que ainda não arranjou entrada em baile
por debaixo do pano, é consegir um final de samba na noite
envelhecida. De repente, ouviu, na distância, uns tamborins
tutucando. Foi se chegando à casa de onde vinha aquêle jorro
de rítmo. E achou o que queria: samba de porão. Ficou lá de
fora, espiando pela janelinha baixa, por entre as grades, assim
como quem tem só curiosidade. (MOLES, s/d, p. 153).
Esta imagem do samba de porão narrada neste excerto da crônica “Conflito na Barra Funda” fez referência com os porões e cômodos no centro
velho da cidade que era uma opção de moradia já na época dos libertos
nas últimas décadas do século XIX e início do século XX, conforme expõe
Raquel Rolnik. (ROLNIK, 1997, p. 67). Principalmente na região do Centro
Velho nos arredores da Rua Quinze de Novembro. Ali localizavam os territórios negros ligados a igreja da Irmandade Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos, as habitações e o chafariz. Tudo foi desapropriado
e demolido durante a execução do Plano de Melhoramentos da Capital,
entre 1899 e 1911, durante a prefeitura de Antônio Prado.
O plano consistia na destruição dos locais de sociabilidade das pessoas
que representavam a degenerescência, os desregrados, que estão excluídos dos códigos de posturas normativas europeus ligados ao pudor e outras qualidades. Daqueles ex-escravos, não domesticados para o trabalho
assalariado como os imigrantes europeus, cujos os encontros e desen-
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contros entre “machos e lascivas fêmeas” ocorriam nos tanques públicos,
quintais, porões e quitandas. Portanto, a expulsão das camadas sociais
não alinhadas com os costumes normativos e posturas europeias que as
elites locais desejavam impor aos seus. Assim como, é claro a valorização
imobiliária do centro da cidade de São Paulo. Porém, os cortiços e porões
iriam se proliferar em muitos lugares do centro e conforme a cidade foi
se expandindo este tipo de moradia continuava a ser uma alternativa
para os recém chegados que pousavam vindos de lugares diversos.
Ainda segundo Raquel Rolnik, a moradia dos negros libertos em porões
e cômodos na Sé, pequenas aldeias nas periferias da Penha e na Freguesia de Nossa Senhora do Ó. Os espaços de sociabilidade ocorreram
em meio as urdiduras da vida da cidade, nos encontros no mercado, quitandas, cangalhas, bicas de água, chafarizes, cantos, capoeira. Os pátios
e quintais dos cortiços e habitações coletivas ocupadas pelos libertos
eram espaços de convivência, onde se cozinhava, lavava, ficavam os filhos, conversavam. Dentro dos pequenos quartinhos e porões ficavam
somente a tralha de dormir. A vida acontecia no espaço coletivo do quintal. (ROLNIK, 1997, p. 67). As crianças e os cantos, as conversas, berros,
ruídos. O samba de porão de Osvaldo Moles teria alguma relação com a
descrição destes espaços feitas pela Raquel Rolnik?
Estes lugares tinham seus próprios ritmos, mais ligados ao ritmo do trabalho, da vadiagem, do lascividade, das urdiduras da realidade material.
O samba ou os tipos variados de samba que existiam. A geração de músicos da década de 20, como Sinhô, Pixinguinha e Donga, ou seja, no
período anterior ao processo de construção da imagem do samba como
símbolo nacional, já apresentava um repertório variado passando por
uma fusão de influências dos lundus, modinhas, maxixes, choros, jazz,
polcas e outros estilos internacionais. “Foi só nos anos 30 que o samba
carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em
símbolo de nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passaram a ser considerados regionais”. (VIANNA, 1995, p. 111).
69
Conforme aponta José Geraldo Vinci de Moraes, a polifonia paulistana
consolida-se por volta dos anos 1930. As influências e repertórios passavam pela música italiana, espanhola, tango argentino, polcas, chorinho,
marchinhas carnavalescas, sambas, serenatas, música de circo, música
caipira e música sertaneja. A música acontecia em locais como nas ruas,
cafés, teatros, clubes, festas diversas, residências particulares, salas de
entrada de cinema, fonógrafos, discos e emissoras de Rádio. A radiofonia
paulistana tem uma tradição de diversidade sonora. O mito da cidade
do trabalho e do progresso que não para nunca, surgiu nos anos 1930.
(MORAES, 2000, p. 22). O Tema de são Paulo: Amanhecendo, com seu incansável refrão “vamos embora, vamos embora, que está na hora, vamos
embora, vamos embora” cantado sem o som do “s”, ficando sonoramente
“vambora”. Está canção virou um clássico e até hoje é entoada nas manhãs pela rádio.
São Paulo nos anos 50 tinha uma situação híbrida em relação aos costumes urbanos: a música caipira, os sambas, as músicas que vieram com
os imigrantes europeus, com migrantes nordestinos e mineiros, e de outro lado, a modernidade representada pela indústria cultural, pelas rádios, pelos autos e arranha-céus. Havia também os salões de raça, onde
frequentam os negros batuqueiros. Nestes bailes tocavam os sambas,
lundus e outros ritmos de percussão fora de época de carnaval. Aliás, o
samba paulistano tem uma característica na batida que o diferencia dos
sambas cariocas e dos sambas baianos. Do samba italiano, da seresta, do
samba de porão. Na cidade que cresce sem parar, a música de rua, dos
violeiros, de domicílio, de vizinhos seresteiros fica cada vez mais inviável. E era destes encontros entre comunidades, sambas de porão, que novos músicos despontavam. Contraditoriamente os chorões também tendiam a crescer numa cidade que dificultava cada vez mais os encontros
informais de vizinhança e comunidade, onde os novos e velhos músicos
podiam tocar e trocar experiências.
70
De volta à crônica, dentro do bonde para a Estação da Luz, as cantorias
dos operários da “Tecelagem da Virgem S/A” no domingo de passeio
para a Praia do Gonzaga em Santos tinham diversos sotaques. No texto
desta crônica podemos observar as referências aos bondes e aos trens.
Primeiramente aos bondes que faziam o trajeto da rua Catumbi, no bairro do Belém até a Estação da Luz, onde havia o terminal ferroviário. Existe um mapa da Projeção hiperboloid com rede quilométrica da cidade
de São Paulo, datado de 1952 que possui as linhas de bonde e de ônibus,
disponível no site da Prefeitura de São Paulo. Segundo este mapa, os
bondes que passavam pela rua Catumbi, até o Largo Catumbi, eram os
bondes 13 e 16. Porém, parece que o bonde 13 é que fazia o itinerário até a
Estação da Luz. No momento da ida para Santos, o bonde é citado assim:
O Barsotti vai levando a charanga, cheia de violões que se chama
“Grupo Folclórico Anita Garibaldi”. Já no bonde para a Estação da
Luz, o ritmo de samba tem mistérios italianos: - “Escuita... Vamos
fazê um contralto...” Por fim, aquela ânsia de pegar o trem. Vai partir?
Não vai? Quando parte? É já? Há uma longa espera e, depois, o trem
desamarra, enquanto os engraçadinhos “ajudam” empurrando o banco
com o traseiro. - Dêxo a Marieta ficá perto da janela, pra vê a paijaje!...
O trem que vai pra Santos está repleto de olhos saltando das órbitas,
em atitude de assombro ante a Serra do Mar. (MOLES, s/d, p. 23).
Além do fato de aparecer na narrativa os bondes, provavelmente essa
linha que fazia o percurso do Catumbi para a Estação da Luz, podemos
perceber o trem. Naquele período os trens e os ônibus eram as opções
para a viagem até a cidade de Santos, no litoral paulista. Na própria narrativa são citadas as duas opções inclusive fazendo referências aos preços das respectivas passagens.
Piquenique... E a palavra gostosa se enrolou na língua de todos.
Uns diziam piquinico. E, em meio, estava o Nicolino organizando,
inscrevendo gente: - Quem quisé í no trem, paga só 80. De ônibo
é 100. Começaram a fumegar as discussões. Chovem os palpites.
71
Trem é melhor... ônibus é “mais gozado”... Os contramestres não iam
lá se misturar. Iam mesmo de “limãozinha”. (MOLES, s/d, p. 20).
Sem dúvida que o sistema de transportes urbanos na cidade de São Paulo formado pelas frotas de bondes e ônibus era de fundamental importância para o funcionamento da cidade e que este sistema de transportes
detinha inúmeros problemas e geram grandes frustrações a população,
em suma para os mais pobres que residiam em lugares periféricos cada
vez mais distantes do centro da cidade. A antiga vila de costumes caipiras até o último quartel do século XIX se transforma na década de 1940
numa urbe que segue uma lógica do crescimento periférico num movimento caótico e de forma de espiral. Contudo, não devemos deixar de
relevar o sistema de trens da cidade na década de 1950. Em função do período de exploração do café, a malha ferroviária paulista recebeu muitos
investimentos ainda no final do século XIX. Isso possibilitou a construção de centenas de quilômetros de ferrovias que ligavam várias cidades
próximas de São Paulo como Jundiaí, Mogi das Cruzes, Paranapiacaba,
Santos, etc. Todas as linhas convergiam para a Estação da Luz.
O problema dos transportes era uma das questões mais latentes da cidade
no contexto do após-guerra. Adriano Luiz Duarte destaca e analisa fatos
relevantes como o dia de São Bartolomeu, em 1º de agosto de 1947, exatamente um mês após a criação da Companhia Municipal de Transportes
Coletivos – CMTC, quando a população enfurecida com os aumentos nos
preços das tarifas, as péssimas condições de conservação dos ônibus
que serviam as linhas mais utilizadas pela população mais necessitada,
a escassez do número de ônibus disponíveis, o tempo desgastante que
levavam os bondes e os ônibus para passar no ponto (algumas vezes os
usuários chegavam a esperar duas a três horas para passar um ônibus ou
bonde) e a sua invariável super lotação, consagrou de maneira caótica a
insatisfação popular através de motins em vários pontos e terminais de
ônibus, com vários ônibus incendiados. (DUARTE, 2002, s/p.).
72
O objetivo desta pesquisa não é estudar esta revolta popular, mas procurar contextualizar os problemas que afligiam a cidade entre os anos
do após-guerra que estavam ligados aos momentos de trabalho e direito
ao lazer. Como o problema dos transportes urbanos ressaltava diante da
realidade de crescimento periférico e mobilidade urbana casa-trabalho e
trabalho-casa, e, também a exclusão de muitos do direito à cidade, procurei concentrar minha análise, neste momento, a uma crônica que trata diretamente do tema relacionado aos transportes. No texto “Bonde quando
morre vira anjo?”, também uma crônica publicada no livro “Piquenique
Classe C”, de Osvaldo Moles, podemos observar que o autor descreve
um bonde antropomorfizado, que cria vida na condição de personagem.
Ele pensa na sua condição metafísica. Em termos epistemológicos, a personagem legitima a estrutura imaginária da ficção, conforme sugere o
crítico Anatol Rosenfeld. A linguagem pode transformar a descrição de
uma experiência e gerar sucessivas transformações interpretativas. O
pensador alerta que nas narrativas tudo aparece antropomorfizado, pois
o homem é o único ente que não se situa somente no tempo, mas que é
essencialmente o tempo. (ROSENFELD, 2005, p. 28).
E – ai de mim – estava esperando o bonde. O bonde das Perdizes é
um exagêro metafísico. Artístico bonde, rigorosamente abstracionista.
Mas eu sou daquêles que acreditam. Tenho fé no bonde das Perdizes.
Muitos dizem que não existe. Mas minha crença é inabalável. Já, de
madrugada, conversei com esse bonde. Que diálogos travamos! Êle
sustentava que, um dia os bondes se revoltariam e deixariam de
ser robôs caminhando pelo triste destino das paralelas que nunca
se encontram. E dizia, coitado, que pretendia suicidar-se assim
que encontrasse uma chave de parafusos. (MOLES, s/d, p. 126).
Osvaldo Moles dá à este personagem itinerante uma vida. Um bonde
que possui vida. Mas, que já está à beira da morte. Uma vida ultrapassada, opiniões mais pessimistas, deprimido com sua condição de escravo
robótico dos trilhos que o fazem repetir sua vida toda o mesmo caminho.
Um dos papéis do personagem é trazer à evidência de pensamento tudo
73
o que está embaralhado pela percepção do cotidiano. Ainda conforme
Anatol Rosenfeld, uma das funções da literatura se dá pela sua possibilidade de afastar a estesia humana do mundo real e considera-la no
mundo do simbólico, o que ajuda o humano a entender sua própria realidade. (ROSENFELD, 2005, p. 49). A substituição lenta e intermitente da
frota de ônibus e o respectivo e constante abandono da frota de bondes
não aconteceram de maneira tão simples e rápida. Assim como também
não foi norteada pelas necessidades logísticas por demanda de transporte urbano público. Este crescimento esteve atrelado a um conjunto de
processos de loteamento dos bairros e interesses de exploração de linhas
de transporte público seja pela Light and Power Company Limited, seja
pela CMTC, e, a especulação imobiliária controlada por máfias e cartéis
políticos.
As classes populares, que dependiam das linhas de transporte público
para trabalhar diariamente sempre reclamavam das péssimas condições
dos ônibus, dos trens e dos preços das tarifas. Ainda segundo Adriano
Luiz Duarte, em 1947, do total de usuários do transporte público aproximadamente 35% eram transportados em ônibus e os 65% restantes viajavam em bondes e lotações. (DUARTE, 2002, p. 54). Na época, a CMTC
informava que a frota de transporte público oficial era formada por 600
ônibus e 550 bondes. Estes dados foram expostos no momentos em que
se contabilizavam os estragos feitos pela revolta popular da sexta-feira, 1º
de agosto de 1947. Segundo assessoria da empresa, que foi bem distinta
dos dados que apareceram nos jornais Folha da Manhã e Correio Paulistano, foram danificados 78 ônibus e 242 bondes e totalmente queimados
16 ônibus e 5 bondes. Os veículos públicos e oficiais de transportes da
cidade transformaram-se em símbolos e expressão das insatisfações da
população que habitava as áreas periféricas de São Paulo em relação as
suas condições de vida. Portanto, os acontecimentos do 1º de agosto de
1947 foram manifestações políticas, mas não partidárias. Foi ato político
pelo “direito à cidade”.
74
Faço um comício no ponto. O bonde vem, meus senhores! Povo
de São Paulo, juro pela honestidade do prefeito que o bonde virá!
Vem, mas custa. Vai ver que anda por aí parado, discutindo com
algum ônibus independente sôbre o destino sempre fixo dos bondes.
Mas, o Perdizes é boêmio. Se lhe pagarem um copo de “tapa de
onça” êle cede sorrindo numa discussão. O Perdizes é cordato. Não
é intransigente, como os bondes udenistas da Avenida Angélica. É
cordato, mas não vem, e o que é que adianta ser cordato um bonde
que não concorda em aparecer? Se não teve por aí, por uma dessas
ladeiras, um enfarte do miocárdio, há de vir. É que o Perdizes é
bonde antigo. Está sofrendo de arteriosclerose e pára em tudo que é
boteco para tomar pinga com iodo. Muitos reclamam. Mas eu, que
sou amigo do Perdizes, trato de apaziguar os ânimos. Olhem eu
garanto. Eu garanto que êle vem mesmo. Juro pela minha saúde
que... Aí aparece uma senhora cheia de cestas. Cestas a tiracolo,
cestas nas mãos, cestas e cestas de gordura encintada. E naquela
voz de tisía importante informa: - Tá fartando fôlça pelétrica pôs
ládios da Barra Funda. Os bonde tá tudo estacionário na vinida
San João. É senhores... Esperar o bonde das Perdizes é a maneira
mais estranha de se tomar um táxi. (MOLES, s/d, p. 126 e 127).
Os costumes são um conjunto de hábitos definidos por um grupo social através da experiência e memória que gera sentido material para
estes costumes. Podemos observar os costumes boêmios do bonde das
Perdizes antropomorfizado. E quando pensamos em boemia, pensamos
em costumes alimentícios, uso de bebidas, fumos e outras substâncias
alteradoras de consciência. Boemia nos remete a música com voz etílica.
A serenata feita pelos cantores da madrugada ao som da cachaça. A cachaça que se mistura ao gosto da nicotina. E estas substâncias, somadas
a carne e a respiração, alimentavam os pagodes, os sambas de porão. Em
outras crônicas do autor a problemática dos transportes também se faz
presente. Muitas vezes é o bonde que aparece nos textos. O bonde das
Perdizes, no ponto de bonde da Rua Cardoso de Almeida, que sempre
demora a passar nas narrativas.
Que é que um marinheiro jurado vai ficar fazendo aqui nas filas do
Paissandú, comendo salsicha com batata nos chamados “Morre em
75
Pé” da Avenida São João? Se sou marinheiro jurado, vou para Castro
Alves de onde vejo a mais bela enseada do mundo e onde a moça
traz água de côco que eu não bebo. Mas também tem uma cachaça
que, quem bebe devagar, começa a ouvir o canto de Janaína. É um
canto tão doce, meu irmão, que as cocadas dos tabuleiros fogem
de vergonha. Sou marinheiro jurado e até logo para quem fica.Vou
perguntar a minha madrinha das águas porque é que eu, com diploma
de marujo, hei de continuar tanto tempo na esquina, plantado como
um pé de abacaxi, esperando o bonde das Perdizes. Já viu marinheiro
ancorado em ponto de bonde? E já fui informado de que na rua
Cardoso de Almeida não passa navio. (MOLES, s/d, p. 324 e 325).
Uma das peculiaridades do texto de Osvaldo Moles é não ser datado de
maneira formal. Porém, existem alguns indícios que podem nos levar a
entender a época que a narrativa trata: a comparação entre a viagem São
Paulo a Santos de trem e de ônibus, inclusive com referência ao preço
das passagens; a menção do personagem Paco, o espanhol anarco-sindicalista, ter vindo da guerra civil espanhola; o Nicolino, o Ciccillo que
representavam os imigrantes italianos que possuíam alguma hegemonia entre as comunidades de operários pela sua experiência em vários
ramos das indústrias em São Paulo; o japonês Tsumamoto, sobre as imigrações dos orientais dos quais, na década de 1950, muitos eram destinados para trabalho rural nas áreas do cinturão verde da cidade, e, a alusão
da chegada dos nordestinos através do personagem “baiano”.
O êxodo rural, os movimentos migratórios e a desigualdade social apenas recrudesceram no país e na capital paulista. Marcada pela alternância de políticos populistas e sua rede de funcionamento junto com as
comunidades de bairro, conforme informam os historiadores Adriano
Duarte e Paulo Fontes (DUARTE, 2013, s/p.). O populismo se torna a relação política preponderante no primeiro período democrático brasileiro,
especificamente na década de 1950. A partir da Constituição de 1946, a
mulher vota. Foi a época do populismo brasileiro e paulistano. Adhemar
de Barros, eleito governador em 1947 e sua esposa Leonor de Barros, que
fazia um trabalho político fundamental nos bairros periféricos. Foram
76
figuras que marcaram a política populista em São Paulo. Adhemar de
Barros tinha um programa de rádio chamado “Palestra ao Pé de Fogo”,
que utilizava linguagem simples e direta. Adhemar de Barros assumiu a
prefeitura de São Paulo no ano de 1957.
Assim como Jânio Quadros, eleito vereador em 1947, era apoiado pelo
Jornal A Hora. Crítico de Adhemar de Barros e da Light and Power Company Limited. Tinha uma imagem de político diferente, interessado nas
vidas e nos problemas das pessoas pobres. Fazia denúncias das condições precárias de trabalho nas indústrias paulistanas como Nitro Química, Celosul, Cimentos Perus e a Cia. Melhoramentos. No início da década
de 1950, como deputado, Jânio defendeu a greve dos ferroviários e dos
bancários. Foi eleito prefeito da capital em 1953.
Segundo Antonio Luigi Negro os migrantes nordestinos tiveram inclusive uma participação nas greves deste período. Esta participação fica
aparente, segundo o autor, nos registros de polícia do período. Os descendentes de imigrantes se consideravam superiores em relação aos
nordestinos. Neste período qualquer pessoa com aspecto nordestino ou
com pele mais escura era chamado de “baiano”. A “baianada” era considerada atrasada pelos seus costumes, hábitos, sotaques pelo preconceito
que sofriam por virem em sua maioria de áreas rurais paupérrimas dos
sertões das regiões Nordeste e Norte do Brasil, pelos seus costumes musicais e alimentícios. Entretanto podemos afirmar com tranquilidade que
a “baianada” construiu a cidade de São Paulo. Tanto trabalhando no setor das recém instaladas indústrias automobilísticas como na construção
civil e no comércio informal. O autor faz referência aos movimentos da
greve dos 400 mil em 17 de outubro de 1957.
À tarde, um segundo piquete parte da Vila Prudente. O investigador
no seu encalço presumiu que era integrado por nortistas, talvez por
causa do grande alarido com que fechavam as usinas ¾ que o policial
ouviu e notou. Nas ruas e nos ajuntamentos a liberdade, conquistada
mediante conflito, e com peculiares interjeições. (NEGRO, 2013, s/p)
77
Os imigrantes e seus descendentes estavam numa situação de domínio
do movimento sindical na década de 1950 na cidade. Sua hegemonia política vinha já de outros tempos em setores como têxtil, químico, moveleiro, metalúrgico e gráfico. Os nordestinos acabaram entrando em cena
por volta de 1955 com a instalação das indústrias automobilísticas que
abriram centenas de empregos e contratavam trabalhadores sem experiência industrial. A mão de obra nordestina também era mais barata por
isto. Num ambiente muitas vezes hostil, até com seguranças armados
como no caso da Laminação Nacional de Metais – LNM, os movimentos
de greve estavam quase que inviabilizados.
Uma das principais curiosidades da crônica “Piquenique Classe C” é que
o processo de identificação e vínculo que o leitor cria com os personagens se dá através do humor e da simplicidade como estes são apresentados. Além disto, o autor faz questão da importância de escrever sobre
as diferentes origens culturais de alguns dos personagens e como eles
aparecem num formato de convivência harmônica no texto. O Paco, entre outros, são descritos de maneira breve e marcante.
A Concettina ainda não conhece o mar, aliás, como a maioria. E
anda perguntando: - Escuita!... É grande mesmo? Vai como daqui
no Belém? O Ciccillo bota muita experiência na fisionomia e faz um
gesto largo com o indicador, rolando o braço na distância, mostrando
a imensidão. E assobia. O “baiano” da limpeza entende muito de
mar, que êle chama de óceano. Nasceu em Canavieiras, não sabe?
E desfila palavras de um mundo desconhecido: maresia... saveiro...
xaréu... Todo mundo não entende, mas pasma. (MOLES, s/d, p. 20 e 21)
A canção popular e a literatura são sem dúvida tipos de fontes ricas para
a historiografia. Podemos tentar sentir e deduzir formas de sociabilidades através da análise das sonoridades e informações contidas na música, nos roteiros de programas de rádio, nas crônicas e outras formas de
literatura. Estas formas de arte funcionam como fotografias ou cenários.
O programa de rádio, além dos escritos do roteiro, também possuem as
78
músicas incidentais que tem eficácia enorme para ambientar o ouvinte.
A música cria uma substância psíquica que libera sensações próprias de
abertura emotiva e cativante, persuasiva e sedutora. Cria um todo um
clima junto ao movimento sonoro da voz do narrador.
De volta ao programa “Nossa Cidade” continua falando sobre futebol na
Casa Verde, a criançada a brincar na rua de domingo, os pregões (vendedores ambulantes de rua que anunciam com diversos sotaques toda
sorte de produtos como guloseimas, peixe, verduras, jornais. A presença
física e sonora dos pregões também é citada por historiadores de áreas
distintas como Raquel Rolnik, história, arquitetura e urbanismo, e, José
Geraldo Vinci de Morais, história, cultura e música popular. Ambos em
temas distintos mas que se cruzam em alguns pontos como este da sinfonia dos pregões. Assim como a mesma melodia dos pregões também
foi comentada no depoimento Francisco Almeida Salles e do Prof. Ernani da Silva Bruno no qual tecem comentários de memórias sobre a
cidade de São Paulo na década de 1940. Falam dos trajes do imigrantes,
o Teatro São José, depois prédio da Light and Power Company Limited, o
Café Adamastor, as chácaras no Brás que foram sendo divididas em ruas.
As jardineiras e os bondes. Os ônibus de luxo a partir da década de 1930.
O circo. A presen�����������������������������������������������������
ça do circo. O palhaço Piolin,
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apoiado segundo os depoentes pelo pessoal de 1922. Como que o circo está ligada a cidade de
São Paulo com o circo no Largo do Payssandú. São Paulo que sempre foi
uma cidade de clima triste. Dos diversos cinemas. Dos refrescos Gasosa
e Guaraná e a partir de 1954, a Itubaína.
Provavelmente eles também estivessem se referindo as diversas atividades promovidas entre 1935 e 1936 pelo Departamento de Cultura, criado
em 1935 por Mario de Andrade. O Departamento de Cultura durou pouco tempo. Porém, foram tempos muito intensos. Foram criados o Coral
Paulistano, Biblioteca Circulante (ônibus-biblioteca), Parques Infantis, o
Quarteto de Cordas, a Sociedade de Etnografia e Folclore e a Discoteca Pública. Foi aberto o curso de Biblioteconomia, iniciado um acervo
79
iconográfico da cidade e a pesquisa sociológica. Foram inventados concurso de Mobília Proletária e o padrão da Língua Nacional Cantada. Foi
concedido apoio a Expedição Etnográfica de Lévi-Strauss e realizada a
Missão de Pesquisas Folclóricas. (CERQUEIRA, 2010, p. 3) Após o Golpe
do Estado Novo, Mário de Andrade é afastado do Departamento de Cultura e substituído por Francisco Patti.
O domingo na capital paulista continua no programa “Nossa Cidade”,
que também aponta as missas elegantes cantadas na Igreja de São Pedro,
a Basílica, os bairros de portões de ferro, os preparativos para o jogo do
“Parmera” contra o São Paulo, que os ingressos haviam acabado, mas o
jogo no rádio, e os fogos de artifício para soltar. No domingo, o mercado
só abre até o meio-dia, os açougues estão fechados, não é mais como no
tempo em que nada fechava na cidade. O autor faz referência ao slogan
de São Paulo, uma cidade feita para o trabalho e não para a diversão.
“São Paulo não tem onde se ir”. E várias vozes repetem esta frase.
No domingo, continua o narrador, os lugares para se ir são o Jóquei
Clube, o futebol, o Parque da Luz, o cinema, o Mus����������������������
eu do Ipiranga, o Horto Florestal, o Butantã, o passeio no centro da cidade, o pif paf, o buraco,
as matinês na gafieira. O Jardim da Luz, lugar para namorar e paquerar.
Os cisnes, os copos de leite, os beija-flores, os homens que passam olhando as mulheres. E ao fundo, o som da bandinha do Exército da Salvação.
Um homem de cor conta aos circunstantes quem era Jesus Cristo, numa
batalha contra o pecado. Na Cidade Jardim, os cavalos deveriam correr muito para satisfazer os apostadores grã-finos. Há até uma entrevista
com o jóquei chileno Luiz Gonzalez.
Conclusão
Estes textos de Osvaldo Moles publicados em Piquenique Classe C, assim como o programa “Nossa Cidade”, apresentam costumes musicais
e alimentícios da cidade de São Paulo nos anos 1950. Mostram impressões que o autor registrou do cotidiano deste ambiente urbano que não
80
para de recrudescer. Os fatos históricos apontados como o Dia de São
Bartolomeu, as políticas populistas, as greves, e o crescimento periférico
excluem do direito à cidade centenas de pessoas pobres. Fortalece as
máfias políticas. Uma cidade que cresce demais tende a ter sua história
apagada pelo próprio movimento de expansão, construção e reconstrução. Isto evidencia ainda mais a importância destes registros literários
para possibilitar que a história da cidade não seja olvidada completamente no movimento do progresso.
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82
Hardcore, sobriedade e direitos
dos animais: reflexões sobre as
relações entre produção musical,
veganismo e abstinência na
subcultura straightedge
Jhessica Reia
Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]
Resumo
Esse trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão sobre as relações existentes entre
a produção musical straightedge, a (não) ingestão de álcool e drogas e a alimentação vegana,
que acaba permeando todos os festivais chamados de Verdurada e a cena de hardcore punk
que os cerca. Straightedge é um movimento que teve início nos anos 1980, dissidente da cena
punk, que buscava um estilo de vida livre de álcool e drogas, por vezes associado também
ao veganismo, à militância política e ao sexo responsável. A pesquisa a ser apresentada tem
como referencial teórico os estudos culturais e a intersecção dos estudos de música e/como
comunicação. A base para a constituição desse trabalho é minha pesquisa de mestrado,
realizada entre 2011 e 2013; por isso, se apropria de alguns métodos utilizados para construir a
reflexão aqui proposta. Diante de tantas questões a serem sistematizadas e analisadas, optouse por realizar a pesquisa em duas partes distintas e complementares: uma de caráter teórico,
bibliográfico e documental; e outra caracterizada por um estudo empírico realizado através
de observação participante, da aplicação de questionários presenciais (durante os festivais)
e online (para membros da página da Verdurada no Facebook), de entrevistas qualitativas
com atores-chave (bandas, selos, coletivo organizador, frequentadores, etc.), e de netnografia
complementar. A partir de todo material coletado pode-se analisar melhor o papel que a
comida e a ausência da bebida (principalmente do álcool) exercem na produção musical
straightedge e na comunidade como um todo, adquirindo um caráter quase ritualístico de
interação pessoal, ao mesmo tempo em que é e um sinal de distinção e pertencimento ao grupo.
Palavras-chave
straightedge, sobriedade, veganismo, hardcore-punk, Verdurada
83
Introdução
O straightedge (ou sXE) é uma subcultura que surgiu no início dos anos
1980 nos Estados Unidos, em contraposição ao niilismo e aos excessos
da cena hardcore punk do período. Buscando a sobriedade a partir da
abstinência do consumo de álcool e drogas, consegue, há mais de três
décadas, combinar som agressivo e danças violentas com militância política. Além da sobriedade, são valores comuns na subcultura straightedge: o ativismo, o veganismo/vegetarianismo1 e o sexo responsável.
Chega ao Brasil pouco depois e tem na Verdurada sua maior expressão.
Parte-se do princípio de que o straightedge, no caso estudado, consiste
em uma subcultura (GELDER, 2005) de limites bem definidos, que se contrapõe (ao mesmo tempo em que se complementa) à cena de hardcore
punk paulistana. Desde 1996 o festival Verdurada agrega bandas de diferentes gêneros musicais, nacionais e internacionais, em um evento que
proíbe a entrada de álcool, cigarros e produtos de origem animal, ao mesmo tempo em que promove debates, palestras e exposições artísticas. O
público varia, mas sempre enche os espaços alocados para os shows. Ao
invés de cervejas no palco, se veem garrafas de água; as comidas vendidas são todas livres de crueldade. No fim das apresentações é distribuído
um jantar vegano gratuito.
Para além da música, os festivais trazem uma forte noção de pertencimento àqueles que aderem à filosofia de vida da sobriedade e do veganismo. Ali se identificam, se sentem respeitados, interagem com seus
pares, produzem e consomem música, dando a esses eventos um caráter
quase ritualístico de interação pessoal e de delineamento do que é estar
no mundo para as pessoas envolvidas.
1
Vegetarianismo é um regime alimentar que exclui da dieta todo tipo de carne (vaca, peixe,
frango, porco, frutos do mar, entre outros) e produtos derivados. O veganismo não consiste
apenas em um regime alimentar, estando mais próximo de uma filosofia de vida “livre de
crueldade” que luta pelos direitos dos animais ao boicotar todo tipo de produto que tenha
origem animal e seja testado em animais (alimentos, peças de vestuários, cosméticos, etc.),
além do boicote a eventos e estabelecimentos que explorem animais, como rodeios e circos.
84
Straightedge: música e sobriedade na cena hardcore punk
Historicamente, o straightedge esteve intimamente ligado ao hardcore
e punk, mas a partir da década de 1980 passa a se diferenciar através
de sua oposição (às vezes militante) contra o uso de drogas e álcool, assim como das práticas de sexo ditas promíscuas. Com o passar dos anos,
também ficaram conhecidos pelo engajamento político e pelo estilo de
vida vegano/vegetariano contrários às formas de exploração animal.
Para Wood (2006: 6-7), que estudou a subcultura nos Estados Unidos da
América – onde surge primeiramente o straightedge –, esse meio é caracterizado como predominantemente masculino, bastante jovem (poucas pessoas acima dos 30 anos), característico de centros urbanos, e um
fenômeno de pessoas de classe média, caucasianas. Surge no início da
década de 1980 em Washington D.C., tendo como precursora a banda
Minor Threat, de Ian MacKaye – que passava através das músicas suas
percepções e escolhas pessoais em relação ao uso de álcool e drogas,
mobilizando uma massa crítica na cena punk estadunidense. Todos os
autores que se dedicaram a estudar essa subcultura acreditam, através
de suas pesquisas e observações, que tanto a cena musical quanto a música em si são os pontos principais da subcultura straightedge:
Performances musicais permitem aos straightedge visitar uns aos
outros, formar novos laços de redes, ouvir música straightedge,
pogar e dar mosh, e comprar mercadorias, como CD’s, discos
e camisetas (…). Assim como shows e discos disponíveis
comercialmente, “transmissores culturais” cruciais tais como
fanzines/revistas e sites straightedge ajudam a unir a cultura
straightedge nacional e internacionalmente. (WOOD, 2006: 9)
Um dos principais símbolos da cultura straightedge é a letra X, ou objetos dispostos de forma a parecer um X. Vários autores discutem a origem da conexão entre o símbolo X e a subcultura straightedge; o próprio
MacKaye explica que essa conexão surgiu em Washington D.C., em sua
cena hardcore punk, na década de 1980: o X era uma marcação feita nas
85
mãos de menores de idade para que eles pudessem ser admitidos em
shows que ocorriam em lugares que comercializavam bebida alcoólica
(WOOD, 2006, 115-116). Assim sendo, o X não surge como um símbolo
próprio do movimento straightedge, mas como um elemento prático de
diferenciação para os menores; ao mesmo tempo, o símbolo ajudava os
donos desses lugares a não infringirem nenhuma lei local. Aos poucos,
o X assume outros níveis de significância, sendo que mesmo o pessoal
maior de idade continuava indo aos shows com um X marcado na mão,
para demonstrar solidariedade ao conceito e à escolha dos que não consomem álcool. A prática de marcar o X na mão acabou popularizada pela
capa do disco Minor Disturbance, do Teen Idles, em 1980 (HAENFLER,
2009: 7-8). Mesmo que tenha surgido a partir do desejo de adolescentes
de verem suas bandas favoritas tocarem, o movimento straightedge aparece primeiramente como resposta às tendências niilistas do ‘live fast,
die young’ (‘viva rápido, morra jovem’ em tradução livre), muito difundidas na cena punk até então:
Os jovens que formariam a emergente cena sXe apreciavam a
mentalidade de “questione tudo” do punk, sua energia crua, estilo
agressivo e atitude faça-você-mesmo, mas não se atraíam pelo
hedonismo da cena, nem pelo mantra “sem futuro”. Os fundadores
do straightedge adotavam uma ideologia de “viver limpo”, se
abstendo de álcool, tabaco, drogas ilícitas e sexo promíscuo. Os
primeiros jovens sXe viam a rebelião auto-indulgente do punk
como uma ausência de rebelião verdadeira, sugerindo que, em
muitas formas, os punks reforçavam o estilo de vida intoxicado do
mainstream, disfarçados com moicanos e jaquetas de couro. Para
muitos garotos sXe, estar limpo e sóbrio era a expressão última
do ethos punk, um ato de resistência que desafiava tanto a cultura
mainstream adulta quanto a jovem. (HAENFLER, 2009: 8-9)
O sucesso da canção “Straight Edge”, da banda Minor Threat, no início
da década de 1980, mostra a ampla adesão de jovens aos ideais proferidos por Ian MacKaye, e segundo relatos coletados por Wood (2006: 98),
86
já havia um descontentamento de jovens com a cena punk, principalmente em relação ao niilismo e ao consumo de álcool e drogas:
I’m a person just like you / But I’ve got better things to do /
Than sit around and fuck my head / Hang out with the living
dead / Snort white shit up my nose / Pass out at the shows / I
don’t even think about speed / That’s something I just don’t
need / I’VE GOT STRAIGHT EDGE 2 (MINOR THREAT, 1981)
A música acabou sendo propulsora do movimento straightedge, ao falar
que existem coisas melhores a se fazer do que se drogar, abarcando um
sentimento já latente na cena. Wood (2006) acredita que antes que MacKaye articulasse formalmente o conceito de straightedge, já havia sentimentos desse tipo no ethos do punk americano; a música “Straight Edge”
acaba por ser a ignição que faltava nesse cenário e o transforma em um
movimento; a partir desse momento, diversos punks descontentes com
os valores da cena se apropriam desse conceito e o utilizam como um
meio de rearticular o significado de punk e validar/contestar a autenticidade do que é ser um punk rocker (WOOD, 2006: 99-100).
De certa forma, além de surgir como uma oposição aos valores vigentes na cena punk, o straightedge também se coloca como resistência ao
uso de drogas e álcool pela cultura jovem mainstream. Muitos dos entrevistados por Wood (2006), incluindo MacKaye, relatam sua dificuldade
em se inserir em grupos juvenis das escolas que frequentavam, por não
querer incorporar o hábito de consumir drogas e álcool às suas vidas. Há
uma ampla discussão sobre a necessidade dos jovens em fazer parte de
grupos específicos, de se encaixar nos padrões esperados por seus pares,
além da imagem compartilhada por todos de que beber e se drogar é
como um ritual de passagem e hábitos a serem adquiridos a fim de en2
Eu sou uma pessoa como você / Mas eu tenho coisas melhores pra fazer / Do que ficar por aí
e ferrar minha cabeça / Sair por aí com os mortos vivos / Cheirar merda branca pelo nariz /
Apagar nos shows / Eu nem penso sobre anfetamina / Isso é algo que eu simplesmente não
preciso / EU TENHO O STRAIGHT EDGE.
87
trar na vida adulta e se manter dentro do comportamento esperado pelos
demais, podendo assim ser um integrante do grupo (WOOD, 2006: 101).
Portanto, a aversão a essa cultura jovem preponderante acaba sendo um
fator que impulsiona adolescentes a seguirem os valores straightedge.
Para algumas pessoas, estar fora dessa cultura hegemônica fazia com
que se sentissem alienados ou excluídos pelos seus pares, mas o conceito de straightedge vem dar respaldo às suas escolhas, um sentido no
qual se apoiar, e certa dignidade para seu estilo de vida.
Entretanto, há um lado desse cenário pouco discutido: ao mesmo tempo em que resiste à cultura mainstream que a cerca, toda subcultura
straightedge também recebe reforço positivo (positive reinforcement) de
outros fenômenos culturais externos. O mais evidente deles é a coincidência temporal entre a emergência e o desenvolvimento da subcultura
straightedge e a política de “Guerra às drogas” (WOOD, 2006: 103) realizada pelo governo estadunidense no início da década de 1980. Segundo
Wood (2006), mesmo com estudos mostrando que o consumo de drogas era relativamente menor nos anos 1980 em relação aos anos 1970,
a política dos Estados Unidos (representada principalmente por Ronald
Reagan) reforçou a ideia de combate ao consumo ilegal de drogas no
país, que logo se materializou em leis e enforcement. Esses sentimentos
tão publicizados e persuasivos acabaram influenciando outras esferas,
como a subcultura straightedge. De acordo com Wood (2006), as semelhanças entre essas duas formas culturais ficam ainda mais evidentes
ao se comparar o discurso de combate às drogas com o conteúdo de
letras straightedge do período; ambos os discursos retratam drogas, usuários e traficantes como ameaças ao tecido moral e social do país (WOOD,
2006: 106-107). E ao mesmo tempo em que o combate às drogas na cultura mainstream colocava em pauta um “endurecimento contra o crime”
realizado pelos envolvidos com o tema, alguns elementos da subcultura straightedge também exteriorizavam uma violência extrema contra
aqueles que de alguma forma se envolvessem com drogas. É preciso salientar que esse cenário de combate às drogas não criou o straightedge,
88
nem foi um dos alicerces do movimento; na verdade, a dinâmica desse
período e de seus ideais serviu como um ambiente de apoio para que
o fenômeno florescesse e despertasse em muitos jovens a consciência
sobre os problemas relacionados ao consumo de drogas ilícitas (WOOD,
2006: 107). Era uma campanha tão permeada nos meios de comunicação
da época, que seria difícil que muitos dos jovens não absorvessem ao
menos fragmentos da retórica difundida.
Dessa forma, o tema recorrente de drogas nas letras das músicas straightedge, assim como o aparecimento do chamado hardline3 no fim da
década de 1980 pode pelo menos refletir parcialmente a influência desse
ethos cultural de combate às drogas criado pelo governo. Ao mesmo
tempo, é importante notar que a subcultura manteve certo nível de diferenciação, como por exemplo, incluindo substâncias legais em sua concepção de drogas e ao usar violência ilegal para combater aqueles tidos
como inimigos (WOOD, 2006: 110-111).
Haenfler (2009) destaca que o âmago da identidade straightedge sempre
esteve na abstinência de álcool, nicotina e drogas ilegais, mas ao redor
do mundo e dentro das próprias cenas existem variações consideráveis
sobre essas interpretações e até que ponto vai a abstinência e o “viver
limpo”. Por exemplo, existem discussões sobre o consumo de cafeína, o
uso de produtos de origem animal, e a conduta sexual das pessoas. Da
mesma forma, a política dentro desse contexto varia muito, indo da extrema esquerda a um conservadorismo exacerbado, passando pelo anarquismo. Algumas das críticas mais comuns ao straightedge se dirigem
ao seu radicalismo (para qualquer um dos lados), à predominância masculina, ao comportamento violento, e ainda, à intolerância e inabilidade
em desgrudar seus princípios de sobriedade do discurso puritano e moralista (KUHN, 2010, p.14). Mas dentre essa realidade, surgiram inúmeros
3
São chamados de hardline os militantes straightedgers que pregam as regras da sobriedade
como estilo de vida a ser seguido e que muitas vezes usam a violência para hostilizar aqueles
que “saíam da linha” ou se protavam como “inimigos”.
89
exemplos de straightedgers coerentes, ativistas e positivos, lutando por
comunidades mais igualitárias.
Valores centrais e a relação com a bebida e a comida
Muitos autores destacam os valores centrais do straightedge, e Haenfler
(2009: 35-37) é um dos que melhor sistematiza posicionamentos e ideias
que são encontrados em subculturas sXe – pois apesar das tendências
irem e voltarem rapidamente entre os jovens, é fácil identificar alguns
princípios que sobrevivem ao passar do tempo e à localização geográfica. Deve-se, contudo, levar em conta que mesmo dentro da de uma cena
os valores são diferentes, já que os indivíduos tem interpretações diferentes do que é ser straightedge. Alguns valores transpassam essas diferenças, como o “Viver positivamente/limpo”. Esse é certamente o valor
central do straightedge, sendo que uma vida “limpa”, ou seja, sem o uso
de drogas (lícitas e ilícitas) é o que fundamenta uma vida positiva. O “viver positivamente” inclui o questionamento e a resistência às normas da
sociedade, ter um ponto de vista otimista sobre a vida, tratar as pessoas
com respeito e dignidade, e agir para tornar o mundo um lugar melhor
(HAENFLER, 2009: 36-37). O principal argumento dos straightedgers é
que ninguém conseguirá questionar a sociedade dominante caso esteja
sob influência de drogas – e ao se questionar as convenções sociais, usar
essas substâncias já não faria mais sentido; se recusar a usar drogas tem
muitos significados entre os indivíduos sXe, que inclui purificação, autocontrole, ou mesmo não querer seguir padrões de uso dessas substâncias presentes em suas famílias (HAENFLER, 2009: 36-37).
Muitos straightedgers, principalmente as garotas, se sentem empoderados e se alegram do fato de que nunca acordarão depois de uma noite de
bebedeira sem saber o que aconteceu, ou quem é a pessoa dormindo ao
lado. De um modo geral, a visão sXe sobre a abstinência se coloca como
um desafio coletivo, uma vez que o grupo oferece meios visíveis de se se-
90
parar da cultura jovem hegemônica, e de outras subculturas (HAENFLER,
2009: 36-38).
Outro valor central é o “Para a vida toda” (True Till Death), que significa
que o compromisso de viver limpo e positivamente é feito para toda a
vida, sendo que muitos tratam a abstinência e a adoção de uma identidade sXe como um voto sagrado ou uma promessa – fazendo poucas
exceções à essa regra (HAENFLER, 2009: 40). Entretanto, de acordo com
Haenfler, mesmo com as promessas de “stay true till death” (seja verdadeiro até a morte), são poucos os straightedgers que conseguem manter a
identidade após os vinte anos de idade. Quando essas pessoas começam
a beber, fumar ou usar drogas são tratados como “vendidos” (sellouts) ou
como alguém que “caiu” (HAENFLER, 2009: 40) – e são vistos com desapontamento e/ou desprezo por aqueles que mantém seu posicionamento
livre de drogas.
Também vale ressaltar o “Envolvimento em mudanças sociais” (social
change) como um valor central. Straightedgers acabam se envolvendo
em uma ampla variedade de causas sociais, por mais que muitos deles
acreditem que agir por mudanças sociais não seja um pré-requisito para
ser sXe – muitos veem esse envolvimento como uma evolução natural de
viver limpo, já que a mente das pessoas fica aberta aos problemas que as
cercam. É também considerável, principalmente na cena brasileira, o envolvimento das pessoas com causas sociais e lutas políticas (HAENFLER,
2009: 51). Por exemplo, o veganismo como instrumento de transformação social foi amplamente difundido, particularmente por bandas como
Earth Crisis, e acabaram ganhando inúmeros adeptos dentro do sXe:
Em meados e final dos anos 1980, o sXe tornou-se mais
preocupado com os direitos dos animais e as causas ambientais.
Líderes influentes em algumas bandas clamaram por um fim da
crueldade contra animais e por uma percepção geral para a ecodestruição (...). O veganismo tornou-se uma parte significativa
do sXe no final dos anos 1990, quando muitos straightedgers
passaram a se importar tanto quanto se importavam com a
91
libertação da influência das drogas e do álcool. Muitos sXe vegans
passaram a se identificar como ‘vegan straightedge” e algumas
bandas passaram a se identificar como ‘vegan straightedge’, ao
invés de simplesmente straightedge. (HAENFLER, 2009: 53)
Alguns straightedgers se envolviam em outras causas sociais, e organizavam shows, doações de alimentos e dinheiros, assim como participavam
de protestos – com destaque para os protestos contra o Banco Mundial
e o Fundo Monetário Internacional entre os anos 1999-2000. De acordo
com Haenfler (2009), straghtedgers escolhem aplicar seus princípios na
vida cotidiana, ao invés de se engajar em movimentos políticos mais institucionalizados (como partidos, petições e desobediência civil), e nas
palavras do autor, no movimento straightedge: ‘the personal is political’
(“o pessoal é político, em tradução livre) (HAENFLER, 2009: 56).
Além dos valores centrais do sXe, existem outros pontos que estão intimamente ligados à subcultura – em umas cenas mais do que em outras.
Um grande exemplo de princípio amplamente difundido, o do-it-yourself
(DIY), que reflete a busca por autonomia dos jovens, assim como a intenção de evitar fazer música orientada pelo lucro. Dessa maneira optam
por promover suas bandas, shows, e discos por eles mesmos ou através
de companhias muito pequenas, tentando não se vender de forma alguma (HAENFLER, 2009:24). No Brasil, veganismo e DIY são dois valores
fundamentais da subcultura straightedge.
Verdurada e o straightedge no Brasil
Pouco tempo depois de seu surgimento, o straightedge se espalhou por
vários lugares do mundo, tendo sua primeira referência no Brasil em 1982,
com o lançamento do primeiro disco de punk, intitulado Grito Suburbano.
São Paulo possui uma das maiores cenas de hardcore punk do mundo e
com o aparecimento da subcultura straightedge nos anos 1980 vem tendo um papel de destaque no cenário internacional, principalmente com
a Verdurada – festival straightedge organizado pelo Coletivo homônimo,
92
acontecendo periodicamente desde 1996. A Verdurada consiste em um
festival com apresentação de bandas (em sua maioria de hardcore punk)
e palestras sobre assuntos políticos, além de oficinas, debates, exposição
de vídeos e de arte de conteúdo político e dito divergente. Ao fim de
todos os shows é distribuído um jantar vegano gratuito. Esse coletivo
é tido como o mais relevantes do DIY brasileiro, e um dos que mais se
destacam no mundo, por todas as suas particularidades: consegue unir
sob o mesmo grupo bandas de hardcore punk, veganos e straightedgers,
aliados à ética do DIY em todos os âmbitos possíveis. Este é o mais importante evento do calendário faça-você-mesmo brasileiro, que segundo
seus organizadores é um dos únicos festivais independentes no Brasil
que tem lotação esgotada. A organização do evento é totalmente feita
pela própria comunidade straightedge de São Paulo, que se encarrega
tanto do contato com as bandas e palestrantes, quanto da locação do espaço, contratação dos equipamentos de som e da divulgação. É proibida
a entrada com álcool, cigarros e produtos de origem animal. Segundo o
próprio coletivo, os objetivos de quem organiza a Verdurada são basicamente dois:
1. Mostrar que se pode fazer eventos exitosos sem o patrocínio de grandes empresas, nem divulgação paga na mídia;
2. Levar até o público a música feita pela juventude “raivosa” e as ideias
e opiniões de pensadores e ativistas divergentes da cultura mainstream.
Os festivais acontecem periodicamente, sem lugar fixo, mas sempre próximos ao transporte público da cidade, para que todos possam usufruir
dele – e para isso, os shows são ao longo da tarde e até às 22h, pois assim
os frequentadores tem a possibilidade de ir embora de metrô e ônibus.
Além dos shows, existe a venda de comida vegana ao longo do dia; também vale destacar a presença de diversos selos DIY e independentes, que
montam bancas dentro do evento para vender seus produtos, que vão
desde discos a camisetas e outros acessórios. Esses festivais congregam
inúmeras bandas, sendo que a maior parte delas está à margem do que
93
usualmente se chama de independente e do processo de empreendedorismo no mercado da música e seus novos modelos de negócio. Muitas
delas simplesmente não desejam se integrar ao mercado da música e à
comercialização em maior escala do que produzem.
Tanto o veganismo quanto a sobriedade estão presentes no cotidiano da
subcultura straightedge, seja nos hábitos, nos lugares que frequentam,
ou mesmo nas letras das músicas de bandas ligadas à cena, como Still X
Strong:
Why can´t you be vegan? / Yeah, right / V-E-G-A-N, VEGAN! / This is what I live, this
is what I say! / Cryin’ won’t help, praying won’t do no good! / To those that are
suffering, tortured and caged / Exactly the point your life can´t reach / This is
the place where we separate4 (STILL X STRONG - Why can’t you be vegan?)
A comida vegana é um dos elementos principais da Verdurada, e tanto
os cartazes quanto a divulgação do festival por meios eletrônicos sempre
salientam que não é permitida a entrada de produtos com origem animal. Se engana quem pensa, de maneira bastante ingênua, que somente
se consomem alimentos saudáveis, como verduras, saladas e frutas nesse evento – alusão feita geralmente em reportagens da mídia tradicional.
Na verdade, como já havia notado Bittencourt (2011), os alimentos comercializados costumam ser calóricos. Por exemplo, na Verdurada do dia 29
de janeiro de 2012, o cardápio era o seguinte: hambúrguer de soja, quibe,
coxinha de soja ou palmito, esfirra de soja, pão de queijo (sem queijo),
alfajores, palha italiana e pavê de amendoim. Para beber, água e Mupy5.
As opções veganas para alimentos que normalmente levam produtos de
origem animal tem aumentado bastante nos últimos anos, e na cidade
de São Paulo existe muita gente fazendo bolos, panetones, salgados para
4
Por que você não pode ser vegano? / Sim, certo. / V-E-G-A-N-O, VEGANO! / Isso é o que eu vivo,
isso é o que eu digo / Chorar não vai ajudar, rezar não fará nenhum bem! / Para aqueles que
estão sofrendo, torturados e enjaulados / Exatamente o ponto que sua vida não pode atingir /
Este é o ponto em que nos separamos.
5
Mupy é uma bebida à base de leite de soja, com diversos sabores.
94
festas, pizzas, e tudo mais que se pode imaginar, por encomenda. Algumas dessas pessoas acabam montando uma banquinha na Verdurada,
vendendo desde cupcakes à bolos e torta de jaca, sendo algo bastante
ligado ao DIY – a comida geralmente não é fornecida por nenhum buffet
ou restaurante, e sim pelas pessoas que se interessam em prepará-la e
cozinhá-la para levar no dia do evento.
A alimentação vegana e as novidades que às vezes aparecem na Verdurada acabam atraindo pessoas cuja principal motivação para ir é a
comida. A comida também representa, para muitos, um ato de interação
social e de afirmação de uma escolha de vida, e mesmo tendo o jantar no
final do evento, muitos acabam comendo todo tipo de doces e salgados
ao longo (ou no intervalo) das apresentações. Os preços dos produtos
vendidos são baixos, já que isso é uma regra para poder comercializar
produtos ali: preços populares. Os mesmos produtos vendidos em outros
estabelecimentos, como na Rua Augusta, costumam custar mais, quase
o dobro.
Os jovens compartilham uma ação que parece ser trivial – se alimentar
- mas que no fundo pauta a vida de todos que escolhem atrelar essa escolha à outras (como a de ser straightedge ou de se ligar aos grupos hare
krishna) e que implica uma ideia de resistência e mudança de mundo.
O jantar é outro momento de confraternização, em que as pessoas saíam
do último show da noite (às vezes saíam antes dele terminar) e faziam
uma fila na rua, em frente ao estabelecimento, para pegar o jantar. A comida consiste geralmente de legumes e grãos, servidos em embalagens
descartáveis, sendo preparada e distribuída pelos hare krishnas. Segundo Bittencourt, na primeira vez que pegou a fila do jantar de uma Verdurada:
Na fila, enquanto esperava a minha vez, observava atentamente
os jovens, suas expressões, as conversas, e a impressão que me
foi passada naquele instante era que as pessoas não estavam tão
interessadas na comida, mas sim no momento de encontro que
95
o jantar proporcionava. Como se mais gostoso do que saborear o
alimento oferecido, fosse sentar ao lado do amigo ou da amiga e
poder conversar entre uma colherada e outra, o jantar, dessa maneira,
aparecia como mediador de encontros. (BITTENCOURT, 2011, p. 199)
Bittecourt (2011) conta que quando fez sua pesquisa de campo, a comida
continuava sendo feita pelos hare krishnas, como no início da Verdurada.
O que observei, é que no espaço do Ego Club6, por exemplo, a comida
era servida na rua e não haviam muitas possibilidades para que os jovens sentassem – o que não impedia que eles se reunissem encostados
nas paredes ou em rodas próximas da mesa com as panelas para conversarem. Nem todos participavam do jantar (que geralmente acumulava
uma fila enorme para pegar a comida), mas era visível a importância
dessa experiência para os frequentadores que ficavam.
Em relação aos frequentadores, tentou-se abordar a percepção sobre o
veganismo na subcultura, considerado essencial pelos membros do coletivo e organizadores da Verdurada, que desde o princípio teve um claro
viés de proteção aos direitos animais – e não permite que se ingresse no
evento com produtos de origem animal. Pode-se constatar que a maior
parte das pessoas que frequentam a Verdurada possuem um entendimento significativo do que seria pertencer a esse grupo, apesar de quando perguntadas sobre a posição individual sobre o veganismo, a maior
parte dos respondentes não se considerar vegano.
Há um circuito de locais e estabelecimentos que oferecem comida e produtos veganos – onde é possível encontrar os straightedgers, para além
da Verdurada – como sorveterias, restaurantes, lanchonetes, galerias
(como a do Rock e a Nova Barão), entre outros; servem de pontos de encontro e de abastecedores de demandas específicas, como doces, creme
dental, livre de crueldade, livros e camisetas sobre veganismo, etc.
6
Espaço localizado na Rua Nestor Pestana, no centro de São Paulo, onde ocorreram diversas
Verduradas entre 2011 e 2012.
96
No que diz respeito à sobriedade, existe um desafio, muito sutil, sobre o
entendimento do que é ser straightedge hoje, no século XXI (mais de três
décadas após a música do Minor Threat e o início do movimento). Vale
a pena discutir um pouco a questão do que é ser straightedge para essas
pessoas e os princípios inclusos nessa auto-identificação, já que consiste
em um dos alicerces da Verdurada, junto ao veganismo. Ouvi bastante
que no Brasil ser straightedge é bem diferente de sê-lo em outros países, principalmente nos Estados Unidos: aqui, segundo os entrevistados,
houve uma cooptação dos ideais centrais do movimento e uma readaptação à realidade brasileira, dando um peso muito grande ao viés político
- e não ao mero consumo musical e à sobriedade. Essa questão também
está intimamente entrelaçada com a discussão sobre crescer e envelhecer dentro da subcultura dominada por jovens, ao mesmo tempo em que
a vida fora dela vai ganhando responsabilidades cada vez maiores.
Há sempre uma grande discussão em torno da durabilidade da identidade straightedge (que muitos acreditam não passar dos 21 anos de idade),
já que as pessoas crescem, ganham cada vez mais responsabilidades, começam a frequentar outros ambientes, trabalham, tem família e filhos, e
assim, aos poucos vão abandonando a cena hardcore e ocasionalmente
seu compromisso de não beber ou usar drogas. Contudo, nota-se que no
caso da Verdurada há muitas pessoas (principalmente no Coletivo) que
já passaram dos trinta anos de idade e continuam sendo straightedge e
ativamente envolvidos na cena, seja com a organização dos festivais ou
mesmo com bandas.
Conversando com as pessoas do Coletivo7, percebe-se certa uniformidade na percepção do que é ser straightedge e permanecer na cena, trabalhando ativamente por ela e organizando os festivais. Muitas pessoas citam problemas prévios com consumo de álcool e drogas, mas de
7
Procurou-se manter o anonimato dos entrevistados, aqui representados pelas suas iniciais.
As entrevistas foram conduzidas entre 2011 e 2013, na cidade de São Paulo, e as idades correspondem a idade da pessoa quando foi entrevistada.
97
qualquer forma é uma escolha individual que acaba tendo o respaldo
do grupo, e está, para eles, intimamente ligado à ideia de autonomia e
libertação:
Pra mim o SxE combina com a ideia do punk de faça-você-mesmo,
de não esperar nada do governo, nada pronto, ir atrás do que você
quer, que é possível fazer melhor do que isso; se desligar um pouco
do status quo, saber diferenciar o que a mídia fala, ter diferentes
pontos de vista, não ficar preso no que - não gosto dessa palavra - o
sistema cria, ter uma vida independente. Isso também faz parte da
minha visão de não usar drogas. Beber, por exemplo, é visto como
o caso mais exemplar de rito de passagem para o mundo adulto: se
você não bebe, não tá vivendo plenamente, não tá se divertindo, não é
adulto. (...) Eu não tô sustentando empresas gigantes, conglomerados
que fazem bebida alcoólica, que fazem cigarro. (D.M., 31 anos)
É uma escolha pessoal; não bebo, não fumo, não consumo drogas
legais ou ilegais. Pra mim, é uma escolha pessoal que faz bem pra
mim (...) Eu não acredito nessa forma de straightedge como Wolf Pack
ou uma matilha de lobos, todos juntos, irmanados. É até legal, eu não
vou negar, mas pra mim não funciona assim, é uma coisa individual,
na minha visão. É a maneira que escolhi viver, que me dá condições
de me sentir pleno. Eu detesto qualquer situação em que as pessoas
sejam colocadas como submissas às outras, e acho que se eu não
tiver controle sobre as minhas próprias vontades, então não tenho
controle sobre mim mesmo. Isso é o que me norteia. (M.F., 38 anos)
Para P.C. (34 anos), um dos motivos da popularidade do straightedge aqui
no Brasil em relação a outros países é seu surgimento quase repentino,
já que nos anos 1990 vieram várias bandas straightedge famosas que
conquistaram as pessoas com suas mensagens de viver sobriamente.
Trata-se de um meio vibrante e produtivo em que sempre tem algo acontecendo e que por sua trajetória, já permite que uma geração influencie
a outra, sem desaparecer ou decair – principalmente por causa do viés
político. Ele ainda acredita que um dos responsáveis por manter o straightedge consolidado no Brasil é a Verdurada, que passa uma sensação
98
de continuidade do movimento. Nesse contexto, ser straightedge é uma
forma de controle de si e de sua produção cultural, ao mesmo tempo em
que significa se opor à noção do álcool e da droga como objeto ligado à
rebeldia, e ao escapismo promovido por essas substâncias:
Sou SxE desde 95, faz 17 anos. É uma coisa muito simples, é a
versão do punk – sendo seco – e do hardcore que não usa drogas
e não bebe. E pra mim a ligação entre as duas coisas é que o punk
tem a ver com autonomia, com você ter controle direto sobre sua
produção cultural e o meio onde você produz. E de certa forma o
SxE é isso em relação ao modo de vida, ao corpo, ao seu “espirito”
(não no sentido metafísico), à sua vida de maneira geral. Outra coisa
importante pra mim no SxE é você desmitificar a questão da droga
como uma coisa que tem a ver com rebeldia, sabe? Você refutar o
clichê da droga ser sinônimo de liberdade e falar que por um motivo
ou outro você não gosta de se drogar ou beber, não faz você deixar
de ser punk, roqueiro, o que você quiser. O punk é uma coisa pra
você fazer suas próprias regras, acho que o ponto mais importante
é esse, e você não tem que seguir uma regra que diz que você tem
que se drogar ou qualquer outra coisa do tipo. Pra quem concorda
com Sxe, uma ótima maneira de seguir suas próprias regras é estar
sóbrio. (...) A gente faz um show que o foco não é vender nada, ou
em que as pessoas não vão pra se entorpecer e pra ficar fora de
si. É um evento em que as pessoas vão pra interagir umas com as
outras, ter uma experiência intensa do evento e da música em si. A
gente não tá la pra vender bebida, a gente tá la pela música mesmo,
e a socialização não é baseada em escapismo, é uma socialização
baseada em troca de experiências. É você tá la vivendo aquilo naquele
momento, intensamente, em contato com os outros – porque o mundo
que a gente vive atomiza o indivíduo e fazem as pessoas ficarem
isoladas, e o hardcore é um certo antídoto a isso. A droga e o álcool
dificultam um pouco essa ligação entre as pessoas. (P.C., 34 anos)
Esse trecho da entrevista traz à tona uma discussão sobre a sobriedade como forma de sentir o mundo de modo mais controlado, do show
ser uma troca de experiências, e de como as substâncias como álcool e
drogas dificultariam a interação humana nesses processos. Apesar da
escolha ser individual, a vivência do straightedge se dá coletivamente.
99
Para I.C (22 anos), não se trata de um estilo de vida – assim como visto
anteriormente, Ian MacKaye (KUHN, 2010) também acha que não escolheu ter um estilo de vida, ser straightedge seria a própria vida:
É você estar envolvido com punk e não precisar de nenhuma
substância, de nada que tire você do seu estado normal. E para mim
uma definição simples do SxE é um hardcore punk livre de drogas.
Eu não tenho um estilo de vida, as pessoas que bebem é q tem um
estilo de vida. Eu vivo normalmente porque eu não preciso disso,
não sinto essa vontade. Isso não me faz melhor do que ninguém e
não acho que não possa me relacionar com as pessoas por causa
disso. Eu vivo normal e me sinto bem por não consumir nada. Mas
é um lance pessoal. (…) Desde moleque eu nunca gostei. Eu já tive
muitos problemas com bebida em casa mesmo e sempre foi uma
coisa que abominei. (...) Conhecendo o SxE eu vi que aquilo era a
vertente do hardcore e punk que eu mais me identificava. Quando
vi a letra “Straight edge” do Minor Threat, falei: é assim que
acho legal e quero ser assim. Vejo isso como uma coisa positiva
pra mim; deixou de fazer parte de um grupo. (I.C., 22 anos)
Consideração final
Pode-se ver que o engajamento com a subcultura, organizando festivais,
cria vínculos mais duradouros entre as pessoas e com as atividades desenvolvidas, o comprometimento com o hardcore e com os valores straightedge acabam se prolongando para fora da cena e entram no cotidiano dessas pessoas. Na opinião dos entrevistados, os amigos feitos nesse
contexto acabam ganhando um peso muito grande na vida de cada um,
que cultivam as amizades feitas e continuam trabalhando para que a
Verdurada exista – acreditando que fazem algo que é bom não só pra
eles, mas para a comunidade. Além disso, tanto a sobriedade quanto o
veganismo estão intimamente ligados à produção musical straightedge
e às dinâmicas dos festivais, dando um caráter quase ritualístico à interação pessoal e agregando outras formas de viver e sentir tanto a música
quanto os shows.
100
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101
MINOR THREAT. In My Eyes. 1981. Dischord
Records, 7” EP, Estados Unidos.
MINOR THREAT. Out of Step. 1983. Dischord
Records, 12” EP, Estados Unidos.
MINOR THREAT. Minor threat. 1981. Dischord
Records, 7” EP, Estados Unidos.
STILL X STRONG. Awake and Disturbed.
2011. Seven Eight Life, EP, Brasil.
Filmografia
AMERICAN HARDCORE; Direcao: Paul
Rachman. United States of America:
Sony Pictures Home Entertainment,
2007 (100min), son, color.
BOTINADA: A origem do punk no Brasil;
Direcao: Gastao Moreira. Sao Paulo:
ST2 video, 2006 (110min), son, color.
102
O Yoga no ocidente: sonoridade,
alimentação e ritual
Julicristie M. Oliveira
Faculdade de Ciências Aplicadas, FCA/Unicamp
[email protected]
Resumo
Yoga é um substantivo masculino de origem sânscrita que significa união e trata da junção
do ser individual, fenomênico com o absoluto, atemporal. Segundo Patanjali, responsável pela
primeira sistematização sobre o tema, Yoga é a supressão dos movimentos da consciência. A
prática do Yoga no ocidente é tão plural quanto instigante, diferentes linhas são revisitadas
e ressignificadas. As ásanas, ou posturas, são as características mais marcantes e facilmente
associadas à prática corporal. Outras nuances, entretanto, são muitas vezes recorrentes: a
sonoridade e a alimentação. Músicas instrumentais, mantras, sons da natureza e outros
elementos criam uma atmosfera interiorizadora, um convite para se reduzir as oscilações
da mente, do (s)om ao silêncio. O Mantra é uma fórmula invocatória e sua repetição uma
prática meditativa. O som de om, ou aúm, sílaba mística, é uma ponte sonora que transcende
o fenomênico rumo ao atemporal. Ascese, alimentação vegetariana e outras discussões
sobre dietética criam uma atmosfera reflexiva, um convite para se pensar sobre o que se
come, das questões éticas à saúde. Ademais, em tempos de lightização da existência, dos
corpos e do comer, elaboram-se outras questões a serem ou não respondidas. E temos que
considerar que o Yoga no ocidente também tem seu ritual: não há uma boa sessão que
não se inicie com um chá quente na sala de espera, com uma musak ao fundo; transcorra
com suas ásanas, pranayamas, mudras, bandhas e kriyas, ao som de uma cítara; e não
termine com os yogins sentandos em padmasana, pronunciando repetidamente o om.
Palavras-chave
yoga, alimentação, música clássica, Índia
103
A Cultura Indiana: uma introdução
Na Cultura Indiana, as divindades representam o drama recorrente do
viver e do morrer. A partir de um campo de energia do som criador, surge
Shiva, o dançarino cósmico, que é a corporificação da luz sem dimensão
e, por meio de movimentos invisíveis, une tudo na vida, transformando-a
em fluxo de energia. Shiva, a luz, o céu, dança com Shakti, as trevas, a terra, fazendo surgir todos os tons, as cores e as formas. Com base na ideia
de um centro universal giratório que emite raios em todas as direções,
uma roda dançante, está inserida a imagem Shiva Nataraja, o dançarino.
De acordo com a mitologia, um demônio gigante em forma de elefante
se opôs a Shiva que o vence em um duelo de dança. A escultura clássica
deste deus o representa com oito braços, divididos em pares que afastam
a pele do elefante, exibem seu laço e foice, empunham os estandartes de
seu poder, seguram suas presas e seu tambor em forma de ampulheta
que emite o som da eterna transformação. Este som, como força cosmogênica, se assemelha ao éter, o quinto elemento. O fogo, por sua vez, é o
elemento da destruição, pois tudo o que foi criado não tem estabilidade,
mas o equilíbrio entre o som da criação e o fogo da destruição é mantido
(Wosien, 2004: 33-35).
O reino de Shiva, suspenso entre os dois mundos, situa-se no norte cósmico e, ao sair deste lugar, dirige-se para uma figueira e, sob ela, ensina
o Yoga, a Música e outras artes aos sábios. Nas ásanas do Yoga, no jugo
dos diferentes aspectos da consciência, a ideia é meditar sobre Shiva,
o deus, em jiva, o humano. Assim, Shiva é o caminho de domínio de
jiva, pois cada pessoa na essência da sua existência é Shiva, os pares
antagônicos são superados e o potencial espiritual do corpo é explorado.
O Shiva Mahakala, deus dos grandes ciclos do mundo, dança para salvar o universo, pois não se restringe à destruição do cosmos e promove
também sua renovação. Além deste, outro aspecto de Shiva, agora como
Shulapani, é mostrado todos os dias ao pôr do sol, no pico da montanha
Kailash do Himalaia, local onde terra e céu se encontram. Neste momen-
104
to, ele inicia lentamente uma dança e todos os demais deuses ficam ao
seu redor: Sarasvati, toca a vina, Indra, a flauta, Bhrama, marca o tempo
com o címbalo, Lakshmi, canta, Vishnu, toca o tambor. Todos os deuses
e todas as criaturas se reúnem ao pôr do sol para assistir a dança e ouvir
os sons divinos (Wosien, 2004: 35-39).
Há indícios que a Música Indiana seja uma das mais antigas manifestações culturais conhecidas. A sílaba sagrada om, ou aúm, já era entoada
na época em que o Sânscrito fora criado, cerca de 6000 a.C. Os Vedas,
livros sagrados escritos provavelmente entre 1500 e 2600 a.C., são até
hoje cantados em uma sequência de três notas que se repetem: ré, mi e fá.
Um destes livros sagrados, o Sama Veda, refere-se diretamente à música
e traz os fundamentos da arte vocal e nele estão registrados os cânticos
que constituem a base da Música Clássica Indiana. A importância deste
livro é tão marcante que Krishna, no Bhagavad Gita, diz: nos Vedas eu
sou o Sama Veda. Provavelmente, o primeiro tratado que faz referências
às notas, escalas e ritmos seja o Nathyasastra escrito por Bharata, entre
VI a.C. e II d.C. Nos Upanishades de 600 a.C. e no Mahabaharata de 500
a.C. a 200 d.C., alguns instrumentos musicais também são mencionados
(Marsicano, 2006: 15).
Até o século X, a Música Indiana era regida por uma única vertente, porém, após diversas invasões, houve a cisão em dois grandes sistemas: o
Carnático do sul e o Hindustani do norte. O Carnático é o sistema mais
tradicional e fiel às raízes, pois somente o norte da Índia fora invadido e,
mesmo durante o período de domínio britânico, nos séculos XIX e XX, o
sul preservou sua identidade cultural. Desta forma, a música Carnática,
marcada pela rigidez e sobriedade, permaneceu intocada, cultivada com
todo o cuidado nos templos, passada de geração em geração, conservando as 72 melas, escalas básicas, e os 36 talams, ciclos rítmicos. Seus
músicos interpretam melodias pré-fixadas, os kritis, e alterações e inovações são vistas com desconfiança. O norte é a essência da síntese entre
a tradição védica ancestral e as diversas culturas dos invasores turcos,
105
afegãos, persas, gregos, mongóis, fenícios, chineses, portugueses, holandeses, franceses e ingleses (Marsicano, 2006: 16).
A música Hindustani é mais flexível, permite improvisações, desenvolveu-se tanto nos santuários quanto nas cortes mongóis, incorpora inovações e transcriações. Os Ragas formam a base melódica da Música
Clássica Indiana e alguns deles, como o Bhairav, contam com mais de
20 formas diferentes de interpretação, pois cada linhagem musical, Gharana, os executa de forma particular, acrescentando ou omitindo notas.
O músico Hindustani improvisa com liberdade, de olhos cerrados, em
estado de integração, samadhi. Foi este tipo de música que adentrou o
Ocidente, especialmente, por meio de Ravi Shankar, Vilayat Khan e Nikhil Banerjee (Marsicano, 2006: 17).
Yoga é um substantivo masculino de origem sânscrita que significa união
e refere-se à junção do ser individual, fenomênico com o absoluto, atemporal. Na provável primeira sistematização sobre o tema no século II d.C.
denominada de Yoga-Sutras de Patanjali, defini-se Yoga como supressão dos movimentos da consciência, Yoga citta vrtti nirodhah (Gulmini,
2001: 115; Feuerstein, 2001: 273-275). Nesta composição ou conjunto de
aforismos, há o cuidado de se descrever os elementos mais importantes
da teoria e da prática do Raja Yoga, o Yoga Clássico. Um fio, sutra, dá ao
leitor a possibilidade de amarrar todas a ideias essenciais daquela escola
de pensamento. Consequentemente, é um auxiliar da memória, registra
expressões condensadas, pois seu estilo é visivelmente conciso, tendo
a função de reavivar certos conceitos complexos que foram aprendidos
oralmente e pela prática, sadhana (Feuerstein, 2001: 305).
A espiritualidade do Yoga Clássico de Patanjali é formada por oito membros, angas, quais sejam: refreamentos, yama, observâncias, niyama, postura, ásana, controle do alento, pranayama, bloqueio das interações, pratyahara, concentração, dharana, meditação, dhyana, integração, samadhi.
Há ainda os elementos dos refreamentos que congrega cinco obrigações
morais: inofensividade, ahimsa, veracidade, satya, abstinência de roubo,
106
asteya, não-cobiça, aparigraha, e continência, brahmacarya. Além dos
elementos das observâncias que dizem respeito à vida interior do yogin,
purificação, shauca, contentamento, samtosha, ascese, tapas, auto-estudo,
svadhyaya, e total consagração ao Senhor, ishvara-pranidhana (Gulmini,
2001: 115, 270-276; Feuerstein, 2001: 306-308).
Posteriormente à sistematização de Patanjali, houve o desenvolvimento
de outros aspectos concretizados no que se denomina de Hatha Yoga,
tendo como textos mais conhecidos e posteriores aos Yoga Sutras, o Hatha Pradipika, o Gheranda Samhita, o Goraksha Shataka e o Shiva Samhita. Grosso modo, pode-se dizer que o Hatha Yoga trata somente de
práticas corporais e que o Raja Yoga compreende aspectos que não envolvem sempre o corpo. Vale ressaltar que o Hatha Yoga não representa
uma cisão e sim uma complementação, pois as práticas corporais não
são desconectadas dos processos mentais. O objetivo do Hatha Yoga,
meio, é atingir o Raja Yoga, fim (Souto, 2009: 19-20, 31, 35-36).
Música, Alimentação e Yoga: intersecções
A arte vocal é considerada a primeira das artes Indianas, seguida pela
música instrumental e pela dança. Por meio destas artes, atinge-se a realização espiritual, mas o canto é considerado o melhor dos caminhos.
A Música Clássica Indiana não tem começo, meio ou fim, pois ela ecoa
continuamente no cosmos. Sua grande finalidade é o aprimoramento
da mente, pois é tida como uma das melhores formas de concentração.
Sua célula rítmica pode ser considerada também uma unidade de tempo,
mas não o do relógio, linear, racionalmente medido e sim um tempo orgânico, experienciado. Uma outra noção interessante da Música Clássica
Indiana, que é também fundamental no Yoga, é a do silêncio, khali, que
chega a ser tão importante quanto o próprio som (Marsicano, 2006: 65).
À semelhança da Música Clássica Indiana, por meio do Yoga, busca-se
a junção com o absoluto, tornando-se uma procura pessoal pelo sagrado,
a superação da dor associada fortemente à transitoriedade da existência.
107
Assim, o Yoga se vale de um elemento sonoro fundamental, o Mantra,
fórmula invocatória cuja repetição se constitui em prática meditativa. O
som de om, a sílaba mística, é uma ponte sonora que transcende o fenomênico rumo ao atemporal (Gulmini, 2001: 118, 165). Os cantores antigos
costumavam entoar uma única nota por cerca de meia hora e estudavam
minuciosamente seus efeitos sobre os centros do corpo, chakras. Não é
de se estranhar que, desde o período védico, os sons são usados como
terapia. Acredita-se que o Mantra harmoniza o pulsar cardíaco e o ritmo
respiratório por meio da vibração sonora que provoca. Ademais, o canto
e os instrumentos musicais enfeitiçam a serpente, kundalini, e as correntes de energia vital, prana, emitidas incorporam-se às dos receptores
(Marsicano, 2006: 66).
As aproximações culturais entre Brasil e a Índia podem ter raízes mais
profundas e antigas do que imaginamos. Há indícios que os portugueses
que aportaram em Calicute, Índia, no século XV, influenciaram a Música
Clássica Indiana, pois diversos Ragas foram criados a partir da essência da Música Renascentista e das antigas canções folclóricas portuguesas. Provavelmente, essas relações também incluem alguns ingredientes
culinários tidos como tipicamente brasileiros ou locais. Da Índia, recebemos como presente a banana, o coco, a manga, dentre outras frutas
(Marsicano, 2006: 83-84). Os centros geográficos primários e secundários de origem da banana incluem no Sul, Centro-sul e Sudeste do continente Asiático, e, por consequência, a Índia (Dias, 2011: 18). Para o coco,
existem diversas teorias, mas a hipótese mais aceita é que o coqueiro
seja do Sudeste Asiático, sendo levado desta região para a Índia, depois
para o Leste Africano, e daí, para as Américas (Aragão e col., 1999: 1). A
manga é originária da Índia, onde é cultivada há 4.000 anos, e Portugal
foi o primeiro país ocidental a conhecer esta fruta (Carvalho, Mendonça
& Reis, 2011: 54).
Em entrevista dada ao Programa Provocações em 20 de Março de 2012,
o citarista Alberto Marsicano comenta que na Cultura Indiana, por ser
108
una, as artes se irmanam: Música, Culinária, Arquitetura, dentre outras.
Os Ragas, por exemplo, tem sabores, cores e correspondem a períodos
do dia. Há Raga com gosto de coco, de manga. Entrar em contato com
uma das artes é se deparar com as demais, pois trata-se de uma cultura
sinestésica (Marsicano, 2012).
Nos Yoga-Sutras de Patanjali, não há uma menção direta sobre questões
dietéticas ou alimentares, mas como já discutido anteriormente, estes aforismos são concisos e seus comentadores descrevem e aprofundam certas temas que envolvem estes aspectos. Assim, exalta-se, nas entrelinhas,
a ascese, tapas, um dos cinco elementos que constituem as observâncias,
niyama, o segundo componente do Raja Yoga. Neste caso, não chega a
enfatizar a ausência de alimentação ou jejum, como praticam membros
dos grupos acéticos mais radicais. Seus comentadores indicam que o
seguimento de dietas é uma forma de desenvolvimento da força de vontade e da disciplina, por exemplo (Gulmini, 2001: 258-259). Em complementação ao Raja Yoga, os principais livros de Hatha Yoga trazem uma
série de recomendações dietéticas. No Gheranda Samhita, a descrição
de regras e restrições alimentares traz um lista frutas e hortaliças que é
ainda mais elaborada do que a descrita no Hatha Pradipika. O conceito
de dieta moderada, mitahara, engloba a ingestão com ânimo piedoso de
alimento lubrificante, doce, nutritivo, agradável, que deve conter leite ou
derivados e ocupar três quartos da capacidade estomacal. Os excessos
são contraindicados, assim como alimentos amargos, ácidos, picantes,
salgados, secos e requentados. Não se recomenda verduras, óleo, álcool,
peixes e carnes em abundância (Souto, 2009: 82). Ademais, pode-se se
somar à noção de mitahara uma relação com a abstinência de roubo,
pois excessos alimentares são formas de apoderar-se do que também é
dos outros seres, da natureza (Feuerstein, 2001: 307).
109
Yoga e qualidade de vida contemporânea:
sonoridade (silêncio) e alimentação
A prática do Yoga no ocidente é tão plural quanto instigante, diferentes
linhas são revisitadas e ressignificadas. As posturas, ásanas, são as características mais marcantes e facilmente associadas à prática corporal.
Atualmente no Brasil, há um grande número de associações e linhagens
do Yoga. Vale lembrar que a maior parte dos professores se autodenominam instrutores. Dificilmente alguém se autointitula mestre de Yoga. À
semelhança, é raro um praticante se referir a si próprio como yogin. As
práticas são oferecidas em academias de ginástica, em casas especializadas, nos domicílios dos instrutores ou dos praticantes que contratam
aulas particulares. Ademais, voluntários encampam os mais diferentes
tipos de projetos: aulas em casas de repouso, centros comunitários, entidades de assistência social, abrigos, fundações, presídios, parques públicos, dentre outros. Há também os praticantes solitários que, após um
primeiro contato com o Yoga, por meio de cursos, workshops, vivências,
retiros ou aulas com um instrutor, aprendem os elementos essenciais
para planejarem sua própria prática. Há também uma gama imensa de
livros, CDs, DVDs com receitas e programas para os mais diferentes públicos, com diversos graus de familiarização com a prática, de inciantes a
avançados. Porém, é inegável, que essa abundância de produtos do Yoga
é majoritariamente destinada às mulheres.
Em relação ao tempo certo da aula, elas são planejadas para durarem cerca de 1:00h, raramente chegam a 1:30h. Coerentemente, muitos CDs com
Músicas de Yoga duram de 50min a pouco mais de 1:00h. O tempo do
relógio é o hegemônico. A divisão interna dos minutos varia de acordo
com o instrutor e os praticantes, mas, em geral, as sessões começam com
as posturas, ásanas, passando para os exercícios respiratórios, pranayamas, e raramente incluem os gestos das mãos, mudras, travas, bandhas,
processos de purificação interna, kriyas, bem como um tempo para exercícios de concentração, pratyahara, meditativos ou a própria meditação,
110
dhyana. O relaxamento realizado com os praticantes em decúbito dorsal,
shavasana, são bem comuns e, provavelmente, o momento mais esperado da aula, o alívio em tempos (pós)modernos.
No Ocidente, a busca pelo Yoga é, basicamente, a busca pela qualidade
de vida e a redução do estresse. Em algumas práticas, especialmente as
realizadas em casas especializadas, a meditação, dhyana, tem um lugar
especial, com um tempo, preparo cuidadoso e direcionamento específico. Em geral, a importância dada ao processo de interiorização, varia de
acordo com as expectativas do público-alvo e a formação do instrutor.
Algumas práticas são mais vigorosas fisicamente, se aproximando muito
das aulas de ginástica. Outras privilegiam a conexão com a tradição do
Yoga, buscando a supressão dos movimentos da consciência, o aprimoramento da concentração, pratyahara, meditação, dhyana, a união com o
absoluto, a integração, o samadhi. Independente dos motivos que levam
às pessoas ao Yoga, a prática é na maioria das vezes permeada pelas músicas instrumentais, Mantras, sons da natureza e outros elementos que
criam uma atmosfera interiorizadora, um convite para se reduzir as oscilações da mente, do (s)om ao silêncio. Não é incomum encontrar chás
calmantes e quentes, infusões à base de camomila e de erva cidreira, nas
salas de espera para o início da sessão. Café e chás estimulantes dificilmente estarão disponíveis.
Discussões sobre os diferentes aspectos da alimentação e, por que não dizer em torno da ascese, surgem, especialmente em casas especializadas,
ao início ou final da aula. A alimentação vegetariana e outras discussões
sobre dietética são mais comuns nestes mesmos espaços, propiciando
o estabelecimento de uma atmosfera reflexiva, um convite para se pensar sobre o que se come, das questões éticas à saúde. Discute-se o que é
a alimentação adequada, (des(re))construindo o que é ou não saudável.
Ademais, Santos (2008: 315-319) nos aponta que, em tempos de lightização da existência, dos corpos e do comer, fala-se também da procura pela
leveza da vida, de um outro meio de conter a dor, que se materializa de
111
forma mais expressiva no corpo magro, jovem, saudável e no gosto light
contemporâneo.
Nestes contrapontos Ocidente versus Oriente, Tradicional versus Moderno, elaboram-se outras questões a serem ou não respondidas. Será
que a prática do Yoga no Ocidente é a consolidação de uma ruptura total
com os aspectos filosóficos tradicionais? Seria ela menos ritualizada? Ou
seria uma ressignificação? Será o Yoga uma experiência uniforme e globalizada? Será que mantém o objetivo primordial de alívio do que causa
dor ao homem? Não seria também este Yoga uma indicação de formas
de se suplantar a dor, a dor de existir, a dor da impermanência, da incerteza e da transitoriedade da vida? Será que estas mesmas dores não se
manifestam hoje, no tempo do relógio, apenas de uma forma diferente?
Apesar de contrariar os guardiões das tradições, prefiro considerar que o
Yoga no ocidente também tem seu ritual: não há uma boa aula ou sessão
que não se inicie com um chá quente na sala de espera, com uma musak
ao fundo; transcorra com a prática ao som de uma cítara e não termine
com os yogins sentados em padmasana, postura da flor de lótus, pronunciando repetidamente o om. Do (s)om ao silêncio, mesmo com todos os
ruídos da vida contemporânea.
Referências
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Gulmini, Lilian Cristina. “O Yogasutra,
112
de Patañjali - Tradução e análise
da obra, à luz de seus fundamentos
contextuais, intertextuais e lingüísticos”
[dissertação]. São Paulo: Universidade
de São Paulo, Faculdade de Filosofia,
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Marsicano, Alberto. 2012. “Provocações”. TV
Cultura. Apresentação: Antônio Abujamra.
Direção: Gregório Bacic. São Paulo.
Santos, Lígia Amparo da Silva. 2008. “O corpo,
o comer e a comida”. Salvador: EDUFBA.
Souto, Alícia. 2009. “A essência do
Hatha Yoga”. São Paulo: Phorte.
Wosien, Maria-Gabriele. 2004. “Shiva
Nataraja - Origem da Criação”. Em
Wosien, Maria-Gabriele. Dança:
símbolos em movimento. São Paulo:
Editora Anhembi Morumbi, 33-39.
Agradecimento:
Ao Eduardo Marandola Jr, pelo enxergar, pelo incentivo, pela leitura crítica.
113
O significado musical:
expectativas
Karin Segalla Ferreira
FAE Centro Universitário
[email protected]
Resumo
O objetivo do presente trabalho é apresentar um modelo de teoria para as expectativas e
significado musicais, através de pesquisas já realizadas que perpassam desde o entendimento
de como a música se torna significativa, do conceito de tendência, e da musicologia
cognitiva. O pioneiro trabalho de Leonard Meyer (1956) será apresentado em nosso
capítulo primeiro, trazendo a discussão entre as perspectivas formalista e referencialista
do significado musical e um posicionamento mais emocional das expectativas. A teoria de
David Huron (2006), autor que estudaremos em nosso capítulo segundo, é entendida como
uma proposta derivada da teoria de Meyer, complementar e ao nosso ver, mais madura e
atual, pois o autor foca-se nos aspectos neurológicos e fisiológicos para explicar o fenômeno
da antecipação musical. Em nosso capítulo terceiro, apresentaremos a Teoria da Relevância
proposta por Sperber & Wilson (2005) e relacionaremos o conceito de comunicação ao
efeito cognitivo. O encerramento desse trabalho nos leva ao possível diálogo existente
entre a TR e as expectativas musicais. Sendo assim, a TR pode ser um caminho possível
para explicar a questão que nos norteia: “música comunica(?)”. Dessa forma, buscamos
através desse trabalho expor teorias e introduzir uma possibilidade para explicá-las.
Nossa intenção foi trazer um novo modelo para discussão que pode ser um caminho para
formulação de uma nova hipótese no escopo teórico escolhido, sendo essa discussão para
nós necessária e plausível a partir das formulações teóricas previamente estudadas. Músicas
comunicam, e são manifestações sonoras comunicativas dos seres humanos. A abordagem
teórico-relevante é um caminho para que essa conclusão seja efetiva. Ela é uma interface
entre a razão e a emoção e uma potencial saída teórica para as questões abordadas.
Palavras-chave
Teoria da Relevância, comunicação, significado musical, musicologia cognitiva, música
114
1. Afinal, música comunica (?)!
O significado em música nos parece, como seres humanos, e principalmente como seres comunicativos, uma questão muito simples, e na verdade pode parecer até ofensiva. Afinal de contas, parece-nos estranho
duvidar ou questionar se música comunica. Tal pergunta nos parece
uma simples constatação, pois através da música podemos expor nossas
intenções comunicativas, apesar de, talvez, a necessidade ou a impulsão
de comunicação através da música não seja inata. Para nós, a música
transmite informações e tais informações estão vinculadas a um contexto, e para tanto, comunicam uma intencionalidade, um “querer dizer”.
O comportamento comunicativo, por si só, é gerado a partir de expectativas de relevância, ou seja, transmitimos um querer dizer (Grice, 1989)
através do dito, significando que a nossa intenção com esse dizer foi nos
comunicar com um outro em um diálogo. Geramos tais comportamentos comunicativos visando que eles gerem outros comportamentos comunicativos em nosso ouvinte.
A partir desse argumento, acreditamos que a música é um instrumento
de manifestação comunicativa. Visto que, apesar de não conter elementos propriamente ditos verbais, a música possui outras estruturas, carregadas de intencionalidade - como informações emocionais e expectativas. A música, assim como a linguagem, representa e acarreta um dizer.
Apesar de diferentemente da linguagem verbal - no quesito diálogo, por
exemplo. A dúvida que nos parece instigante no escopo “diálogo em música”, é que esse diálogo deveria partir de quem quer se comunicar, e
não para quem a mensagem aponta. Vejamos, primeiramente: arriscamos afirmar que o diálogo presente na música, começa a partir de uma
escuta musical, da “resposta” do ouvinte, entendendo como “resposta” o
que a música representa para ele, o que ela gera, suas expectativas e as
emoções acarretadas por ela. Essa nos parece a melhor definição do provável diálogo ouvinte/obra. Desconsideramos o processo de composição
e quem compôs a obra, em que condições estava, qual o contexto, sua in-
115
tenção e emoção quando ouve a obra. No âmbito obra/ouvinte, trazemos
a hipótese de que a música por si só não seria capaz de representar coisa
alguma ao ouvinte. Isso quer dizer que há sempre uma representação
vinda do ouvinte, que acarreta ou gera um significado para a obra. Tal
representação pode ser a sua bagagem musical, onde está quando a ouve,
sua cultura, e/ou o momento em que está vivendo, seja emocional, físico
ou mental, por exemplo. Outros fatores parecem-nos relevantes, como se
o ouvinte é músico, se tem ouvido absoluto, ou se faz parte de uma tribo
indígena por exemplo, que hipoteticamente tem muitas manifestações
musicais. Tomamos com exemplo: “Domenico” ouve a música “x”. A música “x” foi composta por “Enrico”. Desconsideramos todos os momentos
relacionados à composição da música “x” e desconsideramos também
Enrico. Ao ouvir a música “x”, Domenico sente-se ameaçado e agoniado.
Essa reação emocional em Domenico pode ser a resposta e o significado
daquela música para ele. Ainda que a música não peça uma resposta, ou
um possível diálogo, cremos ser inevitável não termos uma, seja essa
resposta qual for. Nesse momento, argumentamos que a música gera reações, ainda que diferentes reações e representações em pessoas diferentes, o que importa a esse estudo, é que tal música representou e se tornou
significativa, independente do que significou.
Secundariamente, se pudéssemos criar uma hipótese, afirmando que a
intencionalidade comunicativa da música se dá a partir de quem a compõe, possivelmente teríamos um vácuo, pois esse autor depende de algo
complexo para expressar-se, no caso, acordes, notas, escalas musicais. A
comunicação demanda lidar com pensamentos de quem diz e de quem
ouve, e para tanto, apostamos que pode ser plausível existir apenas um
reconhecimento de intenções comunicativas entre músico e plateia. E
consideramos ainda, que, o reconhecimento das intenções e as respostas
que temos a um determinado estímulo musical não quer dizer que a música quis comunicar alguma coisa. Voltamos então, à estaca zero? Bom,
se eu olho para o céu e vejo que vai chover, pois o céu está carregado
de nuvens negras, isso não quer dizer que a nuvem quis me comunicar
116
alguma coisa, no caso, que vai chover. Quando inferimos algo em nosso
meio, estamos nos baseando em nossa própria experiência e modelo de
mundo. Damos significado as coisas do mundo a partir do que aprendemos sobre cultura, sociedade e música, por exemplo.
2. O significado musical: expectativas e padrões culturais
Voltemos à nossa afirmação anterior, de que a comunicação em música
nos parece simples, já que somos seres comunicativos e, além disso, seres musicais. Entendemos, a partir dos estudos de Leonard Meyer (1956),
que o significado musical na perspectiva absolutista está relacionado exclusivamente a um contexto dentro da música per se, ou, música stricto
sensu. A visão representacionalista do significado musical, por sua vez,
afirma que o significado musical refere-se aos fatores extramusicais contidos no mundo, como os comportamentos e os estados emocionais. Em
ambas as proposições podemos relacionar a significação em música com
o conceito de expectativa e tendências expectantes. Isso porque o ouvinte ao escutar uma determinada frase musical, busca um consequente
relevante que resulte de um antecedente de um modelo referencial. A
teoria de Leonard Meyer então, nos traz duas proposições: uma entende
que o significado da música é uma característica ou propriedade interior
à obra musical e suas estruturas, e outra, que afirma que a música tem
significado e comunica tal significado, sendo ele extramusical, existindo
anteriormente à experiência musical e sendo transmitido a partir dela.
Nos perguntamos, então: como eventos musicais se tornam significativos (?) a ponto de um compositor elaborar uma obra musical esperando
que ela comunique o seu “querer dizer” a um ouvinte e como esses eventos são experenciados como sentimentos? Nossa proposta é a de buscar
caminhos possíveis para dissolver essa questão de maneira simples, pois
não pretendemos fazer, a priori, nenhum tipo de experimento psicológico. Vejamos: os eventos perceptivos, comuns aos seres humanos e em
especial aqueles que se relacionam com a música e a sua significação,
sempre estão acompanhados de emoções. As emoções são acarretadas
117
e se manifestam de várias maneiras: podemos estar em nossa casa, alienados com alguns pensamentos, ouvindo um disco quando, de repente,
em algum momento, encontramos nossos pensamentos divagando por
entre uma frase musical existente nesse disco. Trazendo-nos novamente
à realidade, e longe daquele pensamento. O que nos fez prestar atenção naquela frase, pode ser um “diálogo” existente entre nossos padrões
culturais, nossa bagagem musical e aqueles sons. A música pode não
representar nada sozinha, mas em contato com essa bagagem que temos,
se torna significativa e conceitual, gera sentimentos, emoções, e conseguimos, o que nos parece também ser inevitável no âmbito da escuta
musical, ter um “diálogo” impreciso e inegável com a obra.
O fato é que a partir desses argumentos, podemos afirmar a existência
de culturas musicais e determinadas frases musicais que são de importante relevância aos membros de uma cultura. Tais frases, podem ser
relacionadas, nessa determinada cultura, a eventos, também culturais
previamente determinados, seja a partir da experiência dos compositores e/ou dos ouvintes, seja por reações emocionais causadas pelo compositor e/ou no ouvinte. Então, como afirma Huron (2006), toda cultura
musical está relacionada a determinados sentimentos e tais sentimentos
evocam situações convenientes a essa cultura. Para Huron, a noção de
expectativa é uma habilidade que evoca estados emocionais, sendo de
extrema relevância para a sobrevivência, pois nos faz antecipar os eventos vindouros. Para tanto, o autor propõe a ITPRA, que consiste em cinco
funcionalidades distintas. As emoções evocadas pelas expectativas envolvem esses cinco sistemas fisiológicos: imaginação, tensão, previsão,
reação e avaliação. Cada um desses sistemas podem evocar respostas
emocionais de uma maneira independente, e podem ser divididos em
dois períodos: pré-estímulo e pós-estímulo. A imaginação, por exemplo,
faz com que o futuro seja emocionalmente palpável, por isso esses sentimentos trazem mudanças comportamentais. Como afirma o autor: “Nós
não apenas pensamos em possibilidades futuras, nós sentimos possibilidades futuras” (HURON, 2006, p. 8).
118
A teoria de Huron tende a responder os questionamentos referentes a
como os indivíduos e organismos aprendem através da experiência.
Uma das possibilidades levantadas pelo autor, é a de que os ouvintes são
sensíveis às probabilidades de eventos e padrões sonoros distintos, e tais
probabilidades formam, ou ajudam a formar as expectativas dos eventos
que estão por vir: “O processo de aprendizagem é produto da evolução
por seleção natural, assim como qualquer outro instinto” (HURON, 2006,
p. 62).
Sendo assim, o mais relevante nos estudos de Huron, para a pesquisa
referente a esse trabalho, reside na possibilidade de podermos vislumbrar a proposição de que a aprendizagem pode ser o motivo de que os
organismos tendem a esperar eventos futuros, criarem expectativas, e
além disso, essa ideia pode justificar que as respostas aos eventos sonoros poderia ser resultado da aprendizagem. Ou seja, o aprendizado tem
papel determinante na formação de significado sonoro.
Nesse âmbito, afirmamos anteriormente que para Meyer a noção de expectativa é a base dos processos de significação musical. David Huron,
assim como Meyer, acredita que a expectativa é um fenômeno biológico
e também cultural, pois o organismo se prepara para responder a determinados estímulos a partir de influências dadas pelo ambiente cultural,
manifestadas pela expectativa. Essas expectativas musicais podem ser
inatas e/ou experenciadas através de eventos passados, ou seja, aprendidas, sendo que as expectativas mais relevantes são aquelas adquiridas pela aprendizagem, pois são mais habituais e usuais no pensamento.
Tais expectativas refletem padrões culturais aprendidos e para tanto são
mais relevantes e se sobrepõem àquelas decorrentes da genética. Os padrões culturais são refletidos e se manifestam em uma determinada obra
musical, em como ela é construída e recebida pelo seu ouvinte. Isso quer
dizer que o conceito que mais se relaciona com essa compreensão que
compete aos padrões culturais é o de estilo musical. Embasados nesse
conceito, afirmamos que existem sistemas complexos entre a relação de
119
sons entendidos e utilizados em um grupo de indivíduos em comum.
Em tais sistemas de padrões culturais existem sons que não podem ser
combinados e existem os sons que são possíveis e podem ser usados
em diferentes situações, por exemplo. Esses sons podem ser combinados
de maneiras pré-estabelecidas e essas relações podem ser diferenciadas
através do contexto da obra e da situação em vigência. Ian Cross em seu
texto Músicas, Culturas e Significados: Música como Comunicação relata sobre a questão cultural dos comportamentos musicais:
Como Widdess1 pontua, o dinamismo de uma cultura específica
é melhor entendido através da experiência vivida do que mediado
por representações linguísticas. Mas o que precisamente determina
“uma” cultura, uma cultura musical, principalmente? Como um
exemplo complexo, no contexto do território do norte australiano, nas
culturas aborígines, como Widdess notou, há entidades musicais
específicas - não obras, mas músicas e específicos tipos de música – e
específicos contextos para o uso dessas músicas. (Cross, 2012: 95)
A cultura então, em sua particularidade, pode ser entendida como a representação de um determinado povo, contendo suas características,
suas entidades musicais particulares e específicas, tanto para um determinado momento, quanto para uma casualidade por exemplo. Caracterizamos a música então, através da cultura, como um comportamento
cultural específico de um determinado povo. David Huron, por exemplo,
argumenta que “existem evidências da ideia da música como uma adaptação evolutiva e ainda que não sejam sólidas, a ideia é plausível” (ILARI,
2006, p. 41). Existem fortes evidências de que os seres humanos tem um
componente genético que influencia tanto a musicalidade quanto a sociabilidade. Podemos argumentar também que a música traz consigo e
incita nossa memória comunicativa primórdia. Já que nossos ancestrais
eram movidos pelo prazer musical em sua comunicação. A música pode
nos remeter a um contexto musical, ainda que breve, e excitar em nós um
1
Richard Widess é professor de música na Universidade de Londres.
120
“eco evolucionário de comunicação primitiva” (ILARI, 2006, p. 41). A música, além de tudo, em muitas culturas, é o primeiro contato confortante
de uma mãe com um filho recém nascido, a voz da mãe contém musicalidade, e representará algo para o filho, talvez por toda a sua existência. A
música existe em nossas vidas e em nossos genes, ela nos move. Apesar
de isso não significar que ela nos comunique, conseguimos encontrar
algo nela que nos comunica, nos significa.
3. Manifestações comunicativas: musicais?
Entendendo a música como uma manifestação da linguagem, tomamos
como exemplo a seguinte constatação: um determinado comunicador
quer dizer algo, ou apenas, tem a intenção de dizer algo e para tanto,
contribui para essa comunicação através de uma frase musical, dando
para ela determinadas características. Essas características para ele, e
somente para ele, pois ele é o compositor, são perceptíveis ao seu “querer
dizer” e à sua intenção comunicativa. O ouvinte ao ouvir essa frase musical, pode recebe-la da mesma forma, com alguma parcialidade ou com
compreensão de intenção distinta daquela que o autor “quis dizer”. Isso
não quer dizer que o ouvinte não entendeu a obra, mas sim que existe
algo naquela frase musical que para ele faz sentido de alguma outra maneira, mas não quer dizer que essa frase não tenha significado. Por isso,
independente do sentido e do acarretamento da representação, há comunicação, mesmo que o que o compositor quis dizer, seja o contrário do
que o ouvinte entendeu. O que acarretou que o ouvinte compreendesse
tal obra da maneira que compreendeu, seja “consciente ou inconscientemente, possivelmente foram as suas experiências presentes e passadas,
seus hábitos” (MEYER, 1956, p. 24).
Para Meyer o que ocorre nesse nível de significação, é que para se ter
significado não é necessário a existência de comunicação. Ou seja, a música “x” faz com que o ouvinte tenha uma reação emocional “1”, mas isso
não quer dizer que tal música comunicou algo para esse ouvinte, e nem
121
que se a reação emocional fosse “2”, ou “3”, a partir da escuta da música
“x”, ela tenha comunicado. Ao contrário do que afirmamos e compreendemos como uma possibilidade para explicar os processos de comunicação em significado musical. Meyer argumenta que devido a complexidade dessa relação, a música comunica se, e somente se, o significado de
quem a fez seja o mesmo de quem a observa. Sendo assim, não é possível
garantir, ainda que dentro de uma mesma cultura, em que os hábitos são
similares, que a relação de comunicação ocorra, tal como a comunicação
verbal. Ou seja, não existe uma necessidade de comunicação através da
música, mesmo sendo inegável que ela comunique algo, de fato. Apesar
dessa particularidade, característica do significado musical, não há nenhuma implicação de que o ouvinte tenha que assumir o papel do compositor para entender o seu “querer dizer”, já que a própria experiência do
ouvinte é significativa, próxima ou não da intenção do autor. Ainda que o
ouvinte não tenha que assumir o papel do compositor, por muitas vezes,
nos parece que o compositor assume o papel de seu ouvinte, como sendo
um ouvinte ideal de sua obra, esperando que a sua composição acarrete
o mesmo significado para o ouvinte que a obra tem para ele mesmo. Talvez, o autor espera que o ouvinte saiba o que ele quis dizer, espera que
ele saiba a sua intencionalidade com aquela frase musical.
4. Teoria da relevância
A Teoria da Relevância de Dan Sperber e Deirdre Wilson (2005) pode ser
vista como uma tentativa de resolver a questão proposta por Paul Grice
(1989) de que a comunicação humana tem como característica essencial
a expressão e o reconhecimento das intenções comunicativas. Grice lançou fundamentos para um modelo inferencial de comunicação. E tal modelo pode explicar a significação através das intenções, entendendo o
“significar” como um “querer dizer”.
Podemos entender essa hipótese da seguinte forma: uma pessoa quer
dizer algo dentro de um sistema linguístico, para tanto, codifica a sua
122
intenção dentro desse sistema através do vernáculo. A mensagem é decodificada pelo ouvinte a quem o falante está se referindo. O falante sabe
que o ouvinte sabe o que ele “quer dizer”, pois esse falante forneceu a
evidência de sua intenção de se comunicar através de um determinado
significado: o seu querer dizer é inferido pelo ouvinte com base nas evidências fornecidas pelo falante, uma vez que estão no mesmo contexto. Partimos do pressuposto de que dentro de um enunciado está uma
determinada evidência, que parte do comunicador, e pode ser codificada linguisticamente, e que tem uma compreensão, e tal compreensão
existe só porque existiu um elemento de codificação e tal elemento foi
decodificado. Essa relação, codificação de significado linguístico e decodificação, como afirma Sperber & Wilson, é apenas um input para o
processo de inferência que produz a interpretação de significado do falante. Vejamos como Grice (1989) explica o fato de um ouvinte inferir o
significado de um falante com base na evidência fornecida: uma de suas
questões centrais que fazem parte da abordagem teórico relevante, e que
explica o fato de que “os enunciados criam automaticamente expectativas que guiam o ouvinte na direção do significado do falante” (SPERBER
& WILSON, 2005, p. 222) é o Princípio de Cooperação e as Máximas de
Qualidade, Quantidade, Relação e Modo. O Princípio Cooperativo sistematiza regras de conduta para os participantes de uma conversação. As
máximas conversacionais devem ser respeitadas para que tanto a produção quanto a interpretação sejam mais fáceis. A máxima de quantidade
refere-se à informatividade, ou seja, um falante dirige-se a um ouvinte,
com a quantidade de informações necessárias para que esse ouvinte interaja com ele e a compreensão ocorra. A máxima de qualidade diz respeito à veracidade das informações contidas, elas precisam ser verídicas
e precisas. A máxima de relação refere-se à relevância: a adequação das
informações devem ser aceitas por todos os envolvidos na interação, e
tais informações devem condizer e se adequar ao contexto de interação.
A máxima de modo diz respeito às formas de se dizer o querer dizer, ou
123
seja, refere-se à clareza com que o falante expressa suas ideias e informações na interação.
A Teoria da Relevância (TR) “é uma propriedade potencial não somente
de enunciados e outros fenômenos observáveis, mas de pensamentos,
memórias e conclusões de inferências” (SPERBR & WILSON, 2005, p. 223).
Assim sendo, a relação que citamos anteriormente, referente à codificação e decodificação, quer dizer que qualquer estímulo que fornece o input
para os processos cognitivos pode ser relevante para um indivíduo em
um dado momento. Diferente de Grice, a TR afirma que os enunciados
geram expectativas de relevância porque existe algo em nossa cognição,
que é uma característica humana e pode ser explorada quando for preciso, que nos faz buscar a relevância. Nessa característica da cognição humana, não está inferido o fato de os falantes obedecerem a um princípio
de cooperação comunicativa, para que aja relevância e posteriormente
significado, por exemplo.
A relação com o significado musical é a seguinte: podemos dizer que
os efeitos cognitivos positivos e negativos acarretam conclusões verdadeiras e falsas, as conclusões falsas são efeitos cognitivos, mas não são
efeitos positivos, e nem mesmo vantajosas, já uma conclusão verdadeira,
representa o contrário, mesmo que ambas sejam efeitos cognitivos. Na
música o que ocorre com as expectativas não é muito diferente. Meyer
apontou para um contexto, ou processamento mental parecido com as
afirmações de Sperber & Wilson, de que o indivíduo espera, a partir de
um determinado estímulo (musical), porque antes desse estímulo ele
apreendeu o que esperar, ou seja, essa expectativa é gerada a partir de
seus hábitos. Quando essa expectativa é atendida, existe uma recompensa, e quando não é atendida, torna-se consciente, gerando frustração. Podemos retomar o exemplo que Meyer nos oferece em seu texto Emoção
e Significado em Música, do fumante habitual (MEYER, 1956, pp. 13-14).
Quando esse indivíduo possui cigarros as suas expectativas são satisfeitas, seus hábitos seguem normalmente. A ineficiência dessa satisfação
124
quebra as expectativas que acompanham esse hábito, tornando-o consciente e gerando frustração.
Também podemos relacionar o efeito cognitivo ao conceito de comunicação que propomos à questão “música comunica(?)”, uma vez que, para
que haja comunicação, não é necessário que a obra diga a mesma coisa
para o compositor e para o ouvinte. Ou seja, o fato de o autor “x” compor
uma música e tal música representar um sentido “1” para ele, e para o ouvinte “y” dessa obra, tal música representar um sentido “2”, não implica a
inexistência de comunicação. Se tal obra representa um sentido “3” para
“y”, isso quer dizer que essa obra representou algo, e tem significado para
ele. Mesmo que o acarretamento da obra em “x” seja diferente.
A relevância pode ser calculada em termos de efeito cognitivo e esforços
de processamento, e.g., “quanto maior o esforço requerido de percepção,
de memória e de inferência, menor será a recompensa pelo processamento do input e, por isso, um menor merecimento de atenção” (SPERBER
& WILSON, 2005, p. 225). Ou seja, em contextos idênticos, quanto maior o
esforço de processamento, menos relevante será o input, e quanto maiores os efeitos cognitivos positivos, maior será a relevância do input. A
condição de maximizar a relevância dos inputs está relacionada a forma
como nós, seres humanos, nos desenvolvemos. Essa tendência é caracterizada através do Primeiro Princípio de Relevância (SPERBER & WILSON,
2005, p. 227), em que nosso sistema cognitivo se desenvolveu de tal forma que processamos os acontecimentos ao nosso redor de maneira a
computar as consequências que mais nos valem a pena. Vejamos a definição da Relevância Ótima:
Um estímulo ostensivo é otimamente relevante se, e somente se:
a. é relevante o suficiente para merecer esforço de processamento da
audiência;
b. é o mais relevante compatível com as habilidades e
preferências do comunicador. (Sperber & Wilson, 2005: 230)
125
A tendência que temos para maximizar a relevância faz com que possamos predizer o estado mental dos outros, também a partir do que acreditamos que determinado indivíduo terá como input mais relevante, pois
também, esse indivíduo, tem a tendência de maximizar a relevância.
Para tanto, podemos dizer que em uma comunicação, o indivíduo “x” diz
algo para o indivíduo “y”, acreditando que o indivíduo “y” maximizará a
relevância do que foi dito. E o indivíduo “y” acredita que “x” quis dizer o
que a sua própria tendência de maximização produziu. Ou seja, o indivíduo “x” pode conduzir “y” a um conjunto de suposições contextuais com
o seu dizer. “X” acredita que “y” entenderá o que ele quis dizer com seu
estímulo, mesmo que esse estímulo não seja o que “x” disse propriamente. “X” poderá levar “y” a suposição que lhe cabe e conduzi-lo a conclusão
pretendida, evidenciando a sua intenção.
Sperber & Wilson afirmam que apesar de os indivíduos nem sempre estarem engajados em uma comunicação inferencial, podem explorar a
tendência cognitiva dos outros de maximizar a relevância. Para tanto,
existem diferentes tipos de comunicação. Por exemplo, deixar um copo
vazio na linha de visão de uma pessoa, pretendendo que tal pessoa conclua que eu gostaria de outro drinque, é uma forma de comunicação,
pois pretendi afetar seus pensamentos de alguma forma, ainda que não
tenha dado evidências precisas e suficientes do que eu realmente queria.
A comunicação ostensivo-inferencial, por exemplo, ocorre quando tal intenção comunicativa, dada por evidências, é reconhecida. Por exemplo:
o comunicador que gostaria de outro drinque, nesse caso, em vez de apenas deixar o copo na linha de visão de outro indivíduo esperando que ele
entenda a sua ação, poderia tocar o braço desse indivíduo, apontar para
o copo vazio, e além disso, dizer que seu copo está vazio. Esse estímulo
ostensivo, é capaz de atrair a atenção a quem o comunicador se refere,
e posteriormente criar expectativas de relevância precisas e previsíveis.
De qualquer forma, o indivíduo que o comunicador se refere só prestará
atenção ao input que lhe pareça suficientemente relevante e que valha a
pena ser processado. Para que isso ocorra é necessário que ao produzir
126
esse estímulo, o comunicador encoraje a quem ele se refere, para presumir que tal estímulo seja relevante.
O ser humano está sempre se interpretando e sempre sentindo emoções
e sentimentos. A afetividade, de modo lato, pode ser compreendida pelos seres humanos de forma intuitiva, apesar da gama de possibilidades
de definir tal emoção/sentimento, e ainda produzir itens lexicais para
definir tais emoções/sentimentos de modo a compartilhar a sua interpretação com outros indivíduos através da comunicação. Para a TR, por
exemplo, “x” só é “x”, porque não é “y”, e assim por diante. Esses conceitos
(de emoções e sentimentos) são estabelecidos na mente humana através
da convivência com outros indivíduos, e tratados, de modo definido, a
ponto de existir um acordo comum entre o comunicador, o comunicado,
e o interlocutor, que interagem em uma mesma cultura, acerca da definição desses conceitos, um eu, sempre terá um tu espelhado e sendo assim,
algum processo de representação ocorre quando se ouve uma determinada música em um determinado contexto.
é indicativo de que, por meio das palavras, pessoas que compartilham
o mesmo ambiente comunicativo, conseguem reconhecer significados
musicais em virtude das inúmeras informações que podem ser
associadas a uma determinada música. Relevância é um conceito
cognitivo que ajuda a compreender os fenômenos comunicativos
ligados à vida musical de nossa espécie. Isso porque, apesar de
oriundo da Linguística, é um conceito que pode ser aplicado a
qualquer manifestação intencional. (Benfatti, 2010: 156-157)
A construção dos sentidos é, portanto da cognição humana e não inerente à linguagem, já que possui um caráter social. É através da cooperação
e da interação dos participantes que uma mesma informação pode ser
processada de diferentes formas em diferentes contextos por esses participantes comunicativos.
127
Referências bibliográficas
Benfatti, Maurício Fernandes Neves. 2010.
Falando em música... Um ensaio sobre
o papel dos fenômenos linguísticos em
uma epidemiologia de representações
musicais. 173 p. Dissertação (Mestrado
em Linguística) - Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade
Federal do Paraná, Curitiba.
Cross, Ian. 2012. “Músicas, Culturas e
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Revista Empírica de Musicologia 95:97.
Grice, H. Paul. 1989. Estudos dos modos
das palavras. Cambridge, MA.: Ed.
da Universidade de Harvard.
Huron, David. 2006. Doce antecipação
: música e a psicologia da
expectativa. Cambridge, MA: MIT.
Ilari, Beatriz Senoi. 2006. Em busca da
mente musical : ensaios sobre os
processos cognitivos em música – da
percepção à produção / Beatriz Senoi
Ilari (organizadora); colaboradores
Beatriz Raposo de Medeiros... [et
al.]. – Curitiba, PR : Ed. da UFPR.
Meyer, L. B. 1956. Emoção e significado
em música. Chicago: Ed. da
Universidade de Chicago.
Sperber, D.; Wilson, D. 2005. Teoria da relevância.
Revista Linguagem em (Dis)curso 221-269.
128
A ‘áudio-imagem’
segundo J.E. Berendt
Luiza Spínola Amaral
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]
Resumo
Sua voz ficou conhecida na Alemanha bem antes que sua imagem pudesse ser reconhecida
pelos ouvintes. Homem do rádio, Joachim-Ernst Berendt construiu uma carreira de sucesso
na mídia, durante os quarenta anos em que trabalhou como diretor no departamento de jazz
da emissora alemã, Südwestfunk. No início dos anos de 1980, no entanto, e depois de uma
carreira notável como produtor e crítico de jazz, envereda por um novo caminho, inaugurado
com a peça radiofônica ‘Nada Brahma – Die Welt ist Klang’, onde não mais a música, mas
os sons se tornam alvo do seu interesse. Ainda assim, o conceito de som elaborado por
Berendt não visava à ampliação da paleta sonora no espectro da tradição musical, mas sua
‘antropologização’. Nesse contexto, o autor propunha a desobstrução do sentido auditivo, de
forma a pensar outro tipo de imagem, sem referência visual, como um contra fluxo diante da
excessiva visibilidade das imagens, intensificada após o advento da televisão, e que gerou o
que ele denominou, “hipertrofia dos olhos”. Suas reflexões acerca do ouvir, longe de parecer
retrógradas, antecipavam a importância de pensar a dimensão humana e sensória como partes
dos processos comunicacionais. Entendendo, então, que o estudo da Comunicação deve ser
pensado além dos meios técnico, mas atento às modificações que tais meios proporcionam
às relações sociais, pretendemos apresentar o conceito de áudio-imagem segundo JoachimErnst Berendt, como forma para se pensar uma estética “pós-midiática” da imagem – tal qual
apresentava Dietmar Kamper - onde a imaginação é parte fundamental dentro deste processo.
Palavras-chave
áudio-imagem, Joachim-Ernst Berendt, som, comunicação auditiva
129
Joachim-Ernst Berendt: do rádio à era da televisão.
Sobre o fim da música e da percepção da visual
Sua voz ficou conhecida na Alemanha, bem antes que sua imagem pudesse ser reconhecida pelos ouvintes. Homem do rádio, Joachim-Ernst
Berendt construiu uma carreira de sucesso na mídia, durante os mais de
quarenta anos em que trabalhou como diretor no departamento de jazz
da emissora alemã, Südwestfunk, a qual ajudou a fundar. No início dos
anos de 1980, no entanto, e depois de uma carreira notável como produtor e crítico de jazz1, envereda por um novo caminho, onde não mais a
música, mas os sons se tornam alvo do seu interesse. Converge, assim,
com os percursos os quais a própria música trilhou ao longo do século
XX, borrando definitivamente as fronteiras entre a música e a não-música.
No jazz, o fato começa a ficar evidente em finais de 1940, quando músicos como Thelonious Monk e Bud Powell iniciam as primeiras transformações que caracterizam o jazz moderno, por meio da “diluição da
frase como unidade e das funções harmônicas como sistema” (Berendt, 2007: 220). Mas se concretiza a partir de 1960, com o surgimento do
free jazz de Ornette Coleman, Cecil Taylor, Don Cherry e John Coltrane,
quando a atonalidade, a dissolução do ritmo, a incorporação de elementos musicais de outras culturas, a intensidade na execução e a inclusão
do ruído, se tornam parte integrantes da música2. Percebe-se com isso a
necessidade de transformação da percepção auditiva mediante o rompimento da música com a linearidade, os pontos de apoio tradicionais e as
1
Berendt escreveu o mais conhecido livro acerca da história e desenvolvimento do jazz, Das
Jazzbuch, que foi líder de vendas no ano de lançamento, traduzido em dezenas de outros idiomas e soma mais de 1,5 milhões de exemplares vendidos. Esta informação foi retirada do livro
“O Jazz: do rag ao rock”, na apresentação feita por Júlio Medaglia.
2
No âmbito da música erudita, a atonalidade surge quase 50 anos antes, por meio de um novo
esquema de organização da composição, o dodecafonismo, mas se difere consideravelmente
do jazz, como demonstra Berendt: “o jazz possui uma “tradição atonal” mais antiga do que
a música europeia de concerto. Os shouts, o field hollers, o blues arcaico (...) e quase todas as
pré-formas do jazz do século passado [XIX], que se mantiveram vivas ainda no atual eram
“atonais”” (2007:37).
130
convenções da tonalidade. A música cria o que Berendt denominou um
novo “pathos extramusical”, que confirma as afirmações de Stockhausen
e também John Cage: “som e ruído são música” (apud Berendt, 2007: 41)3.
Berendt não estava alheio a essas transformações, muito pelo contrário,
foi um dos precursores da chamada Worldmusic, como comprovam estudos realizados pelos historiadores da cultura alemã, Uta G. Poiger e
Andrew Right Hurley, e teve participação ativa, no que concerne a uma
internacionalização do jazz4. Como demonstra Poiger no artigo que compõe o livro, German Pop Culture: “Berendt transformou o jazz numa experiência universal e enfatizou que o jazz foi além de suas raízes africanas e afro-americanas para ser conhecido em todo mundo” (Poiger, 2004:
85)5.
Foi então durante a movimentada década de 1960, e financiando pelo
Göethe Institut, que Berendt começou sua incursão na busca do jazz pelo
mundo. Viajou por cinco meses pelos Estados Unidos, e em parceria com
o fotógrafo, Willian Claxton, produziu o livro Jazz Life. Nesse mesmo
período iniciou uma série de viagens para a Ásia, praticou a filosofia Zen,
3
Stockhausen: “sonoridades que, antigamente, eram classificadas como ruído, hoje fazem parte do vocabulário musical. Som e ruído são música” (apud Berendt, 2007:41). Assim, também
movimentos da vanguarda pós-Segunda Guerra, como a música aleatória de John Cage, a
música concreta de Pierre Schaeffer, ou a eletrônica de Stockhousen, anunciavam os novos
elementos sonoros, que viriam a romper com a organização harmônica da tradição musical
ocidental.
4
O australiano Andrew Rignt Hurley no livro, The return of jazz. Joachim-Ernst Berendt and
the West German cultural change, analisou sua importância no que concerne a construção
de uma nova identidade mais internacionalista do povo alemão, a partir da série, Jazz Meets
the World, cuja pioneira concepção de worldmusic, propunha encontros entre músicos de nacionalidades diversas, indianos, japoneses, brasileiros, africanos, norte-americanos, europeus,
dentre outros. Também o festival anual, produzido por Berendt para a Südwestfunk, o Free
Jazz Meeting, encontro entre músicos de vanguarda europeia e norte-americana, revela sua
importância nesse processo de internacionalização do jazz e estabelecimento de um jazz
tipicamente europeu.
5
Tradução Livre: “Berendt made jazz into a universalizing experience and stressed that jazz
had gone beyond its African and African-American roots to gain appeal around the world”
131
gravou músicos de Bali6, do Japão7 e da Indonésia8, e convidou Ravi
Shankar para tocar ao lado de Barney Wilen, na estreia do festival anual
da emissora, o Baden-Baden Free Jazz Meeting9. Essa série de viagens,
frequentes até finais de 1970, resultou em publicações midiáticas e também em novas propostas sonoras, produzidas por Berendt.
Na década de 1980, no entanto, ele se afasta da direção dos festivais e da
curadoria do Göethe Institut, vende seus arquivos de jazz para o acervo
da cidade de Darmstadt e elabora sua composição radiofônica, Nada
Brahma: Die Welt ist Klang10. O conceito de som elaborado por Berendt,
embora provenha daquele “pathos extramusical”, que ele mesmo vivenciou como radialista, musicólogo e produtor, não visava à ampliação da
paleta sonora no espectro da tradição musical. Enquanto crítica cultural
propunha a desobstrução do sentido auditivo, posto de lado mediante
a profusão de imagens, intensificada após o advento da televisão, e que
gerou o que ele denominou, “hipertrofia dos olhos”. Vejam:
Nos últimos anos temos ouvido e lido que o homem moderno, da
era da televisão, tornou-se um ser dominado principalmente pelo
sentido da visão. Dificilmente alguém que faz esse tipo de constatação
se dá ao trabalho de perguntar: mas o que é que ele consegue ver?
Será que realmente o homem vê o que ele enxerga? Será que ele
não vê apenas imagens, imitações? Será que não são essas imagens
que o homem denomina realidade? (BERENDT, 1993, p. 174)
6
Various musicians. The Music From Bali. Dutch Philips 831 210 PY. (apud Hurley, 2010: 246)
7
Hideo Shiraki Quintet and Three Koto Girls. Sakura Sakura. Saba SB 15064. (apud Hurley,
2010: 248)
8
Tony Scott and the Indonesian All-Stars. Djanger Bali. Saba SB 15145. (apud Hurley, 2010: 252)
9
HURLEY, Andrew Wright. The Return of Jazz: Joachim-Ernst Berendt and West German cultural change. Nova York.Oxford: Berghahn Books, 2009, p. 241.
10 A peça radiofônica logo se transformou num livro, que na tradução para o português foi denominado, Nada Brahma: o mundo e o universo da consciência. A tradução literal de Die Welt
ist Klang é “o mundo é som”.
132
As questões apresentadas ainda no começo dos anos de 1980 se aproximam de discussões que começavam a surgir nas pesquisas da comunicação e da mídia, sobretudo na Teria da Mídia desenvolvida na Universidade Livre de Berlim, em torno de autores como Harry Pross (1987), que
em diálogo com uma Teoria da Cultura, propunha uma classificação do
corpo como mídia primária, e também de Dietmar Kamper, cujo estudo
sociológico e filosófico do corpo advertia sobre a necessidade de resgate
da percepção auditiva como forma de combate à colonização do imaginário pela mídia. Berendt, no entanto, já estava ciente de alguns dos
problemas que viram a ser tratados pelas pesquisas da mídia. Notem:
Na verdade, poder-se-ia dizer que a televisão é “a realidade” de
crianças e adolescentes. Com perda de capacidade de fazer novas
experiências quero definir o horror que nos é impingido todos os
dias – notícias sobre o Vietnã, Afeganistão, El Salvador, Cambodja,
Guatemala, Etiópia -, uma inflação de horror. Quanto maior o horror,
tanto menor o impacto que ele causa sobre as pessoas. O escritor
alemão Botho Strauss chama isso de “separação do homem do que é
humano” e “o fim do sentido da percepção”. (BERENDT, 1993, p. 174-175)
A perda da capacidade de apelo das imagens visuais evidenciada por Berendt e que ele define com as palavras de Strauss como ‘o fim do sentido
da percepção’, também foi tema para Norval Baitello no seu estudo sobre
a imagem midiática. Mais de dez anos depois, e em referência a Harry
Pross e a Dietmar Kamper, ele elabora um diagnóstico não muito diferente do exposto acima: “a inflação e a exacerbação das imagens agrega
um desvalor à própria imagem, enfraquecendo sua força apelativa e tornando os olhares cada vez mais indiferentes, progressivamente cegos.”
(Baitello, 2005: 85). A cegueira descrita por Baitello, ou a “hipertrofia dos
olhos” de Berendt, provém de uma rarefação no potencial simbólico das
imagens, capaz de sensibilizar o homem como acontece nas imagens de
culto ou da arte11. Assim, conclui o autor em citação a Kamper: “a ‘força
11 O tema acerca das imagens, de culto e da arte, e da simbolização é tratado por Hans Belting
no livro, Antropologia de la imagem. (Katz Editores. Madrid, Espanha. 2007).
133
visionária’ passa a ser – cada vez mais – possível apenas fora dos sistemas de visão” (Baitello, 2005: 86).
Podemos dizer que a discussão proposta por Berendt acerca dos “níveis
de realidade” sugere essa dualidade da imagem, a exterior, intensificada
e acelerada pela mídia, de experimentação majoritariamente visual, e
a interior, construída com o corpo por meio de todos os seus sentidos,
de forma que a primeira parece ter afetado sensivelmente a percepção
da segunda. Nesse sentido, o pensamento de Berendt conflui com o de
Kamper:
Parece mesmo como se a fantasia – na forma de imaginário
da mídia - esteja no poder, como se os homens isolados uns
dos outros estejam ameaçados por uma violenta imanência,
por um cárcere feito de imagens. (KAMPER, 2002, p. 09)
A Teoria da Fantasia proposta por Kamper12 revela uma estrutura de
quiasma, na qual confluem interior e exterior, cuja contraposição parece fundamental para a percepção e produção de imagens pelo homem.
No entanto, requisitados incessantemente, os olhos sofrem pela rotina
do “padecimento”, que impossibilita o desdobramento da visão empírica numa visão onírica, designada pelo autor como ‘força visionária’ ou
‘imaginativa’, capaz de estabelecer uma relação viva entre o sujeito, as
imagens e suas referências culturais.
Diante deste novo imaginário, “antigamente suspiros de fantasmas, cochichos de fadas, anões e duendes, hoje em dia música, palavras, filmes
levados através de ondas (...) fabricados industrialmente e vendidos comercialmente” (Morin, 2011: 3), que Edgard Morin não por acaso aproxima do universo fantasioso das mitologias e que gerou a ‘industrialização
do espírito’, ao padronizar sonhos, estilos de vida e gostos; Berendt lança
12 Fantasia. Biblioteca Digital do CISC. Disponível em: <www.cisc.org.br>. Acesso em: 01 de Julho
de 2013 (texto foi extraído do livro “Cosmo, Corpo, Cultura. Enciclopedia Antropologica”. A
cura di Christoph Wulf. Ed. Mondadori. Milano. Italia. 2002).
134
sua proposição, ‘Die Welt ist Klang’, o mundo é som, a fim de reestabelecer o lugar das “verdadeiras experiências” diante da cultura telemática
que começava a surgir. Nesse sentido, sua proposta vai de encontro à de
Kamper quando diz:
Não se devem reforçar as capacidades do ouvido? Como
se pode definir um pensamento, que tem necessidade
do tempo e de outrem? Este pensamento não seria a
superação do programa cartesiano de dominar o mundo
na solidão e na intemporalidade? (KAMPER, 2002, p. 11)
Livre das amarras das tradições musicais, ou talvez liberto delas após
suas incursões pelo free jazz e pela música oriental, Berendt propunha
uma ontologia do ouvir, que revelava uma dimensão ‘perdida’, ou saturada da imagem, sua dimensão corpórea, ou antropológica, como prefere
Kamper, e também Belting: “a questão da imagem e do médio nos conduz novamente ao corpo, que não somente foi, mas continua sendo um
lugar das imagens pela força de sua imaginação.” (Belting, 2007: 44).
A proposta de Berendt durante sua incursão pelos sons e pelo ouvir, embora fosse ele também midiático, era pensar outro tipo de imagem, que não
esta, estabelecida por relações de ‘projeção-identificação’, típicas da sociedade contemporânea. A imagem sonora, que só significa enquanto corpo,
e neste contexto, a áudio-imagem, surge como medida ecológica para se
pensar a comunicação. Assim, como um convite à imaginação, compunha
a rica paisagem sonora de Nada Brahma, os sons do universo e das esferas13, do fundo dos mares e das baleias14, dos monges tibetanos15 e da mú13 THE HARMONY OF THE WORLD [A Harmonia do Mundo]: realizada por Willie Ruff e John
Rodgers (Editora Musical de Universidade de Yale LP 1571). (apud Berendt, 1993: 97)
14 SOUNDS OF THE SEA [Sons do Mar] Folkways Records, Science Series, FPX 121. (apud Berendt,
1993: 115)
15 THE MUSIC OF TIBET, in: An Anthology of the World’s Musici 6 (Anthology AST 4005, Anthology Record and tape Corporation, 135 West 41 St., Nova York, N.Y. 100 36). (apud Berendt,
1993: 97)
135
sica clássica indiana16, ao lado da música minimalista de Steve Reich, do
rock de Pink Floyd e Santana, passando pelo jazz de Don Charry e John
Coltrane, até o célebre “O Messias” de Haendel. Do mantra “om” às mais
recentes criações musicais, a peça radiofônica falava sobre o ouvir pelos
sons e apresentava imagens audíveis e não audíveis, mas possíveis de serem imaginadas e reproduzidas.
A técnica e a mídia, a música e o ouvir contemporâneos
Proveniente de investigações sobre o telégrafo, o desenvolvimento da
telefonia, “ou retransmissão do som à distância” (Chion, 1994: 14), que
nasce paralelamente a fotografia, em finais do século XIX, forneceu a
primeira técnica de transmissão sonora, que impulsionou o império da
radiofonia e das mídias de massa em décadas posteriores. Anterior à invenção da amplificação, o “fonógrafo” possibilitava a retransmissão do
som por meio da captação de ondas sonoras, mas não sem distorções.
Como coloca Chion, quando diferencia as técnicas de reprodução e amplificação do som: “a reprodução por fonógrafo, (...) da voz de um tenor ou
de uma soprano representava mais uma redução que uma amplificação.”
(Chion, 1994: 19). Da criação da telefonia e da captação de sons por meio
de microfones até a “fonofixação”, ou gravação, pouco tempo se passou,
provocando transformações profundas à audição. A partir desse momento, o som deixou de ser um fenômeno passageiro e se tornou passível de
apreensão.
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conservação dos fenômenos acústicos, que iniciou uma nova era moderna, marcadamente ‘tecnicista’ e massivamente midiática, embora
reproduzisse sons existentes, não deveria ser entendida como simples
“transmissão no tempo” de um fenômeno passado. Com a possibilidade
de “reaudição literal” dos fenômenos acústicos, músicos e compositores
se tornam capazes de ouvir a si mesmos, ou as próprias composições,
16 RAVI SHANKAR e ALI AKBAR KHAN em concerto 1972 – com Alla Rakha, Tabla (Apple Records Sapdo 1002, 2LPs). (apud Berendt, 1993: 212)
136
sem precisar tocá-las, o que contribuiu para “invenções sonoras e musicais que seriam mais – e eles sabiam disso – do que uma recordação
na memória de cada um” (Chion, 1994: 17). Com o ligeiro e consequente
desenvolvimento das técnicas de amplificação e manipulação, ou “remodelagem” a imagem sonora pôde ser tratada de maneira tão específica
quanto a visual:
Finalmente, os progressos da digitalização permitem limpar
os ruídos de superfície das velhas gravações, reavivando
suas cores: isso releva da arte secular, já conhecida pela
pintura, da restauração. Sinal que o som musical adquire as
propriedades da matéria pictórica. (CHION, 1994, p. 21)
Inspirado pela experiência ao lado do engenheiro e sonoplasta, Pierre Schaeffer, criador da música concreta, Michel Chion é hoje uma das
maiores autoridades no que se refere ao entendimento da imagem e do
som no cinema. É também um premiado compositor de música concreta
e trilhas audiovisuais. Em pesquisas recentes, propõe o desenvolvimento da percepção “audiovisão” para despertar a atenção sonora dos denominados, meios audiovisuais. Como sugere o autor, as percepções auditivas e visuais coexistem e, portanto, precisam ser entendidas em suas
especificidades: “os filmes, a televisão e os media audiovisuais em geral
não se dirigem apenas à visão”, e continua, “suscitam no espectador – no
seu <audioespetador>, uma atitude perceptiva específica” (Chion, 2011: 7).
Percebemos assim, que mesmo no contexto da radiofonia, que suscitou
a criação e o desenvolvimento de novas formas musicais como a música
concreta, eletroacústica e eletrônica; de forma geral, pouco contemplou
a música erudita, sobretudo a contemporânea, no seu círculo de difusão
“ainda muito restrito as músicas populares” (Chion, 1994: 64). Como também demonstra o compositor francês, diante das novas condições de escuta, nossa cultura ainda não desenvolveu uma percepção contundente
com a nova realidade:
137
Outrora transcreviam-se muitas músicas de orquestra para o
piano, a fim de terem uma maior difusão! Mas a diferença é
que hoje, quando mudamos a música gravada de suporte, de
canal e de condições de escuta, não sabemos exatamente
o que dela modificamos, apesar de possuirmos aparelhos
considerados preciosos, que nos dão, por intermédio dos
seus botões, uma ilusão de controlo. (CHION, 1994, p. 90)
A mudança no gesto de produzir e escutar música, mediante a profusão
das mídias de massa, alterou sensivelmente a percepção auditiva humana. Durante o século XIX, tanto no Brasil quanto na Europa, possuir um
piano, além de muito comum, era a única forma para se ouvir música em
casa. Assim as partituras não só familiarizavam o público com o repertório da tradicional música do ocidente, como ampliavam sua percepção
auditiva. Na verdade, a interpretação de Bethoven no âmbito particular,
por exemplo, produzia sons completamente diferentes daqueles tocados
por um grande interprete durante um concerto. Nesse sentido, mesmo
um músico amador era capaz de reconhecer percepções sonoras distintas, mediante a transposição da obra da esfera particular para a pública.
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s mudanças culturais que levaram à substituição do piano e das partituras por instrumentos elétricos, rádios e novas mídias, provocaram
impactos na compreensão auditiva do homem, ainda pouco explorados
pela cultura contemporânea, mas que começam pela redução radical
do corpo nos processos de difusão/audição musical. Como demonstra
Chion, nossa ilusão de controle diante das novas máquinas sonoras, embora possibilite a “manipulação de frequências e amplitudes, não nos
dá nenhum domínio preciso e exacto sobre a mensagem que dela sai.”
(Chion, 1994: 90). E conclui:
Para fugir a este sentimento de impotência há quem prefira
deixar tudo à conta da técnica, renunciando mesmo ao seu
ouvido; a verdade é que é este último que devemos fazer trabalhar,
nomeadamente pela passagem das nossas sensações pelo crivo
das palavras, para as readaptarmos. (Chion, 1994, p. 90-91)
138
De fato, o avanço da poluição sonora, a perda da qualidade do som em
aparelhos miniaturizados e em conversões digitais da música, além da
inferioridade das tecnologias sonoras frente às visuais em mídias como
tevê, computador e até mesmo (quem diria!) o celular, são reflexos de
uma evolução técnica e cultural que seguiu desatenta ao ouvir. Assim,
podemos dizer que não temos dado ouvidos às informações sonoras que
compõe o cenário cultural no qual estamos imersos. De acordo com as
reflexões do também musicólogo e canadense, Murray Schafer, as paisagens sonoras comunicam sobre determinada época e cultura, ou seja, o
som é também veículo de comunicação; nesse sentido, não deve se manter restrito ao campo da música..
Esse entendimento parece fundamental num tempo onde a produção excessiva de imagens, sobrepostas e expostas, privilegia, sobretudo, a visão. Para Chion, este é o motivo pelo qual as mídias sonoras e audiovisuais ainda utilizam o som de maneira insatisfatória. Também para Murray
Schafer (1991), não foi por outro motivo, se não pela desatenção dada aos
ouvidos pela cultura do ‘ver’, que fomos impedidos de perceber o “esgoto sonoro” no qual estamos inseridos nas grandes cidades. O excesso
de visibilidade e audibilidade nos ambientes culturais contemporâneos
parece ter não só nos cegado, como também ensurdecido, daí o questionamento de Baitello se “não estamos nos tornando surdos intencionais?”
(Baitello, 2005: 99). No âmbito das teorias da Comunicação e da Mídia,
Vicente Romano chamou este resgate das dimensões sensórias de ‘ecologia da comunicação’ (2004).
A comunicação auditiva na obra de J. E. Berendt
Assim, quando Joachim-Ernst Berendt abandona sua especialidade musical e retorna ao rádio para falar sobre os sons e o ouvir, longe de parecer
retrógrado, antecipa a importância de pensar a comunicação sensorial,
sobretudo a auditiva, mediante a nascente cultura telemática que começava a despontar. Nesse sentido, dá prosseguimento a uma das inquieta-
139
ções de Kamper quando diz: “uma nova época do ouvir está anunciada”
(apud Baitello, 2005: 108), propondo uma ‘estética pós-midiática’ de retorno ao corpo. A imagem sonora, sem referente concreto na visualidade,
transposta no ar, estimula o corpo e só significa enquanto corpo. Esse entrecruzamento entre a imagem sonora (que os musicólogos denominam
som) e o ouvido (ou corpo, com os teóricos da mídia e os culturalistas
da oralidade) define o conceito de áudio-imagem. Paul Zumthor revela
o aspecto interior, ativo-criativo dessa antropologia sonora, quando diz:
A componente fundamental da “recepção” é assim a ação
do ouvinte, recriando, de acordo com seu próprio uso e suas
próprias configurações interiores, o universo significante
que lhe é transmitido. (ZUMTHOR, 2010, p. 258)
Sob a perspectiva da comunicação e da mídia um novo campo “arqueológico” do saber parece trazer a chave para a compreensão da comunicação auditiva em Berendt. O conceito de arqueologia já vem sendo trabalhado por pensadores da mídia contemporâneos, dentre eles Norval
Baitello Jr., em diálogo com Siegfried Zielinski da Universidade de Artes
de Berlim. Na apresentação do livro de Zielinski, Arqueologia da Mídia,
quando Baitello explana sobre as ciências arqueológicas, “que cuidam
de resgatar o passado descartado, (...) esvaziando um pouco a inflada
ubris do presente” (2006: 13), aponta para a desobstrução do passado
como forma para se recuperar uma “real dimensão dos meios” (idem).
Berendt retorna a uma primitiva percepção auditiva a partir de um som
original, que denominaremos ‘áudio-imagem original’. O som do qual
fala Berendt em Nada Brahama aparece como traço comum às mais diversas e distantes mitologias da criação. Seja pelo hálito ou respiro de
Deus, confirmado pelas escrituras hebraicas, basilares das três grandes
religiões monoteístas ocidentais; seja pela vibração da palavra inarticulada, OM, na tradição dos Upanishads, como forma de expressão da sonoridade primeva, a dimensão sagrada é revelada enquanto som e, por-
140
tanto, depende da experiência auditiva. O som originário não antecede
somente a palavra, antecede também a voz:
A confusão entre voz e som, que seria típica de um pensamento
místico arcaico, também perfaz um horizonte de sentido que
parece constranger o vocálico a confrontar-se antes de tudo
com o âmbito dos sons, em vez de depender imediatamente
do sistema da palavra. (CAVARERO, 2011, p. 34-35)
Embora a italiana Adriana Cavarero, em sua tese de doutoramento, nos
revele o significado próprio da voz, ou seja, a unicidade carnal do corpo
que a emite e sua dimensão relacional, adverte sobre o desprezo filosófico pelo tema, proveniente da inclinação grega para uma universalidade
abstrata e sem corpo do ‘logos’. A consequência, sobretudo no campo
da linguística, foi a redução da voz à perspectiva sistêmica e semântica
da língua, onde a palavra aparece muda, apenas como signo. Conforme
descreve a autora, a situação começa a mudar nas primeiras décadas do
século XX com os estudos sobre as culturas orais, onde a voz ressurge
soberana: “o semântico, ainda não submetido às leis congelantes da escritura, dobra-se à musicalidade do vocálico” (idem: 25).
No entanto, debruçada sobre a tradição religiosa hebraica, a autora apresenta outra cultura onde a voz antecede a palavra pelo do som. Modelada pelo texto Bíblico, a palavra deveria ser proclamada no ato da leitura,
de forma que o som constituísse o seu lado reverso. Reflexo sintomático
da própria escrita hebraica, composta por um alfabeto consonântico que,
até o século VI antes da compilação do Texto Massorético17, omitia as
vogais, que deveriam ser inseridas pela voz. Assim, ao menos dois níveis
de comunicação podem ser observados, um mediante a visualidade e literalidade da palavra escrita, funcional para a transmissão de conteúdos;
e outro auditivo, denominado por Cavarero “comunicação originária”,
onde a Palavra é apenas percepção auditiva. Nas palavras da autora: “Na
17 O Texto Massorético é a primeira compilação dos manuscritos hebraicos bíblicos.
141
fase mais antiga da religião hebraica, Deus é voz, ou mesmo sopro, não
palavra” (Idem: 36).
Dois termos recorrentes nas escrituras sagradas corroboram a afirmativa. São eles, ruah e qol (hebraico), que na versão grega da Septuaginda18
foram traduzidos por, pneuma e phoné. O sentido de ruah está mais próximo do sopro, do respiro divino, já o qol é o som, o efeito acústico do sopro e a voz do criador. “Ambos relativos à boca de Deus, [phoné e pneuma] evocam a trama essencial entre voz e respiração, uma trama que na
Bíblia judaica é também autorrevelação pneumática e sonora, bem como
criação” (idem: 35). É daí que a leitura vocal do texto se faz repleta de sentido, pois o som não se limita a significante da palavra, mas é a própria
Palavra que vibra. Observem:
[A ideia de comunicação na cultura hebraica] afirma que os
falantes se comunicam entre si na voz de Deus que vibra no som
da língua deles. A vibração do qol divino na palavra articulada
é, de fato, a comunicação originária que torna possível, ulterior e
secundária, qualquer outra comunicação. (CAVARERO, 2011, p. 37)
E conclui etimologicamente a autora:
Na tradição hebraica, a Palavra sagrada é, antes de tudo,
um evento sonoro confirmado no próprio modo como é
chamada a Bíblia, miqrá, isto é, ‘leitura, proclamação’ (do
verbo qarà, ‘chamar, proclamar, declarar’, presente também
no próprio termo ‘Corão’). (CAVARERO, 2011, p. 38)
A leitura do Alcorão também confirma a esfera sonora da Palavra e auditiva da experiência divina, na medida em que exige a proclamação em
voz alta com ondulação do corpo. A musicalidade que provém da leitura
em voz alta, vibra pela palavra e atualiza o som original. Comungando
da mesma origem semita dos hebreus, na antiga ciência árabe são re18 Nome da versão da Bíblia hebraica para o grego.
142
correntes os vestígios que confirmam a presença do evento acústico originário como parte sonora da linguagem, confirmado pelos estudos de
Amnon Shiloah. Num pequeno artigo que compõe o livro Variantology 5,
ao analisar os escritos deixados por um dos mais representativos nomes
do início da alquimia árabe, Jabir ibn Hayyan (séculos VIII e IX), Shiloah analisa exatamente os fundamentos teóricos e filosóficos na obra do
alquimista, capazes de trazer à tona a conexão entre música e origem da
linguagem. A base desse cruzamento se dá enquanto a palavra é som, o
som original.
Em árabe, o termo correspondente ao qol hebreu é o sawt que, de acordo
com Shiloah, é a palavra chave nas discussões que permeiam o tema.
O papel predominante da voz está em diversos escritos do alquimista
árabe. Neles, também se encontram teorias acerca da função sonora das
vogais na revitalização do texto escrito, e especulações embasadas nas
leis Pitagóricas da harmonia numérica como base metodológica comum
para se pensar a ciência da música, da poesia, da morfologia, da melodia,
do ritmo e da poesia; de forma que a mesma lei regente dos fenômenos
celestes se refletisse nos terrenos. De acordo com Shiloah, “para os místicos, a voz simbolizava a vida divina e colocava o homem em ressonância
com a vibração celeste e universal” (Shiloah, 2011: 480). E continua:
A prevalecente definição “harmonia dos números” dada ao
ritmo e à música por Jabir remonta a alma do mundo e a
alma do indivíduo. A alma do mundo contempla a alma do
indivíduo, que deve expressar ou incutir sua própria harmonia
em música e linguagem. (SHILOAH, 2011, p. 488) 19
Com o pressuposto de que o pensamento alquímico deve ser compreendido pela lógica da mutação, ou da transmutação, podemos sugerir que,
19 Tradução Livre: “The prevailing definition “harmony of numbers” given to rhythm and music
by Jabir goes back to the soul of the world and the individual soul. The soul of the world endows and permeates the individual soul, which is said to express or to instill its proper harmony
into man’s music and language.”
143
a preocupação de Jabir ibn Hayyan era o de compreender de que forma
o som se transmutava em palavra e música. Ou, para ficarmos com as
palavras de Shiloah, como o “som instintivo” se transmutava em “som
inteligível”. Como coloca o autor, as discussões filosóficas da época giravam em torno da dúvida: se a voz é natural ao homem, a linguagem e a
música também o são? Fiquemos com a resposta do próprio Jabir:
A afirmação de que a linguagem se dá devido a uma instituição
e a uma convenção acidentais é errônea porque a linguagem é
uma substância de origem natural; portanto, não é derivada de
uma instituição, mas de uma intenção da alma e todos os seus
atos são substanciais. […] (apud SHILOAH, 2011, p. 488) 20
O que pretendemos deixar claro até aqui é que embora a ciência da linguagem de tradição grega tenha evoluído em direção a um “logos desvocalizado” e, portanto, sem corpo, como aponta Adriana Cavarero; na
raiz arqueológica que fundamenta a base teológica do judaísmo, do cristianismo e do islamismo, o som da voz é parte indissociável da palavra,
que neste contexto é também áudio-imagem. No âmbito da sabedoria
arcaica, o evento sonoro antecede a palavra, ao mesmo tempo em que a
transcende enquanto presença divina.
Joachim-Ernst Berendt, muitos séculos depois, interessado justamente
no elemento que faz da música transcendente retoma a antiga hermética
alquímica que vai da Voz à Palavra ou, como preferem os filósofos, do
som vocálico à linguagem. Suas reflexões acerca das milenares fórmulas mântricas, denominadas “substância primeva do mundo”, retomam
aquilo que na Palavra hebraica, e também nos estudos místicos da alquimia, e nas mais recentes pesquisas sobre as culturas orais, se denominou,
substancialidade da linguagem:
20 Tradução Livre: “The assertion pretending that language is due to an institution and a convention and that it is but an accident is wrong because language is a substance and of natural
origin; hence, it does not derive from an institution but from an intention of the soul and all its
acts are substantial.”
144
O mundo é som. Imediatamente, põe-se a questão: que tipo de
som? Trata-se de uma questão-chave, pois, pelo fato de o mundo
ser som, fazer essa pergunta significa o mesmo que perguntar
qual a substância primeva do mundo. (BERENDT, 1993, p. 31)
A resposta está evidente em diversos trechos do capítulo, mas pode ser
sintetizada nas palavras do sufi Hazrat Inayat Khan citado por Berendt:
O que chamamos de palavra é só uma manifestação verbal da
respiração produzida pela boca e pela língua. Mediante a habilidade
da boca, a respiração se faz voz, daí por que o estado primevo de uma
palavra é a respiração. Se dissermos: ‘No início era a respiração, isso é
o mesmo que dizer ‘no início era o Verbo’ (apud BERENDT, 1993, p. 47)
Vemos assim, que também na sabedoria mística do sufismo, voz e respiro são indissociáveis da palavra, de forma que o som, ou a esfera audível
dessa compilação, tem o mesmo sentido de tornar perceptível a sonoridade da qual surge o universo e o homem. Assim, antes da palavra, somos
envolvidos pelo som, pelo não expresso, que possibilita a comunicação
originária do encontro entre o homem e a boca de Deus ou o mergulho
na vibração primeva. O som se torna sentido da palavra. Daí sua aproximação com os mantras budistas que, segundo Lama Govinda na voz
de Berendt, “expressam sentimentos, mas não conceitos; afeiçoamentos,
mas não ideias.” (apud Berendt, 1993: 40). E continua ele:
Assim como uma partitura musical escrita não consegue
transmitir a impressão espiritual e emocional da música tocada
ou ouvida, da mesma forma a análise intelectual de um mantra
não transmite a vivência de um iniciado, nem revela seus
efeitos profundos que só são obtidos mediante uma prática
persistente e duradoura. (apud BERENDT, 1993, p. 44).
As sílabas mântricas, assim como a arcaica escrita sagrada, só produzem
sentido quando pronunciadas, que seria o mesmo que dizer, quando ‘encarnadas’. Como falar é também se escutar, o encontro com a dimensão
145
sagrada ou dissolução do ego, se dá mediante a experiência prática e
sensória do corpo, capaz de transcender os opostos, homem e Deus, ego
e universo. Assim, é pela dimensão audível da voz que o corpo vincula-se ao transcendente, que é pré-racional, ilógico e inominável. Neste caso,
o referente da palavra é o que a transcende; o significante, a presença
divina e o significado, o corpo que ouve.
Se a palavra provém do Som e se a música, como o mantra e a leitura
em voz alta, em última instância, pretende atingir a dimensão audível da
Palavra, concluiremos com uma passagem de Vilém Fluesser quando, no
seu livro Los Gestos, analisa a singularidade do gesto de ouvir música,
quando diz:
O ouvinte de música não se concentra propriamente, senão
que concentra no interior de seu corpo as ondas sonoras que
lhe chegam. Isso significa que na escuta musical o corpo se
faz música e a música se faz corpo. (FLUSSER, 1994, p. 74)
Assim, podemos dizer que na ‘comunicação originária’ o som / força
criadora é percepção antropológica, experiência auditiva, corpórea. A
áudio-imagem original revela o sagrado no corpo, o som não tem um referente concreto direto, em última instância, seriam a harmonia celestial,
os astros, a dimensão divina inatingível, de forma que, nas raízes profundas da áudio-imagem, encontramos uma definição contrária à imagem
visual. Ou seja, não representa a ausência de uma presença, se não, que
é a própria presença da ausência, fundamentalmente dependente da capacidade criativa do corpo, mediante os ouvidos.
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147
A ritualização nas repúblicas
federais de Ouro Preto–
MG: dos hinos às “rezas de
cachaça” e suas implicações
Leonardo Corrêa Bomfim
Universidade Estadual Paulista – UNESP
[email protected]
Resumo
A histórica cidade de Ouro Preto – MG há anos vem acolhendo novos habitantes em virtude
da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, sendo este crescente número de estudantes
responsável por algumas transformações de elementos e práticas do município. Em
Ouro Preto existem 68 Repúblicas Federais, sendo grande parte destas, antigos casarões
transformados em moradias estudantis, cedidos pela universidade, e que possuem um
regimento próprio. A “reza de cachaça” é uma prática apropriada pelos estudantes das
Repúblicas Federais de Ouro Preto, que consiste em declamar versos rimados antes da
ingestão da bebida. Tal atividade pode ser considerada uma espécie de loa, possuindo,
normalmente, uma conotação cômica e lúdica, abordando desde estruturas temáticas
religiosas, à exaltação das próprias repúblicas, da sexualidade, e do excesso no consumo
alcoólico. Assim como ocorre nas “rezas”, a maioria das repúblicas também possui hinos,
sendo estes, habitualmente, apropriações de canções da cultura popular, com ou sem
modificações da letra, que exaltam os mesmos temas. Estas atividades, normalmente
realizadas em festas nas próprias repúblicas, refletem diversos aspectos da cultura jovem
e estudantil ouro-pretana, que, ao transitar entre elementos como tradição e modernidade,
hierarquia e a noção de communitas, revela características que se relacionam à tradição
oral, ritual, identidade e pertencimento. Desta forma, através de observações etnográficas
realizadas entre 2007 e 2010, discutimos neste artigo questões associadas aos conceitos
elencados, através de autores como Turner (1974), Hall (2000; 2003), Geertz (1989), entre outros,
afirmando esta prática como um resgate e mantenimento da cultura oral popular mineira.
Palavras-chave
Ouro Preto, repúblicas federais, hinos, “rezas de cachaça”
148
Ouro Preto: aspectos históricos e geográficos
A cidade de Ouro Preto - MG localiza-se a cerca de 97 km da capital do
Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, possuindo uma população de,
aproximadamente, 70 mil habitantes, distribuída em uma área territorial
de 1.245,865 km² (IBGE, 2010), situada a 1179 m de altitude. O ponto mais
alto da cidade é o Pico do Itacolomi, com altitude de 1722 m, podendo ser
observado, praticamente, de qualquer lugar dentro dos limites territoriais
citadinos. O município ouro-pretano (gentílico) possui treze distritos, entre eles, Amarantina, Antônio Pereira, Cachoeira do Campo, Engenheiro
Correia, Glaura, Lavras Novas, Miguel Burnier, Rodrigo Silva, Santa Rita
de Ouro Preto, Santo Antônio do Leite, Santo Antônio do Salto, São Bartolomeu, além de, é claro, a própria sede. As cidades limítrofes de Ouro
Preto são: Belo Vale, Moeda, Itabirito, Santa Bárbara, Mariana, Piranga,
Itaverava, Catas Altas da Noruega, Ouro Branco e Congonhas (OURO
PRETO, 2013).
Ouro Preto é comumente reconhecida por sua arquitetura colonial, sendo, em 1980, a primeira cidade brasileira a ser declarada Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura (GLOBO MINAS, 2013). Além disso,
é imprescindível destacar os fatores históricos que desencadearam na
fundação da extinta Vila Rica - junção de vários arraiais, da qual tornou-se sede em 1652, e, posteriormente, em 1823, deu origem à cidade de
Ouro Preto -, tendo como protagonista a descoberta de ouro e pedras
preciosas na região pelos bandeirantes, no século XVII.
O período minerador extrativista aurífero, também denominado, mais
comumente, como Ciclo do Ouro, resistiu até o final do século XVIII,
quando as minas desta região já apresentavam fortes sinais de esgotamento, “deixando como herança vastas terras revolvidas, montes de cascalho e uma enorme erosão em virtude das crateras abertas na mata”
(MARCONDES, 2005, p. 57).
149
O ciclo do ouro terminou no final do século XVIII, quando a maioria
das minas economicamente viáveis havia se esgotado. Parte da
população mineira, então, rumou em direção ao Planalto Central
do Brasil, onde encontrou trabalho em fazendas de gado, e outros
foram para o Sul, engajando-se em atividades agrícolas. Muitos
permaneceram em Minas Gerais, também se dedicando a atividades
agrícolas, muitas de natureza de subsistência (BAER, 2002, p. 36).
Além de seu histórico extrativista mineral desde a época colonial, sendo uma importante referência e um marco histórico na estruturação social, cultural, política e econômica brasileira, há muito anos Ouro Preto
também vem se destacando por seu pioneirismo nas áreas educacionais,
onde foram criados, ainda no século XVIII, relevantes polos de estudo e
pesquisa nas áreas de farmácia e engenharia.
A Escola de Farmácia e a Escola de Minas de Ouro Preto
Logo após a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, e a “Proclamação da Independência do Brasil”, em 1822, foi fundada, a partir da
Lei nº 140, de 1839 - sancionada pelo Presidente da Província de Minas
Gerais - a “Escola de Pharmacia de Ouro Preto” neste mesmo ano. É importante evidenciar que esta foi a primeira escola no Brasil a se dedicar,
exclusivamente, ao ensino da profissão farmacêutica, desvinculando-se
do curso de Medicina (PROGRAD, 2013).
A Escola de Farmácia de Ouro Preto também foi a primeira instituição
de Ensino Superior criada em Minas Gerais e a quinta (Faculdade) do
Brasil, atraindo, desde aquele momento, diversos estudantes para a cidade mineira. Além deste marco, também podemos citar a criação da
tradicional Escola de Minas - dedicada ao ensino de Engenharia neste
município -, fundada ainda no século XIX, em 12 de Outubro de 1876.
Esta escola foi idealizada por Dom Pedro II, baseando-se, em partes, nos
moldes da École Normale Supérieure e fundada pelo bacharel francês
em ciências físicas e matemáticas Claude Henri Gorceix (BIBLIOTECA
NACIONAL, 2013). Fato de grande relevância a ser também destacado, é
150
o de que esta Escola foi a sexta instituição de Ensino Superior criada no
Brasil, comemorando, neste ano de 2013, seu 137º aniversário (ABM BRASIL, 2013).
Após aceitar o convite do imperador português, Gorceix concluiu que
Ouro Preto seria o local ideal para fundar uma Escola de Minas no Brasil, devido à riqueza de formações geológicas encontradas na região que
facilitaria o aprendizado dos alunos.
A iniciativa foi toda de D. Pedro II. Em viagem à Europa, entre
maio de 1871 e março de 1872, o imperador entrou em contato
com Auguste Daubrée, seu colega na Academia de Ciências de
Paris e diretor da Escola de Minas, também de Paris. Pediu-lhe
um documento sobre a melhor maneira de conhecer e explorar as
riquezas minerais no Brasil. Daubrée sugeriu a elaboração da carta
geológica e o ensino da geologia por professores estrangeiros ou
por brasileiros treinados no exterior. [...] Daubrée, recém-nomeado
diretor da Escola de Minas de Paris, não quis abandonar o posto.
Ofereceu, em compensação, seus serviços no sentido de procurar
alguém que pudesse encarregar-se da tarefa (CARVALHO, 2002, p.
46). A indicação não podia ser mais feliz, pois Claude Henri Gorceix
possuía alto preparo e capacidade de direção. Ele escolheu o local e
indicou linhas básicas do estabelecimento; trabalhou até 1891, como
seu primeiro diretor, executando tarefa meritória (Idem, Ibidem, p. 17).
Após quase um século de ensino - marcado por dificuldades e o isolamento geográfico e cultural de Ouro Preto, em razão da decisão de
transferência da capital mineira, em 1893, para Belo Horizonte -, em 21 de
agosto de 1969, por intermédio do Governo Federal, ambas as faculdades (Escolas) foram incorporadas, instituindo-se a Universidade Federal
de Ouro Preto - UFOP, mantendo ainda, entretanto, um grande prestígio
devido à extensa trajetória histórica desde suas fundações.
151
A consolidação da UFOP e das repúblicas estudantis
Atualmente a UFOP oferece 37 cursos de graduação presenciais, abrigando cerca de 12 mil estudantes e, se somarmos a este número os cursos
de graduação à distância, especialização, mestrado e doutorado, atingiremos a totalidade de, aproximadamente, 16 mil alunos. O corpo docente
da instituição é composto por 963 professores, contando ainda com cerca
de 800 funcionários referentes ao corpo técnico-administrativo (REVISTA ESCOLHA, 2012). A Universidade, que a cada dia abriga um maior número de estudantes, ampliando as opções de cursos, assim como vagas
nos cursos pré-existentes, subdivide seu campus em três cidades: Ouro
Preto (sede), Mariana e João Monlevade (UFOP, 2013). Todos estes fatores e características contribuíram para que Ouro Preto se estabelecesse
como uma cidade de caráter universitário, 1 e, juntamente à atribuição
deste novo status, e a um crescente número de discentes, a comunidade
estudantil passou a se organizar e a reivindicar moradias estudantis.
De acordo com a pesquisadora Liliane Sayegh, em sua dissertação na
área de Arquitetura e Urbanismo, Ouro Preto é a única cidade brasileira
a abrigar repúblicas estudantis com características estruturais e funcionais semelhantes às repúblicas dos alunos da Universidade de Coimbra
(fundada em 1290), Portugal. A autora ainda frisou que estes elementos
se revelam “nos trotes, festas tradicionais, hierarquia interna de funcionamento e a tradição do ex-aluno, além de outros aspectos como a moradia estudantil em casas consideradas patrimônios culturais” (2009, p.
113).
1
É importante destacar que o município não se caracteriza, exclusivamente, por uma cidade
universitária, já que é possível identificar em seu território diversas empresas de extrativismo
de minérios, como a Vale, Gerdau, Samarco, entre outras. Além disso, também é importante
destacar o grande, e constante, fluxo turístico internacional no município, considerado Patrimônio da Humanidade, por sua arquitetura, museus, igrejas, além dos frequentes festivais
de arte, congressos e eventos em geral, que movimentam um grande capital em seus hotéis,
pousadas, restaurantes, comércio de pedras preciosas, obras de arte, artesanato, etc..
152
É possível ainda afirmar a existência de indícios de que o sistema de
repúblicas ouro-pretano,
inclusive seu nome, foi fortemente influenciado pelas Repúblicas
de Coimbra, em Portugal, onde diversos brasileiros iam fazer seus
estudos - situação que perdurou durante vários séculos, já que no
Brasil, como já citado, as instituições de ensino superior só começam a
ganhar relevante consistência durante o séc. XIX (SAYEGH, 2009, p. 111).
Quanto à terminologia “república” - empregada neste município mineiro
para designar uma localidade onde habitam estudantes que dividem, de
forma igualitária, as tarefas, responsabilidades e, logicamente, as despesas da residência - existem ainda duas outras versões possíveis para a
utilização deste conceito, que, segundo a pesquisadora em Direito, Maria
Fernanda Salcedo Repolês, ambas possuem uma conotação política:
Por um lado, tal termo alude à autonomia administrativa
de que as Repúblicas gozam em relação à Universidade e
reconhecida pela própria direção dessa. Por outro, remontase a um fato histórico. Quando do fim da Monarquia no Brasil
e implantação da forma republicana, em 1889, os estudantes
fizeram uma manifestação por ocasião da visita à então capital
de Minas Gerais, do gabinete parlamentar imperial, encabeçado
pelo Ministro Ouro Preto. Para demonstrar sua rejeição à
Monarquia, os estudantes afixaram cartazes com a palavra
‘República’ nas fachadas das moradias estudantis (2007a, 193).
O processo de fundação e estruturação das repúblicas e moradias estudantis em Ouro Preto ocorreu de forma bastante diversificada e em
distintos momentos históricos. Cada república possui em sua trajetória
particularidades em relação à maneira e a data em que foi obtida a sua
casa atual (ou o primeiro local onde se instalou a república), havendo casos de compras, concessões, doações, invasões, construções destinadas
a este propósito, entre outros.
153
Primeiramente, os estudantes em Ouro Preto buscavam pensões2 para
se alojar, devido ao número reduzido de discentes na cidade3 (CARVALHO, 2002). Entretanto, o historiador e sociólogo Otávio Luiz Machado4,
destaca que no início do século XX, em decorrência da transferência da
capital mineira para Belo Horizonte, Ouro Preto se encontrava em um
declínio econômico, e, diante desta situação de desamparo, a cidade começou a se esvaziar, já que muitas famílias optaram por mudar-se para
a nova capital. A partir daí, inúmeros casarões históricos foram desocupados, reduzindo também o valor do aluguel no município, o que favoreceu a criação de repúblicas em território ouro-pretano, seja na forma
de ocupação ou de locação dos imóveis. O autor ainda defende que as
famílias, na época, preferiam liberar as casas, pois “era melhor deixá-las
nas mãos dos estudantes que a cuidariam do que deixar desabá-las ou
ser ocupadas por estranhos. A desvalorização dos imóveis era às vezes
tão gritante que achavam melhor deixar de quitar os impostos, pois não
compensava” (MACHADO, 2007b, p. 7).
Como as fontes bibliográficas sobre as repúblicas de Ouro Preto são bastante escassas, prevalecendo, em sua maioria, depoimentos orais, reportagens, fotos e documentos dispersos ou imprecisos, muitas vezes em
condições ruins, é necessário destacar a dificuldade em se recolher, com
exatidão, a história destas moradias, especialmente as mais antigas e tradicionais. Sendo assim, neste artigo, não irei questionar de forma alguma a data de fundação de nenhuma destas residências, nem possuo esta
pretensão como objetivo. Portanto, serão acatadas as datas de fundação
estipuladas pelas próprias repúblicas, confiando que estas possuem documentos suficientes para a comprovação de seu período de existência.
2
Entende-se aqui como pensões, quartos alugados por moradores da própria cidade para estudantes advindos de outras localidades.
3
José Murilo de Carvalho evidencia que o número de engenheiros formados pela Escola de
Minas era de apenas 275 entre os anos de 1875 e 1922.
4
Ex-morador da República Aquarius.
154
De acordo com o depoimento do ex-reitor da UFOP, Fernando Borges
Campos5, na década de 1930 já havia em Ouro Preto cerca de seis repúblicas (SAYEGH, 2009, p. 115). Este proferimento coincide com as datações apresentadas pelas próprias repúblicas, sendo, as seis mais antigas,
em ordem de fundação: Castelo dos Nobres, 1919; Arca de Noé, 1927; Canaan, meados da década de 1920 ou 1930 6; Vaticano, 1935; Consulado,
1936 e Pureza, 1939 (ARCA DE NOÉ, 2013; CANAAN, 2013; CASTELO DOS
NOBRES, 2013; CONSULADO, 2013; MACHADO, 2007a; PUREZA, 2013; VATICANO, 2013).
Todas estas repúblicas citadas estão localizadas no centro histórico da
cidade, em bairros - que apesar de não serem oficialmente delimitados
pela Prefeitura de Ouro Preto, demarcam características e questões culturais e sociais -, como o Antônio Dias e a Vila dos Tigres. De acordo
com os testemunhos recolhidos no livro Repúblicas Estudantis de Ouro
Preto e Mariana: Percursos e perspectivas (MACHADO, 2007a), e os dossiês organizados pelos próprios moradores/ex-moradores das repúblicas,
através de solicitação da REFOP7 (MACHADO, 2013a; 2013b; 2013c), é possível observar que o processo de apropriação destas casas, nesta época,
foi bastante semelhante.
A República Castelo dos Nobres teve como primeira residência um antigo casarão alugado, que, no século XIX, foi habitado pelo Barão de Sa5
Que também é ex-morador da República Baviera.
6
O site oficial da república defende que sua fundação ocorreu em meados de 1920 (CANAAN,
2013), entretanto, o livro das Repúblicas Estudantis de Ouro Preto e Mariana afirma que a
república foi fundada em meados de 1930 (MACHADO, 2007a). A data ainda permanece inexata devido ao fato de ter ocorrido um incêndio no antigo Fórum de Ouro Preto que destruiu
diversos documentos.
7
A Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto, REFOP, foi fundada em 2006 e tem
como objetivo uma maior unificação e representação das Repúblicas Federais desta cidade.
A REFOP defende os direitos e deveres destas instituições, além de estabelecer certas regras
que padronizem alguns parâmetros na organização e estruturas das moradias estudantis, respeitando, obviamente, as peculiaridades e tradições de cada residência. A REFOP ainda busca
estabelecer uma maior integração entre os moradores de repúblicas e os cidadãos ouro-pretanos.
155
ramenha, no bairro ouro-pretano das Lajes (ROCHA, 1990, p. 28; MACHADO, 2013a, p. 467). O Castelo dos Nobres mudou-se ainda para dois outros
imóveis, e, finalmente, em 1957, a pedido dos moradores da república da
época, a Escola de Minas cedeu o casarão localizado na Rua Bernardo
Vasconcelos, 91 para abrigar os estudantes. Esta casa havia sido destinada
ao uso dos professores da Escola de Minas, contudo, naquele momento
ela estava desabitada, desta forma, estes discentes que se encontravam
em dificuldades para o pagamento do aluguel, encaminharam este pedido que foi aprovado pelo Reitor da Escola (MACHADO, 2013a, p. 469-470).
A República Arca de Noé também transitou por vários locais de Ouro
Preto até obter um imóvel definitivo. O primeiro imóvel alugado a abrigar esta moradia estudantil foi a casa histórica do inconfidente Tomás
Antônio Gonzaga, localizada na Rua Cláudio Manoel. Em seguida transferiu-se para a Praça Tiradentes, e, posteriormente, para trás da Escola
de Minas, adquirindo, apenas em 1958, por uma doação do empresário
Antônio Ermírio de Moraes (fundador do Grupo Votorantin) à Casa do
Estudante da Escola de Minas – CEEM 8, a construção de sua moradia
estudantil que se mantém, até os duas atuais, no mesmo local (MACHADO, 2007a, 37-38).
As repúblicas Canaan, Vaticano, Consulado e Pureza também possuem
um histórico semelhante, sendo, inicialmente, sediadas em imóveis locados, e, com o passar do tempo, fixadas em um local através da doação de
alguma entidade como a Escola de Minas, Casa do Estudante, ou UFOP
8
A Casa do Estudante de Ouro Preto – CEOP foi criada em 1946 a partir da Associação de Ex-alunos da Escola de Minas, “entidade sem fins lucrativos com o objetivo de adquirir casas
para se tornarem repúblicas visando especialmente promover todas as formas de proteção
e beneficência aos estudantes de Ouro Preto.” Faziam parte desta associação ex-alunos da
Escola de Farmácia e da Escola de Minas. (SAYEGH, 2009, p. 116). “Em 1953, surge uma outra
entidade, a Casa do Estudante da Escola de Minas (CEEM), composta somente por ex-alunos
da Escola de Minas. Esta entidade teve maiores esforços em direção à angariação de fundos
para a construção de novas repúblicas estudantis: em 1963, inicia uma campanha através do
pedido de doação de verbas por empresas e embaixadas de diversos países no Brasil para a
construção de novas repúblicas destinadas aos alunos da Escola de Minas” (SAYEGH, 2009,
117).
156
(CANAAN, 2013; CONSULADO, 2013; MACHADO, 2007a; PUREZA, 2013; VATICANO, 2013).
No ano de 1982, a UFOP construiu catorze casas próximas ao campus –
Morro do Cruzeiro – subdivididas em quatro alas, para se tornarem Repúblicas Federais (BARBALHO, 2009; SAYEGH, 2009, p. 120-121). Entre estas,
estavam as repúblicas Quarto Crescente - QC, Convento (1ª ala); Unidos
por Acaso - UPA, Bastilha, Doce Mistura, Pasárgada (2ª ala); Covil dos
Gênios, Koxixo, Senzala, Peripatus (3ª ala); Lumiar, Arte & Manha9, Palmares, Vira Saia (4ª ala). Ainda na mesma década, em 1988, foram construídas e inauguradas as repúblicas Ovelha Negra e Cosa Nostra, próximas às quatro alas de Repúblicas Federais também no bairro Bauxita. 10
Ocorreram também alguns casos de invasões de casas no final da década de 1980 e início de 1990, assim como determinadas reivindicações,
por parte das estudantes do gênero feminino, de que havia poucas Repúblicas Federais femininas.11 Desta forma, em 1986, com a criação da
“Comissão de Moradia” pelo Diretório Central dos Estudantes - DCE, “são
levadas adiante sucessivas invasões às casas do centro histórico, pertencentes ao patrimônio da UFOP, mas que se encontravam subutilizadas, a
fim de reivindicar a transformação dessas casas em novas repúblicas, o
que realmente se efetivou” (SAYEGH, 2009, 122). Foram estes os casos da
República Saudade da Mamãe, e das repúblicas femininas Tanto Faz,
9
A Arte & Manha é a única República Federal mista, ou seja, que abriga moradores tanto do
sexo feminino quanto masculino.
10 As Repúblicas Federais femininas do campus eram: Quarto Crescente, Convento, Doce Mistura, Koxixo, Lumiar, Palmares e Ovelha Negra. No ano de 2008 a República Toka (feminina)
foi contemplada com uma moradia no campus, na 1ª ala, tornando-se federal. Processo semelhante ocorreu com a República Tigrada (masculina) que recebeu, logo após, uma moradia na
1ª ala, no entanto, a Tigrada, que já era federal, teve um histórico mais conturbado.
11 Antes do ano de 1982, quando as Repúblicas Federais do campus foram construídas e entregues aos estudantes, o número de repúblicas femininas era ainda menor. Foram constatados
alguns exemplos cuja fundação antecede esta data, como, por exemplo, Convento, 1969; Toka,
1972; Rebu, 1974; Cirandinha, 1977; Xamego, 1977; Bico Doce, 1978; Patotinha, 1979 e Favinho
de Mel, 1979.
157
Maria Bonita (MACHADO, 2007b). A República Virada pra Lua, assim
como a República Bem na Boca – ambas localizadas no local conhecido
como “brejo”, que abriga ainda às repúblicas femininas Tanto Faz e Chega Mais -, também são exemplos de moradias estudantis que foram negociadas entre a UFOP e a Comissão de Moradia, a partir de uma pressão
do crescente número de estudantes do sexo feminino nesta universidade.
Estas repúblicas foram fruto de invasões em imóveis ociosos da UFOP,
ocupações de institutos da universidade e uma organização e união estudantil em prol de melhorias e ampliações no número de moradias estudantis federais. 12
O sistema de autogestão das Repúblicas Federais
Alguns anos após estas negociações, as repúblicas já nutriam um status
de estruturas quase autônomas perante a administração da UFOP, sendo,
então, respeitadas por esta razão. No entanto, essa questão gerou certo
desconforto por parte de órgãos judiciários que começaram a questionar
a ocupação dos imóveis da União pelos discentes da UFOP, sem o uso direto da instituição, e de uma forma não-onerosa, No ano de 1990, o TCU
- Tribunal de Contas da União - solicitou explicações sobre o ocorrido,
sendo a questão justificada pelo então reitor Fernando Antônio Borges
Campos, que, em resposta, ressaltou as distinções entre alojamento e república:
A ‘república’ possui características peculiaríssimas, e como o próprio
nome revela, tentando reproduzir no convívio diário entre eles, quinze
ou vinte estudantes, por um período não menor do que quatro ou
cinco anos, as regras sociais de formação de um cidadão. Existe em
12 Ainda hoje, o número de Repúblicas Federais permanece, em sua maioria, masculina, com
um total de 53 repúblicas, em oposição a 15 repúblicas femininas. Além de outros fatores, certamente, essa característica é um reflexo histórico, já que, por diversos anos, o número de estudantes masculinos foi muito superior ao número de estudantes do gênero feminino, devido
às dificuldades de transporte para Ouro Preto, às questões de moradia na cidade e aos cursos
disponíveis desde a criação da Escola de Minas, Escola de Farmácia, e da UFOP, propriamente
dita.
158
Ouro Preto um ‘alojamento’ situado no campus do Morro do Cruzeiro
[...]. A administração da UFOP, em 75/76, cedeu o espaço a estudantes
de graduação, alojamento implantado nos moldes convencionais.
A prática demonstrou a inadequação sistemática, condenada
por estudantes, professores, administração e cultura local. [...]
Esse processo cultural, tradicional, gerou inevitavelmente, um forte
sentimento de repúdio a qualquer iniciativa externa contra suas
estruturas formais [das repúblicas]. A instituição escolar compreendia
estas razões e mesmo durante os governos militares respeitou esta
cultura local, que nunca admitiu sequer interveniência do DCE e/
ou de Diretórios Setoriais (Diretório Acadêmico das Escolas da
Universidade) [...]. O assunto ‘república estudantil’ em Ouro Preto
integra há muito tempo os relatórios de auditoria sobre a UFOP, é
raiz na história da Instituição, tornando-se necessário mostrar em
linguagem não processual que ‘república estudantil’ em Ouro
Preto não é somente residência de estudantes mas uma Instituição.
(CAMPOS, 1990, grifo do autor apud SAYEGH, 2009, p. 122-123).
Durante minha graduação em Música (Licenciatura) na Universidade
Federal de Ouro Preto, fui morador da República Castelo dos Nobres, entre os anos de 2007 e 2010, e tive acesso ao histórico da casa, assim como
algumas informações sobre sua fundação, mudanças de local, estruturação, trajetória, ex-moradores, moradores, e, obviamente, ao regimento
interno desta, moradia estudantil quase centenária.
Apesar das repúblicas federais possuírem, em geral, um sistema de organização interna bastante semelhante, é preciso enfatizar que cada uma
destas 68 moradias estudantis, sendo tratadas como uma espécie de
“instituição”13, possui as suas peculiaridades, sua identidade14, suas regras e o seu regimento, que, obviamente, oscila, de acordo com a geração
13 Conforme a definição encontrada no dicionário de português Michaelis: “complexo integrado
por ideias, padrões de comportamento, relações inter-humanas e, muitas vezes, um equipamento material, organizados em torno de um interesse socialmente reconhecido” (Michaelis,
2013).
14 Conceito tratado neste texto, posteriormente, com maior aprofundamento.
159
e, desta forma, todos estes elementos não devem ser generalizados. Em
2009, a Reitoria da UFOP solicitou que cada república apresentasse um
dossiê completo, elucidando as características e história da casa - com
fotos e depoimentos - além de exposição de seus critérios e processos
de seleção de novos moradores, gestão, festas e confraternizações tradicionais que geram renda, ou não, que ocorrem nestes bens públicos.
A REFOP também participou deste processo organizacional, como uma
forma de unificação, apresentação e justificativa dos meios e processos
ocorrentes no interior destas casas. O material recolhido também se encontra presente nos livros de Machado (2013a; 2013b; 2013c), como uma
grande fonte de informações destas repúblicas.
Desta forma, acredito que seria mais interessante abordar o regimento
das repúblicas a partir de minha perspectiva e vivência na Castelo dos
Nobres, estabelecendo como recorte temporal os anos correspondentes
entre 2007 e 2010, e focando na gestão desta casa durante esta época.
Como a autogestão das repúblicas não é o foco principal desta comunicação, sendo este um tema bastante vasto e passível de amplas e densas
discussões, trago à luz apenas elementos elencados como indispensáveis para compreender a relação das repúblicas com seus hinos e “rezas
de cachaça”.
Em toda República Federal 15, assim como em grande parte, das Repúblicas Particulares, os recém-ingressados na UFOP (calouros16) que tem
a intenção de morar em uma república, passam por um processo de ad15 Consideramos neste artigo o termo “República Federal”, como forma de definir todas aquelas residências em que não é cobrada, dos moradores, uma locação do imóvel. Sendo assim,
neste critério, estão inseridas as repúblicas pertencentes (patrimônio) à Escola de Minas, à
UFOP, à Casa do Estudante, Fundação Gorceix, etc. É importante destacar que, todas estas
repúblicas incorporam a Associação das Repúblicas Federais de Ouro Preto – REFOP, mesmo
não pertencendo à UFOP, ou seja, à Federação (à União). Esta isenção do aluguel, na verdade,
é o principal fator que diferencia uma República Federal de uma República Particular, já que
a Particular possui esta conta mensal.
16 Mas comumente denominados “bixos” em Ouro Preto, com a grafia de “X” ao invés de “CH”.
160
missão conhecido como “batalha de vaga”. Neste procedimento, o “bixo”,
apesar de já habitar a casa, ainda não é considerado um “morador” 17 e,
para que isto ocorra, o calouro deve passar por esta fase em que são analisados diversos elementos como: entrosamento com o resto dos moradores, amizade, organização, limpeza, confiança, responsabilidade, cuidado
e mantenimento da casa, respeito e ajuda mútua aos outros moradores,
salvaguarda de tradições republicanas, como as festas de aniversário da
república, Carnaval, entre outras. É necessário que o calouro, neste momento, compreenda o sistema de autogestão da casa, e, caso queira permanecer na república, respeitar as regras, tradições e os moradores mais
antigos.
É importante destacar que, apesar de haver uma hierarquia, as repúblicas
não se enquadram no perfil de uma instituição semelhante a uma empresa, ou algo do gênero, pois, estas moradias estudantis prezam muito
pela forte amizade entre os moradores e por uma noção de solidariedade,
denominada por muitos como “espírito republicano”.
O espírito fraternal das Repúblicas de Ouro Preto era mantido por
aquelas reuniões em torno da mesa. As Repúblicas eram verdadeiras
escolas da vida que moldavam o caráter dos estudantes forjando-o
para a vida profissional. Ali se aprendia a conviver e tolerar, suplantar
as divergências, respeitar a opinião alheia, respeitar a vizinhança,
aprimorar o espírito de solidariedade. Todos partilhavam das
dificuldades e alegrias de seus colegas. Seguiam-se regras próprias
de cada república, em geral semelhantes (DEQUECH, 1984, p.256).
Em consonância ao comportamento humano que remonta às tradições
mais remotas de ritualizar os ciclos/fases vitais, em suas inúmeras for17 Destaco aqui estes status, pois nestas repúblicas há um sistema hierárquico em que os mais
velhos (veteranos) estão localizados em uma posição privilegiada, enquanto o “bixo” se situa
no posto mais baixo da hierarquia. Basicamente, a relação hierárquica decrescente está disposta da seguinte forma: ex-alunos (ex-moradores), do mais antigo ao mais jovem, morador
mais velho (decano), moradores (por ordem de entrada na república), morador mais novo
(“semi-bixo”) e, por último, o “bixo”.
161
mas culturais, se tratando, especificamente neste caso, da transição da
juventude para a fase adulta, é possível considerar a “batalha de vaga”
como uma ritualização, um ritual de passagem para o ingresso na vida
estudantil republicana – simbolizando a independência de sua família, a
preparação para uma nova etapa a ser vivida e a criação de uma nova
identidade.
É o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma
sociedade especial a outra e de uma situação social a outra, de tal
modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas,
tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber,
nascimento, puberdade social, casamento [...] A cada um desses
conjuntos acham-se relacionadas cerimônias cujo objetivo é idêntico,
fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a outra
situação igualmente determinada. Sendo o mesmo objetivo, é de todo
necessário que os meios para atingi-lo sejam pelo menos análogos
[...] Aliás, o indivíduo modificou-se, porque tem atrás de si várias
etapas, e atravessou as diversas fronteiras (GENNEP, 2011, p.24).
Na fase de “batalha de vaga”, como forma de subdivisões de tarefas da
casa, o calouro se encarrega dos trabalhos mais braçais e, caso venha
a ser “escolhido”, receberá um apelido e ascenderá ao posto de morador, em que assumirá outras responsabilidades perante a república. A
“escolha” é uma comemoração bastante marcante para o ingressante na
república, sendo um objetivo almejado por todos que optaram por estas
moradias estudantis, já que, este ritual garante a vaga do “bixo” como
“morador” da casa. Como é de praxe em diversos rituais, esta transição
é marcada por muita comida, bebida, cantorias (hinos e “rezas de cachaça”) e convidados. No caso da Castelo dos Nobres, o “bixo” se torna,
agora, um “nobre”18.
Até o início do ano de 2009, ocorriam alguns problemas de denúncias
de trotes no interior das repúblicas, devido a alguns abusos por parte de
18 Na República Casablanca, o morador é chamado por “casablanquenho”; na Tabu, “tabuano”,
na Rebu, “rebutante”, na Hospício, “louco”, etc.
162
certos veteranos. Entretanto, com a intervenção do Ministério Público
Federal, e, consequentemente da REFOP, nos trotes das Repúblicas Federais, estes foram, terminantemente proibidos e praticamente cessados,
mantendo-se apenas as tradições que não comprometiam a moral ou a
dignidade do calouro, e que prezavam por um senso de comunidade e
não de segregação. Também foram promovidos os chamados “trotes solidários”, como doações e trabalhos comunitários, que já ocorriam anteriormente, por parte das repúblicas, mas que ganharam visibilidade com
o apoio da universidade desta prática.
De acordo com o Estatuto das Residências Estudantis - promulgado pela
UFOP em agosto de 2010, através da Resolução CUNI nº 1150, com o consenso do reitor da época, Prof. Dr. João Luiz Martins -, algumas alterações
foram efetuadas, porém, os objetivos destas moradias se mantiveram 19:
a) oferecer ao estudante morador um ambiente sadio, capaz de
proporcionar-lhe as condições de moradia e uma melhor aplicação nos
estudos, atenuando preocupações de outra natureza;
b) contribuir para o desenvolvimento da formação humanística do
estudante, atribuindo-lhe, ao mesmo tempo, a responsabilidade de
administrar o prédio e de promover a boa convivência coletiva e o
respeito ao próximo;
c) estimular e desenvolver, entre os estudantes, o espírito de
solidariedade e cidadania, dentro de um clima de permanente
compreensão dos seus direitos e deveres no ambiente comunitário;
d) oferecer ao estudante universitário condições de moradia em
ambiente que se assemelhe ao familiar e, consequentemente, propicie
melhores condições de estudo (RESOLUÇÃO CUNI, 2010, p. 2).
Sendo que os deveres dos moradores de repúblicas estudantis foram
elencados como:
a) administrar a Residência, zelando pela sua conservação e
manutenção;
19 Se compararmos ao Estatuto das Residências Estudantis de 2006, promulgado na Resolução
CUNI nº 779, assinado em agosto de 2006 pelo mesmo reitor (RESOLUÇÃO CUNI, 2006).
163
b) respeitar os direitos dos demais moradores, colegas e funcionários
da UFOP;
c) indenizar danos e prejuízos materiais causados ao próprio prédio
residencial, aos móveis e utensílios da Residência, bem como qualquer
dano causado a UFOP em decorrência da utilização do prédio;
d) manter atualizado o cadastro de moradores na CAC;
e) garantir a ocupação integral da Residência, mantendo o número
exato de moradores previamente definido;
f) vedar a permanência de pessoas estranhas no recinto das
residências,
g) coibir a aplicação de brincadeiras constrangedoras que atentem
contra os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e
das demais garantias individuais constitucionalmente garantidas;
h) zelar pela ordem e disciplina da casa;
i) encaminhar os problemas relacionados com enfermidades e casos
de acidentes ocorridos na Residência, comunicando em tempo hábil a
CAC;
j) zelar pela boa convivência com os vizinhos e com a comunidade do
bairro em que está inserida a Residência Estudantil;
l) participar da assembléia dos moradores para apreciar e aprovar
o regimento interno da casa e/ou possíveis alterações que sejam
apresentadas pelos moradores;
m) abster-se de fazer uso ou estar de posse de entorpecentes ou
alucinógenos ilícito no recinto da Residência Estudantil;
n) vedar a guarda de armas de qualquer tipo na Residência Estudantil;
o) cumprir e fazer cumprir este Estatuto, bem como o Regimento
interno da casa.
p) realizar obras no imóvel somente com a devida
aprovação da Prefeitura Universitária e dos demais
órgãos competentes (RESOLUÇÃO CUNI, 2010).
Essencialmente, os rituais mais comuns em uma trajetória republicana
seriam: “batalha de vaga”, “escolha”, “festas do 12 de Outubro20” (ou festas do 21 de Abril), “formatura” e “retorno como ex-aluno”. A formatura
20 Quando é comemorado o aniversário da Escola de Minas, e juntamente à esta data, também
se celebra o aniversário de grande parte das Repúblicas Federais. No dia 21 de Abril é comemorado o aniversário das Repúblicas Federais do campus, pois, foi nesta data que as casas foram entregues aos estudantes. Algumas repúblicas comemoram tanto a “Festa do 12” quanto
à “Festa do 21”.
164
também é um episódio importantíssimo na trajetória do estudante, pois,
além de concluir o seu curso de graduação – iniciando uma nova fase em
sua vida -, o recém-formado inaugura em sua república um “quadrinho”
com sua foto, que permanecerá na república mesmo após seu falecimento. Logicamente, é seguida uma ordem de quadrinhos, desde o formando
mais antigo até o mais recente, e, novamente, como mais uma passagem
ritualística, são entoadas “rezas de cachaça”, hinos das repúblicas, acompanhadas de diversas bebidas, comidas, contando com a presença da
família e convidados.
Figura 1. A cozinha e os “quadrinhos” da República Castelo
dos Nobres. Foto do morador Hugo Teodoro, Ago. 2013.
Os processos de ritualização da cachaça e dos hinos
Desde o princípio de sua fabricação, a cachaça possui um histórico tido
como “desqualificado e negativo”, composto por consumidores das camadas sociais menos “privilegiadas” - entre índios, escravos negros, pobres e até mesmo animais, com o intuito de “fornecer um suplemento calórico para sustentá-los nos trabalhos rudes e na vida severa a que eram
165
submetidos” (VILLELA, 2008, p. 10). No entanto, apesar de conservar, até
os dias atuais, certa conotação destituída de mérito, esta bebida etílica
tem se mantido, juntamente ao samba (carnaval) e ao futebol, como um
elemento que compõe o tripé a sustentar os símbolos da cultura popular
brasileira, atingindo, no ano de 2012 o título de Patrimônio Histórico Cultural do Rio de Janeiro (VÍDEOS R7, 2013).
A cachaça, além de ser um artigo de exportação nacional, desde meados do século XVIII (VILLELA, 2008, p. 10), extremamente conhecido no
exterior como um elemento da identidade brasileira, também pode ser
encarada como uma dimensão simbólica da “brasilidade”. Assim como
o vinho é, comumente, associado à Itália e Portugal, a tequila ao México,
o champanhe à França, a vodka à Rússia e o uísque à Escócia, a cachaça,
a partir dos esforços de diversos integrantes do meio artístico, político,
cultural e industrial, também se consolidou como um dos símbolos nacionais brasileiros. Desde os desenhos animados de Walt Disney, em que
o personagem Pato Donald conhece Zé Carioca e descobre o ritmo do
samba através das doses de cachaça em Copacabana (SALUDOS AMIGOS,
1942)21, às representações de Inezita Barroso em “Marvada Pinga” (1953),
de Sérgio Reis em “Pinga ni mim” (1987), ou da notória marchinha “Cachaça (não é água não)” (1953)22, entre outras canções que enaltecem
o seu consumo, a bebida tem adquirido relevância no cenário nacional
e internacional, como um produto essencial em diversas manifestações
populares, religiosas, sociais e, logicamente, no setor econômico.
Sua origem é datada por volta da terceira década dos Quinhentos, em
engenho de cana-de-açúcar na Capitania de São Vicente (destinada a
21 Fazendo parte de uma política de “boa vizinhança” de Walt Disney, que buscava expandir
as suas relações com países da América do Sul nos anos 1940, selecionando a composição
“Aquarela do Brasil” (1939) como um símbolo musical para representar este país, sendo, seu
gênero musical, denominado por diversos teóricos, posteriormente, como samba-exaltação.
22 “Marvada Pinga” ou “Moda da Pinga” – compositor: Raul Torres e Laureano (SANT’ANNA,
2000, p. 91); “Pinga ni mim” – compositor: Sérgio Reis (NEPOMUCENO, 1999, p, 198); “Cachaça”
– Mirabeau, L. de Castro e H. Lobato (TINHORÃO, 2002, p. 67).
166
Martim Afonso de Souza em 1532) [...] Pernambuco também reivindica
o troféu; mas tudo indica que sua data para a origem da cachaça é
posterior; no entanto, não há certeza entre os especialistas; de qualquer
modo, essas datas são muito próximas (VILLELA, 2008, p. 9-10).
Como destacou o historiador e antropólogo Luis da Câmara Cascudo, a
bebida também já foi utilizada como moeda de troca para a compra de
escravos na África, sendo que
O tráfico da escravaria impôs valorização incessante. Aguardente
da terra, a futura cachaça, era indispensável para a compra do
negro africano e ao lado do tabaco em rolo, uma verdadeira moeda
de extensa circulação. Além de ser jubilosamente recebida pelo
vendedor na Costa d’África, figurava necessariamente como
alimento complementar na trágica dieta das travessias do Atlântico.
O escravo devia, forçosamente, ingerir, todos os dias, doses de
aguardente, para esquecer, aturdir-se, resistir (1986, p. 24).
Atualmente, apesar de ainda manter uma “aura demoníaca, anarquista,
potencialmente desagregadora” (VILLELA, 2008, p. 10), o status da cachaça se encontra em postos contraditórios e flutuantes, ora como causadora de vícios e de mazelas nas camadas mais baixas da sociedade e ora
como produto de alto valor e requinte para degustadores em elegantes
bares e restaurantes das cidades.
No documentário “Estrada Real da Cachaça” (2008), do diretor Pedro
Urano, é possível destacarmos diversas relações sociais que ocorrem
com o intermédio da bebida, como uma espécie de elemento aglutinador,
seja ela relacionada ao trabalho, associada à religião ou às manifestações
populares. O estado de Minas Gerais talvez seja atualmente a região na
qual a tradição da bebida esteja mais arraigada, tanto pelo número de
alambiques, pelas tradicionais cachaças de algumas cidades, ou mesmo
pela simples associação de qualidade desta bebida à esta região, sendo
realizada por grande parte dos brasileiros. A cachaça faz parte do coti-
167
diano de diversas comunidades, tanto como um “complemento alimentício”, ou mesmo como um fator essencial aos rituais acima citados.
Ouro Preto, um dos municípios pertencentes ao trajeto da Estrada Real,
possui um cenário semelhante ao descrito, sendo a bebida consumida
com bastante frequência em bares do município pelos locais (autodenominados “nativos”), assim como no interior das repúblicas pelos estudantes. É preciso ressaltar ainda que o propósito desta comunicação não é
legitimar, favorecer ou justificar o consumo deste destilado, tampouco
defender seus excessos23, mas sim, trazer à luz estas práticas das “rezas
de cachaça” e dos “hinos” republicanos - temas praticamente não encontrados ou analisados na bibliografia - como rituais que refletem e reforçam características da identidade de um grupo estudantil.
O teórico Alceu Maynard Araújo (1977), que registrou loas proferidas à
cachaça, no município de Piaçabuçu – AL, em 1953, definiu o ritual como
“rodada”, sendo este,
o cerimonial no qual o participante precisa dizer loas à cachaça.
Na “rodada”, aproximam-se do balcão de uma bodega, e num copo
comum o bodegueiro entorna a cachaça até quase transbordar.
A pessoa de quem partiu o convite da “rodada”, tomará o copo,
derramará um pouquinho no chão e dirá: “este é para o santo”, e
o dará a um dos companheiros, o qual, tomando um gole passará
depois o copo para outro. É a “rodada” (ARAÚJO, 1977, p. 131).
O autor ainda caracteriza o termo “loa” como
Loas – As loas de cachaça se dão em geral por ocasião de
alguma festa ou, mais comumente, quando há a ajuda vicinal
que é o “batalhão”. Reúnem-se várias pessoas e ao passar o copo
23 Até porque, tais abusos, recentemente, no ano de 2012, ocasionaram no falecimento de dois
estudantes da Universidade Federal de Ouro Preto, ao que, tudo indica, por excesso de álcool
no sangue. Daniel Macário de Mello Júnior era aluno de Artes Cênicas na universidade e
faleceu aos 27 anos. Pedro Silva Vieira era estudante de Química Industrial e possuía 25 anos
quando faleceu (PORTAL R7).
168
ou cuia de cachaça, proferem uma loa. [...] A pessoa ao tomar o
gole de cachaça profere uma loa, a que recebe faz o mesmo ao
passar à outra e assim vão se sucedendo elogios versificados,
improvisados ou não, à cachaça. A loa é uma forma lúdica
muito em voga nesta comunidade (ARAÚJO, 1977, p. 132).
É possível inferir que as práticas das “rezas” ou “loas” de cachaça são
apropriações dos estudantes ouro-pretanos da cultura oral brasileira,
como podemos observar semelhanças no documentário de Pedro Urano
(2008) e nos (mais de quarenta) versos recolhidos por Francisco Villela24
em “Ave, Cachaça!” (2008) e por Alceu Maynard Araújo (1975, 127-132;
265-269), além de, logicamente, algumas criações e adaptações dos próprios estudantes. No entanto, seria necessária uma pesquisa muito aprofundada, para estabelecer as possíveis origens desta tradição, que, de
acordo com Villela “é milenar a louvação à bebida que se vai ingerir e
a oferta de uma parte para entidades e deuses, como forma de homenagem e de pedido de proteção” (2008, p. 11), estando presentes em documentos desde a “Ilíada” de Homero, nos registros sobre a libação (libatio)
romana.
Assim como nestes locais citados, é muito comum escutarmos ecoando
nas ladeiras de Ouro Preto os brados de um estudante, ou de um grupo
de discentes, entoando uma “reza de cachaça” ou o hino de uma república durante uma confraternização. Conforme elucidado anteriormente,
a “reza de cachaça”, nesta cidade, consiste em declamar versos, normalmente rimados, raras vezes improvisados, de conotação cômica e lúdica,
baseados em referências temático-religiosas e que evidenciam aspectos
como o enaltecimento da bebida, da sexualidade, ou mesmo da república, etc. Podemos notar algumas destas características nas “rezas”:
24 Provenientes de cidades de grande parte do Brasil como Brasília – DF; Anápolis – GO; Juiz de
Fora – MG; Belo Horizonte – MG; Inconfidentes – MG; Itajubá – MG; Maria da Fé – MG; Araçuaí – MG; Manaus – AM; Atibaia – SP. Além de rezas provenientes dos estados do Mato Grosso;
Piauí; Bahia; Rio de Janeiro; Paraíba e de outros países como Espanha e Portugal (VILLELA,
2008, p. 99-101).
169
Por Nosso Senhor Jesus Cristo
por Nossa Senhora das Graças
transforme a Represa de Três Marias
em uma represa de cachaça
e abre as comportas
que “nóis” comporta
Deus é pai
e a cachaça vai.25
As “rezas” que carregam uma conotação sexual e jocosa se assemelham
bastante aos chamados “versos de rodeio” – principalmente na questão
letrística e no ritmo da declamação, pois, a musicalidade, a linearidade
melódica, é distinta -, contudo, não seria possível afirmar qual dessas
práticas é a antecessora. Um exemplo���������������������������������
de uma loa compartilhada por estas duas distintas manifestações seria:
Morena, “num” sei se devo,
“num” sei se posso,
Te levar pra cama e
estremecer (apertar) seus “zósso”
Te fazer um “fi” e dizer que é nosso (COSA NOSTRA, 2013; RODEIO, 2013).
Apesar de possuir o seu papel social, assim como qualquer bebida, a cachaça, no interior das repúblicas possui outras conotações, que retratam
e substanciam diversos aspectos observados no convívio social dos estudantes que optam por estas moradias estudantis. Entre estes aspectos,
podemos notar uma característica interessante por sua dimensão paradoxal, como por exemplo, no momento em que são recitadas “rezas” ou
mesmo os hinos das repúblicas, é possível observar uma desfragmentação da noção hierárquica, ou seja, das estruturas estabelecidas anteriormente (e interiormente), prevalecendo o conceito de communitas cunha-
25 Esta “reza” foi encontrada (ouvida) em diversas repúblicas, sendo frequentemente declamada
em Ouro Preto. O verso “Deus é pai e a cachaça vai” é uma utilização bastante comum, com
efeito de conclusão das “rezas”.
170
do por Victor Turner. Os indivíduos são destituídos de seus postos e são
alocados em um status liminar, efêmero, concebido como:
a passagem entre “status” e estado cultural que foram
cognoscitivamente definidos e logicamente articulados. Passagens
liminares e “liminares” (pessoas em passagem) não estão aqui nem
lá, são um grau intermediário. Tais fases e pessoas podem ser muito
criativas em sua libertação dos controles estruturais, ou podem ser
consideradas perigosas do ponto de vista da manutenção da lei e da
ordem. A “communitas” é um relacionamento não-estruturado que
muitas vezes se desenvolve entre liminares. É um relacionamento
entre indivíduos concretos, históricos, idiossincráticos. Esses
indivíduos não estão segmentados em funções e “status” mas
encaram-se como seres humanos totais. (TURNER, 1974, p. 5).
Logicamente, só é possível atingir este estado de liminaridade, de comunhão, quando a prática é entoada por todos, ou por, pelo menos, grande
parte do grupo presente naquele “espaço-tempo”. Neste caso, os indivíduos transcendem à estrutura hierárquica e, de copos levantados e vozes (brados) em uníssono, priorizam a exaltação destes temas, gerando
um sentimento de pertencimento à comunidade, principalmente por esta
prática/conhecimento ser transmitida oralmente – ampliando o contato.
É muito comum observarmos estas atividades em festas (denominadas
localmente por “rocks”) como formaturas e “escolhas” – rituais de passagem, transição -, mas não são exclusivas destas celebrações. Nas repúblicas, as “rezas” também podem ser proferidas por indivíduos isolados, um
por vez, semelhante à “rodada” observada por Araújo (1975), porém, nesta acepção adquirem um caráter mais lúdico, em que cada participante
recita uma “reza” antes de ingerir a bebida e é repassado o mesmo copo
até que esteja vazio. Nesta prática a hierarquia é preponderante, já que, é
esta a estabelecer a ordem das “rezas” e tragos.
No caso dos hinos, em que praticamente todos estes elementos estão
reunidos, grande parte das vezes é priorizada a exaltação da república,
como podemos observar no caso da República Tabu:
171
Uma vez Tabu, Tabu até morrer
Um “tabuano” eu hei de ser
É o maior prazer, vê-la brilhar
Seja na Escola, seja no bar
Beber, beber, beber,
Uma vez Tabu, Tabu até morrer26.
Ainda é possível ressaltar a designação de algumas canções da cultura
popular brasileira, elencadas por ex-moradores mais antigos e ressignificadas, com o intuito de que, teoricamente, poderiam criar uma representação do “espírito republicano” de sua “instituição”, ou que possuiriam,
de certa forma, uma citação, temática semelhante, ou um sentimento de
nostalgia ao nome da moradia estudantil. Como nos exemplos de: “Vou-me embora pra Pasárgada”, poema de Manuel Bandeira (1924) musicado
por Paulo Diniz (1973), hino da República Pasárgada; “Tu és o MDC da
minha vida” (1975), de Raul Seixas e Paulo Coelho, hino da Palmares e
Convento; “Perigosa” (1977), de Rita Lee, R. Carvalho e N. Motta, hino da
Virada pra Lua; “Doce, doce, amor” (1971), de Jerry Adriani, hino da Doce
Mistura; “Funcionária da calçada”(1982), de Brenno Silva, hino da Quarto
Crescente (QC); “Pô, amar é importante” (1986), de Hermelino Neder e
participação de Arrigo Barnabé e Tetê Espínola, hino da Tanto Faz; “Lumiar” (1977), de Beto Guedes e Ronaldo Bastos, hino da Lumiar, etc. Em
outros casos, são compostos “hinos”, que praticamente se confundem
com “rezas”, pois são declamados como versos, quase que falados, como
no caso das repúblicas Toka e Patotinha.
Também foram criadas apropriações de músicas da cultura popular, a
partir de versões que enaltecem as suas repúblicas, como no caso da
Tabu, que utilizou a estrutura do hino do time de futebol Flamengo na
composição de seu próprio hino, no caso da República FG e da Sinagoga,
que se basearam no hino do clube Atlético Mineiro, e na opção da República Ninho do Amor, em modificar a letra de “A Praça” (1967), de Ronnie
26 Hino de conhecimento do próprio autor, confirmado pelo ex-morador “tabuano” Marcelo Barbosa.
172
Von, para ser representada como seu hino. As repúblicas Saudade da
Mamãe e Território Xavante (TX), não se contentaram em se apropriar
de canções do imaginário popular e criaram seus próprios hinos, como
as canções “Samba da $audade” (2005), de Iuri Bittar e “Hino da República Território Xavante”27 (1986), de E.R. Barbosa e João Carlos Cioffi28.
Todas estas composições, versões e criações dos próprios estudantes podem ser interpretadas, apesar de distintas em seu processo de ressignificação, como tendo o mesmo propósito, o de ampliar um sentimento de
pertencimento, que, de acordo com Souza (2010):
sinaliza, no contexto da sociedade marcada por exclusões e
desigualdades, a busca de identidade diante de um desejado e
ausente comum aglutinador. [...] Ele se traduz de forma visível em
sentidos e motivações diversos dos de suas raízes (antropologia,
política), sustentando a busca de participação em grupos, tribos e
comunidades que possibilitem enraizamento e gerem identidade
e referência social, ainda que em territórios tão diferentes como
os da política, da religião, do entretenimento (p. 32-34).
Juntamente às “rezas” e hinos, outros elementos como os brasões das repúblicas expostos em suas placas, as bandeiras, as camisas de república,
o bairro de localização, os cursos de graduação permitidos ou predominantes na moradia, o gênero sexual, a faixa etária, as amizades, os posicionamentos políticos, religiosos, os locais frequentados, os rituais internos da casa (baralho, futebol, reuniões, festas, etc.), entre outros, definem
a identidade que os agrega como república, em determinada época – já
que a identidade é mutável, inconstante -, e que, ao mesmo tempo, os
diferencia do “outro”, alheio a estas características e tradições.
27 A República Território Xavante, inclusive, gravou um disco com o seu hino e mais outras três
composições, para comemorar, em 1986, os 25 anos da república, que foi gentilmente enviado
para mim pelos atuais moradores.
28 Todas as “rezas de cachaça” e hinos das Repúblicas Federais de Ouro Preto, aqui citados, foram colhidos pessoalmente em minha pesquisa de campo ou foram enviados por moradores
e ex-moradores de suas respectivas moradias estudantis.
173
Figura 2. Quadro da REFOP com os brasões das Repúblicas
Federais de Ouro Preto – MG. Foto do autor.
É como se cada república, por definir suas tradições e o seu sistema de
auto-gestão, prezasse por sua peculiar identidade, sua personalidade
como “instituição”, como uma comunidade “singular”, mas ainda assim,
permitisse que outras repúblicas e pessoas compartilhem de parte de
seus rituais. A socióloga Kathryn Woodward (2012), se reportando ao
teórico Michael Ignatieff, afirma que:
A identidade é, na verdade, relacional, e a diferença é
estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a
outras identidades (na afirmação das identidades nacionais,
por exemplo, os sistemas representacionais que marcam a
diferença podem incluir um uniforme, uma bandeira nacional
ou mesmo os cigarros que são fumados) (2012, p. 13).
O teórico Stuart Hall ainda ressalta a complexidade que o conceito de
identidade assume, devido ao seu caráter transitório e não “estabelecido”:
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca
unificadas; que elas são, na modernidade tardia, cada vez mais
fragmentadas e fraturadas; que elas não são, nunca, singulares,
174
mas multiplamente construídas ao longo de discursos, práticas e
posições que podem se cruzar ou ser antagônicos. As identidades
estão sujeitas a uma historicização radical, estando constantemente
em processo de mudança e transformação (HALL, 2012, p. 108).
Em concordância com este pensamento de Hall, busquei interpretar todas estas informações e características da cultura local republicana através da proposta de uma descrição densa do antropólogo Clifford Geertz,
que, através de um repertório de conceitos - como símbolo, identidade,
estrutura, ritual e, naturalmente “a própria “cultura” – se entrelaçam no
corpo da etnografia de descrição minuciosa na esperança de tornar cientificamente eloquentes as simples ocorrências. O objetivo é tirar grandes
conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados”
(GEERTZ, 1989, p. 38).
Diante do grande número e da complexidade de temas abordados neste
artigo, e que poderiam ser aprofundados e adensados em outras pesquisas – como o sistema de autogestão das repúblicas, as inter-relações entre
os republicanos e os “nativos”, os processos de fundação e transformação
das moradias estudantis, o impacto do crescente número de repúblicas
na cidade de Ouro preto, entre outros -, acredito que, apesar de ainda
em um nível bastante inicial, esta pesquisa tenha contribuído para uma
maior compreensão da representatividade de práticas como as “rezas de
cachaça” e hinos - entre outras -, nas questões relacionadas à identidade,
pertencimento, tradição e aos rituais observados no interior destas casas. É necessário ainda destacar a escassez ou a insuficiência no número
de pesquisas que abordem a temática que esta comunicação buscou se
atentar, desde a análise de tais práticas, até o estudo das comunidades de
repúblicas de Ouro Preto de uma forma mais ampla. Certamente, o fato
de ter vivenciado esta experiência durante a minha graduação me traz
algumas facilidades quanto à parte etnográfica e no âmbito de compreender seus mecanismos, no entanto, é necessário criar um distanciamento para que seja possível observar toda a complexidade e as implicações
deste distinto universo estudantil.
175
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178
Bebida, canto e alma — os
índios Ticuna e a imortalidade
Edson Tosta Matarezio Filho
PPGAS-USP
[email protected]
Resumo
Minha comunicação se baseia em minha pesquisa de doutorado sobre os Ticuna – índios
de língua isolada localizados na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru – o mais
numeroso grupo indígena do Brasil. Entre estes índios, a moça que menstruou pela
primeira vez fica reclusa até que seja aprontada sua festa de iniciação, a chamada Festa
da Moça Nova. A menina ficará reclusa em um quarto feito de talos de palmeira buriti,
anexo à casa de festas. Atrás deste local de reclusão, no recinto dos trompetes, ficam os
instrumentos sagrados, que tocarão durante o ritual, aconselhando a “moça nova”.
Ao longo de minha comunicação pretendo apresentar o principal motivo para os Ticuna
fazerem a Festa da Moça Nova: alcançar a imortalidade. Durante estes rituais, espera-se que
os imortais/encantados (üünne) visitem a festa para levar as pessoas que estão celebrando
este rito de passagem feminino. Segundo um de meus informantes, “quando todo mundo
está de porre a casa sobe [para a terra dos imortais]. Antigamente, aparecia um imortal para
muitas moças e levava elas. Os encantados levavam todo mundo que estava na festa com ela”.
Palavras-chave
Ticuna, música, ritual, bebida, imortalidade
179
A Festa da Moça Nova
Os Ticuna conformam uma população atual de mais de 50 mil pessoas
distribuídas entre Brasil, Colômbia e Peru (Goulard, 2009: 15). No Brasil,
constituem o mais numeroso grupo indígena, contando com mais de 46
mil indivíduos. Estão distribuídos ao longo da bacia do Rio Solimões
(AM), com sua maior concentração no alto curso deste rio e apresentando
também uma forte presença em cidades amazônicas.
O ritual mais importante para estes índios, a iniciação feminina, é a chamada Festa da Moça Nova (Worecütchiga)1. Entre os Ticuna, a moça
que menstruou pela primeira vez fica reclusa até que seja aprontada sua
festa. Neste ritual, a menina ficará “guardada” (aure) em um quarto feito
de talos de buriti (turi), anexo à casa de festas. Na manhã do último dia
de festa, a moça deverá sair do “curral” de reclusão com os olhos tapados
por um parente, rompendo os talos de buriti que formam suas paredes.
Nesta primeira festa após a menarca, depois de sair da reclusão, a moça
tem seus cabelos arrancados.
Trata-se, portanto, de um complexo ritual que dura três dias e leva meses
para ser preparado. Nesta comunicação apresentarei principalmente a
importância das bebidas consumidas durante a festa, sua relação com a
música ticuna e o tema da imortalidade.
Antes de falar sobre a relação que se estabelece com os imortais nas
festas, quero comentar rapidamente sobre um tipo de troca estabelecida
entre os convidados e os anfitriões do ritual.
1
Worecü = “moça nova”, a menina que menstruou pela primeira vez. Tchiga é um termo da
língua ticuna usado para se referir a diversas ideias relacionadas à “palavra”. Segundo a linguista Montes Rodríguez (2005: 58), em um sentido amplo, tchiga corresponde à “palabra” de
una “entidad mítica o humana, el significado de las cosas, la historia de algo ou alguien, las
historias míticas”. Esta mesma autora dá os seguintes exemplos, Yoitchiga seria “la historia,
el cuento, el mito y la palabra del héroe mítico Yoi”. Cutchiga pode ser traduzido como “tua
história”, trata-se de um termo que aparece com frequência nos “cantos rituales de iniciación
femenina posiblemente para referirse a todo el proceso vivido por la joven iniciada”.
180
Convidados e anfitriões
Para os ameríndios, de um modo geral, a carne moqueada cumpre um
importante papel como dádiva doada pelo grupo que vem para a festa
em troca das bebidas que o grupo anfitrião proverá. De acordo com Viveiros de Castro (1986), a oposição complementar entre a carne, trazida
pelos convidados, e a bebida, oferecida pelos donos da festa, é difundida
por todo continente. Tal troca conformaria a “armadura simbólica das relações” ou o próprio “arcabouço dos ritos” (Teixeira-Pinto, 1997:350). Para
os Araweté, por exemplo, povo de língua tupi-guarani, a carne moqueada trazida pelos homens é considerada o “pagamento do cauim”, produzido pelas mulheres (Viveiros de Castro, 1986: 340). Tal troca conformaria
a “armadura simbólica das relações” ou o próprio “arcabouço dos ritos”
(Teixeira-Pinto, 1997:350). Este tipo de troca ritual é bastante comum entre os povos de língua Caribe. Para os índios Arara, em seus rituais de
Ieipari, por exemplo, os visitantes-mutuns, doadores de carne moqueada, esperam ser “atraídos” pelo canto dos anfitriões-guariba, doadores de
bebida fermentada. No caso das trocas rituais Arara estudadas por Teixeira-Pinto, este autor conclui que a “caça é a condição da bebida, como
a predação é a da troca” (idem: 365, nota 27). Para os Waimiri-Atroari,
grupo indígena também de língua caribe que estudei em meu mestrado,
também não é diferente. Um informante assim relata a importância desta troca: “Nós levamos a carne e o pessoal tem que dar o mingau...” (Do
Vale, 2002: 70).
Os Ticuna operam uma troca semelhante entre convidados e anfitriões.
Contudo, diferente dos índios de língua tupi ou caribe, que trocam bebidas por carne, os ticuna trocam bebidas e carne moqueada por máscaras,
fibra de tucum e talos de buriti. O item mais valioso destes presentes é a
casca de árvore chamada tururi, que é entregue ao dono da festa em forma de máscara. Estes mascarados chegarão à festa, beberão e receberão
carne moqueada.
181
A participação dos mascarados durante os rituais remonta ao tempo em
que homens e animais ainda não se distinguiam. O aprendizado da fabricação das máscaras pelos humanos assinala uma ruptura semelhante
aquela introduzida com a origem da mortalidade (Goulard, 2009: 167). A
estes mascarados é oferecida a bebida que substitui a “bebida da imortalidade” que encontramos na mitologia ticuna. Portanto, enquanto as
máscaras recordam a separação primordial entre humanos e animais, a
bebida conecta todos os participantes da festa com a imortalidade perdida no tempo mítico, mas que todas as Festas de Moça Nova tentam
reaver.
Esta bebida tomada durante o ritual, além desta relação com a imortalidade e eu retornarei a este ponto, tem uma estreita relação com canto
para os Ticuna. É disto que tratarei brevemente agora.
Canto, bebida e espírito
Algo que devemos ter em mente quando estudamos a música de outros
povos é o fato este termo, “música”, ser uma abstração quase exclusivamente européia. Segundo o musicólogo alemão Carl Dahlhaus:
“Se, pois, a categoria “música” (...) é uma abstração que em muitas
culturas se levou a cabo, e noutras não, encontramo-nos então
perante a infeliz alternativa ou de reinterpretar e alargar o
conceito europeu de música até a alienação quanto à sua origem,
ou de excluir do conceito de música as produções sonoras de
muitas culturas extra-europeias”. (Dahlhaus, 2009[2001]: 15)
O que se apresenta como uma “infeliz alternativa” para o grande musicólogo europeu, contudo, é o material por excelência do etnomusicólogo.
Talvez uma das questões mais interessantes da etnomusicologia seja: o
que é música para determinado povo?
No espaço desta comunicação não falarei sobre o que é música para os
Ticuna, algo que ainda estou longe de saber. Contudo, o ato de cantar é
182
algo que debati bastante com os cantores ticuna e gostaria de comentar
um pouco sobre o canto destes índios antes de abordas sua relação com
a bebida.
Muitas palavras são usadas na língua ticuna para se referir ao canto, mais
especificamente ao ato de cantar. Cantar, para um ticuna, pode indicar
muitos tipos de artes verbais. Wiyae seria a noção mais geral de canto, a
idéia mais próxima de nossa palavra “canto”. Dentro desta idéia de wiyae,
existem outras categorias mais específicas Wawe, por exemplo, é uma
palavra que designa o que chamamos de acalanto. Serve para se referir
a um canto mais suave, como quando se canta para uma criança dormir.
Existe mais uma noção mais próxima do canto que é entoado no ritual.
Utü é a palavra usada para se referir ao canto executado na festa da moça
nova, com a voz fina, mas também ao canto dos pássaros. Os homens
cantores da festa da moça nova, por exemplo, cantam em falsete e este
tipo de canto é denominado utü. Não serve para se referir ao cantor de
forró.
E, por fim, o canto de que tratarei mais detidamente nesta comunicação,
ã’ẽ. Este gênero vocal ou forma de cantar é aprendido pelo aprendiz de
xamã ao entrar em contato com os espíritos das árvores. O aprendiz de
pajé se põe em contato com os espíritos das árvores e aprende seu canto
gradualmente (Nimuendaju, 1952:100-102; Goulard, 2009: 83). Curiosamente, a bebida fermentada também é designada pelo mesmo termo, a
mesma bebida que irá alimentar os instrumentos que tocarão aconselhando a moça nova durante o ritual. Outro significado deste mesmo termo, podemos traduzir como “princípio vital” ou espírito, duplo da pessoa.
O ã’ẽ, junto com o ma’ũ, são os dois princípios que conformam a pessoa
ticuna. Ou seja, temos, portanto, uma notável confluência de significados neste termo, a-e: canto, bebida fermentada e ‘princípio vital’ (Goulard,
2009: 169).
183
Por que se faz a Festa da Moça Nova?
Estabelecidas estas relações entre imortalidade, bebida e canto para os
Ticuna, pretendo explorar agora algumas questões que considero centrais para entender esta tripla relação. Porque se faz a Festa da Moça
Nova? Quais as relações, além das estabelecidas entre convidados e anfitriões, são buscadas na preparação e execução deste ritual de passagem?
Qual a importância da esperada participação dos imortais na festa?
Participei de duas Festas de Moça Nova durante meu trabalho de campo,
em 2012, e mais duas agora, no trabalho de campo que acabo de terminar. Ao logo deste período de campo, também tive a oportunidade de
gravar, transcrever e traduzir diversos cantos da festa e mitos que ajudam a compreender o sentido deste ritual.
Segundo meus informantes, a Festa da Moça Nova é feita por dois motivos. O motivo mais explícito é o perigo dos bichos/demônios (ngo’o). Se
a festa não é feita, qualquer um da comunidade, principalmente a moça,
pode ser atacado por esses seres e serem comidos. Durante estes rituais,
diversos cantos são entoados para aconselhar as “moças novas”. Dentre
as inúmeras canções entoadas para a moça nova em sua reclusão, uma
delas me foi referida como a canção da moça que foi levada pelo bicho
porque ninguém cantou para ela. Em consequência de não terem feito
festa para a moça, diz a canção, o Tchurara, um tipo de demônio (ngo’o),
iniciou a menina. A canção destaca principalmente que o Tchurara pintou a menina com seu falso jenipapo.
A segunda razão que me foi indicada para fazerem a festa é o fato de ela
estar estreitamente relacionada com a imortalidade e o mito ticuna da
origem da vida breve. Os mitos narram histórias de casas de festa que,
com todos cantando e de porre (ngaün), subiram para o céu dos encantados/imortais (uünne). De certa forma, creio que os especialistas no ritual
tem a esperança em alcançar a imortalidade através de uma festa bem
realizada. Espera-se que os imortais/encantados (üünne) visitem a festa
184
para levar as pessoas que estão celebrando este rito de passagem feminino. Durante uma explicação sobre a letra da canção dos imortais, Francisco (Üpetücürüngütchiãcü) me disse o seguinte: “todo mundo tem que
ficar dentro da casa para serem levados. Quando todo mundo está porre
a casa sobe. Antigamente, durante a festa da moça nova, aparecia um
encantado para muitas moças e levava ela. Os encantados levavam todo
mundo que estava na festa com ela”.
O que mais gostaria de destacar da fala mencionada acima é a referência a este momento crítico da festa. Não por acaso, é quando estão todos bêbados que os imortais “pegam” o corpo das pessoas para tocar os
trompetes. Afinal, neste momento existe a possibilidade de a casa subir
para o céu e todos os que estiverem lá dentro se tornarem imortais. Antigamente, a Festa da Moça Nova era feita para ela ver os encantados
(üünne). Fazendo a festa da forma correta, a casa inteira era levada para o
Morügüne, lugar dos encantados. O problema é que hoje em dia, dizem
os mais velhos, as pessoas não respeitam mais a sacralidade do ritual. As
crianças olham os instrumentos, as pessoas saem para namorar no meio
da festa e as moças namoram com os primos antes de fazerem sua festa.
Mitologia da imortalidade – a origem da vida breve
ticuna e a possibilidade de se imortalizar
A intenção de se imortalizar também está presente em inúmeros mitos
dos Ticuna. Nimuendaju (1952), por exemplo, que realizou extensa pesquisa de campo entre os Ticuna – em 1929, 1941 e 1942 –, coletou uma
série de mitos que relatam a conquista ou a perda da imortalidade2.
Um destes mitos, por exemplo, conta que uma “moça nova” estava sendo
iniciada e ouve os imortais entrando na casa de festa. Imediatamente ela
responde ao chamado deles e diz que quer se imortalizar. “A worecü [menina que está sendo iniciada] e os outros celebrantes estavam sentados
2
Estes mitos foram analisados por Lévi-Strauss em O Cru e o cozido (2004 [1964]), quando ele
trata dos mitos sul-ameríndios que relatam a origem da vida breve.
185
em cima do couro de anta no centro da casa. O tambor de carapaça de
tartaruga estava soando, e os convidados estavam dançando. De repente, o couro de anta começou a se mover, subindo no ar” (idem: 136). Uma
convidada que estava namorando fora da casa não percebe o que está
acontecendo e perde sua carona para a imortalidade. Ao final do mito o
couro de anta com os convidados se torna a aureola lunar.
Um destes mitos, por exemplo, fala de uma moça que foi levada ao final
de sua festa de iniciação por um “jovem [que]apareceu em forma de anta”
(idem: 137). Quando ela volta para visitar a família, seu marido distribui
“bebida dos imortais” para as pessoas que estão na festa do irmão mais
novo da moça. “Todos ficaram bêbado e nessa condição foram embora
com o casal para a morada dos imortais no Igarapé Eware.” (ibdem). Na
história do incêndio e do dilúvio mundiais, apenas duas moças que estava reclusas se salvam do incêndio que consumiu o mundo. “[U]nicamente sua cela de reclusão permaneceu firme, e, enquanto todos os outros
estavam morrendo, as duas irmãs permaneceram vivas” (idem: 141). Ao
final da história, uma das moças vai para a morada dos imortais também.
Os mitos que tratam do tema da imortalidade, portanto, narram situações em que ela foi conquistada ou perdida, uma possibilidade que está
aberta também na Festa da Moça Nova.
De acordo com meus informantes, antigamente as pessoas tomavam um
banho de uma mistura para se encantar. O banho era preparado com
folha de taperebá, casca de ura, olho verde de buriti e devia ser tomado à
meia-noite. A moça nova toma banho todos os dias à meia-noite com esta
mistura. Estas pessoas que queriam se encantar deveriam se alimentavam apenas de um verme que cresce no tronco do buriti (bo’o) e pequenos grãos de milho. Nimuendaju cometa como se fazia antigamente para
uma festa tornar seus participantes imortais:
“Nos velhos tempos, quem quisesse se tornar imortal submetia-se
a uma dieta de milho e larvas de coleóptera [ordem de insetos]
e, quando se banhasse, esfregaria o corpo inteiro com frutos de
186
buriti. Então, um dia na selva, se encontraria com um menino
desconhecido que proporia à pessoa preparar uma festa em tal e
tal dia. No dia marcado, de tarde, as aves aquáticas de todas as
espécies apareceriam e se empoleirariam nas árvores próximas
da casa. Ao anoitecer a dança iria começar dentro da casa fechada.
Algum tempo depois, um imortal em forma humana bateria à porta.
Devem deixá-lo entrar e conduzi-lo até os jarros, onde ele daria ao
anfitrião uma cabaça pequena contendo bebida dos imortais, yita’kü
tchüü, que deve ser misturada a cerveja festiva (chicha), porque para
se tornar um dos imortais é necessário partilhar da sua bebida.”
“Na madrugada todos os imortais entrariam, dançariam, beberiam
e escolheriam cônjuges, os mortais solteiros fazendo o mesmo, às
vezes até mesmo os casais se separariam, a fim de se juntar aos
imortais. Ao romper do dia, os espíritos, ao dançar, conduziriam
todos os celebrantes para fora da casa, e depois de uns quinze
passos mandariam que fechassem os olhos. Quando abrissem de
novo, eles já estariam longe, na morada dos imortais.” (1952: 136).
Imortais, instrumentos musicais e som
Atrás do local de reclusão da moça, no “curral” do trompete to’cü
(to’cüpüün), ficam os instrumentos tabus para mulheres e crianças (os
trompetes, to’cü e iburi; e a flauta de embolo nge’cütü). Ambos os trompetes são considerados “gente”, “pessoas” (du-û), pois possuem “principio
vital” (a-e) e “corporal” (ma-ũ), portanto, devem ser alimentados com bebida fermentada (pajauaru) durante os rituais.
O “copeiro” – encarregado de cuidar para que se cumpra o processo ritual e de servir bebida fermentada para os convidados –, conta para o
soprador de trompete o nome do clã da moça. Então o trompete canta
pedindo bebida à moça nova. Quando ele pede o caldo para a ela, ela
suspende as palhas do curral dos instrumentos e entrega a vasilha com
a bebida para os tocadores. Além de beberem do líquido, a bebida é vertida na “boca” dos trompetes, eles têm sede, também querem tomar.
187
A moça nova não pode dormir enquanto estiver dentro do local de reclusão. Deve estar sempre atenta aos pedidos de caldo dos tocadores
de trompete. Um informante me contou também que “às vezes, uünne
[imortais/encantados] pede caldo e ela tem que ouvir. Uünne vem tocar
o to’cü e pedir caldo. Ela tem que ouvir e dar caldo para ele. Isso acontece
quando todo mundo já está de porre, então, uünne pega o corpo da gente
para tocar o to’cü”.
Transcrição última canção do vídeo do Iburi – canção de
pedir bebida para a moça. Começa em 8:35 min do filme.
Rü nheün i curü ya
“Cadê o seu”
Cupaweru ya yauratchiün i tchonamã i cu’ã
“caldo de pajauaru [cupaweru] que brilha como o reflexo da lua
[yauratchiün]?”
Pa iri iri pa worecü
“Moça Nova”
Rü tchamarü natücüma tchautchi’ün arü naãnewatürü
“Eu saí da minha casa à toa”
Cucai’tchacaetchigu’ün ya rü nhuma rü ya
“Chegando e cantando [caetchigu’ün]”
Deyu’ün nua itchi õaẽ
“E agora eu estou sofrendo de frio”
Pa iri iri pa worecü
“Moça Nova”
Pelo que ouvi, os encantados (uünne) possuem uma audição sobre humana
e tem um gosto especial pelo som, especialmente pelos instrumentos. Ouvi
histórias de trompetes (to’cü) que são ouvidos soando sem que ninguém
esteja tocando. A explicação que me deram é que os imortais estão tocando
eles, mas nunca são visto fazendo isto. Uma informante me contou certa vez
que qualquer um pode ouvir os imortais (uünne). Existem relatos de pessoas que ouviram um assobio, um canto, conversa, barulho. Depois, quando
iam verificar do que se tratava, não encontravam nada. “Se acontecer de
188
vermos um imortal é porque já nos tornamos um deles. Apenas os pajés
conseguem vê-los sem morrer antes. Eles visitam os imortais em sonhos.”
Francisco comenta que seu avô fez um to’cü certa vez que ficou muito
bonito e guardou-o na água. “Mas o instrumento se encantou, foi embora.
Diz minha mãe que quando ela vai ao lugar onde ele estava guardado ela
escuta. Quando procurava não encontrava nada. Ele já tinha dono, uünne
[imortais/encantados] tinha levado ele. Eles são muito inteligentes, mais
do que a gente e eles que tocavam o to’cü. Mas a gente não via, só ouvia
a voz do to’cü”. Segundo me disseram, quando jogam o trompete fora
ou deixam por aí, vamos procurá-lo e ele não está mais no lugar onde
deixamos. Se isto acontece é porque os encantados/imortais (ü’üne) levaram. Isto costuma acontecer quando as pessoas já não querem mais o
to’cü, desistem dele. Então os encantados/imortais pegam para eles e levam para fazer festa também. Em conseqüência, o to’cü se encanta e vira
gente (du’ün). Hilda (Mutchique’ena) comentou-me que onde o pai dela
deixava o to’cü dele o instrumento tocava sozinho. As pessoas o ouviam
tocando sozinho, lá no quintal de sua irmã.
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Estudios Socioculturales – CESO – CCELA.
189
O samba e a culinária mineira:
análise etnográfica de um
samba de Toninho Geraes
e Paulinho Rezende
Ana Lúcia Fontenele
Universidade Federal do Acre
[email protected]
Resumo
O presente artigo foi motivado por um samba “Comida Mineira” de autoria de Toninho Geraes
e do letrista Paulinho Rezende. Aproveitamos a temática para situarmos alguns pontos da
prática dos sambas de mesa no Rio de Janeiro. Os compositores traduziram em melodia e
letra a saudade da cozinha mineira, associando as delícias salgadas e doces aos prazeres que
a mineira, amada e cozinheira, os proporciona. Interessante observar que em boa parte dos
sambas que associam a festa com a culinária a figura feminina aparece como a boa cozinheira,
que além do banquete ainda faz a feira. No samba Comida Mineira o compositor, letrista, livra
a cozinheira dessa parte da tarefa e ainda incrementa uma bela fogueira! A bebida é outro
componente imprescindível no mundo do samba. Ela, a loira gelada, rola solta em volta da
mesa do samba e irriga as gargantas dos cantantes e dançantes. O samba “Comida Mineira”
resolve problemas, como em geral os sambas o fazem. Uma paixão declinada, uma dívida, uma
ou várias saudades. Nesse banquete mineiro desfilam o tutu, o cheiro verde, a vaca atolada, a
pimenta, a mandioca, a polenta, o angu, a carne seca, o iô iô, o iá iá e tudo o que mais rolar.
Palavras-chave
samba, etnografia musical, religiosidade, culinária
190
Essa comunicação foi motivada, primeiramente por um samba e por um
folder de um evento que prevê atrações musicais de gêneros ligados à
cultura popular (em anexo), cada qual associado a um prato característico da região onde surgem tais tipos de manifestações musical e folclórica. Esse evento “Música e Culinária Tradicionais” acontece em São Paulo
de maio a novembro de 2013. No Rio de Janeiro e em outras paragens do
Brasil o samba a feijoada completa, e a cerveja pra um batalhão, protagonizadas no samba de Chico Buarque, caracterizam o trio que circunda
o ambiente onde se manifesta esse gênero musical que tão bem retrata
o Brasil. Aproveitamos, ao falar do samba “Comida Mineira”, que será
objeto dessa comunicação, para situarmos alguns pontos da prática dos
sambas de mesa no Rio de Janeiro, reduto de uma nova geração de sambistas que surgem na trilha aberta pelos sambistas do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, entre eles, Almir Guineto, Jorge Aragão, Luiz
Carlos da Vila e os integrantes das diversas formações do Grupo Fundo
de Quintal.
A música, a dança, parte da religiosidade e a culinária brasileira foram
influenciadas, ou mesmo criadas, a partir da influência da cultura dos
africanos que chegaram ao Brasil desde a época do Brasil Colônia. Segundo Siqueira (2012), mesmo não admitindo reconhecer tal influência, a
dita burguesia brasileira consumia, adaptava os valores culturais vivenciados pelos negros em várias regiões brasileiras nas diferentes épocas
e bases econômicas, como nos ciclos do açúcar, do café e do ouro nas
regiões nordeste e sudeste do Brasil (SIQUEIRA, 2012, p.65).
O samba teve na sua origem a influência direta dos afrodescendentes
que praticavam o samba de terreiro, os batuques, como forma de comunicação com o mundo espiritual. Nesse sentido destaca-se a necessidade
de levarmos em conta esse tipo de comportamento social de caráter místico quando falamos dos primórdios do samba. Nesse contexto, no final
do século XIX e início do século XX, o samba era praticado como canto
coletivo, sem autoria definida. Com o passar dos anos alguns aspectos
191
sociais distanciaram a prática do samba desses preceitos importantes,
tornando tal prática em festas profanas (SIQUEIRA, p.252).
Nessa perspectiva o surgimento do gênero samba é resultante de um diálogo entre as camadas populares urbanas que conviviam na cidade do
Rio de Janeiro, mais especificamente em volta da Praça Onze, no centro
do Rio e posteriormente nos morros cariocas. Para Tinhorão (2002):
O samba é um produto do proletariado carioca com predominância
negra, dentro de um quadro social em que a segregação era
econômica e não racial. Desse modo, pôde ser facilmente
assimilado por aqueles elementos da pequena burguesia em
fase de proletarização (?) e sem predominância racial negra,
tornando-se um gênero de música popular tão próprio dos
primeiros quanto dos segundos. (TINHORÃO, 2002, p. 46).
Nesse sentido o autor considera natural o fato de compositores de classe
média coexistir em uma mesma área urbana, como no caso do Rio de
Janeiro do início do século XX, onde se encontravam cortiços e casas de
cômodos próximos a bairros de classe média. Um exemplo desse fato
social foi o compositor Noel Rosa, que formou um grupo de samba e foi
parceiro de boemia de compositores negros como Ismael Silva. Outro
fator que permitiu esse diálogo e disseminação do samba dito urbano foi
o surgimento do rádio (TINHORÃO, 2002).
Paulo Neves (1985) entende o samba como “uma criação genuinamente
negra, assimilada pelos brancos na época do surgimento do rádio”. Afirma ainda que a assimilação da musicalidade negra por parte da população de brancos que conviviam no mesmo habitat ofuscou “a plasticidade
da cultura negra”, causando uma espécie de dispersão do samba (NEVES,
p.48).
A partir de conceitos e práticas metodológicas dos estudos etnográficos,
segundo Lucas M. E, apud Arroyo (2001), “a etnografia musical pressupõe a descrição da convivência e da aproximação das intersubjetivida-
192
des do pesquisador e pesquisado, possibilitando a apreensão do fluxo
cotidiano das ações e valores contidos no ordinário e extraordinário da
experiência musical” (ARROYO, 2001, p.322). A motivação da escrita e
para a incursão nessa linha de pesquisa ligada à etnomusicologia partiu
de uma empatia natural da pesquisadora com o gênero samba e com as
práticas culturais e sociais o circundam.
Em seu artigo Notas sobre Descrição, Diálogo e Etnografia, citando os
autores Timothy Cooley e Gregory Berz , Silva (2011) coloca a etnografia
como uma área de pesquisa interdisciplinar e em constante processo de
experimentação permitindo, segundo ou autores citados “uma diversidade e pluralidade de abordagens” (SILVA, p. 2-3). Esses experimentalismos
se concretizam no presente artigo a partir da descrição etnográfica de
uma prática musical, o samba da atualidade nas casas de show e rodas
de samba na cidade do Rio de Janeiro, por meio de uma boa dose de expressividade e subjetividade no texto, a partir da próxima seção e, principalmente, nos dois últimos tópicos.
A ligação do samba com o Choro e a culinária
No final do século XIX, as festas, bailes, batizados ou casamentos eram
regados por modinhas e choros. Essas festas iniciavam-se na noite e terminavam no final da manhã do dia seguinte. Nos casamentos e batizados, segundo Pinto (2009) a culinária concentrava-se em uma boa canja
“que conforme o número de convidados era mais ou menos aguada”; carne de porco; carne assada; arroz de forno e muito pão. Nos doces desfilavam doces de coco; laranja da terra; cidra; abóbora, além do arroz doce
com canela. Entre as bebidas destacavam-se as cervejas Logos e Guarda
Velha, vinho do porto e licores caseiros (PINTO, 2009, p. 118-119).
As rodas musicais da época do surgimento do samba, início do século
XX, aconteciam na famosa Casa da Tia Ciata, local onde desfilavam figuras como Pixinguinha, João da Baiana, Donga e Alfredinho, ambos
pertencente à Velha Guarda do Samba e ao grupo 8 Batutas. Nesse local
193
segundo, Marinho da Costa Jumbeba, neto da Tia Ciata, em entrevista
ao compositor Nei Lopes (2008), rolava muito samba partido-alto com
pandeiro, cavaquinho, violão, flauta e clarineta. Uma samba de caráter
mais instrumental. Tais rodas de samba duravam, segundo Jumbeba,
uns três dias. Os participantes e convidados consumiam, além das bebidas um caldo “escaldado” e peixada (LOPES, 2008, p.196).
O panorama da prática do samba de mesa na cidade do Rio de Janeiro
tem no seu cerne a energia e o clima em que se praticavam o samba,
mais especificamente, o samba partido-alto nos chamados pagodes em
bairros do subúrbio do Rio de Janeiro em ambientes frequentados por
sambistas tradicionais, parte deles ligados às rotinas de escolas de samba. Esses pagodes reunião os melhores versadores da região além de estarem aliados a uma culinária característica desses ambientes e também
com o consumo de bebidas alcóolicas (LOPES, 2008).
O autor desfila uma série de referências a personagens e locais de sambas tradicionais entre eles os da casa do pai do sambista Candeia e o
do pai do mestre Marçal, ambos integrantes de escolas de samba. Os
sambas na casa do pai de Candeia aconteciam aos domingos, às voltas
de um caldeirão de sopa e muita cerveja. Na casa do sambista Marçal, “o
samba começava no sábado e acabava na segunda”, onde eram servidas
a tradicional feijoada e um macarrão com carne assada (LOPES, 2008, p.
177).
Nesse contexto destacam-se na culinária característica uma série de pratos e personagens que fazem acontecer à festa do paladar dos artistas
e consumidores do bom samba. Em entrevista ao jornal O Globo1, a
sambista e cozinheira, Geórgia Gomes, que atualmente encanta os consumidores com um bobó de camarão no Centro Cultural da Lapa, afirma
que vem de uma família de panelas grandes. Geórgia relata que começou seu aprendizado na culinária com a Conceição, sua tia, mulher do
1
w w w.oglobo.globo.com/rio/georgia-gomes-agita-lapa-com-samba-proezas-culinarias-4884063. Consultado em 08.2013.
194
Noca da Portela. Segundo a mesma enquanto rolava uma roda de samba
no terraço do Engenho de Dentro, as comidas eram preparadas e apreciadas por todos. Nesse contexto ela aprendeu a fazer as comidas “nada
light” dos sambistas, a feijoada e o caldo de mocotó.
Como em outras épocas, os ambientes de pagode sobreviveram com
esse clima nas reuniões de fundo de quintal e até os anos 80 do século
passado e o último reduto dessas práticas se transportou para além dos
quintais, para a quadra do bloco carnavalesco Cacique de Ramos, no
bairro Olaria, de onde saíram sambistas de renome na atualidade.
A partir do exercício de imersão e da convivência natural, intérpretes de
renome mergulhavam nesses ambientes de vertentes musicais de raiz,
que em atitudes de resistência, mantinham vivas a tradição musical do
samba. No caso dos Partideiros do Cacique, a cantora Beth Carvalho,
considerada madrinha dessa leva de compositores sambistas, tem sido a
cantora que mais grava músicas de compositores da região.
Dentre os compositores de samba da atualidade alguns que se destacam
pela qualidade das suas criações. Compositores como Toninho Geraes,
João Martins, Marcelinho Moreira, Serginho Meriti e Leandro Fregonesi,
entre outros, têm propiciado a sobrevivência de estilos musicais genuínos ligados ao universo de samba. Nessa perspectiva os mesmos vêm
vivenciando uma estabilidade profissional na medida em que se fazem
presentes nos principais locais do circuito do samba com shows, venda
de CDs e canjas habituais, além de terem suas composições gravadas por
intérpretes e compositores de renome como Beth Carvalho, Martinho da
Vila e Zeca Pagodinho.
O samba “Comida Mineira”
Os compositores do samba “Comida Mineira” (GERAES, 2010) representam uma geração de compositores que esbanja talento. São eles o mineiro, quase carioca, Toninho Geraes e o letrista Paulinho Rezende. Esse
195
samba resolve problemas, como em geral os sambas o fazem. Uma paixão declinada, uma dívida, uma ou várias saudades ... Os compositores
traduziram em melodia e letra a saudade da cozinha mineira, associando
as delícias salgadas e doces aos prazeres que a mineira, amada e cozinheira, os proporciona.
Interessante observar que em boa parte dos sambas que associam a festa com a culinária a figura feminina aparece como a boa cozinheira, que
além do banquete ainda faz a feira. No samba Comida Mineira o compositor, letrista, livra a cozinheira dessa parte da tarefa e ainda incrementa
uma bela fogueira!
A bebida é outro componente imprescindível no mundo do samba. Ela,
a loira gelada, rola solta em volta da mesa do samba e irriga a garganta
dos cantantes e dançantes. Na cidade do Rio de Janeiros os sambas de
Toninho Geraes desfilam, bem no momento da sua canja musical, nas
vozes de cerca de 1500 pessoas que lotam o Clube Renascença no bairro Andaraí, próximo a Tijuca e ao bairro Vila Isabel. As rodas de samba
do sábado e o Samba do Trabalhador, comandado por Moacyr Luz em
plena segunda-feira, agitam parte do circuito do samba genuíno no Rio
de Janeiro. No samba “Alma Bohemia” os parceiros Toninho Geraes e
Paulinho Rezende descrevem os bairros no circuito do samba. O trajeto
inicia-se na Gamboa e segue para a Lapa, percorrendo, em seguida, às
ladeiras do bairro Santa Teresa. Uma das ladeiras é descrita na música
como “Morro dos Prazeres”, exatamente no refrão. A amada “dorme cedo”
enquanto o boêmio só vai deitar “quando dou o tom na viola pro galo
cantar” (GERAES, 2010).
Como visitante feliz, “De bar em bar” descobrimos ainda um lugar especial, onde o compositor mineiro/carioca solta a voz em mais uma “canja”
musical. No Trapiche Gamboa, próximo ao porto, nos arredores da Praça
Mauá, as atrações são especiais. Nas quintas-feiras a cultura popular faz
seu lar com lindos sambas de rodas, maracatus, entre outros gêneros
como o jongo, interpretados pelas cantoras da Serrinha, região situada
196
na zona metropolitana carioca, que mantém viva essa manifestação cultural carioca. Dely Monteiro, Lazir Sinval, Luiza Marmello e um grupo de
instrumentistas do ritmo e das cordas abrilhantam a noite. Aos sábados
é a vez dos jovens sambistas do Grupo Galo Cantô.
E a comida mineira” afinal...
Seguindo nesse ritmo boêmio chegamos ao domingo com uma imensa saudade retratada no samba “Comida Mineira”. Quem sabe eles encontram aquela boa alma, amada e desejada pra lhe fazer uma gama de
delícias da cozinha mineira que desfila no samba. O compositor, como
dito, já mandou fazer a feira, botou lenha na fogueira, e diz estar com
saudades das Minas Gerais. Nesse compasso o mineiro-carioca vai seguindo a rota do samba com seus parceiros, Paulinho Rezende, com o
samba de roda da Bahia, na parceria com Roque Ferreira e ainda com
outro baiano de peso, o compositor Nelson Rufino. Time bom que embala nossos ouvidos e corações no decorrer da audição do CD Ensejo de
Toninho Geraes. As alegrias e mágoas que o amor traz são cantadas nos
seus sambas cheios de molejos, sabores gelados e quentes, e de temperos salgados e doces. Nesse banquete mineiro desfilam o tutu, o cheiro
verde, a vaca atolada, a pimenta, a mandioca, a polenta, o angu, a carne
seca, o iô iô, o iá iá e tudo o que mais rolar. Nessa cozinha, embalada
de cheiros mil, desfila ainda uma galinhada, uma leitoa assada e uma
rabada com agrião pra temperar a festa onde quem faz carinho no seu
paladar manda no seu coração. Em clima de festa tem ainda uma costelinha regada ao tempero ora pro nobis, “que é de se comer rezando”, um
feijãozinho tropeiro, toicim de fumeiro, torresmo e jiló e melhor que tudo
isso “só mesmo o nosso xodó” (GERAES, 2010).
Num outro domingo talvez, ainda sob o efeito da comida mineira, nos
deliciamos com um lindo samba quase canção, mas o ritmo quase vivo
não dá mole não, o “Pago pra ver” do compositor Toninho Geraes, em
parceria com Nelson Rufino também é cantado pela galera do Clube Re-
197
nascença. Nesse samba talvez nos refaçamos de um amor perdido prometendo com todas as letras, “não mais se entregar feito criança” (GERAES, 2010).
Em outro domingo, ou num sábado, ou na segunda, ou na quinta-feira,
desfila ainda no banquete mineiro um frango com quiabo, uma dobradinha com muito couve, um lombo à Chico Mineiro, os quitutes doces, a
broa e o biscoito sinhá, o beijo guloso e um cheiro doce da sua sinhá. E
pra fechar o samba nosso letrista, embalado pelo ritmo do samba e pela
melodia contagiante conquista de vez o coração da sua amada ao dizer
que delicia mineira não há melhor que você... No momento final na frase
de improviso, chamada “fuleira”, afirma que “o seu beijo é o melhor pão
de queijo” (GERAES, 2010).
E seguimos comendo um feijão preto em dia de preto velho, pertinho do
dia 13 de maio, no Clube Renascença, lugar antigo da resistência negra
na capital carioca. No Rio de Janeiro, em São Paulo e em todo o país o
samba é vivenciado em tom africano, com os bons tapas dos negros percussionistas nos tan-tans, repiques de mão e nos pandeiros. Nesses tapas
trocados no contratempo encontramos o tempo do negro, com seus toques de percussão, nos seus sorrisos e até nos choros de emoção. Aquele
acento no tempo fraco do surdo, como muito bem nos descreveu Sodré
(1979), nos faz caminhar com a alegria que o samba nos dá, nos trazendo,
como nos diz os sambistas paulistas Magnu Sousa e Maurílio Oliveira,
em um samba interpretado pelo grupo paulista Quinteto em Branco e
Preto e pela cantora Fabiana Cozza, um “Novo Viver”.
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Compact Disk
Geraes, Toninho. C.D. 2010. Preceito. Sony Publishing. Rio de Janeiro.
Anexo
199
A música como expressão
gastronômica: o baião
de Luiz Gonzaga
Moacir Ribeiro Barreto Sobral
Universidade Anhembi Morumbi
[email protected]
Sênia Regina Bastos
Universidade Anhembi Morumbi
[email protected]
Resumo
O cantor e compositor Luiz Gonzaga do Nascimento, considerado o Rei do Baião, divulgou pelo
Brasil os forrós pé-de-serra, o xote, o xaxado e outros estilos musicais, cujas letras evidenciavam
a pobreza, as dores e as injustiças presentes na sua região natal, ecoando as tristezas e os
amores de um povo que ainda não tinha voz. A presente pesquisa, de natureza qualitativa,
objetiva identificar e analisar as letras das músicas cantadas por Luiz Gonzaga que apresentam
elementos relativos à comensalidade, sociabilidade e aspectos da alimentação nordestina, todos
diretamente associados às práticas da hospitalidade. A pesquisa tem como objetivo principal
a alimentação e os sabores do nordeste que sempre estiveram presente na vida de Gonzaga.
Fundamenta-se na análise de conteúdo dos estudos biográficos do cantor, na seleção e análise
das letras das músicas a partir das categorias alimentação, comensalidade e sociabilidade.
Palavras-chave
hospitalidade, sociabilidade, comensalidade, alimentação, Luiz Gonzaga
200
Introdução
Gostaria que lembrassem que sou filho de Januário e dona
Santana. Gostaria que lembrassem muito de mim; que esse
sanfoneiro amou muito seu povo, o sertão. Decantou as aves, os
animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes. Decantou os
valentes os covardes e também o amor. (GONZAGA, 1986).
O cantor e compositor popular brasileiro Luís [Lua] Gonzaga [Gonzagão] do Nascimento nasceu em Exu município de Pernambuco, recebeu
o título de Rei do Baião de Humberto Teixeira, no auge da sua carreira.
Primeiro músico a assumir sua origem nordestina, sempre trajado com
chapéu de couro e acompanhado de sanfona , zabumba e triângulo, levava alegria às festas juninas e mostrava ao Brasil os forrós pé-de-serra
e outros ritmos ainda desconhecidos por todo o país, como o xote e o
xaxado, cujas letras evidenciavam a pobreza, as dores e as injustiças presentes na sua região natal, ecoando as tristezas e os amores de um povo
que ainda não tinha voz.
Muitos consideravam ainda no início de sua carreira, que Luiz Gonzaga
tinha uma voz de “taboca rachada” 1, mas isso não o impediu de popularizar a música nordestina na década de 40. No início de sua carreira o
cantor apostou em sua divulgação, por meio da participação em shows
de calouros, inicialmente tocando valsas e tangos. Porém, em virtude
da solicitação de alguns nordestinos para que apresentasse uma música
que lhes tocasse o coração, que rememorasse as histórias vivenciadas no
nordeste, o cantor retomou o estilo musical de sua infância. “Pé de Serra”
e “Vira e mexe” conquistaram não somente os estudantes, mas também
a maior nota do programa de calouros de Ary Barroso (DERYFUS, 2007).
Luiz Gonzaga trouxe para si a missão de representar o povo nordestino,
relatar em suas músicas suas alegrias e tristezas e contar para o Brasil
as dificuldades climáticas vivenciadas pelo povo sertanejo. Isso tudo em
1
A taboca rachada, nesse sentido da frase, significa uma voz inadequada para cantar.
201
forma de poesia. Oriundo do folclórico município de Exu descobriu na
paisagem do interior do nordeste brasileiro o material necessário para
produzir suas canções. Falecido em 1989, o artista ainda tem sua obra
viva nas exposições de numerosos artistas.
Por ocasião do centenário de seu nascimento, em dezembro de 2012, vários eventos comemorativos homenagearam o compositor pernambucano. Um dos tributos de destaque é o “Canto de todos os cantos”, projeto
arquitetado por Guilherme Toledo, que reúne músicos de várias regiões
diferentes do Brasil para gravação de um DVD com 13 canções. Nesse
sentido, destaca-se também o filme longa metragem, conduzido pelo diretor Breno Silveira, “Gonzaga, de Pai para Filho”, homenageando as trajetórias dos patriarcas da família: Gonzaga e Gonzaguinha.
Fundamentado na análise de conteúdo (BAUER, 2002),�����������������
foram selecionadas seis letras cantadas ou compostas por Gonzaga, no universo de mais
de setecentas canções. Procurou-se destacar músicas que possuem aderência à proposta de trabalho, selecionando canções que destacam os
hábitos alimentares dos nordestinos. É a vivência de uma experiência
que pressupõe solidariedade. A comensalidade é tratada também como
um fator social, a organização da alimentação na vida cotidiana, não se
restringe aos aspectos biológico e ecológico. O tema também pode ser
abordado como parte do simbólico e do normativo, associando-se ao aspecto cultural, auxiliando o estabelecimento de laços sociais e familiares
(BOUTAUD, 2011).
A família nordestina constitui temática recorrente nas músicas cantadas
por Luiz Gonzaga, sempre associada ao trabalho nas roças, a participação na feiras livres onde vão vender a colheita e comprar mantimentos,
por ocasião das refeições em família, e ainda nas festividades, que ocorrem em junho como exemplo, a festa do milho, ou o mutirão para a
construção de uma casa de barro e taipa indicando laços festivos são
reafirmados.
202
Para Camargo (2004) a hospitalidade entre familiares, entre amigos é,
sobretudo, festiva e constitui fator de promoção da solidariedade mutua,
de vínculos e da partilha da comida.
A alimentação nordestina faz-se presente na sociabilidade. Muitos itens
que compõem a mesa nordestina podem ser encontrados em lugares de
encontro, como as feiras de rua, popularizadas nas letras de Gonzaga,
como por exemplo, na Feira de Caruaru. É possível perceber algumas
peculiaridades dessa alimentação: as influências portuguesa, indígena e
africana nessa cozinha, a simplicidade de seus pratos, um padrão específico de etiqueta, a forte personalidade do sertanejo, a ponto de recusar a
influência de hábitos alimentares de regiões próximas.
A fundamentação da alimentação nordestina encontra-se nas obras de
Luiz Câmara Cascudo (2004), especialmente no livro “A historia da alimentação no Brasil” em Gilberto Freyre (2002) no “Açúcar”, e em Raul
Lody, cujos livros abordam a alimentação no Brasil e no Nordeste.
Foi realizada uma pesquisa de campo2 no estado de Pernambuco, mais
especificamente a três cidades Recife, Caruaru e Bezerros, com o objetivo de conhecer dois museus sobre a vida e obra de Luiz Gonzaga: o Museu Fonográfico de Luiz Gonzaga e o Museu do Forró. Nessa ocasião
procedeu-se a uma pesquisa exploratória da alimentação disponível nos
bares e restaurantes das cidades visitadas em Pernambuco, estado onde
nasceu Gonzaga e cantado em suas músicas.
Dentre essas músicas são analisadas as categorias comensalidade e alimentação, onde Gonzaga e seus compositores descrevem a vida familiar
na roça, para cultivo e produção de alimentos e seus processos culinários na preparação de pratos típicos da região, destacam-se na analise
as músicas, “Frutos da terra (1982)”, “Feijão com covê (1946)” e “Baião de
Dois (1977)”.
2
A viagem foi realizada em Março de 2013.
203
Construção Metodológica
A alimentação, a(s) cultura(s) nordestina(s) são temáticas recorrentes nas
letras das músicas cantadas por Luiz Gonzaga ao longo de sua carreira. A análise dessas composições proposta nesse estudo evidencia tais
temáticas fundamentada no aporte teórico da hospitalidade. Gonzaga
cantou o sertão nordestino, evidenciou a religião e as crenças populares
ali presente problematizou valores sociais, descreveu as feiras, mercados,
bares e a alimentação cotidiana. Sua música também se ocupou de pessoas comuns, tais como repentistas, cronistas, vaqueiros, cangaceiros e
as mulheres guerreiras do sertão, bem como de algumas personalidades
da região, como seu ídolo Virgulino Ferreira vulgo Lampião.
Ao longo de sua trajetória Gonzaga gravou 248 músicas em 78 RPM, 38
músicas em 45 simples, 72 músicas em 45 duplos, 696 músicas em PLs
12 polegadas e 16 LPs de 10 polegadas, totalizando 1.063 músicas sem
regravação (OLIVEIRA, 1991). Tais gravações foram realizadas em três
gravadoras: a RCA, onde gravou a maioria de seus sucessos, a Odeon e a
Copacabana. É autor de 53 composições, interpretou sozinho 329 músicas e 243 com parceiros.
O procedimento metodológico pautou-se primeiramente por uma observação do conjunto de composições cantadas por Luiz Gonzaga, seguiu-se a seleção das letras que se relacionam à alimentação, à(s) cultura(s)
nordestina e a sua biografia. As letras foram analisadas por trechos, identificando em cada estrofe ou verso as manifestações socioculturais relativas ao Nordeste.
O corpus é uma seleção de materiais, “determinada de antemão
pela analista, com (inevitável) arbitrariedade, e com a qual ele irá
trabalhar” (Barthes, 1967, p.96). Barthes, ao analisar textos, imagens
música e outros materiais como significantes da vida social, estende
a noção de corpus de um texto para qualquer outro material. Em seu
opúsculo sobre os princípios da semiótica ele reduz as considerações
204
sobre seleção a poucas páginas. A seleção parece menos importante
que a análise, mas não pode ser separada dela (BAUER, 2002, p. 44).
O corpus documental da presente na pesquisa é constituído por seis letras, cujas temáticas principais relacionam-se à biografia do cantor, nesse
caso, a questão migratória e à comensalidade nordestina. A eleição dessas
temáticas fundamenta-se no aporte teórico da hospitalidade, o que será
explicitado adiante e, como salienta Bauer (2002), relatar o processo da
seleção dos documentos é tão importante quanto a sua análise. As letras
das músicas selecionadas foram retiradas de um site especializado sobre a
vida e a música de Luiz Gonzaga, do pesquisador “Paulo Vanderley”.
[...] a pesquisa qualitativa pode ser considerada como sendo uma
estratégia de pesquisa independente, sem qualquer conexão funcional
com o levantamento ou com outra pesquisa quantitativa independente.
A pesquisa qualitativa é vista como um empreendimento
autônomo de pesquisa, no contexto de um programa de pesquisa
com uma série de diferentes projetos [...]. (BAUER, 2002, p. 27).
De abordagem qualitativa, a metodologia adotada apoia-se na análise
de conteúdo. Segundo Bauer (2002) a análise de conteúdo embasa a interpretação do texto tanto qualitativa quanto quantitativa, e espera compreender o pensamento do sujeito através da escrita do seu texto. Sugere
que todas as análises sejam categorizadas, para o que se faça necessárias
a criação de categorias que levam em consideração o objeto de pesquisa.
O artista e compositor Luiz Gonzaga constitui o ator principal da pesquisa, por vezes é o protagonista das narrativas cantadas, cujas letras
contemplam expressões culturais nordestinas. Canta o lugar onde nasceu e o sertão constitui o elemento facilitador da sua construção musical.
Como já ressaltado, a importância do povo e do lugar cultural possibili-
205
tou a identificação e a construção conjunta com seus compositores, do
forró3 e do baião4.
A intervenção dos seus principais compositores, como Humberto Teixeira e Zé Dantas, ambos migrantes oriundos da mesma região e residentes
no Rio de Janeiro, facilitou a criação de composições com temáticas socioculturais e nordestinas. Na análise das letras composta por Gonzaga e
seus compositores percebe-se a junção da escrita poética lírica e popular.
Numa leitura atenta das canções de Luiz Gonzaga, e possível perceber
a presença, de múltiplas vozes sociais dialogando, de forma que
nas letras das canções a sua visão do nordeste não emerge sozinha,
há presença de uma interação das suas palavras com as palavras
de outros. As canções de Luiz Gonzaga possuem inter-relações
dialogadas com outros discursos particulares como, discurso religioso,
discurso politico, discurso da seca, etc. (CORDEIRO, 2008, p. 62).
Alimentação sertaneja
Cascudo (2004) aponta quatro tipologias na cozinha nordestina: a cozinha de litoral, baiana, maranhense e a mais cantada nas musicas de Luiz
Gonzaga, a cozinha sertaneja. Privilegia-se nessa dissertação a cozinha
sertaneja, que nasce no sertão nordestino, que abrange principalmente
os estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Alagoas, em região de clima semiárido, cujas temperaturas oscilam entre
28°C e 44°C, ambiente rustico e mata de caatinga.
A palavra Sertão é de origem portuguesa, encontrada pela primeira
vez relacionada ao Brasil na Carta de Pero Vaz de Caminha. É por
3
Existem três versões para a origem do termo forró. A mais vivenciada pelos autores e a de
Câmara cascudo, que a origem vem do termo africano “forrobodó”, que segundo Cascudo
(2004) significa algazarra, festa para ralé, arrasta-pé.
4
Cascudo (1972:128-129) relata que o baião foi uma “dança popular muito preferida durante o
século XIX no nordeste do Brasil.”. O mesmo que baiano. O mesmo que rojão. Pequeno trecho
musical executado pelas violas nos intervalos do canto no desafio.
206
essa categoria, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) designa o semiárido nordestino, adotada, em síntese, para
indicar terras desconhecidas, longe do mar, onde o clima era muito
diferente do habitado pelos portugueses (FERREIRA, 2008, p. 93).
Segundo Lody (2008) no sertão pela manhã, antes do sertanejo ir para a
roça, come manteiga do sertão5, cuscuz de milho com leite, macaxeira,
batata-doce, bode com farinha e café com rapadura. À noite, na volta do
seu trabalho, junto com a família, alimenta-se de coalhada com rapadura,
farinha com mandioca, queijo assado na brasa, tapioca com leite e café.
O café da manhã e da noite, por muitas vezes, apresentam os mesmos
pratos, ou seja, o mesmo padrão de consumo.
Já no seu almoço o boiadeiro ou agricultor, ao se alimentar em casa, com
a família ou simplesmente no pasto, costuma levar sua boia6 junto com
ele, seus alimentos apresentam a mesma composição acima evidenciada,
proporcionando-lhe energia para o trabalho pesado.
Alimentos como farinha, carne seca, rapadura e um dos principais a palma forrageira7, contribuem como principais produtos para sua dieta.
Os animais também fazem parte da dieta como a galinha, bode e o boi.
A vaca e o boi representam papeis importantes no sertão nordestino: a
vaca na produção de leite, principal matéria prima para fabricação de
manteiga, a manteiga de garrafa, queijo do sertão e queijo coalho e o boi
para produção da carne, como de carne de sol e jabá, ambas desidratadas
pelo sal que ajuda na conservação do alimento e também a modificar da
sua estrutura e sabor.
As carnes desidratadas foram utilizadas no Brasil antes mesmo da colonização. A primeira técnica foi o moquém, onde o indígena defumava
5
Mais conhecida como manteiga de garrafa ou manteiga clarificada.
6
Prato levado para o local de trabalho, normalmente servido frio.
7
A palma, de fácil plantio se adapta perfeitamente em clima secos, é utilizada para alimentação do rebanho e para consumo próprio.
207
e secava as carnes de caça, para terem mais tempo de vida. Fernandes
(2007, p. 38) relata esta estratégia:
Enterram profundamente no chão quatro forquilhas de pau,
enquadradas à distância de três pés e à altura de dois pés e meio;
sobre ela assentam varas com uma polegada ou dois dedos de
distância uma da outra, formando uma grelha de madeira [...]
nele colocam a carne cortada em pedaços, acendendo um fogo
lento por baixo, revirando de quarto em quarto de hora até que
esteja bem assada. Como não salgam suas viandas para guardálas, como nós fazemos, esse é o único meio de conservá-las.
Outra técnica utilizada até hoje é a salga das carnes, técnica introduzida
pelos portugueses, já que os índios não utilizavam sal. Com ajuda deste
processo que se originou a carne seca, carne do sol, charque, entre outros
produtos que utilizam a salga em seu processo de fabricação. As carnes
salgadas são muito utilizadas nas viagens dos vaqueiros e cangaceiros
no nordeste, juntamente com a farinha de mandioca e a rapadura. É comum notar no sertão nordestino vaqueiros conservando as carnes desidratadas por baixo da sela do cavalo, entre um couro do animal e a sela,
deixando-a mais macia. Ao mesmo tempo nas longas viagens com tempo curto, os vaqueiros e cangaceiros faziam a sua refeição, em cima da
sela do cavalo em movimento, no máximo jogavam um pouco de manteiga de garrafa para hidratá-las e dar mais sabor ao alimento, as vezes
também quando tinham, junto com a carne comiam farinha para dar a
sensação de satisfeitos mais rapidamente.
No sertão o sol ajuda a combinar sobres de carnes e peixes [...]
carnes do sertão ou de sol, chegam a pratos importantes, como
Maria-isabel,[...] Sertão, terra de produtos que vêm do gado leiteiro,
formando cardápios que assumem valores nutritivos. Coalhadas,
manteigas, queijo de coalho, queijo manteiga, para diferentes
usos, que vão do café da manhã com cuscuz de milho e leite
de coco [...] Trajetória do cangaço, dos vaqueiros, das lutas e
conquista; da fé em santos inventados em de místicossalvadores.
Desejos messiânicos de viver vidas além da terra; terra tão
208
dura e seca. O cabra é forte, cabra danado, cabra de engenho,
cabra da peste, cabra macho, sim sinhô.”. (LODY, 2010, p. 20).
A manteiga de garrafa, também conhecida no nordeste como manteiga da terra ou manteiga do sertão, é muito utilizada pelo sertanejo em
sua cozinha, na cocção de alimentos. Sempre disposta na mesa, utilizada como tempero em pratos tradicionais. Fora da cozinha se apresenta amarrada nas cinturas dos cangaceiros e vaqueiros, que a utiliza em
suas viagens para hidratar e dar sabor às carnes desidratadas, que se
localizam em baixo das selas de seus cavalos.
Segundo Cascudo (2009) os cangaceiros engarrafavam as manteigas
para facilitar a alimentação quando estivessem em cima dos cavalos, assim não parando a viagem, facilitando na alimentação, isso também era
utilizado para engarrafar as farinhas de mandioca. Neste mesmo identifica Virgulino, o Lampião, como possível inventor da manteiga de garrafa.
O cangaceiro que viveu no sertão nordestino, levava consigo culturas e
costumes de outras cidades, colocando em circulação diferentes culturas.
No nordeste do Brasil, a manteiga de garrafa é obtida, entre outras
maneiras, da seguinte forma: o leite é levado acoalhar, separase o soro do creme que se forma, o qual é batido ligeiramente
para ficar consistente – ponto intermediário da manteiga; leva-se
então ao fogo brando. Quando a “borra” começa a dourar retirase do fogo e coa-se em seguida. O liquido resultante é a manteiga
da garrafa. Ou então, a massa do leite fermentado com coalho
animal é levada à cocção, geralmente em fogão a lenha: deve
ser levada a dourar, e a continuidade do cozimento desprende o
que virá a ser a manteiga de garrafa. Ela leva esse nome por ser
comercializada em garrafas. Não pode ser utilizada como fritura,
sendo ideal na finalização de pratos de legumes, tapioca e como
acompanhamentos da carne do sol (BARRETO, 2000, p. 249).
A alimentação sertaneja se familiariza com o ambiente e seu povo. Vimos que o cardápio do sertão, diferentemente do restante do nordeste,
são mais secos sabores mais simples e rustico. A terra seca que se cultiva
209
e produz pouco ou às vezes nada. A grande ligação do animal com o nordestino, para ajuda plantação e alimentação da sua família. No caso da
vaca, o leite se transforma em vários subprodutos para sobrevivência e
economia regional. Neste capitulo foi apresentada uma simples e sucinta
representação da cozinha nordestina, apresentando a cultura nordestina
ligada ao seu povo e ingredientes simples que se transformam em produtos e pratos de características culturais única no Brasil.
Comensalidade e alimentação nas letras das
músicas cantadas por Gonzaga
As músicas analisadas têm o intuito de refletir sobre a hospitalidade e
comensalidade presentes nas músicas cantadas por Luiz Gonzaga, destacando também o nordeste cantado na visão dos compositores e do próprio cantor.
A linguagem utilizada por Gonzaga assemelha-se a forma de manifestação regional, onde apresenta a oralidade que chegava mais perto da fala
do homem nordestino. Segundo Albuquerque (2001) o “falar nordestino”
constitui uma língua e sotaques imaginários, que se modificam com o
passar dos tempos e por região do Nordeste. Neste caso cada região ou
cidade desenvolve uma linguagem que se se entende como uma variação linguística e não dialetos.
Para fundamentá-la realizaram-se pesquisas sobre pratos típicos, ingredientes, colheita, preparação do alimento nas casas de sertanejo e o comer
juntos, nesse sentido os indicadores dessa categoria são: alimentação e
comensalidade. Na Categoria alimentação se analisa, nas letras cantadas
por Gonzaga, a identificação de pratos regionais e ingredientes associados à cultura e identidade nordestina, já em comensalidade se analisa a
colheita deste alimento, preparação do alimento e o comer juntos.
Além de cantar e compor músicas sobre a realidade nordestina insere
nessas canções parte da sua história e da sua identidade, retratos do que
210
vivenciou na sua rotina e, consequentemente, evidencia representações
de suas raízes. “Feira de Caruaru” (1957), uma das mais importantes músicas cantada por Gonzaga, demostra a variedades de ingredientes e produtos encontrados lá.
A feira de Caruaru/ Faz gosto da gente ver/ De tudo que há no
mundo/ Nela tem pra vender/ Na feira de Caruaru/ Tem massa de
mandioca/ Batata assada/ Tem ovo cru/ Banana, laranja e manga/
Batata doce, queijo e caju/ Cenoura, jabuticaba,/ Guiné, galinha,/ Pato
e peru/ Tem bode, carneiro e porco/ Se duvidar isso é cururu / Tem
cesto, balaio, corda/ Tamanco, greia, tem boi tatu/ Tem fumo, tem
tabaqueiro/ Tem tudo e chifre/ De boi zebu/ Caneco, arcoviteiro/
Peneira, boi/ Mel de uruçu/ Tem carça de arvorada/ Qué pra matuto/
Não andar nu/ Na feira de Caruaru/ Tem coisa pra gente ver/ De tudo
que há no mundo/ Nela tem pra vender/ Na feira de Caruaru/ Tem
rede, tem baleeira,/ Mó de menino/ Caçar nhandu/ Maxixe, cebola
verde,/ Tomate, coentro,/ Côco e xuxu/ Armoço feito na corda,/ Pirão
mexido/ Que nem angu,/ Mobília de tamborete/ Feita de tronco de
mulungu/ Tem louça,/ tem ferro véio,/ Sorvete de raspa/ Que faz jaú/
Gelado, caldo de cana/ Fruta de parme/ E mandacaru/ Boneco de
vitalino/ Que são conhecido/ Inté no Sul,/ De tudo que há no mundo/
Tem na feira de Caruaru/ A feira de Caruaru. (ALMEIDA, 1957).
Na letra composta por Onildo Almeida e cantada por Luiz Gonzaga, é
demostrada a riqueza que a feira tem nos ingredientes regionais comercializados e usados no preparo de pratos nas cozinhas de casas e restaurantes da região. Ingredientes como carde do sol, carne seca, macaxeira,
farinha, tapioca, frutas típicas e muito mais. A letra da música também
enfatiza que tudo que há no mundo se encontra lá, ou seja, os autores
demonstram a grande variedade de itens encontrados na feira. Além
de alimentação e pratos regionais, ressaltam a importância do artesão
de brinquedos, móveis e de decoração regional feita de barro, como por
exemplo, os bonecos de Vitalino produzidos e vendidos na própria feira.
Esta terra dá de tudo/ Que se possa imaginar/ Sapoti, jaboticaba/
Mangaba, maracujá/ Cajá, manga, murici/ Cana caiana, juá/
211
Graviola, umbu, pitomba/ Araticum, araçá/ Engenho Velho
ô, carnavial/ Favo de mel no meu quintal/ O fruto bom dá no
tempo/ No pé pra gente tirar/ Quem colhe fora do tempo/ Não
sabe o que o tempo dá/ Beber a água na fonte/ Ver o dia clarear/
Jogar o corpo na areia/ Ouvir as ondas do mar/ Engenho Velho
ô, carnaval/ Favo de mel, no meu quintal (FEIRA, 1982).
A música, “Frutos da terra” (1982) cantada por Gonzaga valoriza os frutos típicos do nordeste brasileiro, como cajá, mangaba, pitomba, graviola,
manga. O cantor demonstra no seu histórico uma intensa preocupação
em não perder suas referências originais, advindas da sua terra de origem, e a necessidade de ser porta voz de seu povo, divulgando para o
Brasil e o mundo os hábitos e frutos da região nordeste. Além de valorizar os frutos e a terra produtiva, a música também tem um intuito de
levar ao nordestino retirante do sudeste do Brasil, informações sobre a
sua terra e o poder que ela ainda tem de gerar frutos, nas fazendas ou no
quintal das casas dos nordestinos e demostra a valorização das frutas
regionais.
Ai que será?/ Tenho pratando/ Muita côve no quinta/ Ai o que será?/
Feijão com côve/ Que talento pode dá? } bis/ Cadê a banha?/ Pra
panela refogá/ Cadê açúcar?/ Pro café açucara/ Cadê manteiga?/
Leite e pão/ Onde é que tá?/ Cadê o lombo?/ Cadê carne de jabá?/ Já
tou cansado/ De escutá o doutor fala/ Que quarqué dia/ As coisa tem
que melhorá/ Sem alimento/ Num se pode trabaiá/ Por que será?/
Feijão com côve/ Que talento pode dá?. (GONZAGA, PORTELLA, 1946).
Baião intitulado “Feijão com Covê”, compostos por Luiz Gonzaga e José
Portella, ambos os compositores apresentam nesta música, produtos típicos da alimentação no sertão nordestino valorizando os ingredientes,
mas ao mesmo tempo questiona a falta deles. Apresenta as dificuldades
do nordestino com a seca mostra a preocupação com a falta de alimento.
Incorpora os problemas do povo e as falsas promessas feitas pelos políticos, que fazem promessas de fartura de alimentos no nordeste que nunca
chegam. Gonzaga critica os políticos usando alimentos típicos da sua
212
região, e denuncia a miséria e o cansaço do seu povo no nordeste. O Sertão deixa de ser um lugar, oportuno e trona-se um mundo, abandonado
pelas autoridades, de tristeza e miséria, de um povo cansado da pobreza.
Capitão que moda é essa, deixe a tripa e a cuié/ Home não vai na/
cozinha, que é lugá só de mulhé/ Vô juntá feijão de corda, numa
panela de arroz/ Capitão vai já pra sala, que hoje têm baião de dois/
Ai, ai ai, ó baião que bom tu sois/ Se o baião é bom sozinho, que
dirá baião de dois/ Se o baião é bom sozinho,/ que dirá baião de
dois/ Ai ai, baião de dois, ai ai, baião de dois/ Capitão que moda
é essa, deixe a tripa e a cuié/ Home não vai na/ cozinha, que é
lugá só de mulhé/ Vô juntá feijão de corda, numa panela de arroz/
Capitão vai já pra sala, que hoje têm baião de dois/ Ai, ai ai, ó
baião que bom tu sois/ Se o baião é bom sozinho, que dirá baião
de dois/ Se o baião é bom sozinho, que dirá baião de dois/ Ai ai,
baião de dois, ai ai, baião de dois. (TEIXEIRA, GONZAGA, 1977).
Baião intitulado “Baião de Dois”, composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. A música foi composta em homenagem a um dos maiores
clássicos da culinária regional nordestina e um dos mais consumidos.
Ao mesmo tempo faz também uma homenagem as mulheres cozinheira
da região nordeste. Segundo Fernandes (2001) o baião de dois é um prato
de origem simples feito à base das sobras de feijão e arroz, ao longo dos
tempos foi sendo adaptado com pedaços de carnes secas, queijo coalho,
manteiga de garrafa e linguiça.
Ôi pisa o milho, penerô xerém/ Ôi pisa omilho,penerô xerém/
Eu num vou criar galinha/ Pra dar pinto pra ninguém } bis/ Na
minha terra/ Dá de tudo que plantar/ O Brasil dá tanta coisa/
Que eu num posso decorar/ Dona Chiquinha/ Bote o milho
pra pilar/ Pro angu, pra canjiquinha/ Pro xerém, pro munguzá/
Só passa fome/ Quem não sabe trabalhar/ Essa vida é muito
boa/ Pra quem sabe aproveitar/ Pego na peneira/ Me dano a
sacolejar/ De um lado fica o xerém/ Do outro sai o fubá/ Saculeja,
saculeja, saculeja, já} bis/ Penerô xerém.( GONZAGA, LIMA, 1945).
213
Baião intitulado “Penerô Xerém” composta por Luiz Gonzaga e Miguel
Lima. Apresenta o Xerém como subproduto do milho, utilizado para alimentação das granjas de galinhas e para a produção de pratos típicos da
culinária nordestina. Do milho retiramos vários subprodutos usados na
culinária nordestina, Gonzaga apresenta na música alguns pratos regionais, como o angu, canjiquinha e munguzá.
Segundo Araújo (2009), o milho tem grande presença na alimentação
humana e animal, pelas suas características nutricionais e grande fonte
energética. Existem mais de 600 derivados do milho e destes 500 destinam-se para consumo humano, como: farinha de milho, xerém, canjiquinha, óleo. São utilizados na culinária brasileira, tendo participação
efetiva de varias preparações cuscuz, polenta, canjica, pamonha, pipoca
entre outros pratos da culinária regional.
Eu sou do Norte/ Rumei para São Paulo/ Fui mudar de sorte/
Com o fole na mão/ Corní de tudo/ Comida italiana/ Bife
parmegiana/ Canelão de macarrão/ Provei também/ A tal
de passarela/ Bebí da caipirinha/ E vinho de garrafão/ Mas
eu confesso/ Não é por ser de lá/ Cana pernambucana/ É a
maior, meu irmão/ Oxente!/ Quando falo, não retruco/ Oxente!/
Cana só de Pernambuco } bis ( GONZAGA, SIMOM, 1954).
Forro intitulado “Cana Só de Pernambuco”, composto por Luiz Gonzaga
e Victor Simon. Apresenta a sua chegada a cidade de São Paulo e aproveita a vida gastronomia da culinária paulistana. A influência italiana na
cozinha paulista na década de 50 e a regional mostrando a caipirinha.
Mas sente saudades da sua cachaça pernambucana. Gonzaga fala em
entrevista a Dreyfus (2004), sobre a particularidade em cada nordestino
com sua cachaça, normalmente um bom nordestino toma a cachaça produzida em sua terra, fala “cachaça e quem nem filho e mulher, cada um
tem a sua”. Em Pernambuco existe o museu da cachaça com mais de oito
mil rótulos, só da cidade de Pernambuco.
214
Conclusão
As canções de Luiz Gonzaga representam a cultura nordestina, evidenciam personagens, como o sertanejo, o migrante nordestino, o vaqueiro,
os cangaceiros, a mulher guerreira etc. Além desses personagens Gonzaga canta o ambiente e o espaço cultural onde se desenvolvem estas histórias como: as casas de taipa, o sertão, as feiras, os mercados, a caatinga
entre outros lugares importantes. Nas letras escritas por ele mesmo e por
seus compositores evidenciam a cultura nordestina e, sobretudo reconstroem a cultura a partir de sentimentos pessoais vividos por ele ou por
seu povo.
Gonzaga foi um dos grandes difusores da cultura e identidade nordestina no Brasil e, com muito esforço em seu trabalho, sofrendo preconceitos
da sociedade da época conseguiu quebrar barreiras, construir seu próprio ritmo, tornando-se um dos maiores cantores da atualidade. Criou
seu próprio estilo, assumiu o papel de artista social, apresentando-se
com roupas e chapéus de cangaceiro que lembrava Lampião, também registradas e legadas à posteridade na capa dos discos. Gonzaga assumiu
este estilo primeiramente para ficar mais perto do seu povo e quebrar a
barreira que os separava quando usava terno e gravata nos shows.
A comensalidade e alimentação encontram-se em varias canções, pois
Gonzaga adorava comer todo e qualquer tipo de comida, embora manifeste sua preferência pela cozinha nordestina. Dreyfus (1996) aponta que
o cantor nunca se alimentava se sentava sozinho em uma mesa, seguindo os ensinamentos religiosos e paternais sempre compartilhava a mesa
com alguém. Mesmo quando entrava sozinho em bares de outras cidades, sentava-se com pessoas desconhecidas e partilhava o alimento com
elas, ou às vezes se acomodava no balcão e fazia sua refeição conversando com o atendente. Nas músicas como: “Feijão com Covê (1946)”, “Baião
de Dois” (1977), “Frutos da Terra (1982)” entre outras apresenta produtos
e pratos típicos da região nordeste, ao mesmo tempo em que descreve
métodos de produção e ingredientes, aparece o agradecimento à fauna
215
e flora por terem lhe concebido estes produtos naturais. Os animais e
a terra estão sempre presentes na vida do sertanejo, no seu trabalho, na
colheita e na sua alimentação, dando o sustendo a família.
Foram encontradas na analise alimentos e produtos, típicos da alimentação diária do nordestino, como manteiga de garrafa, carne seca, farinha,
milho e feijão. Produtos que fazem parte da cesta básica popular.
Com todo seu esforço e trabalho consegue ser um artista de renome
nacional e internacional, divulgando através de suas músicas a cultura
nordestina a partir de um estilo próprio. O seu povo e sua família foram incentivadores de Gonzaga ser representante da música popular do
Nordeste. Temos que agradecer aos esforços e criações de ritmos como
xaxado, baião, forró que fazem a alegria do nordeste e do povo brasileiro
até hoje.
Sou um artista feliz, muito feliz, com o dom de unir o povo, só cuido de
unir o povo, é nunca se esqueça do povão.
Luiz Gonzaga
Referências
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Chá Cutuba. RCA Rio de Janeiro.
Gonzaga; Portella. Feijão com Covê.
1946. 78 RPM. RCA Rio de Janeiro.
Feira. Frutos da terra. 1982. LP: Eterno
Cantador. RCA Rio de Janeiro.
Gonzaga; Simom. Cana só de Pernambuco.
1954. 78 RPM. RCA Rio de Janeiro.
Gonzaga; lima. Penerô Xerém. 1945.
78 RPM. RCA Rio de Janeiro.
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sociocultural. São Paulo: FAPESP.
217
O samba e a cerveja
como símbolos nacionais:
eu sou Brahmeiro
Antonio Layton Souza Maia
Universidade Federal do Ceará
[email protected]
Resumo
O presente artigo, partindo de uma propaganda da cerveja Brahma, busca entender como
a cerveja e o samba tornaram-se elementos da identidade nacional brasileira. A partir de
uma visão sócio-histórica, embasada pelas considerações de Schneider sobre a “brasilidade”,
discute as principais características do imaginário nacional brasileiro, para, então apoiado
pelos levantamentos de dados históricos de Vianna, Diniz e Coutinho, encontrar os principais
elementos que elevaram tanto a cerveja quanto o samba ao patamar de símbolos nacionais.
Palavras-chave
identidade nacional, samba, cerveja, brasilidade
218
Introdução
Este trabalho tem como mote um vt da cerveja Brahma veiculado em
20081. No referido comercial, um samba cantado por Zeca Pagodinho
fala sobre o cotidiano e o orgulho de ser brasileiro, relacionando a cerveja
a esses momentos de “brasilidade”. O vt tem um clima bem descontraído
e o refrão é cantado num bar no meio de uma roda de samba. Contudo,
para uma propaganda de cerveja poder se apropriar de uma situação, faz-se necessário que ela já tenha sido assimilada pelos indivíduos a serem
atingidos pela comunicação. Em seu artigo, Tangriane Cella (2010) coloca que as propagandas surgem a partir de um momento sócio-histórico
específico, mantendo uma relação intrínseca com seu contexto. Portanto,
para que tais anúncios façam sentido, “é preciso manter relações com a
exterioridade, com a historicidade [...]” (CELLA, 2010: 116).
Sendo assim, para que a Brahma anuncie em grandes meios que também
faz parte da brasilidade – ou que é a própria brasilidade, como alguns podem interpretar – é necessário que os elementos mais contundentes do
vt já façam parte do imaginário coletivo brasileiro. Esses elementos são
justamente o samba (trilha de fundo) e a cerveja (mote do anúncio).
Este artigo surge, portanto, da necessidade de tentar compreender como
esses dois objetos alcançaram o patamar de símbolos da identidade nacional e pretende organizar dados históricos de forma que se possa entender, pelo menos de forma inicial, que processos acarretaram tal mudança. A pesquisa bibliográfica realizada centrou-se em documentos
de cunho histórico, tendo como base sociológica uma pesquisa de Jens
Schneider, pesquisador alemão, acerca da identidade nacional brasileira.
Brasilidade
Antes de tratar sobre a identidade brasileira em si, precisa-se esclarecer
alguns conceitos acerca de “identidade nacional”. Nos primeiros parágra1
Vídeo disponível em: <http://youtu.be/hpfh-IJRBic> Consulta: 08/2013.
219
fos de seu artigo, Jens Schneider (2004) pondera que “a identidade étnica
funciona basicamente como um ‘dispositivo de rotulagem’” (SCHNEIDER,
2004: 98), ou seja, a identidade surge para diferenciar os indivíduos em
grupos. A partir daí, surgem questões como: que fatores são relevantes
para a “unidade nacional”? Como os grupos permanecem coesos?
Em suas considerações, Schneider (Ibid.) coloca que o primeiro elemento que constitui de fato uma “unidade nacional” é o idioma. É a partir
do idioma, acrescido de outros fatores socio-culturais, que o “discurso
nacional”2 começa a ser construído. É importante entender também que
tal discurso não é apenas uma expressão do nacionalismo, mas um mecanismo de construção da nação como comunidade. Sendo “comunidade”
entendido aqui como: conjunto de indivíduos que partilham e replicam
os mesmos símbolos, criando assim uma cultura unificada (Ibid.: 99-100).
O “discurso brasileiro”, no entanto, parece ser um coro formado por várias vozes, diversos “idiomas” que culminam num único idioma. E essa
heterogeneidade formadora do discurso brasileiro acaba sendo sua principal característica. Hermano Vianna (1995) coloca que é justamente a
heterogeneidade que torna a cultura brasileira homogênea. Segundo ele,
a indefinição (representada no brasileiro pela miscigenação) é a origem
do que há de mais brasileiro no brasileiro. Ainda mais: “Sem heterogeneidade não há criatividade; a homogeneidade é comparável à morte do sistema, e só uma perturbação vinda do exterior pode produzir novamente
alguma diferenciação interna, gerando ‘trabalho’ ou ‘energia’.” (VIANNA,
1995: 150).
Essa heterogeneidade já foi interiorizada pelo brasileiro há algum tempo,
de tal modo que de acordo com a pesquisa de Schneider3, o brasileiro vê
2
Discurso nacional é entendido aqui na mesma perspectiva adotada por Schneider: “sistema
formativo inter ou supra-individual, voltado para as narrativas e para a construção de significados” (SCHNEIDER, 2004: 101).
3
O pesquisador entrevistou diversos alemães e brasileiros para compor um estudo antropológico sobre a germanidade, a brasilidade e o sentimento de pertencimento social. Segundo
220
sua sociedade como heterogênea e aberta às diferenças, “como um ‘gigante’ pacífico, cheio de alegria e criatividade, que não se deixa envolver
em situação de guerra” (SCHNEIDER, 2004: 116). É curioso notar, entretanto, que essa visão do país averso à guerra, contrasta com os altos níveis
atuais de violência do país.
O brasileiro também enxerga seu país como uma “sociedade de imigrantes”, onde impera o princípio jus soli – o indivíduo possui a nacionalidade do país onde nasce. Princípio logicamente utilizado para promover a
integração em um país que, durante a colonização, viveu uma imigração
maciça. Também de acordo com a pesquisa supracitada, a maioria dos
entrevistados utilizou-se do princípio jus soli para justificar o fato de ser
brasileiro, enquanto que a maioria dos alemães entrevistados argumentou ser alemão devido a sua ascendência – princípio jus sanguinis: o indivíduo herda a nacionalidade de seus ascendentes. Percebe-se, através
das linhas anteriores, que o conceito de pertencimento para o brasileiro
está bastante ligado ao local de nascimento.
Embora rígido em seus critérios de “nascimento”, o brasileiro, paradoxalmente, sempre se mostra receptivo aos novos imigrantes, que normalmente não encontram nenhum empecilho para o pleno reconhecimento
de sua cidadania como brasileiros. Esse fato fortalece ainda mais a auto-imagem brasileira de uma “sociedade heterogênea e tolerante com a diferença” (SCHNEIDER, 2004: 110).
Em relação ainda a auto-imagem, durante sua pesquisa, o autor percebe a formação de duas construções do brasileiro e sua “brasilidade”: o
“modelo carioca de brasilidade” e o “modelo paulista de brasilidade”. O
primeiro deles traz o carioca como o brasileiro típico, marcado pela miscigenação e visto como a encarnação da grande “mistura nacional”; o
modelo carioca também mostra-se bastante apegado ao nacionalismo e
a elementos do imaginário coletivo. O “modelo paulista”, por seu turno,
ele, as entrevistas realizadas no Brasil ocorreram entre 2001 e 2003, sendo incorporadas no
estudo as questões das diferenças regionais e a diversidade étnica.
221
entende o Brasil como uma sociedade multicultural resultante do contato de diversos imigrantes. Contudo, ao invés de pensar em uma grande
“sopa cultural”, o paulista vê seu país como várias “ilhas étnicas” interligadas4. Nesse caso, o brasileiro típico seria aquele que pertence a distintos grupos de imigrantes. Desse modo, o autor afirma que São Paulo
é uma cidade tipicamente brasileira, mais até que o Rio de Janeiro, em
razão da forte e clara presença da imigração. Em outros termos, enquanto o “modelo paulista” centra-se na preservação das diferenças, o carioca
preza pela “[...] convergência das diferenças originais na direção de um
‘amálgama’ comum de identidade brasileira.” (Ibid.: 112).
Schneider, em sua pesquisa, pergunta o que faz de um imigrante, brasileiro. Um dos entrevistados não exita em responder: “[...] quando ele assume as características mais típicas do brasileiro: gostar de futebol, gostar
da música, gostar da praia. Daí, […] ele se torna essa pessoa mais flexível,
bem-humorada” (Ibid.: 113). Pode-se perceber, dessa forma, que o brasileiro também pode ser definido pelos objetos culturais que consome, tais
como a música e o futebol, mas também – e principalmente – por seus
eventos coletivos. Como exemplos de evento coletivo pode-se citar: jogar
futebol com os amigos, pular carnaval, tomar cerveja depois do trabalho...
Esses eventos mostram-se tão determinantes para a brasilidade que, em
meio a uma das entrevistas, um brasileiro cogitou não ser brasileiro por
não gostar de carnaval e futebol. Percebe-se assim como esses eventos
deixaram de ser somente práticas culturais, tornando-se símbolos nacionais. Símbolos tão fortes que se difundem e replicam de modo quase
automático, dispensando até mesmo a necessidade de um discurso (SCHNEIDER, 2004: passim).
4
Schneider cita uma frase de um entrevistado que explica bem esse conceito das “ilhas interligadas”: “Então, é difícil você, em São Paulo principalmente, se sentir exclusivamente dentro
de uma cultura brasileira... Acaba sendo assim: pequenos países dentro de São Paulo. […] Eu
acho que o Brasil é isso mesmo. Um pouco da identidade do mundo inteiro” (SCHNEIDER,
Ibid.: 112, grifo nosso).
222
Schneider, nesse momento, aponta no território brasileiro uma proeminência dos símbolos em relação ao discurso, devido, segundo ele, a fatores como extensão do país, diversidade cultural e desigualdades sociais.
O autor esclarece sobre a diferença entre o discurso e os símbolos no
Brasil:
[…] os discursos sobre a identidade no Brasil centram-se na
questão de classe ou outras questões sociais, enquanto a noção
de identidade nacional é deixada a cargo das representações
simbólicas – não somente símbolos oficiais do Estado, mas também
o futebol, o samba e até mesmo a “paz”. (SCHNEIDER, 2004: 119).
Por conta disso, enfim percebe-se a importância dos eventos na formação da “identidade brasileira”, com destaque para o futebol e o carnaval.
Ainda assim, o estudo antropológico do Brasil mostra-se como um grande desafio para os pesquisadores. Vianna (1995) coloca que, no Brasil,
O antigo mistura-se ao novo. As épocas históricas emaranhamse umas nas outras. […] Seria necessário, em lugar de conceitos
rígidos, descobrir noções líquidas, capazes de descrever
fenômenos de fusão, de ebulição, de interpretação, noções que
se modelariam conforme uma realidade viva, em perpétua
transformação. (BASTIDE, 1979, apud VIANNA, 1995: 158).
Talvez apenas com esses conceitos líquidos entenda-se concretamente
as nuances da “identidade nacional brasileira”, que mais parece um grande mosaico formado por peças advindas de diversos lugares do mundo.
A samba e a cerveja: os objetos do estudo
Nos próximos tópicos, analisaremos a história da cerveja e do samba,
em busca dos elementos que contribuíram para o seu atual estado como
símbolos nacionais. Será esclarecido, conforme o texto, a relação que ambos cultivaram com os dois grandes símbolos da brasilidade: o futebol e
o carnaval.
223
No tópico seguinte, a título de esclarecimento, será abordada a história
da cerveja no Brasil, contudo, antes de descrever a presença da bebida
no país, analisar-se-á a presença das bebidas alcoólicas no Brasil, sendo
necessário citar o vinho e a cachaça.
Cerveja
A origem da cerveja remonta às grandes civilizações euro-asiáticas e parece estar ligada a expansão de cereais como centeio e cevada, quando
torna-se popular principalmente na Germânia. Já durante o século XVI,
pode-se observar áreas de principal consumo do vinho e da cerveja. Enquanto o primeiro impera no Mediterrâneo, a cerveja “será, durante muito tempo, o símbolo da cultura germânica, e os pagãos usam-na em seus
rituais para marcar sua oposição à sacralidade cristã do vinho” (MONATANARI, 1998 apud SOUZA, 2004: 57).5
No Brasil, no entanto, nunca houve uma real divisão de localidades onde
predominasse determinado tipo de bebida. As mais consumidas em território brasileiro durante a colonização foram o vinho e a cachaça. Esta
é considerada a primeira bebida largamente consumida pelo brasileiro,
principalmente os das classes inferiores, e sua importância foi tamanha
que tornou-se moeda de troca no tráfico negreiro (SOUZA, op. cit.: passim).
O papel que a cachaça exerceu para as classes mais baixas, o vinho exerceu para a mais abastada. Sendo uma bebida social, seu consumo reservava-se às festividades e raramente se dava de modo individual, como
ocorria com a cachaça; o apreciador do vinho sempre estava na presença
de mais alguns companheiros que também desfrutavam da bebida. O vinho é, portanto, a primeira bebida socialmente aceita no Brasil, e mesmo
o alcoolismo sendo visto com maus olhos naquela época, o vinho não
5
É importante salientar a forte ligação das bebidas alcoólicas com a religiosidade, sendo aquela há muito tempo objeto de cultos e celebrações. O próprio vinho era objeto de culto do deus
Dioniso na Grécia Antiga. Embora tenham atualmente perdido seu caráter religioso, as bebidas continuam bastante presentes em festividades populares.
224
sofria tantas sanções políticas quanto a cachaça, que por diversas vezes
acabou sendo produzida em alambiques clandestinos por ter sua produção proibida (Ibid.: 62).
A cerveja, no entanto, só aparece no território brasileiro em 1808, sendo trazida pela família real portuguesa6. Coutinho acrescenta que até
1814, devido a acordos econômicos, a única cerveja consumida no Brasil
é de origem inglesa. Durante esse período, a bebida já era fabricada no
país, mas em pequena escala, apenas para consumo pessoal de alguns
imigrantes. Apenas a partir de 1850, aproximadamente, os imigrantes
passam a produzir cerveja para venda em comércio local. Nessa mesma
época, a produção de cerveja começa a ser veiculada em jornais (COUTINHO).
Em 1834 surge a primeira cervejaria brasileira, localizada no Rio de Janeiro e, em 1842, a primeira fábrica de cerveja brasileira (COUTINHO). A
partir daí, até aproximadamente 1880, o número de cervejarias cresceu
freneticamente, sendo este o principal fator, para Coutinho, que “levou
a cerveja a se tornar a bebida mais popular entre os brasileiros” (Ibid.).
Curiosamente, a cerveja expandiu-se principalmente entre as ruas cariocas, mesmo lugar que viu o desenvolvimento do samba. É provável, desse modo, que samba e cerveja tenham evoluído juntos, visto que o samba
desenvolveu-se inicialmente em festas realizadas pelos negros cariocas,
e, como dito anteriormente, as bebidas alcoólicas sempre estiveram presentes em festas – a cerveja não seria exceção.
Souza (2004: 63) aponta que a cerveja só se torna popular em São Paulo
através das cervejas finas alemãs. Mais tarde, devido a influências francesas, a cerveja perde sua popularidade na capital paulista para o gin e
o whisky.
6
Outros autores afirmam que a introdução da cerveja no Brasil deu-se no século XVII através
dos invasores holandeses. Estes, porém, quando foram expulsos, levaram a cerveja. Esta só
retorna à história brasileira em fins do século XVIII e início do século XIX. Cf. SANTOS, Sergio
de Paula. 2004. Os primórdios da cerveja no Brasil. - 2. ed. - Cotia: Ateliê Editorial.
225
Até 1882, as cervejas eram produzidas sem marca, tornando a tarefa de
diferenciar uma fábrica da outra quase impossível. Diante desse problema, Louis Bucher e Joaquim Salles associam-se criando a primeira marca de cerveja brasileira: a “Antarctica”.
No entanto, esta marca não ficaria por muito tempo sozinha no
mercado. Em 1888, um imigrante suíço de nome Joseph Villiger,
acostumado ao sabor das cervejas europeias e inconformado com
a má qualidade das cervejas fabricadas no Brasil, resolveu abrir o
seu próprio negócio, começando a fazer cerveja em casa. Deste
modo, a 6 de setembro desse ano, é registrada a “Manufatura
de Cerveja Brahma Villiger & Companhia” […], sendo então
comercialmente lançada a Cerveja Brahma. (HISTÓRIA...)7.
Já na primeira década do século XX, quase não havia mais importação
de cerveja, sendo o mercado local totalmente abastecido pelas fábricas
nacionais que cresciam vertiginosamente. Dessas fábricas, a Brahma foi
a que mais cresceu, registrando quase doze novas marcas em menos de
uma década.8 Segundo Coutinho, essa expansão deu-se principalmente
pelas fortes campanhas publicitárias e o patrocínio dado a bares, botecos e artistas. Ary Barroso, por exemplo, compôs uma marcha para a
Brahma intitulada Chopp em garrafa, em homenagem ao recente lançamento da empresa, a Brahma chopp9. A marchinha fez tanto sucesso, que a Brahma chopp foi largamente consumida no carnaval de 1934.
Através da publicidade, portanto, a Brahma alcançou o lugar de cerveja
mais consumida no Brasil em 1934 e principal marca de cerveja em 1937
(COUTINHO).
7
Citação encontrada na primeira parte do documento.
8
Para conseguir maiores fatias do mercado, era comum nessa época – assim como ainda é
hoje – as empresas comprarem empresas menores ou lançarem novas marcas para atender a
um público ainda não satisfeito.
9
Produto lançado em 1934.
226
Nas décadas seguintes, a Brahma continuou investindo em propaganda
massiva e novas tecnologias. Outras versões do produto foram lançadas,
como a Malt 90, em 1984, e a Chopp Brahma Black, em 2006.
Antarctica e Brahma disputaram por muito tempo a preferência do consumidor brasileiro, até que, em 1999, as empresas fundiram-se na Companhia de Bebidas da América (AMBEV). Ainda assim, em notícia publicada em 201210, a Brahma figura como segunda cerveja mais consumida
no Brasil – atrás apenas da Skol – e nona cerveja mais consumida no
mundo. Por ser a cerveja internacional da Ambev, está também presente
em mais de 15 países.
Samba
Falar sobre a origem do samba é um assunto complexo; não se sabe ao
certo onde e quando o ritmo nasceu, no entanto, os pesquisadores são
unânimes quanto a influência africana e europeia no ritmo e a sua ligação inicial com os morros.
O samba, apesar de possuir estruturas musicais europeias desenvolveu-se plenamente, tal como o conhecemos hoje, através dos símbolos da
cultura negra (DINIZ, 2010: 15). Esses elementos são tão fortes que durante o período pós-abolição, o samba também acaba sofrendo preconceito.
Desse modo, Vianna (1995) destaca dois períodos da história do samba:
“Num primeiro momento, o samba teria sido reprimido e enclausurado
nos morros cariocas e nas ‘camadas populares’. Num segundo momento,
os sambistas, conquistando o carnaval e as rádios, passariam a simbolizar a cultura brasileira em sua totalidade […].” (VIANNA, 1995: 28-9).
Segundo André Diniz (2010), a primeira menção ao termo “samba” foi feita pelo jornal satírico pernambucano O carapuceiro em 1838, mas nessa
época, o termo era sinônimo de “batuque” e simbolizava qualquer festejo
10 Notícia disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1159839-skol-e-brahma-estao-entre-as-dez-cervejas-mais-vendidas-do-mundo.shtml >. Consulta: 08/2013.
227
que reunisse dança, canto e instrumentação negra. No fim do século XIX,
no Rio de Janeiro, o termo ainda estava ligado ao universo negro e à
ruralidade. No século XX, no entanto, o samba distancia-se de seu significado folclórico e passa a ser comparado a ritmos como o maxixe.
A música popular urbana brasileira, por seu turno, era dominada no fim
do século XIX pelo lundu (gênero africano), pela moda e pelo choro. O
samba só começa a exercer maior influência sobre a cultura brasileira no
início do século seguinte.
Em fins do século XIX, bebendo de fontes como o lundu, o choro e o maxixe, o samba nasce no Rio de Janeiro, reduto de grande comunidade
afrodescendente. Nasce em meio a festas e bebedeiras, nasce na Festa
da Penha, nas sessões de capoeira, nas batucadas da Praça Onze. E toma
forma de fato em 1916 com Pelo telefone, de Donga, considerado o primeiro samba registrado.
O samba carnavalesco, nome que Donga e Mauro [de Almeida] deram
ao gênero de sua composição, entrou para a história como o precursor
do gênero. A partir daí, o termo ganhou intensa popularidade
e, em apenas algumas décadas, passaria a ser identificado como
símbolo da musicalidade brasileira. (DINIZ, op. cit.: 34-5).
Pelo telefone pode não ter sido de fato o primeiro samba composto, mas
deve ser lembrado por tornar o termo “samba” popular na cultura brasileira.
Um dos primeiros fatores que alavancaram o samba como ritmo nacional, segundo Hermano Vianna (1995), foi a ação dos poetas modernistas,
principalmente na pessoa de Mário de Andrade. Na busca pela “unidade
pátria” e pelo “brasileiro de fato”, acabaram encontrando no samba a expressão da brasilidade musical. Assim, “O samba do morro, recém-inventado, passa a ser considerado o ritmo mais puro, não contaminado por
influências alienígenas, e que precisa ser preservado […] com o intuito
de se preservar também a ‘alma’ brasileira.” (VIANNA, op. cit.: 152-3). Para
228
torná-lo símbolo nacional, no entanto, seria necessário inventar um “mito
do samba”, algo que fizesse com que o povo acreditasse que ele sempre
esteve ali, pronto para ser ouvido. O mito formulado: o samba era inicialmente reprimido nos morros, mas hoje todo brasileiro tem samba no pé.
(GUIMARÃES, 1978 apud VIANNA, 1995: 153).
Abre-se aqui um parêntese para definir o “samba do morro”.
Surgido entre as ruas do bairro carioca Estácio de Sá, esse samba é marcado pelo batuque e é característico do carnaval carioca – tanto que também é conhecido como “samba carnavalesco”. Em 1929, com o lançamento do disco Na pavuna pelo grupo Bando dos Tangarás, esse gênero
marcado pela “batucada da escola de samba” (ALMIRANTE, 1977 apud
VIANNA, op. cit.: 121) passa a ser difundido pelas ruas cariocas. Vianna
fala mais sobre o samba de morro:
[…] não demorou muito tempo, desde o nascimento do “samba
de morro” (que não nasceu exatamente no morro, mas sim em
algum lugar entre os morros e as ruas da Cidade Nova), para
encontrá-lo utilizado pelos músicos brancos da classe média.
A turma de Noel Rosa participou inclusive do processo de
definição desse samba “autêntico”. (VIANNA, op. cit.: 121).
O “samba do morro”, dessa forma, distancia-se das influências orquestrais do maxixe e da cadência do lundu, adotando linhas – melódicas,
harmônicas e rítmicas – mais sincopadas e temática voltada para a malandragem. Fecha parêntese.11
O samba ganha mais força na segunda década do século XX com a gravação eletrônica., principalmente a partir de 1922, com o advento do rádio
no Brasil12. A evolução da técnica acarretou uma mudança da recepção
11 A discussão sobre a importância do carnaval e do samba carnavalesco na construção do
samba como símbolo da brasilidade será retomada mais adiante.
12 Embora as transmissões radiofônicas tenham iniciado em 1922, apenas a partir da Revolução de 30, o rádio torna-se elemento de integração nacional. A programação an-
229
do público: os antes conhecidos grupos instrumentais (principalmente
os de choro) deram lugar a música cantada, e junto dela veio o samba.
Francisco Alves, por exemplo, conhecido como “O Rei da Voz”, foi responsável por unir o morro (a música mais lúdica, ainda marcada por traços folclóricos) e o asfalto (a música profissional, comercializada). Com
repertório vasto, gravou sambas da Estácio como “Amor de malandro”,
músicas para teatro de revista e foi pioneiro no chamado samba-exaltação ao gravar “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso.
Outro cantor cuja obra popularizou o samba foi Mário Reis. Este jovem
elegante e intelectualizado trabalhou para retirar o caráter folclórico do
samba, revolucionando a maneira de interpretá-lo, levando-o aos salões
da alta sociedade carioca. André Diniz (2010) escreve sobre Mário Reis:
“Sua voz macia, pronunciando as palavras com a ginga do samba e do
português carioca, ecoava as características estilísticas de seus predecessores brasileiros e também do jazz. Com uma entonação coloquial […]
Mário jogava para escanteio as interpretações à italiana, comuns em sua
época.” (DINIZ, 2010: 45-6).
É importante ressaltar também que ainda em meados da década de 1920,
o samba perdia destaque, principalmente para a música nordestina, caracterizada por fortes aspectos folclóricos. Para resolver esta situação,
Francisco Alves convidou Mário Reis para cantarem alguns sambas da
Estácio, como “O que será de mim” e “Arrependido”. Tiro certeiro. A dupla fez um estrondoso sucesso e, em consequência disso, além do samba
reaver seu lugar nas rádios, virou modismo cantar em dupla ou trio.
Na década de 1930, Getúlio Vargas chega ao poder e, durante o seu governo adota uma política de valorização do brasileiro (tanto o cidadão
tes elitista e de cunho educacional ganha na Era Vargas um caráter de entretenimento. E essa nova faceta da rádio brasileira tem como grande destaque Ademar Casé.
“O pioneiro nesse estilo [programas de grande audiência] foi o Programa do Casé, colocado no ar pela primeira vez em 1932. A Rádio Nacional adotou a programação de música popular do Programa do Casé, tornando-se a emissora mais influente nos anos Getúlio Vargas.”
(VIANNA, 1995: 109, grifo do autor).
230
como sua cultura). Dessa forma, quem mais saiu ganhando foi o samba. Através de incentivos fiscais, as festas populares foram beneficiadas,
principalmente o carnaval. Aqui “O samba passa a ser o principal ritmo
nacional [...]” (Ibid.: 78).
Vianna (1995) também coloca o carnaval como um dos principais fatores de difusão do samba. Segundo ele, a importância do samba cresceu
concomitantemente com o carnaval; através do festejo, o samba passou
a ser consumido por grande parte da população brasileira e tornou-se a
“música brasileira por excelência”. (VIANNA, 1995: 30).
O carnaval, festa de natureza europeia, nem sempre, no entanto, foi dominado pelo samba. Os primeiros carnavais cariocas eram espaço de
grande diversidade musical, onde se podia ouvir ópera, valsa, chula e
mazurca (DINIZ, 2010: 93). O primeiro samba a fazer sucesso no carnaval
foi “Pelo telefone” de Donga, já comentado anteriormente. A partir daí,
aos poucos, o samba ia construindo seu império.
Somente na segunda década do século XX, surgem as escolas de samba – resultado da síntese de blocos, ranchos, cordões e sociedades carnavalescas. A primeira delas, a “Deixa falar”, do bairro Estácio de Sá, é
responsável pela criação do “samba carnavalesco”, o “samba do morro”
já comentado. Ismael Silva, Bide e Marçal foram os principais nomes no
desenvolvimento desse gênero dentro da Estácio segundo Diniz (Ibid.).
Com o desenvolvimento das escolas de samba, o governo viu ali uma
ponte para uma comunicação efetiva com o povo, passou então a financiá-las.
Além do carnaval, o samba também foi bastante divulgado nos cinemas
na década de 1930, principalmente com os musicais brasileiros Coisas
nossas (1931, música de Noel Rosa) e Banana da terra (1938, músicas de
Ary Barroso e Dorival Caymmi).
231
Chegamos enfim na década de 1940, onde nossa jornada musical termina. Nesse período o samba já é considerado a música tradicionalmente
brasileira, e mesmo com a Segunda Guerra Mundial – que reduziu drasticamente os investimentos na indústria fonográfica -, todo o Brasil passa
“a reconhecer no Rio de Janeiro os emblemas de sua identidade de povo
‘sambista’.” (VIANNA, 1995: 26).
Nas décadas seguintes, o samba continuou a evoluir e ramificou-se com
o tempo. Virou samba-jazz, samba-rock, samba-choro, samba-enredo,
samba de exaltação...
Conclusão
Discriminar fatores que tenham levado um objeto ou outro a se tornar
elementos da brasilidade é uma tarefa complexa; deve-se levar em consideração inúmeros outros fatores que não puderam ser postos aqui, tanto pela limitação do meio – um artigo científico deve ser objetivo, não
podendo se estender em longas discussões e análises – quanto por não
ser o propósito deste trabalho, que se dedica a um levantamento inicial
de dados. Mas ainda assim, alguns fatores são claramente responsáveis
pela “simbolização” do samba e da cerveja, como o carnaval, que esteve
presente no desenvolvimento de ambos objetos.
Acerca do samba, os principais elementos que parecem tê-lo levado ao
hall dos símbolos nacionais foram as rádios, o carnaval e Getúlio Vargas.
Mesmo hoje, quando o samba não possui todo o seu sucesso da década
de 1930, continua influenciando de algum modo as músicas atuais. André Diniz (2010: 15) chega a dizer que “[...] o samba foi o recheio, por vezes
inspiração, de quase todos os movimentos musicais desta terra carnavalesca”.
Hermano Vianna (1995) comenta, por fim, sobre o samba como música
nacional:
232
O samba não se transformou em música nacional através dos
esforços de um grupo social ou étnico específico, atuando
dentro de um território específico (o “morro”). Muitos grupos e
indivíduos […] participaram, com maior ou menor tenacidade, de
sua “fixação” como gênero musical e de sua nacionalização. Os
dois processos não podem ser separados. Nunca existiu um
samba pronto, “autêntico”, depois transformado em música
nacional. O samba, como estilo musical, vai sendo criado
concomitantemente à sua nacionalização. (VIANNA, 1995: 151).
Em relação a cerveja, de acordo com as colocações de Carlos Alberto
Coutinho, as duas marcas que exerceram a principal influência para a
fixação desta como símbolo nacional foram a “Antarctica” e a “Brahma”,
tendo esta última uma maior importância devido a seus altos investimentos em propaganda e tecnologia durante a década de 1930. Sendo
assim, por meio da propaganda, a cerveja fez-se cada vez mais presente
nos eventos coletivos brasileiros, entre eles o carnaval.
Ainda hoje, os investimentos da indústria de bebidas são grandes em
relação a comunicação, sempre relacionando elementos como “o clima
tropical, o futebol, o carnaval e o ‘jeitinho brasileiro de ser’” (CELLA, 2010:
125) às bebidas.
A seguinte citação de Tangriane Cella (2010) ilustra bem como a relação
propaganda – cerveja constrói o símbolo nacional “cerveja”: “Tais imagens que fazem parte do imaginário nacional [futebol, carnaval, praia],
nas peças publicitárias […] são transferidas ou apropriadas pelo produto
cerveja, de modo que o produto cerveja toma a cena e passa, também, a
ser constitutivo da identidade nacional.” (CELLA, loc. cit.).
Referências
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Propagandas de cerveja e o imaginário
nacional. Interfaces, [s.l.], v. 1, n. 1. Disponível
em: <http://revistas.unicentro.br/index.php/
revista_interfaces>. 114-125. Consulta: 05/2013.
COUTINHO, Carlos Alberto. [s.d.] A história
da cerveja no Brasil. Disponível
em: <http://www.cervisiafilia.com.br/
cervbras2.html>. Consulta: 05/2013.
DINIZ, André. 2010. Almanaque do samba: a
história do samba, o que ouvir, o que ler,
onde curtir. 4. ed. Rio de Janeiro: Zahar.
233
HISTÓRIA da cerveja – Brasil. Disponível
em: <http://cervejasdomundo.com/
brasil.htm>. Consulta: 05/2013.
NAPOLITANO, Marcos; WASSERMAN, Maria Clara.
2000. Desde que o samba é samba: a questão
das origens no debate historiográfico sobre a
música popular brasileira. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 20, n. 39: 167-189.
SCHNEIDER, Jens. 2004. Discursos simbólicos
e símbolos discursivos: considerações
sobre a etnografia da identidade
nacional. Mana: Estudos de Antropologia
Social, Rio de Janeiro, v. 10: 97-129.
SOUZA, Ricardo Luiz de. 2004. Cachaça, vinho,
cerveja: da Colônia ao século XX. Estudos
históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 33: 56-75.
VIANNA, Hermano. 1995. O mistério do samba.
3. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: UFRJ.
234
Festa do Divino Espírito
Santo: música e devoção
no sertão baiano
Thiago Marcelo Mendes
Instituto de Estudos Brasileiros, IEB-USP
[email protected]
Resumo
Nossa proposta aborda a Festa do Divino Espírito Santo em Brotas de Macaúbas, sertão
da Bahia. Ela dura 50 dias, intervalo entre o domingo de Páscoa e o de Pentecostes.
Percorre inúmeras comunidades do município, movimentando-se em 2370 km2
entre caatingas e cerrados. O principal símbolo da festa é a Bandeira do Divino.
Por sua vez, os tocadores são os responsáveis pelas cantorias da Bandeira, sendo elas religiosas
(Ladainha do Divino) e festivas (forró e ritmos regionais). Essas manifestações musicais
acessam a memória afetiva do grupo, seja através da devoção ou através da diversão.
Neste sentido, devoção e festa constituem um modo e um ethos de vida peculiares da
população das comunidades brotenses. O ritual se complementa, na medida em que os
moradores oferecem alimentos e bebidas aos acompanhantes da bandeira e tocadores,
celebrando uma fartura gastronômica, bem como a renovação dos laços sociais e afetivos.
Assim, a Bandeira do Divino reúne festa e devoção num mesmo espaço de
bens e trocas simbólicas, onde a música desempenha papel fundamental,
sendo o fio condutor destas manifestações e performances.
Palavras-chave
festa, música, devoção, ritual, comunidades
235
1. Introdução
A escolha da Festa do Divino como objeto de estudo da pesquisa em andamento1, resulta de um trabalho etnográfico de coordenação de campo
para mapeamento e registro das referências socioculturais e naturais do
município de Brotas de Macaúbas2, através do Projeto Diagnóstico do
Patrimônio, Cultural, Histórico, Arqueológico e Natural do Município de
Brotas de Macaúbas, realizado em 2011. O projeto foi desenvolvido com
a orientação e supervisão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), 7ª superintendência de Salvador, e apoio da Desenvix – Parque Eólico da Bahia – Seabra/Macaúbas, perfazendo 8 meses de
pesquisas e coletas de campo.
A pesquisa de campo realizada em 2011 detectou, de maneira preliminar,
que a Festa do Divino era considerada a maior do município, dada a
complexidade de agentes, dimensões territoriais envolvidas e seu notável poder de mobilização social.
Trata-se de uma festa complexa, em que há um longo intervalo de tempo
dedicado à preparação dos festejos, onde são definidos, entre outras coisas, o roteiro de visitações da Bandeira, através da escolha das comunidades, o rodízio dos locais, a divisão do trabalho dos tocadores e escolha
das casas de pouso, quando necessário. Ainda, os 50 dias de visitações e
andanças da Bandeira chamam a atenção pela sua duração, pela presença musical intensa e pela peregrinação constante e diária.
1
Atualmente desenvolvida no PPG em Culturas e Identidades Brasileiras do Instituto de Estudos Brasileiros, IEB, Universidade de São Paulo, sob orientação do Prof. Dr. Jaime Tadeu Oliva.
2
O município de Brotas de Macaúbas possui mais de 100 comunidades distribuídas pelos 2.372
quilômetros quadrados do município, sendo que 70% dos moradores residem na zona rural,
segundo censo do IBGE de 2010. Estas chamadas ‘comunidades’ apresentam diversas origens
étnicas, religiosas e sociais, bem como diferentes clivagens socioeconômicas, indicadores de
escolaridade, distribuição por sexo, idade, representação e peso político/eleitores, etc., configurando territórios com singularidades e identidades específicas, sendo espaços estratégicos
com interesses diversos.
236
A crença e a diversão estão agregadas à festa do Divino, sendo apoiadas
pela música e incentivadas pela oferta abundante de comida e bebida,
sobretudo a cachaça, largamente produzida nos engenhos artesanais e
familiares da região. Dentre os alimentos e bebidas ofertados estão o chá,
café, mandioca cozida, feijão, carne pilada com farinha de mandioca, frutas, bolos, água, suco, cachaça, vinho, refrigerante.
Foto 1. Os Tocadores:, o elo mais forte entre a comunidade, a
religiosidade e a conformação de sociabilidades. Arquivo Pessoal
Existe um peso considerável no que tange o papel das comunidades na
realização dos festejos e o papel da Bandeira em reforçar a existência
social delas, através da sua visitação. Para ilustrar este raciocínio, Claval
(2001) salienta que o processo de construção de identidade está ligado à
organização territorial, onde
O espaço é uma categoria vazia, que não contem qualquer
referencia à sensibilidade, à percepção, ao sentimento. Na vida real
atribuem-se muitos sentidos aos lugares e às pequenas e grandes
pátrias. A construção de identidades está intimamente ligada à
organização territorial e à maneira como é percebida por quem é
responsável por essa organização ou a experimenta. (2001:66)
237
2. Estrutura da Festa
O Divino mobiliza um grande número de pessoas em torno da Bandeira, tida pelos devotos como seu principal símbolo. O processo de apropriação deste símbolo, individualmente e coletivamente, através das visitações da Bandeira – levada pelos tocadores – de casa em casa e de
comunidade em comunidade, ajuda na construção de certa legitimidade,
unidade social e identidade aos moradores e devotos.
Como afirmou o Imperador do ano de 2011, Edvando Oliveira3, a “Festa do Divino é uma espécie de DNA cultural de Brotas, um movimento
que consegue costurar e ligar esta grande colcha de retalhos culturais
e sociais”, referindo-se às comunidades que integram territorialmente o
município de Brotas de Macaúbas; mas não somente, pois o tráfego também acontece em comunidades limítrofes com e de outros municípios
vizinhos, como Morpará, Ipupiara, Oliveira dos Brejinhos, Seabra e Barra
do Mendes.
Durante os 50 dias da Festa, algumas comunidades chamaram atenção
por apresentarem alguns elementos bastante peculiares, diferenciando-as das demais.
As comunidades do Cocal, por exemplo, situadas em uma região de difícil acesso (serras e raras estradas), eram as únicas comunidades que ofereciam aos tocadores do Divino, núcleo principal dos festejos, as chamadas sobras, que são donativos em alimentos, bebidas, animais etc. Este
ato simbólico de oferecimento das sobras era tido como um agradecimento ao santo, pelas graças recebidas; por consequência, era ofertada
aos responsáveis pela Bandeira e representantes do santo, os tocadores.
3
Edvando Oliveira Santos foi padre da Paróquia de Brotas por 11 anos. Atualmente está licenciado das atividades de culto pela Diocese da Barra do Rio Grande, por possuir um filho. No
ano de 2010 foi indicado (sorteado) para ser o Imperador do Divino de 2011, sendo um dos
principais personagens e organizadores da festa de 2011.
238
Esta espécie de retribuição de presentes ou dádivas, foram observadas
por Mauss (2003) em seu Ensaio Sobre a Dádiva, Para o autor, “O mais
importante, entre esses mecanismos espirituais, é evidente o que obriga a
retribuir o presente recebido”(2003:193)
Os tocadores, além
de responsáveis pela cantoria da Ladainha das Esmolas
e ritmos dançantes e festivos, também são, junto com a Bandeira, o símbolo mais elementar que se sobressai durante as visitações pelas localidades do município.
Outra peculiaridade das comunidades da região do Cocal é o modo
como esses moradores se dirigiam aos tocadores, conferindo-lhes a designação própria de bandeiristas. É também nesta região onde se situam
quase todos os grupos de reisados4 do município, que tradicionalmente
recebem as sobras quando realizam seus festejos em janeiro.
Podemos observar, pela descrição, uma clara relação entre som, imagem
e movimento. Pinto (2001:8) destaca o papel da música na sociedade,
mais precisamente a importância das etnografias de performances com
influência musical. Para o autor,
A etnografia da performance musical marca a passagem de uma
análise das estruturas sonoras à análise do processo musical
e suas especificidades. Abre mão do enfoque sobre a música
enquanto “produto” para adotar um conceito mais abrangente, em
que a música atua como “processo” de significado social, capaz
de gerar estruturas que vão além dos seus aspectos meramente
sonoros. Assim o estudo etnomusicológico da performance trata
de todas as atividades musicais, seus ensejos e suas funções
4
Os grupos de reisados comemoram o dia de Santo Reis, em 6 de janeiro. Eles costumam sair
de casa em casa e de comunidade em comunidade, cada um na sua microrregião, durante o
período do natal e do dia de Reis. Nestas visitações anunciam a chegada do Deus Menino e
dos Reis Magos através das cantorias, os chamados reisados. Também angariam donativos,
esmolas e as sobras. Na região do Cocal concentra-se quase que a totalidade dos grupos de
reisados do município, que são herdados hereditariamente, onde muitos já existem há algumas gerações.
239
dentro de uma comunidade ou grupo social maior, adotando uma
perspectiva processual do acontecimento cultural. (Pinto, 2001:8)
São muitos exemplos que permitem indicar a relação que cada comunidade tem com a Bandeira, único evento que circula entre todas elas,
caracterizando-a, portanto, como uma festa móvel. Estruturalmente, a
visita da Bandeira possui um momento de devoção intenso, quando se
chega à casa dos moradores anfitriões e se canta a Ladainha das Esmolas5, que invariavelmente apresenta o mesmo texto e melodia; e um outro momento de descontração festiva, onde todos comem, bebem, tocam
e dançam, numa confraternização e interação social constante. Também
durante os festejos, grupos sociais distintos se encontram e se visitam.
O papel desempenhado pelo corpo no Divino de Brotas tem diferentes
aspectos. Sua relação tende a ser mais afetiva e atemporal. Observamos
a reação corporal em alguns momentos recorrentes da festa: na devoção
gestual, quase sempre de joelhos ou curvados, demonstrando a emoção
em receber a Bandeira em sua casa; no ouvir e cantar a Ladainha, um
misto de melancolia e euforia aliados ao choro; no ato de receber as bênçãos, ter o papel de anfitrião da festa reconhecido pelo grupo; na oferta
e aceitação de alimentos e bebidas; nos momentos para risadas, descontrações e falas descomedidas, e nas danças variadas, onde o forró se
sobressai, destacando o divertimento das mulheres, dançando muitas
vezes entre elas mesmas.
Acreditamos que essas visitações e cantorias, são espaços que permitem transgressões sociais que cotidianamente são pouco toleradas pela
moral da sociedade em questão, como as de gênero, classe social, etnia,
escolaridade, ocupação econômica, e assim por diante. Sobre o papel
5
A Ladainha das Esmolas é cantada em todas as casas visitadas , nas capelas e igrejas; exceto
alguns raros casos, como a morte de algum ente da família do anfitrião. Ela é cantada pelos
tocadores do Divino e relata em sua narrativa mítica a origem e feitos do Divino Espírito Santo. O tom de afinação é geralmente dado pela sanfona e as vozes se revezam entre 1ª. e 2ª.
240
do corpo e das danças que decorrem das performances musicais, Pinto
(2001) salienta que
Um aspecto essencial da corporalidade e que, em grande parte,
depende da música, é a dança. No ritual a relação entre música e
dança revela muito do significado e da importância dos preceitos
religiosos e do mito. Aqui também o corpo é suporte de símbolos, o
corpo, no entanto, que age e que se movimenta. (Pinto, 2001:12)
A Ladainha das Esmolas e o descontraído forró são elementos estruturais do Divino ao lado da presença da Bandeira, principal símbolo material de devoção.
A Bandeira na zona rural, no caso, as comunidades que retratamos, se
assemelha muito ao caráter de folia proposto por Brandão (1977), onde os
aspectos coletivos, informais e festivos se sobressaem. Durante a passagem da Bandeira, grande parte dos moradores das comunidades acompanham as visitações de casa em casa, desde o início das cantorias até
o encerramento na capela ou última casa do dia. Atividades cotidianas,
como plantar, garimpar ou qualquer tipo de ocupação, são suspensas
temporariamente de forma voluntária, pelo fato de todos quererem comemorar a festa da passagem da Bandeira e se visitarem.
Este movimento proporcionado pela Bandeira, acaba sendo um convite
à celebração da coletividade e uma reafirmação de valores sociais dos
grupos envolvidos. Pelo que observamos, a comunidade praticamente
pára para saudar, cantar e festejar a Bandeira, durante o tempo em que
ela estiver na comunidade. Este tempo depende, dentre outros fatores, do
seu tamanho e da distância em relação à outra comunidade, podendo ser
de 1 a 2 dias a parada comunitária.
Este encadeamento de ações acaba definindo e compondo o processo ritual, conforme Turner (1969), constituído pelo espaço, tempo, circulação,
trocas de bens e serviços simbólicos, grupos precatórios e habitantes do
território. Neste caso, o palco é móvel, pois, dependendo da distância, a
241
bandeira visita ao menos uma comunidade por dia, numa espécie de circuito comunitário, sendo que devoção e festa ocupam o mesmo espaço
de bens e trocas simbólicas: as comunidades e as casas dos moradores.
Para Geertz (1978), no ritual ocorre uma fusão do mundo vivido com o
mundo imaginado, mediado por um conjunto de formas simbólicas, onde
...os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um
povo – o tom, o caráter e a qualidade de sua vida, seu estilo, e
disposições morais estéticos – e sua visão de mundo – o quadro
que fazem do que são as coisas na sua simples atualidade,
suas ideias abrangentes sobre ordem. (1978:104,105)
Sendo assim, ocorre uma fusão entre o ethos, sendo as características
emotivas e subjetivas de um povo, com a visão de mundo dos grupos
humanos. É através do ritual, ou melhor, na imersão do corpo no ritual
que passamos a tornar-nos, e, por fim, “ser”. Acreditamos que algo semelhante ocorre com a festa do Divino nas comunidades brotenses.
São nesses encontros e visitações que constatamos, através dos rituais
e dos comportamentos simbólicos mediados pelos símbolos (Bandeira,
Ladainha das Esmolas), o que eles representam para os indivíduos e coletividades. Verificamos, até então, uma espécie de simbiose entre mundo
festivo e mundo cotidiano, numa relação complementar mútua, compondo uma característica sui generis das festas brasileiras, de acordo com
Cavalcanti (2013).
Para Damatta (1997), é por meio das dramatizações das ações, que os
indivíduos adquirem consciência do mundo e das relações sociais, e passam a vê-las como tendo um sentido, como sendo sociais. É possivelmente através da dramatização que a Bandeira e a música se destacam
e se complementam, onde o grupo individualiza o fenômeno social do
Divino, dando-lhe identidades e singularidades específicas.
242
Foto 2 e 3. Chegada e cortejo da Bandeira. Arquivo Pessoal
Por outro lado, as perspectivas do autor (Damatta: 1997) assinalam que os
rituais populares são ritos que objetivam o encontro, a troca, a renovação
dos laços sociais. Para que isso ocorra, ��������������������������������
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necessário que as posições sociais ocupadas no cotidiano sejam neutralizadas, amortecidas ou invertidas, estabelecendo uma dialética entre o cotidiano e o extraordinário,
tendo no ritual coletivo, uma maneira da sociedade ter a opção de uma
visão alternativa de si mesma, sem as amarras seculares que compactam
as relações sociais, as formações coletivas e as suas instituições.
Complementando a visão de Damatta, Cavalcanti afirma que as festas
243
Atraem, encantam e integram participantes e admiradores.
Envolvem ricos e pobres; brancos, mulatos(sic), caboclos, negros;
distintas origens étnicas; sagrado e profano. Não resolvem
conflitos e desigualdades sociais, mas expressam uma face das
coletividades que se superpõe a essas diferenças (2013:2).
Geertz (2001) coloca sua ênfase e interpretação na observação do sentido das ações performáticas. Essa é sua preocupação central ao defender
a perspectiva antropológica interpretativa. O autor foca sua análise e interesse na compreensão do significado das ações simbólicas dos atores
sociais, uma vez que ele define cultura como teia de significados tecida
pelo próprio homem (hermenêutica).
Fotos 4, 5, 6 e 7. Forró:dança e descontração; alimentação
coletiva e benzimento da Bandeira. Arquivo Pessoal
244
Estas ações performáticas verificadas nos festejos comunitários durante
as cantorias da bandeira do Divino estão ligadas aos elementos do processo ritual que enumeramos anteriormente. Sendo assim, os tocadores
desempenham papel fundamental tanto no que se refere à devoção bem
como os momentos de diversão, tendo na música o estímulo e a comunicação. Esta comunicação, que também é simbólica, determina a construção do “eu” e do “outro”, formando identidades individuais e coletivas.
Sobre o papel da comunicação, Claval salienta que
Sublinhando o papel da comunicação e diversidade de suas formas,
a abordagem cultural coloca em evidencia o peso das interações
na configuração das atitudes, habilidades e conhecimentos, assim
como na construção dos valores. Revela a diversidade da ação
humana e a multiplicidade das combinações regionais pelas
quais ela é responsável na superfície da Terra. (2001:80)
No caso específico, percebe-se que cada comunidade percorrida pela
Bandeira agencia modalidades distintas de relação; o mesmo objeto proporciona significados diversos conforme a comunidade com que interage, o que demonstra que ele é apropriado a partir de visões de mundo,
temporalidades e espaços sociais específicos.
Este raciocínio converge com os pontos de vista de Claval (2001), onde
as pessoas associam aos mesmos lugares atitudes e sentimentos diferentes, ou seja, não vivem os lugares do mesmo modo, não os percebem da
mesma maneira.
245
Foto 8. Devota do Divino. Arquivo Pessoal
Encontramos assim, nesta grande encenação performática, características e personagens específicos. O ritual (Damatta: 1997) manifesta aquilo
que se deseja perene e eterno, e, por outro lado, é uma área crítica onde
podemos entender as expressões identitárias, os valores e heranças de
uma determinada formação social, assim como a continuidade enquanto
grupo, uma vez que a construção de identidades está ligada à organização territorial, e a diferenciação cultural de uma região para outra está
ligada à capacidade de se comunicar. (Claval: 2001).
Este é um ponto central do Divino em Brotas, uma vez que as formações
sociológicas e antropológicas de dado grupo ou comunidade está em
relação com a ocupação e distribuição territorial realizada de diferentes
formas e com apropriações e percepções diversas.
246
3. Tocadores e Cantadores
A presença dos tocadores e cantadores com seus instrumentos musicais
como a sanfona, pandeiro, zabumba e triângulo, é fundamental para a
realização da cantoria no ritual de passagem da Bandeira pelas casas,
como afirmamos ao longo do texto. Está tão arraigada na ação e na memória dos participantes que é possível afirmar que, sem os músicos, a
Bandeira não sai, e o evento não acontece.
As disposições dos instrumentos e das vozes (1ª. e 2ª.) são sempre as
mesmas, invariavelmente, sendo que a sanfona fica entre o bumbo/caixa
e o pandeiro. O triângulo completa a bateria. O tom da afinação é dado
pela sanfona. Sobre este aspecto, Pinto (2001) nos chama a atenção pela
seguinte característica
A terça neutra nordestina como aspecto peculiar de afinação
é uma característica que não só marca uma “paisagem sonora”
especificamente nordestina, como também é responsável por uma
série de procedimentos que dizem respeito até a própria concepção
de mundo. Um exemplo disso é a convivência pacífica entre
instrumentos como o acordeom, com seus intervalos diatônicos
temperados, e os estilos vocais, como o aboio, ou as bandas de
pífanos, estes últimos regidos pela terça neutra. Esta simultaneidade,
que, aparentemente, não cria atritos intransponíveis, contradizendo
assim tudo o que pregam as teorias musicais do ocidente, denota a
abertura com que estruturas tradicionais da sociedade no Nordeste
abarcam elementos da globalização, sem por isso destruir ou
renegar os conceitos próprios mais genuínos. (Pinto, 2001:23)
São os tocadores quem levam a Bandeira, ligando num movimento único a Bandeira e a cantoria. A existência de músicos e cantores populares
é historicamente uma característica do município e suas influências culturais e sociais são presentes e fazem parte do dia a dia das pessoas e
das localidades.
247
Foto 9. Bandeira e Tocadores: movimento único. Arquivo Pessoal
A grande responsabilidade de interpretação e transmissão da emoção da
Ladainha é dos tocadores. Eles narram a chegada do Divino, quem é ele,
o que faz ali, como se relaciona e se comunica com seus devotos. Tem
certo sabor nostálgico e atemporal. Possui a capacidade de deslocar-se
no tempo e no espaço, acessando a memória e recriando imaginários.
A Ladainha das Esmolas, os Cantadores e Tocadores são o que podemos
classificar como elemento estrutural determinante (Núcleo Duro), força
vital e motriz das “andanças” da Bandeira.
O poder e o lado transcendental do Divino acontecem no momento de
execução da ladainha. A memória coletiva é acessada através da música,
e os sentimentos de pertencimento ancestral mítico se ligam ao religioso
em uma viajem pela memória, parte operante de um imaginário construído coletivamente e partilhado pelos indivíduos e pelo grupo.
Para melhor visualização, segue abaixo o texto da Ladainha das Esmolas
cantada na Festa do Divino de Brotas de Macaúbas
“É chegada em vossa casa
Uma formosa bandeira (bis) 1ª. voz
E nela vem retratada
Uma pomba verdadeira (bis)2ª. voz
248
Divino Espírito Santo
Em vossa morada entrou (bis)
Vem correndo a freguesia
Visitando os morador (bis)
(Trecho cantado apenas quando repete a cantoria na mesma casa)
Oh Deus salve esta Casa Santa (verso cantado nas igrejas)
Onde Deus fez sua morada (bis) 1ª.
Onde mora o cálice bento
E a hóstia consagrada (bis)2ª
(Trecho cantado apenas nas Igrejas ou capelas)
Essa pomba que aqui vem
É de Deus muito amada (bis) 1ª.
São as mesmas três pessoas
Da santíssima Trindade, Santíssima Trindade (bis) 2ª.
Vem pedindo a sua esmola
Que muito carece dela (bis)1ª.
Para serem festejadas
Dentro de sua capela (bis) 2ª.
Divino Espírito Santo
Dono do Sol que nos cobre (bis) 1ª.
Ele é dono do tesouro
Pede esmola como pobre (bis) 2ª.
Ele pede é por pedir
Mas não é porcarecer (bis) 1ª.
Pede para experimentar
Se seu devoto esqueceu (bis)2ª.
Divino Espírito Santo
Divino consolador (bis) 1ª.
249
Consolai as nossas almas
Quando desse mundo for (bis) 2ª.
Quem se benze com a bandeira
Desse Divino Senhor (bis) 1ª.
Benze Deus com sua graça
Dentro do seu resplendor (bis) 2ª.
Quem dá esmola a esse santo
Não repara o que vai dar (bis) 1ª.
Seja dez reais ou vinte
Fica mil em seu lugar (bis) 2ª.
Deus lhe pague a esmola
Deus lhe dê muita saúde (bis) 1ª.
A esmola é caridade
A caridade é virtude (bis) 2ª.
Deus lhe pague a esmola
Se vos derem com grandeza (bis)
Deus permita que por ela
No reino do céus se veja” (bis)
4. Considerações finais
A expressão dos músicos de Brotas se constrói em total relação com o
universo religioso. Embora haja esta relação entre estes personagens e
as festas religiosas, cada qual têm a sua história de vida, que inclui uma
atividade produtiva ligada ��������������������������������������������
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produção agrícola, garimpeira, além da relação com a música em função das relações de parentesco. As festas religiosas são a consequência do desejo de tocar e cantar, mas também, a
causa.
250
Foto 10. Tocadores: personagens essenciais do Divino de Brotas. Arquivo Pessoal
Os músicos, tratados regionalmente como tocadores e cantadores, foram
bem salientados por Mário de Andrade em Vida do tocador (1993). Normalmente, eles cumprem um ciclo de festas religiosas em determinado
conjunto de comunidades (no nosso caso, as festas dos santos padroeiros), geralmente vizinhas àquela onde residem; constituem também
uma referência enquanto detentores de um saber e um fazer específicos,
transmitidos oralmente através do contato com os tocadores e cantadores mais velhos (como o sanfoneiro Noé), geração após geração.
251
Foto 11. Noé: 53 anos de Divino e andanças com a Bandeira. Arquivo Pessoal
Por fim, gostaríamos de assinalar algumas questões pertinentes à nossa
investigação científica. Buscamos explorá-las, em vários momentos do
texto, de modo que leitor pudesse ter uma leitura com detalhes e descrições do evento que abordamos. Entendemos que a descrição e interpretação são necessárias a qualquer análise comparativa, dada a complexidade de agentes e códigos presentes nesta grande festa do Divino de
Brotas de Macaúbas.
5. Referências bibliográficas
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CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de
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cultura popular: uma conversa entre a
252
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12, Fórum de Ciência e Cultura. UFRJ, 2011
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(Orgs. Márcio de Souza e Francisco
Weffort). Rio de Janeiro: FUNARTE/
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Antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1969.
253
O Festival do Folclore de
Olímpia, o Grupo Sabor
Marajoara e o Culto da Jurema:
“invenções” sucessivas
e complementares
Estêvão Amaro dos Reis
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP
[email protected]
Resumo1
O Festival do Folclore de Olímpia – São Paulo (FEFOL) completou no ano de 2013 quarenta
e nove edições ininterruptas e reúne manifestaçoes folclóricas de todas as regiões
brasileiras. Entre os grupos participantes encontra-se o Grupo Sabor Marajoara da cidade
de Belém (Pará), cuja fundação tem relação direta com o FEFOL. No presente trabalho,
analisaremos como os integrantes do Sabor Marajoara aproximaram-se da tradição do
Culto da Jurema – onde a bebida de mesmo nome (jurema) desempenha papel essencial
no Culto – e utilizaram esta tradição como argumento e justificativa para sustentar sua
relação com as manifestações folclóricas ou tradicionais que levam ao palco, estreitando
as fronteiras entre esta tradição religiosa e o universo do espetáculo no qual o grupo
transita. Para tal, utilizaremos o conceito de “tradição inventada” discutido por Hobsbawm
(1997) e os estudos sobre o mito desenvolvidos por Canclini (2010) e Eliade (1991).
Palavras-chave
música, ritual, festivais de folclore, jurema, tradição inventada
1
Este trabalho foi originado a partir de pesquisa de Mestrado do autor realizada junto ao Instituto de Artes da Unicamp.
254
Olímpia e seu Festival
Situada no noroeste paulista a 450 km de São Paulo, com uma população de aproximadamente cinquenta mil habitantes (50.024 habitantes
segundo o Censo de 2010) Olímpia é uma tranquila cidade do interior
que tem sua rotina transformada todos os anos no mês de agosto pelas
atividades geradas pelo Festival de Folclore. Realizado ininterruptamente há quarenta e nove anos, o Festival do Folclore de Olímpia faz com
que toda a cidade pare para assistir as apresentações dos mais de setenta
grupos folclóricos2 e parafolclóricos3 participantes, oriundos de todas as
regiões do país. Todos os anos chegam a Olímpia Congadas, Moçambiques, Bois, Cavalos Marinhos, Maracatus, Taieiras, Parafusos, Folias de
Reis, Fandangos, Marabaixo, Reisados e Pastoris, enchendo a cidade de
sons, cores e sabores, anunciando que mais um Festival se inicia.
Dentre os grupos participantes encontra-se o Grupo Sabor Marajoara da
cidade de Belém (Pará), cuja fundação está estritamente ligada ao Festival de Olímpia.
O FEFOL – como o festival é chamado por seus habitantes – é o maior
evento no gênero do país e além da grande quantidade e diversidade
de grupos que reúne, abrange grande parte do que caracteriza a cultura
popular brasileira como músicas, danças, jogos tradicionais infantis, comidas e bebidas típicas. Conta ainda um espaço próprio para a sua realização: a Praça de Atividades Folclóricas Professor José Sant´anna.4 Um
2
Longe de considerá-lo impregnado de conotações pejorativas, outorgadas a ele por algumas
linhas de pensamento, trata-se aqui de pensar este termo como uma forma legítima de apresentar um saber tradicional.
3
Os grupos parafolclóricos ou de projeção folclórica, como também são chamados, têm nos
grupos folclóricos uma fonte de inspiração e pesquisa e utilizam para a criação dos seus
trabalhos artísticos os ritmos, os trajes e os passos de dança das manifestações folclóricas ou
tradicionais da cultura popular brasileira.
4
José Sant´anna ou professor Sant´anna como ficou conhecido, nasceu no distrito de Ribeiro
dos Santos em oito de julho de 1937 e faleceu em oito de janeiro de 1999. Foi um dos criadores e o responsável pelo desenvolvimento e consolidação do FEFOL. Bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais, professor de português, pesquisador e folclorista criou o Departamento
255
local com área de 96.800 m², com estacionamento, galpões de estrutura
metálica em formato de barracas de tamanhos variados, área livre para
montagem de um grande parque de diversões e um teatro de arena com
capacidade para receber aproximadamente três mil pessoas sentadas,
além de dois palcos, com som e iluminação profissionais.
Figura 1. Grupos folclóricos em desfile na Arena
do FEFOL. Fonte: Arquivo do FEFOL.
O Sabor Marajoara no FEFOL
“Põe tapioca, põe farinha d´agua, põe açúcar não põe
nada, ou me bebe como um suco, que eu sou muito
mais que um fruto, sou sabor marajoara...”5
O Grupo de Expressões Parafolclóricas Sabor Marajoara, idealizado por
Paulo Parente6 e Alexandre Monteiro, inicia suas atividades no ano de
de Folclore de Olímpia e tornou-se membro efetivo da Associação Brasileira de Folclore. Sua
personalidade e seu modo de ser identificavam-se de tal maneira com os integrantes dos
grupos folclóricos presentes no FEFOL que a sua figura tornou-se lendária para estes grupos,
transformando-se em uma espécie de “mito”.
5
Trecho de canção do compositor paraense Nilson Chaves que deu origem ao nome do grupo
Sabor Marajoara.
6
Paulo Parente, fundador e integrante do grupo Sabor Marajoara há vinte e quatro anos.
256
1985 na cidade de Belém, porém, sua fundação oficial ocorre somente no
dia 24 de junho de 1989.
Como integrante de outros grupos, Parente participara do FEFOL desde
a sua 20ª edição, no ano de 1984 e por três anos residiu na cidade de
Olímpia.
[...] nós começamos a criar o grupo em 1985. Eu fazia parte de outro
grupo folclórico e nesta época nós tínhamos uma quadrilha. Aí eu saí
do grupo, permaneci com a quadrilha, eu, o outro fundador que foi
o Alexandre Monteiro, que hoje não faz parte do grupo, é fundador,
mas não está mais com a gente. E.. em 87 a gente começou a fazer a
criação do grupo. [...] começamos com afinco mesmo a parte de grupo
folclórico, começamos na casa de meu pai, o primeiro presidente
foi meu pai. Minha mãe, meus irmãos né, os amigos por perto [...].7
Durante os anos em que residiu em Olímpia, Parente esteve muito próximo ao professor José Sant´anna e, dessa experiência, surge a ideia de
criar o seu grupo, como nos conta em depoimento.
[...] É, antes da vinda do grupo, eu vim, eu venho vindo pra Olímpia,
desde do 20º Festival Folclórico. Ainda não era aqui no Recinto, era lá
na praça da Matriz. E eu vim com o... grupo folclórico do Pará, depois
eu vim com os Baioaras, oito anos e depois com o Sabor Marajoara. No
período dos Baioaras, foi o período que eu vim morar pra cá, durante
três anos [...] voltei e foi quando houve aquela vontade de formar o
grupo. Ou seja, eu queria que aquelas pessoas que eu vivia com a
quadrilha, viessem a Olímpia e conhecessem o Festival de Olímpia.8
O contato direto com o ambiente do FEFOL e a proximidade com o professor Sant´anna influenciaram-no de tal maneira que, ao retornar a Belém, sente a necessidade de criar seu próprio grupo. O motivo principal
transparece em sua fala: Parente gostaria que as outras pessoas do seu
7
Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011.
8
Idem.
257
convívio pudessem experimentar a mesma sensação de valorização9 por
ele vivenciada no contexto do FEFOL. Ao demonstrar como os grupos
são vistos e valorizados em seu espaço10, o ambiente do FEFOL instiga a
criação do Grupo Sabor Marajoara e incentiva-os a buscar as referências
para a criação do grupo o mais próximo possível das suas tradições.
A gente busca a essência mais próxima mesmo da rede de
todas as danças que a gente faz no palco, que hoje são 16
danças, só do Estado do Pará. Isso, conhecidas! Tem muitas
danças que a gente desconhece e que.. só sabe o nome, porque
muita gente daquela época, já não sabe mais como é que era
dançado. Pra gente poder buscar, tem que buscá alguém bem
antiga, pra gente poder, apresentar essa dança pra gente.11
O Sabor Marajoara se enquadra na categoria dos chamados grupos parafolclóricos, inspirados em manifestações populares tradicionais ou folclóricas que, através da pesquisa, levam-nas para o palco em forma de
espetáculo. Os grupos parafolclóricos não têm, necessariamente, uma
relação direta, de uma perspectiva tradicionalista, com a manifestação
que estão apresentando.
No caso dos grupos folclóricos, os motivos pelos quais realizam suas
atividades, seja em suas Festas ou mesmo quando representam suas práticas em um palco, são de outra ordem, e perpassam outras instâncias
simbólicas. Em outras palavras, os grupos folclóricos são herdeiros e
representantes de uma tradição, e os grupos parafolclóricos apresentam
tradições não necessariamente a eles vinculadas.
Enquanto os grupos folclóricos como Congos, Moçambiques, Maracatus,
Folias de Reis, Bois, Cavalos Marinho, Reisados, Marujadas entre outros,
9
Para saber mais ver: Reis, Estêvão Amaro dos. O Festival do Folclore de Olímpia, São Paulo:
uma festa imodesta. 2012. Dissertação de Mestrado em Música. Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas.
10 Espaço como “o meio, o lugar material da possibilidade dos eventos” (Santos 1994, p. 41).
11 Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011.
258
são considerados representantes legítimos de uma tradição, transmitida
de geração a geração, e diretamente vinculada a alguma crença ou manifestação religiosa,12 para os grupos parafolclóricos, este conceito não
se aplica.
Entretanto, o Sabor Marajoara tende a ser a exceção neste cenário, pois,
como veremos, na sua busca por melhor conhecer as manifestações tradicionais, ou folclóricas, que seriam por eles levadas ao palco, se aproxima tão profundamente de algumas destas tradições que a linha que
separa o folclórico do parafolclórico, torna-se quase imperceptível.
Apesar de inserido no contexto parafolclórico, a proximidade máxima
com o que apresentam é a justificativa para o trabalho que desenvolvem.
Fenômeno semelhante – que ganhou visibilidade na última década – é
observado por Elizabeth Travassos (2004) especialmente nos grandes
centros urbanos: o interesse de jovens artistas e estudantes pela cultura
tradicional ou folclórica brasileira.
Segundo Travassos, emergiram nos últimos anos nestes cenários (especialmente Rio de Janeiro e São Paulo), recriações de celebrações e modos de expressão cujas raízes remetem a regiões muito distantes daquelas de seus atuais praticantes. Para estes jovens, “cuja história pessoal e
familiar está atada a cultura e sociabilidade moderna” (TRAVASSOS, 2004,
p. 10), e apesar da distancia geográfica que os separa, o objetivo não está
apenas em aprender a música, os passos de dança ou algum outro aspecto isolado dessas manifestações folclóricas ou tradicionais, mas sim em
apreendê-las na sua totalidade. O objetivo maior está em captar e apreender o “sentimento da brincadeira”, o espírito da festa.
12 No Brasil, no que diz respeito às manifestações populares tradicionais ou folclóricas, é praticamente impossível distinguir o que é somente religioso e o que é somente profano. Tomemos como exemplo o Maracatu, uma manifestação vinculada ao carnaval, uma festa profana
por excelência, e ao mesmo tempo vinculada aos cultos de Xangô (como é chamado o Candomblé no Recife).
259
O aprendizado valorizado não é apenas técnico, tanto quanto
a prática valorizada não é a da simples repetição habilidosa de
gestos e cantigas. Trata-se de recriar o ambiente do “brinquedo”
que mobiliza a participação coletiva e exige múltiplos talentos
expressivos de cada indivíduo. (TRAVASSOS, 2004. p. 112 e 113).
O fenômeno apontado por Travassos em parte se assemelha ao fenômeno observado junto ao grupo Sabor Marajoara. Em ambos os casos os
novos praticantes destas manifestações não são herdeiros dos saberes e
das tradições que estão sendo recriadas, porém, uma diferença contribui
para torná-los distintos: os integrantes do Sabor Marajoara originam-se
da mesma região onde estão enraizadas as manifestações folclóricas ou
tradicionais que apresentam.
Todos os integrantes do grupo Sabor Marajoara são paraenses e vivem
no Estado do Pará. Soma-se a isto, o fato do grupo somente apresentar
manifestações folclóricas daquele Estado. Pelo fato de estarem próximos
geográfica e culturalmente dessas tradições o contato entre estes dois
universos ocorre, ainda que em um primeiro momento de forma indireta,
de maneira natural. Estes fatores favorecem o convívio entre os grupos
sociais envolvidos e consequentemente propicia o intercambio e a troca
de informações tanto no plano material, quanto no plano simbólico.
No depoimento de Parente, há um episódio que demonstra a dimensão
das experiências vivenciadas no FEFOL em sua vida e que, consequentemente, influenciaram o processo de criação e desenvolvimento do grupo
Sabor Marajoara.
O episódio diz respeito à visita do então Ministro da Cultura Francisco
Weffort13 no ano de 1996 à cidade de Belém, onde o Sabor Marajoara
apresentou-se numa cerimônia em homenagem ao ministro, realizada
13 Francisco Correia Weffort – Ministro da Cultura no período de 1995 a 2002, durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso.
260
no Teatro da Paz. Após a apresentação, que durou cerca de dez minutos,
o ministro Weffort aparece sem ser esperado, no camarim do teatro.
Ele passou por todo mundo, por cima da segurança e foi até nós.
Queria conhecer o Sabor Marajoara, queria saber que grupo era aquele
que estava se apresentando pra ele no teatro. Ele foi lá, cumprimentou,
perguntou [...] ele veio, cumprimentou a gente e.. pra mim e pro Seu
Alexandre ele perguntou assim: qual era o nosso maior desejo. A gente
podia dizê, não, a gente qué uma sede, ou a gente qué um ônibus,
aí me veio um estalo na cabeça, nós queremos ir pra um festival,
ele disse: qual é o festival? O Festival Folclórico de Olímpia. Aí o
nosso governador, que tava do lado dele, né? Ele disse: olha, então
faça com que este grupo chegue até o Festival [de Olímpia].14
No ano seguinte, o Sabor Marajoara apresentou-se pela primeira vez no
Festival do Folclore de Olímpia.15
Figura 2. Curimbós – tambores do Sabor Marajoara. Fonte: Estêvão Reis.
14 Paulo Parente em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011.
15 Por coincidência o Sabor Marajoara encontrou-se com o ministro Weffort em Olímpia, que estava presente no
FEFOL daquele ano. (Anuário do 33º Festival do Folclore, Olímpia, 1997, p. 124 e 134).
261
Figura 3. O Sabor Marajoara na Arena do FEFOL. Fonte: Estêvão Reis
“Invenções” complementares
Podemos compreender o Festival do Folclore de Olímpia como um festival “inventado”, ainda que sua invenção só tenha sido possível pelo fato
destas tradições, reunidas posteriormente sob a forma de um festival de
folclore, estarem presentes e vivas na cidade de Olímpia à época de sua
“invenção”.
O termo “tradição inventada” é utilizado num sentido amplo, mas
nunca indefinido. Inclui tanto as “tradições” realmente inventadas,
construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que
surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado
e determinado de tempo – às vezes coisa de poucos anos apenas – e
se estabeleceram com enorme rapidez. (HOBSBAWM, 1997, p. 9).
A origem do FEFOL remete ao ambiente escolar, quando se iniciaram os
primeiros movimentos impulsionados pelo professor Victório Sgorlon16
16 O professor Victório Sgorlon, trabalhou e acompanhou de perto a organização do FEFOL desde a sua concepção até o momento em que permaneceu na Praça da Matriz, em 1982. A partir
262
e seus alunos no antigo Ginásio Olímpia.17 A ideia inicial era simplesmente estudar o folclore no intuito de conhecer um pouco mais do que,
naquela época, ainda estava muito presente na vida dos moradores da
cidade. A professora Cidinha Manzolli18 nos informa que várias manifestações folclóricas ou tradicionais ainda podiam ser vistas com frequência
em Olímpia, principalmente as de cunho religioso como, por exemplo, a
“Recomenda de Almas”19, obedecendo ao calendário das famílias herdeiras destas tradições e das comunidades que as realizavam. Em um segundo momento, os grupos folclóricos responsáveis por estas manifestações são convidados e levados até a escola, com o intuito de demonstrar
aos alunos o que havia sido discutido e apresentado conceitualmente.
O fato destas manifestações folclóricas ou tradicionais estarem “vivas”
na cidade, como destacou Manzolli, foi fundamental para que as atividades de pesquisa empreendidas pelos professores do Ginásio Olímpia se
consolidassem na Olímpia dos anos 1960. Isto facilitou posteriormente a
reunião destas manifestações na forma de um festival de folclore, anunciando a gênese de um festival “inventado”, o qual se tornaria parte das
tradições da cidade de Olímpia.
Neste sentido, a base na qual a “invenção” do FEFOL se assenta não está
diretamente ligada a uma tradição de mesmo caráter, pré-existente na
cidade de uma perspectiva histórica, e nem mesmo fruto de uma inide 1986, passa a ser realizado na Praça de Atividades Folclóricas Professor José Sant´anna,
local construído especialmente para abrigá-lo.
17 Ginásio Olímpia, escola tradicional da cidade de Olímpia onde o professor Victório Sgorlon
lecionava.
18 Maria Aparecida de Araújo Manzolli ou Dona Cidinha Manzolli: amiga e “discípula” do professor José
Sant´anna, trabalharam juntos no FEFOL por quase quarenta anos. Por ser musicista e professora de música, foi
procurada por Sant´anna para cuidar da parte musical das pesquisas que estavam sendo empreendidas.
19 “Recomenda de Almas” – Grupo de pessoas que saíam à época da quaresma cobertos com
lençóis brancos, rezando pelas almas. Batiam de porta em porta ao som da matraca, os moradores colocavam comida na porta das casas, mas em hipótese alguma poderiam abri-las. Para
saber mais ver: SANTANA, José. Aspectos folclóricos da quaresma no município de Olímpia.
In: Anuário do Folclore, 24º Festival do Folclore, 1988, p. 7 et seq.
263
ciativa dos próprios grupos folclóricos da cidade. O FEFOL não remete a
uma tradição de Festivais de Folclore existentes em Olímpia no passado,
anteriormente à sua “invenção”. Ao contrário, o FEFOL está vinculado às
manifestações folclóricas presentes em diferentes regiões do município.
Ainda de acordo com o pensamento de Hobsbawm (1997).
Por “tradição inventada” entende-se um conjunto de práticas,
normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas;
tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos
valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado.
Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado. (HOBSBAWM, 1997, p. 9).
O FEFOL vincula-se às tradições das manifestações folclóricas ou tradicionais encontradas na região de Olímpia e a partir delas, incentivando-as, “inventa” a sua tradição.
O Culto da Jurema
O Culto da Jurema ou simplesmente Jurema é um culto de origem afro-indígena encontrado predominantemente no nordeste brasileiro, mas
que também pode ser encontrado na região norte do país, principalmente no estado do Pará. Segundo Rosa (2009 apud Pinto 1995), o culto da
Jurema pode ser observado – em diferentes formatos – desde o contexto
rural, até os grandes centros urbanos de todos os estados do nordeste. A
bebida sagrada de mesmo nome e o “reino dos encantados”20, cuja Cabocla Jurema é parte, são os elementos que regem e dão forma ao culto.
Em cada lugar o culto toma forma específica, sendo a preservação
da utilização da bebida jurema e da fumaça enquanto
20 Os Encantados são seres sobrenaturais que regem o Culto da Jurema e se assemelham aos
Orixás do Candomblé. (Luizinho Lins, integrante do Balé Folclórico da Amazônia, em conversa informal ao autor em julho de 2013).
264
elementos fundamentais aos rituais, um forte elo entre os
diferentes cultos de diferentes denominações e particularidades
nas diferentes cidades (Rosa apud, Pinto, 1995, p. 37).
O nome popular Jurema tem origem na língua tupi yu-re-ma (Rosa, 2009
apud Luzuriaga, 2001) e é empregado em relação a diversos aspectos
ligados à religião.
São dois os tipos de jurema; a preta (mimosa hostilis benth) e a
branca (vitex agmus castus). Estes dois tipos são usados para o
preparo da bebida sagrada, como também para banhos, remédios
e defumações com objetivos terapêuticos para curar os males
físicos e da alma. (Rosa, 2009 apud Assunção, 2006, p. 19).
Segundo Rosa (2009) podem ser usadas até vinte e um tipos diferentes
de ervas no preparo da bebida da jurema sagrada.
A Jurema e o Sabor Marajoara
Ao contrário do que acontece na Bahia e em outros Estados brasileiros, o
Candomblé não é uma religião muito presente no Pará, onde a Umbanda é encontrada com maior frequência, assumindo para os paraenses o
mesmo papel que o Candomblé representa na vida dos baianos. “A gente
costuma dizer que em Belém, quem vai a missa às sete horas da manhã,
no mesmo dia está no terreiro de Umbanda.” (THIAGO ROCHA, 2011).21
Esta constatação, sublinhada por Rocha, pode ser analisada como decorrência de que no Pará, assim como em toda a região amazônica, a
influência que a cultura dos povos indígenas exerceu foi muito grande.
Ainda hoje, o legado deixado por essa cultura se faz presente de maneira
sistemática no cotidiano dos seus habitantes. Soma-se a isto a influência
até hoje sentida pela proximidade com a floresta. Isso é facilmente observado, seja através da culinária, dos temperos, das frutas, ou dos cultos e
21 Thiago Rocha, integrante do Sabor Marajoara há quatorze anos, atualmente o ocupa o cargo
de vice-presidente do grupo, além de desempenhar as funções de músico e apresentador.
265
rituais de influência indígena, como é o caso da Umbanda e consequenemente da Jurema.
Como vimos anteriormente, no Nordeste o termo jurema além de dar
nome ao culto representa a bebida sagrada Jurema. No Pará, no contexto do Grupo Sabor Marajoara, as referências à bebida Jurema se misturam aos relatos vinculados a uma entidade do “reino dos encantados” de
nome Cabocla Jurema.
Ao Culto da Jurema e, mais especificamente ao culto à Cabocla Jurema,
os integrantes do Sabor Marajoara vincularam-se ao aproximarem-se,
através de um intenso trabalho de pesquisa, das manifestações tradicionais ou folclóricas por eles estudadas. Por não trazerem intrínsecas estas tradições – da maneira como os grupos folclóricos as trazem – saem
em busca de experiências que possam sustentar, e de alguma maneira
legitimar o seu trabalho. O que está em jogo aqui é a legitimidade da
apresentação artística, que deve explicitar a âncora firmada no chão de
onde buscaram inspiração, e que a partir da apresentação se transforma
no elo entre eles.
Como nos relata Rocha, uma das entidades vinculadas ao culto da Umbanda no Pará é a Cabocla Jurema. A sua origem remete à lenda encontrada com frequência naquela região. A lenda da Jurema, ao mesmo tempo em que faz referência à época da escravidão, se mistura às histórias e
lendas que dizem respeito à floresta.
A Jurema é uma história lá da região amazônica. No tempo em que
o Brasil era.. tinha como principal atividade o trabalho escravo, né?
[...] Conta-se uma história, uma lenda, né? Que havia uma negra
guerreira, uma negra forte que conseguiu fugir, conseguiu se soltar
e escapar do seu Senhor e se escondeu no mato, se escondeu em
Quilombos. E construiu ali grupos, que lutavam contra o domínio,
contra o jugo do seu Senhor. O que ela fazia? Ela construiu grupos
que iam até as fazendas, nas senzalas e tiravam os negros de lá.
[...] ela ficou sendo louvada pelos negros da região amazônica, nas
florestas que eles estavam. Por que região de floresta, por que na
266
África naturalmente a floresta predomina na maioria, não é? E aí
ela tinha condições, a Jurema e seus grupos, de se esconder e lutar
contras os Senhores. Bom, num determinado momento, essa negra
foi novamente apreendida, colocaram nela algumas amarras e a
machucaram bastante, açoitaram e ela acabou se transformando
num mártir. Um símbolo da causa negra, do negro fugido, do negro
que lutava contra esse domínio. E esse mártir ganhou proporções
lendárias, proporções míticas. E é daí que vem justamente a história
da dança, né? Essa dança, que faz louvação a Jurema, ela acaba
contando um pouco da história, através da música, a dança chama
batuque amazônico, né? Conta um pouco da história dessa negra
que fugia e tentava ajudar os outros negros, e aí, como ela se tornou
uma história mítica, conta-se nessa lenda que ela começou a ganhar
poderes fantásticos, poderes paranormais, né? E ela aparecia aos
negros explicando o que eles teriam que fazer pra fugir das suas
senzalas. E nos terreiros de Umbanda em Belém, algumas pessoas que
tocam, como se deve tocar o tambor, os atabazeros, não é? Algumas
pessoas que dançam, que bailam em prol da negra Jurema, eles
acabam recebendo, segundo os religiosos dessa crença, acabam
recebendo essa cabocla, ela ficou assim conhecida, como cabocla
Jurema. Daí que vem a dança e daí que vem a história da Jurema.22
Muitas danças apresentadas pelo Sabor Marajoara estão ligadas, de uma
maneira ou de outra, ao culto da Jurema e principalmente ao culto ���
�����
Cabocla Jurema. Pode-se dizer que o culto à cabocla Jurema hoje está por
trás e “sustenta”, através dos seus fundamentos religiosos, grande parte
das danças que o Sabor Marajoara apresenta.
Neste ponto surge a seguinte questão: se o Sabor Marajoara se situa na
categoria dos grupos parafolclóricos, cuja principal característica, como
vimos, é a sua total desvinculação com aquelas manifestações tradicionais ou folclóricas que serão por eles levadas ao palco, então, para que
tanta preocupação e cuidado com o que estão apresentando? Para que se
dar ao trabalho de ir até a Bahia, abençoar uma roupa ou se prepararem
22 Thiago Rocha em entrevista ao autor em 30 de julho de 2011.
267
de maneira religiosa e ritualística para cada apresentação?23 Porque tanta
preocupação e cuidado ao tratar das danças e dos assuntos da Jurema?
Acompanhemos o pensamento de Eliade (1991).
[...] por acaso é possível encontrar uma definição única capaz
de abarcar todos os tipos e funções dos mitos em todas as
sociedades, arcaicas e tradicionais? O mito é uma realidade cultural
extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada por
perspectivas múltiplas e complementárias. (ELIADE, 1991 p. 6).
Isto considerado entende-se aqui por ritual o caráter simbólico desses
eventos, com data, local e horário apropriado para sua realização; público determinado; e função específica dentro da comunidade a que está
inserida. Sobre o mito, Eliade (1991) nos apresenta a seguinte definição.
[...] o mito conta uma história sagrada; relata um acontecimento que
teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. Dito
de outra maneira: o mito conta como, graças às façanhas dos Seres
Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja esta a realidade
total, o Cosmos, ou somente um fragmento: uma ilha, uma espécie
vegetal, um comportamento humano, uma instituição. [...] o mito
se considera como uma história sagrada e, portanto, uma história
verdadeira, posto que se refere sempre a realidades. (ELIADE, 1991, p. 6).
Canclini (2003) corrobora o pensamento de Eliade e ao mesmo tempo
nos apresenta outra definição.
Costuma-se estudá-los como práticas de reprodução social. Supõese que são lugares onde a sociedade reafirma o que é, defende
sua ordem e sua homogeneidade. [...] Há rituais pra confirmar as
relações sociais e dar-lhes continuidade (as festas ligadas aos
fenômenos “naturais”: nascimento, casamento, morte) [...]. Mas os
rituais podem ser também movimentos em direção a uma ordem
23 O traje utilizado na Dança do Obaluê, do repertório de danças do grupo Sabor Marajoara, foi
levado ao terreiro do Gantois em Salvador, para ser abençoado antes de ser utilizado pelo
grupo em suas apresentações.
268
diferente, que a sociedade ainda rejeita ou proscreve. [...] destinados
a efetuar em cenários simbólicos, ocasionais, transgressões
impraticáveis de forma real ou permanente. (CANCLINI, 2003. p. 45).
Nossa abordagem em relação ao “rito” alinha-se, neste ponto, ao pensamento de Canclini e sob esta ótica o espaço do FEFOL constituiria o novo
cenário simbólico para os “rituais” dos grupos folclóricos inseridos em
seu contexto, dentre eles o Sabor Marajoara.
Na medida em que a “invenção” do FEFOL se consolida surgem em seu
interior novas tradições, cuja “invenção” está diretamente ligada a sua
própria “invenção”. Através de “ritos” também inventados, o grupo Sabor
Marajoara busca o sustentáculo para os seus espetáculos artísticos e o
espaço do FEFOL torna-se o ambiente ideal para a “invenção” constante
de novas tradições, considerando que a “invenção de tradições é essencialmente um processo de formalização e ritualização, caracterizado por
referir-se ao passado”. (HOBSBAWM, 1997, p. 12).
Os integrantes do Sabor Marajoara se preparam ritualisticamente para
a realização das atividades ligadas ao grupo, principalmente no contexto do FEFOL. Nos seus espetáculos em muitos momentos mencionam e
saúdam a Cabocla Jurema. Atualmente as suas apresentações artísticas
Para os integrantes do Sabor Marajoara, essas práticas rituais são necessárias ao trabalho que será realizado. Desse modo, respeitam e valorizam as manifestações folclóricas que apresentam, aproximando-os
ainda mais dos grupos folclóricos, estreitando, e mesmo diluindo a linha
que os delimita e os separa.
Neste sentido, o trabalho do Sabor Marajoara se desenvolve em direção
oposta ao fenômeno observado por Travassos (2004), onde as manifestações folclóricas apresentadas localizam-se em regiões geográficas e
culturais distantes e distintas, e que muitas vezes apenas o líder no novo
269
grupo teve a oportunidade de conhecer mais profundamente, transmitindo-a aos jovens interessados através de oficinas e aulas.24
Os integrantes do Sabor Marajoara se vêm e se entendem como parte daquela cultura, da cultura paraense de um modo geral e, consequentemente,
da cultura do Culto da Jurema, que passa a reger as atividades do grupo.
24 O Maracatu é a manifestação que melhor se encaixa no fenômeno observado por Travassos. A
partir do movimento Manguebeat, liderado pelo músico pernambucano Chico Cience na década
de 1990, o Maracatu se popularizou e se espalhou pelo Brasil. Atualmente, mestres de Maracatu
de Recife viajam por todo o Brasil ministrando oficinas em escolas, centros culturais e universidades, e a partir destas oficinas, em várias regiões brasileiras foram formados grupos de Maracatu.
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tradicionais: a performance como modo
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Patrimônio imaterial, performance cultural
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Entrevistas
Manzolli, Ap. M. de. Maria Aparecida de Araújo
Manzolli: inédito. Olímpia, 11 de junho de 2011.
Entrevista concedida a Estêvão dos Reis.
Rocha, Thiago. Thiago Rocha: inédito.
Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista
concedida a Estêvão Amaro dos Reis.
Parente, Paulo. Paulo Parente: inédito.
Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista
concedida a Estêvão Amaro dos Reis.
Sampaio, George. George Sampaio: inédito.
Olímpia, 30 de julho de 2011. Entrevista
concedida a Estêvão Amaro dos Reis.
270
O rock and roll carioca
nos anos 50
Marcelo Garson
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
O objetivo deste artigo é iluminar alguns aspectos da gênese do rock and roll no Brasil.
Analisando o curto período localizado entre 1955 e 1960, busca-se contestar a ideia de
que, nessa época, o rock era praticamente inexistente enquanto pratica social, composto
sobremedida por iniciativas esparsas de intérpretes já consagrados. Uma extensa análise dos
jornais e revistas da época deixa claro que rock and roll era reconhecido como uma dança e
não como um gênero musical. É justamente essa natureza que nos interessa analisar, o que nos
leva à descoberta de um circuito de praticas sociais extremamente movimentado nos subúrbios
cariocas. Nesses locais, os dançarinos disputavam concursos onde a superioridade técnica de
suas acrobacias estava em jogo. Organizados a partir da lógica dos shows de variedades, esses
eventos contavam com atrações das mais diversas, revelando, em grande medida, como a
atmosfera do espetáculo é importante para compreender o papel social da música nessa época.
Palavras-chave
Juventude, rock and roll, anos 50, Rio de Janeiro
271
Em meados da década de 50 o rock and roll chega ao Brasil. É 55 a primeira gravação do gênero feita em território nacional, Ronda das Horas,
interpretada por Nora Ney. No ano seguinte o filme que popularizou o
ritmo em todo o mundo, Ao balanço da horas (Rock around the clock)
estréia em São Paulo e em seguida no Rio de Janeiro. A mídia impressa
da época1 dava conta de noticiar o quão excêntrico e contagiante parecia
ser o novo ritmo, que já amealhava alguns entusiastas em solo nacional.
Até fins da década, todavia, não tínhamos nenhum interprete brasileiro
que se colocasse como representante exclusivo do gênero musical. Celly
Campello é a única exceção e já em 59 chegaria às rádios com o sucesso
Estúpido Cúpido. A jovem de Taubaté abriria caminho para uma série
de cantores que a partir de São Paulo obteriam projeção nacional. Na
década seguinte, a cidade se tornaria a meca do rock and roll nacional
principalmente através do sucesso estrondoso da Jovem Guarda.
Contada e recontada em fontes das mais diversas2, essa pequena historia tornou-se quase um senso comum a respeito da maneira como o
rock chegou ao Brasil. Privilegiando o aparecimento de Celly Campello
a narrativa se desenvolve de maneira progressiva e linear até a Jovem
Guarda, fazendo acreditar que tudo o que se fez até 59 não merece maior
atenção. O período se resumiria a alguns discos avulsos lançados por
intérpretes que nada tinham de roqueiros, como a já citada Nora Ney.
Surpreende, pois, constatar que é justamente nesse período esquecido
que temos, no Rio de Janeiro, uma movimentação bastante expressiva
ao redor do novo ritmo.
Nos idos de 57 o jovem Carlos Imperial organizava jam-sessions na orla
de Copacabana regadas a rock and roll para uma clientela jovem e de
1
Como verificado através dos jornais Correio da Manha, Folha de São Paulo, Folha da Manhã,
Estado de São Paulo, Ultima Hora e também da Revista do Rádio.
2
Ela se repete com variações muito pequenas em materiais das naturezas mais diversas como
revistas, (Bravo! Para Entender a Música Pop Brasileira, Contigo! Documento Musical Jovem
Guarda, Caras, coleção Jovem Guarda), livros (FROES 2000, PUGIALI 2006, AGUILAR 2005) e
sites (pt.wikipedia.org/wiki/Rock_no_Brasil)
272
classe média. Entretanto, foi bem longe dali que o ritmo expandiu-se de
maneira bastante singular. Nos clubes de subúrbio, os roquianos, como
eram chamados3, organizavam-se em grupos e dançavam em pares, inspirados nas coreografias exibidas nos filmes norte-americanos de rock. A
técnica apurada e os movimentos acrobáticos estavam em jogo em uma
série de concursos que tomavam de assalto os auditórios dos clubes atléticos, oferecendo troféus e até viagens ao exterior como prêmio.
Nesses ambientes Imperial era bastante famoso. Entretanto, não foi dançando que seus conhecidos do subúrbio Erasmo Carlos, Roberto Carlos
e Tim Maia, iniciaram suas carreiras. Como o próprio Roberto notara
muito bem, as oportunidades para cantores estavam na região central da
cidade, nos estúdios das rádios (ARAUJO, 2006). Nos clubes do subúrbio
as grandes estrelas eram os dançarinos. O rock and roll que aí se praticava era bem diferente daquele que veio a consagrar os jovens intérpretes
que fizeram fama na década seguinte em São Paulo.
O objetivo deste artigo, portanto, é compreender a natureza muito particular dessa cena musical carioca em que as sonoridades não podem ser
pensadas somente de forma autônoma. Coexistindo muitas vezes em um
mesmo ambiente com atrações das mais diversas naturezas, ela fundamentalmente respondia à lógica do espetáculo onde o objetivo era fornecer estímulos sensoriais das mais diversas ordens ao espectador.
Como primeiro movimento, cabe compreender a lógica estruturante das
narrativas sobre o rock and roll desses primeiros anos. Ainda que escassos, os relatos sobre o período nos ajudam a compreender por que
essa cena carioca foi sistematicamente deixada de lado. Através de uma
maneira muito própria de se contar a historia, depreende-se que noção
de rock and roll está em jogo e como ela opera excluindo tudo o que não
possa ser contemplado por esse modelo.
3
O epíteto era freqüente na coluna social Luzes da Cidade comandada por Leda Rau e Carlos
Renato no jornal Última Hora.
273
A História e as histórias do rock and roll
Um de seus marcos indiscutíveis para a consolidação do rock no Brasil é
o programa Jovem Guarda, que estréia em 65. Desde o início da década,
entretanto, uma nova geração de cantores faziam fama em São Paulo,
figurando em shows, discos, programas de rádio, TV e até revistas. Os
jovens entusiastas do novo ritmo já constituíam um segmento de mercado a ser explorado; tudo indicava que a suposta moda poderia não ser
tão passageira quanto se pensava. O sucesso de Tony e Celly Campello,
Eduardo Araújo, Sergio Murilo, Demetrius e Ronnie Cord sinalizava a
rentabilidade do empreendimento. Posteriormente, a Jovem Guarda daria uma unidade e expressão a um sem número de bandas e cantores
que rumavam para a capital paulistana em busca de reconhecimento.
Apoiado nos veículos midiáticos, o prestígio de seus ícones chegaria a
ultrapassar fronteiras nacionais.
Se a Jovem Guarda marca um momento de virada praticamente indiscutível, devemos tomar certas precauções para não tomá-la como o único
paradigma de análise para tudo o que se fez antes. É bastante parca a bibliografia que trata do rock nesses primeiros anos, ainda assim ele segue
uma linha argumentativa bastante similar. Nos trabalhos especificamente sobre a Jovem Guarda (FROES 2000, PUGIALI 2006, AGUILAR 2005)
o período entre 55 e 65 entra como um preâmbulo para tudo o que se
seguiria posteriormente. Até então, nenhuma surpresa. O mesmo ocorre,
no entanto, na pesquisa cujo título parece anunciar a singularidade do
período. Rock Brasileiro (1955-1965) Trajetória, Personagens e Discografia
frustra nossas espectativas quando anuncia, logo de início, sua tarefa
de “resgatar fatos e nomes desse período pouco estudado pelos críticos
musicais e historiadores de rock, mas que foi sumamente importante por
gerar o movimento Jovem Guarda”(..). Trata-se de uma narrativa que vê
a década de 50 como um epílogo para os anos 60 em que tudo parece
convergir para seu feito mais notável.
274
Há um valor indiscutivelmente documental e taxonômico de todo esse
material escrito por insiders. Entretanto, seu tom excessivamente retrospectivo enviesa o relato no sentido de privilegiar todos os momentos que
de alguma forma prefiguravam a Jovem Guarda. Como conseqüência,
tudo o que não se encaixa nesse esquadro é deixado de lado. A história
é contada já antecipando o seu fim. É como se o iê-iê-iê estivesse dado
de antemão em tudo o que o antecedesse, sendo, portanto, o desenvolvimento “natural” do que veio antes. Guardadas as devidas proporções, é
possível estabelecer um paralelo com a famosa idéia da “linha evolutiva”
que nas palavras de Caetano Veloso explicaria como a MPB representava
a evolução “natural” do samba, via bossa nova (NAPOLITANO, 2001).
Através do prisma da Jovem Guarda, portanto, o período compreendido
entre 60 e 65 é visto, na prática, como sua “pré-historia”, na medida em
que vários dos componentes presentes no movimento já estariam sendo ensaiados em São Paulo: o apelo ao publico jovem, o uso de instrumentos elétricos, o acompanhamento de bandas e fundamentalmente a
hegemonia dos intérpretes. Espelhados, portanto, no sucesso de norte
americanos como Brenda Lee, Neil Sedaka e Paul Anka, teríamos uma
nova geração de jovens dedicados que inaugurariam o nosso rock made
in Brazil.
E quanto ao período compreendido entre 55 e 60? Excetuando o sucesso
de Celly Campello, que se inicia em 59, o que teríamos? Uma série de
empreendimentos isolados e descontínuos de cantores já consagrados
no meio radiofônico, como Nora Ney (Ronda das Horas) e Cauby Peixoto (Rock and Roll em Copacabana), que buscavam carona no sucesso do
gênero no exterior. Somavam-se a isso alguns filmes importados com
números musicais, uns poucos programas de rádio que tocavam majoritariamente música estrangeira e muito debate nos jornais acerca dos
efeitos nocivos ou saudáveis da nova dança “louca e atraente”, nas palavras de Jair Alves.
275
Enquanto Bill Haley e Elvis Presley se afirmavam como ídolos da juventude norte americana, não tínhamos nada parecido no Brasil. Covers de
Elvis cantando suas música nos rádios e em show de variedades era o
máximo com o que poderíamos nos contentar. E quanto ao cenário carioca da década de 50? Não se trata de uma cultura de interpretes, sua
natureza é tão distante do que veio a ser praticado a partir de década de
60 na capital paulistana que o nexo lógico parece sequer fazer sentido.
Na impossibilidade de agrupar as manifestações carioca e paulista no
mesmo grupo, acaba-se por excluir a primeira; eis como a tradição seletiva forjada a partir da Jovem Guarda encara os anos 50 no Rio de Janeiro.
A normatização de um modelo interpretativo pressupõe a eliminação de
tantos paradigmas possíveis e concorrentes (BOURDIEU 1974, 2005, 2007).
A contribuição da sociologia, portanto, não é somente expor a parcialidade das narrativas, mas, ao de evidenciar a lógica do discurso, expor a
quem ele serve e o que deixa de fora.
A régua para medir o desenvolvimento do rock and roll nos primeiros
anos foi calibrada a partir de uma certa interpretação do que seria o modus operandi norte-americano, baseado nos intérpretes e no formato canção que imortalizou-se através do disco. Representado por figuras como
Elvis e Bill Halley, buscavam-se seus símiles nas cenas locais. Nessa linha de raciocínio teríamos verdadeiramente uma cena de rock no Brasil
somente nos anos 60 e em São Paulo, pois é a partir dessa época que
mal ou bem, acertamos o compasso com os Estados Unidos, se não em
termos estruturais, ao menos simbólicos, por meio de nosso elenco de
intérpretes que grassavam na indústria do disco e demais veículos midiáticos.
Fica claro, portanto, que há uma dimensão mercadológica decisiva por
trás do relato. São Paulo soube explorar o rock como um produto de maneiras muito mais rentáveis que no Rio. Na medida em que a historia do
rock é também a historia de como ele se tornou um negócio, não surpre-
276
ende que essa cena carioca tenha tido tão pouca notoriedade. É justamente essa natureza bastante particular que nos interessa.
O curto espaço de tempo, de 55 a 60, e a territorialidade do fenômeno
não só interessam pela raridade do material empírico, mas por revelar
que mesmo um fenômeno tão pouco documentado como o rock dos primeiros anos já possui uma narrativa hegemônica e que é passível de
análise.
A análise sociológica, portanto, guarda distância em relação a definições
dadas a priori. Interessa-nos, observar a plasticidade da nomenclatura
que por sua vez revela diferentes maneiras de vivenciar, perceber e classificar a realidade objetiva. Mesmo que não se enquadre no modelo paulistano, a rede de práticas sociais cariocas também se auto intitulava rock
and roll. Nesse ponto, é dos atores, é não do pesquisador, a tarefa de definir. A este cabe investigar a lógica simbólica a partir do qual o conceito
opera e em quais práticas sociais se materializa.
Não podemos deixar de notar que nomenclaturas importadas como essa
estão intimamente ligadas ao processo de ampliação do parque industrial nacional e abertura ao capital norte-americano que toma fôlego a
partir dos anos 50. O rock and roll nos chega juntamente com a vitrola
hi-fi, as batatas chips, o shampoo e os shopping centers. As modificações
no consumo musical devem, portanto, ser circunscritas ao largo processo de modernização que remodelava tanto os espaços públicos quanto
privados da sociedade brasileira (MELLO, NOVAIS, 1998).
Ainda que inseridos em um movimento de contornos globais – já que a
esfera de influência da cultura norte americana passa a adquirir dimensões planetárias – não se trata assinalar as conseqüências de um “pacote
tecnológico pronto para ser montado no pais”, derivado de um “simples
alinhamento ao modelo importador”, como acredita José Ramos Tinhorão (2004, p.325) que não por acaso usa a expressão rock brasileiro entre
aspas.
277
Somos, portanto, chamados a compreender as variantes locais e singulares do processo de incorporação do ritmo estrangeiro, o que nos remete à
estrutura pregressa de nossa cena musical. As exibições de rock and roll,
como eram chamadas, fundiam-se a um variado circuito de eventos em
que a lógica do espetáculo imperava, revelando, em grande medida, um
certo lugar social da música em meados dos anos 50.
Rock and roll e a cena musical na década de 50
Desde os anos 30, o teatro de revista e as chanchadas se juntavam com
o rádio para formar o centro gravitacional do meio artístico. Como afirma Alcir Lenharo (1995), “ao redor desse tripé gravitavam a indústria do
disco, as editoras de música, as revistas especializadas, a publicidade. (...)
Cantores, compositores, músicos, artistas de teatro e rádio, (...) transitavam por um desses espaços culturais” (p.135). Até meados dos anos 50, o
carnaval era um dos eventos centrais, sendo trabalhado nos programas
de auditório das rádios, nos números musicais do teatro, e no espaço que
as chanchadas concediam à música. O objetivo final era emplacar um
tema carnavalesco.
O samba, entretanto, convivia com uma série de outros estilos. Boleros,
ritmos latinos – tangos, rumbas, guarânias – e também baião, xote e valsa ocupavam o espaço das rádios. O samba canção tinha um espaço
especial também nas boates. A diversidade de idiomas não era novidade.
Cantava-se em espanhol, inglês e até com sotaque lusitano.
Um anúncio do Rei da Voz, uma das maiores cadeias de venda de disco
do Rio de Janeiro, nos dá uma ideia de que a música consumida à época
poderia vir tanto de Portugal, como do Paraguai, passando pelos Estados
Unidos e Espanha. Nas paradas de sucesso, Cauby Peixoto, Dóris Day e
The Platters (vendido à época como rock and roll) disputavam terreno.
278
. (Ultima Hora, 3º sessão, 12/05/57, p.4)
Apesar da multiplicidade de estilos, não havia uma divisão muito clara
em nichos de mercado. Os artistas, o público e as orquestras lidavam
com os mais diferentes repertórios. Cantava-se principalmente ao vivo,
em boates, teatros e principalmente nos auditórios das rádios.
A música gravada ainda representava um alto investimento e de retorno
incerto; discos e vitrolas tinham seu consumo restrito por conta do preço.
Os custos disparavam quando se tratava de lançamentos internacionais,
pois muitos selos estrangeiros, especialmente os norte americanos não
279
possuíam representantes por aqui. Para vencer o obstáculo, existiam maneiras muito específicas de lidar com o material importando.
Regravar a música original, no mesmo idioma, mas com artistas brasileiros era uma possibilidade. Tínhamos ainda as versões, que consistiam
na junção da melodia original a uma letra em português que podia, ou
não, ter relação com a fonte. Esse mercado específico não foi uma invenção dos produtores de rock. Ele vinha de longa data e floresceu bastante
junto aos astros do rádio, que vertiam temas cubanos, mexicanos e norte-americanos dos mais diversos. Havia ainda a possibilidade de se compor faixas inteiras em inglês (ARAUJO, 2006; LENHARO, 1995).
Nesse ambiente surgiria o primeiro compacto de rock brasileiro, Ronda
das Horas, uma regravação de Rock around the clock de Bill Haley and
the Comets na voz de Nora Ney. A cantora fazia parte da mesma safra
de astros do rádio, como Jorge Goulart e Ângela Maria, que ostentavam
uma grande potência vocal.
Tornado popular ao redor do mundo por servir de trilha sonora ao grande sucesso de bilheteria Sementes de Violência (Blackboard Jungle), o
lançamento da faixa, ainda na voz de Hailey, chegava ao mercado brasileiro paralelamente à estréia do filme no Rio de Janeiro, ocorrida no início de outubro de 55. No final do mês, o disco já esgotava-se rapidamente
nas lojas cariocas. O compacto de Nora Ney é lançado logo em seguida,
desbancando o de Halley no ranking das mais vendidas da Revista do
Rádio, situação que se repetiria no mercado paulista4.
Eis que a primeira intérprete da música jovem no Brasil ultrapassava os
trinta anos e tinha como carro chefe o samba canção derramado Ninguém me ama. Excêntrica aos olhos de hoje, a escolha é coerente e reveladora de muitas das convenções do mercado musical de então. Na
inexistência de um homólogo nacional de Bill Haley, e sendo a guitarra
4
Tal como notado semanalmente no ranking das mais vendidas da Revista do Rádio, no período que vai de novembro de 55 a fevereiro de 56.
280
um instrumento pouco recorrente nos acompanhamentos, era preferível
não arriscar. Nora Ney, ícone de um dos gêneros musicais mais populares, e um acordeon eram as concessões necessárias para se amoldar às
preferências populares.
Além disso, na medida em que os artistas não se repartiam por nichos
de mercado estritos, entende-se como a incursão em um gênero aparentemente destoante não era visto com espanto, podendo, pelo contrário
ser elogiada como sintoma de versatilidade. Era esse o ponto do crítico Claribalde Passos que considerava Nora Ney “uma das maiores figuras de nossa música popular e do rádio, cantora versátil e inteligente (..);
aplaudimo-la, sim, por fazer valer sua grande classe diante do público e
assinalar performance credora de encômios” (Correio da manha, 5º Caderno, 01/01/56). Não surpreende, pois que o verso do disco contivesse o
samba choro Ciuminho Grande.
Combinar samba e rock no mesmo lançamento não é pratica incomum
nesses primeiro anos. Até logo jacaré, versão de See You Later, Alligator
continha também dois sambas e um bolero. O intérprete Agostinho dos
Santos explica sua escolha:
A coisa que eu mais aprecio é o nosso fabuloso samba. Por
isso, fiz questão de colocar na face A do disco do rock and roll
um gostoso sambinha e não deixar passar em branco o nosso
querido carnaval. O rock and roll, sendo um gênero novo, pareceume interessante gravar um pelo menos, para estar de acordo
com a moda (Correio da manha, 5º Caderno, 20/01/57).
A declaração aparentemente trivial é bastante reveladora das regras do
jogo no cenário musical. A centralidade do samba, ainda que merecesse ser reconhecida, não abafava diversas outras expressões musicais. Já
que as gravações eram custosas e de retorno incerto, as ondas passageiras representavam uma possibilidade de lucros. Assim, um mesmo
suporte poderia mirar diferente gostos. “Estar de acordo com a moda”,
portanto, era também uma estratégia comercial. É justamente nesse vai
281
e vem entre a “moda” e a “tradição” que o mercado se estruturava. Não
se quer dizer com isso que vivíamos em uma democracia sonora. A chegada da Bossa Nova, logo em seguida, vai deixar claro o incômodo e as
críticas de toda uma geração radiofônica que vê o seu espaço simbólico
ser reconfigurado.
No caso do rock, entretanto, o seu potencial para ameaçar as hierarquias
em jogo é totalmente desacreditado.
Como todas as epidemias musicais que já se desenvolveram
nos EUA (..) só passará com o tempo. O tempo inexorável matará
também o “Rock and Roll”. Será esquecido como foi o Charleston, o
swing, a conga e tantas outras inovações musicais. Caem porque
são musicas fictícias (..) queremos dizer que não pertencem ao
coração do povo. São invencionices para fazer-se dinheiro. Sendo
superficial, logo cansa. O público descobre isso com o tempo,
sem o sentir. Fica então tudo para trás. Aguardemos, pois a
hora do ‘Rock and Roll’ (Ultima Hora, tablóide, 16/02/57, p.5).
A imprensa local não se cansava de anunciar a morte iminente do rock.
Destituído de “raízes”, mais um produto descartável de um mercado ávido por lucro, seria varrido pelo tempo como o foram tantas outras modas
musicais. A reportagem prosseguia comparando o rock ao jazz, sendo
este considerado “perene e perpétuo (..) seus ídolos não caem, porque são
ídolos de arte”.
A trajetória de Elvis era acompanhada de perto e a qualquer sinal de declínio, como o seu ingresso no exército e seu posterior retorno aos palcos,
recebido com frieza pelo público, eram sinal de que o rock agonizava. A
comparação com seus possíveis sucessores, como o madison, cumpria a
mesma função.
A associação com a juventude era um outro fator que contribuiria para a
descrença em seu futuro. A suposta audiência juvenil, alvo primeiro desse tipo de música no exterior, ainda não constituía um nicho de mercado
no Brasil. A cena musical brasileira oferecia um amplo cardápio de esti282
los musicais, entretanto eles não estavam repartidos por critérios geracionais. É sintomático que a grande inspiração de Celly Campelo, antes
do sucesso de Estúpido Cupido, fosse Ângela Maria. Durante a adolescência ela apresentava-se na rádio difusora de Taubaté não só seguindo
o repertorio, mas todos os seus trejeitos vocais da estrela do rádio5.
Ângela Maria e Cauby Peixoto conseguiam a façanha de atingir todas as
faixas etárias, crianças inclusive. O quadro Artistas de Amanhã? que correu de 55 a 58 na Revista do Rádio, ocupava-se do perfil dos filhos das celebridades do meio artístico. Crianças, de no máximo 10 anos, eram quase
unanimes em apontar a dupla de cantores como seus grandes ídolos.
Mesmo no auge do sucesso de Celly Campello, em 1960, as publicações
sobre o rádio exibiam uma grande incerteza em relação ao futuro de
uma música juvenil
Está aparecendo uma nova safra de artistas – a dos brotos. Na
sua maioria cantores de ‘rocks’, esses jovens refletem a tremenda
influência que a música norte americana exerce entre nossa
juventude. Não discutiremos se eles trazem qualquer contribuição
à nossa música, se a prejudicam com a invasão de novos ritmos.
Consignamos simplesmente que eles representam o anseio da
mocidade por artistas moços, artistas fotogênicos, que preencham
o ideal cinematográfico de suas aspirações. Por quanto tempo
permanecerão esses jovens em cartaz? Só o tempo pode dizer. No
entanto, agora, constituem uma força. Significam ídolos novos
para a juventude que busca ansiosamente modelos e inspirações
diferentes (A Brotolândia canta, Radiolândia, 340, nov, 60, p. 37).
Entretanto, a segunda metade da década de 50 não foi só um momento
de incubação para o que viria depois: o estouro do rock paulista no inicio
da década de 60, marcado pela proliferação de cantores e bandas jovens
que ocupariam o rádio e a televisão. O que se chamava de rock and roll
nesses primeiros anos é um fenômeno de natureza bastante diversa.
5
Segundo depoimento cedido por Celly Campello a Abraão Berman, dentro do projeto Rock
Paulista dos anos 60 do Museu da Imagem e do Som em 28 de setembro de 1984
283
Rock como dança
Em 57, o rock já é pauta é constante tanto das revistas de rádio quanto
dos jornais de grande circulação. A imprensa se esforçava por compreender o novo fenômeno, estampando as opiniões de especialistas nos
jornais de grande circulação. Jair Alves, célebre representante do baião,
interpretava uma sátira que parecia captar bem o espírito da época. Assim é a letra de Baião Rock:
A America nos mandou
um ritmo singular
dança louca e atraente
que chegou para abafar
por isso digo menina
nao vá ficar maluca
com o tal de rock and roll
verdadeira sinuca
é uma danca esquisita
todo mundo se agita
provoca confusão
ainda acredito em nosso baião
Dança. Esse era o termo mais usado para se caracterizar o rock até fins
dos anos 50. As denominações de gênero e estilo eram raras; quando
muito se falava em ritmo. O canto, portanto, não havia sido alçado ao
topo da hierarquia. Tratava-se, antes, de uma performance em que o corpo se apresentava em sua inteireza, empolgando através de passos inusitados, piruetas e demais malabarismos. Os cantores, quando existiam,
desempenhavam a função de covers e também dançavam.
“Que achas do rock?” perguntava uma leitora da Revista do Rádio a Cauby
Peixoto, o mesmo que gravara Rock and Roll em Copacabana, a primeira
composição do tipo em português. A resposta: “Como dança é interessante pelo seu aspecto acrobático” (Revista do Rádio, 2/8/58, p.36).
284
Entendia-se, portanto, o rock como uma dança de pares extremamente
coreografada que seguia passos e trejeito que necessitavam de aprendizado e prática. É compreensível que academias que já ofereciam aulas de
cha-cha-cha, tango, mambo, salsa, merengue e fox-trot, também incluíssem o rock em seu cardápio.
. (Folha de São Paulo, 09/10/1960, p.23)
Ao Balanço das Horas, que estreava por aqui em dezembro de 56 ajudou
a popularizar o rock enquanto dança. O filme contava com a mesma faixa
consagrada em Sementes de Violência, o grande diferencial, entretanto
era tê-la incorporada ao enredo. Enquanto Bill Halley executava a canção,
pares desfilavam os mais inusitados passos em um salão de baile.
A estreia da fita vinha cercada de uma publicidade que ressaltava seus
efeitos hipnóticos, selvagens e alucinantes. As audiências jovens seriam
as mais afetadas, destruindo cinemas, desacatando a polícia, estourando
o vidro de carros e envolvendo-se em brigas. Seu destino natural parecia
ser a prisão ou o hospital.
De fato, tanto o Rio como São Paulo, presenciaram incidentes nas salas de
cinema, o que resultou na elevação da censura para 18 anos e uma marcação mais cerrada nos eventos de rock na zona sul, o que não chegou a
inviabilizá-los. Nem de longe se produziu o pânico moral que tomara os
Estados Unidos na década de 50, resultando numa cruzada moralizante
contra os filmes, revistas e músicas juvenis.
285
. (Folha da Manhã, 18/12/56, p.8)
Apesar dos discos de Haley terem chegado antes do filme, são os números musicais exibidos no cinema que contribuíram para o vinculo entre
rock e dança. Dentre as várias enquetes realizadas pela Revista do Rádio,
em fevereiro de 57 buscou-se descobrir das celebridades musicais o que
achavam do rock. Registraram-se as mais diversas opiniões: “A música é
igual aos suingues americanos” (Emilinha Borba), “..ainda sou pelo ritmo
contagiante de um samba batucada.. (João Dias), “Ainda sou pelo nosso
frevo, é muito mais saltitante e alegre”, “A dança não conheço, mas a
música é de contagiar a gente” (Olivinha Carvalho) (Revista do Rádio,
16/2/56, p. 11).
Por mais discrepantes que fossem os testemunhos, todos pareciam caminhar no sentido de uma associação entre o rock e a dança. No Rio de
286
Janeiro e em seus arredores formavam-se pequenos grupos conhecidos
como clubes do rock. Todos eles carregavam o nome de seu bairro – clube do rock de Niterói, de são Gonçalo, de Engenho de Dentro. Essas denominações atestavam a natureza de uma associação onde a territorialidade era marcada como signo distintivo.
O mais celebre, e provavelmente o pioneiro, localizava-se em Copacabana. Suas reuniões semanais, realizadas nas tardes de domingo, ocupavam o Copa-Golf, restaurante localizado na orla carioca. O público, extremamente elitizado, era formado de jovens da alta sociedade carioca
que se intitulavam sócios. As habilidades enquanto dançarino determinavam em grande medida o prestigio de cada um junto ao grupo. O auge
da reunião contava com a apresentação do “rei” e da “rainha” no centro
de uma roda. Aos menos habilidosos restava bater palmas, acompanhar
o ritmo com os pés ou ainda jogar golf. O prestigio dentro do grupo, portanto, não era repartido segundo a mesma convenção dos conjuntos de
rock que viriam a seguir, cuja hierarquia já se expressa em nomes como
Renato e seus Blue Caps. Em relação à instrumentação, era composta por
trompete, bateria e o piano: ao invés de banda, falava-se em orquestra. O
foco, definitivamente, repousava sobre os dançarinos.
Seus fundadores, Siegfried Chala e George Mehdi, franceses, defendiam,
no entanto, que o rock que ali se praticava seria uma derivação de suas
jam-sessions de be-bop realizadas ainda antes do sucesso dos filmes juvenis. Explicavam ao repórter do Correio da Manha que o surgimento do
be-bop reclamava uma forma convencional de dança-lo, originaria em
Saint Germain des Près, e é daí que derivaria o rock. “esse ‘ritmo quadrado’ que não serve para ser ouvido, mas para ser dançado. Em poucas
palavra o ‘rock and roll’ não é nada mais, nada menos, que uma associação da música “bop” com o ritmo, música e estilo do ‘boogie-woogie’. ”
(17/2/57, 5º caderno, p.1).
A longa explicação sobre a origem francesa de sua prática social, que em
nada se confundiria com a cultura massiva norte americana, revela um
287
habitus de classe e uma busca por distinção bastante evidente (BOURDIEU, 2007). Na mesma medida em que se ressaltava a inexistência dos
vocais e, portanto, a presença do corpo, a experiência sensorial é despida
de seus componentes catárticas ganhando ares de atividade semi-intelectual e de origem nobre.
Presença assídua nas reuniões do Copa-Golf o jovem Carlos Imperial,
que futuramente se tornaria uma personalidade destacada nos mais diversos veículos midiático, decidira conduzir um segundo Clube do Rock.
A diferença fundamental é que desse participavam em peso os “suburbanos” como eram pejorativamente conhecidos os jovens que não moravam na Zona Sul carioca. Imperial e seu grupo seriam convidados para
diversos números musicais em chanchadas, como De Vento em Popa de
Carlos Manga. Já no inicio do filme vemos coreografias feitas em pares,
muito semelhantes às apresentadas nos filmes de rock, animadas ao som
de um contrabaixo, piano e bateria. Há, portanto, uma semelhança bastante grande com o clima de jam session tal como descrito pelos membros do Copa-Golf. É justamente nos subúrbios que o grupo de Imperial
encontra seu meio de ascensão. Novos clubes de rock multiplicavam-se
nas zonas pouco nobres da cidade. Os salões dos grêmios recreativos
eram os locais onde os dançarinos disputavam a superioridade técnica,
exibindo-se em eventos recheados das mais diversas expressões artísticas.
Rock como espetáculo
Como já citada, a pesquisa de Alcir Lenharo (1995) nos mostra como a
música atravessava os mais diversos espaços como o teatro de revista,
cinema e radio. A performance ao vivo aliada à dimensão de espetáculo
são fundamentais para entendermos a mística desse cenário. O objetivo
era estimular o público se utilizando dos mais diversos meios: esquetes de teatro, concursos, piadas e também números de música e dança.
Os programas de variedades eram os melhores exemplos de que o en-
288
volvimento total dos sentidos, em grande medida, era uma das funções
sociais da música. A lógica dos fait divers que se proliferavam desde o
início do século, dentro e fora dos veículos massivos, mostrava a sua força (SINGER, 2001)6.
O rock nesses primeiros anos, portanto, cativava o público por seu exotismo e novidade. Tomado como dança extremamente coreografada, ainda
que desencorajasse participações espontâneas, atraía olhares curiosos.
“Mesas à venda”, lembrete colado no anuncio de divulgação dos eventos,
dava ideia do papel social reservado à audiência. Exibições e demonstrações eram, portanto, as palavras que melhor descreviam a maneira como
o rock ocupava os salões dos clubes.
Festa das elegantes, Rock na terra de noel, Do Samba ao rock eram alguns
dos eventos que se multiplacavam no bairros da Tijuca, Olaria, Benfica,
Rocha e Quintino Bocaiúva. Nesses locais enfrentavam-se os clubes de
rock, que carregavam o nome de seus bairros. Até o ginásio do Caio Martins, em Niterói, foi palco de um evento desse porte, o Festival do Rock
and Roll ocorrido em abril de 57. Algumas de suas características nos
dão a ideia do quão movimentado era esse circuito.
Patrocinado pela coluna social Luzes da cidade do jornal Última Hora,
bem como pela revista Manchete Fluminense e pela TV Rio, a magnitude do evento impressionava. Sua programação iniciava-se com um duelo
de orquestras que tinha inscritos até de São Paulo, prosseguia com a
apresentação de cantores consagrados do rádio, dentre os quais Blecaute,
e encerrava-se com a apresentação de dezenas de pares que disputavam
a atenção de um júri composto de jornalistas e radialistas. A audiência
chegava a 5 mil pessoas (Ultima hora, 3ª sessão, 05/04/57).
Eventos como esse se multiplicavam na zona norte carioca. A dimensão de um show de variedades era fundamental para compreender a sua
6
Fica claro, portanto, que essa noção não tem qualquer afinidade com o famoso conceito desenvolvido por Guy Debord em Sociedade do Espetáculo.
289
lógica de funcionamento, que comportava apresentações de naturezas
aparentemente discrepantes. Em uma mesma noite era possível ter contato com as mais diversas atrações: dançarinos de tango ou frevo, desfile
de baianas ou de moda, exibições de castanhola, apresentação de sambistas e recitais de piano. A presença de celebridades e vencedoras de
concursos de beleza era uma constante. Aqui, os roquianos não só se exibiam, mas também disputavam prêmios. A atmosfera lembrava bastante
os programas exibidos nos auditórios das rádios.
Nesses eventos, a coexistência aparentemente pacifica entre o rock e as
danças nacionais, não pode, no entanto, nublar a existência de disputas
simbólicas que existiam no cenário musical como um todo. Heitor do
Prazeres e, ironicamente, Nora Ney7 fariam sambas repudiando o rock
e Luiz Alves, o “rei do frevo”, garantia que a dança pernambucana era
“muito mais buliçosa e cem por cento brasileira”, portanto “abdicar do
espírito de nacionalidade em favor de pura imitação exibicionista não
[seria] legitimo nem sincero”. Apesar de tudo, pouco se fazia para conter
a proliferação da nova dança. Era de crença geral que seus dias estavam
contados (Ultima Hora, tablóide, 24/4/57, p.4).
Enquanto isso, a dimensão dó entretenimento chegava a flertar com o cômico, dando ao rock uma grande plasticidade no mundo dos espetáculos.
7
As composições se chamam, respectivamente de Nada de Rock, Rock (Moçada, nosso caso
no Brasil é samba / É um pandeiro, uma mulata e um crioulo com passo de bamba / Um
violão, uma cuíca, uma mulata cheia de missanga / Nada de rock rock, de rock rock / Nós
queremos é samba/ Um samba ritmado bem tocado cheio de remelexo / Uma mulata bem
cestosa requebrando faz cair o queixo / Sabe lá o que é isso?/ Onde tem um bamba,/Nada de
rock rock, de rock rock / Nós queremos é samba ) e Cansei de Rock (Eu ligo o rádio e tome
rock / Vou a boate e tome rock / Vejo filme italiano / Da Lolo ou da Mandano / E tome rock
e tome rock / Compro parte de piano / Entro logo pelo cano / E tome rock e tome rock / É de
amargar, não tem mais jeito / Eu vou me mandar no peito / Lá pra América do rock / Talvez
um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Talvez um samba de gente
bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Compro parte de piano / Entro logo pelo cano
/ E tome rock e tome rock / É de amargar, não tem mais jeito / Eu vou me mandar no peito /
Lá pra América do rock / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o
toque / Talvez um samba de gente bamba / O meu amigo cane-cabalar o toque / Toque cabalado, toque um samba, toque/Toque cabalado, já cansei de rock / Teco, telecoteco, teleco...)
290
Além de ser cantado e dançado pelo humorista e autor de marchinhas
Moacyr Franco, sob o codinome Billy Fontana (PAVÃO, 1982), ocupava os
palcos do teatro de revista servindo de mote para comédias tais como
Vovó e Papai em Rock and roll e Rock and Roll no Carnaval que estreavam no início de 57 no Rio de Janeiro. Sua faceta burlesca chegaria ao
auge quando até um circo resolveu apresentar um número de rock and
roll desempenhado por nada menos que um elefante.
. (Ultima Hora, tabloide,
04/7/57, p.3)
. (Ultima Hora, tabloide,
29/7/57, p.7)
Ainda que houvesse diferenças objetivas entre o que se via nos clubes,
nas revistas e no circo, todas as expressões estavam circunscrita à lógica
do espetáculo e respondiam pela mesma categoria nativa – todas se chamavam rock and roll – o que torna a comparação pertinente.
Radio e TV
Ao mesmo tempo em que participava desses concursos, Imperial buscava oportunidades para crescer no meio televisivo. A simpatia junto ao
apresentador Jaci Campos lhe rendeu um quadro no programa Meio Dia
um show de variedades que contava com receitas culinárias, animais
amestrados, fisiculturismo e números musicais. Os dançarinos do Clube
291
do Rock agora tinham um local para exibir suas acrobacias e dublar os
sucessos dos ídolos norte americanos. Entretanto, não raro sua participação era substituída de ultima hora por um cachorro que fazia acrobacias,
ou algo do gênero, o que atestava que no mercado de espetáculos possuíam o mesmo valor simbólico (MONTEIRO, 2008, p. 27).
Por seus palcos passariam Roberto Carlos e Tim Maia, ainda anônimos.
Sua função se resumiria a dublar sucesso de astros internacionais o que
lhes renderia a alcunha de Elvis Presley e Little Richard brasileiros. Não
seria ai que a carreira dos dois encontraria um rumo. Desiludidos com
o rock, o primeiro gravaria um compacto de bossa nova e o segundo rumaria para os Estados Unidos. O show encerraria suas atividades em 58.
Sua sobrevida efêmera, entretanto, despertara a atenção do antigo disc
jockey Jair de Taumaturgo para o novo ritmo. Veterano do rádio, transportaria para a Mayrink o clima dos bailes do subúrbio. Hoje é dia de
rock é o nome de seu programa radiofônico apresentado a partir de 59,
que promovia disputas entre os grupos, premiando não só os melhores
dançarinos, como também os melhores cantores, leia-se covers, e os melhores mímicos.
Essa ultima categoria, que ainda se repartia em individual ou em conjunto, masculina ou feminina, traduzia-se na imitação dos gestos e trejeitos
do cantor cuja música estava tocando ao fundo. A exibição era extremamente sui generis: enquanto a plateia da emissora tinha acesso ao
espetáculo todo, o público de casa escutava o playback e os berros dos
espectadores (MOTA, 2000). O aspecto teatral, performático e espetacular da empreita ficam evidentes.
Um novo cenário
Já no final da década, o quadro modificava-se. O sucesso de Celly Campello era paradigmático. A jovem de Taubaté, extremamente comedida,
possuía uma performance que transpirava seu habitus feminino e in-
292
teriorano. O adestramento corporal exprimia-se nos vocais suaves, nas
letras extremamente pudicas, no figurino comportado e no desconhecimento absoluto dos passos de dança.
No lugar das agitadas jam-sessions do Clube do Rock, teremos as lentas
melodias, ausentes de conotações raciais ou sexuais, no estilo Paul Anka
e Neil Sedaka, os novos ídolos da juventude norte americana branca e
de classe média. Nesse sentido, o rock estabelecia um contato com uma
tradição de canções melódicas que já faziam sucesso no Brasil durante a
década de 40 e 50; sambas-canções, tangos, boleros, etc (ZAN, 1997).
Tudo isso indicava que o rock and roll sofria um deslocamento; não mais
se tratava de uma dança, mas sim um novo gênero musical, o que explica porque passou a ser tratado cada vez mais dentro das sessões de música popular nos jornais. A dança não desaparece, mas desce dos palcos
e abandona progressivamente os traços acrobáticos e as coreografias.
Em meio a essa reviravolta simbólica, os dançarinos e sua orquestração
acústica são substituídos pelos intérpretes e suas bandas eletrificadas.
As razões comerciais explicam em grande medida a nova configuração:
se as performances acrobáticas só poderiam ser consumidas ao vivo, a
canção oferecia a possibilidade do registro fonográfico, evidenciando
seu potencial mercadológico superior. Aos que queriam se tornar ídolos
das multidões, como Roberto Carlos, o privilégio pelos estúdios de gravação seria a escolha mais sensata.
A indústria cultural entenderia perfeitamente o recado, explorando a
nova música através do radio, cinema, TV e publicações especializadas.
Os astros são consumidos com uma visibilidade até então inédita Estavam dadas as coordenadas para o florescimento da Jovem Guarda. O
rock nunca mais seria o mesmo.
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Estado de São Paulo
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Folha de São Paulo
A Noite
Folha da Manhã
Última Hora
• Revistas
O Cruzeiro
Revista da Semana
Revista do Rádio
Radiolândia
• Sites
Hemeroteca Digital Brasileira - http://hemerotecadigital.bn.br/
295
Bebendo o blues: a bebida
e o cigarro na obra de
Celso Blues Boy
Paulo Celso da Silva
Professor e coordenador do Programa de Mestrado em Comunicação e Cultura da
Universidade de Sorocaba
[email protected]
Resumo
O trabalho analisa a obra do músico carioca Celso Ricardo Furtado de Carvalho (19572012) que escolheu para seu nome artístico o Blues Boy, em homenagem a seu ídolo da
adolescência, Blues Boy King, ou simplesmente, B.B. King. Iniciou sua carreira acompanhando
músicos brasileiros e, a partir dos anos 1980, desenvolveu sua carreira solo com 11 discos
lançados, sendo que o título do último disco, de 2012 foi, Por um monte de Cerveja . O
texto analisa a recorrência do tema bebida – Blues – cigarro, na obra de Celso Blues
Boy, utilizando a metodologia de palavras-tema e palavras-chave, considerando que as
primeiras são utilizadas pelo autor, mas de uso geral e, as segundas, caracterizam o poetamúsico. Isso possibilita compreender as particularidades desse estilo musical no Brasil, o
fazer Blues no Brasil. O trabalho também mostra que a correspondência entre o BluesBebida-cigarro, nem sempre feliz, marcou, além do estilo e a temática, a vida do músico.
296
“Um monte de cerveja, invadindo a minha mesa,
jorrando como fonte, um monte de cerveja”
Celso Blues Boy
Blue Shift1
Reconhecidamente o Blues nasce com os negros escravos norte-americanos trazidos para os campos de algodão no século XIX. Especificamente, no Delta do Rio Yazoo.
A característica mais importante neste estilo de música é a utilização
da escala pentatônica menor acrescentando a, denominada, Blue Notes,
exemplificando temos uma terça menor sobre a tônica e a dominante
(respectivamente 1º e 5º graus da escala. No acorde de Do maior (C) a
Blues Notes é o Mi bemol (E♭) e Si Bemol (B♭), no acorde de Mi Bemol
(E♭) é Sol Bemol (G♭) e Re bemol (D♭). A 5º bemol no acorde de Do (C)
é Sol Bemol (G♭), no de Mi bemol (E♭) é Lá (A)2.
O padrão mais comum é o Blues de 12 compassos, ou seja, a cada 12
compassos completamos cada ciclo da progressão de acordes, exemplificando em Mi (E) temos:
E
A
B
E
A
A
E
E
E
E
E
B
Onde Mi (E) é a tônica ou I grau
Lá (A) é a subdominante ou IV grau e
1
Desvio para o azul: deslocamento do espectro de um corpo celeste para os comprimentos de
onda mais curtos, indicando aproximação.
2
A notação musical utiliza as Letras A-B-C-D-E-F-G para designar respectivamente as notas LA-SI-DO-RE-MI-FA-SOL. O bemol com o símbolo ♭ e sustenido ♯, são alterações nos valores das
notas. Sétimas são grafadas com o número acima 7
297
SI (B) é a dominantes ou V grau. Didaticamente temos 12 compassos com
4 tempos onde podemos contar 1-2-3-4 para cada um.
Também encontramos progressões de Blues de 12 compassos com sétimas
E
A
B
E
A
A
E
A
B
B
E
E
E
E7
E
B7
Ou de 8 compassos:
E
A
EA EB
Acrescentamos a isso o fato de que o blues é caracterizado pelo ritmo,
estilos de solos vocal e instrumental e progressões de acordes. Percebemos imediatamente que definir o estilo por este ou aquele aspecto não é
possível e contraria, por outro lado, que a música nasce como resistência
étnica à tonalidade européia. Conforme aponta Muggiatti (1999:27), “ninguém define melhor o blues do que seus criadores, como o próprio W.C.
Handy: O blues veio do nada, da carência, do desejo. Há letras que dizem
tudo : I love the blues, it hurts so Nice (adoro o blues, ele machuca tão
gostoso)”.
A temática do blues pode ser a mais variada, amor perdido, sexo, diversão,
para dançar e beber, rural ou urbana, denúncia das condições de vida,
automóveis, doença, trem, guitarra, violão. Um exemplo interessante do
já citado blues de 12 compassos, e com um tema beirando a brincadeira,
com sua base em uma frase, repetição e desfecho, pode ser:
I’m going down and lay my head on the rairoad track,
I’m going down and lay my head on the rairoad track,
Whem the trains come along, I’m gonna snatch it back.
298
Neste pequeno verso temos um elemento importante para os negros norte-americanos, o trem. Mais que um novo transporte, representava para
o imaginário a possibilidades de sair da condição de opressão, de vencer
barreiras espaciais e sociais.
Neste artigo, não teríamos espaço suficiente para abordar tudo o que é
necessário e importante no Blues, assim, indicamos alguns textos que
ajudarão o leitor a se aprofundar no assunto. Nossa intenção aqui é falar
do Blues no Brasil, especificamente do carioca Celso Blues e sua produção como compositor e guitarrista, enfim como Bluesman Tupiniquim.
Também a recorrência de temas em sua obra, dos quais destacaremos a
bebida e o cigarro como elementos marcantes da vida-obra do seu autor.
Celso Blues Boy — Biodiscografia — Blue Collar3
Como músico profissional o carioca Celso Ricardo Furtado de Carvalho
(05/01/1956) escolheu para seu nome artístico o Blues Boy em homenagem a seu ídolo da adolescência, Blues Boy King, ou simplesmente, B.B.
King, lendário Bluesman norte-americano. Iniciou sua carreira acompanhando músicos como Raul Seixas, Sá e Guarabira, Luiz Melodia e Renato e seus Blue Caps. Em 1976 fundou o grupo de Blues-Hard-Rock Legião Estrangeira. No ano de 1980 inicia sua carreira solo, um ano depois
desiste de tocar e retoma no ano seguinte, 1982, na coletânea lançada
pela WEA Rock Voador com grupos que tocavam na sala de espetáculo
do Circo Voador. Registra e lança pela mesma gravadora um Compacto
Simples (hoje single) com Fugindo de mim e Sinto Tanta Saudade. Participa do filme Bete Balanço com uma ‘ponta’ na película e na trilha sonora com a canção Blues Motel. Retorna ao cinema em 1985 participando
da trilha sonora do filme Tropclip cantando Tempos Difíceis. Lançou na
década de 1990 a grife Blues Boy com óculos escuros e paletas para guitarra e baixo.
3
operário de produção
299
Do Rio de Janeiro viveu uma temporada na Europa, mas retornou ao Brasil e em 1996 fixou residência em Joinville, local que havia vivido quando
criança. Em 2008 comemorou sua carreira lançando o DVD gravado ao
vivo no Disco Voador (Rio de Janeiro). Retorna ao CD em 2011 com “Por
um monte de cerveja” e, no ano seguinte, falece em 06 de agosto, vitimado por um câncer na garganta que, conforme os amigos mais chegados,
o guitarrista recusava a tratar. Seu corpo foi cremado na mesma cidade.
Em ordem cronológica temos os seguintes registros musicais:
• Fugindo de mim/Sinto Tanta Saudade – WEA
• Som na Guitarra (1984) – Philips 824.151-1
• Marginal Blues (1986) – Philips 826884-1
• Celso Blues Boy 3 (1987) – Philips 832.258-1
• Blues Forever (1988) – Retoque Especial 60.001-B
• Quando a Noite Cai (1989) – Retoque Especial 841.699-1
• Vivo – Celso Blues Boy (1991) – Philips 510.561-1
• Indiana Blues (1996) – Spotlight Records MO63012864-2
• Nuvens Negras Choram (1998) – Velas V20275
• Vagabundo Errante (1999) – Blues Boy Records BBR001
• Quem foi que falou que acabou o rock n’ roll? (2008) (DVD Gravado
ao vivo no Circo Voador) – Distribuidora Go2 Music
• 2011 - Por um monte de cerveja – Penedo Music
300
Conforme destacado em vários blogs e jornais, o primeiro e o último
discos guardam semelhanças tanto dos temas como da produção pois,
como descreveu o próprio Blues Boy4
Foram anos e anos compondo, e quando alguém chegou e disse “agora
você vai gravar seu primeiro Lp”, eu tinha um leque de escolhas
enorme. O que acontece depois? você grava esse primeiro Lp, ele faz
sucesso pra caramba e você começa a tocar, praticamente de quarta a
sábado, no Brasil inteiro. E onde fica o tempo pra compor? A gravadora
exige que você lance, e o que você vai dizer? Não vou lançar? Mas eu
não podia fazer uma obra tão boa quanto a anterior, porque tive anos
pra fazer a primeira, e quanto tempo pra fazer a segunda? Tanto é que
na mídia existe a tal da “síndrome do segundo disco”. Esse processo
durou dos anos 80 até o final dos 90, no Rio. Quando chegou em
2000, 2001, falei: “Peraí, não aguento mais. Quero parar, quero voltar a
compor como compunha, com tempo pra analisar, ver arranjo”. Então
me fechei, tanto pra mídia quanto pra obrigações, pra me recompor
como compositor. Não é que eu fosse mau compositor nas outras
coisas que fiz, mas não era aquilo que eu sabia que poderia extrair.
A temática das canções — Bluely5
Pode-se trabalhar com a análise dos textos poéticos partindo da frequência de certas palavras revelando maior ou menor índice de utilização
delas. Conforme Augusto de Campos6, “..essa preferência do escritor
por algumas palavras é um dado relevante para a interpretação da obra
literária, de particular importância no âmbito da poesia, em virtude da
rarefação da área semântica que nela ocorre, e da conseqüente dificuldade em descrevê-la através de critérios puramente lógicos, da impossibilidade – em suma – de traduzir o poema linearmente em prosa”.
4
HERBST, Rubens. O troco de Celso Blues Boy. Disponível em http://wp.clicrbs.com.br/
orelhada/2011/07/31/o-troco-de-celso-blues-boy/ . Acesso em 13.08.2013.
5
De tom azul
6
CAMPOS, Augusto. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985, págs..51-56
301
Dessa forma, podemos dividir as palavras em: palavras-tema e palavras-chave. Sendo que a primeira são aquelas mais empregadas pelo autor e
não tem traços específicos por serem de uso comum; as segundas são
palavras características do autor7. Não é nosso propósito ou a pretensão
aqui de um estudo dessa natureza. Mas mesmo assim, cremos necessário indicar as palavras e os temas de maior freqüência nas canções de
Celso Blues Boy para podermos demonstrar aquilo que é específico no
fazer Blues no Brasil.
Analisando a temática de Celso Blues Boy em seus onze discos lançados nos últimos trinta anos, vemos que, para o primeiro disco – Som na
Guitarra de 1984 – a opção foi para guitarras, bebida e cigarros, o próprio
blues, temas sociais e amor. O carro chefe do disco de estréia é a canção
Aumenta que isso aí é Rock and Roll, naquele ano, sucesso nas rádios
cariocas. O disco é composto de 9 canções e um encarte onde o autor
explica:
Não esperem de mim mais um disco pasteurizado. Este primeiro
PL procura retratar o sabor existencial de uma geração que luta
pela verdade, no amor, nas artes, no destino do mundo. Este disco
é um pedaço de mim, de minha arte. Uma forma de participar
com uma cota de verdade de tudo que está acontecendo por aí.
No encarte, com as letras das canções ainda encontramos, ao estilo dos
músicos independentes, a ficha técnica dos equipamentos utilizados, uma
forma de dizer aos ouvintes que está mesmo tocando e os únicos efeitos
utilizados são os pedais, com destaque para os de efeito Wah Wah e as
guitarras da marca Fender modelos Stratocaster e Telecaster, uma espécie de marca registrada do músico. Apenas para ilustrar esse dado, existe
uma certa preferência entre os guitarristas da sonoridade das marcas
norte-americanas Fender e Gibson, normalmente fazem suas escolha por
uma ou outra marca, alguns chegando ao exagero de não tocar se não
7
CAMPOS, Augusto. ReVisão de Kilkerry. São Paulo: Brasiliense, 1985, pág..52
302
tiverem a sua preferida, como é o caso de Arnaldo Dias Baptista, ex-Mutantes, e sua conhecida ficção pelas Gibson e amplificadores valvulados.
Para Marginal Blues (1986), segundo disco, a parceria com Cazuza, então conhecido e sucesso como letrista cantor do grupo Barão Vermelho,
inclusive com participação no Rock in Rio, tem a canção Marginal abrindo o LP com uma temática social, contudo a predominância é o amor,
aparecendo em seis ocasiões, além de cigarros e bebidas, cidade com
incidências. Em ordem cronológica temos a predominância dos temas
pelos LPs e CDs:
• Quando a noite cai (1989) – amor (6), blues (2), bebida, morte e destino (1);
• Indiana Blues (1996) – amor (5), cigarro (2), noite, bebida e liberdade
(1);
• Nuvens Negras choram (1998) – amor (5), cigarro (2), bebida, mulher
anjos (1);
• Vagabundo Errante (1999) – amor (2), trem, saudades, social, cigarro,
bebidas e blues (1).
• Por um monte de cerveja (2011) – Bebida, Morte, Blues(4), amor, solidão (3), cigarro e cidade(2), carro, mar, rock, viagens(1)
• Blues Forever (1988) e Vivo (1991) – são Cds de covers e hits, respectivamente. Destacando em Blues Forever uma seleção que começa
com Willie Dixon passando por Lennon & McCartney, Stones, Bob
Dylan e terminando com J.J. Cale na nona canção, demonstrando
o ecletismo e as possibilidades da interpretação no estilo Blues do
músico. Vivo destaca a interpretação de Aquarela do Brasil de Ary
Barroso com arranjos e guitarra de Blues Boy terminando com uma
canção incidental, Até a Próxima, Blues. 303
Assim, baseando-se na metodologia de Guiraud, podemos dizer que as
palavras-tema de Celso Blues Boy são amor, bebida e cigarro mesmo
aparecendo em contextos diversos como na canção Fumando na Escuridão do primeiro LP (1984):
Expresso da noite
Na estação/ Mas com esse trem Meu coração/ Luzes
da cidade Ficam pra traz/ Não há ninguém
nesse maldito vagão/ Eu
continuo fumando na escuridão/ Expresso da noite/ O que você me
arrumou?/ Que roupa eu fui?/ Agora tenho que esperar/ Até a outra
estação/Na solidão/
Aqui nesse trem
só a o teto e o chão/ É trem!
Do segundo Lp, Marginal Blues (1986) podemos destacar a canção Dry
Blue Gyn que mistura a atmosfera das blues notes, solos de guitarra, bebida e desilusão amorosa. Um “oh senhor” relembra “Oh lord” americano:
Teias de aranha nos cantos/ Luzes desbotadas/ Mulheres sorrindo/ E
homens bebendo/ Quando eu penso em você/ Quando eu caio em
mim/ Oh ddry blues gyn/ Oh Senhor me dê/ Uma guitarra pra tocar/
Algum vinho vagabundo/ Eu nada tenho pra sonhar/ Dry blues gyn.
Em Celso Blues Boy 3, a canção damas da noite demarcava o território
predileto dos bluesman, a mesa do bar acompanhados das personagens
noturnas e regados com copo de uísque e cigarros. Comemorando algo
inexistente, a noite etílica tem tons vermelhos e azuis. Amanhã, diferente,
tudo se repete:
Homens perdidos/ Procurando alguém/ Se esgueiram nas calçadas/
Alucinados por prazer/ A noite chega e ela vem/ Não se sabe
de onde vem/ Universo enevoado/ Tão negro quanto um blues/
Apenas sombras solitárias/ A procura de uma luz/ Miragem no
deserto/ Vermelho coração/ São as damas da noite/ São as damas
da noite/ São as damas da noite/ Com quem fugimos da solidão/
Contando histórias tristes/ Na mesa de um bar/ Entre um trago
de uísque/ E o retoque no batom/ Eu e você longe de casa/ Sem
jamais poder voltar/ Eu quero taças erguidas/ Essa mesa é o nosso
lar/ Eu quero taças erguidas/ Essa mesa é o nosso lar/ Miragem no
304
deserto/ Vermelho coração/ São as damas da noite/ São as damas
da noite/ São as damas da noite/ Com quem fugimos da solidão.
O final da década de 1990 fecha com o LP Quando a noite cai (1989). A
canção Musa da Perdição retrata ainda a tríade bebida-mulher-solidão:
Simples presa indefesa,
ela não era não/ E quando ela disse que tinha
e mostrava um pecado à mais/ Duas pernas que eu não sei aonde,
ela foi arrumar/ E com aquele olhar de deboche na cara
se arrastava
pra mim/ Me chamou e Me chamou e pediu
uma champagne
suave/ E brincando bridou a nossa velha amizade/ Eu pensei com
meus botões
Isso pode não dar em nada/ Ele se estende errada/ E
fez amor em grupo/ Aquele lá de casa/ Ah ela se estende errada.
Negras Nuvens Choram, que nomeia o CD de 1998 fecha o Blues de Celso no século XX. Passaria uma década para o novo e derradeiro trabalho
do guitarrista/cantor. Destacamos a canção que intitula álbum, com a
temática do amor : Quero confessar/ Que o amor é uma lição/ Estúpida
e Cruel/ Mas é inútil avisar/ Que essa dor/Não compensa/Só o tempo
irá mostrar/Que terás o coração/Onde nuvens negras choram/.
Já em seu último trabalho, Por um monte de Cerveja (2011), provavelmente em decorrência de seu estado de saúde que, se ele não sabia do câncer,
tudo leva a crer que intuía algo diferente, os temas ficaram mais sombrios mas, ainda assim, o bom humor prevalecia nas conversas, Blues
Boy afirmava para todos que “a cerveja me salvou do alcoolismo”. Na
canção ‘A vida faz mal a saúde’, o tema da bebida, comida, cigarro estão
presentes ironizando a vida mais regrada de algumas pessoas, vida que
ele não aceitaria para si. Diz a canção:
Acho que a vida faz mal a saúde,/É o que me leva a crer/ Até que
não é difícil de se entender/ Beba água, abandone a cerveja, /Carne
vermelha e cigarro não dá /Seja um bom cordeiro e aos cem anos
chegará /Quero viver cem anos pra quê/ Se tenho muito mais o que
fazer/ Eu não vou, eu não vou mudar / Não vai dar, o tédio iria me
matar/ Sei que a vida faz mal a saúde/E a saúde fará mal a você/
305
Esqueça o guia de sobrevivência você pode crer/ Isso nem é jeito
de viver, / Que se dane tanta precaução/ Pois mesmo tendo saúde
um dia desses você vai pro chão/ Quero viver cem anos pra que Se
tenho muito mais o que fazer/Eu não vou, eu não vou mudar/ Não
vai dar, o tédio iria me matar/ Dizem que há outra vida no além/ E
isso até me faria um gosto/ Outra existência sem nada de imposto
ou proibição/ Isso nem é jeito de se viver / Que se dane tanta
precaução/ Pois mesmo tendo saúde um dia desses você vai pro chão/
Quero viver cem anos pra quê/ Se tenho muito mais o que fazer/
Eu não vou, eu não vou mudar/ Não vai dar, o tédio iria me matar.
Vinho vermelho é sintomática da situação de saúde de Celso Blues Boy,
depois da desilusão o pedido é para ir onde possa ter paz, que tanto pode
ser um pedido à morte, como um pedido para que o vinho o leve para
um estado inconsciente:
Vinho vermelho igual os meus olhos/ Que só refletem ilusão/ A
liberdade é uma corrente/ Que sem você me prende ao chão/ Destino
amargo e indigente/ Eu rogo ao fogo e ao trovão/ Que você quebre
o feitiço/ Que arrebente os elos da prisão/ Vinho vermelho/
Vinho
vermelho/
Vinho vermelho/ Me leve para onde eu tenha paz...
Os exemplos utilizados aqui podem dar uma ideia da relação bebida-cigarro-blues como palavras-tema da produção de Celso Blues Boy, contudo demandariam um estudo muito mais aprofundado, pois é uma
temática que exige mais análises, inclusive relacionando a vida e obra.
Entretanto, já temos “pistas” para refletir a possibilidade do fazer Blues
em língua portuguesa e as temáticas aqui desenvolvidas.
Blue Peter8
Observando e, principalmente, ouvindo o Blues produzido na América
do Norte vemos que a temática das canções, assim como as palavras-tema e palavras-chave são, evidentemente, distintas daquelas ouvidas
8
Sinal (bandeira) de partida
306
no Brasil. Conforme analisa Postali, “o reconhecimento do blues como
cultura norte-americana parecia ser algo impossível aos afro-estadunidenses.. A partir da década de 1960... o interesse da população em consumir essa musicalidade, fizeram com que os estadunidenses tomassem
conhecimento de sua própria cultura” (2011, p. 166-7)
Como afirma outro bluesman brasileiro, o guitarrista paulista, André
Christovam: “Não acho que estou sendo ,mais um músico de blues e sim
um músico bluesy. É uma carga muito pesada ser um bluesman branco
nascido em Santa Cecília (SP)...”9 mostrando a dificuldade do músico
neste estilo no Brasil, apesar de ser, ao mesmo tempo e tanto quanto o
rock, um estilo musical universal.
A classe média branca brasileira, na qual Celso Blues Boy se desenvolveu,
não poderia - e talvez nem deva – aventurar-se pelos temas que deram
origem ao Blues, o sofrimento de um povo desterritorializado, lutando
para garantir um mínimo de dignidade em uma sociedade com uma
parcela de sua população conservadora e racista, como a encontrada pelos músicos norte-americanos. É o que Beltrão classifica como cultura
popular onde o essencial dessa definição está na tensão sempre presente
com a cultura dos dominadores (POSTALI, 2011, p. 47). Contudo, essa relação conflituoso, não pode ser vista linearmente, mas de forma que um
interfere e influencia a outra.
O Blues, música de resistência em sua forma, temas, modo de tocar/cantar e no contexto em que se desenvolveu, demonstra que Estética e Ética
andam juntas e não devem ser analisadas e refletidas individualmente.
Finalizando, a canção do último álbum de Celso Blues Boy, ‘Ele sabia
que as luzes se apagam’, deixa a mensagem, talvez mesmo de amor, para
os bluesman:
9
MUGGIATI, Roberto. Blues – da lama à fama. 3ª edição, Rio de Janeiro: Editora 34, 1999, pág.
199
307
Ao cair não encontrou quem lhe tivesse piedade/ Na última noite que
sofreu/ Caminhava despercebido como um manto maltrapilho
Pelas
luzes de neon do centro da cidade/ Ele sabia que as luzes se apagam/
Mas depois disso nem lhe deram a mão/ Esquecido por tudo e por
todos o velho se foi
Partiu com dor no coração/ O Velho homem
abandonado nas esquinas do pecado/ Como se fosse a sombra das
suas canções/ Ao cair não encontrou quem lhe tivesse piedade/ Na
última noite que sofreu/ Caminhava despercebido como um manto
maltrapilho/ Pelas luzes de neon do centro da cidade/ Ele sabia que as
luzes se apagam/ Mas depois disso nem lhe deram a mão/ Esquecido
por tudo e por todos o velho se foi/ Partiu com dor no coração.
Guarde este abraço
No coração do Blues
Celso Blues Boy - 1984
Referências – Bluethroat10
ALBIN, Ricardo Cravo. Dicionário Houaiss
Ilustrado Música Popular Brasileira Criação e Supervisão Geral Ricardo
Cravo Albin. Rio de Janeiro: Instituto
Antônio Houaiss, Instituto Cultural
Cravo Albin e Editora Paracatu, 2006.
também disponível em http://www.
dicionariompb.com.br/celso-blues-boy/
dados-artisticos . Acesso em 10.08.2013.
BLASCO, Arturo. ESCALAS PARA GUITARRA.
Barcelona: Music Distribución, 2002.
CAMPOS, Augusto. REVISÃO DE KILKERRY.
São Paulo: Brasiliense, 1985
CAZNOK, Yara Borges. MÚSICA.
ENTRE O AUDÍVEL E O VISÍVEL.
10 Espécie de rouxinol, de peito azul (Luscinia
suecica).
São Paulo:Unesp, 2003.
ENCICLOPEDIA DO ROCK, DE A à
Z. São Paulo:Somtrês, 1984.
ENCYCLOPEDIA OF JAZZ IMPROVISATIONS.
6 GREAT BOOKS IN ONE FOR ALL BASS
CLEF INSTRUMENTS. Charles Colin,
315 W.53rd St., New York, NY 1978.
HERBST, Rubens. O troco de Celso Blues
Boy in disponível em http://wp.clicrbs.
com.br/orelhada/2011/07/31/o-troco-decelso-blues-boy/ . Acesso em 13.08.2013.
MUGGIATI, Roberto. BLUES – DA
LAMA À FAMA. 3ª edição, Rio
de Janeiro: Editora 34, 1999.
MUGGIATI, Roberto. ROCK. O GRITO E
O MITO. Petrópolis:Vozes, 1981.
POSTALI, Thífani. Blues e Hip Hop . Uma
perspectiva folckcomunicacional.
São Paulo: Paco/EDUNISO, 2011.
• LPs, CDs e DVD de Celso Blues Boy
Fugindo de mim/Sinto Tanta
Saudade (1983) – WEA
Caminhando/ E Eu disse Adeus (1983) WEA
Som na Guitarra (1984) – Philips 824.151-1
308
Marginal Blues (1986) – Philips 826884-1
Celso Blues Boy 3 (1987) – Philips 832.258-1
Blues Forever (1988) – Retoque
Especial 60.001-B
Quando a Noite Cai (1989) – Retoque
Especial 841.699-1
Vivo – Celso Blues Boy (1991) –
Philips 510.561-1
Indiana Blues (1996) – Spotlight
Records MO63012864-2
Nuvens Negras Choram
(1998) – Velas V20275
Vagabundo Errante (1999) – Blues
Boy Records BBR001
Quem foi que falou que acabou o rock n’ roll?
(2008) (DVD Gravado ao vivo no Circo
Voador) – Distribuidora Go2 Music
Por um monte de cerveja (2011) Penedo Music - AA 1000
309
“O mundo não para de girar”
— a juventude roqueira dos
anos de 1980 e suas relações
com as bebidas alcoólicas
Gustavo dos Santos Prado
Doutorando e Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo
[email protected]
Resumo
Uma grande parcela das composições de rock nacional da década de 1980, trazem em seu
bojo uma trama cultural complexa, resultado das aspirações que vários jovens artistas tiveram
e que foram experienciadas em um dado cotidiano urbano. Assim, é comum as músicas
abordarem temáticas que polarizavam a atenção dos jovens, tais como relacionamentos,
festas, relações familiares, dentre várias. Diante desse universo de temáticas, que já foram
relativamente exploradas na esfera acadêmica, a comunicação em questão, visa abordar
as formas que, uma parcela do movimento roqueiro da década de 1980, representaram
em suas composições, as suas relações com as bebidas alcoólicas. O resultado desse
envolvimento permite que problematizemos a relação do jovem consigo mesmo, bem
como com seu cotidiano vivido. Para tanto, foram trazidas para análise cinco canções,
de grupos e artistas diversos, que fizeram parte do movimento musical em questão.
Palavras–chave
rock, juventude, álcool.
310
Introdução
O rock nacional da década de 1980 emerge no cenário acadêmico, demonstrando-se fértil para inúmeras análises e reflexões.1 Tal característica, assim se coloca, pois os artistas que seguiram esse universo cultural,
colocaram em suas composições, diversos dilemas e conflitos que foram
vividos em um dado cotidiano urbano. 2
O movimento roqueiro dos anos 80 foi resultado de uma trama complexa, que envolvera um período no qual o direito a liberdade política, foi
sendo reconquistado de forma gradativa. Naquele momento, uma parcela da juventude3, após uma “longa transição” (KINZO, 2001, s.p.) para
o regime democrático, possuiu maior possiblidade de manifestação, se
comparada aos jovens de anos anteriores.
Nota-se assim que, o quadro político denotava protesto, reinvindicação
e luta por liberdade de expressão. Outrora, esse engajamento político foi
obrigado a conviver com anos de recessão econômica, que possuiu sua
gênese com o choque mundial do petróleo de 19734 e que foi agravada
com a política econômica do governo Sarney, que visava, sem sucesso, a
contenção da bolha inflacionária. Assim,
1
Não é possível detectar aspectos de determinadas épocas no nível do seu “sentir” senão pela
arte e mais precisamente pela música. Não há vestígio histórico mais envolvente, ainda que
não raras vezes mais imperceptível, enquanto conceitualidade, do que a música em determinados períodos (WISNIK; SQUEFF, 1982, p. 15).
2
A vida cotidiana é também vista como um espaço onde o acaso, o inesperado, o prazer profundo de repente descoberto em um dia qualquer eleva os homens dessa cotidianidade, retornando a ela de forma modificada. É um palco de insurreição, já que nele atravessam informações, buscas, trocas, que fermentam sua transformação. (CARVALHO; NETTO, 1996, p. 14)
3
A juventude, nesse artigo, é vista como uma etapa de transição, sendo seus marcos delimitadores de difícil interpretação. Nesse ínterim, reconhecemos que tal etapa de vida está em
simbiose com a transição e passagem, aproximando – se assim, das proposições de Abramo
(1994).
4
A manutenção do crescimento econômico a taxas históricas durante o período só foi possível
com o recurso ao endividamento externo, que retardou o ajuste da economia à nova situação
internacional. (CARNEIRO, 1991, p. 9)
311
Entre 1985 e 1989, a política econômica do governo Sarney passou
por diversas reviravoltas, com planos e choques heterodoxos e
retornos ao “feijão com arroz” ortodoxo, oscilando entre o maciço
apoio da população e a total perda de credibilidade. Nesse
período, a inflação multiplicou-se por quatro, chegando a 1.000%
ao ano, e às portas da hiperinflação. (ALMEIDA, 2011, p. 68)
Enquanto movimento cultural, o rock traz em seu bojo, uma interação
complexa de diversas sonoridades, espacialidades e temáticas, resultado
e resultante de uma trama que possui a “circularidade” (BAKTHIN, 1993)
desde sua gênese, pois a “origem do ritmo nasceu do jazz, do country, do
blues e da miscigenação étnica de seus elementos.” (RAMOS, 2009, p. 8)
Com isso, nota-se que, uma parcela significativa das bandas de rock, dos
anos 80, receberam influências do punk britânico, em suas melodias, poesias e comportamento, com destaque a formação de bandas de garagem5,
bem como ao lema “do it yourself”. (faça você mesmo). Assim, iniciaram
suas trajetórias artísticas, compondo suas letras e melodias, montando
sua banda e fazendo o seu som. (OLIVERIA, 2007, p. 19-59). Portanto,
[...] eram grupos de jovens descontentes com o estado geral
das coisas, num leque amplo e difuso, que vai das alternativas
de lazer às perspectivas profissionais, às normas sociais, à
situação do país e com um anseio por agitação. Esses jovens
encontraram, no ideário punk, uma maneira de atuar, algo em
torno do qual estruturar uma divisão genuína, intensa, que
fornecesse ao mesmo tempo uma identidade singular e uma
forma de expressar a insatisfação. (ABRAMO, 1994, p. 93)
5
[...] uma boa parte das bandas de garagem constituem-se em torno de identidades dissidentes,
como se sua experiência refletisse tensões, contradições e contestações em relação à cultura
dominante ou aos modos esvaziados de significado. Nesses sentidos, os nomes das bandas
acabam por metaforizar identidades. A metáfora é a base semântica que permite criar uma
identidade. O meu nome é metáfora do meu corpo, de modo que o nome de uma banda é o
que permite ser identificada. As bandas jogam com nomes da mesma forma que os estilos
(visuais ou sonoros), também eles elementos de identificação que ajudam a recriar tendências
estéticas-musicais em um malabarismo de criatividade orientado para o prazer e o arranjo
musical. (PAIS, 2006, p. 32)
312
Nesse leque de possibilidades de análise temática, trouxemos à baila,
as formas que, os grupos de rock daquele momento, representaram6 em
suas composições, as relações com as bebidas alcoólicas. Para tanto, algumas perguntas devem ser realizadas: Qual a simbologia dada à esse
tipo de bebida por tais grupos? De que forma o álcool foi representado
nas canções? Em quais eventos cotidianos o álcool se fez presente? Que
relações culturais podemos problematizar a partir da relação jovem, rock
e bebida alcóolica?.
Para dar cabo das perguntas elencadas, o texto segue com a análise de
cinco canções, de grupos e artistas diversos, que chamaram à atenção
do mercado fonográfico daquele momento.7 Ainda, tal como exige o documento sonoro, procede-se com um diálogo inter-multi e transdisciplinar, em especial com a semiótica, enfatizando que, não há pretensão de
fazer uma análise essencialmente musicológica.8 Ao final, chegaremos
à alguns apontamentos conclusivos, frente a importante temática elencada, pois, o álcool “abre a ordem dos possíveis, alivia coerções sociais e
propícia que se passe dos atos”. (MAFESSOLI, 1985, p. 142.)
6
Segundo Chartier (1990, p. 17) “As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses dos grupos que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento
dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.”
7
Para ver mais sobre o funcionamento do mercado fonográfico daquele momento: Dias (2000);
Brandini (2004).
8
Ocorre, no entanto, que, por ter como objeto todo e qualquer tipo de mensagem, todo e qualquer tipo de produção de sentido ou de não sentido, de transmissão de informação e de processo interpretativo de qualquer espécie que seja, a semiótica acaba tendo, por sua própria
natureza, um caráter híbrido, sendo ao mesmo tempo uma especialidade e um campo de conexão entre disciplinas, do que decorre sua inter, multi e transdiciplinaridade. (SANTANELLA,
1998, p. 24-25)
313
A juventude roqueira dos anos de 1980 e suas
relações com as bebida alcoólicas.
As canções de rock nacional, dos anos de 1980, trouxeram inúmeras representações de bebidas
alcoólicas. Em grande medida, essas, supostamente, trariam para o sujeito expresso na poética,
um “ar desinibido”, aventureiro e conquistador. Visava assim, consumar os seus desejos emocionais e subjetivos9, rumo à felicidade entre os pares:
Mais uma dose?
É claro que eu estou a fim
A noite nunca tem fim
Por que que a gente é assim?
Agora fica comigo
E vê se não desgruda de mim
Vê se ao menos me engole
Mas não me mastiga assim
Canibais de nós mesmos
Antes que a terra nos coma
Cem gramas, sem dramas
Por que que a gente é assim?
Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim
A noite nunca tem fim
Baby, por que a gente é assim?
Você tem exatamente
Três mil horas pra parar de me beijar
Hum, meu bem, você tem tudo
Pra me conquistar
9
[...] tematizar a subjetividade permite problematizar a noção de sujeito universal, unilateral,
isolável, emergindo a centralidade nos processos de diferenciação e na possibilidade de construção singular da existência nas configurações assumidas pelas apreensões que os sujeitos
fazem de si mesmo e do mundo [...] A emergência de subjetividades plurais, livre do julgo
do sujeito abstrato e universal, além de libertar as dicotomias como branco/preto, homem/
mulher, cultura/ natureza, igualdade/diferença, onde toda a posicionalidade está aberta a
mudança no processo de desconstrução e devir social. (MATOS, 2005, p. 27-28).
314
Você tem exatamente
Um segundo pra aprender a me amar
Você tem a vida inteira
Pra me devorar
Pra me devorar!
Mais uma dose?
É claro que eu tô a fim
A noite nunca tem fim
Por que a gente é assim?10
Iniciada por uma melodia11 vagarosa e tensa, o narrador entoa a letra
de forma lenta e arrastada.12 Com ela, o sujeito procura reiterar o desejo
de consumar sua relação, sendo que, o consumo da bebida, seria crucial
para um prolongamento do momento vivido: “Mais uma dose?/ É claro
que eu estou afim/ A noite nunca tem fim/ Por que a gente é assim?/ Agora fica comigo/ E vê se não desgruda de mim/ Vê se ao menos me engole/
Não me mastigue assim/”.
Posteriormente, o andamento13 da canção, passa a ficar mais rápido e
intenso. Assim, o narrador projetou sua relação de forma intensa, forte e
prazerosa, indicando que, seus objetivos iniciais haviam tido o resultado
esperado: “Canibais de nós mesmos/ Antes que a terra nos coma/ Cem
gramas, sem dramas/ Por que a gente é assim?/.
10 Barão Vermelho. Por que a gente é assim?. Álbum: Maior Abandonado. Som Livre, 1984.
11 De forma genérica, certa sequência de notas organizadas sobre uma estrutura rítmica que
encerra algum sentido musical (DOURADO, 2004, p. 200).
12 A reflexão sobre música remete-nos também aos jogos do simbólico, na medida em que, por
intermédio dos símbolos, tomamos o mundo e a nós próprios como objeto de significação. O
discurso musical é, assim, algo que cabe na categoria dos símbolos: notas, pausas, regras, leis,
sistemas, todos códigos repertoriados em uma cultura (SEKEFF, 1998, p. 34).
13 Indicativo de tempo e/ou de caráter, determina como a peça ou trecho devem ser executados
(DOURADO, 2004, p. 26).
315
Modificando a postura melódica inicial, a música passa a se constituir
mais alegre e felicita. Tal quadro, assim se fez, pois o narrador sentiu
que, poderia ter a pessoa desejada, por um período mais longo. Logrando
êxito em suas sentimentalidades, o sujeito expressou uma poética carregada de prognóstico de futuro: “ Você tem exatamente/ Três mil horas pra
parar de me beijar/ Hum, meu bem, você tem tudo/ Pra me conquistar/
Você tem exatamente/ Um segundo pra apreender a me amar/ Você tem
a vida inteira/ Pra me devorar/ Pra me devorar/”.
Tal desejo, de acordo com a poética, só foi correspondido à partir de uma
aproximação que foi possibilitada pelo consumo de álcool.14 Assim, nota-se que, as relações com as drogas, em especial com o álcool, deve ser
compreendida de uma forma dinâmica, tendo em vista que a motivação
para o consumo modifica-se no decorrer do tempo e da cultura. ( CUSTÓDIO,2009, p. 27)
Dentro do universo cultural do rock, não foi incomum encontrar canções
que procuraram associar o consumo de álcool a festas e diversão. Assim,
o consumo de bebidas levaria o jovem representado a um “escapismo”
do cotidiano, trazendo assim, outras interpretações diante do assunto
abordado até então:
Depois de duas ou três garrafas
às vezes eu fico tonto,
é que o mundo não para de girar
nem de transladar!
O álcool aumenta a minha sensibilidade
e eu começo a perceber
que o mundo não para de girar!
Ainda bem que eu não sou
nenhum lunático
pois ficar bêbado na lua
14 Nesse contexto, o amor moderno se desenvolve como código de comunicação capaz de mediar o intercâmbio
entre duas pessoas muito exclusivas e que manipulam dois mundos de significados singulares, recortados de
maneira extremamente individualizada. (COSTA, 2005, p. 120)
316
deve ser bem pior!
Pois a lua gira em torno da Terra
que gira sobre si mesma
que gira em torno do Sol
e ainda tem o movimento de precessão
que a lua faz em seu próprio eixo!
O mundo não para de girar
por isso eu estou tonto!15
Marcada por uma melodia rápida e aguçada, o sujeito expresso na poética, passa a declamar os “benefícios” que o consumo de álcool, traria
para sua existencialidade. Em um cotidiano rápido, moderno e virulento,
para o adstrito, seria necessário a ingestão de álcool, pois, somente assim,
entraria em compasso com o mundo ao seu entorno:16 “Depois de duas
ou três garrafas/ às vezes eu fico tonto/ é que o mundo não para de girar/
nem de transladar!/ O álcool aumenta a minha sensibilidade/ e eu começo a perceber/ que o mundo não para de girar!”.
Mantendo a melodia inicial, o adstrito passou a representar o efeito que
o álcool gerou no organismo bem como em seu momento vivido. Sua
suposta “embriaguez”, emerge como um caminho à ser seguido, frente à
busca de uma dada visão de mundo, que apareceu em constante mutação. Com esse intuito, o narrador procurou situar e intervir em seu cotidiano: “Ainda bem que eu não sou nenhum lunático/ Pois ficar bêbado na
Lua/ Deve ser bem pior!/ Pois a Lua gira em torno da Terra/ Que gira em
torno de si mesma/ Que gira em torno do Sol/ E ainda tem o movimento
de precessão/ Que a lua faz em seu próprio eixo/ O mundo não para de
15 Garotos Podres. O mundo não para de girar. Live in Rio. Gravadora Independente, 2001.
16 [...] o ser moderno é viver uma vida de paradoxos e contradições. E sentir-se fortalecido pelas
imensas organizações burocráticas que detém o poder de controlar e frequentemente destruir
comunidades, valores e vidas; e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas forças, a lutar
para mudar o seu mundo transformando em nosso mundo [...] e ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas possibilidades de experiências e aventuras aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar
e conservar algo real, ainda em quanto tudo em volta se desfaz. (BERMAN, 1986, p. 12).
317
girar/ Por isso eu estou tonto”. Como pontou Mafessoli (1985 p. 141), o “álcool permite uma circulação de palavras e de corpo que lhe asseguram
sua carga simbólica”.
Em outras composições, a junção/reflexão álcool - festa, ao invés de fortalecer as convicções do indivíduo, traz as aflições provenientes de tal
binômio. Com isso, a alegria e felicidade, cederam espaço para outras
subjetividades e sensibilidades:
A vida até parece uma festa,
Em certas horas isso é o que nos resta.
Não se esquece o preço que ela cobra,
Em certas horas isso é o que nos sobra.
Ficar frágil feito uma criança,
Só por medo ou por insegurança.
Ficar bem ou mal acompanhado,
Não importa se der tudo errado.
Às vezes qualquer um faz qualquer coisa
Por sexo, drogas e diversão.
Tudo isso às vezes só aumenta
A angústia e a insatisfação.
Às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool
Atrás de distração.
Nada disso às vezes diminui
A dor e a solidão.
Tudo isso, às vezes tudo é fútil,
Ficar ébrio atrás de diversão.
Nada disso, às vezes nada importa,
Ficar sóbrio não é solução.
Diversão é solução sim,
Diversão é solução prá mim.
Diversão é solução sim,
Diversão é solução prá mim.
Diversão é solução sim,
318
Diversão é solução prá mim.
Diversão!
Diversão!17
A melodia alegre e festiva, mescla-se ���������������������������������
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momentos de relativa tensividade.18 Tal quadro, assim se fez, pois o narrador encara a festa e seus desdobramentos, como um grande paradoxo. Afinal, festa e diversão, não
carregam em seu bojo, somente, alegria e felicidade, pois, traria à tona
algumas dificuldades inerentes ao momento vivido: “A vida até parece
uma festa/ Em certas horas é o que nos resta/ Não se esquece o preço que
ela cobra/ Em certas horas isso é o que nos sobra/ Fica frágil feito uma
criança/ Só por medo ou por insegurança/ Ficar bem ou mal acompanhado/ Não importa se der tudo errado/” .
Tentando uma fuga, frente as dificuldades vividas, o sujeito expresso na
poética, passou a pontuar em seu discurso, sua relação com o álcool. Diferentemente de outras canções, a bebida não foi vista, somente, como
sinônimo de felicidade. Pelo contrário, a diversão cedeu espaço para a
tristeza, angústia e infelicidade, aumentando a tensividade da trama exposta: “Às vezes qualquer um faz qualquer coisa/ Por sexo, drogas e diversão/ Tudo isso às vezes só aumenta/ A angústia e a insatisfação/ Às
vezes qualquer um enche a cabeça de álcool/ Atrás de distração/ Nada
disso às vezes diminui/ A dor e a Solidão/ Tudo isso, às vezes tudo é fútil/
Ficar ébrio atrás de diversão/ Nada disso, às vezes nada importa/ Ficar
sóbrio não é a solução/”.
Com essa tensão cotidiana, o narrador sintetiza seu momento vivido: “Diversão é solução sim/ Diversão é solução prá mim.”. Dai então, a diversão
não seria sinônimo de festas, prazer e hedonismo. Pelo contrário, em seu
17 Titãs. Diversão. Álbum: Jesus não tem dente no país de banguelas. WEA, 1987.
18 Alimentada por um repertório sociocultural, ela (a melodia) diz respeito ao ritmo sentimental, característico de cada indivíduo, estrutura particular de respostas emocionais. E como
participa das bases fisiológicas da gênese das emoções, a experiência melódica acaba por
colaborar na mediatização das emoções. (SEKEFF, 2009, p. 115)
319
universo, traz inúmeras dificuldades vividas pelo sujeito em sua esfera
subjetiva. Assim, poder ser notado que:
a experiência do sujeito contemporâneo seria então marcada
pela necessidade de lidar ao mesmo tempo com o desamparo
básico – constitutivo da condição humana – e sua intensificação,
provocada por aquela “insuficiência do estoque identificatório.
O narcisismo contemporâneo surge aí como uma defesa
possível para o sujeito diante desse quadro, facultando-lhe a
construção de identidades, que embora frágeis e passageiras,
permitiram sua sobrevivência. (COELHO, 2006, p. 179).
Nessa perspectiva, como poderá ser notado, a bebida significou fuga, escapismo, sendo uma tentativa do sujeito expresso de esquecer os problemas que foram sendo experienciados. Foi comum encontrar composições, nas quais o consumo de álcool veio acompanhada de vazio, tristeza
e solidão:
Eu que falei nem pensar
Agora me arrependo roendo as unhas
Frágeis testemunhas
De um crime sem perdão
Mas eu falei nem pensar
Coração na mão
Como um refrão de um bolero
Eu fui sincero como não se pode ser
E um erro assim, tão vulgar
Nos persegue a noite inteira
E quando acaba a bebedeira
Ele consegue nos achar
Num bar,
Com um vinho barato
Um cigarro no cinzeiro
E uma cara embriagada
No espelho do banheiro
320
Teus lábios são labirintos
Que atraem os meus instintos mais sacanas
E o teu olhar sempre distante sempre me engana
Eu entro sempre na tua dança de cigana.
Eu que falei nem pensar
Agora me arrependo roendo as unhas
Frágeis testemunhas
De um crime sem perdão
Mas eu falei sem pensar
Coração na mão
Como o refrão de um bolero
Eu fui sincero
Eu fui sincero
Ana, teus lábios são labirintos
Ana, que atraem os meus instintos mais sacanas
E o teu olhar sempre me engana
É o fim do mundo todo dia da semana.
Ana, teus lábios são labirintos
Ana, que atraem os meus instintos mais sacanas
E o teu olhar sempre me engana
É o fim do mundo todo dia da semana.19
A melodia aparece vagarosa, triste e melancólica.20 Com ela, o sujeito
começou a pontuar os fatores motivadores de sua tristeza, que estão intimamente ligados, com as discordâncias e impasses frente a sua relação amorosa. Notar-se-á que, o consumo de álcool, sintetiza as reflexões
provenientes de tal momento vivido: “Eu que falei nem pensar/ Agora
me arrependo roendo as unhas/ Frágeis testemunhas/ De um crime sem
19 Engenheiros do Hawaii. Refrão de Bolero. Álbum: A revolta dos dândis, BMG, 1987.
20 Para a semiótica não há percepção de conteúdos semânticos (biológicos, sociais e psicológicos) sem envolvimento afetivo do sujeito. Não há análise de conteúdo que não implique um
sentimento anterior como primeiro critério de categorização: fatos que nos atraem, nos repelem ou nos causam indiferença. (TATIT, 1997, p. 94)
321
perdão/ Mas eu falei nem pensar/ Coração na mão como um refrão de
um bolero/ E fui sincero como não se pode ser/ E um erro assim, tão vulgar/ Nos persegue a noite inteira/ E quando acaba a bebedeira/ Ele nos
consegue nos achar/”.
Posteriormente, o narrador passou a descrever o espaço onde está situado, trazendo junto de si, inúmeras memórias com relação ��������������
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seu relacionamento. Assim, detalhes da cena emergem, junto com saudades, contradições e afetividades. O ato e consumo de bebida alcóolica, sintetizou
essa trajetória, experienciada pelo narrador: “Num bar/ Com um vinho
barato/ Um cigarro no cinzeiro/ E uma cara embriagada/ No espelho do
banheiro/ Teus lábios são labirintos/ Que atraem os meus instintos mais
sacanas/ E o teu olhar sempre distante me engana/ E eu entro na tua
dança de cigana”.
Formou-se assim, um “binômio”, bebida e solidão, no qual as frustrações
amorosas são latentes nesse. Pode-se afirmar que,
Em nosso mundo de furiosa “individualização”, os relacionamentos
são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não
há como determinar quando um começa o outro. Na maior parte
do tempo, esses dois avatares coabitam embora em diferentes
níveis de consciência. No líquido cenário da vida moderna, os
relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns,
agudos, perturbadores e profundamente sentidos de ambivalência.
É por isso, podemos garantir, que se encontram tão firmemente
no cerne das atenções dos modernos e líquidos indivíduos-pordecreto, e no topo de sua agenda existencial. (BAUMAN, 2004, p.6)
Em outras composições, a relação do jovem com o álcool apareceu diferente da anterior. Nela, a bebida surgiu como um sinônimo de polarização e referência juvenil, rumo à identificação e socialização:
O álcool, o álcool
O álcool domina minha mente,
O álcool, o álcool
322
Álcool domina minha mente
Saio a noite com os amigos
Para provar o gosto do álcool
Todos alegres em volta da mesa
Cantam e veneram o álcool
O álcool, o álcool
O álcool domina minha mente,
O álcool, o álcool
Álcool domina minha mente
Minha juventude prometo desligar
Dessa merda não vem acabar
Sexta-feira quando saio pra vila
O álcool não pode faltar
O álcool, o álcool
O álcool domina minha mente,
O álcool, o álcool
O álcool domina minha mente
Dominou essa porra. 21
Em uma melodia alegre, o sujeito pontua a importância do álcool, no que
se refere a identificação dos jovens. Assim, deixou nítida a impressão
que, a diversão em grupo, só seria possível se caso tivesse o consumo de
bebida alcoólica: “O álcool, o álcool domina a minha mente/ O álcool, o
álcool domina a minha mente/ Saio a noite com os amigos/ Para provar
o gosto do álcool/ Todos alegres em volta da mesa/ Cantam e veneram o
álcool/ O álcool, o álcool/ Álcool domina minha mente”.
Nota-se assim, como o álcool emergiu da canção, como sinônimo de conversas, iniciação, diversão e socialização. Afinal,
21 Garotos Podres. O Hino do Álcool. Disponível em: http://www.ouvirmusica.com.br/garotos-podres/1086001/#mais-acessadas/1086001. Acesso em 19/07/2013.
323
As relações sociais, que caracterizam os seres humanos, vão se
delineando e se modificando em termos de estrutura e de importância
no decorrer da vida. É na adolescência que os grupos passam a
aumentar seu nível de importância e de influência, de modo que
o adolescente, ao se inserir em um grupo, se torna um membro
funcional e assimila a cultura que lhe é própria, se apropriando
de comportamentos e atitudes, modelando-os por valores, crenças
e normas. As relações no seio do grupo de colegas fornecem-nos
algumas pistas para a compreensão do desenvolvimento psicológico
e social (SPRINTHALL; COLLINS, 1998. Apud CUSTÓDIO, 2009, p. 65.).
Apontamentos conclusivos
Ao longo do texto, podemos notar que, o álcool foi associado a vários
eventos da vida cotidiana. Assim, via de regra, representou alegrias, tristezas, angústias, felicidades, variando de acordo com o momento vivido
pelo sujeito; em uma dada poética musical.
Na canção do Barão Vermelho, podemos perceber que, o consumo de
bebida alcoólica foi crucial para a manutenção da relação. É a partir daquela que, o sujeito representado, aproximou-se de quem possuía afeição.
A melodia vagarosa e felicita, concedeu a atmosfera para que a representação do relacionamento ocorresse, dando condições para que o sujeito
representado lograsse êxito na relação.
Já na canção dos Garotos Podres, a melodia rápida e aguçada, deu condições para que o sujeito colocasse em questão, não só o efeito do álcool
em seu organismo. Em outra via, o consumo de tal bebida, serviu para
que o sujeito intervisse em seu cotidiano turbulento, rápido e confuso.
Na poética dos Titãs, a diversão foi trazida de forma paradoxal e ambígua.
Tal quadro, assim se mostrou, pois, a festa não foi sinônimo de alegria e
felicidade. Ao contrário, foi nela que o sujeito representado, extravasou
suas angústias, tristezas e frustrações. Diante desse quadro confuso, não
restou ao sujeito outra saída, que não fosse o consumo exacerbado de
bebida alcoólica, tendo à luz o momento que foi experienciado.
324
Refletindo o término do relacionamento, a canção dos Engenheiros do
Hawaii, trouxe a bebida alcoólica como sinônimo de solidão, tristeza e
frustração. A melodia lenta, arrastada e triste, concedeu a condição necessária, para que o sujeito colocasse em discussão, suas aflições subjetivas.
Por fim, em outra canção, também dos Garotos Podres, nota-se que o
consumo de álcool promoveu a identificação entre os jovens. Assim, a
bebida em questão foi elo que promoveu reconhecimento entre os sujeitos expressos na trama. Nesse contexto, a melodia alegre e festiva, respaldou o discurso do sujeito.
Podemos concluir que, o álcool acompanhou inúmeros momentos vividos pelos sujeitos expressos nas canções trazidas para análise. Não ao
acaso, a bebida em questão, foi trazida de forma constante, ganhando
espaço significativo nas produções de rock nacional da década de 1980.
Assim, representou e subjetivou inúmeros sentimentos e emoções, que
foram vividos em um dado momento.
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327
Alguém colocou algo em meu
drink. Análise semiótica de
temas relacionados à ingestão de
bebidas e de outras substâncias
na obra dos Ramones
Daniel Pala Abeche
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]
Resumo
O grupo musical Ramones, representante referencial e um dos fundadores/precursores do
gênero punk rock, abordou amiúde temáticas relacionadas à subversão e desestruturação de
modos e padrões socialmente convencionais, tendo como elemento lírico constante a alusão
à ingestão de álcool e substâncias ilícitas. Essa temática, presente em letras de músicas
como “Somebody put something in my drink” e “Now I wanna sniff some glue”, também
permeia títulos e capas de álbuns como Acid eaters inclusive proliferando signos em materiais
audiovisuais, como o videoclip de “I wanna be sedated”, em que o grupo protagoniza um
verdadeiro ritual subversivo, como uma santa ceia às avessas. O presente trabalho tem
como objetivo estudar os signos relacionados à ingestão de bebidas, drogas e alimentos
na obra dos Ramones, em âmbito lírico, visual e audiovisual, e verificar a influência desses
elementos na construção identitária do grupo, veiculada pelos media e também presente
no imaginário de seu público. A metodologia inclui levantamento do arquivo midiático dos
Ramones (letras de músicas, capas de álbuns, encartes e videografia), estudo detalhado da
obra e posterior análise crítica embasada teoricamente por autores que abordam a análise
de discurso, a semiótica da cultura, os estudos culturais e as teorias da comunicação.
Palavras-chave
Ramones, bebidas, drogas, alimentos, discurso
328
1. Punk Rock e Ramones
O estilo musical rock and roll, no final da década de 1960 e primeira metade da década de 1970, dominado pelos experimentalismos do progressivo, com flertes profundos com a música clássica e parcerias de estúdio
com os músicos de conservatório, afastava-se paulatinamente de sua
premissa “rebelde”. Alguns grupos norte-americanos, desgostosos com
tal rumo, buscavam uma saída alternativa: um retorno às origens, com
mais “barulho e atitude”. Grupos como The Stooges, MC 5 e New York
Dolls, posteriormente denominados proto-punks, constroem a premissa
que os Ramones viriam a utilizar poucos anos depois.
E se uma característica definiu esses grupos (e embasou todo o movimento punk rock), e em especial os Ramones, foi a simplicidade. Marca
do gênero, o slogan “do it yourself”, sintetiza algo talvez inédito até então, a possibilidade de não saber tocar um instrumento, ou saber muito
pouco, e fazer música; e mais, enfrentar as barreiras intransponíveis da
indústria cultural, ao produzir e divulgar um trabalho autoral de maneira
independente, mesmo que com recursos escassos e produção precária.
Os Ramones foram um produto da Indústria Cultural norte-americana,
afinal, apesar de o grupo apresentar uma proposta provocativa, com letras pouco digeríveis e instrumentos altos e distorcidos, as métricas e
ritmos simples eram facilmente decoráveis e assoviáveis, além disso, o
grupo sempre esteve presente nas principais emissoras de rádio, programas de auditório, grandes festivais e produziu dezenas de videoclipes
com ampla veiculação na MTV. Entretanto, o “barulho” proferido pelos
Ramones jamais poderia ser considerado música ou arte por Adorno, por
exemplo; aliás, a muitos críticos do jornalismo cultural contemporâneos
aos lançamentos dos primeiros trabalhos do conjunto, esses, efetivamente não eram musicais, mas anárquicos.
Nesse trabalho, foi realizada a divisão da carreira do grupo em 3 períodos relacionados estritamente a questões de áudio e orientação estilís-
329
tica musical, com foco na produção dos álbuns. Essa divisão, realizada
para tornar o estudo e abordagem dos temais mais organizados, denota
características peculiares a cada época distinta, conforme descrito em
cada tópico específico a cada período.
1º período – 1974 – 1980
É o período inicial da banda, que se forma em 1974, mas grava o primeiro
álbum em 1976. Os álbuns preferidos dos ouvintes, imprensa e dos próprios integrantes (End of Century, 2003) encontra-se nessa época.
Considerado, criativamente, o período áureo do grupo, corresponde à
época em que se encontram as temáticas mais subversivas nas músicas
dos Ramones.
2º período – 1981 – 1989
O segundo período do grupo compreende a fase em que experimentações de estúdio e produções tecnicamente mais elaboradas permeiam
as faixas, conferindo, aos mais atentos, diferentes sonoridades, que, em
suas devidas proporções, se afastam minuciosamente da proposta inicial. Vale a ressalva de que a sonoridade do grupo permaneceu dotada
de forte identidade durante toda a carreira dos Ramones, e que essas
diferenças podem soar extremamente sutis ao ouvinte casual.
3º período – 1990 – 1996
O período final do grupo, marcado por uma tentativa de retorno à sonoridade mais crua inicial é também pautado pela saída do principal compositor do conjunto Dee Dee Ramone (substituído por CJ Ramone), mas
que continuaria a escrever para os Ramones, mesmo não sendo mais um
membro oficial.
As características que marcaram a carreira dos Ramones, em especial
no primeiro período, foram: músicas extremamente simples, com poucos
acordes (em média, de 3 a 5), letras simplistas, muitas vezes com pou-
330
quíssimas frases/versos, repetitivas, e com teor provocativo, amiúde, infantilóide. E nesse universo que aborda a psicopatia, lobotomia juvenil, o
tratamento de choque – a demência, doenças psíquicas e seus tratamentos são temas extremamente presentes também nas canções do grupo
– que se encontram, com frequência acima do comum, as temáticas relacionadas ao consumo de bebidas, alimentos e drogas.
2. Um pouco de cola. E de DDT. E de LSD. O início.
As temáticas do grupo foram consideradas mórbidas, carregadas de humor negro, de mal gosto ou provocativas em diversas colunas de crítica
musical nos mais variados veículos de comunicação norte-americanos,
na época do lançamento do primeiro álbum homônimo, lançado em 1976
(RAMONE, 2012). Temas como a violência juvenil banalizada, retratada
em “Beat on the brat”, filmes de terror, retratados em “Chainsaw”, a prostituição, retratada em “53&3rd” e a utilização de drogas “baratas”, todos
presentes nesse disco, colaboraram para a construção da imagem subversiva, que acompanhou a banda por toda a carreira.
A primeira música que apresenta referência ao consumo de drogas é
“Now I wanna sniff some glue”, cuja letra é apresentada na íntegra abaixo.
Now I wanna sniff some glue
Now I wanna have something to do
All the kids wanna sniff some glue
All the kids wanna have something to do
Presente no debut do grupo (1976), em que tais versos são cantados incessantemente e à exaustão, embasados por apenas duas notas de fundo,
denotam a catarse sonora que a banda queria causar: velocidade, simplicidade, primitivismo e choque. O foco aqui não é uma substância com algum status entre usuários ou uma droga com consumo em destaque no
momento, mas a cola, comumente utilizada por marginalizados sociais.
A priori, tal temática parece possuir tom provocativo ou com a intenção
331
de causar choque. Entretanto, os integrantes diziam que as canções da
primeira fase não foram compostas com o intuito de suscitar provocação
ou não foram feitas para chamar a atenção, mas que essa era a realidade
presente no cotidiano, ações e conversas de suas vidas, atestam a essas
letras, inclusive, um tom ingênuo, ao compô-las. A premissa é parcialmente válida, visto que os integrantes admitiram utilizar cola à exaustão
no início da carreira e o baixista Dee Dee Ramone, compositor de “53 &
3rd” confessa ter se prostituído antes de se juntar ao grupo na esquina
das ruas que dá nome à música (End of Century, 2003).
No segundo álbum (Leave Home, 1977), a temática relacionada ao uso de
cola persiste, e em uma canção, “Carbona not glue”, é adicionado o nome
de uma importante companhia (Carbona, fabricante e distribuidora de
produtos químicos e solventes) no título e letra da música, questão que
trouxe problemas judiciais ao grupo, que precisou substituir a canção
nas prensagens seguintes do disco.
And I’m not sorry for the things I do
My brain is stuck from shooting glue
I’m not sorry for the things I do
Carbona not Glue
Wondering what I’m doing tonight
I’ve been in the closet and I feel all right
Ran out of Carbona Mom trown out the glue
Ran out of paint and roach spray
Ao utilizar o nome de uma importante companhia, o grupo atinge mais
um patamar na escala de provocação e polêmica; na mesma letra cita o
uso de spray contra baratas, além da cola, como droga. Tal fato (a utilização de produtos esdrúxulos como drogas), como já sinalizado anteriormente, será uma constante na obra dos Ramones.
Em “I wanna be well”, presente no terceiro álbum Rocket to Russia (1977),
mais uma vez a utilização de drogas aliada ao tom de deboche é utiliza-
332
da. Suscita-se o questionamento se a intenção do grupo era de fato uma
manifestação natural do ambiente em que encontrava-se ou uma provocação premeditada.
A música, como amiúde explorado pelo grupo, apela para o minimalismo, utilizando repetição contínua de palavras/frases focando no uso de
drogas.
Yeah, I wanna be well
I wanna be well
I wanna be
I want, I want, I want, I want, I want ,I want
I want my LSD, golly gee, DDT, wowee!
Daddy’s broke Holy smoke
My future’s bleak
Ain’t it neat?
A frase final atesta o tom de sarcasmo presente nas letras do grupo, que
tornou-se marca registrada nessa primeira fase, e traz à tona a questão
discursiva do autor, afinal, com que intenção os membros abordavam
amiúde tal temática. A análise dessa indagação será realizada na conclusão deste trabalho.
3. Bebidas e mais substâncias. Consolidação da imagem.
Na segunda fase dos Ramones, quando lançam a música Somebody put
something in my drink, presente no disco Animal Boy (1986), o grupo já
possuía a imagem consolidada relacionada a drogas e bebidas que permearia por toda a sua carreira. Expões, aqui, o início da letra desta, seguida da análise discursiva.
Another night out on the street
Stopping for my usual seat
Oh, bartender, please
333
Dacquary & tonic’s my favorite drink
I don’t like anything colored pink
That just stinks...it’s not for me
Aqui, a estrutura semântica enfatiza o hábito de beber, ressaltado pela
utilização do assento usual no bar e a suposição de alguma intimidade
com o atendente (barman). Foca-se também na construção identitária
aqui, de um sujeito masculinizado ao beber, ao citar o estilo de drink predileto e ao refutar bebidas de cores róseas. A representatividade nesse
caso é de uma atitude firme, robusta e máscula. Esse é mais elemento
constituinte da representatividade identitária dos Ramones e diversas
bandas de rock: o sujeito “mau” e “macho”.
Outras substâncias continuam permeando o trabalho da banda, como
em “Psycho therapy” ou “Go mental”, em que há a retratação do acometimento de doenças metais em consequência do uso abusivo de substâncias ilícitas, entre elas, solventes químicos e produtos farmacêuticos.
A música “Love kills,” presente no mesmo álbum, retrata a vida e morte
de Sid Vicious (baixista do icônico grupo punk Sex Pistols) e sua mulher
Nancy, com foco no abuso de drogas. Composta pelo baixista Dee Dee
Ramone, esse foi o tributo do músico ao casal. Curioso observar que o
próprio integrante sempre teve problemas com drogas e morreu de overdose. Essa é a única música dos Ramones que retrata a droga de maneira
negativa.
4. Comendo feijões requentados e vegetais.
Alimentos na obra dos Ramones.
Alimentos aparecem, também, com frequência na obra dos Ramones, em
situações curiosas e com teor degenerativo. Expõe-se preliminarmente a
letra de “We’re a happy Family”, do álbum Rocket to Russia (1997)
Sitting here in queens
Eating refried beans
334
We’re in all the magazines
Gulpin’ down thorazines
We ain’t got no friends
Our troubles never end
No christmas cards to send
Daddy likes men
Daddy’s telling lies
Baby’s eating flies
Mommy’s on pills
Baby’s got the chills
I’m friends with the president
I’m friends with the pope
We’re all making a fortune
Selling daddy’s dope
Aqui, o grupo sintetiza a temática decadente presente constantemente
em sua obra ao utilizar do sarcasmo ao definir uma família feliz. A letra
inicia-se com foco no bairro em que foram criados os integrantes e detalha ações cotidianas dessa família, comendo feijão requentado; mais uma
vez, as drogas estão presentes: na citação do tráfico dos entorpecentes do
próprio pai e a utilização de thorazines. Assim, utiliza-se novamente o
uso de substâncias e drogas não comuns, e sua relação constante com
doenças mentais, e fortalece a premissa da construção identitária decadente através das temáticas das músicas do grupo.
A abordagem de alimentos na obra do grupo é geralmente elemento diminuidor, contribuinte para a formação do teor decadente e provocativo
nas letras. Aliado a elementos como o bairro em que os integrantes moravam e a sátira com estilo de vida norte-americano, os alimentos apresentam-se como formatadores contribuintes da identidade subversiva da
banda, colaborando inclusive para o entendimento do que posteriormente seria conhecido também como punk.
Os alimentos na obra dos Ramones são sempre utilizados de maneira
pejorativa, negativa, com a intenção de denegrir a imagem de algo que
335
é exposto, como visto em “We’re a happy Family”. Outro exemplo ilustra
bem essa premissa.
A letra de “Mama’s boy”, do álbum Too tought to die (1984) em que Joey
Ramone vocifera, sobre uma base instrumental pesada e densa, contra
um sujeito mimado e inescrupuloso, apresenta o trabalho em uma barraca de cachorro quente como modelo a não ser seguido, como um trabalho que não deve ser realizado, algo vergonhoso.
Don’t want to work in a hot dog stand
Be a busboy messenger or a doorman
It’s an abstract world you’re an
A única música em que a banda apresenta o consumo de alimentos saudáveis e de maneira não decadente, é mostrada de maneira satírica. Em
Everytime I eat vegetables, do álbum Subterranean Jungle (1983), Joey
Ramone canta sobre uma garota que se envolve em drogas e agora está
em pedaços em uma mala rumo a Berlim e finaliza a letra dizendo que
toda vez que come vegetais, lembra-se dessa pessoa, como pode-se verificar na letra abaixo.
She was a really good friend, a really
Good friend to me, yeah. She was a really
Good friend, a really good friend to me, yeah
But they took her away tossed her in the bin
Now she’s hanging out in East Berlin, ow-ooo
She had a very bad affair with some cat from
Hiroshima she turned into a head of lettuce
She eats Thorazine in her farina but they took
Her away tossed her in the bin now she’s hanging
Out un East Berlin, ow-ooo
And everytime I eat vegetables it makes me think
Of you and everytime I eat vegetables I don’t know
336
5. Ácidos e sedativos. Além da música.
As temáticas relacionadas a drogas, bebidas e álcool transcendem o universo lírico dos Ramones, e aportam, inclusive, nos alhures da arte visual
e audiovisual. Nesse trabalho, analisa-se um exemplo de cada obra. Sendo a estrutura física (e visual) do álbum Acid eaters (1993) e o videoclipe
de I wanna be sedated (1978) as selecionadas.
A capa do álbum Acid eaters (1993) denota, demonstra e colabora com a
identidade, já consolidada publicamente do grupo, relacionada ao abuso
de drogas por parte da banda. O nome e capa com referências à psicodelia e aos grupos do final dos anos 60, realizam uma alusão ao repertório encontrado no título: covers de bandas dessa mesma época. Nesse caso, o “ácido” é uma referência ao LSD. Na ilustração, os membros
são representados interligados aos olhos de um usuário de LSD, com um
comprimido em forma de caveira na língua, em que tudo parece estar
derretendo; uma analogia aos efeitos documentados pelos usuários da
droga. Ao redor da imagem, encontram-se zíperes que representam as
jaquetas perfecto, modelo utilizado pela banda, que tornou-se um signo
referencial do grupo. Se a psicodelia imagética de outrora era algo mais
sutil, a encontrada neste trabalho dos Ramones ampara elementos mais
agressivos, com entornos e influências punk. Esta temática permeia todo
o material físico, incluindo encarte e o próprio C.D., que apresenta, também, imagens com teor “punk psicodélico”.
Nesse caso, parece que o grupo utiliza-se dos elementos gráficos explicitamente referentes à droga em um disco “menor” em seu catálogo, que
não apresentou músicas inéditas, grande campanha de lançamento ou
uma turnê de lançamento. Aparentemente, há uma liberdade maior para
a utilização desses elementos gráficos em um disco menos “sério” na
carreira da banda.
No videoclipe de “I wanna be sedated”, os Ramones encontram-se sentados simetricamente em uma mesa no centro da tela, lêem revistas e co-
337
mem, enquanto o vocalista Joey Ramone repete diversas vezes o verso
“24 horas por dia, eu quero estar sedado”; ao redor personagens caricatos
rondam o grupo em um movimento incessante de vai-e-vem, inclusive
trazendo pizzas à mesa central e carregando bebidas. É possível realizar
uma analogia com a Santa Ceia; a distribuição dos membros ao redor da
mesa centralizada e focada, assemelha-se à icônica imagem. Nesse caso,
uma Santa Ceia às avessas, provocativa, repleta de tentações e pecados,
como o excesso de alimentos, bebidas, erotismo e festas. Mais uma vez,
o grupo subverte os padrões sociais e morais vigentes, apologizando o
ócio. A pressão normativa da necessidade de sempre se realizar algo e
aproveitar o tempo vigente, aqui é contestada pela premissa de que deseja-se estar sedado a todo momento e nada fazer.
6. Gabba Gabba. Conclusão.
Ao realizar a análise do conteúdo utilizado nas letras dos primeiros trabalhos, recorre-se a Eco. “Todo signo linguístico compõe-se de elementos
constituintes e surge em combinação com outros signos: é um contexto, e se insere num contexto” (ECO, 1979: 92). Os integrantes dos Ramones, oriundos do Queers, bairro periférico de Nova York, vivenciavam
cotidianamente situações relacionadas ao uso de substâncias ilícitas de
alto grau degenerativo, ou seja, drogas baratas e altamente nocivas. Não
obstante, possuíam comportamento subversivo e violento, refletido principalmente nas letras dos três primeiros álbuns do grupo. O guitarrista
Johnny Ramone afirma em sua autobiografia que ele era efetivamente
mau, a todo momento maquinava algo de ruim para se realizar; era um
sujeito explosivo e violento (RAMONE, 2012).
A abordagem temática e semântica dos Ramones também encontra em
Morin, embasamento teórico. Assim como Morin (p.62-66) aborda a cultura de massa como um retorno à cultura arcaica, a mesma analogia
pode-se fazer com os Ramones, relacionando as suas músicas como um
retorno às origens, ao primitivismo; não só à origem do rock and roll
338
(primitivismo esse em que eles levam às últimas consequências), mas
ao modo de compor e tocar as músicas; a métrica muitas vezes remete à
canções infantis, de ciranda (D-U-M-B, everyone’s accusing me; refrão de
“Pinhead”, presente no disco Leave Home, de 1977), a contagem constante
e que depois tornou-se marca registrada do grupo antes de cada música
(1-2-3-4), as frases simples, repetitivas, de impacto, como se fossem “gritos de guerra”(gabba gabba hey; hey ho let’s go); e a desconstrução de
padrões morais e sociais vigentes.
Os Ramones compuseram músicas com a limitação técnica que lhes era
peculiar e encontraram no humor esdrúxulo, na provocação, na desconstrução, e muitas vez, na escatologia, o teor identitário lírico, sonoro e visual. Esses fatores foram responsáveis não pela repulsa ao grupo, mas ao
contrário, pelo sucesso do mesmo, pois “procurando o público universal
a cultura de massa se dirige também ao anthropos comum, ao tronco
mental universal que é, em parte, o homem arcaico que cada um traz em
si mesmo” (MORIN, 2002: 65).
Morin cita a necessidade de evasão que o homem contemporâneo necessita. A música dos Ramones proporciona um encontro do sujeito com o
descompromisso, com a ausência de valores, com a desburocratização e
com o primitivismo.
A cultura industrial se dirige também ao homem novo das
sociedades evoluídas, mas esse homem do trabalho parcelar e
burocratizado, enclausurado no meio técnico, na maquinaria
monótona das grandes cidades sente necessidades de evasão, e sua
evasão procura tanto a selva, a savana, a floresta virgem quanto
os ritmos e as presenças da cultura arcaica. (MORIN, 2002: 65).
A relação da imagem do grupo com as drogas deve-se a alguns fatores:
a. o slogan “sexo, drogas e rock and roll” trouxe a premissa de que a
maioria dos grupos de rock possuíam relação com drogas e bebidas;
339
b. o visual constituído de jeans rasgados, jaquetas perfecto, all star e
cabelos compridos, visual posteriormente tornado icônico, quebrava alguns padrões ainda vigentes por indivíduos mais conservadores, contribuindo para a construção pública imagem subversiva da banda. A isso
aliava-se a atitude do grupo no palco e nas entrevistas;
c. Os signos encontrados nas diversas manifestações mediáticas da banda, em especial nas letras, vídeos e capas de álbuns.
Enquanto bandas britânicas e outras estadunidenses utilizaram o estilo
punk rock como instrumento de contestação política e ideológica (que
tornou-se referência temática do estilo, inclusive nos grupos brasileiros),
os Ramones, que influenciaram grande parte desses mesmos grupos,
prezou por temáticas subversivas e provocativas, apelando para a acidez.
Inclusive, o membro Johnny Ramone sempre apresentou um direcionamento ideológico conservador de direita, contrastando com o comumente conhecido dos membros dos outros grupos do gênero (RAMONE, 2012).
Em um primeiro momento, conclui-se que a temática abordada preliminarmente na carreira do grupo aparenta ser espontânea e ausente de
maiores perspectivas de “impressão” ou criação de uma identidade forjada. Entretanto, em algum nível, mesmo que raso, a pretensão de construção identitária deve ser considerada, e essa premissa é reforçada na
análise cronológica das letras do grupo, como foi realizada no segundo
tópico desse trabalho.
Pelo menos uma música com temática relacionada a bebidas/comidas/
drogas aparece em cada álbum da discografia do grupo, que compreende o período de 1976 a 1996. As temáticas desconstrutivas são frequentes,
com destaque maior para o primeiro período do grupo.
A provocação aos padrões morais vigentes está presente na discografia dos Ramones, além da utilização de drogas e bebidas, nos alimentos.
O grupo desestrutura slogans comuns como “alimentação saudável” ou
“cuide de sua saúde”, primando pela desestruturação das práticas sociais
340
disseminadas e aceitas, do politicamente correto, e da maneira usual que
a sociedade encara tais fatores.
É possível, reservadas as devidas proporções, realizar uma relação entre
a desconstrução dos Ramones com a desconstrução proposta pelo filósofo francês Jacques Derrida, na década de 1960. “A atividade de desconstrução não é simplesmente uma forma de análise, mas se delineia a
partir da “desnaturalização” das questões tomadas como “naturais”, sobretudo na medida em que estão ligadas à linguagem, ao discurso e à
escrita” (MARTINO, 2010: 35)
Esses elementos líricos, visuais e sonoros contribuíram grandemente
para a construção identitária do grupo. Muitas vezes, tais elementos foram estruturados para tal, sem realmente condizer com o modo de vida
de todos os seus integrantes, como afirmado pelos mesmos, mas sim na
busca por uma imagem mediática que os tornasse únicos ou diferenciados. “Em termos lógicos, a categoria “identidade” se liga diretamente a
outra, responsável por estabelecer suas fronteiras e limites: a diferença.
Só é possível estabelecer relações de identidade a partir de um jogo formal entre o igual e o diferente” (MARTINO, 2010: 36).
Referências bibliográficas
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híbridas. São Paulo: Edusp.
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HABERMAS, Jürgen. 2000. O discurso
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lições. São Paulo: Martins Fontes.
MARTINO, Luís Mauro Sá. 2010.
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você pensa que é?. São Paulo: Paulus.
MORIN, Edgar. 2002. Cultura de massas
no século XX. Volume 1: Neurose. Rio
de Janeiro: Forense Universitária.
RAMONE, Johhny. 2012. Commando.
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Ramone. São Paulo: Leya.
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e êxtase. Rio de Janeiro: Objetiva.
341
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Sire Records. EUA.
Ramones. C.D. Too tough to die.
1984. Sire Records. EUA.
Ramones. LP. Rocket to Russia.
1977. Sire Records. EUA.
Ramones. C.D. Animal boy. 1986.
Sire Records. EUA.
Ramones. LP. Road to ruin. 1978.
Sire Records. EUA.
Ramones. C.D. Acid eaters. 1993.
Radioactive Records. EUA.
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story of The Ramones. 2003.
Ramones. DVD. It’s Alive. 1977.
Ramones. Videoclipe. I wanna
be sedated. 1978.
342
Educação musical e
indústria cultural
Marcelo Fernandes Pereira
UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
[email protected]
Resumo
Há uma grande cisão em termos de paradigma científico e referencial bibliográfico
extra-musical entre as produções em educação musical dos anos 70, 80 e início dos anos
90 do século passado e as publicações ocorridas a partir da virada do século XXI. Por
isso, este artigo - que faz parte de uma pesquisa em andamento - pretende justapor dois
diferentes posicionamentos a respeito da cultura musical legada pela mídia aos alunos
do ensino regular: o primeiro posicionamento decorre de um referencial moderno, que
vê a mídia a partir do processo de regressão da audição formulado por Theodor Adorno
e enxerga a educação musical como uma espécie de contraponto a esse processo; e
o segundo, decorrente de teorias multiculturalistas – sobretudo inspiradas nas ideias
de Garcia Canclini – que vê com otimismo as mudanças oferecidas pela mídia, não as
considerando como regressões, mas como hibridismos que resultam, não em perdas, mas
em transformações na sensibilidade musical contemporânea. Nosso objetivo é desnudar os
limites epistemológicos de aplicação de cada posicionamento e as propostas em educação
musical que deles decorrem, sem, no entanto buscar quaisquer tipos de sínteses. Nossa
metodologia é eminentemente bibliográfica e tem como referencial teórico, além dos
sociólogos acima citados e de estudiosos de ambas as teorias, as publicações de Maura
Penna, Nilceia Campos e Jusamara Souza, entre outras ligadas à área de educação musical.
Palavras-chave
educação musical, multiculturalismo, indústria cultural
343
Introdução
A educação musical está a serviço do homem, mas o que seria educar o
homem em termos musicais? Essa questão se coloca na gênese da árdua
tarefa do educador musical e evidentemente as vivências pessoal e acadêmica do educador influem na resposta, mas esse não é nosso assunto
principal e mesmo se fosse, seria impraticável nas proporções de um artigo acadêmico. Se o abordamos nesta introdução, é porque o assunto aqui
tratado liga-se diretamente ao sentido do trabalho do educador musical.
A música é uma arte extremamente consumida e ao mesmo tempo extremamente identitária – características que a colocam na agenda central
da indústria do entretenimento. Em um tempo não muito distante, essa
indústria e seus mecanismos de estimulação do consumo eram mal vistos por grande parte dos estudos ligados à difusão musical e a música
feita para/pelas massas era considerada inferior, cabendo ao processo de
educação mostrar ao indivíduo os limites dessa produção musical massificada e apresentar-lhe a “grande arte”. Essa educação musical que partia
da crítica à sociedade do consumo e execrava a indústria cultural tinha
como sua principal base epistemológica a produção intelectual da Escola de Frankfurt - mais especificamente os escritos de Theodor Adorno,
uma vez que este, dentre seu pares, foi o que mais se ocupou de questões
ligadas à música.
No caso brasileiro, especialmente, essa visão é bastante encontrável e
balizou o discurso, não só de professores, mas de compositores e músicos ligados à academia. Tomaremos como exemplo o artigo da professora Nilceia Campos que trata da questão da passividade musical diante
do que Perez-Gomez chamaria de “sociedade do espetáculo”:
assim como os produtos são industrializados e vendidos no mercado,
há também uma indústria que promove a música, impondo gostos
e tendências e movimentando o mercado artístico. A indústria
cultural comercializa a música, bem como outras produções artísticas
(...). Desse modo, pensamentos, comportamentos e gostos também
344
são produzidos em série, tornando os indivíduos cada vez menos
diferenciados. A convergência, ou a homogeneidade imposta e aceita,
acaba por aniquilar a individualidade de tantos, que, sem compreender
a realidade, não têm condições de atuar sobre ela. Além disso, estes
três elementos – repetição, técnica e consumo – estão tão interligados
que seria difícil torná-los independentes quando se trata de indústria
cultural, pois a repetição só é possível graças à técnica avançada
para tal; e o consumo acontece na medida em que os produtos
tecnologicamente desenvolvidos são oferecidos para a sociedade
que está disposta e motivada a consumir. (CAMPOS, 2005, p 77)
Dentro dessa visão, os alunos estão presos ao simulacro da indústria
cultural e a escola é o espaço natural de uma prática musical alternativa
a esse sistema:
diante da “lógica infernal do espetáculo”, refletimos sobre as
práticas musicais escolares (...). Portanto, despertar a sensibilidade
musical, promover o desenvolvimento da criatividade, ampliar
as experiências musicais dos alunos e propiciar práticas que
favoreçam a expressão individual e coletiva, constituem
uma das funções da escola. (CAMPOS, 2005, p 81)
E a autora encerra o texto afirmando categoricamente: “torna-se necessário ver além dos meios de comunicação, transpor as barreiras da indústria cultural, e compreender a amplitude e a riqueza da linguagem
musical.” (CAMPOS, 2005, p. 81). Dessa forma, a escola é vista como um
espaço de resistência, como uma maneria de transpor a sensibilidade
musical do espetáculo forjada a partir dos efeitos da indústria cultural.
É verdade que o discurso adorniano encontrado no texto que serviu de
referência para o artigo em questão é bem mais radical e traz uma defesa
estética da produção da Segunda Escola de Viena, em oposição ao Jazz
e à música de cinema. Mesmo assim, o raciocínio fundante é comum a
ambos os textos e pode ser resumido na seguinte prerrogativa: o gosto
musical das pessoas é formado por um processo acrítico, a partir das
identificações fornecidas pela atuação da industria cultural:
345
se perguntarmos a alguém se “gosta” de uma música de
sucesso lançada no mercado, não conseguiremos furtar-nos à
suspeita de que o gostar e o não gostar já não correspondem
ao estado real, ainda que a pessoa interrogada se exprima
em termos de gostar e não gostar. Em vez do valor da própria
coisa, o critério de julgamento é o fato de a canção de sucesso
ser conhecida de todos; gostar de um disco de sucesso é quase
exatamente o mesmo que reconhecê-lo (ADORNO, 1980, p. 65)
Nesse caso, os consumidores de arte seriam mesmo vítimas dessa indústria e por isso que haveria a necessidade de quebra desse círculo através
da reflexão e da compreensão mais profunda do sentido da arte - e a escola teria então esse papel educacional e libertário. É necessário lembrar
que essa proposta de educação musical acentua a dicotomia arte versus
produto cultural, excluindo o folclórico por ser uma patrimônio puro
e portanto necessário. Essa dicotomia – e especialmente em termos de
combate aos efeitos da indústria cultural – torna-se então a agenda central da educação musical de base adorniana.
Encontramos, entretanto, propostas mais recentes e alternativas à teoria
adorniana, nas quais o consumo de bens culturais não se dá por processos tão passivos quanto propõe Adorno. Mancebo et. al afirmam que:
Canclini (1999) e Bauman (2001), partindo de análises com
suportes empíricos distintos, chamam a atenção para o fato de
que o consumo poderia ser analisado como uma forma de tornar
mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora. (...). “Ir às
compras” poderia significar, assim, um certo grau de liberdade
para se selecionar a própria identidade ou uma tentativa de
tornar mais lento o seu fluxo de mudança, ou ainda de solidificar
o fluido ou dar forma ao disforme. (MANCEBO et.al., p.330)
Passando as idéias acima a termos musicais, diríamos que escolher a
música que tocará no seu celular pode significar também um certo grau
de liberdade para selecionar sua própria identidade. Mas ainda assim a
proposição não resistiria à crítica adorniana – que argumentaria que os
346
critérios para essa seleção são também fornecidos pela indústria cultural. Nesse sentido, aclaram os mesmos autores acima, que na visão de
Nestor Canclini “os contextos familiares, de bairro e de trabalho também
controlam o consumo, os desvios nos gostos, nos gastos e a seleção do
“exógeno” (MANCEBO et. al, p.331) e assim, a construção do gosto musical não
seria passivo ou imposto, mas ativo e também ligado à fatores locais.
Desse referencial, surgem publicações que passam a rever a função da
educação musical e a se utilizar de práticas musicais e repertórios que
anteriormente eram tidos como inaptos para o trabalho musicalizador.
Dentre essas publicações utilizaremos – em caráter de estudo de caso
- dos trabalhos de Maura Penna, Jusamara Souza e Luis Fernando Lazzarin. Esses trabalhos tem como características comuns a valorização
da pluralidade e o sublinhamento da multifacetada identidade cultural
brasileira e dessa forma enfatizam o valor da identidade e da vivência
musical prévia do aluno dentro do projeto de educação musical a ser desenvolvido. Esses aspectos trazem um novo caráter aos fins da educação
musical em seu aspecto estético, pois se antes os efeitos da indústria cultural eram males a serem combatidos dentro da identidade dos alunos
- que dela foram vítimas - , nesse novo projeto esses “efeitos” da indústria
cultural são justamente o precioso material identitário trazido pelo aluno
– material esse, que serve de objeto de estudo para proeminentes pesquisadores em educação musical, que se ocupam em saber qual repertório
povoa o celular de determinada classe de aluno, para entender as preferências e vinculações culturais desse aluno. Nesse novo paradigma,
a hibridização também é preferível, em termos de produto cultural, e o
conceito termina por se opor à busca do puro e do seminal – tidos como
desejáveis dentro do conceito moderno de produção artística.
Essa educação musical de base multiculturalista, em sua versão mais
comedida, considera a música erudita ou de concerto como mais um elemento no panteão dos repertórios possíveis e fomentáveis para a manutenção da diversidade. Sobretudo Penna, afirma categoricamente essa
347
posição e reafirma a validade da tradição musical de verve intelectual
no processo musicalizador, preocupando-se ainda com a possibilidade
de que, uma vez coexistindo no ensino regular diversidade de tradições,
cada tradição se feche em seu próprio gueto:
Pois é preciso evitar a guetização e, mais ainda, evitar que essa
guetização resulte na inversão da oposição entre popular e erudito,
e, de certo modo, exclua as possibilidades de diálogo com as
formas artísticas eruditas, por serem estas julgadas a expressão
da civilização europeia e ocidental, responsável pela opressão de
padrões culturais outros, de grupos não dominantes. Certamente,
as formas eruditas retratam, em grande medida, esse modelo
da cultura européia. Entretanto, por um lado, a arte erudita é
também parte do patrimônio cultural da humanidade, é mais
uma manifestação, ao lado das demais. (PENNA, 2005, p. 14)
Como vemos, Penna considera negativa a exclusão da tradição erudita
ou intelectual musical - evitando o simplório argumento de que esta
seria o legado do colonizador ou opressor - e iniste na necessidade de diálogo entre as diversas tradições. Sua visão dos processos que envolvem
a indústria cultural foge do maniqueísmo primário que considera como
negativo tudo o que provém da produção de massa, mas não exclui uma
leitura crítica dos efeitos dessa indústria sobre a sociedade. Contudo, na
área da educação musical, as apropriações menos conservadoras da teoria multiculturalista tendem a enfatizar, a identidade do educando e
o caráter híbrido encontrável mais facilmente na produção midiática e
esses aspectos passaram a preponderar para a escolha de repertório no
processo educativo. O resultado é que a música culta, seja brasileira ou
européia, termina – na maioria dos casos - excluída da discussão da área.
Um bom exemplo dessa constatação é o texto de Jusamara Souza, que
tratando de “Cultura e diversidade na América latina: o papel da educação musical” , em certa altura, defende quais seriam bons exemplos de
culturas híbridas, em se tratando de produção brasileira e se expressa da
seguinte forma:
348
Pensar sobre a música brasileira hoje significa analisar as trocas
culturais que hoje atravessam o país e que fazem com que os limites
entre litoral/sertão ou morro/asfalto se dissolvam. Dessa forma, a
música brasileira produzida nos últimos anos parece distanciar-se
definitivamente das oposições entre música culta e música popular.
Os criadores e intérpretes da atual música popular brasileira tornamse intérpretes privilegiados do nosso cotidiano. Como cronistas,
cantam as questões de seu tempo e espaço (SOUZA, 2007 P. 17)
Na citação acima – como no restante do texto – Jussamara Souza entende por música brasileira, apenas a música popular ou midiática, exclui a
música culta da discussão e trata o músico por cronista. Não podemos
deixar de notar que a produção musical de verve mais intelecutal passou
de preferível, no paradigma moderno – que se materializa como crítica
à indústria cultural sob tutela de Adorno – a preterida, no paradigma
multiculturalsita. Esse fato é esperado, pois o projeto em questão prioriza
o educando, seus gostos e vivências e está claro que esse aluno – que
recebe e devolve valores e repertório musicais dentro da indústria cultural – dificilmente terá contato com a produção musical de caráter mais
erudito, ou se o tiver, provavelmente não possuirá ferramentas cognitivas para compreende-las. Assim, se anteriomente os educadores viam
a escola como um espaço para a apreciação de um repertório e de uma
estética musical menos ligados aos valores midiáticos, neste momento o
multiculturalismo advoga a legitimidade da cultura desse aluno – midiática ou não – e a necessidade de uma educacão musical que parta dos
saberes dos alunos.
Como colocado anteriormente, este artigo não pretende forjar qualquer
juízo sobre a questão, pois trata-se de uma pesqusia em andamento. Mesmo assim, é relevante frizarmos que enquanto a educação musical de
base adorniana entende a tradição erudita como uma tradição necessária para a educação do homem, para visão multiculturalista a cultura musical trazida pelo aluno é cara e legítima e por isso, não necessariamente passível de duras críticas ou de processos educacionais que
349
intencionalmente busquem sua alteração ou desconstrução em prol de
determinado repertório.
Por fim, citamos o artigo de Luis Fernado Lazzarim, que trata de forma
mais desenvolvida a questão do multiculturalismo em educação musical
e se coloca claramente contra o concerto e a apreciação estética contemplativa nele engendradas:
A atitude contemplativa do freqüentador que ouve a execução
do concerto é análoga à do visitante do museu que se detém
diante do quadro ou da escultura. Ao assumir o discurso da arte
de museu, a educação musical torna-se anacrônica no sentido
de que, como adverte Shusterman (1998), na continuidade
da crítica pragmatista, o isolamento da ética social e política
somente se justificou quando a arte tinha que se libertar de
tutelas ideológicas e religiosas, às quais servia como instrumento.
Todavia, a separação entre práxis da vida e a arte não é, nos dias
de hoje, nem proveitosa, nem crível.(LAZZARIN, 2008, p. 126)
O texto do qual foi retirada a citação acima traz uma discussão vívida
sobre diversos aspectos da apropriação que os educadores musicais tem
feito da teoria multiculturalista e discute questões que promovem a superação da abordagem simplista do binômio popular/erudito em música.
Entretanto, atrelar o concerto e a atitude contemplativa nele engendrada
às “tutelas ideológicas e religiosas, às quais servia como instrumento”
nos parece uma associação um pouco violenta, afinal, o concerto – bem
como seu repertório – ainda não tiveram seu papel ressignificado para
a maior parte de nossa sociedade e quando há investimentos que facultam o ensino do repertório de concerto nas periferias urbanas, esses investimentos se materializam em empresas bem sucedidas – pelo menos
na maioria dos casos. Nesse sentido, podemos afirmar que o modelo
venezuelano, “El Sistema”, seja um exemplo de como o concerto e seu
repertório não necessariamente promovem a “separação entre práxis da
vida e a arte”. Contudo para que essa separação não ocorresse no caso
brasileiro, seria necessária uma discussão, em termos musicais, sobre a
350
relação entre o que a mídia oferece e as apropriações que o indivíduo faz
dessa oferta. Sem essa discussão, o repertório chamado erudito e o ato
contemplativo vão seguir cada vez mais distantes da sociedade e possivelmente se tornarão arte de museu - não pelo objeto em si, mas pela incompreensão generalizada de suas potencialidades humanizadoras no
tempo atual.
Referências bibliográficas
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música. In: Textos escolhidos. São Paulo.
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Multiculturalismo e multiculturalidade:
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Mancebo, Deise; Fonseca, Jorge G. T.;
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Penna, Maura. 2005. Poéticas musicais
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Souza, Jusamara. 2007. Cultura e
diversidade na América Latina: o
lugar da educação musical. Revista da
ABEM no. 18, Porto Alegre, p. 15-20.
351
O “culinário” em Adorno,
Benjamin e Brecht: entre
o prazer e a regressão
Luiz Fernando de Prince Fukushiro
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
Em alemão, o adjetivo “kulinarische”, culinário, indica pejorativamente aquilo que é
para ser consumido rapidamente, em um gozo sem esforços. Embora valha para toda
a língua, o termo esteve bastante em voga no início do século XX na crítica e teoria de
arte. Adorno coloca em seus textos musicais a “música culinária” como algo ruim, de
prazer rápido e sem reflexão, talvez na esteira da escuta estruturada de Hanslick, que
dizia que a música era para ser contemplada atentamente, não degustada como um vinho.
Em contraponto, Benjamin via na “ópera culinária” de Brecht uma nova possibilidade de
experiência, já que o prazer de degustar algo bom ao paladar poderia também trazer a
crítica à tona. Este trabalho tentará delinear então como o termo “culinário” aparece na
obra desses autores e também tecer relações entre a escuta e o paladar a partir deles.
Palavras-chave
arte culinária, Bertolt Brecht, Theodor W. Adorno, Walter Benjamin
352
O adjetivo culinário designa aquilo que pertence à cozinha, e em especial
se relaciona ao ato de cozinhar. No entanto, no alemão, kulinarisch possui mais um sentido além do habitual, ainda mais no âmbito da estética:
aponta, de forma pejorativa, aquilo que oferece um prazer espiritual fácil
e sem esforço. Ou seja, quando se fala em uma arte culinária, uma kulinarische Kunst, fala-se tanto da arte da cozinha, gastronômica, como de uma
arte que aponta ao mero sensorial, ao prazer rápido e sem esforços.
Pode-se arriscar a dizer que o termo é algo bastante peculiar à arte ocidental, em especial a erudita, das belas-artes e da arte dos cânones, em
que o sensível é visto como fora do controle da razão e deve ser recalcado.
Desde Platão, em A república, a música considerada mole, de harmonias
plangentes e lassas, deveria ser banida.1 O canto gregoriano, “herdeiro,
neoplatônico, da harmonia das esferas” (WISNIK, 1989, p. 105), desconfia
de tudo aquilo que pode trazer sedução pelo ouvido, e por isso proíbe os
instrumentos de entrarem na igreja. A música que mexe com os sentidos
de forma que escapa à palavra litúrgica é vista como pecado: “Quando,
às vezes, a música me sensibiliza mais do que as letras que se cantam,
confesso com dor que pequei”, dizia Santo Agostinho (apud ibid., p. 107).
Na estética, disciplina surgida no século XIX no Ocidente, o pensamento se mantém. Em Hegel, “o sensível da arte somente se relaciona com
os dois sentidos teóricos da visão e da audição, enquanto que o olfato,
o paladar e o tato têm a ver com o que é material enquanto tal e com
suas qualidades sensíveis imediatas” (HEGEL, 2001, p. 59), o que explica,
mesmo que indiretamente, o sentido figurado do adjetivo kulinarisch: o
prazer da sensibilidade imediata meramente ligada ao material é tachado como menor, que não atinge a alma. Mesmo a música sendo a arte da
alma por excelência, segundo o filósofo, não a atinge qualquer música.
A música dita “esotérica” nada tem a colaborar no desenvolvimento da
estética, pois “somente quando o elemento sensível dos sons serve para
1
Platão fala sobre harmonia, ritmo e os instrumentos por meio de um diálogo entre Sócrates e
Adamanto (PLATÃO, 2004, p. 91–94).
353
exprimir o espiritual de uma forma mais ou menos adequada, que a música se eleva ao nível duma verdadeira arte” (HEGEL, 1974, p. 200). Hegel
vai mais longe e duvida da música sem o uso de palavras, chegando a dizer que esta poderia ser vazia de sentido se não acompanhada da poesia.
Outro momento da estética musical válido de nota em que música e paladar foram conectados2 é em O belo musical, de Eduard Hanslick, que
critica quem percebe uma obra sonora como quem degusta um vinho ou
um cachimbo:
A crítica de uma obra sonora inicia-se sempre com a “sensação”
que ela provoca, e determina-se o louvor ou a censura de acordo
com a própria afecção subjetiva. Como se alguém explorasse a
essência do vinho quando se embebeda! (HANSLICK, 2000, p. 18)
É sob essa tradição da escuta estruturada, da sensação objetificada, que
escrevem Theodor W. Adorno (1903–1969) e Bertolt Brecht (1898–1956)
sobre a arte. Ambos escreveram diversos textos em que abordam a dimensão prazerosa da arte, utilizando o termo culinário como adjetivo—
sendo o segundo o que mais o empregou. É importante ressaltar que
toda a tradição do pensamento germânico, por sua vez ocidental, de forte racionalização, encontra-se refletida em ambos, de formas diferentes.
Tanto para Adorno como para Brecht, o culinário é de certa forma um
sinônimo para diversão, mas não para qualquer uma: somente a diversão
pela diversão, a que oculta e aliena, a que impede a reflexão, ou até mesmo a que não diverte.
Adorno
Em Adorno, a música culinária é criticada não só pelo seu teor superficial,
de “música ligeira”, mas também pelas artimanhas do que ele chamará
2
Um dos poucos termos musicais que fazem menção ao paladar é Tafelmusik, “música de
mesa”, um gênero nomeado no século XVI para acompanhar festas e banquetes, à altura da
música sacra e da música de câmara (UNVERRICHT, 2004).
354
posteriormente de indústria cultural, em que a obra musical é mera mercadoria, padronizada e feita para o gosto do consumidor. O kulinarisch
então passa a ser sinônimo não só da produção musical a ser veiculada no rádio e vendida pelas gravadoras, com mero fim de cair no gosto
do público, mas também de elementos dentro da música erudita feitos
para o fim culinário. A exemplo deste último caso, Adorno, em Filosofia da nova música, qualifica Petruschka, de Stravinsky, como “elaborado culinariamente”,3 já que, em certo tom raivoso, ele classifica a obra
como “a apoteose da opereta”, pelo uso de efeitos que lembram realejos e
outras simplicidades infantis.
Esse tipo de crítica perpassa toda a obra de Adorno, desde os primeiros
textos sobre música até sua Teoria estética, dada sua preocupação com
as mudanças estéticas e sociais da música em especial em relação à influência dos meios de comunicação de massa. Focaremos aqui o texto
O fetichismo da música e a regressão da audição, de 1938, pela proximidade temporal em relação aos pensamentos de Brecht assim como pela
concisão de temas que são importantes para se pensar sobre a música
culinária, mesmo que estejam ainda em maturação se pensados na obra
de Adorno como um todo.4
A primeira característica da crítica adorniana ao prazer rápido da música
ligeira não é meramente ao sensorial, como apontavam Hegel e Hanslick, mas sim ao seu desprendimento do todo da obra. O perigo do culinário se dava ao se mostrar em “momentos parciais”:
O prazer do momento e da fachada de variedade transforma-se em
pretexto para desobrigar o ouvinte de pensar no todo, cuja exigência
está incluída na audição adequada e justa; sem grande oposição, o
ouvinte se converte em simples comprador e consumidor passivo.
3
Curiosamente, na edição brasileira do texto (ADORNO, 2004, p. 116), a tradução de “kulinarisch zubereiten” foi “elaborado cuidadosamente”, e não “culinariamente”.
4
Nesta época, Adorno não havia cunhado o termo “indústria cultural”, que aparece em sua
obra escrita juntamente a Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento (1947).
355
Os momentos parciais já não exercem função crítica em relação
ao todo pré-fabricado, mas suspendem a crítica que a autêntica
globalidade estética exerce em relação aos males da sociedade. A
unidade sintética é sacrificada aos momentos parciais, que já não
produzem nenhum outro momento próprio a não ser os codificados, e
mostram-se condescendentes a estes últimos. (ADORNO, 1989, p. 82)
A não percepção do todo seria a responsável pela “regressão da audição”,
fenômeno que deixa a escuta contemporânea em um estado infantil, focada em momentos atrativos, cheios de cores e timbres.
Isso não quer dizer que Adorno seja contra o prazer na música. Uma obra
que retira tudo que é “culinariamente gostoso” somente para resultar em
ascese, não possui verdade, “como se na arte os valores dos sentidos não
fossem portadores dos valores do espírito”. O problema para Adorno é
que os momentos culinários, além de deslocados do todo, são falsos, carecem de verdade:
Ao invés de entreter, parece que tal música contribui ainda mais
para o emudecimento dos homens, para a morte da linguagem
como expressão, para a incapacidade de comunicação. A
música de entretenimento preenche os vazios do silêncio que se
instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço
e pela docilidade de escravos sem exigências. (ibid., p. 80)
O prazer culinário revela duas facetas da sociedade de massas. A primeira é a da ilusão do tempo livre, que não passa de mero descanso para
o outro dia. Nesse tempo, o ouvinte, exausto, precisa de algo de “fácil
digestão” para sustentar assim a segunda faceta: a do privilégio que não
é concedido a todos para compreender a música moderna. “Manifestam,
sempre que lhes é permitido, o ódio reprimido daquele tem a ideia de
uma outra coisa, mas a adia, para poder viver tranquilo, e por isso prefere deixar morrer uma possibilidade de algo melhor” (ibid., p. 94). Adorno
dirá posteriormente, na Introdução a sociologia da música, que a “qua-
356
lidade culinária […] é a única que a consciência extra-artística consegue
degustar” (ADORNO, 2011, p. 114).
O culinário representa para Adorno um barramento nas possibilidades
da música, o que no pós-guerra significará em seu pensamento a defesa
da nova música, que não prima por seus momentos culinários, mas sim
por seu elevado “teor de verdade”: para ele, a única música de sua época
capaz de representar o período que vivia a sociedade mantendo a totalidade de uma obra.
Brecht
Brecht associava o prazer culinário da arte ao “velho teatro”, a dizer, aquele de cunho naturalista, “sinônimo de dramaturgia de ‘consumo’, baseada no fascínio e na reprodução da ideologia dominante” (PAVIS, 1999, p.
376 apud TEIXEIRA, 2003, p. 30). O termo, de forma geral, tinha cunho
pejorativo. Em seu texto Über der kulinarische Kritik [Sobre a crítica culinária] (BRECHT, 1967), Brecht fala de uma crítica que se baseia em gostos
pessoais e se atém a detalhes, de coisas prontas para serem consumidas.
No entanto, o dramaturgo não era contra a diversão em si: teria ele dito
que “um teatro em que é proibido rir-se é um teatro do qual devemos rir-nos. As pessoas sem humor são ridículas”.
A diversão do público do esporte era algo que fascinava Brecht. Era um
público “especializado”, “conhecedor”, que assistia a um espetáculo de
pessoas interessadas. Brecht não se preocupava apenas com a recepção
do público, mas também de como isso seria exibido: “A preocupação com
o ator era tão central quanto a com o espectador, porque a relação palco–plateia precisava urgentemente ser transformada” (TEIXEIRA, 2003, p.
20). Nesse ímpeto pela transformação do “velho teatro”, baseando-se nas
formas já existentes de atrações para o público geral, Brecht utiliza-se
não só do esporte mas justamente de uma das características do teatro
de consumo: o culinário.
357
Se não era problema—e talvez fosse até necessidade—haver diversão no
teatro, bastava para Brecht mudar a função do culinário na obra. Ou seja,
o problema não era a ópera, mas sim seu uso. Não à toa, Brecht se utiliza
da forma ópera para seu teatro épico, em peças como Mahagonny e Ópera dos três vinténs, já que o gênero mostrava um potencial de diversão,
porém era utilizado de forma alienante. Até então, a diversão da ópera
era paralisante e meramente relaxante, servia à ideologia vigente: “Todas
as inovações que não ameaçam a função social da engrenagem, ou seja,
a função de diversão noturna, poderiam ser postas por ela em discussão”
(BRECHT, 1978, p. 8). Essa engrenagem aqui se trata da ópera baseada no
conceito de “obra de arte total”, de Wagner, que para Brecht se tratava de
uma espécie de “magia”. “É necessário renunciar a tudo o que represente
uma tentativa de hipnose, que provoque êxtases condenáveis, que produza efeito de obnubilação” (ibid., p. 17).
A hipnose deve ser combatida, mas não a embriaguez: “As ilusões que ela
[a velha ópera] procura preenchem uma função social da maior importância. A embriaguez é necessária: nada pode substituí-la” (BRECHT5
apud TEIXEIRA, 2003, p. 47). Essa aparente contradição entre hipnose e
embriaguez, que Jameson diz ser possível resolver de forma dialética, é
explicada pelo próprio Brecht:
Quanto mais imprecisa, mais irreal se tornar a realidade, através da
música—é uma terceira dimensão que surge, algo muito complexo,
algo que é, por sua vez, plenamente real e de que se podem extrair
efeitos plenamente reais, não obstante se encontrar já muito
distante do seu objeto, ou seja, da realidade utilizada—, tanto mais
estimulante se tornará o fenômeno global; o grau de prazer depende
diretamente do grau de irrealidade. […] Esse quê de absurdo, de irreal
e de não-sério, colocado no plano devido, deverá, assim, anular-se
a si próprio por um duplo sentido. O absurdo que aqui se depara
é apenas adequado ao local onde surge. (BRECHT, 1978, p. 14)
5
BRECHT, Berltolt. “Função social do teatro”. In: Sociologia da Arte III. Rio de Janeiro: Zahar
Editores,1967.
358
A separação dos elementos da obra de arte total—palavra, som e drama—serviria para derrubar a sua “magia” e transformar o culinário em
diversão com reflexão. É importante notar que Brecht não só era um teórico como também dramaturgo: seu pensamento tenta se materializar
em sua obra, e não é qualquer diversão que Brecht busca para seu teatro,
ele almeja um prazer objetivo, centrado, de metas definidas. Segundo o
dramaturgo, o prazer é o tema e a forma de Mahagonny. Esse prazer do
absurdo tem o poder de anular-se e assim resultar em uma reflexão e
aprendizado—meta final de Brecht. “O teatro não deixa de ser teatro, mesmo quando é didático; e, desde que seja bom teatro, diverte” (BRECHT,
1978b, p. 50).
A ópera dos três vinténs
A ópera foi motivo de grandes debates na década de 20. O legado de
Wagner deixara um vazio: no conceito, a obra de arte total, e na estrutura,
o leitmotiv, já não mais serviam aos compositores como herança, mas
sim como fantasma. Kurt Weill, compositor de A ópera dos três vinténs
de Brecht, resumiu em 1926 o dilema: “todos queriam se libertar de Wagner, mas a destruição dos pontos de apoio da tonalidade e a necessidade
de pensar uma nova relação entre texto e música—que entretanto garantisse a unidade da forma—tornava extremamente difícil o estabelecimento do caminho para uma ‘nova ópera’ (ALMEIDA, 2007, p. 183).
A problemática estaria não só no material musical (a crise da tonalidade),
mas também na relação entre os elementos da ópera: o drama, a música
e o texto. Wagner buscava uma totalidade em sua obra de arte total, que
os compositores na década de 20 achavam falsa.
É nesse contexto que surge A ópera dos três vinténs, texto de Brecht e
música de Weill, apresentada pela primeira vez em 1928 e inspirada na
obra de John Gay, do século XVIII. A escolha da adaptação já mostra a
relação de Brecht com o culinário: “Esta versão da ópera de Gay nos dá
pouco mais do que o livro de ponto de uma peça que faça parte do reper359
tório teatral; dirige-se ao entendido, em vez de se dirigir a quem procura
simplesmente prazer.” A obra de Gay era uma ballad opera, um gênero
de entretenimento do século XVIII, e a escolha não é aleatória: tratava-se
de uma obra que fala do capitalismo e cuja meta é o entretenimento. O
sucesso foi rápido e a peça reconhecida momentaneamente. Em 1933, a
peça já tinha sido traduzida para 18 línguas e executada mais de 10 mil
vezes na Europa (WEBER6 apud CHAMBERLAIN, 2009, p. 22).
Weill não duvidava da possibilidade do sucesso de Três vinténs, justamente pelo caráter musical da obra. Essa discussão esbarra outro tema
importante da época, a Gebrauchmusik [música utilitária], da qual Weill
era partidário.
A ideia da Gebrauchmusik conseguiu hoje se impor em todos os
âmbitos da música moderna nos quais ela podia ser encontrada.
Nós desparafusamos nossas pretensões estéticas. Percebemos que
deveríamos novamente criar para nossa produção seu solo natural,
que o significado da música como mais simples das necessidades
humanas pode conviver com meios de expressão artística mais
elevados, que as fronteiras entre ‘música artística’ e ‘música
para uso’ [Verbrauchmusik] se aproximaram e paulatinamente
foram suspensas. (WEILL7 apud ALMEIDA, 2007, p. 148)
Ao retirar elementos da ópera de entretenimento do século XVIII, Weill
e Brecht colocam uma nova função a eles, diferente da função original.
Como já dito, o entretenimento aqui surge como estranhamento. Adorno
duvidava dessa possibilidade, pois por trás deste pensamento da música cotidiana estava o pensamento sobre comunidade, que não era mais
possível na Europa do século XX. Portanto, quanto às estilizações da Gebrauchmusik, “isso não significa, como sua ideologia ensina, a proximidade com a vida concreta que gera a arte, mas apenas que a concretude
6
WEBER, Carl. “Brecht and the American theater”. In: MEWS, Siegfried Mews (ed.). A Bertolt
Brecht reference companion. Westport CN/London: Greenwood Press, 1997, p. 343.
7
WEILL, Kurt. “Die Oper—Wohin?”. In: . Musik und Theater, Gesammelte Schriften. Berlin: Henschel, 1990, p. 68.
360
escapou da arte, assim como da vida” (ADORNO8 apud ALMEIDA, 2007,
p. 150). Especificamente sobre Três vinténs, Adorno comenta que os fragmentos de passado coletados e transformados por Weill são como fantasmas de uma burguesia morta e sem dúvida há uma paródia ali. No
entanto, o que se pode fazer dela, o todo da obra não revela, e pode recair no mero culinário atomístico, que Adorno sempre criticou. “Mesmo
quando consumida puramente por prazer, A ópera dos três vinténs permanece ameaçadora: nenhuma ideologia de comunidade está presente,
nem em termos de sujeito nem musicalmente” (ADORNO, 1990, p. 133).
É justamente na transposição de função que Dahlhaus vê em Weill e
Brecht o elemento progressivo. “Brecht sem dúvidas mudou as relações
entre texto e música. Mas ele mante intacto o o hábito do público de
sentir respostas musicais mais convencionais em óperas do que em um
concerto; ele até mesmo explorou esse hábito” (DAHLHAUS, 1982, p. 68,
tradução nossa). Para ele, a dupla não avança a arte de forma absoluta,
mas só consegue o feito em relação à fadiga do que veio antes: “na concepção de ópera de Brecht […] algo de progressivo e algo de tradicional
estão interligados. E a contradição não é algo inerte; pelo contrário, é
produtiva” (ibid. p. 69).
Para Jameson (1998), é na representação alegre do capitalismo na música de Três vinténs, assim como em outras peças, que está o jogo de Brecht. Ao mostrar o fascínio perante o “perverso e o suspeito”, coloca os
outsiders ao lado dos que são extremamente decorosos com as injustiças
do capital. É uma sátira, que Benjamin também elogia. Ambos autores
associam esse caráter alegre e desrespeitoso a Marx:
o desdém da direita pelos negócios e pela cultura da classe média
que o marxismo herdou das primeiras críticas anticapitalistas do
período Romântico, embora persista como uma tendência dentro do
Marxismo posterior, tornou-se ambíguo, para não dizer ambivalente,
a partir da relação mais complexa entre o movimento da classe
8
ADORNO, Theodor W. “Gebrauchtmusik’. In: . Gesammelte Schriften, v. 19, p. 447.
361
trabalhadora e um desenvolvimento industrial que esta em seu
pressuposto fundamental e portanto julga ser tão progressivo como
perigoso e devastador. (JAMESON, 1998, p. 148, tradução nossa)
A sátira, que sempre tem sido uma arte materialista, é
também nele [Brecht] uma arte dialética. Marx está
por trás de sua novela. (BENJAMIN, 1975, p. 114)
Comentadores de Brecht veem sua sátira culinária como dialética. Ao
mesmo tempo que faz rir, faz uma crítica ao objeto de diversão, não por
identificação ou raiva, mas por estranhamento. Goza-se de tanto, talvez
seja motivo de gozar-se da situação ruim para daí partir para um outro
passo. O culinário pode ser mais profundo que o sentimento da alma,
segundo Benjamin:
Seus meios e seus fins [de Brecht] são mais modestos que os do
teatro tradicional. Seu objetivo não é tanto alimentar o público
com sentimentos, ainda que sejam de revolta, quanto aliená-lo
sistematicamente, pelo pensamento, das situações em que vive.
Observe-se de passagem que não há melhor ponto de partida
para o pensamento que o riso. As vibrações físicas produzidas
pelo riso oferecem melhores ocasioões para o pensamento
que as vibrações da alma. O teatro épico só é luxuriante nas
ocasiões que oferece para o riso. (BENJAMIN, 1994, p. 134)
A indicação do sucesso e dos comentários gerados a partir da obra de Brecht parecem apontar para uma nova função do culinário que leve diretamente à reflexão. No entanto, talvez, a dialética do culinário, de que há um
potencial transformador dentro do que é prazeroso, não se encontre apenas dentro do pensamento brechtiano, como apontam Jameson e Benjamin. Talvez somente com uma nova tensão, entre o culinário de Adorno e
de Brecht é que se poderia extrair mais um potencial: quando o culinário
brechtiano se coloca fronte às facilidades do culinário e de sua fácil tendência à fragmentação e o prazer que simplesmente conforta. Embora um
prazer simples, o culinário na arte ocidental, é bastante complexo.
362
Referências bibliográficas
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música e a regressão da audição”.
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WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989.
363
A música da mídia na mente:
uma análise da recepção dos
jingles e uma reflexão sobre o
gosto musical contemporâneo
Ana Lúcia Iara Gaborim Moreira
Universidade de São Paulo
[email protected]
Antonio Deusany de Carvalho Júnior
Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
Este artigo apresenta os resultados da segunda parte de uma pesquisa iniciada em 2012, acerca
da presença da mídia na paisagem sonora - conceito estabelecido por Murray Schafer (2011).
Segundo o autor, a paisagem sonora muda com o tempo, mas deixa algumas impressões
que se perpetuam, no pensamento das pessoas, independentemente de período ou local.
Da mesma maneira, percebemos na paisagem sonora brasileira a presença de jingles que
permanecem na mente das pessoas mesmo com o passar dos anos, e fazem parte não só
do repertório musical do rádio e da televisão, mas da linguagem cotidiana, na reprodução
de frases e expressões que divulgam ainda mais a mensagem comercial e trazem à tona a
lembrança da mídia. Assim, a pesquisa realizada neste ano, além de abordar a recepção
das “canções da mídia” (VALENTE, 2004) em análise comparativa dos anos de 2012 e 2013,
buscou ampliar as investigações no campo dessas músicas compostas especialmente para
fins de divulgação de um produto, ou seja, os jingles - que se fixam na memória, mais do
que as imagens a eles associadas (BAITELLO JR., 1997). A pesquisa também aprofundou as
reflexões acerca do gosto musical, que é algo individual e nos revela muito sobre aspectos
psicológicos do ouvinte-receptor. Partimos do uso de novas tecnologias, como questionários
online, enviados através de redes sociais e e-mails com várias perguntas conceituais e
pessoais. Com a análise destas respostas, chegamos a conclusões semelhantes às expostas
por Schaffer em todas as suas análises, enfatizando a realidade brasileira e considerando
que muitas pessoas se alimentam da música da mídia às vezes sem total percepção.
Palavras-chave
jingles, música da mídia, paisagem sonora
364
1. Introdução
Os jingles, que são essencialmente um tipo de música feita para a mídia,
formam um repertório à parte dentro do cenário musical. Nos sites www.
letras.com.br e www.ouvirmusica.com.br, por exemplo, há uma categoria
específica para as músicas comerciais, definida como letras-de-comerciais ou temas-de-comerciais, possuindo, inclusive, marcadores de acessos. Curtos e diretos, os jingles atendem a propósitos bem definidos e
delimitados nas áreas de comunicação, propaganda e marketing, sendo,
inclusive, tema de diversas pesquisas e estudos nessas áreas. Sendo a
principal característica do jingle “a sua facilidade de memorização, uma
vez que a melodia facilita a assimilação da mensagem verbal, permitindo que o nome do produto seja repetido mais vezes e assim assimilado
pelo receptor da mesma, sem que este se canse do texto” (MELO et. al.
p.1), poucos escritos sobre o jingle são encontrados na área de música. A
música se torna, nesse caso, uma ferramenta para o trabalho desenvolvido nas áreas acima citadas e desta forma pensamos que o jingle não
se constitui como um objeto de análise enquanto obra de arte, em seu
âmbito estético, ou enquanto linguagem, em uma análise harmônica ou
estrutural. Sendo assim, trataremos neste artigo apenas da investigação
de seus fenômenos de reprodução e recepção.
A INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, em seu XXIV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, em Campo Grande - MS, definiu o jingle como “uma propaganda
cuja mensagem é musicada e fácil de ser cantarolada e recordada. A melodia do jingle é criada por um músico e a letra pode ser feita pelo redator da agência publicitária ou por um poeta. A música contribui para a
fixação desse tipo de propaganda.” (apud MONTEIRO; RIOS, p.1). Melo et.
al. (p.1) especificam os tipos de jingles que encontramos no rádio e na TV:
o termo jingle vem do inglês e significa tinir, retinir, soar. Na
linguagem publicitária, entretanto, ele é definido como uma
composição musical e verbal de longa (15 a 30 segundos, às vezes,
365
mais, contendo as características de uma canção) ou curta duração
(uma frase ou fragmento de frase musical associado a um nome de
marca ou de um slogan; são estes respectivamente jingle-assinatura
e jingle-slogan) feita especificamente para um produto ou serviço.
Utilizado de forma coloquial também na língua portuguesa, esse termo
técnico é reconhecido e identificado no cotidiano das pessoas. Os participantes de nossa pesquisa souberam identificar o que é um jingle, com
exceção de uma única resposta que se referiu à frase veiculada em um
comercial, e não a uma música.
Pesquisa: a recepção dos jingles
O questionário on-line para esta pesquisa foi publicado nos meses de
maio e junho de 2013 através da tecnologia Google Docs, e as respostas
foram disponibilizadas para os autores da pesquisa através de uma planilha chamada Google Spreadsheet, onde os dados puderam ser tratados
e analisados. A divulgação do questionário foi feita por e-mails a contatos pessoais dos participantes e associações, e por meio da rede social
“Facebook”. Em 2012, obtivemos a participação de 260 pessoas; neste ano,
obtivemos apenas 68 pessoas, entre 18 e 59 anos, residentes em diversas cidades do Brasil – principalmente nos estados de Mato Grosso do
Sul, São Paulo e Paraíba. No entanto, as poucas respostas nos levaram a
constatação de dados muito interessantes sobre a maneira como esses
participantes percebem e interpretam as mensagens contidas nos jingles
veiculados no rádio e na televisão.
Na primeira e nas últimas questões, procuramos traçar um perfil dos participantes, onde constatamos que a grande maioria tem conhecimento
musical (54 pessoas) e, portanto, deduzimos que esse público tem maior
interesse em participar voluntariamente de uma pesquisa sobre música.
Entre as respostas dadas para a questão 2 - “cite algum jingle vinculado
atualmente na TV ou rádio”, cerca de 10% das pessoas declara não se
lembrar de nenhum jingle e entre essas respostas, algumas afirmam que
366
nem assistem à TV, nem ouvem rádio. Entre os jingles citados nas respostas, o que consta mais vezes é o do comercial da FIAT, intitulado “Vem
pra rua”, composto e cantado pela banda “O Rappa”. No entanto, não se
trata de um jingle composto especificamente para o comercial da fábrica
automobilística, mas de uma música que faz parte do repertório da banda. Essa categoria de música associada a algum produto – e que não foi
concebida como jingle - consta na questão seguinte, e por esse motivo
será analisada posteriormente.
Vários outros jingles e seus produtos figuraram entre as respostas, e entre os que foram citados mais de uma vez estão os de produtos diversos: Dolly Guaraná, rede de supermercados Pão de Açúcar, refrigerante
Coca-Cola, bancos Itaú e Caixa Econômica Federal, sanduíche Big Mac,
produtos de limpeza Ypê e Assolan e remédio Apracur.
No caso do jingle de Dolly, que figura como o mais acessado na categoria
letras-de-comerciais no site www.letras.com.br (http://www.letras.com.
br/#!temas-de-comerciais/guarana-dolly-(dolly)), podemos inferir que
sua primeira versão era facilmente memorizada por ter um texto de poucas palavras – que, obviamente, são o nome do produto e seu slogan – “o
sabor brasileiro”. Aos poucos, o jingle foi se modificando e ganhou novas
versões, com um texto maior e em ritmo de samba.
Podemos também inferir que o conjunto de jingles da rede de supermercados Pão-de-Açúcar nos chama a atenção por seu diferencial, embora
a produção seja muito simples. A jovem Clarice Falcão, que se tornou a
cantora-propaganda do supermercado, aparece solando uma melodia repetitiva em prosódia não convencional – às vezes o texto é pronunciado
tão rapidamente que precisamos prestar atenção para entender -, com o
acompanhamento simples de um violão (e, às vezes, a aparição de outros
instrumentos, como o clarinete). Essa combinação induz o ouvinte a refletir sobre o slogan da campanha altruísta: “o que você faz pra ser feliz?”.
A pergunta fica associada ao supermercado, e fatores como a duração do
comercial e a sua repetição contínua durante a programação contribuem
367
para que seja facilmente fixada na mente dos telespectadores e radiospectadores.
O Banco Itaú, que também foi citado na pesquisa, tem diversificado suas
propagandas, com o slogan “isso muda o mundo”, abordando da mesma
forma temas altruístas que vão se alternando, como a sustentabilidade, a
educação e a solidariedade. Temas culturais também são apresentados,
chegando até mesmo a mostrar a relação das crianças com a música
clássica, o que também nos chama a atenção – afinal, podemos dizer que
as pessoas se identificam com as causas apresentadas e não necessariamente com os jingles apresentados ou trilhas sonoras das campanhas
publicitárias.
No caso da Caixa Econômica Federal - outro banco citado nas respostas
-, a atual propaganda não traz o jingle que foi veiculado nas propagandas
durante muitos anos (“vem pra Caixa você também, vem!”). A campanha
atual “o Dudu está lendo” traz à cena um menino que lê a logomarca da
Caixa por onde passa; mas, pelo que pudemos interpretar, o jingle continua na memória das pessoas, mesmo não sendo veiculado atualmente
junto às imagens.
Outros jingles foram se modificando, como é o caso da Coca-Cola, que
atualmente associa o consumo de seu produto à torcida brasileira para a
copa do mundo de 2014 – um tema com o qual os brasileiros tem se identificado bastante. No caso do sanduíche Big Mac, a melodia e o texto que
são veiculados no Brasil desde a década de 1980 (“dois hambúrgueres,
alface, queijo, molho especial, cebola e picles num pão com gergelim: é o
Bic Mac”) persistem principalmente na mente da chamada “geração Mc
Donald’s”, que vivenciou na infância ou juventude a chegada da rede internacional de hambúrgueres no Brasil. Nos anos 2000, o famoso Jingle
foi reapresentado com uma versão em rap. No gráfico abaixo, observamos a ocorrência das respostas da pesquisa:
368
Apracur
Caixa Econômica Federal
Coca-cola
McDonalds
Dolly
Série1
Ipê
Pão de Açucar
Não lembra
Vem pra rua
Outros
0
5
10
15
20
25
Com relação à questão 3, “você conhece algum produto associado a uma
música conhecida (que não seja um jingle) vinculado atualmente? Qual
é o produto e qual é a música?”, novamente alguns participantes se confundiram, embora a questão esteja claramente explicitada (em negrito).
Algumas respostas trazem jingles que estariam melhor posicionados
como resposta da questão 2, como é o caso da propaganda das lojas Marisa (“de mulher pra mulher, Marisa”). A música “Vem pra rua”, já citada
anteriormente como resposta na questão 2, figura novamente na questão
3, onde melhor se enquadra por ser uma música do repertório da banda
brasileira “O Rappa” – que, segundo o site Wikipédia, é “uma banda brasileira conhecida por suas letras de forte impacto social”. Ainda segundo
a fonte de consulta da Internet, “seu ritmo não é exatamente definido nem
mesmo pela própria banda”. Não se trata de um jingle composto especificamente para o comercial da fábrica automobilística, e seu texto traz à
tona o espírito de uma unidade patriótica. Curioso é que essa música que
tem sido usada tanto para embalar a revolta das manifestações populares que se alastraram pelo Brasil e que se originaram com o aumento das
369
passagens de ônibus na cidade de São Paulo, a maior metrópole do Brasil
(há vídeos no Youtube que trazem imagens das manifestações e sobre
as imagens, soa a música em questão), quanto para evocar o espírito da
torcida brasileira: “vem pra rua, que é a maior arquibancada do Brasil”. A
propaganda da FIAT traz imagens alusivas à Copa do Mundo que se realizará no Brasil em 2014, e assim, ao contrário da revolta política, invoca
a paixão pelo esporte (futebol).
Entre as músicas associadas a um produto, a mais citada foi a da propagada do telefone celular Samsung Galaxy, que traz a música “Verão”, de
“As quatro estações” de Vivaldi – embora somente o nome do compositor
tenha sido referenciado, e não a música. Compositores e bandas de rock
brasileiras, com suas respectivas composições foram lembrados nessa
categoria – como Tom Jobim, Lulu Santos, Lô Borges, Frejat (da banda
Barão Vermelho) e Legião Urbana. Várias outras músicas foram citadas,
sendo que as seguintes constaram mais de uma vez nas respostas: “Rosa”,
de Pixinguinha, no comercial de cosméticos do Boticário e “É o amor”,
de Zezé de Camargo e Luciano, que é cantada no comercial do tempero
Sazon. Mas o mais curioso é a associação entre o funk “Lelek lek lek” (de
autoria de Passinho do Volante e interpretada por Mc Federado e os Leleques) e o carro novo da fábrica Mercedes Benz (Novo Classe A), que nos
leva a refletir nas razões que estabeleceram esta associação - como apontam as duras críticas apresentadas no vídeo da propaganda postado no
site do Youtube - http://www.youtube.com/watch?v=bRKnw4HdhyI. Ou,
em contraposição, nos leva a pensar se a escolha da música (cujo clipe
tem mais de 37 milhões de acessos no site do Youtube) foi criteriosa, se
foi pensada além do fato de sua popularidade.
Outros tipos de produto foram lembrados, como sabonete e cervejas,
sem especificar a música utilizada para a campanha comercial. A palavra “sim” refere-se às respostas positivas para a pergunta (indicando que
a pessoa se lembra de um produto associado a uma música conhecida,
370
sem, no entanto, especificar a música ou o produto). Tais respostas são
representadas no gráfico abaixo:
Sim
Sabonete
Boticário
Sazon
Samsung Galaxy
Série1
Telesena
Vem pra rua
Cerveja
Não lembro
Outros
0
5
10
15
20
25
A questão 4 levou os participantes a pensarem sobre músicas que ficaram na lembrança: “algum anúncio marcou sua infância de modo que
você se recorde ainda hoje da música ou jingle? Qual é o produto e qual
é a música (ou parte dela) ?”. Vários produtos foram lembrados juntamente com seus jingles, sendo que o mais citado foi o do Guaraná Antártica
(“pipoca na panela começa a arrebentar, pipoca com sal, que sede que
dá”). Esse jingle traz uma música que nos lembra o ritmo de rock dos
anos 1960. Depois do jingle do guaraná, os dois mais citados, em mesma
quantidade, são o das Lojas Pernambucanas (“é o frio: não adianta bater,
que eu não deixo você entrar, é lá nas Pernambucanas que eu vou aquecer o meu lar”) e do Café Seleto, que foi bastante veiculado na década de
1980 e recebeu uma paródia muito difundida entre as crianças na época
– o que, talvez, contribuiu para que a melodia se fixasse na memória. No
gráfico abaixo, encontramos ainda outros jingles mencionados, como o
da lanchonete Mc Donalds, das lojas Mappim, da companhia aérea Va371
rig e dos produtos Cremogema, Biotônico (Fontoura) e Bombril. A música do iogurte Danoninho è uma paródia da composição para piano
“Schopsticks”, popularmente conhecida como “O bife”.
McDonalds
Mapim
Cremogema
Biotônico
Varig
Parmalat
Danoninho
Série1
Bombril
Não lembro
Café Seleto
Pernambucanas
Guaraná Antártica
Outros
0
5
10
15
20
25
Nessa questão, novamente houve uma confusão entre as respostas, pois
a música “Aquarela”, de Toquinho, é citada por duas pessoas como jingle dos lápis de cor da Faber Castell. No entanto, a música foi composta
anteriormente, e não com o objetivo de se vender lápis de cor – sendo,
portanto, melhor posicionada entre as respostas da questão 3.
O site “Clube do Jingle” (www.clubedojingle.com) traz uma seleção de
jingles apresentados em forma de vídeos do Youtube e informações sobre os mesmos, como a data de criação e a biografia de seus autores, e
ainda traz o ranking dos mais acessados. Entre eles, o já citado comercial
do Guaraná Antártica (que segundo o Clube do Jingle, é de autoria de
Mineiro, Brunetti, Novaes, Simão e Campanelli), e também dois outros
jingles citados nas respostas da pesquisa: o da Parmalat (dos mesmos
372
criadores, segundo o site) e o do Shampoo Johnson’s, de autoria do compositor Hélio Ziskind (compositor de músicas infantis para a TV Cultura).
O fato de termos em mente jingles de nossa infância e juventude nos
leva a refletir sobre o nosso próprio processo de memorização musical
em âmbito psicológico e muitas vezes irreflexivo. Sem intenção de julgar
a qualidade musical, é interessante pensarmos no modo como a mensagem foi por nós recebida e arquivada. Os criadores de jingles conseguem
captar o que nos motiva, o que nos emociona, o que agrada e o que nos
chama a atenção e procuram aplicar à música em associação ao produto;
no entanto, a reflexão de uma das participantes nos leva a pensar na eficácia da propaganda quando somente a música é lembrada: “vejo muitas
vezes pessoas cantando e comentando jingles que ouviram na TV ou rádio. O que acho curioso é que muitas vezes ouvimos e até reproduzimos a
música mas não lembramos a marca do produto”.
3. A música da mídia na mente
Conforme já exposto, muitas vezes a música da mídia também é utilizada
em associação a um determinado produto para promover suas vendas,
sendo, inclusive, confundida com um “ jingle”. Esse tipo de composição,
sem dúvida, também toma parte da paisagem sonora contemporânea,
não sendo só veiculado no rádio e na televisão, mas também sendo cantado e lembrado na linguagem oral do cotidiano. No ano de 2012, nossa
pesquisa sobre a paisagem sonora (CARVALHO JR; MOREIRA, 2012) abordou principalmente a maneira como as pessoas percebiam os sons em
seu cotidiano e como percebiam a música da mídia, questionando como
sons e música afetavam o seu dia-a-dia. Assim, constatamos que, entre os
260 participantes da pesquisa, a maioria se sentia afetada negativamente
tanto pelos sons ao seu redor, quanto pela música da mídia. Mas o que realmente nos chamou a atenção foi o fato de que muitas pessoas em 2012 e
2013, ao serem questionadas sobre a música mais tocada na mídia, responderam que não sabiam ou não se lembravam, o que demonstra o desinte-
373
resse ou a distância desse tipo de manifestação musical de certa parcela
da população. Encontramos um exemplo deste pensamento na fala de
um participante (2013): “Ando bem distante da mídia, (...) justamente pelo
que ela tem de: 1) imposição de gosto, 2) cardápio limitado, 3) nivelado por
baixo, devido a 4) interesses puramente comerciais.” Muitas pessoas, principalmente músicos, tem analisado criticamente como a música tem se
manifestado nos meios midiáticos e como influencia o seu público-alvo,
assim como percebemos na fala deste outro participante (2013):
“para quem ouve rádio e vê televisão várias horas por dia, esta música
e os valores ligados a ela acabam por ser uma imposição social/
cultural. Assim as pessoas se vêm “obrigadas” a aprender, decorar
a letra, saber a coreografia dela, pois se forem a uma festa, tem que
saber cantar e dançar. Não podem ficar “por fora”. Da mesma forma,
vão se vestir como o “ídolo” cantor se veste, pentear o cabelo do jeito
dele. Usar os produtos que ele usa, ou os que ele faz propaganda
(e as vezes nem usa). Vão comprar o CD, baixar o clipe e a música
do youtube... Comprar a revista que tem ele na capa, para saber
detalhes da sua vida... Vão falar do jeito que ele fala. Algumas
partes das letras tornam-se chavões no vocabulário do povo.” No caso dos jingles, percebemos também que muitas pessoas estão atentas aos efeitos da mídia na manipulação da música:
“No sentido comercial, a música, quando bem feita e vinculada
à algum produto, aumenta consideravelmente as vendas, à
exemplo das campanhas da Coca-Cola. Já as que não servem
de veículo de venda de outros produtos, influenciam o modo
de comportamento da maioria da população. As canções mais
tocadas refletem o senso-comum do público que a consome,
assim como as ideias e o comportamento de uma geração.”
Porém, ao mesmo tempo e de forma contrastante percebemos, em muitos casos, um senso comum predominante de certos participantes: “a
letra da música pode até não ser interessante, mas de tanto tocar acaba
374
ficando”; “a música entra na cabeça das pessoas e toma conta, lembramos a todo instante”.
Na questão “você tem observado como a música da mídia afeta o dia-a-dia das pessoas ?”, apenas 6 participantes – todos músicos - responderam que não, pois não estão atentos à música da mídia, ou então, argumentam o contrário: que a mídia é que reflete o que o grande público
quer ouvir. Já a grande maioria dos participantes respondeu que sim,
observando que a música da mídia influencia as pessoas em seu dia-a-dia. Obtivemos várias respostas interessantes. Uma delas afirmou que
a partir da pergunta, refletiu sobre o assunto: “quando uma música ‘está
na boca do povo’ ela tem grande exposição na mídia... mas é difícil diferenciar se a música está na mídia pois muitos comentam sobre ela, ou
vice-versa. A mídia influencia sim o dia-a-dia das pessoas”.
Já afirmamos, na pesquisa de 2012, que embora os gestores de mídia
argumentem que as músicas mais tocadas tem relação direta com o gosto musical do público, existe uma parcela da população brasileira que
possui um gosto diferenciado e que não escolhe o que ouvir segundo as
tendências da mídia – embora seja atingido por ela, em situações onde
não é possível “fechar os ouvidos”. Em outras palavras, pessoas que se
recusam a aceitar o que lhes é imposto pelos meios de comunicação de
massa, constituindo o que denominamos “contracultura midiática” (CARVALHO JR; MOREIRA, p.12). No entanto, constatamos também um grupo
que sobrevive inconsciente da imposição e domínio dos meios midiáticos na produção comercial de música.
Com relação à música mais tocada na mídia, observamos que no ano
passado a música de Michel Teló (“Ai, se eu te pego”) foi, seguramente,
a grande revelação das paradas de sucesso, superando qualquer outra
música mencionada na nossa pesquisa e também nos sites da Internet. A
música foi, inclusive, citada na pesquisa de 2013. Mas neste ano, notamos
que os participantes tiveram mais dificuldade para definir a música da
mídia. Como no ano passado, as respostas “não sei” ou “não me lembro”
375
lideraram a pesquisa; no entanto, houve várias músicas citadas e não
houve nenhuma música em destaque, com número de votos bem superior em relação às outras. As mais citadas foram “Show das poderosas”,
da funkeira Anita, e “Camaro Amarelo”, da dupla sertaneja Munhoz e
Mariano. conforme mostra o gráfico:
Quadradinho de 8
piradinha
"tche re re tche tche"
Naldo
lék, lék....
Esse cara sou eu
Série1
ai se eu te pego
Show das Poderosas
Camaro Amarelo
Não sei.
Outros
0
5
10
15
20
25
30
4. Algumas considerações sobre o gosto musical
A proposta de continuidade da pesquisa sobre Música e Mídia partiu da
premissa de que levamos as pessoas a refletirem sobre sua maneira de
ouvir a paisagem sonora à sua volta, levando em conta que a música da
mídia toma grande parte dessa paisagem. Participantes da primeira pesquisa (2012) afirmam que mudaram sua escuta a partir das reflexões que
se iniciaram com o questionário: “sim, passei a refletir sobre a música da
mídia, sua interferência na vida das pessoas”.
Com relação à questão sobre mudanças na música da mídia entre 2012 e
2013, é interessante ressaltar que nenhuma resposta foi positiva, no senti-
376
do de perceber uma suposta mudança “para melhor” com relação às músicas que são apresentadas. Uma participante afirmou: “está cada vez pior
com algumas exceções. Com a invasão dos funks e afins está quase intolerável. Acabo sabendo das ditas músicas porque é quase impossível não
escutar, de tanto que elas insistem em tocar. Afinal, ouvido não tem porta”.
No caso dos jingles, consideramos importante ressaltar a participação
desse tipo de composição no cenário musical, pois apesar de serem veiculados diariamente e serem assistidos por milhões de pessoas em nosso país, poucas são as análises críticas feitas a respeito desse vasto repertório. Estudos mais aprofundados, portanto, ainda podem – e devem
- ser realizados, sobretudo no campo da educação musical. Deixamos
aqui uma questão para reflexão: por que os jingles sobrevivem em nossa
cultura, enquanto nossas melodias folclóricas tem sido esquecidas? E finalmente, encerramos com uma frase que nos incentiva a continuarmos
nossa pesquisa: “na verdade, sempre me chamou a atenção a parte musical das propagandas, e essa pesquisa é muito importante, pode trazer
dados que venham despertar aqueles mais distraídos!”. É isso aí !
Referências Bibliográficas
Baitello Jr., Norval. 1997. A cultura do
ouvir. Seminários Especiais de Rádio
e Áudio - Arte da Escuta - ECO. 1997.
http://revista.cisc.org.br . Consulta em 04/2013
Carvalho Jr, Deusany; Moreira, Ana Lúcia
I.Gaborim. 2012. Paisagem sonora no
século XXI: sons e música como elementos
incômodos ou abstraídos. Anais do
8º Encontro Internacional de Música e
Mídia. Universidade de São Paulo, 2012.
Melo, Solange Tavares; Nascimento, Marta
Rocha; Santos, Cláudia da Silva. SANTOS,
Clerivaldo M.S. 2006. A importância dos
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http://www.portcom.intercom.org.br/pdf
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Monteiro, Maria Clara Sidou; Rios, Riverson.
As representações dos jingles para as
crianças dos anos 80 e 90 e os jovens
adultos de hoje. Intercom – Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da
Comunicação XI Congresso de Ciências
da Comunicação na Região Nordeste.
Teresina,14 a 16 de maio de 2009.
Schafer, Raymond M. 2011. A afinação do
mundo. 2.ed. São Paulo: Ed. Unesp.
Valente, Heloísa. A. D. Música é informação!
- Música e mídia a partir de alguns
conceitos de Paul Zumthor. V Congresso
da Seção Latino-Americana da
Associação Internacional para o Estudo
da Música Popular, IASPM-LA, 2004.
377
Dá meu Danoninho pra eu
virar herói: encantamento
e persuasão no jingle
Danuza Pessoa Polistchuk
Universidade Municipal de São Caetano do Sul
[email protected]
Resumo
Este artigo, que permeia as disciplinas propaganda, música e filosofia, objetiva encontrar
uma possível relação entre a simbologia do herói e o jingle Me Dá Danoninho, do fabricante
de iogurtes Danone, por meio da análise da letra e do texto musical, e observar se esse
simbolismo caracteriza finalidades de encantamento e/ou persuasão. Para atingir esses
objetivos, a análise será feita sob a luz da semiótica da cultura, justamente por tratar-se de
simbolismo e significação. A análise da letra e do texto musical não se limitará aos aspectos
explícitos apresentados no jingle, mas também àqueles que ofereçam a possibilidade de
relacioná-los ao simbolismo do herói. A relevância deste artigo está na possibilidade de
se encontrar na propaganda cantada aspectos simbólicos do herói, comumente usados na
propaganda impressa, e apontar se essa simbologia é usada como persuasão, com intenção
clara de convencimento, ou também como encantamento, contribuindo para a sedução.
Palavras-chave
jingle, herói, persuasão, encantamento
378
Introdução
A propaganda, um produto cultural do nosso tempo a serviço da comunicação de marcas, produtos e serviços, utiliza-se de estratégias discursivas diferentes para cada tipo de público. A argumentação de uma peça
publicitária também varia de acordo com os propósitos do anunciante e,
obviamente, do seu consumidor alvo. Nesse sentido, os criadores das peças publicitárias buscam apelos em diferentes fontes da própria sociedade. A vida cotidiana, aspectos culturais, assim como o mito e os elementos simbólicos podem ser motes criativos da propaganda na tentativa de
alcançar a sedução e a persuasão.
No que se refere ao jingle publicitário pode-se dizer que é uma peça com
discurso híbrido, que mistura argumentos racionais e emocionais, a fim
de aproximar a mensagem do consumidor, de persuadir e encantar ao
mesmo tempo. O principal objetivo de um jingle é que ele perdure na
memória do ouvinte, mesmo após anos de sua veiculação, conforme afirma Sampaio (2003, p. 72):
A grande vantagem do jingle é que, por ser música, acaba tendo
um expressivo poder de “recall”, pois é aquilo que a sabedoria
popular chama “chiclete de orelha”. As pessoas ouvem e não
esquecem. Assobiam ou cantam, mas guardam o tema consigo.
O jingle é algo que fica, como provam as peças veiculadas
durante um período e tiradas do ar, mas que muitos e muitos
anos depois ainda são lembradas pelos consumidores.
Para que isso aconteça, letra e texto musical se complementam para que
o ouvinte, além de lembrar da peça após anos, reconheça a marca, produto ou serviço como uma alternativa válida na hora de consumir. Se,
por um lado, a letra deve ser objetiva, direta e repetitiva, o texto musical deve envolver esse consumidor, geralmente, pela emoção, e reforçar
sonoramente as ideias descritas na letra. Nesse sentido, o jingle Me dá
Danoninho, da fabricante de iogurtes Danone, possui uma letra repetitiva (sem ser apelativa), objetiva e que carrega em si os benefícios cen379
trais do produto, ou seja, seus elementos nutricionais. Já o texto musical,
uma paródia da música Chopsticks, de De Lulli, por sua vez, é alegre e
vibrante, sobre uma valsa tocada no piano. Após uma análise mais detalhada, pode-se reconhecer nessa peça publicitária a simbologia do herói,
como se o jingle fizesse do produto uma espécie de elemento mágico que
transforma a criança no herói de suas próprias aventuras. Sob essa temática, esse artigo de caráter exploratório tem o objetivo de reconhecer, por
meio da análise da letra e do texto musical desse jingle, elementos que
possam ser associados ao simbolismo do herói.
1. O herói
O herói teve origem nos mitos, cujos mais destacados são os da Grécia
antiga, como o mito de Prometeu, Pandora e Epimeteu. Os mitos são narrativas que ensejam verdades coletivas, que tratam da realidade segundo
a interpretação de certa comunidade, que tentam explicar as mudanças
e os reflexos dessas mudanças numa sociedade que julga ter perdido
algo justamente por essas mudanças terem acontecido. Conforme afirma
Feijó (1984, p. 3): “O mito seria, então, um consolo contra a história. E o
herói, um consolo contra a fraqueza humana”.
A psicanálise aprofundou os estudos sobre o mito do herói e buscou entender porque eles nos fascinam desde sua origem até os dias atuais.
Sigmund Freud foi primordial esses estudos, quando descobriu que era
possível interpretar os sonhos, e que os sonhos são manifestações do
nosso inconsciente reprimido. O segundo psicanalista que contribui para
o entendimento do assunto foi Carl G. Jung, que relacionou os sonhos
humanos com os símbolos da nossa cultura, chamando esses símbolos
de arquétipos ou imagens primordiais, descrevendo-os como tendências
do inconsciente, que não dominamos, que manifestam-se pelos sentidos,
pela fantasia, e revelam-se por meio de imagens simbólicas. Nesse sentido, Feijó (1984, p. 20) afirma: “A criação e a sobrevivência do mito é obra
do inconsciente que se torna parte da vida cultural de um povo”.
380
O mito do herói, sendo uma manifestação simbólica do nosso inconsciente por meio da fantasia, está presente em diversas criações humanas:
em histórias orais, na literatura, nos filmes, nas artes plásticas, na propaganda, entre outros, e apresenta-se como tipos diferentes de heróis, embora todos realizem feitos que marcam seus grupos sociais ou onde sua
aventura acontece. Para que a análise do jingle possa ser realizada, este
artigo abordará dois tipos de herói: o herói do conto de fadas e o forte de
Friedrich W. Nietzsche, que, embora não tenha a nomenclatura de herói,
tem origem nos mitos da Grécia antiga, onde o herói possuía certas características que serão discutidas ao longo desse item.
1.1. A saga do herói
Para que o herói seja merecedor desse título, não precisa simplesmente
ter as características físicas do forte de Nietzsche, dos heróis da mitologia grega, nem a sensibilidade dos grandes dos contos de fadas. Ele
precisa realizar uma proeza, algo que seja registrado na história. Joseph
Campbell (1990) descreve dois tipos de proezas: a proeza física, em que
o herói, utilizando a força física, numa batalha, por exemplo, salva uma
vida em um ato de coragem; e a proeza espiritual, em que ele consegue
entender a superioridade da vida espiritual, e sai, ao fim da aventura,
com uma mensagem de transformação.
Usualmente, o herói é alguém que, percebendo a necessidade de algo
para si ou para a sociedade, sai em busca desse algo, numa aventura fora
do padrão de sua vida cotidiana, e retorna dessa experiência com aquilo
que buscava e, geralmente, modificado. Joseph Campbell (2003) afirma
que a saga do herói está centrada, então, em três atos: a partida, a iniciação e o retorno. A partida é quando ele sai em busca de uma aventura,
o que só acontece quando encontra uma razão que o desperte para a
empreitada. O eleito pode recusar a empreitada, mas sua vida tende a ser
direcionada para sucessivos problemas, como um efeito dominó, quando
um problema não resolvido desencadeia outros problemas. No entanto,
381
quando o herói aceita o desafio, ele sempre terá a ajuda de coisas exteriores, seja um amuleto com poderes sobrenaturais que irá protegê-lo, ou a
presença de alguém mais velho que detém informações importantes, que
possui conhecimento superior para aconselhá-lo e dar confiança em sua
jornada. O segundo ato da saga do herói, a iniciação, é quando ele tem
que enfrentar as adversidades da trajetória para conseguir sair vitorioso.
Essas provas que ele enfrenta podem ser os seus medos, suas fraquezas,
ou os adversários que querem impedi-lo de ir adiante. Toda a prova passada, ajuda a fortalecê-lo em sua jornada. É durante as provas que o herói
recebe ajuda exterior (de um amuleto ou de alguém superior a ele) e que
o protegerá para que consiga vencer essas adversidades. Nessa etapa, o
herói precisa ter a confiança em si e nos poderes superiores do amuleto
ou da pessoa mais sábia para que, persistindo em seu propósito, vença.
Aqui, geralmente, é o ponto alto de toda aventura heroica. Como se as
dificuldades fossem necessárias para que o herói possa comprovar sua
grandeza, sua superioridade, e faça o feito valer a pena. A última etapa
da saga, o retorno, é representada pelo caminho de volta que o herói tem
que percorrer para, com aqueles que o cercam em seu grupo social, compartilhar sua conquista e sua vitória. O caminho de volta nem sempre
é fácil e tranquilo. Ele pode ter dificuldades para retornar a origem por
estar cansado ou extasiado com o estágio áureo que alcançou ao realizar
o feito. Entretanto, o retorno é indispensável porque geralmente carrega
também a sabedoria adquirida na aventura e que deverá ser partilhada
com os demais. Para que isso aconteça, o herói contará novamente com
a ajuda do amuleto ou da pessoa sábia que o ajudou no ápice da aventura.
Apesar de a saga ser comum a todos os tipos de heróis, as características
de cada um deles são um pouco diferentes. Nesse artigo serão abordados
os heróis dos contos de fadas e a moral do forte de Nietzsche, conforme
abaixo.
382
1.2. O herói do conto de fadas
Geralmente é alguém comum, com vida cotidiana comum, sem fatos
destacados, mas que tem uma missão designada a cumprir seja para ele
próprio, para a família ou para a sociedade. Não é alguém dotado de poderes extraordinários, nem possuidor de força física notável ou inteligência superior. No meio da aventura, será auxiliado por forças extraordinárias representadas por animais, objetos ou pessoas, que lhe conferirão
poderes diferenciados, sabedoria extra ou apresentarão objetos que lhe
permitam dar continuidade a jornada para que ele tenha êxito em sua
aventura. Segundo o psicanalista infantil Bruno Bettelheim (2002, p. 23):
Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa
está ao alcance da pessoa apesar da adversidade - mas apenas se
ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca
se adquire verdadeira identidade. Estas estórias prometem à
criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os
poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá.
O herói do conto de fadas parte do seu local cômodo em busca daquilo
que lhe falta ou que lhe é solicitado, sem nada de extraordinário. No meio
da aventura, o herói passa por diversas situações adversas, recebe ajuda
externa e sai triunfante, geralmente modificado e fortalecido, mas no fim
sempre retorna a sua vida normal, como qualquer ser humano comum.
1.3. A moral do forte de Nietzsche
O forte de Nietzsche é um homem cuja distinção perante os demais está
na força física, na vitalidade, na astúcia, na criatividade e no desejo de
vitória. Esse homem forte, que não está submetido à moral cristã, é sempre vencedor, não importando para ele os princípios éticos que regem a
sociedade. O que o impulsiona é a vida que vibra latente em seu corpo
saudável, forte, disposto, belo. A vitalidade que brota dentro do forte Nietzschiano está ligada a tudo que é bom, a tudo que lhe enche de vida, que
lhe permite sentir-se energizado, satisfeito, vivo, como descreve Chaui
383
(2005, p. 328): “A força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma,
como força da imaginação criadora. Por isso os fortes desconhecem angústia, medo, remorso, humildade, inveja”.
A moral do forte Nietzschiano relaciona-se com a palavra grega aristol,
que significa, segundo Chaui (2005, p. 328), os melhores. “Essa palavra
referia-se àqueles que realizavam de um certo modo excelente os valores
gregos de coragem na guerra, da beleza física e do respeito aos deuses.
São a elite ou a classe dominante”, e que Nietzsche chamou de vontade
de potência. A vontade de potência tem seus moldes nos guerreiros belos e bons das sociedades antigas, como se pode encontrar na citação de
Chaui (2005, p. 328):
Contra a concepção dos escravos, afirma-se a moral dos senhores ou
a ética dos melhores, dos aristol, a moral aristocrática, fundada nos
instintos vitais, nos desejos e naquilo que Nietzsche chama de vontade
de potência, cujo modelo se encontra nos guerreiros belos e bons das
sociedades antigas, baseadas na guerra, nos combates e nos jogos, nas
disputas pela glória e pela fama, na busca da honra e da coragem.
Pela a imagem simbólica do herói ser muito latente nos seres humanos
e despertar sentimentos inerentes, a propaganda utiliza esse ponto comum como artifício de venda, em seu mote criativo na busca de persuadir consumidores alvo. O discurso persuasivo da propaganda e os tipos
de argumentação usados para atingir os objetivos de mercado serão discutidos no próximo item.
2. Propaganda, persuasão e discurso
A propaganda, geralmente, é parte de uma ação mercadológica de marcas, produtos ou serviços, e tem a finalidade de gerar ação positiva no espectador1 a respeito de um anunciante, por meio de mensagens favorá1
Aqui, atribui-se espectador ao indivíduo que interage com qualquer mensagem, de qualquer
meio de comunicação, e não exclusivamente das mídias televisivas, do teatro e do cinema.
384
veis sobre ele, que sejam capazes de impactar esse espectador. As formas
de propaganda podem ser eletrônicas, impressas, sonoras, audiovisuais
e digitais, e todas elas são dotadas de um discurso pensado, formulado com propósito definido, que invariavelmente, é o de persuadir. Nesse
sentido Carrascoza afirma que:
Se há, portanto, um proselitismo natural em tudo o que é falado ou
escrito – pois sempre se visa convencer ou persuadir -, e nenhum
emissor quer ver sua mensagem perdida no vazio, qualquer peça
publicitária intenta alcançar um alto grau de persuasão, uma vez
que idealmente deve desencadear uma ação, o ato de consumo,
ainda que num futuro impreciso. (CARRASCOZA, 1999, p. 18).
A persuasão almejada pelos publicitários e pelos anunciantes acontece
quando o consumidor reconhece na peça publicitária determinados atributos diferenciados da marca, produto ou serviço, e esses atributos despertam-lhe o desejo de consumo. Os atributos de uma marca, produto ou
serviço podem ser tangíveis (percebidos no campo físico) ou intangíveis
(percebidos no campo emocional e psicológico). Dependendo do tipo de
atributo ou benefício percebido, a mensagem o apresenta por meio de
argumentos racionais ou emocionais. O discurso com argumento racional visa persuadir o consumidor pela razão, pelo raciocínio, e para isso,
a mensagem destaca os atributos tangíveis do anunciante, que fará com
que o consumidor reconheça os benefícios físicos. No discurso que se
apoia em um argumento emocional, intenta-se persuadir o consumidor,
como o nome sugere, pela emoção. Nesse tipo de argumento, os benefícios apresentados são intangíveis, e relacionam-se com os sentimentos
do consumidor, com seus anseios íntimos, que podem ser de estima, status, afeto, diferenciação etc. Sobre os tipos de argumentos racionais e
emocionais na comunicação e no marketing, Schiffman e Kanuk (2000,
p. 63) afirmam que:
No contexto de marketing, o termo “racionalidade” implica
que os consumidores elegem metas com base em critérios
385
totalmente objetivos, como tamanho, peso, preço ou quilômetros
por litro. Os motivos “emocionais” implicam a seleção de
objetivos de acordo com critérios pessoais ou subjetivos (ex., o
desejo de individualidade, orgulho, medo, afeição, status).
É bastante coerente que muitos discursos persuasivos da publicidade
utilizem argumentos racionais e emocionais para tentar aproximar o interlocutor da mensagem, e assim, alcançar os objetivos mercadológicos
intentados pelo anunciante. Nesse sentido, razão e emoção causam impressões distintas, porém complementares, que de certa forma, se relacionarão com as necessidades e os desejos do consumidor, parecendo-lhe
agradável e com chances de satisfazer essas necessidades e desejos. Nas
peças publicitárias os argumentos racionais e emotivos são apresentados
em forma de textos, imagens e sons, dependendo da mídia utilizada. No
caso específico do jingle, essas argumentações aparecem no texto (letra)
e na música (melodia, ritmo, harmonia, efeitos sonoros etc.). A letra do
jingle tanto pode apresentar argumentos racionais quanto emocionais,
de acordo com o público e o tipo de produto referenciado na peça sonora.
Já na música, todos os elementos poderão sugerir argumentações emocionais, recorrendo ao apelo sensorial do ouvinte.
3. Música e emoção
Muitos estudos foram feitos na tentativa de compreender de que maneira
a música pode resgatar ou despertar emoções, nas áreas da psicologia, da
neuropsicologia, da filosofia, da comunicação e das artes. Como exemplo,
há a teoria do contorno, estudada por Pellon (2006), os estudos de Wazlawick (2006) sobre as emoções que a música sugere em grupos definidos, analisados segundo a psicologia, e um dos mais citados, os estudos de Juslin
& Sloboda (2001) sobre música e emoção. Para esse artigo, será abordada
a sugestão de emoções pela ótica do compositor/executor e do ouvinte2.
2
Muito embora a recepção não seja objeto de estudo, considera-se indispensável sua citação
como o conjunto de sujeitos ao qual se dirige a sugestão emotiva da propaganda.
386
O compositor/executor pode pretender causar certas emoções no ouvinte.
Para tanto, ele pode escolher elementos sonoros que sugiram certas emoções. Para Patrik Juslin (2001, apud LISBOA e SANTIAGO, 2006):
[...] o executante comunica a emoção para o ouvinte através
do que ele chama de dicas. Estas dicas seriam alterações em
elementos como: andamento, ritmo, articulação, volume, ou seja,
todo elemento musical passível de alteração pelo executante,
sem que modifique os elementos básicos da partitura.
Essas alterações sugerem alguma emoção ao ouvinte, que poderá percebê-la mesmo sem sentir determinada emoção no momento em que ouve
a música. No que se refere ao ouvinte, a sugestão de emoção pode estar relacionada a alguns fatores culturais, à sua experiência prévia com
música, ao seu estado emocional, ao seu humor, à sua memória e à sua
capacidade de associação, o que Scherer e Zentner chamaram de listener
features, ou características do ouvinte. Segundo os autores:
As características do ouvinte são baseadas na identidade individual
e sociocultural do ouvinte e na convenção predominante do
código simbólico em uma determinada cultura ou subcultura.
Eles podem consistir em regras de interpretação (ex. sistemas
musicais) que são compartilhadas em um grupo ou cultura,
ou na disposição de inferências baseadas na personalidade,
experiências anteriores e talento musical. Estes fatores podem
ser resumidos em expertise musical, incluindo as expectativas
culturais sobre os significados musicais, e disposições estáveis
não relacionadas à música, tais como personalidades e hábitos de
percepção. Além disso, estados transitórios do ouvinte como estados
motivacionais, concentração ou humor podem também afetar a
inferência musical da música (SCHERER; ZENTNER, 2001, P. 4).3
3
Texto original: “Listener features are based on the individual and sociocultural identity of the
listener and on the symbolic coding convention prevalent in a particular culture or subculture. They can consist of interpretation rules (e.g. musical systems) that are shared in a group
or culture, or of inference dispositions based on personality, prior experiences, and musical
talent. These factors can be summarized into musical expertise, including cultural expectations about musical meaning, and stable dispositions unrelated to music, such as personality
387
Assim, pode-se considerar que os aspectos culturais e pessoais podem
ser determinantes na sugestão de emoções na música, uma vez que, tanto compositor/executor, quanto ouvinte são parte de determinada cultura ou subcultura e são influenciados por elas na hora de compor e na
hora de ouvir a peça.
4. Semiótica da cultura: interdisciplinaridade na análise
A semiótica da cultura vale-se das correlações de diversas áreas do conhecimento, que vão desde o mito até relações lógico-matemáticas. A
interdisciplinaridade na composição dessa corrente teórica permite que
se analise diferentes campos da cultura em um mesmo produto cultural.
Como afirma Irene Machado (2003, p. 56):
Na melhor tradição da cultura eslava, a ETM [Escola de TártuMoscou] desenvolve-se tendo por objetivo a correlação, temática
e estrutural, entre vários campos da investigação científica. Se o
objetivo foi a formulação conceitual para a descrição e comparação
dos vários sistemas de signos, era evidente a necessidade de buscar
correlações e instrumentos em várias áreas do conhecimento.
O campo de investigação da cultura já nasceu abrangente, conforme indica a autora:
A necessidade de compreender problemas de linguagem fez com
que a semiótica da cultura já nascesse, não como uma teoria
geral dos signos e das significações, mas como uma teoria de
caráter aplicado voltado para o estudo das mediações ocorridas
entre fenômenos diversificados. Por isso, o eixo básico das
investigações se orientou para os mecanismos semióticos que se
manifestam em diferentes sistemas (MACHADO, 2003, p. 25).
or perceptual habits. In addition, transient listener states such as motivational state, concentration, or mood may also affect emotional inference from music”.
388
O mito herói é um produto cultural que sobreviveu ao tempo e está presente, até hoje, em diversas sociedades. A propaganda também é um produto cultural, com signos próprios e com significações diferentes para
determinados grupos sociais. A música, por sua vez, possui códigos específicos que podem ser decodificados por grupos que partilham esses
mesmos códigos, e percebidos de maneira igualmente diferente em diversas culturas. Assim, compreende-se que este artigo pode ser melhor
entendido com base nos conceitos da semiótica da cultura, pois sua multidisciplinaridade (propaganda, música e filosofia) são, em primeiro plano, linguagens dotadas de signos próprios, mas que combinados podem
virar um subproduto cultural, gerando outros sistemas com significados
diferentes.
5. Análise do jingle
Me dá Danoninho, jingle composto em 1988 por José Mário e Luis Orquestra e produzido pela Orchestra & Co, extinta produtora de áudio, é
uma paródia do famoso Bif, como é conhecida popularmente a música
Chopsticks, composta por De Lulli, muito utilizada como exercício por
estudantes de piano erudito. A letra composta para o arranjo feito para
o jingle do produto, e pouco modificado quando comparado com a partitura original, carrega, essencialmente, os atributos centrais do produto
Danoninho, conforme apresentado abaixo:
Dá Danoninho dá
Me dá Danoninho, Danoninho já
Danoninho dá, Danoninho dá
Toda proteína que eu vou precisar, já já
Me dá, me dá, me dá
Me dá Danoninho, Danoninho já
Me dá Danoninho, Danoninho dá
Cálcio e vitamina pra gente brincar
Me dá.
Lipídios, Glicídios, Protídeos,
Cálcio, Ferro, Fósforo, Vitamina A.
389
Me dá mais saúde, mais inteligência
Me dá Danoninho, Danoninho já.
Me dá.
A letra do jingle indica que a composição nutricional do produto é importante para que a criança esteja melhor para desempenhar suas atividades, para vivenciar suas experiências, para ser o herói de suas histórias.
Nesse sentido, as palavras que levam a esta associação são: pra gente
brincar, me dá mais saúde, mais inteligência. Se levado em consideração
o herói dos contos de fadas, que é sempre uma pessoa comum, que leva
uma vida como a maioria das pessoas, mas que vive uma aventura ao
longo da história. Que, embora, ele não possua poderes extraordinários
como os da mitologia, mas, por ser alguém com boas intenções, recebe
uma ajuda mágica para finalizar com êxito a sua jornada, especialmente
nas adversidades. Para o herói dos contos de fada, a ajuda pode vir de
um ser inanimado, como uma cadeira, de um animal falante, de uma
fada madrinha que balança sua varinha e transforma a sua realidade, ou
de um alimento que dê mais força e vigor ao herói, como acontece ao
Popeye quando come espinafre, que o deixa mais forte e em condições
de superar os obstáculos de sua aventura. Nesse sentido, a relação fica
explicitada na letra do jingle de Danoninho no trecho citado, como se o
produto fosse o aliado que a criança precisa para vencer as adversidades
da vida e se tornar o herói da sua história.
Outra relação possível de encontrar é com a teoria da Moral do Forte, de
Nietzsche, em que o herói é mais saudável, mais inteligente, mais bonito,
mais corajoso que os fracos ou que os cidadãos comuns, e pronto para
vivenciar e sair vitorioso das aventuras que vêm em seu caminho. Mais
uma vez, Danoninho aparece como o elemento que dá o apoio necessário para que o herói permaneça saudável, inteligente, por possuir ingredientes essenciais para que isso aconteça.
Uma parte da letra em que se pode encontrar outra relação com o herói
é na descrição rimada de alguns dos ingredientes nutricionais: lipídios,
390
glicídios, protídeos, que, além de serem os responsáveis para ajudá-lo em
sua saga, a combinação da rima pode levar o ouvinte a completar o raciocínio com a palavra prodígio. O herói ou já é um prodígio, como os da
mitologia, que em sua maioria são deuses ou semideuses, ou se torna um
prodígio, alguém diferenciado, superior aos demais, seja pela inteligência, seja pela força, mesmo que venha da ajuda recebida no decorrer da
trajetória.
A letra do jingle destaca essas informações nutricionais, uma vez que
esses são os argumentos racionais, os principais atributos do produto,
que reforçam a mensagem do anunciante e contribuem para que os objetivos mercadológicos sejam atingidos. A letra tem o propósito claro de
persuadir o público-alvo, que no produto em questão são as crianças e as
mães, cabendo à ela dialogar principalmente com a mãe, apresentando-lhe tudo aquilo que o produto tem de melhor, o seu diferencial perante
a concorrência, aquilo que o torna especial, e, principalmente, o benefício que seu filho terá ao consumir o produto. Essa abordagem racional
tem o objetivo de convencer a mãe por meio da razão, e tenta levá-la a
conclusão de que o produto é a melhor opção, o que pode persuadi-la, e
motivá-la a compra.
No texto musical, podem-se considerar alguns pontos que reforçam a
associação do jingle de Danoninho com a simbologia do herói. O primeiro a ressaltar é a utilização da notação musical staccato, que aparece na
partitura original de Chopsticks e que os compositores do jingle mantiveram ao compô-lo. O staccato indica que as notas devem ser tocadas com
movimento seco e rápido, sem que a tecla seja pressionada e mantida até
o fim, sem sustentação, acelerando, de certa forma, a música, sem alterar
o compasso. Essa notação musical pode sugerir alegria e vivacidade à
peça, e é justamente nesse sentido que, ao sugerir tais aspectos, pode-se
encontrar uma relação com o herói em sua saga, sua aventura.
A sensação de aceleração que o staccato promove pode ser relacionada
à própria aceleração do herói na sua empreitada, servindo como pano
391
de fundo da narrativa das ações. Por outro lado, se a criança é um dos
públicos alvo de Danoninho, a alegria e a vivacidade sugeridas por essa
notação musical podem contribuir para o encantamento e a persuasão
desse público, contagiando e despertando o desejo no pequeno consumidor. De acordo com estudos feitos por Patrik Juslin, alguns elementos
musicais quando inseridos na composição ou alterados, podem sugerir
emoções no ouvinte. Para o pesquisador (2001, apud LISBOA e SANTIAGO, 2006), o compositor/executor pode “fazer uma pequena variação de
tempo, usar a articulação staccato, ou usar grande variação de articulação, alto nível do som, timbre brilhante, ataques rápidos, fazer pequenas
variações no andamento, contrastar notas curtas e longas, fazer uma pequena extensão de vibrato” para sugerir alegria na música. Dessa forma,
o staccato realizado na peça original e mantido na execução da paródia,
pode contribuir para deixar o jingle alegre e vivo, sugerindo uma relação
positiva com a simbologia das ações do herói.
Outro ponto que reforça essa possível relação é a alteração de intensidade para forte (f) no decorrer da música, sinalizada no quinto compasso
da terceira linha do pentagrama (Figura 1). Essa intensidade também
indica ao executor que a música, nesse trecho específico, deve ser tocada
com mais força, mais intensamente que as demais partes. Ao sincronizar
música e letra, pode-se notar que essa alteração de intensidade ocorre
no trecho em que a letra menciona as principais fontes nutricionais do
produto: lipídios, glicídios, protídeos, cálcio, ferro, fósforo, vitamina A. Ao
recorrer à saga do herói, em que o ponto ápice acontece quando o elemento mágico externo o ajuda a vencer a adversidade de sua aventura,
a maior intensidade na execução desse trecho pode ser associada a esse
ponto áureo, contribuindo para a sugestão do simbolismo do herói, não
apenas como argumento lógico-racional na letra, mas como argumento
emocional na música, envolvendo o ouvinte em um clima que pode sugerir a vitória.
392
O jingle é interpretado por crianças que pedem o produto em coro (Me
dá, me dá, me dá, me dá Danoninho, Danoninho já), como se atestasse
o reconhecimento, por parte da criança, da importância do produto na
trajetória de herói de suas próprias histórias, assim como Popeye e o espinafre, e essa característica também pode contribuir para persuadir e
encantar as mães.
Figura 1.˜Primeira parte da partitura da música Chopsticks,
base para a paródia do jingle de Danoninho.
393
Considerações finais
Os aspectos abordados neste artigo só foram passíveis de resultados por
ter sido utilizada a semiótica da cultura como uma das bases teóricas, o
que permitiu que os assuntos do tema - música, propaganda e filosofia pudessem ser colocados e analisados conjuntamente.
A partir da articulação do referencial teórico com a análise do jingle Me
Dá Danoninho, é possível reconhecer uma maneira de representação dos
elementos simbólicos do herói e sua saga na peça publicitária sonora. Na
letra, bem composta, fica mais fácil reconhecer a simbologia do herói dos
contos de fadas e do forte Nietzschiano. Ela também consegue transmitir ao seu público-alvo (a mãe) os argumentos racionais necessários
para que a persuasão aconteça. Da mesma forma que esses argumentos
apresentados são racionais, eles também atingem o nível emocional do
público, porque incitam aspirações comuns a toda mãe: ver o filho forte,
saudável e inteligente.
O texto musical reforça determinados aspectos do jingle que podem ser
relacionados com o herói e seu simbolismo. A alegria que uma valsa
transmite, a notação musical que acelera a música, a mudança de intensidade que sugere mais vivacidade e energia, são pontos que, somados à
letra, contribuem para se possa fazer essa relação. O texto musical pode
sugerir emoção, no caso a alegria, muito associada ao fim da saga vitoriosa do herói. Tal correlação só é possível porque o herói, sendo imagem
simbólica do inconsciente presente em nós, faz reverberar o sentimento
coletivo, atuando então, como atributo emocional, cujo papel é seduzir e
encantar tanto a criança, quanto a mãe. Assim, consegue-se reconhecer
o simbolismo do herói na letra e na música do jingle e observar de que
maneira persuasão e encantamento aparecem nessa peça publicitária
sonora.
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394
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v. 24, n. 47, out./dez. 2006, p. 73-83.
395
Muito além do hit: considerações
sobre a junk music
Alex Kantorowicz Buck
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” - UNESP
[email protected]
Resumo
Acreditando na potência do encontro interdisciplinar, o presente trabalho problematiza a
escuta musical no Brasil atual apoiando-se em duas pesquisas recentes que compartilham
do mesmo objeto de estudo, a saber, os efeitos da alimentação de produtos industrializados
e a consequente pandemia de obesidade. O documentário brasileiro ‘Muito Além do
Peso’ e o livro ‘Salt, Fat, Sugar: How de Giants of Food Hooked Us’ tratam da impotência
da sociedade - em escalas macro (políticas governamentais) e micro (orientação
familiar) – no enfrentamento as ações das grandes corporações do segmento alimentício
que manipulam as taxas de sal, açúcar e gordura dos alimentos (processo denominado
‘otimização’) como estratégia de sedução, captura e manutenção de consumidores.
A questão principal deste trabalho se faz a partir da observação de que um hit1
musical é elaborado com a mesma finalidade com que são sintetizados os
alimentos industrializados: existe uma intenção comercial evidente, a de se efetuar
e “contaminar” o maior número de pessoas. Em música, o sal, a gordura e o açúcar
parecem ser substituídos por padrões tonais simples, métricas binárias, pulsos
regulares, discursos curtos, letras fáceis de se decorar e compreender.
Encontrados os denominadores comuns entre a maioria da produção de músicas
comerciais pode-se especular sobre os efeitos da presença hegemônica deste tipo de
música nos meios de comunicação de massa no Brasil, além da possível existência
de efeitos maléficos à saúde quando da exposição a estas músicas grudentas e
descartáveis que cotidianamente são lançadas pelos diferentes tipos de mídia.
Palavras-chave
hit1 musical, jingle, indústria musical, indústria alimentícia, junk music, junk food
396
Introdução: a Analogia entre junk food e junk music
Duas pesquisas recentemente lançadas que tratam da produção e consumo de alimentos industrializados, nos servem como base para problematizar a escuta musical no Brasil atual. A primeira destas pesquisas
(MOSS, 2013) nos apresenta em detalhes como se dão as estratégias dos
químicos contratados pelas empresas do segmento alimentício para a
elaboração dos diversos tipos de alimentos industrializados.
A outra pesquisa, uma produção nacional em forma de vídeo-documentário (RENNER, 2010), trata dos efeitos do consumo em excesso desses
produtos, sobretudo pelo público infantil, relacionando tais efeitos à pandemia de obesidade que se espalha por diversos países industrializados.
Inúmeras doenças provocadas pelo sobrepeso - tais como diabetes, problemas no coração ou desnutrição - vêm aumentando as taxas de mortalidade e diminuindo a expectativa de vida das novas gerações.
Trata-se de um problema muito complexo e sua raiz encontra-se na maneira como as empresas do segmento alimentício construíram seu modelo de negócio: encaram a sociedade como um coletivo de pessoas potenciais consumidoras; o objetivo destas empresas seria o de persuadir
os consumidores a comprarem seus produtos e para isso investem muitos recursos em publicidade e em pesquisas para elaborar alimentos saborosos e viciantes.
Com efeito, a junk food tomou conta das prateleiras de supermercados,
lojas de conveniência, da grande maioria dos estabelecimentos destinados à comercialização de alimentos. O acesso a esse tipo de alimento
tornou-se muito fácil. Tais produtos são baratos, prontos para o consumo,
com sabores atrativos mas de qualidade questionável pois não possuem
os valores nutricionais que o organismo humano necessita.
Mas o que isso teria a ver com música?
397
Nossa percepção é a de que o segmento musical vêm enfrentando problemas muito semelhantes. Problemas, estes, que têm sua origem também no modelo de negócio industrial que sustenta toda a rede de produção e consumo de músicas, e estão diretamente ligados ao surgimento e
estruturação das mídias:
“Desde seu advento, a mídia formou uma dupla indissociável com
a música. Não há filme, programa de televisão ou de rádio que não
a tenha como elemento construtivo. É tão intensa a propagação
da música pelos meios de comunicação que ela adquiriu ares de
onipresença e, hoje em dia, considera-se essa presença como
natural. No entanto, tal fenômeno surgiu somente no início do
século XX... Certamente, as mídias contribuíram para que a
música se tornasse uma das artes mais acessíveis e populares, em
especial uma de suas modalidades: a canção.” (VALENTE, 2007)
De meados do século XX, quando os aparelhos de televisão e rádio se popularizaram e passaram a ser prioridade nas compras das famílias, aos
dias atuais, com a popularização dos aparelhos capazes de armazenar
e reproduzir arquivos em MP3 e o aumento da acessibilidade à internet,
o mercado que está envolvido direta ou indiretamente com a produção,
difusão e consumo de música assumiu uma enorme importância econômica. Comporta as empresas que desenvolvem instrumentos musicais,
instrumentos de escuta, as produtoras fonográficas (majors), os conglomerados de comunicação (rádio, TV), os estúdios de cinema e as empresas de publicidade. A música, a partir do século XX, transformou-se num
grande negócio, e é hoje em dia um ativo que pode gerar lucro.
As pesquisas que tratam do problema da obesidade relacionada ao excesso de consumo de junk food têm contribuído para revelar a impotência da sociedade - em escalas macro (políticas governamentais) e micro
(orientação familiar) – no enfrentamento às ações das grandes corporações do segmento alimentício. A presente pesquisa pretende demonstrar
como a indústria musical constrói sua rede sob as mesmas bases, utilizando os mesmos preceitos que a indústria alimentícia e comercializa
398
um produto sonoro tão vazio quanto o alimento empacotado pronto para
o consumo. Daí surge a analogia proposta entre junk food e junk music.
Na primeira parte do artigo estão contidas informações extraídas das
duas pesquisas sobre alimentação supracitadas e as respectivas relações
feitas com o segmento industrial da música. A segunda parte concentra-se na tarefa de definir os critérios e delimitar o repertório de músicas
que fariam parte do que por aqui denomina-se junk music.
1. Sal, açucar e gordura: o processo de Otimização
e a constituição de um alimento junk
Substâncias essenciais ao organismo humano, o sal, o açúcar e a gordura são ingredientes indispensáveis para a constituição de um alimento
industrializado de sucesso. Ao menos um desses três elementos assume
papel protagonista entre os ingredientes de um alimento junk. Para que
um hit do segmento alimentício seja produzido, este produto necessariamente passou por um processo denominado otimização - optimization (MOSS, 2013) . Tal procedimento pode ser dividido em duas etapas:
a primeira consiste em criar algumas variações de uma fórmula de um
produto, alterando apenas as taxas de sal, gordura ou açúcar do alimento
em questão. Sobre o inventor dessa técnica, o jornalista escreve:
“Ele manipula o alimento propriamente dito, brincando (playing) com
formulas mágicas de sal, gordura e açúcar. [...] Moskowitz procura
pela quantidade precisa de alguns ingredientes para conseguir
o maior apelo possível entre os consumidores. Um pouco menos
disso ou um pouco mais daquilo pode não alterar tanto o sabor
e a textura de um alimento, mas a falha aparecerá nas vendas,
quando até mesmo os menores erros podem causar a demissão de
executivos das companhias alimentícias. [...] Utilizando matemática
avançada e computadores ele cria os alimentos com apenas um
objetivo em mente: criar o maior poder de vício.” (MOSS, 2013, p.28)
Em seguida, o jornalista apresenta uma fala do próprio Moskowitz:
399
“As pessoas dizem: ‘eu sou viciado em chocolate’. Mas porque as
pessoas se viciam em chocolate ou batatas chip? E como fazer
para criar esse vício por esses e outros alimentos? [...] O que
eu digo é, vamos deixar a cargo da ciência. Façamos trinta ou
quarenta versões [do produto]. Ao fazê-lo veremos que gostamos
de umas versões mais do que outras. [...] Os modelos matemáticos
associam os ingredientes às respectivas percepções sensoriais
que provocam, assim posso trabalhar um novo produto. [...] Você
pode, então, construir um modelo matemático que te mostra
exatamente o que está a seu controle e a resposta dos consumidores.
Bingo. Você construiu um produto.” (MOSS, 2013, p.29)
O processo de otimização não se encerra no laboratório. Na segunda etapa do processo, os químicos, já com as versões do produto, submetem-nas à prova. Um exemplo para ilustrar o processo é a descrição de como
se deu o processo para a formulação do refrigerante ‘Cherry Vanilla Dr
Pepper’:
“Para encontrar o bliss point 4 (“ponto sublime”) foram necessárias
sessenta e uma versões de formulas distintas – trinta e uma para
a versão original e trinta para a versão dietética. [...] As formulas
eram então apresentadas aos degustadores que precisavam
ser cuidadosamente supervisionados para que fossem obtidos
os resultados mais precisos. Vez em quando alguém gosta de
mentir, geralmente para apressar o processo de degustação. Mas
o sistema de avaliação de Moskovitz é especialmente desenhado
para engajar os degustadores e convence-los da seriedade do
teste. [...] Os escritórios parecem profissionais, equipados com
computadores. [...] os participantes são bem pagos e o moderador
os avisa que não podem se comunicar nem discutir sobre os
produtos. Eles devem desligar seus telefones celulares. Aí sim
começam a achar que a opinião deles contam.” (MOSS, 2013, p.41)
Fica evidente, pelos depoimentos do criador do processo de otimização,
que trata-se de um procedimento para criar um alimento que desperte interesse instantâneo no consumidor. O processo de otimização não prevê
um acompanhamento a longo prazo para revelar os efeitos provocados
400
no organismo pelo consumo destes alimentos. Os entrevistados não são
convidados, depois de meses consumindo o produto, a fazer avaliações
físicas ou algo do gênero. O imediatismo de tal procedimento nos aponta
para a intenção dos químicos em avaliar apenas, dentre as dezenas de
variações da fórmula do produto, qual a que despertaria maior interesse
entre os degustadores. E tal interesse, dos participantes da pesquisa, se
daria apenas pelo sabor dos alimentos em questão.
Daí que a preocupação dos profissionais em criar alimentos saborosos
se confirma já que, aparentemente, a grande maioria das pessoas utiliza,
como critério para escolha dos alimentos, apenas o sabor que manifestam, legando a segundo plano o valor nutricional e os efeitos maléficos à
saúde que podem provocar:
“Quem entre nós baseia suas escolhas dos alimentos pelo valor
nutricional? As pessoas pegam os alimentos das prateleiras
dos mercados baseadas em como vão senti-las em sua boca, os
sabores que experimentar, sem falar nos sinais de prazer que seus
cérebros vão descarregar como recompensa por terem escolhido
os alimentos mais saborosos. Nutrição não é a prioridade na
cabeça das pessoas na hora de escolher os alimentos mas sim
o gosto, o sabor, a satisfação sensorial.” (MOSS, 2013, p.11)
Ao tomarmos conhecimento do processo de elaboração dos alimentos
industrializados e transportando-o para o universo o musical: quais seriam, então, as estratégias da indústria fonográfica para produzir músicas com apelo comercial? Quais os materiais sonoros e quais as técnicas,
utilizadas pelos compositores e produtores musicais, para organiza-los
em forma de músicas atrativas e, portanto, comerciáveis?
Na segunda parte deste artigo, quando pretende-se apresentar os elementos e as técnicas composicionais para constituir a junk music, estas e
outras questões, esperamos, serão respondidas.
401
1.2 Segunda Etapa: a distribuição
Depois da elaboração do produto, outra estratégia das empresas, no intuito de alavancarem suas vendas e manterem suas marcas no topo como
as mais vendidas, é apresentada com o nome extensões de linha – “line
extentions” (MOSS, 2013). A ideia das extensões de linha apareceu num
momento de crise das empresas de alimentos industrializados e surgiu
da reflexão do mesmo cientista que criou o processo de otimização:
“Moskovitz mergulhou profundamente na leitura e interpretação dos
dados dos testes que fizera até então. Neles, e nos testes subsequentes,
ele fez uma importante observação. Os dados mostravam que as
pessoas tinham preferencias diversas por café, que poderiam ser
divididas em três formas de torra: fraca, média e forte. Cada um
dos pontos de torra era considerado perfeito pelos respectivos fãs.
Esse era um conceito completamente novo.” (MOSS, 2013, p.35)
Essa nova maneira de se pensar os produtos, de criar categorias que
atendessem à várias demandas, pôde ser transposta para outros produtos. Marcas de refrigerantes como a “Coca-Cola” e a “Pepsi” enfrentavam
dificuldades para manter os postos de primeiro e segundo lugares no
mercado de refrigerantes norte-americano. Foi quando os produtos dietéticos, junto com os de vanilla, laranja e limão, começaram a aparecer
sendo distribuídos conjuntamente com a fórmula original do produto,
ocupando, fisicamente, os espaços que poderiam servir à concorrência:
“As extensões de linha não foram concebidas para substituir
os produtos originais. Pelo contrário, servem para trazer
frescor e excitação à marca, e não raras as vezes acabam
por fazer isso tão bem que as pessoas começam a comer ou
beber mais o produto original também.” (MOSS, 2013, p.26)
E conclui:
“O objetivo principal de produção das extensões de linha é
o de ganhar mais espaço nas prateleiras. [...] Adicionando
402
novas cores e novos sabores criam-se novos produtos que
demandam mais espaço físico e quanto maiores as chances
da marca ser vista pelos consumidores, maiores suas chances
de ter seus produtos comprados.” (MOSS, 2013, p.28)
Como pudemos constatar, as grandes empresas do segmento alimentício têm utilizado estratégias no sentido de excluir qualquer possibilidade
de concorrência para com suas mercadorias. Criam pequenas variações
de uma mesma fórmula, a partir da introdução de corantes e sabores
criados artificialmente, e seduzem os consumidores com novas embalagens a comprar os “novos produtos”. Essa pratica configurasse como
um problema já que interfere diretamente na possibilidade de escolha
das pessoas: “as pessoas não podem fazer boas escolhas a não ser que
existam boas escolhas para serem feitas. Em muitas de nossas cidades
a comida não está realmente disponível [...] alimentos saudáveis estão
menos disponíveis em muitos lugares.” (RENNER, 2010, 09’10’’)
O segmento musical enfrenta problema muito semelhante. A hegemonia
da forma-canção nas programações das emissoras de rádio e TV dificulta
o acesso à práticas musicais diversas. No Brasil, de meados do século
XX aos dias de hoje, a capacidade de difusão da indústria fonográfica
aumentou exponencialmente. Sobretudo a partir da década de 70, quando a difusão por frequência modulada (FM) se expandiu à capacidade
de cobertura de quase todo território nacional. A indústria fonográfica,
principal financiadora das emissoras de rádio, é responsável pela definição do conteúdo musical a ser difundido. A estratégia é a de ocupar os
espaços de tempo das programações oferecendo produtos sonoros aparentemente diversos mas que, essencialmente, possuem a mesma fórmula de composição: “é necessário levar em consideração que uma grande
parte destas novidades deve-se, prioritariamente, apenas à estratégias
de marketing. As majors não cessam de inventar novos produtos, a fim
de realimentar seu sistema.” (VALENTE, 2007, p.89)
403
Os gêneros seriam, portanto, criados para ludibriar o consumidor a comprar um produto novo e diferente, quando na verdade são produtos com
pequenas variações desenvolvidos a partir de uma formula já conhecida.
A aparente multiplicidade de gêneros parece sucumbir diante de uma
análise mais aprofundada, de uma escuta analítica focada apenas no objeto musical, que descarta todas as características extramusicais, imagéticas, que nos possibilitariam diferenciar um gênero musical de outro.
Talvez o único parâmetro musical que nos auxiliaria na distinção destes
gêneros seja o timbre.
“Glenn Schellenberg, na universidade de Toronto [...] realizou uma
extensão da minha pesquisa na qual ele tocava fragmentos de 40
canções famosas que duravam até um décimo de segundo, quase a
mesma duração de um estalo de dedos. Os participantes recebiam
uma lista com os nomes das canções que deveriam ligar ao excerto
que ouviam. Com tão pouco tempo para ouvir cada fragmento, os
participantes não poderiam se basear na melodia ou no ritmo para
identificar as músicas. [...] Podiam apenas se basear no timbre, o
aspecto sonoro aparente da canção. [...] Mesmo quando os excertos
eram apresentados ao contrário [...] os participantes ainda eram
capazes de reconhecer as canções.” (LEVITIN, 2006, pg. 151)
Não por coincidência, frequentemente utiliza-se a analogia da cor para
explicar o que seria o timbre de um som. O timbre é o parâmetro que
nos serve para diferenciar um som de um piano em relação ao som de
um clarinete, por exemplo. O ouvido humano é capaz, como aponta a
pesquisa supracitada, de diferenciar pequenas variações timbrísticas, é
capaz de detectar detalhes sutis do campo sonoro. O timbre, enquanto
aspecto aparente de um som, servindo como principal critério para diferenciar um gênero musical de outro, nos alude à prática das empresas do
segmento alimentício que utilizam, como grau de variabilidade entre as
extensões de linha de um produto e sua fórmula original, apenas a cor e
o sabor dos alimentos. Apresentados ao público como gêneros musicais
distintos, brega, arrocha, por rock, sertanejo universitário, pop romântico
e tantos outros, seriam estilos diferentes de um só gênero: junk music.
404
Fato é que, no Brasil existem hoje três mil novecentas e quarenta emissoras de radio que se dividem entre difusão por frequência modulada
(FM) e por amplitude modulada AM (não estamos incorporando aos dados as rádios comunitárias e as webradios).5 Dentre estas emissoras de
rádio, apenas nove dedicam sua programação exclusivamente à música
erudita6, o que representaria uma porcentagem de 0,23% de participação
na programação cotidiana das rádios. As emissoras que se dedicam a
difundir música instrumental e jazz somam, ao todo, dez emissoras,7 o
mesmo grau de representatividade das emissoras dedicadas à música
erudita, 0,23%. Somados os dois dados temos 0,46% de emissoras que
se dedicam à difusão de músicas instrumentais, que fogem ao formato
canção.
Se fizéssemos uma estimativa entre quantos programas, dentro da programação destas emissoras, se dedicam a divulgar músicas de gêneros
contemporâneos tais como música erudita dos séculos XX e XXI, música
eletroacústica, improvisação livre, jazz contemporâneo, free jazz e tantos
outros, esta porcentagem diminuiria próxima a zero.
Os efeitos dessa presença hegemônica das canções nos veículos de comunicação de massa e, especificamente, a forte presença do gênero junk
music, já podem ser detectados:
“ “Se você perguntar a um intelectual brasileiro quais são seus artistas
preferidos, ele responderá: Guimarães Rosa, Joyce, Kafka, Volpi,
Bergman, Glauber Rocha, Caetano e Chico. Nem Villa-Lobos ou
Stravinsky vão passar pela cabeça dele. A música erudita de nosso
tempo não existe para a classe culta brasileira.” Esse diagnóstico
preciso foi fornecido pelo compositor Gilberto Mendes. Ele indicava
uma estranha ausência no “sistema nacional das artes”: a ausência
de debate e interesse pela produção musical das últimas décadas.
Não se trata de reeditar aqui uma querela bizantina entre música
popular e erudita, mas é inegável que algo acontece quando um
país é incapaz de ver, em uma música que não seja a popular, um
momento fundamental de sua reflexão cultural. Da mesma forma
que algo de peculiar aconteceria se um país reduzisse seu sistema
405
literário à produção de crônicas. Talvez seja o caso de se perguntar
se a ideologia cultural nacional não precisaria alimentar a visão
de que música é questão de expressividade, processo produtivo
que brota quase “naturalmente”. Linguagem prisioneira de uma
gramática dos sentimentos que poderia ser codificada no tempo
de uma canção. Mas o que significa uma ideologia cultural para a
qual, fora da forma-canção, só haveria a ausência da imediaticidade
da vida? Ou por que nossa ideologia cultural prefere ignorar tudo o
que não se submete às amarras da forma-canção?” (SAFATLE, 2009)
Evidentemente que gêneros como jazz, música instrumental brasileira,
improvisação livre, live coding, música erudita contemporânea, música
eletroacústica e tantos outros gêneros, tão diversos em suas propostas
estéticas, são ofuscados pela forte ocupação imposta pela indústria fonográfica. Com efeito, não raras as vezes, um ouvinte com pouco contato
com esses diversos tipos de repertório não tem condições de criar diferenciações entre os mesmos: soam um amontoado de sons desorganizados, caóticos. Daí o paradoxo criado pelo cultivo de uma escuta centrada
em uma única maneira de se fazer música (a forma-canção): o ouvinte,
expert em diferenciar os diversos estilos de junk music – sertanejo universitário, pop rock, arrocha etc. – não tem recursos para lidar com a real
multiplicidade de gêneros musicais quando a encontra. Não por acaso o
interesse por parte do grande público em consumir músicas instrumentais, composições que não se “submetem às amarras da forma-canção”, é
ínfimo.
1.3 Jabá e Tô Contigo: Fidelização dos pontos de venda.
Por se tratarem de práticas comerciais ilegais é muito difícil encontrar
dados concretos que comprovem a participação das empresas nesses tipos de transações. Fato é que, depois do alto investimento de recursos
no processo de elaboração do produto (otimização), e da criação das extensões de linha - que visam atender aos gostos mais variados além de
ocupar os espaços das prateleiras impedindo a entrada de produtos da
concorrência - as empresas encontraram meios para conseguir a garan406
tia de que todo esse processo e investimento de recursos não tenham
sido em vão. A prática é chamada de fidelização de pontos de venda, e
foi apelidada como “Tô Contigo”.
Esse programa de fidelização consiste, basicamente, em um acordo entre
as empresas produtoras/fornecedoras e os pontos que dão vazão a seus
produtos, os revendedores. Neste acordo as empresas fornecedoras oferecem diversos benefícios em troca de exclusividade de compra e venda
de seus produtos. Um exemplo, no mercado de bebidas, aconteceu com a
multinacional AMBEV, detentora de 70% do mercado cervejeiro nacional
(CABRAL, 2012). A empresa foi multada em 352,7 milhões de reais pela
confirmação da prática apelidada “Tô Contigo”. O acordo envolvia bares,
restaurantes, mercearias e supermercados:
“O programa “Tô Contigo” virou alvo de investigação da Secretaria
de Direito Econômico (SDE) em 2004, após denúncia da cervejaria
Schincariol. Pelo programa, os estabelecimentos recebem pontos
de acordo com as quantidades de cervejas adquiridas da AmBev. A
bonificação é então trocada por prêmios, como descontos nas compras
de novos produtos. Nos contratos e no material de propaganda do
programa, a AmBev afirma não haver exigência de exclusividade
ou redução de vendas das marcas rivais. No entanto, a SDE apurou
- entrevistando proprietários de estabelecimentos varejistas - que,
na prática, as regras do programa não eram claras e os agentes
de venda da AmBev faziam sugestões de retaliações, caso não
fosse dada a exclusividade nas vendas ou não se reduzisse o
espaço para os concorrentes.” (SOBRAL, 2009, grifo nosso)
Em alguns casos as empresas fornecedoras de produtos chegam a equipar o estabelecimento comercial que se beneficia com novos copos, porta-copos, mesas, cadeiras, geladeiras, e, em troca, os beneficiados só podem comprar e vender produtos da empresa que os ajudou.
Acordo parecido acontece entre as grandes empresas da indústria fonográfica e as emissoras de rádios. A comercialização do espaço na programação das rádios, igualmente uma prática ilegal de comercio, foi apeli-
407
dada no Brasil como jabá. Existem escalas de preços que são estipulados
de acordo à quantidade de vezes que determinada música será difundida,
de acordo com o tempo de cada música e de acordo com os horários das
difusões. Os valores variam também de emissora para emissora, cada
emissora cria sua tabela de acordo com a importância que assume no
mercado (importância, essa, mensurável pelo índice de acessos que cada
emissora possui).
Em seminário organizado pelo Ministério da Cultura em 2008, o maestro Amilson Godoy fez uma dura crítica à prática do Jabá apresentando
dados sobre como a presença hegemônica de músicas produzidas pelas
grandes gravadoras nos principais meios de comunicação interferem em
todo o resto da cadeia produtora de música:
“O jabá é uma prática nefasta. A imoralidade desse negócio atinge
não só os músicos autoprodutores e outros elementos da cadeia
produtiva, mas também toda sociedade, refém da escolha de poucos
que utilizam do poder desse capital para girarem seus negócios,
na maioria das vezes despreocupadas com a questão cultural. [...]
As gravadoras brasileiras atuais, somadas aos autoprodutores, já
representam mais de 80% da produção fonográfica brasileira, mas
com um sério problema: dominam apenas 6% da execução
pública nas rádios. Dizem que reside aí uma das práticas do
Jabá, pois as grandes gravadoras, favorecidas que são pelos altos
recebimentos de Direitos Conexos e Incentivos Fiscais, reaplicam
parte desses recursos no próprio organismo que as beneficia, ou
seja, na compra das programações das rádios. [...] Para que as novas
gerações musicais tenham espaço nas Rádios e TV. Para que se
permita a livre concorrência da produção musical. Para que não
se permita mais o direcionamento criminoso do gosto musical,
nas compras das programações pela indústria cultural da música,
prática considerada como “jabá”. Para que este costume não se
perpetue no nosso País. Que o Jabá seja considerado, no Brasil
crime contra o patrimônio e a identidade cultural.” (GODOY, 2008)
São muitas, portanto, as coincidências entre as práticas das empresas
em ambos os segmentos industriais, de alimentos e de músicas. O mo408
delo de negócio parece ser o mesmo. Mas quanto ao produto que comercializam: haveriam semelhanças também entre os alimentos junk e as
musicas industrializadas? Seria possível adotarmos uma terminologia
como junk music para descrever esse repertório musical? Em resposta
afirmativa, quais os critérios possíveis de serem adotados para identificar uma música junk?
2. O que é Junk Music?
A partir de uma compilação de definições da expressão junk food, obtemos: “alimento altamente calórico, atrativo ou agradável que possui pouco valor nutricional, tipicamente produzido em porções empacotadas
com pouca ou nenhuma necessidade de preparo.” A palvra junk, sem ser
associada à outra qualquer, significa: “Artigo velho ou descartável, considerado inútil ou de pouco valor.” (OXFORD, 2. Ed.)
O termo junk é, portanto, frequentemente associado a outro no intuito de
(des)qualifica-lo, de criar uma dicotomia entre, por exemplo, food e junk
food, science e junk science. Nossa intenção é de propor essa terminologia para criar uma cesura também no segmento musical. Para tanto,
inicialmente será necessário definir aspectos gerais do repertório de músicas junk. Por possuir forte ligação com o verbo, a junk music pode ser
considerada uma subcategoria da forma-canção. A partir de uma compilação de definições sobre a Canção foram extraídos:
“oito elementos a ela associados com maior frequência: (1) o canto /
(2) um texto poético / (3) geralmente acompanhado por instrumento
(4) dentro de uma determinada forma musical / (5) de duração
geralmente breve / (6) com certa interação entre musica e poesia / (7)
relacionado com diversos contextos, como dança, trabalho, acalanto,
reza / (8) de âmbito erudito e popular.” (VALENTE org. VAZ, 2007, p.13)
Sendo a junk music um repertório que está contido dentro dessa categoria musical, destacamos e adaptamos algumas dessas oito características afim de descrever mais adequadamente o repertório musical junk: (1)
409
O canto / (2) um texto não-poético / (3) acompanhado por instrumento
acústico, na maioria das vezes eletrônico (o que barateia o custo de produção) / (4) há sempre um ritmo organizado sobre pulsos regulares / (5)
dentro de uma determinada forma musical / (6) de duração breve / (7)
relacionado com diversos contextos, como dança, shows e entretenimento / (8) de âmbito popular.
2.1 Problemas da terminologia
Logo de início nos deparamos com dois problema básicos que dificultam
a adoção imediata da terminologia:
1) Se os elementos primários dos alimentos junk, de onde provém a analogia, podem ser analisados em laboratórios e mensurados a ponto de sabermos que de fato têm alto índice calórico e pouco valor nutricional; se
comprovamos que o consumo destes alimentos não traz benefícios ao organismo, pelo contrário, o consumo em excesso dos mesmos é considerado uma das principais causas das epidemias de obesidade3; o mesmo
não podemos dizer acerca da junk music. Não podemos comprovar nem
a existência tão pouco a qualidade dos possíveis efeitos maléficos de se
escutar o repertório musical em questão excessivamente. Se tais efeitos
existem, definitivamente não são facilmente detectados como são as alterações corporais, na forma de sobrepeso, provocadas pelo excesso de
consumo de junk food. Tratar-se-ia, portanto, de um problema invisível.
2) Problema maior talvez esteja em definir os limites desse repertório:
o que seria música e o que seria música junk? O que ou quem definiria
essas fronteiras? Uma instituição? O governo? A academia? Como medir
o valor ‘nutricional’ de uma música? Do que consiste esse valor? O que
para uns pode ser considerado ‘lixo’, descartável, inútil, para outro pode
ser extremamente útil. Entramos no delicado campo da subjetividade, do
gosto musical.
410
Com relação ao primeiro problema - a dificuldade em se comprovar a
existência de efeitos maléficos ao organismo humano produzidos pela
escuta excessiva de junk music – podemos pensa-lo a partir da questão
proposta pelo musicólogo Emmanuel Bigand: “sabe-se que a música modifica a organização cerebral de quem a ouve e a pratica intensamente, com efeitos positivos sobre muitas capacidades cognitivas. Mas todo
tipo de música é igualmente capaz de estimular as atividades intelectuais?” (BIGAND, 2007, p. 73)
A pesquisa desenvolvida pelo musicólogo procurou investigar os efeitos
que as músicas produzidas pelos compositores de música contemporânea erudita, em especial as composições dodecafônicas e serialistas, provocam no cérebro. Um dos apontamentos da pesquisa nos mostra que
o simples contato com sons organizados por outras técnicas, diferentes
das consolidadas historicamente pelos sistemas tonal e modal, influenciariam beneficamente o cérebro humano:
“O estudo revelou que os ouvintes compreendem de modo implícito
algumas transformações efetuadas em obras seriais. Isso tende
a provar que a mente humana tem, sob certas condições, a
capacidade de aprender gramáticas seriais. Sem dúvida, o ponto
mais importante é que essa aprendizagem se processa de forma
implícita. Em outras palavras, o ouvido e o cérebro musical
adaptam-se progressivamente às estruturas complexas da
música contemporânea e do sistema serial, sem que o sujeito
tenha consciência disso. Assim, mesmo se o ouvinte ficar muito
desconcertado com este tipo de música, seu cérebro assimila a
organização dessa concepção musical e, assim, modifica seus hábitos
de escuta. [...] Poderíamos então concluir que o cérebro humano
está pronto para aceitar o desafio que lhe foi lançado pela música
contemporânea? A resposta é positiva. [...] Habituar-se a novos
sistemas musicais leva tempo: em 1600 Givanni Maria Artusi, em
L’Artusi, Overro delle Imperfettione, definiu como “insuportáveis ao
ouvido” os madrigais de Monteverdi. Se nosso cérebro consegue
pouco a pouco assimilar as estruturas sonoras que ontem nos
pareciam complexas demais, ou realmente impossíveis de ouvir,
não se poderia dizer que a música modificou nossa mente fazendo-
411
nos descobrir novos horizontes sonoros? É prematuro afirmar
que “o efeito Mozart” será em breve completado por um “efeito
Stockhausen”, mas pode-se pensar que a assimilação dessas
novas linguagens musicais conduz nosso cérebro em direção
a novas formas de pensamento e de representação do mundo,
que não teríamos desenvolvido se tivéssemos permanecido
apegados a nossos hábitos perceptivos e cognitivos. Aliás, não
teria a arte a função essencial de estimular nossos sistemas
de percepção para conduzi-los sempre um pouco mais adiante,
como se a criação artística fosse um motor da evolução do
cérebro humano?” (BIGAND, 2007, p. 76-77, grifo nosso)
Portanto, mesmo que seja impossível, no presente momento, a comprovação cientifica da existência de efeitos maléficos produzidos no cérebro
pelo consumo de junk music, é possível diagnosticar um problema em
como a sociedade brasileira vem lidando com o meio musical: a falta de
acesso à linguagens musicais que fujam das “amarras da forma-canção”
impede que grande parte da sociedade tenha contato e, consequentemente, possa incorporar em suas práticas diárias de audição músicas que
trariam benefícios ao organismo, práticas de escuta que auxiliariam no
desenvolvimento do cérebro humano. A pouca representatividade nos
meios de comunicação de massa de gêneros musicais contemporâneos
como música eletroacústica e erudita contemporânea, jazz, free jazz, música instrumental brasileira e improvisação livre, para citar alguns, é um
indício de que a indústria cultural tem sido eficiente na ocupação dos
espaços das mídias.
Já com relação ao segundo problema – o de definir critérios objetivos,
que transcendam o campo subjetivo do gosto musical para identificarmos músicas junk – propomos nos apoiar em alguns conceitos, dentro do
campo investigativo da estética, do autor italiano Umberto Eco. Sobre
a dialética entre a cultura de massa e a vanguarda, o autor propõe dois
tipos de discurso, o discurso aberto e o discurso persuasivo, e os define
da seguinte maneira:
412
“O discurso aberto, que é típico da arte, e da arte de vanguarda em
particular, tem duas características. Acima de tudo é ambíguo:
não tende a nos definir a realidade de modo unívoco, definitivo, já
confeccionado. [...] O discurso artístico nos coloca numa posição
de “estranhamento”, de “despaisamento”; apresenta-nos as
coisas de um modo novo, para além dos hábitos conquistados,
infringindo as normas de linguagem, às quais havíamos
sido habituados. As coisas de que nos fala nos aparecem sob
uma luz estranha, como se a víssemos agora pela primeira vez;
precisamos fazer um esforço para compreendê-las, para tornalas familiares, precisamos intervir com atos de escolha, construirnos a realidade sob o impulso da mensagem estética, sem que
esta nos obrigue a vê-la de um modo predeterminado. Assim a
minha compreensão difere da sua, e o discurso aberto se torna a
possibilidade de discursos diversos, e para cada um de nós é uma
continua descoberta do mundo. A segunda característica do discurso
aberto é que ele me reenvia antes de tudo não às coisas, mas ao
modo pelo qual ele as diz. O discurso aberto tem como primeiro
significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma
jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis
e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e
de cultura. O discurso aberto é um apelo à responsabilidade, à
escolha individual, um desafio e um estímulo para o gosto, para
a imaginação, para a inteligência. Por isso a grande arte é sempre
difícil e sempre imprevista, não quer agradar e consolar, quer
colocar problemas, renovar a nossa percepção e o nosso modo
de compreender as coisas.” (ECO, 1968, pg. 280, grifo nosso)
O discurso persuasivo seria aquele que:
“ao contrário, quer levar-nos a conclusões definitivas; prescrevenos o que devemos desejar, compreender, temer, querer e não
querer. [...] o discurso persuasivo tende a nos fazer chorar, a
estimular nossas lagrimas, como pode acontecer com uma
fotonovela. [...] quer convencer o ouvinte com base naquilo que
ele já sabe, já deseja, quer ou teme. O discurso persuasivo tende
a confirmar o ouvinte nas suas opiniões e convenções. Não
lhe propõe nada de novo, não o provoca, mas o consola.”
413
O discurso persuasivo seria próprio da cultura de massa e, nesse sentido:
“as mensagens de massa são mensagens inspiradas
numa ampla redundância: repetem para o público aquilo
que ele já sabe e aquilo que deseja saber, [a cultura de massa]
difunde, por assim dizer, sobre o universo uma confortável
cortina de obviedade.” (ECO, 1968, p. 281, grifo nosso)
O valor nutricional de uma música se encontraria, portanto, no efeito
estético que é capaz de suscitar. E tal efeito seria possível apenas a partir
da organização não convencional das estruturas. O gênero da junk music,
por seu lado, pertenceria à segunda categoria de discurso proposta pelo
autor italiano: o discurso persuasivo.
2.2 Padrões tonais, métricas binárias e letras
apreensíveis: constituindo a junk music
A música junk se enquadraria neste tipo de discurso, o persuasivo, por se
tratar de um discurso musical criado a partir de redundâncias, da recorrente utilização de materiais e das mesmas técnicas para organizá-los.
Tivéssemos de dividir os planos estruturais que compõe uma canção
teríamos:
• 1º plano - Melodia
• 2º plano - Texto (letra)
• 3º plano - Acompanhamento instrumental
No primeiro plano da estrutura temos, então, uma sequência de notas (alturas definidas), organizadas sucessivamente no tempo. A grande maioria do repertório de canções veiculadas pelos diversos tipos de mídia,
no Brasil, é composto por melodias tonais. O que vale dizer que, quando
foram elaboradas, obedeciam à regras de probabilidade particulares da
gramática tonal. As notas são organizadas de modo a fazer sentido dentro desse sistema de referencia:
414
“a adesão a uma convenção probabilista e a certa redundância
concorrem para tornar claro e unívoco o significado da mensagem
musical. A regra de probabilidade é a da gramática tonal, em
cujos moldes a sensibilidade do ouvinte ocidental pós-medieval
é habitualmente educada: nela, os intervalos não constituem
simples diferenças de frequência mas implicam na introdução de
relações orgânicas dentro de um contexto. O ouvido escolherá
sempre o caminho mais fácil para captar essas relações,
segundo um índice de racionalidade” (ECO, 1968, p. 164)
Os compositores de músicas junk se utilizam desta mesma gramática
para construírem suas melodias. Mas o que torna sua produção particular é o fato de construírem o material melódico a partir de repetições de
pequenos fragmentos, pequenos padrões tonais estrategicamente elaborados para “grudar”8 em nossas mentes. Esses padrões tonais são facilmente apreensíveis e memorizáveis justamente por seguirem os índices
de racionalidade e obviedade que a gramática tonal permite. O ouvido e
o cérebro se satisfazem com tamanha facilidade em processar a informação, característica esta fundamental para o sucesso de uma música junk.
Os padrões tonais configuram-se, portanto, como um dos três elementos
básicos para a elaboração de um produto sonoro comercial.
Como segundo plano de estruturação do discurso musical da Canção
temos o material verbal, a letra da música. Material, este, que também é
construído a partir de uma gramática, a da língua portuguesa no caso
das canções brasileiras. A estratégia dos compositores-letristas, neste
caso, é construir frases que produzam significados também unívocos, e
que sejam, tal como o material melódico, apreensíveis numa primeira
escuta.
“A teoria da informação, em suas formulações no campo matemático
[...] fala-nos de uma diferença radical entre “significado” e “informação”.
O significado de uma mensagem [...] se estabelece na proporção
da ordem, da convencionalidade e, portanto, da “redundância” da
estrutura. O significado torna-se tanto mais claro e inequívoco
quanto mais observo as regras de probabilidade, as leis organizativas
415
prefixadas – e reiteradas através da repetição dos elementos
previsíveis. Em algumas condições de comunicação tem-se em mira
o significado, a ordem, o óbvio: é o caso da comunicação de uso
prático, da carta ao símbolo visual de sinalização rodoviária, que
visam ser compreendidos univocamente, sem possibilidades de
equívocos e interpretações pessoais.” (ECO, 1968, p.162, grifo nosso)
A maneira com que as palavras são escolhidas e dispostas no tempo obedece rigorosamente à lógica racional do discurso, à lógica do significado.
Não há ambiguidade na interpretação do texto, não existem rupturas
de linguagem. O conteúdo das letras não deixa margens à segundas interpretações. Recursos poéticos jamais são utilizados para construir as
letras deste gênero de canção. Tais recursos seriam de outra ordem, pertenceriam à outra forma de comunicação, a artística:
“quanto mais a estrutura se torna improvável, ambígua, imprevisível
e desordenada, tanto mais aumenta a informação. Informação
entendida, portanto, como possibilidade informativa, incoatividade
de ordens possíveis. [...] É o caso da comunicação artística e do
efeito estético [...] [quando] devemos buscar o valor da informação,
a riqueza ilimitada dos significados possíveis..”(ECO, 1968, p.163)
No terceiro plano de estruturação do discurso musical junk, temos o
acompanhamento instrumental, que poderia ainda ser subdividido em
outras duas camadas: a harmônica e a rítmica. Com relação à primeira camada, a harmônica, seria necessário acrescentar apenas que está
sempre subjugada ao padrão tonal que acompanha. Não há choque na
relação entre os acordes e as funções harmônicas que a melodia tonal
suscita. As progressões harmônicas também obedecem a linearidade e
previsibilidade do discurso melódico tonal. Não raras as vezes, em alguns estilos de junk music, o acompanhamento harmônico é suprimido
e a canção é composta apenas por padrões tonais organizadas sobre um
ritmo.
416
O plano de estruturação rítmica merece maiores considerações pela importância que assume no gênero musical por aqui investigado. O pulso
regular é indispensável para a constituição de uma canção junk e se caracteriza pela repetição de estímulos em intervalos idênticos de tempo.
É uma maneira rígida de organizar os pulsos e obedece ao grau mais
elevado das leis de probabilidade: a repetição idêntica. Essa maneira metronômica de organizar o tempo musical, alude ao universo das máquinas, do relógio e da produção em escala industrial: repetitiva, eficiente
e ininterrupta. No gênero de músicas junk esses pulsos regulares são
organizado em métricas binárias, o que significa dizer que a cada dois
pulsos um é acentuado. E esse padrão é repetido do começo ao fim da
música, sem alterações. É, talvez, a forma de organização métrica mais
elementar que existe. Durante todo o discurso de uma música junk sua
métrica e seu ritmo mantém-se intactos. Essa se configura como uma
das principais característica do gênero junk de música pois é a responsável por suscitar movimentos do corpo, por estimula-lo a dançar.
Tal como o fez o jornalista Michael Moss, ao revelar as três substâncias
indispensáveis a um hit do segmento alimentício (o sal, o açúcar e a gordura), nos parece termos encontrado os três elementos primários que são
comuns à todo o repertório produzido e comercializado pelas grandes
empresas do segmento musical:
• Padrões tonais facilmente apreensíveis (acompanhados ou não por
progressões harmônicas)
• Letras facilmente compreensíveis
• Pulsos regulares organizados em métricas binárias
Estes seriam os elementos primários, o material musical utilizado pelos
compositores para criar os produtos sonoros que serão futuramente “empacotados” para comercialização.
417
A técnica de organização do material que subjaz todo o processo de elaboração do produto sonoro junk está em encontrar a “forma mais simples
de disposição segundo as leis da probabilidade, segundo a forma mais
elementar de redundância, que é a repetição simétrica dos elementos.”
(ECO, 1968, p.167) O compositor concatena seus elementos afim de criar
estruturas cada vez maiores. Os padrões tonais, geralmetne motivos
musicais, são organizados em frases que, por sua vez, formam estruturas
maiores, os períodos musicais. Cada uma destas estruturas foi construída seguindo a lógica da redundância: repetição simétrica dos elementos.
As formas musicais criadas a partir dessa técnica resultam quase sempre
em formas binárias acrescidas de um refrão (seção A + seção B + refrão).
Já com relação ao tamanho da musica, ou o espaço de tempo que esta
ocupa, tais como os alimentos junk, que são empacotados e oferecidos
prontos para o consumo nas prateleiras dos supermercados, o repertório
de junk music já é concebido para se adequar aos espaços onde serão
distribuídos: emissoras de rádio, TV etc. Pudemos constatar que, por vezes, esses espaços na mídia são comercializados e dois dos fatores que
alterariam o preço pela veiculação nas programações são, justamente, a
quantidade de tempo necessário para difundi-la do começo ao fim e o
número de vezes que a música será repetida durante a programação. Esses fatores atravessam diretamente o processo de elaboração do produto
que, parecem ter, em média entre dois a cinco minutos.
2.3 Outras considerações sobre a junk music
Outra condição sinequanon para a música tornar-se hit é a repetição da
mesma na programação das emissoras de rádio e televisão. Quanto mais
determinada música for repetida durante as respectivas programações se possível em diferentes tipos de mídia - maiores suas chances de tornar-se hit. A repetição, como já apontamos, é um procedimento caríssimo ao
hit, está presente também na sua estrutura interna. Muito provavelmente
o que o elevará à tal condição, de música de sucesso, é um bom refrão. O
418
refrão é a seção da música que será repetida diversas vezes, é o artifício
que o compositor utilizará para que a música seja memorizada. O bom
refrão seria aquele que atinge esse objetivo: o de “grudar” na cabeça das
pessoas.
O fato de não haver espaço para qualquer tipo de improvisação reforça
o caráter comercial desse tipo de repertório já que, um produto de qualidade, bem acabado e pronto para o consumo, não pode conter erros.
A improvisação têm como principal característica a convivência com o
risco, com a incerteza do que se sucederá. Nesse sentido a junk music é,
tal como a junk food, uma música pronta para o consumo.
As industrias fonográfica e publicitária são as grandes produtoras desse
gênero musical. São músicas elaboradas desde o início com propósitos
comerciais, objetivando, de alguma maneira, retorno lucrativo. Esses produtos em forma de sons, estão totalmente imersos à lógica do sucesso-fracasso e estão sempre a atender (ou até mesmo a criar) as demandas
do mercado.
Apesar de dividirem esse mesmo propósito, há uma distinção importante entre músicas publicitárias – ou jingles – e as músicas lançadas pelo
mercado fonográfico. Geralmente um jingle é elaborado com a finalidade
se efetuar no indivíduo para transmitir e imprimir uma mensagem que
está atrelada à empresa que pagou um compositor para cria-lo. A música
candidata à hit seria um fim em si mesma, ela é o próprio produto a ser
perpetuado e por isso seu efeito pode ser fugaz, sazonal e momentâneo.
Essa é uma estratégia também utilizada pela indústria alimentícia: criar
produtos enjoativos, para que os consumidores sintam necessidade de
novidades. A sazonalidade é uma poderosa característica do hit, é fundamental para a continuação da linha de produção da indústria fonográfica.
O jingle, por outro lado, justamente por ter essa finalidade de imprimir e
associar-se a uma marca, pode ter uma vida mais duradoura.
419
2.4 O que não seria junk music?
Todas as considerações supracitadas sobre o gênero excluiriam deste
repertório todo e qualquer gênero de música que seja considerado de
raiz, folclórica, étnica, que nasça espontaneamente de um segmento da
sociedade, que não tenha surgido a partir de motivações meramente
comerciais mesmo se utilizando, muitas vezes, dos mesmos elementos
primários que as do gênero em questão – padrões tonais, progressões
harmônicas convencionais, letras facilmente apreensíveis e pulsos regulares.
Não raras as vezes, percebendo o apelo comercial destes gêneros que
nascem espontaneamente do corpo social, o que acontece é a apropriação, por parte das empresas fonográficas, que lançam no mercado suas
versões industrializadas, suas versões junk. Aqui no Brasil esse fenômeno aconteceu algumas vezes. As duplas sertanejas de raiz, por exemplo,
tradicionalmente acompanhadas por violas caipiras, ganharam suas
versões pop na década de 90. Uma explosão de duplas subiam aos palcos acompanhados de instrumentos do universo da música pop internacional: bateria, contrabaixo, guitarras com efeitos de distorção, teclados e
cantoras de fundo. Ainda hoje o estilo sertanejo de junk music é um dos
mais cultuados no Brasil.
Existe, ainda, uma outra categoria de canção na qual os compositores-letristas utilizam os mesmos recursos técnicos de estruturação do discurso musical que os da junk music, mas investem em procedimentos
poéticos para a formulação das letras, o que os excluiriam do gênero
junk. São os casos de compositores como Arnaldo Antunes, Lenine, Zeca
Baleiro, Caetano Veloso que simplificam as estruturas musicais ao máximo, legando a linguagem musical a segundo plano, e também se valem
de formações instrumentais do universo pop internacional. A preocupação destes artistas parece estar em suas criações poéticas.
420
Conclusão
Há indícios de que música e comida tenham em comum muitas outras
características. Para citar um exemplo, recentes pesquisas revelaram que
escutar músicas prazerosas fazem com que o cérebro libere uma substância chamada dopamina (SALIMPOOR: 2009), a mesma liberada quando consome-se alimentos gordurosos e doces, ou quando ingere-se drogas como a cocaína. Outras pesquisas (SACKS: 2007, BENNET: 2002) nos
apontam para a existência de um aparato específico de memória de longa duração no cérebro humano, específico para o armazenamento de informações musicais. Junte-se a esse fato a enorme capacidade que esses
padrões tonais, tão caros ao gênero junk, têm em grudar em nossas mentes: estaríamos diante de um problema de saúde? O fato de carregarmos
conosco, durante anos, um repertório de músicas descartáveis – jingles
de empresas, musicas natalinas, hits musicais – traria algum malefício ao
funcionamento do cérebro? Algo como uma obesidade musical?
Frequentemente, profissionais ligados ao segmento alimentício utilizam
o termo empty calories, ou “calorias vazias” (RENNER, 2010) para designar a matéria prima dos alimentos junk. São alimentos esvaziados do
que um alimento têm de essencial: capacidade de nutrir o organismo
humano. Uma outra terminologia já consolidada e também presente nos
dicionários de língua inglesa é Junk Science: “teorias não testadas ou
não comprovadas, apresentadas como fatos científicos”. (OXFORD 2.ed.)
Também neste caso existe um esvaziamento do que a ciência tem de essencial: seu rigor metodológico. Por tudo isso acreditamos ser pertinente
a adoção do termo junk para designar esse repertório de músicas industrializadas, de músicas vazias. Esse esvaziamento se daria pela ausência
do que uma música tem de essencial: seu valor artístico e seu efeito estético. 1
Hit é um termo inglês que significa obter sucesso, ou tornar-se popular. No caso do mercado
musical as duas noções se confundem já que o sucesso de um ‘single’ (uma música) é justamente tornar-se popular. Existem rankings semanais que medem a capacidade de venda dos
‘singles’. O ranking mais respeitado é o da revista Billboard.
421
2
O termo junk music já existe, foi criado pelo compositor e percussionista Donald Knaak, no
entanto com conotação totalmente diferente da proposta neste artigo. Para o compositor, que
se auto intitula ‘junkman’, junk music é aquela produzida a partir de instrumentos construídos por materiais cem por cento recicláveis. http://www.junkmusic.org/
4
O bliss point seria o objetivo final do processo de otimização. É o ponto em que o produto
atinge “a quantidade de doçura precisa – nem mais nem menos – que torna a comida ou
bebida mais prazerosos” (MOSS, 2013), em outras palavras, atinge sua máxima potência comercial. A palavra bliss têm o seguinte significado, de acordo com o Oxford American Dictionary: “bliss - alegria perfeita […] um estado spiritual abençoado, alcançado tipicamente após a
morte”. Traduzimos bliss point como “ponto sublime”.
5-6-7 8 Todos estes dados foram extraídos do site http://www.radios.com.br.
Referência ao termo ‘sticky music’ utilizado por Oliver Sacks para descrever músicas constituídas por padrões tonais e que recorrentemente surgem como alucinações musicais em
vários de seus pacientes. Dentre os gêneros que mais aparecem como causadoras desse tipo
de sintoma estão as canções natalinas.
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422
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2007. “Impacto Sonoro: ao romper
com as regularidades melódica,
rítmica e tonal, a música erudite
contemporânea lança um desafio ao
cérebro: adaptar-se à complexidade
de novas estruturas musicais de
modo progressive e inconsciente”.
Revista Mente & Cérebro 3:73-77.
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da Ambev.” IstoÉDinheiro http://www.
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A+VITORIA+SUADA+DA+AMBEV,
Consulta: 07/2013.
Sobral, Isabel. 2009. “Cade dá multa record
à Ambev e suspende programa de
‘fidelidade’.” Estadão, http://www.estadao.
com.br/noticias/impresso,cade-da-multa-
recorde-a-ambev-e-suspende-programa-defidelidade,406961,0.htm, Consulta: 07/2013
Godoy, Amilson. 2008. “A Prática do
Jaba e os Critérios de Distribuição:
Autores e Artistas Estão Satisfeitos?”
http://www2.cultura.gov.br/site/wp-content/
uploads/2008/08/palestra-amilsongodoy-mesa-6.pdf, Consulta 07/2013
423
O triângulo e o biscoito
fino para as massas:
reverberações culturais de
uma prática ambulante
Thaís Amorim Aragão
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
[email protected]
Resumo
O som do triângulo e o sabor do chegadinho são frequentemente associados por
habitantes de Fortaleza a uma memória de infância, que também pode ser acionada ao
mero presenciar do evento sonoro que é a passagem do vendedor desse biscoito pelas
ruas da cidade. Neste trabalho serão apresentados dados que emergiram do contato com
um grupo de vendedores, sobre a forma como eles articulam o som para se comunicar
com a população em seus percursos, além de como conseguem seus instrumentos e
como percebem sua própria relação com o tocar - e também com o cozinhar, pois muitos
fazem os biscoitos que vendem. Desenvolvida em nível de mestrado no Programa de
Pós-graduação em Plenejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PROPUR-UFRGS), a pesquisa traz um panorama sobre a combinação
desse alimento e desse instrumento de percussão em uma prática que persiste em
várias cidades do país, da América hispanofalante e da Península Ibérica, além de
sua profunda influência na música popular brasileira, notadamente a nordestina.
Palavras-chave
triângulo, paisagem sonora, vendedor ambulante, comida, cidade
424
Biscoito fino para as massas urbanas
Há alguns anos, quando estava iniciando minha pesquisa de mestrado,
vim ao Encontro de Música e Mídia - Musimid discutir o evento sonoro
da passagem do vendedor de chegadinho como pertencente ao conjunto
de músicas das ruas da cidade de Fortaleza. Isso a partir de uma perspectiva que admite a escuta como gesto poiético, em que o ouvinte pode
conferir seu próprio sentido musical aos sons do ambiente. Novos dados
surgiram a partir da investigação, que tomou como objeto empírico as
práticas desses ambulantes e como objeto teórico o som, como elemento
constituinte de um processo de territorialização1. Aqui deixarei de lado
a discussão mais específica acerca do território, mas não sem antes assinalar que identidade e território foram trabalhados como categorias que
se constituem afirmando-se mutuamente – o que nos auxilia a pensar as
músicas e os lugares.
O chegadinho é o nome que se dá, em Fortaleza, a um biscoito que também é apregoado tocando-se um triângulo, pelas ruas de cidades numa
faixa que vai, pelo menos, de Salvador, na Bahia, até Manaus, no estado
do Amazonas2. Foram encontrados registros da guloseima a partir de
1950, em Alagoas. Sobre a relação entre a escuta do som do triângulo e
uma consequente vontade de degustar a iguaria que se anuncia, Gilberto Freyre dedica algumas linhas:
Interessante de observar-se é que a certos doces, vendidos por
ambulantes, estão associados, no Nordeste, sons que, como o da
campainha de Pavlov, em cachorros, despertam em meninos e
1
Os processos de territorialização podem ser definidos como resultado da “interação entre relações sociais e
controle do/pelo espaço, relações de poder em sentido amplo, ao mesmo tempo de forma mais concreta (dominação) e mais simbólica (um tipo de apropriação)”, como concebido por Haesbaert (2009, p. 235).
2
Podendo variar de forma, como de canudo ou de cone, o biscoito leva nomes como taboca (Salvador), cascalho
(Belém, Manaus) e cavaco chinês (Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal), ou ainda cavaquinho, especialmente na capital pernambucana. Em outros lugares do Brasil, é vendido com outros instrumentos e outros
nomes (biju, triguilim ou tringuilim, encrenca, casquinha etc). Em Fortaleza, pode ser chamado também de
chegadinha ou chegadim.
425
adultos predisposições específicas de paladar: o som do triângulo
dos chamados cavaquinhos, por exemplo. (FREYRE, 2007, p. 59)
No caso de Fortaleza, a partir da década de 1990 há indícios de que essas
relações são ou se tornaram mais complexas. Relatos registrados na imprensa desde então expressam que o som de um triângulo soando pela
rua não é associado apenas à experiência de desfrutar do biscoito em si,
mas também é capaz de acionar memórias de uma infância na cidade.
Nem o ouvinte nem o lugar seriam mais os mesmos, sendo a passagem
do vendedor de chegadinho uma espécie de fator de permanência que
permite que se intua isso, notadamente nos últimos vinte anos.
De fato, esta prática ambulante persiste não só em Fortaleza, mas em diversas cidades, inclusive fora do Brasil. O próprio biscoito nos liga a uma
culinária muito mais antiga. Cronista de cultura gastronômica, Néstor
Luján escreveu que na Catalunha os barquillos (neules, em catalão) fazem parte das tradições natalinas (LUJÁN, 1975, p. 88). Segundo ele, as
neules são citadas em um convite real do Rei Jaime “O Conquistador”
em 1267 e aparecem pela primeira vez em texto catalão no livro “Félix - o
Livro das Maravilhas”, de Lúlio, do século XIV. Barquillos e cañutillos de
suplicaciones (como também se chamavam por volta do ano de 1600)
também podem ser encontrados nas narrativas de “Dom Quixote” e outras obras literárias da época, editadas em Madri.
O barquillo, guloseima ainda encontrada atualmente em outros países latinoamericanos e em partes do território da Espanha e de Portugal (onde
se chama barquilho), guarda semelhanças com o chegadinho tanto na
forma de vender como na de fazer. A não ser pelo acréscimo de farinha
de goma de mandioca, herança ameríndia, a receita e o modo de preparo
em Fortaleza coincidem com os do produto feito na Espanha: uma massa
de farinha de trigo, açúcar e água, assada entre duas pranchas de ferro.
Também esses utensílios de assar encontrados nas cozinhas cearenses
se assemelham aos de produtores espanhóis contemporâneos (Figura 1).
426
Figura 1. Modos de fazer chegadinho no Ceará e de fazer barquillo na Espanha.
Fonte: Pesquisa própria (chegadinho) e de Marta Sánchez Marcos (barquillo).
Em Fortaleza, apenas alguns vendedores possuem as prensas onde são
assados os chegadinhos – e que por eles são chamadas de máquinas.
Trabalham mais, pois acordam muito cedo, às vezes ainda durante a madrugada, para começar a fazer e empacotar os biscoitos que venderão
à tarde, junto com outros ambulantes que costumam receber o produto
em consignação. Ainda assim, quem assume a dupla jornada o faz por
entender que a situação de autonomia vale o esforço.
Embora os biscoitos sejam levados pelas ruas de cidades íbero-americanas no interior de tambores cilíndricos também presentes na prática
observada tanto na Espanha como em Portugal, até o momento o uso
do triângulo não se revelou na península, o que pode caracterizar um
desafio a pesquisas futuras. Aqui, nos deteremos em alguns dados que
emergiram do contato com os ambulantes de Fortaleza, para verificar
como os vendedores de chegadinho articulam o som em seus percursos
urbanos e que importância é dada por eles ao instrumento que tocam em
sua lida diária.
Na época dos antigos produtores de Fortaleza, quando não eram estes
que faziam os triângulos, as peças eram encomendadas em qualquer ferreiro. Processo simples, sem segredo: era só entortar um ferro que soasse
bem. Alguns vendedores hoje autônomos mencionaram que consegui-
427
ram seu triângulo pedindo a conhecidos que trabalham em canteiros de
obras pela cidade, como favor. “Tinha cabra zeloso que deixava aquilo
bem brilhosim! Parecia de inox, viu?”, observa o filho de um antigo patrão. Apesar do cuidado que pode ser dispensado por alguns, é comum
que o instrumento se parta, ao longo de algum tempo, seja pela qualidade do material, seja pela intensidade e frequência de uso. Dessa forma,
não é difícil encontrar quem tenha mais de um triângulo – assim como
mais de um tambor.
Triângulo se gasta em três, quatro anos. Se quebra, se gasta.
Mas anima o cara. O barulho é perturbador, mas a vontade
de vender anima. Tem dia que o cabra volta para casa sem
vender tudo. Tem dia que, num quarteirão, seca a lata. Venda
é cheia de mistério. (Raimundo, produtor e vendedor)
Entre eles, há quem já tivesse intimidade com a música, tendo tocado em
forrós e reisados antes de terem se lançado com o triângulo solo pelos
caminhos da cidade – e continuam tocando ocasionalmente em festas,
porque é comum surgirem convites quando são ouvidos nas ruas.
– Cê já sabia tocar antes?
– Não. Aprendi com eles. Aliás, nem aprendi. Porque lá no meu
interior, a gente tocava. Tem o meu tio lá que tocava aqueles
forrozim pé-de-serra, aí eu batia o triângulo já, lá. Aí quando eu
vim de lá, já vim… Como se diz…? Foi a única coisa que não me deu
dificuldade pra mim, na chegadinha, foi isso aqui. O mais trabalho
que deu na chegadinha, pra mim, foi eu fazer a chegadinha, que
é um negócio muito quente. (Francisco, vendedor e produtor)
Outros ambulantes, porém, nunca haviam tocado triângulo antes. Aprenderam para que pudessem desempenhar a função de vendedor de chegadinho. Alguns nem dizem que tocam: simplesmente “batem o triângulo”. “O pessoal me chama pra tocar forró nos bares e eu não sei. Só sei
fazer a zoadinha”, admite José, vendedor de 45 anos. Não era cobrada
qualquer habilidade musical para ingressar na atividade. “O triângulo é
428
só pra chamar a atenção. Você passa ali, você escuta alguma coisa, você
vai querer dar uma olhada. Naquele tempo a gente olhava, pra ver o que
era. Só isso. Pra chamar a atenção, o triângulo”, explica o filho de um
antigo fabricante de chegadinho. A habilidade não era considerada pré-requisito para ingressar na atividade, sendo muitas vezes aprendida no
imediato desempenho da venda nas ruas.
Mas há também aqueles que fazem questão de demonstrar sua destreza,
executando vários ritmos e rindo da pouca desenvoltura de outros colegas. Quem apenas escuta o som, pode não imaginar que Miguel, 62 anos,
toca o triângulo com uma só mão, movendo-o junto com a baqueta entre
os cinco dedos e fazendo com que soem, à semelhança de sino e badalo.
Como as entrevistas foram feitas individualmente, raramente tendo sido
realizadas em grupos de vendedores, não presenciei nenhum desafio de
triângulo entre eles. Mas alguns comentários – tanto dos próprios vendedores entrevistados quanto do registro dos jornalistas José Paulo de
Araújo e Tarcísio Matos no fim dos anos 1980 – me fazem crer que uma
pequena competição pode, de fato, fazer parte do universo de brincadeiras entre os vendedores de chegadinho. Até porque se costuma atribuir
principalmente ao toque do triângulo o sucesso da venda.
Tem que saber tocar. Se o sujeito não souber tocar, não
vende nada, viu? (Jorge, vendedor, março de 2011)
Se andar com a chegadinha, só com o tambor, sem fazer
zoada, o pessoal não tá escutando. Só vende se tiver a zoada:
o triângulo. É uma ciência, né? Só vende se tocar. Se não
tocar, não vende. (Sebastião, vendedor, março de 2011)
Se não tiver o triângulo, como é que eu vou vender? […] Como é que
eu vou vender a chegadinha sem… Eu vou batendo palma? [ri] Não
tem nem condições! (Francisco, produtor e vendedor, março de 2011)
429
Embora seja a finalidade primeira da atividade, é importante comentar
que nem todas as performances de vendedores de chegadinho ao triângulo são orientadas exclusivamente ao propósito de realizar uma venda.
Para muitos deles, o triângulo diverte, entretém, torna a caminhada mais
leve. “Eu acho um divertimento pra mim. Porque se passam ligeiras as
horas. A gente vai tocando. Fico tão divertido que eu só ando tocando
assobiando”, diz o fortalezense Sebastião, que no momento de nossa conversa já estava há 32 anos no ramo. Para Raimundo, vendedor e produtor,
são “duas coisas que divertem o vendedor de chegadinho: o triângulo e
R$ 5 aqui, outro ali”.
O triângulo também é usado como autodefesa, principalmente quando
os vendedores são alvo de escárnio nas ruas. Quando intimidados, alguns buscam evocar a festa, aliviando tensões, criando ou estreitando laços por meio da música. Depois de anos de caminhadas com o triângulo,
esses homens acabam por assimilar formas mais eficientes não apenas
de comunicar sua passagem, mas também de se sentirem cômodos com
sua ocupação.
Isso se reflete nas canções de pelo menos dois ambulantes que foram
identificados como compositores. Feitas para serem entoadas na rua, elas
falam sobre a própria profissão: quem são os vendedores de chegadinho,
o que desejam, por onde andam, quem encontram, como as pessoas os
consideram e o que elas acham do chegadinho. Um dia, quando um desses vendedores tomava um ônibus, uma senhora passou a lhe observar
e, julgando que o tambor de chegadinho, assim como o triângulo, se tratava de um instrumento musical, perguntou-lhe se era músico. “Não, sou
não”, ele respondeu. Percebe-se aí que dissocia sua profissão daquela de
músico, embora seja capaz de tocar um instrumento e compor canções.
Essa percepção pode se dar porque o tocar triângulo está firmemente
amalgado à prática, quase ficando subentendido que a parte (o toque do
instrumento) pode ser tida também como o todo (a venda itinerante de
chegadinho). Essa relação surge, por exemplo, quando as próprias pala430
vras chegadinho, chegadinha ou chegadim são, por vezes, associadas a
outros elementos da prática, seja pelos próprios vendedores, seja pelos
consumidores. Um dos ambulantes chega a ser tratado pela onomatopeia que traz o próprio som do triângulo: “Me conhecem mais por ‘diguilingue’ do que por chegadim. Por causa do barulho”.
Já outro se apresenta como Chegadinho, uma vez que, pelos lugares onde
anda, ele é muito chamado assim, pelo nome do produto que vende. Isso
se repete com o principal vendedor do documentário “Lá Vem o Chegadim! – Memórias e Resistências”, de Djaci José3, que chega a afirmar que
ele, que vende a chegadinha, é o próprio chegadinho, enquanto chegadinha, no feminino, se trataria do biscoito. Um outro vendedor apresenta
uma quarta versão:
A chegadinha, que eu saiba mesmo, é o triângulo. Porque
a gente vai batendo, a pessoa pergunta o que é, aí a gente
apresenta aquele material, que é exatamente o chegadinho. Mas
o chegadim mesmo, [como é] chamado, é o triângulo, porque
a gente vai batendo, a pessoa chega, despacha. Aí, isso aí é
que é a chegadinha. (Francisco, produtor e vendedor)
Nesta última fala, o vendedor passa a ideia de chegadinho como sendo
aquilo – ou aquele, considerando os demais depoimentos – que chega.
Aonde? Aos ouvidos e ao lugar – ao encontro – daquele a quem se dirige:
o habitante da cidade. A chegada pressupõe uma ausência substituída
pela presença do vendedor de chegadinho. Sua prática, quando se realiza, não é apenas um fato, mas um evento. Dotado de duração, estende-se
no tempo e no espaço. Tal evento não é apenas anunciado pelo som do
triângulo, mas também existe enquanto som, tendo sua própria existência baseada nessa emissão sonora – se entendermos a tomada de consciência do ouvinte como a própria finalidade de existir do som (como
parte) e da prática (como o todo, como o amálgama de seus elementos
constitutivos).
3
Em fase de produção.
431
Baião de três
Idiofones são instrumentos de percussão “cuja produção sonora é feita
pela vibração do próprio corpo, sem necessitar de tensão como as cordas
ou as membranas” (FRUNGILLO, 2003, p. 358). É o caso do triângulo, cuja
característica sonora “é de som metálico, agudo e de longa duração”. Segundo Frungillo, durante a Idade Média era mais conhecido na Europa
pelo nome latino de tripos colebaeus, aparecendo como triangle em uma
partitura musical no ano de 1589. Percutido com uma pequena vareta
metálica, o triângulo pode ser suspenso por um cordão, mas na música
popular brasileira é muito comum que seja “segurado pela ‘mão’ do ‘instrumentista’ que realiza movimentos de dedos para ‘abafamentos’ rítmicos e percutidos internamente no lado maior (base) e num dos menores
em movimentos verticais” (FRUNGILLO, 2003, p. 358). O instrumentista
também é conhecido popularmente como tocador e o abafamento é o
ato de diminuir ou cortar as vibrações do instrumento musical – que, no
caso do triângulo, como tocado no Brasil, é feito com a mão.
O dicionarista considera que, na música brasileira, esse instrumento é
“indispensável em conjuntos da região norte e nordeste” para tocar baiões. Quando esta pesquisa se iniciou, também fiz a associação entre o
triângulo dos vendedores de chegadinho e o utilizado por tais grupos
musicais. Suspeitava que a prática dos ambulantes podia ser de alguma
forma influenciada pela referência a essa música, que contribuiu sobremaneira para a própria consolidação identitária regional. Tal suspeita era
reforçada pelo fato de também haver identificado que em outras regiões
do país o triângulo era substituído por outros instrumentos. O vendedor
na praia de Capão da Canoa-RS, por exemplo, anuncia a casquinha com
uma matraca, como se pode ver nas imagens da Figura 2, registradas em
março e janeiro de 2011, respectivamente.
432
Figura 2. Vendedor de chegadinho no Ceará e vendedor de
casquinha no Rio Grande do Sul. Fonte: Pesquisa própria.
Hoje uma das manifestações mais destacadas no âmbito da música brasileira, o baião aponta para duas manifestações que em nossa cultura
costumamos hoje tratar de forma separada: dança e música. Com base
principalmente em registros de Silvio Romero no século XIX, e de Rodrigues de Carvalho e da Missão de Pesquisas Folclóricas do Departamento de Cultura do Estado da Paraíba nas primeiras décadas do século XX,
a pesquisadora Oneyda Alvarenga apresenta o baião – ou baiano – como
uma dança popular da Bahia para o norte, em primeiro lugar. Seus pares
solistas sapateavam, batiam palmas e usavam castanholas, estalando os
dedos na ausência destas.
Tanto Silvio Romero como Rodrigues de Carvalho dão o Baiano como
a dança característica do samba, usando esta palavra no seu sentido
genérico de baile popular em que se executam danças movimentadas.
O segundo desses autores é o único, de meu conhecimento, que se
detém um pouco mais para descrever o Baiano. Só ele esclarece que
na dança a mulher mantém os braços ‘abertos em compostura de
abraço, e os dedos castanholando’. A observação interessa, porque
parece dar mais estreitamento ao Baiano, as mesmas atitudes do
Lundu. Realmente, creio possível a suposição de que o Baiano seja
mesmo um outro nome do Lundu. […] De uma provável expressão
Lundu baiano, denominadora pelo menos de um Lundu do século XIX,
o povo fixou apenas a indicação regional. (ALVARENGA, 1960, p. 156)
433
Para a pesquisadora, a particularidade do baiano em relação ao lundu
em si – “este tão provavelmente afroamericano” (ANDRADE, M., 1962, p.
142) que Mario de Andrade localiza entre as primeiras expressões da
música popular brasileira4 (ANDRADE, M., 1965, p. 31) – estaria nos improvisos e nos desafios que cantadores faziam durante a dança. A viola
aparece como principal instrumento acompanhador, “a que se juntam,
segundo as informações de que disponho, pandeiro em Sergipe, botijão5
na Paraíba e rabeca no Maranhão” (ALVARENGA, 1960, p. 157).
Dança à parte, o baião ou rojão são também formas como era conhecido o trecho instrumental que servia de intervalo entre o desafio de um
cantador e a resposta de outro. Para Câmara Cascudo, essa “breve introdução musical” (CASCUDO, 2001, p. 41) podia ser realizada com um toque
de viola, de rabeca ou com ambos os instrumentos. Já Baptista Siqueira
defende que a palavra viria de “bailão”, ou “baile grande” (SIQUEIRA, 1951
apud GUERRA PEIXE, 1955). O autor é citado por Guerra Peixe, compositor
que trabalhou na sistematização das características melódicas, rítmicas
e harmônicas do baião em meados do século XX.
Curiosamente, o triângulo não aparece no instrumental relacionado ao
baião levantado por essas pesquisas, nem nas notas que Alvarenga preparou, entre 1944 e 1945, sobre os instrumentos citados em sua obra “Música popular brasileira”. Também não possui verbete no Dicionário de
Folclore Brasileiro de Câmara Cascudo (2001), publicado pela primeira
vez em 1954 e reeditado com frequência desde então. A partir de 1946,
porém, o baião em uma forma estilizada seria lançado em plena época
4
“É só no fim do século XVIII, já nas vésperas da Independência, que um povo nacional vai se
delineando musicalmente, e certas formas e constâncias brasileiras principiam se tradicionalizando na comunidade, com o lundú, a modinha, a sincopação.” In. “Evolução Social da
Música no Brasil”, de 1939, publicado em Aspectos da música brasileira, volume XI das Obras
completas de Mário de Andrade (ANDRADE, M., 1965, p. 31).
5
Instrumento que consiste em um vaso de vidro ou cerâmica atritado por uma moeda ou por
uma chave. (ALVARENGA, p. 306; FRUNGILLO, p. 46-47).
434
de ouro do rádio no Brasil, transformando-se imediatamente em sucesso
nacional. Aí, o triângulo aparecerá.
Os principais responsáveis por essa estilização foram o pernambucano
Luiz Gonzaga e o cearense Humberto Teixeira. O baião que a dupla apresentou era a porta de entrada nos meios de comunicação de massa para
um conjunto de sonoridades de sua região, cujas características foram
realçadas e retrabalhadas para cair no gosto dos ouvintes dos grandes
centros urbanos brasileiros. Humberto Teixeira, em depoimento a Nirez6,
afirmou que difundir a música do Nordeste se tratava mesmo de um
projeto de Gonzaga, e que o baião teria sido a música escolhida “porque
era a que tinha a característica mais fácil, mais uniforme de se lançar”
(DREYFUS, 2007, p. 122; SEVERIANO, 2008, p. 280).
Assim, foi possível que o baião se estabelecesse a partir do final dos anos
1940 com uma nova instrumentação, criada por Luiz Gonzaga – que levou a alcunha de Rei do Baião. Esse instrumental foi baseado no trio
de sanfona, zabumba e triângulo. Assim como os primeiros intérpretes
desse novo baião o apresentaram às massas cantando “Eu vou mostrar
pra vocês como se dança o baião”7, esse formato de conjunto ou grupo
musical, que se tornou característico dessa música (TAVARES, 2008, p.
28), foi firmado e reafirmado nas próprias letras das canções. É o caso de
“Tesouro e meio”, de Luiz Gonzaga, gravado e lançado em 1956: “Ô baião;
Faz a gente lembrar, esquecer; Ô baião; Traz saudade gostosa de ter; Um
triângulo, uma sanfona, um zabumba”.
Bem depois, Luiz Gonzaga explicaria o que o levou a reunir os instrumentos:
Eu vinha cantando sozinho, mas eu precisava de um ritmo. Porque
a música nordestina precisava de côro. Côro, que eu digo, é couro
6
Miguel Ângelo de Azevedo, jornalista e historiador fortalezense.
7
O gênero foi lançado em 1946, com a gravação da música “Baião”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, pelo cojunto Quatro Ases e Um Coringa.
435
de cachorro, couro de bode. Negócio para bater, como no Rio de
Janeiro se usa couro de gato, né? Então, primeiramente, eu criei
o zabumba baseado nas bandas de couro lá do sertão, aquelas
que nós chamamos de esquenta-muié. Mas a zabumba, só… eu
fiquei assim, com a asa quebrada. Eu precisava descobrir um
instrumento bastante vibrante, agudo, pra brigar com a zabumba.
Até que vi no Recife passar um menino vendendo cavaco chinês,
com aquele tubo nas costas, tocando o tinguilim, como eles
chamavam – o tinguilim. Aí ele fazia aquilo com certa cadência,
né? E pronto! Achei o marido da zabumba. Olha que casamento!8
A história reaparece em depoimento de Gonzaga à sua biógrafa Dominique Dreyfus, no qual ele expressa sua preferência pelo som agudo do
triângulo, em detrimento daquele produzido pelo pífano9, em função da
força da projeção sonora do idiofone:
Só depois é que eu precisei de uma banda. Foi quando me lembrei
das bandas de pife que tocavam nas igrejas, na novena lá do
Araripe e que tinham zabumba e às vezes também um triângulo.
Quando não havia um triângulo pra fazer o agudo, o pessoal tanto
podia bater num ferrinho qualquer. Primeiro, eu botei zabumba
me acompanhando. Mais tarde, numa feira no Recife, eu vi um
menino que vendia biscoitinho, e o pregão dele era tocando
triângulo. Eu gostei […]. Havia os pífanos, que têm o som agudo,
mas eu não quis utilizá-los porque a sanfona, com aquele sonzão
dela, ia cobrir os pífanos todinhos. (DREYFUS, 2007, p. 152)
Estes dois depoimentos ajudam a esclarecer melhor algumas questões.
A primeira delas é que o triângulo do vendedor de cavaco chinês parece
ter exercido papel especial em uma espécie de desfecho de um processo
criativo protagonizado por Luiz Gonzaga. Talvez não explique totalmente a adesão da sonoridade desse instrumento como característica da mú8
“Luiz Gonzaga - Arquivo Trama/Radiola 03/11/08”, vídeo disponível em http://www.youtube.
com/watch?v=7G5sK7kNr4U. Consulta: 04/2011.
9
“Instrumento de sopro feito de madeira, taquara ou bambu. É um tipo de flautim, com furos
ao longo do comprimento, também denominado pífaro ou pife. […] A banda de pífanos [é]
conhecida também como esquenta-mulher.” (CASCUDO, 2001, p. 515)
436
sica nordestina, pois esse som já fazia parte do repertório dos habitantes
na região, estando “na novena lá do Araripe”. É importante lembrar que,
em Portugal, a presença dos ferrinhos – como o triângulo é comumente
chamado por lá – não passa despercebida na música popular.
Ainda na primeira metade do século XX, o instrumento também marcava o ritmo das polcas marchas nos bailes de roda de Algarve, estava
em cena nos fandangos de Beira Alta e nas estúrdias e nas rondas das
vareiras do Minho (LEÇA, s/d). Nos registros do compositor, folclorista
e etnomusicólogo português Armando Leça (idem, ibidem), eles aparecem nos acompanhamentos musicais dos folguedos populares, especialmente fogueiras de junho, autos natalinos e reisados, ligados a festividades do calendário cristão e trazidos pelos colonizadores portugueses ao
Brasil. São ainda hoje muito expressivos na cultura dos estados da região
Nordeste e em especial no Cariri, que culturalmente transborda as divisas do Ceará e engloba o lugar onde nasceu e cresceu Luiz Gonzaga, no
interior de Pernambuco.
Curiosamente, um dos folguedos em que se observa um destaque bastante diferenciado dado ao triângulo é a Folia do Divino, manifestação
relevante em várias outras partes do território brasileiro. Esta festa está
relacionada à devoção ao Espírito Santo e culmina no dia de Pentecostes,
no primeiro semestre do ano. Assim como nas Folias de Reis ou Reisados, que tomam a visita dos reis magos ao menino Jesus e estão mais
ligados ao ciclo natalino, nas Folias do Divino também são empreendidas peregrinações pelas vizinhanças e é dada importância a uma série
de mesuras em que as folias – ou seja, os grupos ambulantes – podem
chegar às portas das casas, pedir licença para entrar, realizar louvações,
receber doações e se retirar, em despedida, para seguir em direção às
outras casas.
As Folias do Divino costumam ser compostas por um grupo de tocadores que saem cantando em procissão para anunciar a festa e receber contribuições. Em alguns lugares, como o interior paulista, por exemplo, é
437
liderado por um mestre e os demais levam nomes conforme o timbre de
sua voz nas cantorias, nomes estes provavelmente reformados pelo uso
popular. Assim, o contrato de algumas folias viria a ser o tocador cuja voz
apresentaria um registro semelhante ao de contralto. O tipe parece ser
uma corruptela de tiple, uma palavra cuja etimologia aponta para uma
possível origem espanhola e que significaria “a mais aguda das vozes”10.
Segundo registros dos anos 1960, muitas vezes o lugar de tipe nas folias
do estado cabia a crianças e, não raro, eram elas quem tocavam os triângulos. A fotografia de um menino documentada pela Comissão Paulista
de Folclore e publicada no jornal A Gazeta, em 1959, trazia a seguinte
legenda: “Este menino integrava a folia do Divino de Tietê, a tocar triângulo e a realizar, na cantoria, o que se denomina ‘voz tipe’ – ‘tipe’, na
linguagem dos foliões – isto é, aquela que dá os sons mais agudos”.
Esses detalhes se tornam interessantes também ao percebermos o uso
desse instrumento por praticantes de caminhadas que, com a ajuda da
música, procuram envolver os habitantes do lugar, encerrados em suas
casas, e engajá-los na atividade que anunciam – neste caso, uma festa
de cunho religioso e popular. Esse tipo de abordagem, que não é tão
diferente do que fazem os próprios vendedores de chegadinho, também
se faz presente nos reisados nordestinos. E estes se servem do triângulo,
embora durante a pesquisa não tenham sido encontradas referências ao
lugar atribuído àquele que toca o instrumento nos grupos de tocadores e
cantadores da região, com o nível de especificidade presente nos relatos
sobre as Folias do Divino no estado de São Paulo.
A esta altura da pesquisa, acredito que a representatividade maior do
som do triângulo no cotidiano dos habitantes do lugar (Nordeste), no
contexto anterior ao baião estilizado, possa ainda se dever ao seu uso
nas festas populares de cunho religioso, como os reisados. Mas também
fica enfraquecida a ideia de que os vendedores de cavaco chinês, e por
10 Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, da biblioteca digital do Universo Online (UOL).
Disponível em http://houaiss.uol.com.br. Acesso em 22/08/2011, às 09:16.
438
conseguinte os de chegadinho, tocam triângulo por influência do uso do
instrumento no baião. O triângulo associado à prática da venda desse
doce pode ser mesmo anterior à incorporação do idiofone ao instrumental que se consolidou nos conjuntos musicais especializados nesse gênero fonográfico, de meados do século XX em diante – o que não implica
dizer que o baião que foi ao rádio deixou de influenciar a prática dos
vendedores de chegadinho, por exemplo, nos dias de hoje.
A isso se soma o fato de que também tocam triângulo vendedores barquillos e obleas11 em atividade em cidades mexicanas, como Querétaro12
e Puebla, e também na capital uruguaia de Montevidéu (Figura 3).
Figura 3. Vendedor de chegadinho em Fortaleza e vendedores de
obleas e barquillos em Puebla (México) e Montevidéu (Uruguai). Fonte:
Acervos de Thaís Amorim Aragão (Fortaleza), Alicia Moya-Sanchez
(Puebla) e www.stonek.com (Montevidéu), respectivamente.
Portanto, assim como em Fortaleza e outras cidades das regiões Nordeste e Norte brasileiras, em outros centros urbanos da Íbero-América
também é possível encontrar o triângulo nas mãos de ambulantes anunciando esses biscoitos pelas ruas, o que aponta para novos caminhos que
11 Geralmente, refere-se a barquillos quando biscoitos são enrolados em canudos e a obleas
quando planas.
12 “Dulce recuerdo”, de Edgardo López Mañón. Texto disponível em http://lascronicasdelviejo.
blogspot.com/2008/02/dulce-recuerdo.html. Acesso em 03/04/11.
439
a investigação pode percorrer. É fascinante lembrar que esta pesquisa se
iniciou com a assunção preliminar de que o som da passagem do vendedor de chegadinho pelas ruas se tratava de uma marca do entorno sonoro da cidade de Fortaleza. Isto não deixou de ser. Mas agora sabemos que
este evento acaba por relacionar a capital cearense as outros contextos
urbanos, não só no Brasil como na América Latina, e renova nossas perguntas sobre o uso e a difusão do triângulo.
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carioca”. Revista de História da
Biblioteca Nacional 35: 26-33.
440
Rock com sabor de Mupy: o gosto
da música na cena cosplay
Mônica Rebecca Ferrari Nunes
PPGCOM ESPM
[email protected]
Vera da Cunha Pasqualin
PPGCOM ESPM
[email protected]
Resumo
Este trabalho integra o projeto de pesquisa Comunicação, Consumo e Memória: Cosplay
e Culturas Juvenis (CNPq) em desenvolvimento junto ao PPGCOM- ESPM. Analisa a
cena cosplay em eventos da cidade de São Paulo nas dimensões do espaço aúdiotátil proposto por McLuhan e das paisagens sonoras, propostas por Murray Schafer. A
pele convoca os sentidos a se misturarem, como avalia Michel Serres, e, na cena, sons
de rádios webs, de bandas de anime songs, de espadas medievais, de vocaloides, de
trilhas de animês e de HQs misturam-se à pele de jovens por sua vez imiscuídas às
materialidades que reinventam narrativas midiáticas mediatizadas também pelo gosto
de alimentos glocais: sucos mupy, yakisobas, coca-colas e cachorros-quentes.
Palavras-chave
paisagens sonoras; cena cosplay; culturas juvenis
441
A cena cosplay
Este trabalho participa do projeto de pesquisa intitulado Comunicação,
consumo e memória: cosplay e culturas juvenis (MCTI/CNPq/MEC/CAPES n.18/12.) em desenvolvimento junto ao PPGCOM-ESPM, abrigando dez
pesquisadores de Centros de Pesquisa diversos. Investigamos a prática
cosplay em eventos nas capitais da região Sudeste e há alguns relatos de
eventos do nordeste brasileiro que serão também anexados ao resultado
final da pesquisa. Originário da contração de costume play, o cosplay,
roupas de brincar/fantasiar refere-se aos sujeitos que se vestem e atuam
como personagens midiáticos das mais variadas procedências. De origem estadunidense, estas manifestações iniciam-se no final dos anos de
1930, com os concursos de fantasias de personagens da ficção científica.
A prática chegou ao Japão por volta dos anos de 1980, quando se deu
a expansão dos animês, animações japonesas, e dos mangás, histórias
em quadrinhos, para o Ocidente. Vale dizer que em terras orientais, os
jovens se vestiam como personagens destas produções.
No Brasil, em meados dos anos de 1990, o cosplay começa a atrair os
fãs da cultura pop japonesa que passam a se reunir nas convenções de
animês e mangás. Temos nomeado esta prática comunicativa, de significação e de sociabilidade como cena cosplay. O conceito de cena foi
gestado pelo músico canadense Will Straw ( 2004) e parece oportuno
para esta pesquisa, pois se refere à esfera circunscrita de sociabilidade,
criatividade e conexão que toma forma em torno de certos tipos de objetos culturais no transcurso da vida social destes objetos (Straw apud
Janotti, 2012). Pode-se considerar a cena dotada de sentido amplo de teatralidade pública (Blum, 2003), e a trajetórias de circulação de atores
sociais e de narrativas, ampliando a tessitura das culturas urbanas. A
cidade se transforma em lugar de cena, mediatizada por narrativas de
consumo: animês, mangás, tokusatsus,1 filmes, séries estadunidenses,
1
Tokusatsus são produções japonesas de filmes que misturam heróis humanos a monstros.
442
cartoons, peças publicitárias ou mesmo o próprio cosplay considerado
por nós como narrativas metonímicas das ficções que os geraram.
Nestas cenas urbanas, constatamos a importância do espaço sonoro
para a construção das subjetividades e das memórias que nos habitam, e,
a partir destas articulações, exploramos o gosto da música na cena cosplay materializado nas paisagens sonoras geradas, por seu turno, convivendo com o consumo de alimentos glocais.
Compreendemos o glocal na dimensão que nos traz Massimo Canevacci (1996, p. 24-25) “(...) a atual trama - confusa, multilinear, opaca [é]- feita de acesas globalizações e localizações igualmente acesas”. Como as
paisagens da cena cosplay, sonora, tátil, gustativa: narrativas e músicas
japonesas, estadunidenses, coreanas mediatizadas pelos alimentos de
origem oriental, tal qual o yakisoba, mais presentes nos encontros de
São Paulo, e por aqueles regionais, como o é o caso do creme de galinha
nos eventos em Teresina, Piauí, que, por sua vez, não contam com os alimentos nipônicos.
Neste trabalho, selecionamos os seguintes eventos para apresentar partes de nossa cartografia: CosRok, Zelda Day 2013 – edição São Paulo, Anime Party 2012, Anime Dreams 2013, todos na capital, e Anime Festival
Winter, em Belo Horizonte – pois, a pesquisa também cartografa capitais
da região sudeste do Brasil. Haverá rápidas referências ao Anime Power,
Teresina, Piauí, graças à pesquisa de Penélope Melo e Lira,2 uma das
integrantes da pesquisa em pauta.
2
Penélope Maria de Melo e Lira é mestranda do PPGCOM-ESPM e participante do Projeto Comunicação, consumo e memória: cosplay e culturas juvenis, e, nesta etapa da pesquisa, analisou,
em campo, o evento Anime Power, Teresina, Piauí, 07 de julho de 2013.
443
O som e o leite
Refletir sobre o gosto da música na cena cosplay é atentar à construção
do espaço aúdio-tátil do qual nos fala Marshall McLuhan, retomado 100
anos depois por Jesús Elizondo Martinez,
o espaço é considerado como “o mundo criado pelo som”, então
temos que estar conscientes de que suas características serão
totalmente diferentes daquelas do espaço visual. Este espaço
não terá limites fixos ou centro, nem um limitado sentido da
orientação. Além disso, estará mais eficientemente conectado
ao sistema nervoso central que qualquer outro elemento visual:
a imagem nunca é tão forte como é a sensação espacial direta.
(Curvello; Russi [Org.], 2012, p. 8-9. Tradução livre das autoras).
Espaço que é som e tempo, gerador de paisagens sonoras que ali se configuram. Percebemos não apenas os alimentos consumidos pelos cosplayers, mas, igualmente, relevamos a importância do espaço sonoro,
áudio-tátil, e suas relações com os sentidos, com o paladar, que podemos
depreender das primeiras manifestações de oralidade do lactente, assinaladas na literatura psicanalítica e em pesquisas que envolvem música
e inconsciente. Vale lembrar que o universo sonoro-musical precede o
nascimento (Groddeck, 1972).
O trabalho de Denis Vasse, O umbigo e a voz (1977), demonstra a importância do grito e da primeira respiração para desamarrotar os alvéolos
pulmonares, fundamentais para acalmarem o ritmo cardíaco do lactente.
O grito, que mobiliza a atividade do sopro respiratório, corresponde à
rotura umbilical, à separação entre o corpo materno e o corpo do filho,
por sua vez, esta rotura encontra correlato na abertura da boca. O grito, a
respiração, o choro infantil marcam o corpo do recém-nascido e o introduzem em um universo de sons.
Para Vasse, o espaço sonoro forma o lugar em que o infans irá individualizar-se.
444
Lugar da comunicação audiofônica que se estabelece entre ele e os pais;
corpo a corpo mediado pela voz. Sujeito tomado por um fluxo rítmico,
por movimentos periódicos da fala dispersos ao acaso, antes mesmo da
linguagem ter sentido. Antes do sentido, o ruído da linguagem, e, depois,
seus ritmos, sua música, como nos ensinam Michel Serres (2001) e Gilles Deleuze (1988).
“A voz materna nina e aleita. Sua fala, atividade rítmica e melódica, soa
música ao lactente, destinatário de um discurso que só compreende como
som analógico, como objeto musical” (Nunes, 1999, p. 18). O gosto da música sabe, então, à memória de cuidados maternos, aos modos ritmados
da introdução dos líquidos no pequeno corpo acolhido pela mediação de
vozes que o entrega ao mundo extrauterino. Das ancoragens fundadas
nos ritmos e curvas melódicas da voz da mãe e no prazer de brincar com
a própria voz, proporcionado desde as tímidas vocalizações, advém o interesse de todas as culturas pela música, pelo canto (Rose, 2006). Lâmina
sensória, “lençol musical que traz todos os sentidos, universal antes do
sentido, a linguagem refinada, diferenciada, escolhe no interior desse
geometral aquele ou aqueles que ela emite ou destaca” (Serres, 2001, p.
117).
Assim se passa na cena cosplay. Como texto cultural, esta prática também reverbera o gosto ancestral pela voz como música e pela música
como linguagem. Todo evento analisado até o momento tais como os
organizados pela Yamato Corporation ou o AnimeCon apresentam em
suas programações atrações como os animekês, uma sorte de karaokê,
porém de trilhas sonoras de animês, tokusatsus, games ou filmes – e
também shows de bandas covers que cantam os hits dos desenhos ou
exibem produção musical própria. Além, do som das rádios de animês
transmitidas via web “rolando” durante a festa.
O CosRock, evento independente que será comentado adiante, na edição
analisada foi patrocinada pela Rádio 89 FM, conhecida como Rádio Rock
e, Zelda Day, totalmente articulado por fãs, é um dia para homenagear
445
o videogame musical, Zelda. Nesta celebração bastante curiosa, os fãs
combinam, pelas redes sociais, seus lugares de encontro. Em São Paulo,
participamos em agosto último, do primeiro Zelda Day, no Parque do Ibirapuera, e sob o rumor das árvores, jovens tocavam violão e flauta doce
enquanto outros acionavam seus Nintendos DSs, consoles de videogames portáteis, ou brincavam de tiro ao alvo em um cenário improvisado.
Os sons da casa materna em seus espaços iluminados ou secretos justificam, muitas vezes, os interesses dos cosplayers em estarem ali, na cena.
Grande parte dos depoimentos refere-se à memória da televisão, às vozes de seus heróis, às músicas temas dos animês vistos na infância. Não
à toa. A televisão remete a certos lugares de mediação: a cotidianidade
familiar, a temporalidade social e a competência cultural, como explica
Martin-Barbero (2008). O autor reforça a importância da família como
um espaço de leitura e de decodificação da televisão além de destacar a
inscrição das marcas familiares no próprio discurso televisivo, reforçando a simulação do contato e a retórica do direto, particularmente interessantes no que tange ao entendimento da proximidade conquistada por
estes desenhos experimentados primeiramente em casa, no espaço do
dentro, na presença de irmãos mais velhos, primos que, não raro, estimularam os cosplayers a materializarem a ficção em seus corpos.
Barbero argumenta que a simulação do contato se vale de um intermediário para facilitar o trânsito entre a realidade cotidiana e o espetáculo ficcional. Podemos nos remeter aos apresentadores de programas infantis
que organizam a exibição dos desenhos ou, na ausência deles, à voz em
off, dublada, que apresenta o título, a produção ou a “versão brasileira”,
do mesmo modo a retórica do direto passa a ser compreendida como um
dispositivo que garante a proximidade do ver e do escutar, a sensação de
imediatez. Por outro lado, a temporalidade social aponta a conjunção do
tempo valorizado pelo capital, tempo medido da produção excessiva dos
lançamentos de animês e games, ao tempo da cotidianidade, repetitivo
que “acaba para recomeçar”, ou, como assevera o pensador espanhol, “o
446
tempo do seriado fala a língua do sistema produtivo – da estandartização
– mas por trás dele também se podem ouvir outras linguagens: a do conto
popular, a canção com refrão, a narrativa aventuresca.” (op. cit, 2008, p.
298). Estes elementos condensados na estética da repetição talvez nos
projetem igualmente aos contatos repetitivos e ritmados pelos jogos vocais que acompanham os cuidados alimentares na primeira infância. O
tempo do ver e do escutar os animês, no espaço áudio-tátil da casa, faz-se
na duração deste tempo musical primordial em que os sons têm gosto.
Kimi3, entrevistada no Anime Party 2012, é animekeira, diz cantar por
prazer, para se divertir. Ao perguntarmos por que cantava aquele tipo de
música, respondeu: “sei lá, eu comecei a ter contato com estas músicas,
eu era muito pequena (...).” Da mesma maneira, Fernando4 se empolga
na plateia ao repetir, junto com a banda, o refrão de Dragon Ball e depois
nos fala que ouvir aquilo é escutar os sons de sua infância. Assistir à rede
Manchete, aos Cavaleiros do Zodíaco é quase sempre mencionado como
o modo de iniciação destes jovens à cultura pop japonesa. Da paixão pelos animês e mangás à prática de fazer cosplay corresponde, para alguns,
à passagem da infância à adolescência, conforme nos conta Camila Marotta durante o evento que ela mesmo organiza, o CosRock Fest.
Camila tem 27 anos, nasceu e mora em São Paulo. Formada em Comunicação Social, Rádio e TV, pela Universidade São Judas (2005-2008), trabalha como operadora de telemarketing para a Vivo e organiza o CosRock
Fest desde 2010 como uma ação paralela, pois não consegue sobreviver
economicamente apenas com os rendimentos dos encontros. Começou
a se encantar pela cultura japonesa quando assistia aos Cavaleiros do
Zodíaco e outros animês pela TV Manchete. Descobriu-se otaku, fã da
cultura japonesa, na infância. Não saía da frente da tevê, mesmo com
3
Kimi foi entrevistada em abril de 2012, durante o Anime Party 2012. Faculdades Cantareira.
São Paulo, SP.
4
Fernando foi entrevistado em abril de 2012 durante o Anime Party 2012. Faculdades Cantareira. São Paulo, SP.
447
imagens em preto e branco e com as reclamações de sua bisavó. Durante a adolescência, afastou-se deste universo, até que chegou a internet de
banda larga e voltou a mergulhar naquela cultura, agora com o objetivo
de divulgá-la.
Camila nos recebe em uma sala cheirando a mofo, no segundo piso de
um prédio pequeno, que naquele domingo à tarde sediava a terceira edição do CosRock. O local serve à Associação Beneficente dos Provincianos de Osaka Naniwa-kai, na Vila Mariana, região sul da cidade de São
Paulo. Quadros de senhores japoneses nas paredes, uma grande mesa
em torno da qual nos acomodamos, sofás repletos de coisas umas sobre
as outras. Fechamos a porta para nos isolarmos do som que vinha do palco – “ ter um palco é uma das condições para promover um evento, além
da data não coincidir com aqueles de maior estrutura,” revela a jovem.
Ela fez cosplay pela primeira vez aos 21 anos, quando soube de uma convenção organizada pela Yamato por meio do Orkut. Na ocasião, confeccionou sua roupa com ajuda de uma amiga, mas não ficou muito bem
caracterizada, nos diz. Durante a realização desta pesquisa, percebemos
como é comum o fato dos organizadores dos eventos terem sido cosplayers, colecionadores de mangás, de fitas de animês ou algo semelhante.5 Não foi diferente com Camila, que de cosplayer passou a cobrir as
festas como fotógrafa e depois se aventurou como organizadora. Para
a realização do CosRock Fest conta com a ajuda de seu próprio investimento econômico para alugar o espaço e providenciar tudo o que é necessário, mesmo para um evento de pequeno porte como aquele.
5
Cesar Ikko, sócio-fundador do Anime Com, empresa responsável pela organização de eventos em São Paulo e Belo Horizonte, também fez esta trajetória: fã, cosplayer, organizador de
eventos. Foi entrevistado em 17 de agosto de 2013 durante Anime Festival Winter, UNIBH,
Belo Horizonte, MG. No Piauí, segundo a pesquisa de Penélope Melo e Lira, este percurso
também se repete, a exemplo de Adriano Hally, organizador do Anime Power, Teresina, Piauí,
entrevistado em 07 de julho de 2013 durante o Anime Power, no Centro de Artesanato de
Teresina, Pi.
448
Trata-se de um encontro relacionado ao cosplay e marcado pela pulsação
do rock. Esta junção – cosplay e rock – é explicada por Camila que identifica o gosto musical do cosplayer ao dizer que “o público cosplay tem
muito a ver com o rock. Você não vai achar um cosplayer que goste de
funk, sertanejo, forró, essas coisas. Os cosplayers geralmente são roqueiros, curtem um som mais pesado.”6
As ligações entre a cena cosplay e o rock também podem ser percebidas
nas trilhas sonoras dos animês. A partir da década de 1980, o mercado de animê songs expandiu e à medida que novos títulos de animês
e games foram surgindo, o termo se consolidou e se mesclou com o J
pop, o pop japonês – e graças aos ritmos mais próximos do rock atraiu
o público adolescente, e não só o infantil que originalmente consumia o
gênero. “Não existe um ritmo ou batida específicos, já que animê song
indica a finalidade da música, mas as do sub-gênero hero song, com músicas de ritmo vibrante, tão comuns em desenhos de ação e seriados de
tokusatsu, são mais fáceis de serem reconhecidas”, explica Alexandre
Nagado (2005, p. 54).
A organizadora do CosRock Fest nos contou que planejava incluir na
programação, a participação de bandas cover de rock, como Iron Maiden
Cover, além de bandas de animê songs, J-Rock, rock japonês e K-Rock,
rock coreano, que agrada bastante o público otaku, porém, o evento viabilizou-se com o patrocínio da Rádio 89-FM, que exigiu, como contrapartida, que fossem apresentadas apenas bandas de rock parceiras da
rádio, o que a obrigou a retirar da programação as bandas que tocariam
as trilhas sonoras dos desenhos animados japoneses. De qualquer forma, mesmo com a alteração de repertório, o estilo musical agradou aos
frequentadores, uma vez que as bandas selecionadas também demons-
6
Camila Marotta concedeu este depoimento em 09 de junho de 2013, na Associação Beneficente dos Provincianos de Osaka Naniwa-kai, onde ocorreu o CosRock Fest. Rua Domingos
de Moraes, 2013. Vila Mariana, São Paulo, SP.
449
traram aderência ao gosto musical deste público, entretanto, bastante diferente do estereótipo normalmente atribuído aos roqueiros.
Aqui você vê um evento que é família. Vem pai, vem criança... Todo
mundo está se divertindo, ninguém precisa beber, ninguém precisa
usar drogas, não precisa bater em ninguém. É tranquilo. A gente não
precisa nem de segurança porque o pessoal é tranquilo. (...) Se eu
fizesse um show só de rock, tenho certeza que ia vir um pessoalzinho
que ia querer arrumar confusão, ia querer beber cerveja e ia
começar a causar. Mas em evento de animê você não vê isso. Você
vê família tomando Mupy, pai com filho de cosplay e isso é legal.
Durante a cena cosplay, é comum perceber a ausência de bebida alcóolica e em seu lugar, vemos os jovens, inclusive os maiores de idade, apreciando Mupy, suco de leite de soja, ou outros sucos e refrigerantes, ao
menos entre as cenas paulistas cartografadas até agora, mesmo nos lugares em que não há controle sobre a venda ou o porte de álcool, como
no CosRock ou Zelda Day. Podemos nos perguntar: será apenas nestes
encontros que rock tem gosto de Mupy? A cartografia com outros espaços pode nos permitir algumas respostas sobre a construção das paisagens sonoras mediadas pelos sabores de bebidas e alimentos glocais.
Afinal, como afirma Michel Serres (2001, p. 108), “todo audível possível
encontra locais de escuta e de regulação”. Pensamos sobre os espaços
áudio-táteis controlados em que o gozo da voz pode ser amalgamado à
vigilância do gosto.
Paisagens sonoras
O gosto dura acionado pela memória que, por sua vez, seleciona, da extensa rede midiática, uma personagem e promove um tipo de uso para a
narrativa: o cosplay - que segue assim como uso de um gênero, do animê,
mangá, game ou outra ficção.
450
Se é possível dizer que o cosplay é um texto-memória porque, comportando-se como um modo de usar o conteúdo midiático, refaz seu personagem de pixels em EVAs, tecidos suaves, drapeados, isopor, madeira,
pelúcia, etc, gerando novas significações para a antiga narrativa – é também texto-memória porque se faz sobre a pele – que convoca todos os
sentidos a se misturarem, conforme sugere Serres (2001, p.77) ao apostar
na mistura e não mais no meio:
A pele é uma variedade de contingência: nela, por ela, com ela
tocam-se o mundo e o meu corpo, o que sente e o que é sentido,
ela define sua borda comum. Contingência quer dizer tangência
comum: mundo e corpo cortam-se nela, acariciam-se nela. Não
gosto de dizer meio como o lugar em que meu corpo habita, prefiro
dizer que as coisas se misturam ao mundo que se mistura a mim. A
pele intervém em várias coisas do mundo e faz que se misturem.
Vale lembrar que ouvimos com a pele, testemunham os pesquisadores
que trabalham com portadores de surdez. A música é percebida como
sequência vibratória que chega ao cérebro por outras vias que não são os
órgãos auditivos. O nosso corpo funciona como uma caixa de ressonância, tais vibrações podem ser sentidas pela pele, pelos ossos de partes
do corpo (Bang, 1991). Desta pele-mistura, pele-mundo, pele-memória,
talvez seja possível supor, na cena cosplay, a emergência de um formato
contraditório de gozo e interdito que vincula música e paladar associados
ao espaço áudio-tátil do qual nos fala McLuhan e às paisagens sonoras.
Murray Schafer (2001) considera que qualquer campo acústico pode ser
tomado como paisagem sonora: sons de base, sons de fundo, sons arquetípicos – e todo analista deste ambiente deve perscrutar as marcas sonoras mais significativas. Na cena cosplay, vozes vivas, sintetizadas - como
as das vocaloides – personagens holográficas-cantoras, baseadas em um
banco de vozes; os sons de espadas de plástico, imitando espadas medievais, de cards, sons repetitivos e metálicos de videogames, de latas de
refrigerante, pacotes de Doritos e sacos de Mupys, yakisobas espargidos
451
em hashis, de pés e corpos esbarrando uns nos outros, violão e flauta, e
os sons da infância midiatizada, a exemplo dos animê songs e sua hibridação com o rock, inevitavelmente apresentados durante as convenções
por meio das bandas que se inscrevem nestes encontros, compõem a
paisagem sonora desta cena.
Algumas destas bandas têm longas trajetórias e passaram de bandas covers para produtoras de suas próprias músicas, como a Animadness, que
criou seu primeiro single em 2005, com Labyrinth. (Barros, 2011). Outras
são grupos mais jovens, como a banda Ikage, formada em 2008. Camila,
20 anos, vocalista da banda, atesta os motivos pelos quais foram levados
a tocar apenas animês songs: “tem a ver com a infância, com a nostalgia,
porque a gente toca as músicas que passaram na tevê há 10 anos. É um
gosto que a gente tem”. 7
A presença da infância na cena cosplay é referida por muitos jovens para
situar a iniciação à cultura pop, para autorizar a lembrança musical, e,
em alguns depoimentos, aparece como modo de escolher os cosplays,
como narrou Paulo,8 no Anime Friends 2013. Sob a máscara de um Super Pato,9 noz diz procurar por personagens que marcaram sua infância,
mesmo os mais antigos. Em tantos outros relatos, a infância serve para
explicar o preconceito sofrido por muitos jovens ao reclamarem que diversas pessoas entendem a prática cosplay como algo infantil, coisa de
criança, e, portanto, sem importância ou boba para algum adulto gastar
tempo e dinheiro com isso.
7
A banda Iikagem, em japonês, randômico – é formada por Camila, vocal, Raoni, baixista, e
Lucas, na guitarra. Jovens de São Bernardo do Campo, SP. Foram entrevistados durante o
Anime Party 2012, nas Faculdades Cantareira. São Paulo, SP.
8
Paulo, 27 anos, despachante aduaneiro do Porto de Suape, PE, foi entrevistado no Anime
Friends, 2013. Campo de Marte, São Paulo, SP.
9
Mighty Ducks (Os Super Patos no Brasil) desenho animado da Disney. Conta a história de
seis patos antropomórficos alienígenas que aterrissam na Terra e fundam um time de hóquei enquanto tentam voltar para casa. Exibidos no Brasil, no extinto programa Disney Club,
da emissora televisiva SBT no final dos anos 90, entre 1998 a 2000. Disponível em http://
pt.wikipedia.org/wiki/Mighty_ Ducks acesso em 1 de setembro de 2013.
452
Não é possível ainda responder se é graças a esta permanência da infância e do caráter lúdico destes encontros, que cena cosplay ressoe a um
ambiente familiar, no sentido mais tradicional do termo. Os cosplayers
apropriam-se de personagens e narrativas, vivem suas fantasias, porém
de modo protegido. Os encontros organizados por empresas de eventos,
como a Yamato e a AnimeCon cuidam de alimentar a utopia destes espaços: revista à porta, impedindo o porte de bebidas alcóolicas, de objetos
cortantes, pontiagudos, - o que significa que os cosplayers devem construir as armas, que muitas vezes integram o indumento das personagens,
com materiais menos agressivos. No interior dos eventos, o mesmo controle do gosto. Por mais que o espírito lúdico esteja presente, não estamos em meio aos excessos da festa, da qual os efeitos do álcool poderiam
fazer parte, mas sim, em um evento controlado, em um espaço sonoro,
aúdio-tátil regulado.
É interessante observar que os discursos dos cosplayers reforçam este
ideário: o “evento bom, é evento sem bagunça,” afirma Ana Regina.10 Do
mesmo modo, os encontros organizados por fãs, como o Zelda Day e o
próprio Cosrock, embora não tenham nenhum elemento coercitivo, mantêm a mesma dinâmica e nas palavras de Camila, “é um evento família,
não é preciso beber ou usar droga pra se divertir.”
Entretanto, a cartografia em Belo Horizonte, ofereceu-nos outras pistas.
Ainda que exista o “clima familiar”, com muitos pais vestidos como seus
filhos, ou apenas acompanhando os jovens, o próprio sócio-diretor do
AnimeCon, empresa responsável pelo Anime Fest Winter, que ocorreu
na UNIBH, mencionou na entrevista que iria instalar um bafômetro na
próxima edição do evento e afirmou que havia retirado do ginásio dois
rapazes passando mal em função da ingestão de bebida. A pesquisadora
Mônica Nunes, quem realizou a pesquisa de campo em Belo Horizonte,
portava uma garrafa de água ao entrar no evento e foi barrada pela se10 Ana Regina, cosplayer, foi entrevistada no Anime Dreams 2012. Universidade Cruzeiro do
Sul, São Paulo, SP.
453
gurança que abriu a garrafa para cheirar o líquido. Este episódio denota
que os participantes do encontro devem tentar burlar as leis de proibição de bebidas alcoólicas com certa frequência. Foi comum assistir aos
jovens, em grupos, trajando camisetas pretas adornadas por muitos cordões, nos arredores da Universidade, bebendo consideravelmente. Em
Beagá, são poucas as barracas de cup noodles ou yakisoba. Sobressai a
cantina da Instituição, o cachorro-quente, a coca-cola, a barraca de pastel
e a bebida alcoólica circula nas imediações de modo mais visível do que
nos eventos pesquisados na capital paulista, demonstrando que fatores
locais modificam a construção da cena.
Considerações em processo
Com base nos encontros e depoimentos pesquisados, a cena cosplay revela, em muitos momentos, conexões entre o espaço áudio-tátil da casa
da infância - tempo-espaço das vozes de personagens e músicas temas
de animês – e a iniciação à prática cosplay. Sabemos que o desejo da
escuta, pulsão invocante, em Jacques Lacan (1985), associa-se ao prazer
gerado pela voz materna, que, por seu turno, compõe a tessitura em que
se dá a partilha do alimento primordial.
Boris Cyrulink, em Do sexto sentido (1997), apresenta pesquisas que demonstram que, durante a amamentação, quando a mãe fala em baixas
frequências, as sucções do bebê aceleram. Acreditamos que conjunto
funcional palavras maternas e boca do bebê, tão ancestral e fundamental à sobrevivência da espécie, responde pelo gosto dos sons, que permanece no prazer de cantar canções da infância, em forma de animekês ou
dos hits dos animes songs – por sua vez compostos com batidas do rock.
A cena cosplay constitui-se, então, como paisagem sonora-tátil-gustativa
graças também à orquestração dos sentidos, à presença de alimentos,
sólidos e líquidos, regulados ou permitidos, globais e locais. Na mescla
do global com o local, também surge um novo território sensorial: o rock
454
tem gosto de Mupy, o J pop, de creme de galinha, a água pode ser destilado e o leite pode continuar sendo som.
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455
Som, linguagem e
significado musical
Paulo C. Chagas
University of Califórnia, Riverside
[email protected]
Resumo
Nesse artigo investigo a compreensão e o significado musical a partir de diferentes pontos
de vista. Primeiramente, apresento uma reflexão sobre a simultaneidade e polifonia como
qualidades inerentes do fato musical. Em seguida, abordo as seguintes questões: (1) a
oposição entre o som musical e o ruído como base para a elaboração de estéticas musicais;
(2) a analogia entre música e linguagem e as teorias de semiótica musical fundamentadas
na linguística e no estruturalismo; (3) a analogia entre a música e o mito a partir de LéviStrauss e a sua crítica do serialismo e da música electroacústica; (4) a questão da autonomia
musical e o debate sobre o distanciamento da música contemporânea em relação aos
ouvintes; (5) o pensamento de Adorno sobre a verdade como ideal da arte e a questão da
significação musical sob o ponto de vista da mimese. Finalmente, apresento a teoria do
sphota, introduzida pelos gramáticos hindus, a qual propõe a ideia do som como origem de
toda criação e a visão de que a linguagem e o significado formam uma totalidade invisível.
Palavras-chave
som; linguagem; significado; semiótica musical; sphota.
456
1. Simultaneidade e Polifonia
O que é a compreensão musical? O que é escutar uma música com compreensão? O que é compreender a música na era da globalização e digitalização? A reflexão sobre o a música no mundo contemporâneo pode
ser colocada nos seguintes termos: por outro lado, podemos usufruir de
uma variedade de obras, gêneros e estilos – as músicas criadas em diferentes partes do mundo; por outro lado as novas sonoridades e linguagens da música contemporânea desafiam o nosso ouvido e imaginação.
O mundo sonoro-musical apresenta-se como uma simultaneidade de fatos e eventos múltiplos e contrastantes, às vezes até mesmo paradoxais.
Será que devemos fazer o esforço de compreender o todo ou devemos
nos limitar à compreensão de aspectos parciais? Caso optemos por desconsiderar a totalidade, então o estudo da compreensão musical pode
nos levar a conclusões bem específicas que podem ser úteis para entender certas manifestações musicais mas inúteis para explicar outras. Mas
será que não seria esta nossa única opção?
A perspectiva que aqui adotamos é de natureza evolucionista. Consideramos que a música é um universo em expansão contínua, assim como
a expansão caracteriza o ser humano e o universo propriamente dito. Ao
longo da história da música observamos o aparecimento de formas e
estéticas que vão se transformando e desdobrando-se em movas formas
e estéticas. A tecnologia de gravação e reprodução sonora, inventada na
segunda metade do século XIX e aperfeiçoada no século XX, impulsionou o processo de diferenciação artístico e musical, o qual, mais recentemente, acelerou-se com a popularização do computador e da distribuição da música através das redes informáticas. Durante muito tempo, a
tradição da música erudita, de origem européia, constituiu a referência
dos estudos sobre a música. Hoje, entretanto, dispomos não apenas um
vasto repertório de obras criadas ao longo de séculos, como também estamos expostos às manifestações musicais de culturas e sociedades que
nos chegam, por exemplo, através da internet, e cujos sons se misturam
457
às sonoridades emergentes das mídias eletrônicas e digitais. Portanto,
retomando as questões acima levantas, investigar a compreensão musical coloca-nos diante de um dilema: será que devemos pesquisar as
bases comuns às diferentes manifestações musicais, tratar de descobrir
a unidade da diversidade? Ou será que devemos valorizar a qualidade
inerente à própria diversidade, considerar as diferentes manifestações
como fenômenos independentes sem nos preocuparmos em estabelecer
critérios comuns?
O princípio da simultaneidade, que caracteriza a diversidade de linguagens musicais do presente, é observada na própria essência do fenômeno sonoro. A existência da música está relacionada à nossa capacidade
de distinguir e diferenciar a multiplicidade de sons que se manifestam
no mundo, e também produzir e articular sons próprios, produzidos pela
vibração de corpos e objetos. O objeto sonoro, por mais abstrato e desconectado que seja de uma existência humana, é sempre a exteriorização de uma presença física. Mesmo os sons produzidos eletronicamente
precisam da vibração de objetos – as membranas dos alto-falantes – para
serem percebidos pelo ouvido. Ouvir e criar sons – qualquer que seja a
sua origem e o contexto – são dois aspectos indissolúveis de um mesmo
fenômeno, que é atribuir significado às vibrações sonoras. Sob a superfície do som manifesta-se a nossa consciência. A música é justamente
a operação da consciência que estabelece uma diferença entre os sons
musicais e os sons do ambiente acústico. Para escutar música, temos de
reconhecer seletivamente certos sons, ao qual atribuímos significado
musical, e suprimir outros que passam a fazer parte do ambiente que
ignoramos. Essa nossa capacidade de percepção auditiva simultânea e
seletiva – a habilidade de reconhecer eventos múltiplos e simultâneos e
excluir outros eventos – está diretamente associada à construção de polifonia musical. A polifonia constitui uma das características essenciais
da música em geral, e particularmente da música Ocidental. Distinguir
sons no meio ambiente e distinguir polifonia como forma de organização musical são operações cognitivas semelhantes que evidenciam nos458
sa capacidade de criar significado no meio acústico. No meu ensaio intitulado Polyphony and Embodiment: a Critical Approach to the Theory
of Autopoiesis (Chagas 2005) propus a seguinte definição: polifonia é o
modo específico de operação da percepção auditiva que distingue eventos múltiplos e independentes e cria uma diferença musical entre som e
ambiente.
O sistema da polifonia, surgido na Europa durante a Idade Média, foi
uma das invenções mais influentes na evolução da música. A composição polifônica, subordinada aos princípios da multiplicidade e individualidade, impulsionou o desenvolvimento da música vocal e instrumental;
as tecnologias da composição polifônica, como o contraponto e a harmonia, constituem ainda hoje os pilares do ensino musical. O processo de
transformação da polifonia foi impulsionado, a partir do final do século
XIX, por movimentos artísticos e musicais como o impressionismo, o expressionismo, o atonalismo, a música dodecafônica, o serialismo, etc., os
quais ampliaram a gramática e o vocabulário da linguagem musical. Por
outro lado, os meios eletrônicos de produção e reprodução do som introduziram novos materiais e tecnologias que, a partir da segunda metade
do século XX, foram articulados e elaborados por estéticas que emergiram no universo da música concreta, eletrônica e digital. Todos esses
desenvolvimentos estabeleceram novas identidades sonoras e musicais
que diversificaram o campo da música e, ao mesmo tempo, colocaram
em cheque o próprio conceito de obra musical.
Ao lado das formas tradicionalmente reconhecidas como “música”, organizam-se sistemas de comunicação mais ou menos autônomos – artísticos, para-artísticos e meta-artísticos – que valorizam o “som organizado”
, mas que se diferenciam do sistema musical. A autonomia da música é
questionada pela explosão da cultura de massa que transformou a música em objeto de consumo e também pela vinculação da música às mídias
tecnológicas de informação e comunicação, as quais estabelecem novas
relações “interdisciplinares” entre som, imagem, corpo, espaço, etc. O
459
advento da arte cinematográfica teve um forte impacto sobre o status
da música na sociedade. Enquanto que no século XIX a criação artística
audiovisual tinha como referência as grandes obras musicais – tanto a
música de concerto como os espetáculos de ópera –, hoje a referência
principal é o cinema, no qual a música ocupa uma posição subalterna.
No mundo contemporâneo das imagens técnicas o som está em segundo plano; a fascinação pelas imagens técnicas predomina, por exemplo,
nos grandes espetáculos da música pop internacional, que se tornaram
uma espécie de cinema ao vivo, reproduzindo as narrativas cinematográficas de Hollywood. As relações enredadas entre arte, técnica, ciência,
design, economia, etc. colocam em cheque o próprio conceito de música
como sistema artístico.
Um dos efeitos da filosofia de Wittgenstein, conforme apontou Luhmann,
foi mostrar a impossibilidade de definir o que é arte a partir de um conceito de “essência” que possa ser claramente definido por um observador
(Luhmann 1995, 393). Luhmann define a arte como um sub-sistema do
sistema social, constituído pela sociedade como um todo. É o próprio
sistema artístico que estabelece as regras para definir e delimitar os seus
domínios. A arte tem a possibilidade de se auto-definir – ou se auto-descrever – através de distinções inerentes às diferentes culturas e grupos
sociais. A obra de arte se reproduz através de uma rede de interações e
referências, que são tanto interiores quanto exteriores à obra. Essas interações apontam para a autonomia da arte e, ao mesmo tempo, vinculam
a arte à sociedade. A auto-descrição é o que garante a identidade de uma
“obra” musical, mesmo que esta seja interpretada de maneiras diferentes
ou em situações diferentes. É a capacidade autodescritiva do sistema artístico que permite, por exemplo, diferenciar a música “eletrônica” tocada
nas pistas de dança das baladas da música “eletroacústica” tocada nas
salas de concerto. A possibilidade de interpretação, que atualiza o significado da obra, é uma das características essenciais da música. A questão
da compreensão musical emerge então de um espaço intertextual, que
não se restringe apenas às referencias interiores da obra nem ao sistema
460
artístico, mas inclui também toda essa rede de interações que conecta a
arte aos demais sistemas da sociedade.
É preciso considerar que as formas artísticas se agregam e desagregam
a uma velocidade vertiginosa nas mídias contemporâneas – sonoras, visuais, espaciais, informáticas, midiáticas, etc. – o que nos obriga a redesenhar constantemente os mapas e as fronteiras dos sistemas de referência.
Absorvidos nesse turbilhão, temos de nos questionar se a investigação
é capaz de acompanhar os processos de diferenciação ou se não estávamos fadados a desaparecer nos vetores de alta velocidade da sociedade
capitalista pós-industrial que tendem a eliminar o espaço de reflexão e
de crítica. Portanto, retomando o nosso ponto de partida, temos de admitir que a questão da compreensão musical coloca-nos diante da necessidade de definir os próprios limites da música como objeto de reflexão.
Como compreender os diferentes tipos de manifestação musical? Qual
a diferença entre a obra de música erudita e a obra de música popular;
entre a música de concerto e a música de cinema; entre a obra de arte
musical ouvida em salas de concerto e a instalação de “arte sonora” exibida em galerias e museus? Se, de acordo com Wittgenstein, pensarmos
a compreensão musical como “uma manifestação da vida humana” (VB
550), vemos então aparecer manifestações de vida possuindo suas próprias expressões, escutas, movimentos e jogos de linguagem. Mas além
de reunir e diferenciar, é preciso também comparar todos os elementos
com a complexidade de formas e valores culturais que constituem a história da música e da arte. Seria assim possível encontrar bases comuns,
“constantes lógicas” (Wittgenstein TLP 4.0312) que nos permitam abordar
a questão da compreensão musical através de princípios unificadores?
Ou devemos então concentrar-nos somente nas diferenças? Finalmente, colocando a questão em termos ainda mais radicais, podemos nos
perguntar: compreender o “significado musical” de alguma coisa que se
manifesta no mundo?
461
2. Som e Ruído
A experiência da música requer que a consciência realize, pelo menos,
dois tipos de distinções fundamentais: por um lado a oposição entre o
som musical e ruído, por outro lado a oposição entre música e linguagem. A distinção entre som musical e ruído evidencia a nossa capacidade de analisar as vibrações sonoras percebidas pelo ouvido, selecionando aquelas que consideramos pertencentes ao domínio da música
e eliminar as que consideramos ruído. O som musical é portanto um
processo abrangente que seleciona informações no ambiente do ruído;
reduzimos complexidade do ruído a um conjunto de parâmetros ao qual
atribuímos significado musical. A sensação de altura, que é talvez a mais
determinante para definir a musicalidade de um som, está associada
primordialmente à nossa capacidade de quantificar temporalmente o fenômeno sonoro em termos de vibrações periódicas – as freqüências – e
vibrações aperiódicas, que associamos ao ruído. As vibrações periódicas
lentas produzem sons graves, as vibrações periódicas rápidas produzem
sons agudos. As vibrações aperiódicas produzem sons sem altura definida, que são mais ou menos “ruidosos” dependendo das irregularidades das vibrações. As vibrações periódicas são classificadas por meio
de sistemas de intervalos e escalas, cuja função é dividir e quantificar o
contínuo sonoro. A música ocidental utiliza desde há alguns séculos a
escala cromática na qual o intervalo de oitava é dividido em doze semitons iguais – as “notas” musicais. O intervalo de oitava ocorre quando as
frequências estão em proporção de 2 para 1. Ou seja, a oitava estabelece
uma relação de similaridade que permite identificar as mesmas “notas”
em diferentes registros do contínuo sonoro. Outras escalas – como as de
cinco sons, sete sons, etc. – são usadas em músicas de diferentes culturas
e civilizações. De uma forma geral, considera-se que o conjunto de possibilidades de uma escala é determinado culturalmente.
Além da altura, há três outras propriedades do som que são tradicionalmente associadas à música: a intensidade, a duração e o timbre. As corre-
462
lações entre as propriedades do som e a música vêm sendo estudadas há
vários séculos por filósofos e cientistas. O grego Pitágoras foi o primeiro a observar as proporções dos intervalos musicais como fundamento
da harmonia. Ele esboçou a visão de um mundo descrito por meio das
relações lógicas e matemáticas entre os sons, onde a harmonia do microcosmo sonoro projeta-se no macrocosmo do universo e vive-versa. A
idéia de que a harmonia dos indivíduos na sociedade e a harmonia dos
corpos celestes pode ser expressa em termos sonoro-musicais – que está
implícita nessa visão pitagoriana – continua estimulando até hoje nossa
imaginação. A ciência do mundo moderno elaborou a noção física de espectro sonoro que está relacionada à noção perceptual do timbre de um
som. O timbre é o que caracteriza a cor ou a qualidade de um som, o que
diferencia a mesma nota musical produzida por diferentes instrumentos
– por exemplo uma flauta ou um violino – ou por diferentes meios sonoros – o som acústico ou eletroacústico. Ao contrário da altura e da intensidade, não é possível construir uma “escala” para ordenar as diferenças
entre os timbres. Trata-se de uma propriedade multidimensional do som
que só pode ser descrita de forma subjetiva através de analogias e oposições. Por exemplo, escuro/claro, opaco/brilhante, suave/duro, frio/quente, puro/rico, estático/dinâmico, compacto/disperso, liso/rugoso, etc.
Os atributos do timbre são descrições perceptuais, que estão relacionadas tanto à percepção dos sons do ambiente – os timbres que identificamos na natureza, os ruídos das máquinas e aparelhos – quanto à nossa capacidade de construir sonoridades por meio de voz, instrumento,
meios mecânicos, eletrônicos, etc. O timbre é um elemento básico da
expressão musical que diferencia, por exemplo, a qualidade da interpretação de um cantor ou de um instrumentista. A preocupação com o timbre motivou o desenvolvimento de corpos sonoros coletivos destinados
a produzir uma multiplicidade e diversidade de timbres; por exemplo a
orquestra sinfônica ocidental, o gamelão (orquestra de percussões metálicas da Indonésia), as orquestras de tambores da África Ocidental, etc.
A música eletroacústica ampliou consideravelmente importância do tim463
bre na composição musical, na medida em incorporou o ruído da natureza e da sociedade, e praticamente qualquer som existente ou imaginável.
O timbre tornou-se também uma preocupação fundamental da música
acústica – vocal e instrumental – do século XX, através de sistemas de
composição baseados em metáforas sonoras, como por exemplo a chamada “música espectral” européia.
Os sons musicais consistem geralmente em espectros complexos, formados por um grande número de constituintes ou parciais, que podem estar harmonicamente relacionados ou não. O ouvido funciona como uma
espécie de analisador “biológico” do espectro. A complexidade de um
espectro pode ser comparada a uma composição para orquestra sinfônica. O músico treinado pode perceber diferentes partes numa partitura
complexa, enquanto que um ouvinte não treinado percebe apenas uma
massa sonora amorfa ou difusa. Os elementos constitutivos da linguagem musical estão correlacionados a essa nova capacidade de realizar
distinções analíticas no espectro. Por exemplo, os experimentos realizado por Helmholtz, em meados do século dezenove, demonstram que
as sensações de consonância e dissonância podem ser explicadas pela
nossa capacidade em distinguir batimentos e outras interferências que
ocorrem entre os parciais do espectro. A dissonância é associada à rugosidade causada pelo batimento de parciais, a consonância é associada à
ausência de batimentos. A dissonância estaria portanto mais próxima da
concepção do ruído em oposição à consonância que está mais próxima
do som musical. As relações de consonância e dissonância mostram que
a oposição som musical/ruído é uma função recorrente e fractal, ou seja
trata-se de uma operação que entra nela própria desdobrando novas oposições que, por sua vez, representam novas categorias estéticas. A história da música pode ser analisada como um desdobramento cada vez mais
sutil e profundo da oposição fundamental entre o som musical e o ruído:
a consciência musical, à medida que vai evoluindo, apropria-se cada vez
mais do ruído, percebendo as diferenças internas, valorizando-as e transformando-as em sons musicais. Assim, a música eletroacústica pode ser
464
estudada como uma manifestação recente da conquista consciente do
ruído como meio de expressão musical. Na verdade, assim como a escala
expressa o conjunto de possibilidades de uma cultura, as noções de consonância e dissonância não são determinadas somente por leis acústicas
ou fisiológicas, mas representam igualmente valores culturais.
3. Música e Linguagem
A distinção fundamental entre música e linguagem pode ser abordada
a partir da voz, que é o elemento comum a esses dois sistemas de comunicação acústica. Do ponto de vista evolucionário, a voz é uma manifestação unicamente humana. Embora muitos animais possam emitir
sons, somente os seres humanos produzem essa forma de organização
sonora que reconhecemos como linguagem. O primeiro som significativo produzida pela voz é o choro. Estudos realizados sobre o choro do
bebê demonstram que este som compartilha certas características de
estímulos acústicos que têm a capacidade de despertar, alertar e atrair a
atenção do ouvinte, e que possuem também certas propriedades acústicas que permitem reconhecer uma situação de necessidade ou de alarme (Cf. Oswald 1963, 39-48). A aquisição de uma linguagem é um processo inconsciente, em que a criança começa a falar imitando sons dos
seus pais e prossegue com o reconhecimento das regras linguísticas que
organizam os sons em palavras e frases. Posteriormente, o processo de
aprendizado da linguagem vai sendo influenciado e moldado por experiências individuais e sociais que podem durar até mesmo a vida inteira.
Do ponto de vista da semiótica existencial, a voz é a manifestação do
movimento do imanente para o manifesto, o qual constituiu a essência
da significação (Tarasti 2002, 157). Todo ato vocal, como aponta Tarasti,
implica o esforço da projeção de um signo que “nos leva dar o salto do
Dasein de nossa própria identidade para uma outras identidade e seu
Dasein (Tarasti 2000, 30-2). A voz que emana de um sujeito é uma forma
de escapar do mundo do Dasein individual, um esforço para romper os
limites do solipsismo e conectar-se com o social. Isso fica evidente quan465
do vemos um cantor, o produtor da voz, diante de uma platéia. Os gestos
e tensões musculares que se manifestam no ato de cantar, segundo Tarasti, enfatizam a síntese entre o esforço físico e intelectual, a qual está
implícita na concepção de toda linguagem.
A linguagem que usa a voz para produzir a fala é o principal sistema
de comunicação da sociedade. Ela utiliza um número bastante reduzido
de sons – os fonemas – que não têm valor em si mesmo, mas adquirem
valor na medida que se opõem a outros sons. Ou seja, o valor dos fonemas é estritamente diferencial e relacional. As oposições fonológicas,
que organizam o material sonoro da fala, são os elementos distintivos
da linguagem. A presença de um traço distintivo indica uma unidade
significante que se opõe a uma outra unidade que poderia ocorrer com
outra característica. A ideia de que a música e a linguagem são sistemas
simbólicos de comunicação que compartilham a elaboração do material
sonoro como elemento distintivo, alimentou comparações entre música
e linguagem. A linguística de Saussure, as idéias do estruturalismo filosófico e da antropologia estrutural de Lévi-Strauss – na medida em que
refletiram sobre as relações de equivalência entre os diferentes processos
de significação como a linguagem, as artes, os mitos, os parentescos, os
ritos, a economia, etc. – tiveram forte influência nos estudos de semiótica
musical do século XX. Uma das características das abordagens semióticas da música inspiradas pela lingüística, foi reproduzir a distinção fundamental da teoria saussuriana entre língua [langue] e fala [parole] como
base da compreensão musical. Na linguística de Saussure, a língua é o
sistema de valores organizado através das oposições distintivas, regras
e normas gramaticais, que funciona como uma espécie infraestrutura. A
fala é o ato de utilização da língua pelo indivíduo que está vinculado a
fatores diversos, não necessariamente lingüísticos – situação, personalidade, ambiente cultura e social, etc. A língua é primordialmente um
conceito, um repertório de possibilidades visto do exterior. A fala está
associada à imagem acústica como um todo, não apenas à materialidade
física do som mas também ao esforço muscular e à impressão psíquica.
466
A língua representa o domínio do virtual, onde nada ainda é dito e a fala
representa o domínio da corporalidade do processo de individuação. De
acordo com a terminologia de Tarasti, a distinção entre língua e fala representa o movimento do imanente para o manifesto do qual emerge a
significação.
O signo linguístico de Saussure representa a síntese dessa oposição fundamental entre o conceito (a língua) e a imagem acústica (a fala). Na
definição do signo, as noções de conceito e imagem acústica são associadas respectivamente aos termos significado [signifié] e significante
[signifiant] (Saussure 1972, 99). Saussure desenvolve assim uma concepção de linguagem como um sistema de diferenças articulado em dois
planos distintos formando uma unidade. A ideia de que a música possa
ser analisada também como um sistema articulado unificando conceitos
a imagens acústicas é o ponto de partida para as comparações entre a
música e a linguagem.
A música é linguagem. Isso quer dizer, entre outros, que ela é
um sistema de comunicações através do qual os homens trocam
significados e valores. Para existir, ser eficiente, a música tem portanto
de obedecer às regras que tornam possível, de uma forma geral, o
funcionamento de um sistema de comunicação (Ruwet 1972, 26).
Ruwet faz uma distinção entre os diferentes modos de relações humanas.
Por um lado, estão os modos que não são articulados como linguagem,
como o grito, o olhar, as carícias, etc. Eles possuem uma grande riqueza,
uma variedade infinita de possibilidades, mas trata-se de uma riqueza
confusa, indiferenciada, inefável. É o caso, por exemplo da riqueza do
ruído, que é virtualmente inesgotável, mas que precisa ser articulada
num sistema musical para tornar-se significativo. Por outro lado, estão
os sistemas articulados e diferenciados como os mitos, ritos, linguagens,
sistemas econômicos, de parentesco, etc. Esses sistemas exprimem a totalidade de uma forma complexa, mas implicam também certas regras e
467
limitações. A música, obviamente, integra a categoria dos sistemas articulados. Mas quais seriam as regras que articulam a linguagem musical?
O modelo de discurso musical proposto por Tarasti desenvolve a distinção fundamental da linguagem – a dupla articulação do signo – a partir
dos conceitos de imanente e manifesto. A oposição fundamental entre
um nível manifesto e um nível imanente desdobra-se recursivamente em
duas oposições secundárias que ocorrem no interior desses níveis. No
interior do nível manifesto ocorre a oposição os modelos tecnológicos e
ideológicos, no interior do nível imanente a oposição entre as estruturas
de comunicação e as estruturas de significação (Tarasti 1994, 16-20). Os
modelos tecnológicos e ideológicos determinam o universo simbólico
da música. Os modelos ideológicos são os conceitos e normas que avaliam a música de uma cultura ou sociedade; na música Ocidental estão
representados pela estética musical, que inclui o discurso crítico e acadêmico sobre a musica. Os modelos tecnológicos são constituídos pelos
sistemas e regras da composição; por exemplo as técnicas da harmonia,
do contraponto, do serialismo, etc.; nessa categoria pode-se incluir também as técnicas de composição contemporânea, eletroacústicas, digitais,
etc. A oposição entre os modelos ideológicos e tecnológicos influencia
o discurso musical na medida em que reflete-se sobre as estruturas de
comunicação e significação. As estruturas de comunicação são os processos que servem para comunicar as idéias musicais; por exemplo as
estruturas estilísticas, que limitam as escolhas e oferecem soluções para
o compositor criar a obra musical. As estruturas de significação representam a liberdade de produzir um significado próprio através da obra
musical. É a essência estética da música. A oposição entre as estruturas
de comunicação e significação é um processo dinâmico na medida em
que o valor estético de uma obra pode consistir, por exemplo, na ruptura
com as normas vigentes de uma época. É o que se observa com frequência ao longo da história da música.
468
4. Música e Mito
O antropólogo Claude Lévi-Strauss propõe uma reflexão sobre as relações entre música, mito e linguagem na introdução de O Cru e o Cozido
(Lévi-Strauss 1964). Trata-se do primeiro volume do seu monumental estudo sobre os mitos dos índios Bororo do Centro-Oeste brasileiro e de
outros grupos indígenas da chamada “América tropical”, que ele visitou
e pesquisou durante suas viagens etnográficas, na década de 1930. O
texto introdutório, denominado Ouverture, tem um interesse particular
para o estudo da compreensão musical, por causa da critica formulada
por Lévi-Strauss contra as estéticas que dominaram a música européia
em meados do século XX: a música atonal e serial (instrumental e vocal)
e a música concreta (eletroacústica). Essa critica é também interessante
do ponto de vista histórico, por ter causado uma polêmica envolvendo
Pierre Boulez, compositor ícone da vanguarda musical européia, e Pierre
Schaeffer, criador e mentor da música concreta que emergiu nos estúdios
da rádio estatal de Paris no início da década de 1950. Lévi-Strauss levanta a hipótese de que o pensamento musical associado às estéticas do
atonalismo e serialismo carece de um fundamental natural que justifique objetivamente o sistema de relações entre os sons, o qual, em última
análise, assegura a compreensibilidade da música. No caso da música
concreta, a rejeição é ainda mais radical: Lévi-Strauss reconhece que a
música concreta estabelece uma relação direta com o fenômeno sonoro
natural, pelo fato de operar com os ruídos, mas que, ao invés de explorar
o valor representativo do ruído, optou por “desnaturar” os ruídos e torná-los irreconhecíveis para os ouvintes.
A crítica levantada por Lévi-Strauss é emblemática da dificuldade em
se compreender a música contemporânea em geral, sobretudo a música
eletroacústica, a partir de modelos inspirados da lingüística. O pensamento estruturalista, que persiste sob variadas formas nos estudos de
semiótica musical, opera através da articulação fundamental de dois níveis de significação que, em última análise, pode ser reduzida à oposição
469
entre cultura e natureza. A ideia de que a cultura é uma separação, um
dilaceramento do homem em relação à natureza que traduz a impossibilidade de ter acesso à realidade do mundo, permeia tantos os estudos
antropológicos quanto psicanalíticos. A cultura introduz no âmbito do
ser uma lacuna que é impossível de ser preenchida ou restituída: “o real
está sempre no limite da experiência”, afirma Lacan (citado por Ruwet);
o homem só tem acesso ao real por intermédio de um conjunto
de sistemas significativos (linguagem, mito, ritos, sistemas
de parentescos, sistemas econômicos, arte); cada um desses
sistemas impõe sua marca no real e permanece sempre irredutível
mesmo aos outros sistemas significantes, apesar das relações
de equivalência ou de transformação que se possa estabelecer
entre as estruturas dos diferentes sistemas (Ruwet 1972, 67).
Lévi-Strauss faz uma aproximação estrutural do mito com a música. O
mito e a obra musical, segundo ele, têm em comum o fato de serem linguagens temporais que transcendem, cada uma à sua maneira, o plano
da linguagem articulada, preenchendo ou dissimulando assim a lacuna do real. Tanto a música como o mito operam com a temporalidade,
mas ao mesmo tempo tratam de negar o tempo. Ambas funcionam como
“máquinas para suprimir o tempo” (Lévi-Strauss 1964, 24). Sob a superfície dos sons e dos ritmos, a música explora um terreno bruto, que é
o tempo fisiológico do ouvinte; trata-se de um tempo irreversível, mas
que a música transforma numa totalidade sincrônica e fechada sobre si
mesma. Assim, a música supera a irreversibilidade do tempo histórico
criando obras que são estruturas compactas e permanentes. As óperas
de Wagner, a ópera Pélleas et Melissande de Debussy e o balé Les Noces de Stravinsky são exemplos de obras musicais cuja escuta inspirou
Lévi-Strauss a associar a música à mitologia e a desenvolver uma análise
estrutural dos mitos orientada pela escuta musical:
A escuta da obra musical, devido à organização interna da
mesma, imobiliza o tempo que passa; como uma toalha de mesa
470
levantada pelo vento, ela pega e dobra o tempo. Por isso é que,
ao escutar a música e durante a escuta da música, atingimos
uma espécie de imortalidade (Lévi-Strauss 1964, 24).
Para Lévi-Strauss a música cria significação através de duas redes de relações, uma interna e outra externa. A rede externa, ou cultural, consiste
no sistema de intervalos (alturas) e nas relações hierárquicas entre as notas da escala, como tônica, dominante e sensível. Os sons musicais são
objetos culturais pelo fato de se oporem aos ruídos da natureza. A rede
interna, ou natural, é reiterada por uma segunda rede interna, ainda mais
natural: a dos “ritmos viscerais”. Consequentemente, a música articula a
mediação entre natureza e cultura no interior de sua própria linguagem,
tornando-se uma espécie de hiper-mediação. Em outras palavras, Lévi-Strauss aponta aqui para um processo recursivo em que a oposição natureza/cultura desdobra-se no lado da natureza como uma estrutura fractal
a fim de produzir significação. Tanto do lado da natureza quanto da cultura, “a música ousa ir mais longe” que todas as outras artes. Isso explica
“o poder extraordinário da música de atuar simultaneamente na mente e
na sensibilidade,” de desencadear ao mesmo tempo idéias e emoções, de
criar uma fusão entre esses universos (Lévi-Strauss 1964, 36).
O pensamento de Lévi-Strauss sintetiza dois pontos de vistas: (1) as
propriedades físicas e fisiológicas do som constituem o fundamento da
música; (2) a tonalidade é o sistema adequado para explorar significativamente essas propriedades. A ideia de que a música desenvolve uma
organização natural da experiência sensível, explorando e selecionando
as combinações e os contrastes que servem para elaborar um código de
distinções significativas cristaliza-se na tonalidade. As relações entre os
sons como os intervalos, acordes, funções tonais, etc. constituiriam assim o primeiro nível de articulação, comparável ao sistema fonológico da
linguagem. Em outra palavras: a música opera com sons musicais (e não
com os ruídos do ambiente), os quais são produto de uma cultura, mas
que ela organiza de acordo com as leis da natureza. A música concreta,
471
na medida em que rejeita os sons musicais para explorar exclusivamente
os ruídos, desintegra o sistema de significações que poderia constituir a
base de uma segunda articulação: “A música concreta cultiva a ilusão de
estar dizendo alguma coisa; mas na verdade ela está apenas patinhando
na não-significação” (Lévi-Strauss 1964, 31).
Para que uma linguagem seja compreendida, segundo Lévi-Strauss, é
preciso que os elementos extraídos da natureza sejam organizados num
sistema de primeira articulação, de relações fixas e reconhecíveis. Os
elementos que adquirem uma função significativa pela segunda articulação devem estar marcados para que haja significação. Para Lévi-Strauss,
tanto a música concreta quanto a música serial tentam constituir um sistema de signos com um único nível de articulação: a música concreta
rejeita a matéria sonora e a música serial rejeita a forma. O problema do
pensamento serial e por extensão de todas as estéticas que rejeitam o
sistema tonal como princípio de organização, é ter desviado o foco das
particularidades físicas e fisiológicas do som – as relações hierárquicas e
os fundamentos naturais –, para explorar apenas o jogo de combinações
entre os sons que é predominantemente de ordem cultural. O antropólogo e etnólogo Lévi-Strauss, que se aventurou pelo mundo para estudar
as estruturas do pensamento mitológico de diferentes povos e culturas,
chega a uma conclusão pessimista sobre os rumos da música serial: é
como um barco sem vela que flutua à deriva, depois que o comandante resolveu cortar as suas amarras; talvez essa aventura leve o barco a
descobrir novas terras; mas não será por vontade e conhecimento dos
navegadores (Lévi-Strauss 1964, 33).
5. Música e Autonomia
A crítica de Lévi-Strauss reacendeu o debate histórico sobre a autonomia
da música, que teve grande importância durante o século XIX, polarizando a discussão entre “música absoluta” e “música programática”. O crítico alemão Eduard Hanslick, no seu emblemático ensaio Vom musikalis-
472
ch Schönen [Do Belo Musical] de 1854, defende a idéia de que “a musica é
composta de seqüência de sons, formas sonoras não têm outro conteúdo
senão a si mesmo. [...] a música não fala através de sons, mas fala apenas
sons” (Abegg 1974: 29; ênfase no original). Essa idéia de linguagem musical está vinculada ao conceitos de formalismo musical e autonomia da
arte, que persistiram ao longo de todo século XX, com a Segunda Escola
de Viena (Schönberg, Webern, Berg) e a música de vanguarda acústica
e eletroacústica. O axioma da autonomia da música pode ser colocado
nos seguintes termos: a música é auto-referencial, na medida em que não
necessita de nenhuma referencia à linguagem, porque ela própria é uma
linguagem autônoma. Essa idéia domina também filosofia de Wittgenstein. Para ele, a música é parte de uma rede social de inúmeros jogos de
linguagem. A articulação da linguagem musical não se dá entre forma e
conteúdo, mas entre forma e uso. Não existe nenhum objeto no exterior
dos nossos jogos de linguagem. Não devemos falar de propriedades objetivas da música e sim da múltiplas relações da música com outras músicas e com a nossa cultura de uma forma geral. Ou seja, não devemos
examinar o conteúdo da música em oposição à sua forma, mas sim em
relação às suas “regras” e “uso”.
Toda música se refere – voluntária ou involuntariamente – à totalidade
de manifestações composicionais que surgiram antes dela, embora essas em si sejam únicas. A música remete a si própria, à cultura e ao
momento específico em que ela surgiu. Isto compreende a “totalidade de
formas de vida” – tudo que marca uma cultura, como afirma Wittgenstein – incluindo estruturas mitológicas, religiosas, artísticas, etc. Assim,
no início do século XX, abriu-se o caminho para uma música que não
está mais enraizadas nas linhas da tradição, uma música que não recorre aos modelos formais existentes e cujas estruturas harmônicas, tonais,
sonoras etc. são renovadas em cada obra. Portanto uma música que pode
ser considerada uma “perda de linguagem”. Em meados do século XX, a
questão da autonomia musical, nas estéticas da música serial, concreta e
eletroacústica, insere-se num movimento de contestação política e social,
473
representando anseios de buscar novos espaços de liberdade por meio
de um distanciamento do indivíduo em relação às regras. Eles afirmam,
ao mesmo tempo, a singularidade da transgressão, através da prática da
arte, e a utopia estética da autonomia da arte. No ensaio Penser la musique aujourd’hui [Pensar a música hoje] de 1963, Pierre Boulez descreve a
técnica musical do serialismo como a de universo musical relativo, “onde
as relações estruturais não são definidas uma vez por todas de acordo
com critérios absolutos, mas, ao contrário, se organizam segundo esquemas variáveis” (Boulez 1963, 35). A noção de relatividade elimina assim
a oposição entre níveis de significação. A concepção dualista de que o
material da música seria o conjunto de elementos sonoros e a obra seria
a organização desse material no tempo reduz-se à unidimensionalidade
da forma: o material sonoro já é uma forma, pois cada obra musical é
uma composição tanto do material quanto da forma. Assim, a utopia da
música do século XX é a de uma linguagem que não se constrói a partir
de materiais ou formas pré-existentes, mas é deduzida a cada obra. Essa
utopia foi definida por uma analogia da astronomia que se tornou emblemática: “O pensamento tonal clássico está fundamentado sobre um
universo definido pela gravitação e atração; o pensamento serial sobre
um universo em perpétua expansão” (Boulez 1966, 296).
Para os estruturalistas de orientação linguística, entretanto, a música do
século XX fracassa em criar um discurso autônomo. Há uma contradição
fundamental entre a complexidade da composição e a simplicidade do
ponto de vista da escuta musical. A analogia da expansão do universo
exprime apenas uma falácia, um abismo entre os objetivos e a realidade
da obra, como afirma Ruwet numa crítica às contradições da música serial, formulada em 1959. Mesmo que a música consiga desenvolver “belas” sonoridades, o discurso musical não consegue atrair a atenção do
ouvinte: “tudo se passa como se a música caísse no estado de indiferença
da natureza pura, como se ela renunciasse a criar uma linguagem, uma
história” (Ruwet 1972, 24). Lévi-Strauss insiste na mesma crítica, ao questionar se a escola serial conseguirá superar a tradicional lacuna entre o
474
compositor e o ouvinte. Ao retirar do ouvinte a possibilidade de se referir
inconscientemente a um sistema geral, a música serial obrigará o ouvinte a “reproduzir por si próprio o ato individual da criação” caso ele queira
compreender a música. Através do poder de uma lógica interna e sempre nova, cada obra arrancará o ouvinte de sua passividade para fazê-lo
participar do impulso criador, de forma que a diferença entre inventar e
escutar a música não será mais de natureza, mas somente de grau. Ou
então as coisas acontecerão de maneira bem diferente. Lévi-Strauss inverte a analogia da astronomia para afirmar que a música serial talvez
pertença a um mundo onde a música ao invés de levar o ouvinte na sua
trajetória, se afastaria dele:
Em vão [o ouvinte] se esforçaria em alcançá-la: a cada dia ela
lhe pareceria mais distante e inapreensível. Em breve, estaria
distante demais para emocioná-lo, apenas a idéia musical
continuaria ainda acessível, antes que acabe se perdendo sob
o arco noturno do silêncio, os homens só a reconheceriam
como cintilações breves e fugazes (Lévi-Strauss 1964, 34).
No início do século XXI, a música contemporânea encontra-se distante
do ouvinte. A apreciação da música contemporânea “erudita”, sobretudo
a de caráter experimental, atingiu um grau de relevância marginal na
sociedade, contrastando com a influência e o poder de penetração da
música “popular”. A maioria dos compositores da chamada música “séria”
[E-Musik] acostumou-se a ver as suas obras executadas diante de platéias
mínimas ou reduzidas; a música contemporânea vive praticamente na
obscuridade da mídia, em oposição à música de “entretenimento” [U-Musik] que é executada em eventos de massa globais e amplamente divulgada pelos canais mediáticos.1 As poucas obras musicais do século XX
1
Os termos alemães E-Musik e U-Musik foram cunhados pela crítica alemã no século XX para
diferenciar as funções da música na sociedade. A letra “E” é a inicial da palavra Ernst (= séria)
e a letra “U” é a inicial da palavra Unterhaltung [= diversão, entretenimento). Ou seja, o termo
E-Musik distingue a música séria, da arte erudita, e o termo U-Musik refere-se à música de entretenimento, popular, etc. Como apontou Landy, a cultura da E-Musik, altamente subvencio-
475
que atingiram um grande público, como observou Landy, resultaram de
uma utilização da música em contextos audiovisuais, não relacionados à
narrativa original da música. É o caso, por exemplo, das obras de Györgi
Ligeti usadas no filme 2001 Uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick (Landy 2007, 24). Landy critica o fato de que a investigação musical
tem valorizado o problema da criação, o ponto de vista do compositor
e negligenciado a experiência da escuta, o ponto de vista do ouvinte.
Landy identificou algumas propriedades que ajudariam a tornar mais
compreensíveis o que ele chama de “sound-based composition”, ou seja
composição baseada no som. Trata-se de um amplo domínio de criação
sonora que inclui, por exemplo, estéticas derivadas da música concreta,
como a acusmática, soundscape, ecologia acústica, música eletrônica ao
vivo, música mista (acústica e eletroacústica), obras audiovisuais, arte
sonora, instalações sonoras, obras radiofônicas, música para internet, etc.
que facilitariam a escuta musical e tornariam mais acessíveis a recepção
e apreciação da obra.
6. Música e Mimese
O debate sobre a música contemporânea foi dominado, no século XX,
pela figura de Adorno. Seu pensamento, de inspiração marxista, analisa
o efeito alienador da indústria cultural. A dialética negativa de Adorno
é uma reflexão implacável sobre o aparente fracasso da civilização ocidental. A destruição da Segunda Guerra Mundial e o horror perpetrado
pelo Holocausto nazista – o extermínio sistemático de milhões de judeus
– abalou a crença nos valores da cultura e da arte. Em a Dialética do Iluminismo (1944) [Dialektik der Aufklãrung], obra escrita durante o seu exílio em Los Angeles, Adorno contesta o potencial de liberação do pensamento iluminista na era do capitalismo monopolista. Vivendo próximo
a Hollywood, e distante das ruínas da guerra e do pós-guerra europeu,
Adorno refletiu sobre a marcha triunfal da indústria cultural. A critica à
nada pelo Estado e as organizações de rádio e televisão, constitui uma exceção a nível global
(Ver Landy 2007: 23).
476
ideologia da indústria cultural e à cultura de massa dominam a Filosofia
da Nova Música (Adorno 1949) [Philosophie der neuen Musik], uma reflexão ampla e complexa sobre a substância social da música e a estética
da música atonal e serial. A obra atraiu enorme atenção por causa da
discussão levantada por Adorno, sobre o valor e potencial histórico da
música contemporânea, opondo a música de Schönberg à de Stravinsky,
dois compositores ícones da primeira metade do século XX.
A estética de Adorno elabora o conceito de verdade da filosofia de Hegel, exposta nos Cursos sobre Estética [Vorlesungen über die Ästhetik].
Para Hegel, o ideal da arte é representar a verdade, enquanto manifestação do espírito absoluto inserida no contexto da historicidade. A arte
possui assim objetivos comuns com a religião e a filosofia. As obras de
arte são manifestações sensíveis da verdade, são formas do espírito absoluto mais verdadeiras que a própria verdade do mundo cotidiano. Assim como Benjamin, Adorno constata a modificação sofrida pela arte na
era da reprodutibilidade técnica. A arte transformou-se em mercadoria;
não é mais possível ter certeza sobre sua relevância como fonte de conhecimento e verdade. Porém, ao contrário de Benjamin, Adorno não
considerava que a aura da obra de arte havia desaparecido por causa
da reprodução técnica. Para ele, a arte encerra um enorme potencial de
transformação social, as obras de arte possuem uma mensagem de esperança da qual ele não está disposto a abrir mão. É justamente este o valor
da música atonal e serial de Schönberg, que Adorno considerava como a
síntese de uma dialética negativa, opondo as atitudes de inexorabilidade
(radicalismo) e de conciliação (aceitação). A atitude inexorável da musica de Schönberg consiste na sua estética radical de rejeição da música
tonal; ela representa a verdade social de uma música que se opõe ao
mercantilismo da sociedade capitalista. A atitude conciliadora reconhece o direito da música existir na sociedade, mesmo na “falsa” sociedade,
oferecendo elementos que contribuem para a sobrevivência da própria
sociedade. Isto se manifesta, por exemplo, quando Schönberg incorpora
elementos da tonalidade na sua música atonal e serial. Em suma, essa
477
oposição entre as atitudes negativa (radicalismo estético) e afirmativa
(reconciliação histórica) torna a musica de Schönberg “a mais representativa de uma consciência estética avançada” (Adorno 1975, 116). Para
Adorno, Schönberg utiliza o material da racionalidade e da modernidade
contra a própria cultura dominante da sociedade de massas.
Adorno aplica essa mesma dialética negativa/positiva na análise da música Stravinsky, mas para chegar a uma conclusão diametralmente oposta. Stravinsky é o vilão da “música nova” em oposição ao herói Schönberg. Adorno considera que as narrativas mitológicas da música do
período inicial de Stravinsky, por exemplo suas obras orquestrais para
balé incluindo a emblemática A Sagração da Primavera, desenvolvem
uma visão alienada e deturpada de mitos pagãos – como o mito da morte
– com o intuito de celebrar uma espécie de primitivismo musical e social.
Da mesma forma, Stravinsky manipula a consciência histórica quando
se apropria de estilos musicais e reintroduz a tonalidade nas suas obras
posteriores do chamado período neoclássico. Adorno considera que a
música de Stravinsky cria uma série de máscaras que obscurecem e banalizam o sofrimento humano, tema que move o progresso da música na
modernidade; a música corteja o poder e por isso desenvolve uma espécie de proto-facismo. Em Stravinsky, “a subjetividade assume o caráter
da vítima mas – e zombando assim da tradição humanística da arte – a
música se identifica não com a vitima mas com a autoridade aniquiladora” (Adorno 1975, 133).
A polarização entre as figuras de Schönberg e Stravinsky provocou uma
profunda polêmica que se estendeu ao longo do todo século XX, influenciando diretamente estética dos compositores da várias gerações. A reputação de Stravinsky foi resgatada posteriormente pelos compositores
da geração do pós-guerra, como Boulez e Pousseur, que ressaltaram a
originalidade e a diversidade estética da música de Stravinsky [ XX]. Assim como Adorno, tanto Schöenberg quanto Stravinsky deram as costas à Europa, fugindo ou não do nazismo, e emigraram para os Estados
478
Unidos. Todos eles estiveram, de uma forma ou outra, em contato com a
realidade de Hollywood. Schönberg resistiu aos inúmeros convites para
escrever música para cinema; Stravinsky teve trechos de A Sagração
da Primavera utilizada no desenho animado Fantasia produzido pelos
estúdios da Disney. A sequência começa com a formação do planeta e
conclui com o ritual “primitivista” da luta de dinossauros em extinção.
Na sua análise de Fantasia, Tarasti mostrou que o universo de Disney
desenvolve significados a partir de relações totêmicas que emergem
de referências ao primitivismo e à consciência selvagem. Esses temas,
como mostrou Lévi-Strauss, são fenômenos universais, o que explicaria
o sucesso de Fantasia no mundo inteiro. Para Tarasti, a estética cinematográfica de Disney representa a essência da civilização americana,
a qual está “baseada no fenômeno do nada [nothingness], pois os totens
têm de compensar a falta de estruturas sociais, como as que existem na
Europa” (Tarasti 2000, 189).
Adorno examina o problema da significação musical no seu curto texto
Fragmento sobre Música e Linguagem (1956), publicado como introdução
ao ensaio Quasi una Fantasia (1963), Logo no início do texto, ele abre
uma discussão comparando a música à linguagem.
Música é semelhante à linguagem. Expressões como idioma musical,
intonação musical não são metáforas. Mas a música não é linguagem.
Sua semelhança com a linguagem aponta o caminho para o interior,
mas também para o vago. Quem considerar a música literalmente
como linguagem, está enganado.
A música é semelhante à linguagem no sentido de que é uma
sucessão temporal de sons articulados, que são mais do que
simplesmente sons. Eles dizem alguma coisa, quase sempre alguma
coisa humana. Quanto mais elevada a música, com mais ênfase
eles dizem. A sucessão de sons está relacionada à lógica: há certo
e errado. Mas o que é dito não pode ser separado da música. A
música não cria nenhum sistema de signos (Adorno 1978, 251).
479
Para Adorno, a similaridade entre música e linguagem ocorre em vários
níveis, desde o nível da obra como um todo até o nível de um som individual. A teoria da música está repleta de analogias linguísticas como
frases, períodos, perguntas, pontuações, parênteses, etc. Assim como a
linguagem, a música utiliza elementos recorrentes, signos que, aplicando-se a terminologia da semiótica de Peirce, funcionam como índices e
símbolos (Peirce 1998). É o que ocorre, por exemplo, com elementos que
identificam a tonalidade: acordes usados com as mesmas funções, progressões fixas de acordes como cadências, figuras melódicas com funções harmônicas, etc. Esses signos funcionam como conceitos abstratos,
assim com os conceitos da linguagem. Mas ao contrário da linguagem,
os conceitos musicais possuem identidade própria e não exterior. O processo de fixar identidades gera uma segunda natureza, que, na terminologia estruturalista, poderia ser chamado de segundo nível de articulação da música. Mas Adorno considera que essa “segunda natureza” não
passa de uma ilusão – são fórmulas estereotipadas, mecanismos e outros
procedimentos, que música “nova” trata de rejeitar.
A diferença fundamental entre a música e a linguagem, segundo Adorno, consiste no fato de que a música aspira a ser uma linguagem não
intencional. A música diz e ao mesmo tempo esconde. Este é o aspecto
teológico da música, que a aproxima da religião; “sua idéia é a forma
[Gestalt] do nome divino” (Adorno 1978, 252). Para Adorno a música é
uma oração desmistificada, uma prece que se libertou da obrigação de
invocar o nome [divino], e não comunicar nenhum significado. A música
pretende ser uma linguagem sem intenção mas, na verdade, ela articula
uma dialética permeada de intencionalidade, cuja principal característica é a ambigüidade. A música está sempre indicando alguma coisa e, ao
mesmo tempo, escondendo as suas intenções. Esse é o seu aspecto mítico. A intencionalidade musical está relacionada à interpretação. Tanto
a linguagem quanto a música precisam ser interpretadas. Interpretar a
linguagem significa entender a linguagem; interpretar a música significa
fazer música.
480
Ao abordar a questão da interpretação musical, Adorno introduz a sua
tese de que a execução não é um acessório e sim um atributo essencial
da musica. Essa tese fundamenta-se na idéia de mimese, que retoma, de
uma certa forma, a estética de Hegel. Porém, não se trata mais de uma
mimese da natureza, rejeitada por Hegel, nem do espírito absoluto, afirmada por Hegel, mas uma de uma mimese auto-referencial da própria
música. A música revela-se na prática mimética: trata-se da “imitação
de si mesmo, e não um processo de decodificação” (Adorno 1978, 253).
O conceito de mimese, comum ao pensamento de Benjamin e Adorno,
exprime a possibilidade de criar uma semelhança com o objeto. A experiência mimética não significa imitar a aparência de uma objeto, mas
comunicar-se com ele e assim preencher a lacuna entre sujeito e objeto,
transformando ao mesmo tempo tanto o sujeito como o objeto.
A questão da mimese foi insistentemente tratada por Adorno nos fragmentos que compõem a obra Para uma teoria da reprodução musical
[Zu einer Theorie der musikalischen Reproduktion], a qual só foi publicada pela primeira vez em 2001. Ao tentar desenvolver uma teoria sobre
a reprodução musical, Adorno tinha em mente restabelecer o mimético
através da representação:
A verdadeira reprodução é a imagem em raio x da obra. Sua
tarefa é tornar visível todas as relações, todos os momentos de
contexto e contrastes da construção que estão escondidos sobre
a superfície do som perceptível – e isto ocorre justamente através
da articulação dessa manifestação perceptível (Adorno 2001, 9).
7. Som e Misticismo
Quando compreendemos uma música, compreendemos o significado
dos diferentes elementos que formam a música, ou compreendemos a
música como um todo? Considerando-se que os sons são as unidades
significativas da música, compreender uma música significa então compreender a sucessão de sons ou a totalidade da obra musical?
481
Para responder a essa questão vamos invocar mais uma vez a linguagem
como paradigma da compreensão. A teoria do sphota é uma das contribuições mais interessantes dos gramáticos indianos para o estudo da
lingüística e da filosofia da linguagem. Ela afirma que uma palavra ou
uma frase não se reduz a uma seqüência de sons ordenados, mas constitui uma unidade, um todo indivisível que carrega um sentido. Os sons
audíveis das palavras e sentenças são apenas os meios através dos quais
o sphota se revela. Etimologicamente o termo sânscrito sphota significa
“estouro”, “explosão”. Por conseguinte, sphota é a explosão de significado
revelada pelos sons. O termo sphota foi usado por Patanjali, no século
II a.C., para denotar a qualidade universal de uma linguagem (shabda),
enquanto que o som (dhavani) é a qualidade particular. O sphota é o
que se mantém constante; o som é a qualidade variável, que depende
das particularidades individuais. Posteriormente, no século V, do filósofo
Bhatrhari desenvolveu a idéia de que o sphota é o substrato real da linguagem, idêntico ao significado. Bhatrhari abole assim a distinção entre
o “significante” e “significado” da linguística estrutural. Sua contribuição para a filosofia da linguagem é fundamentada numa teoria metafísica de caráter monístico e idealista. Ele re refere a uma palavra-essência
transcendental, que constituiria o princípio do universo. Sua doutrina do
sphota está associada com a realidade suprema chamada sadha-brahma,
conceito que pode ser traduzido por “linguagem-ser supremo”. O som e
o sentido compõem uma totalidade indivisível, que o ser humano divide
para poder compreendê-la.
Não existe pensamento sem linguagem, não há conhecimento
desassociado de uma palavra. A consciência vibra através das
palavras, e essa consciência vibrante, ou um modo particular de
cognição, nos faz agir e obter resultados. Consequentemente,
a linguagem oferece o substrato sobre o qual se baseia a
atividade humana. A linguagem e o significado não são duas
realidades separadas de forma que uma conduza a outra. Elas
são essencialmente duas faces de uma mesma moeda. O sphota
é o princípio unitário no qual o símbolo e o que é significado
482
são uma só coisa. Para compreender a falar como outra pessoa e
para nos comunicarmos nós separamos o inseparável, o som do
sentido. Mas isso é apenas um instrumento para a compreensão
mútua. No nível superior eles são uma coisa só (Matilal 1990: 95).
Essa visão da linguagem como uma totalidade indivisível, não poderia
aplicar-se também à música? A caracterização da linguagem como uma
experiência que nos coloca em relação direta com o supremo, valoriza
a consciência mística, a qual nos distancia do universo da lógica e da
consciência lógica. A realidade mística estaria assim além da linguagem
e da nossa capacidade de apreender o mundo através do raciocínio fundamentado pela lógica.
A ideia do som como origem de toda a criação, está presente no sistema
da filosofia Vedanta, que tem origem na cultura védica, cujo principal
registro é o conjunto de textos sagrados dos Upanishads. O som é a manifestação do microcosmo humano, condicionado por nomes e formas, e
o conhecimento do microcosmo deve levar necessariamente ao conhecimento do macrocosmo. Por detrás de todos os sons – dos nomes e formas
– está a teoria de um big-bang sonoro como essência da criação. Essa explosão eterna e inefável é representada em sânscrito pela palavra Sphota – a matéria essencial e eterna de todas as idéias e nomes, a energia
geradora e unificadora do universo. Na teoria do sphota identificamos
a idéia de um som-símbolo que representa todo o pensamento e através
do qual o universo se manifesta. Este som místico é expresso pela silaba
OM, que sintetiza a totalidade dos sons possíveis. A sílaba é formada por
três fonemas – A, U e M – que são pronunciados em sequência formando
o som OM: a seqüência representa o impulso criador, que começa na raiz
da língua e termina nos lábios: o fonema A, o menos diferenciado de
todos os sons, é produzido na proximidade da garganta; o fonema M, é
produzido na extremidade dos lábios; e o fonema U é produzido no espaço intermediário entre o A e o M como uma transição. O significado
simbólico do OM fica evidente através dessas palavras de Vivekananda:
483
Se for pronunciado corretamente, este OM irá representar todo
o fenômeno de produção de som, e nenhuma outra palavra
pode fazer isso; e isso, portanto, é o mais símbolo mais
apropriado do sphota, que é o verdadeiro significado de OM. E
como o símbolo nunca pode ser separada da coisa significada,
o OM e a sphota são uma coisa só (Vivekananda 1923).
A teoria do sphota foi rejeitada pela maioria das outras escolas filosóficas indianas. Sem querer entrar em detalhes, que desviariam o foco da
nova reflexão, limitamo-nos aqui a constatar a controvérsia sobre a questão do significado que opõe tradicionalmente duas diferentes filosofias
de linguagem: o princípio de unidades de significação ou o princípio da
contextualidade. As filosofias que defendem as unidades de significação
são, por sua vez, de dois tipos: as que defendem o princípio holístico da
indivisibilidade da frase, como a teoria do sphota, e as que defendem o
princípio da divisilidade, como argumentam os criticos teoria do sphota,.
O princípio da contextualidade pode ser resumido pela idéia fundamental de que o significado de uma palavra é o seu uso na linguagem, como
afirmou Wittgenstein.
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485
Celebrações e deleites
de um outro tempo: o
bem viver ao gosto dos
harpistas do Egito Antigo
Cássio de A. Duarte
Museu de Arqueologia e Etnologia - USP
[email protected]
Resumo
Incontestável ícone da mídia que foi impulsionado pelas grandes descobertas arqueológicas
dos dois últimos séculos, o Egito antigo se sedimentou no imaginário popular como sendo
uma terra exótica e mística; uma cultura icônica por seus monumentos de proporções
divinas, por sua escrita misteriosa cercada por imagens animais e humanas singulares, e
por suas práticas funerárias tão estranhas quanto fascinantes. Sob um olhar minucioso,
entretanto, algumas destas visões se revelam como uma verdadeira miragem provocada
pelos veículos de informação, os quais utilizam múmias, pirâmides e tumbas como
elementos sedutores à mente Ocidental mas de maneira completamente empobrecida
de significado. Mas as mesmas sepulturas e outras fontes milenares persistem em
eternizar na rocha o clamor da riqueza humana ao transmitir uma realidade diversa:
os egípcios antigos não ansiavam ou sequer eram obcecados pela ideia da morte; ao
contrário, foram verdadeiros cultuadores da vida e das delícias do bem-viver, querendo
que estas perdurassem para sempre no cenário da terra à qual estavam tão enraizados.
Objetivamos com este trabalho o vislumbre de algumas fontes que enfocam o prazer
da vida no Egito antigo e sua celebração por meio dos produtos da terra e das artes.
Palavras-chave
Egito antigo; canto do harpista; alimento; vida; música
486
Célebres por suas pirâmides, templos monumentais e por suas múmias,
os antigos egípcios são uma presença constante em produções cinematográficas, televisivas ou em publicações de grande difusão. O multifacetado imaginário que se desenvolveu em torno dessa sociedade é complexo
e com raízes antigas, tendo recebido contribuições da literatura bíblica,
dos antigos gregos e romanos e de diversos personagens da Europa e
de mais além desde o Renascimento até os dias de hoje (Donadoni 1990:
12-99). Pela perspectiva bíblica há, por um lado, um Egito obstinado a expulsar os israelitas que se contrapõe, por outro, ao país que os recebeu e
que, mais tarde, também foi refúgio da Sagrada Família. Sob o olhar dos
autores clássicos, o Egito foi tanto um país de hábitos estranhos povoado
por bárbaros quanto o centro de um conhecimento muito antigo herdado
do período dos deuses - uma parada obrigatória na biografia de diversos
pensadores helenos. Deste olhar simpático, mas muito influenciado pelo
misticismo, vingou o hermetismo, uma filosofia esotérica que ganhou
força considerável durante o Renascimento italiano. Foi somente após a
publicação da Descritpion de l’Égypte (1809-1829), produto da expedição
de Napoleão ao Egito que a Europa e, a partir dela, o restante do mundo,
passaram a conhecer os egípcios (tanto os antigos quanto os contemporâneos) em seu contexto geográfico por uma perspectiva enciclopedista
e científica. Mas se o caráter exótico das terras do Nilo já estava presente
nos relatos de diversos autores até essa época, com essa publicação se
constroi e se cristaliza todo um imaginário orientalista que, como uma
febre, se alastra com a reprodução ad infinitum de motivos egípcios na
arquitetura, nas artes decorativas e da bijuteria. Toda essa bagagem de
conceitos e preconceitos foi legada ao mundo contemporâneo o qual, por
sua vez, tem contribuído para mantê-la e amplificá-la.
Este movimento, que é continuamente insuflado pelas�������������������
mídia�������������
s, sofre pouquíssima influência das discussões do mundo acadêmico, as quais se
restringem à documentários e exposições em museus. Em países como
o Brasil, onde a educação é deficitária - os museus com coleções egípcias
(quase ausentes ou mal aproveitadas) e as redes de televisão privilegian487
do a difusão de programas de categoria duvidosa -, não é de se estranhar
que prevaleça um imaginário fantástico e distorcido acerca da cultura
egípcia.
Entre esteriótipos como as pirâmides e sua presumível energia, a equivocada e mal interpretada “lei da frontalidade” – que inspira um tipo de
coreografia muito particular -, as riquezas faraônicas e o exotismo de
Cleópatra, o tema mais presente é o das múmias (incluindo aqui seus
ataúdes) e da fixação egípcia pela morte. São inúmeras, por exemplo, as
produções cinematográficas que tocam no assunto direta ou indiretamente, e nos museus internacionais está entre as seções mais visitadas.
Estojos de lápis em forma de ataúdes e brinquedos educativos que ensinam a mumificar são muito populares em lojas dessas instituições. A
morte vende bem. Mas de toda a variada cultura material produzida pela
cultura egípcia, com seus requintados objetos de toalete, seriam as múmias e seus sarcófagos os melhores representantes dela, tal como se tornou comum considerar?
A preservação de uma quantidade desproporcional de túmulos em relação a de vestígios urbanos além do tempo estimado para a preparação
destes - os quais deveriam ser encomendados desde cedo durante a vida
de seus proprietários - são fatores que pesam em favor da interpretação
de que os egípcios viviam para a morte. Neste raciocínio, faz sentido
pensarmos que tudo aquilo simbolize a morte automaticamente representará bem a civilização egípcia como um todo, dado todo o aparato
simbólico e cultual que esta desenvolveu no decorrer dos séculos para
lidar com essa circunstância.
Mas até que ponto isso é verdade, se nas próprias capelas funerárias privadas a maior proporção de cenas retrata aspectos da vida do dia-a-dia?
Ainda que expressem uma simbologia funerária camuflada, essas imagens soam plausivelmente como “retratos” da vida cotidiana.
488
Outros indícios nos auxiliam a refletir sobre o assunto e sinalizam para
um cenário bastante diferente na maneira como os antigos egípcios encaravam a vida.
Um texto pertencente à categoria dos “cantos de harpistas” que se encontra em estado fragmentário em uma das paredes da capela de Paatonemheb (Lichtheim 1945: 142; Schneider, Raven 1981: 94-95) e cujo conteúdo é conhecido na íntegra por sua transcrição no papiro Harris 500 diz
(E. Araújo 2000: 372-374):
(...) “Uma geração passa, outra fica em seu lugar,
Desde o tempo dos antepassados.
Os deuses que viveram outrora repousam em suas pirâmides,
Assim como os bem-aventurados enterrados em suas pirâmides.
Construíram residências,
mas seu local desapareceu.
O que foi feito delas?
Ouvi as palavras de Im-hotep e Hordedef,
Cujos ditos são repetidos,
Mas onde estão suas casas?
Suas paredes esfacelaram-se,
Seu local desapareceu
Como se nunca tivessem existido.
Ninguém volta do lugar onde se acha
Para contar como está,
Para dizer o que precisa,
Para serenar nosso coração
Até irmos para onde eles foram.
Por isso, alegra teu coração,
Esquece que serás um espírito luminoso,
Segue teu desejo por mais que vivas.
Põe mirra em tua cabeça,
Veste linho fino,
Unta a ti mesmo com as genuínas maravilhas de um deus.
Aumenta teus deleites,
Que teu coração não se entristeça!
Segue teu desejo e os prazeres a que aspiras,
Faze tuas coisas na terra ao pedido de teu coração.
Quando chegar-te o dia de luto
489
O Inerte de Coração (Osíris) não ouvirá os lamentos por ti,
E os gemidos não livram o homem da sepultura.
Faze do dia uma festa
E não te canses!
Eis que ninguém pode levar suas coisas consigo,
Eis que ninguém que parte volta de novo!”
. Harpista ilustrado na capela de Paatonemheb. Rijksmuseum van Oudheden, Leiden. Foto do autor
A composição acima, conhecida como o “Canto do harpista para Antef”,
outrora decorava a sepultura de um rei do Segundo Período Intermediário (c. 1650-1550 a.C.) com esse nome, entretanto, seu conteúdo só nos é
conhecido pelas transcrições posteriores datadas da 18ª e 19ª dinastia (c.
1550-1186 a.C.). Textos desta categoria eram registrados nas capelas funerárias, no contexto das representações de banquetes, onde a imagem
de um harpista – via-de-regra cego - se destaca. De uma outra versão,
descrita no túmulo de Neferhotep (TT 50), citamos a seguinte parte (Lalouette 1984: 229-230; Lichtheim op. cit.: 195-197):
(...) “Faz um dia feliz. Ponha junto o incenso e o óleo fino para tua
narina, guirlandas de lótus e de flores sobre teu peito, ao passo que tua
irmã, doce ao teu coração, está sentada ao teu lado. Que os cantos e
as danças estejam diante de ti , rejeita as preocupções atrás de ti. Não
te lembres que da felicidade, até que venha o dia de se chegar à terra
que ama o silêncio, onde o coração do filho amado não se cansa”. (...)
490
O teor epicuriano avant la lettre desses escritos é percebido em outro
tipo de composição literária que nada tinha a ver com o contexto funerário: os cantos de amor. Em um ostracon proveniente da região tebana
(Feneuille 2010: 140-141; Mathieu 2008: 113-114) a ambientação que cria a
sensação de felicidade inclui – além da presença do amado – o consumo
de cerveja, a queima de incenso e a presença de músicos e cantores:
“Dia feliz de te ver, irmão, é um encantamento te olhar.
Possas-tu penetrar no meu lar, com cerveja e cantores com seus
instrumentos,
Suas bocas providas de divertimentos para a felicidade e alegria! (...)
Tua irmã te presta uma homenagem e se prosterna à tua visão.
Aceita-a com cerveja e incenso como oferenda a um deus!”
Em outra cantiga também datada do Reinado Novo (c. 1550-1069 a.C.), a
amada se refere à fala e a aparência de seu amante como um verdadeiro banquete para os sentidos: “Ouvir a tua voz é como vinho doce, vivo
só para a ouvir. Cada vez que olho para ti, fico mais alimentada do que
comer e beber” (L. Araújo 2000: 285). Em um poema de amor oriundo
da coletânea de um escriba, notamos tons mais carregados sobre as imagens eróticas (L. Araújo op. cit.: 276):
“Apresentas-te à porta da casa da tua amada
E entras para a sala de recepção,
Bem decorada, como uma pérgula.
Ela oferece canto e dança, vinho e cerveja.
Cabe-te excitar os seus desejos
E ganhá-la para sua noite.
Então ela te dirá: “Toma-me nos teus braços, e pela
alvorada estaremos na mesma posição!” ”
Se nem sempre a totalidade desses elementos – música, bebida, comida –
é exposta em um mesmo texto, sua inter-relação por meio da iconografia
é constante nas cenas de banquete desde o Reinado Antigo. Nestas, o falecido, acompanhado de seus familiares e convidados aparece em meio
491
a uma profusão de quitutes de toda a espécie, experimentando todas as
delícias do bem-viver em meio a dançarinas esbeltas embaladas pelo
som de uma orquestra de harpistas, flautistas e percussionistas acompanhadas por um cantor. Na capela do túmulo de Rekhmirê (Brancaglion
Jr. 1999: 262, pr. XXV – 1; Peters-Destéract 2005: 353-354), que foi governador de Tebas e vizir durante a 18ª dinastia (c. 1550-1295 a.C.), em uma
cena de banquete encontramos uma passagem bastante evocativa sobre
a associação de todos esses prazeres:
“Regozija o coração, vê que coisas belas,
As preces, as danças, os cantos,
Perfuma-te com mirra, cobre-te com óleo perfumado,
Aspira uma flor de lótus,
O pão, a cerveja, as doçuras e todas as coisas
Trazidas ás tuas mãos.
Para o príncipe e vizir Rekhmirê,
Que se encontra em companhia de sua mulher,
Aquela que seu coração ama,
A senhora da casa, Merit.”
. Cena de banquete da tumba de Rekhmirê (Davies 1943: pr. LXVI).
492
Ainda que sejam encontradas em contexto funerário e que não haja certeza a respeito de seu real teor – se representavam de forma idealizada os
banquetes celebrados em vida ou aqueles que eram feitos na sepultura
pelos parentes e amigos do morto para celebrar sua memória de maneira
simbólica (Brancaglion Jr op. cit.) – a mensagem dessas cenas de festim,
a qual se cruza com registros de outra natureza como, por exemplo, as
cenas agrárias, é voltada à celebração da vida, da abundância, da fertilidade e do bem-viver. E próprio pós-vida egípcio era um reflexo da vida às
margens do Nilo, com suas atividades de subsistência mas ainda com os
seus prazeres, como ilustra esta passagem do capítulo 110 do “Livro dos
mortos” (Trindade Lopes 1991: 143):
“Eu equipo este meu campo, o teu campo bem-amado,
senhora da brisa; aqui me alegro e sou forte, aqui como e
bebo, aqui trabalho e ceifo, aqui coito e faço amor, os meus
encantamentos mágicos são aqui poderosos; não tenho
censuras nem inquietude e o meu coração está feliz”
Desconhecemos como os textos dos túmulos eram pronunciados por
seus visitantes, contudo alguns estudos sugerem que alguns destes, por
sua������������������������������������������������������������������
métrica particular�����������������������������������������������
, foram elaborados para serem ser cantados (Lawergreen 2001: 453). Se considerarmos a importância da voz e sua entonação na elocução desses textos, das fórmulas mágicas e das oferendas
tradicionais (funerárias ou não) – compostas de “pão, cerveja, linho, alabastro e todas as coisas puras e boas” - como substitutos das coisas reais,
percebemos o quanto os sentidos se mesclavam na consciência dos antigos egípcios e a grande distância que nos separa deles na forma de ver
o mundo.
E assim voltamos à questão de se a ideia da morte, as práticas funerárias
e a cultura material �����������������������������������������������������
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elas relacionada representaria bem os antigos egípcios. Ainda que disponhamos de uma gama de fontes desproporcional
no que concerne às informações acerca da vida cotidiana no campo e
nas cidades em relação com aquela proveniente das necrópoles, talvez
493
possamos acenar positivamente à questão. Isto porque não é a morte
em si e como os egípcios se comportavam diante dessa circunstância
que serve como parâmetro para os compreendermos, mas sim como eles
projetaram seus valores e percepções do mundo real no luxuriante e mágico vale do Nilo na maneira como a concepção do além foi construída.
Quando visitamos as coleções em museus, as vemos de maneira descontestualizada, classificada segundo um parâmetro que faz sentido em
nossa cultura, mas que engessa todo um mundo mental e sensorial interligado que os egípcios viviam. De nossa inaptidão para compreender
aquilo que escapa à nossa lógica, acabamos por eleger o tema da morte
em si como um sinônimo para o Egito antigo, esquecendo das formas
como estes celebravam muito bem a vida por meio de suas diversas qualidades de cerveja e vinho, e ouvindo e cantando músicas enquanto se
deliciavam com os produtos da terra e das artes culinárias.
Em síntese, os egípcios antigos são associados à morte porque é isso
que nos condicionamos a enxergar neles, e mesmo ao interpretá-la nessa
sociedade o fazemos com um olhar alienado, misturando múmias caminhantes com conde Drácula e Frankenstein. Um bom aferidor desta impressão é a celebridade adquirida pelo “Livro dos mortos” e a força que
o título dessa obra exerce sobre o imaginário do mundo contemporâneo,
evocando sempre uma impressão de mistério e obscuridade. Nome conferido pela arqueologia do século XIX a um conjunto particular de textos
com vinhetas encontrados nas sepulturas, esta alcunha não faz justiça
nem ao conteúdo nem ao título original da obra, chamada de “fórmulas
para sair à luz do dia”
Conclusão
Para além de uma cultura que valorizava a morte mais do que a própria experiência da vida, encontramos nos testemunhos documentais
deixados pelos antigos egípcios uma paixão vibrante pelas delícias do
bem viver que eles esperavam que se estendessem para a eternidade.
494
Orquestras constituídas de instrumentistas diversos acompanhadas
de cantores embalavam jovens dançarinas desnudas a disseminar com
seus movimentos acrobáticos rápidos o odor dos incensos e dos perfumes que tomavam o ambiente dos suntuosos banquetes, onde os anfitriãos degustavam juntamente com seus convidados os melhores produtos
da terra e das artes culinárias. Articuladores hábeis dos sentidos e da
imaginação mágico-simbólica, os egípcios continuam a não se adequar
aos conceitos esteriotipados e auto-referenciais que o Ocidente continua
a projetar sobre eles na contemporaneidade.
Bibliografia
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495
Retrato de Cora: do
natural ao artístico
Silvia Maria Pires Cabrera Berg
Departamento de Música da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão
Preto — Universidade de São Paulo
[email protected]
Resumo
Retrato de Cora para piano solo é a II obra da Série Memórias de um Mundo Antigo (Silvia
Berg 2004), encomendada pela pianista Valéria Zanini em 2004, e que teve sua primeira
audição em Copenhagen no mesmo ano. A obra, composta a partir de um retrato de Cora
Coralina (que se definia primeiramente quituteira e cozinheira e depois poetiza), remete
a uma correlação estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano na medida em que são
analisados os processos composicionais do natural (material composicional) ao artístico (a
superação do material e suas sistematizações). Na análise dos processos composicionais
de Retrato de Cora são tomados como referência “O Princípio Cinematográfico”, de 1929, do
diretor russo Serguei Eisenstein, que evidencia a correlação entre o principio de montagem
ideográfica e o principio de montagem cinematográfica principalmente no tocante à
decomposição “natural” em desproporcionalidades para efeitos de expressividade, tal como
a fragmentação cronológica dos acontecimentos no eixo do tempo ou do espaço em planos
ou retardamento de ações e movimentos, resultante da oposição de dois elementos.
Palavras-chave
Retrato de Cora, piano solo, Claude Lévi-Strauss, Serguei Eisenstein, montagem ideográfica.
496
Introdução
A série para piano solo Lembranças de um mundo antigo foi composta em 2004 em Copenhagen, por encomenda de, e dedicada à pianista
brasileira Valéria Zanini, radicada na Dinamarca. Retrato de Cora é a
segunda obra da série que teve sua primeira audição em Copenhagen
no mesmo ano. Sobre a série Lembranças de um mundo antigo:
I. Agreste (o lugar) refere-se às lembranças do Planalto Central, berço da
pianista Valéria Zanini, com suas imensidões agrestes e silêncios.
II. Retrato de Cora (a pessoa) composta sobre uma das últimas fotografias de Cora Coralina, onde palavras e poemas misturam-se com as reminiscências da minha infância especialmente minha avó e das pessoas
marcantes que moldaram essa fase da minha vida.
III. Jogo (o espaço) em homenagem à Villa-Lobos, é um jogo harmônico
e tímbrico utilizando as regiões agudas e graves do piano onde as teclas
do instrumento são pensadas como “superfícies geográficas” gerando
combinações harmônicas, rítmicas e citações.
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O processo de composição de II. Retrato de Cora analisado neste artigo inicia-se com a composição a partir de um retrato de Cora Coralina (que se definia primeiramente quituteira e cozinheira e depois poetiza), e remete a uma correlação
estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano na medida em que são analisados os processos composicionais do natural (material composicional)
ao artístico (a superação do material e suas sistematizações).
Sob a influência da cozinha portuguesa, que tem como princípio que “o
que é doce não amarga” os doces de duas ou mais espécies nunca faltaram na cozinha vilaboense. O escritor Bariani Ortencio, autor do clássico
“Cozinha Goiana” afirma que Cora Coralina era a maior doceira de Goiás, especialista em doces de figo, laranja, banana, cidra e passas de caju.
Dois doces se impõem pela excelência: o doce de buriti e o “pastelinho”
(doce) versão dos famosos pastéis de Belém portugueses. (Lima 2008,
p.115).
497
Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata
a que está ligada a vida e
à saúde humana
(Cora Coralina, apud Lima, idem, p. 114)
Cora planejava produzir um livro de receitas: embora não o tivesse feito
em vida, várias de suas receitas foram copiadas e reproduzidas; os livros
de receitas familiares sempre foram uma constante na Cidade de Goiás,
passando de uma geração para outra.
O que antecede nas refeições aos doces segundo esse princípio; o milho
poetizado por Cora Coralina sob várias formas, congrega um cerimonial
para prepara-lo, como por exemplo, na preparação da pamonha, um fato
social que congrega várias pessoas em sua preparação e degustação:
Convidar alguém para uma pamonhada é uma cortesia que
introduz o convidado na intimidade da família. Inicia-se com a
pamonha frita, depois, com a cozida seguida da pamonha assada
e finaliza-se com o curau como sobremesa. (Lima, 2008, p.114)
A estreita relação entre Cozinha e Arte em Cora Coralina, transforma-se
em um elemento estrutural nos processos composicionais do Retrato de
Cora. A preponderância da relação entre os objetos em suas diversas camadas de significação e a sucessiva relação de transformações do material composicional em o Retrato de Cora geram um leque de imagens via
a metáfora da função poética: sob esse viés analisaremos os processos
composicionais da obra.
1. A correlação estendida do cru e o cozido Lévi-straussiano
Em O cru e o cozido, que, segundo Claude Lévi-Strauss, poderia também
ser chamado de “representações míticas da passagem da natureza à cul-
498
tura”, foram analisados 187 mitos coletados por diversos pesquisadores
entre povos indígenas do Brasil. Todos os 187 mitos utilizados referem-se “direta ou indiretamente à invenção do fogo e, portanto, da cozinha,
enquanto símbolo no pensamento indígena. Se da passagem da natureza à cultura” (Lévi-Strauss, 1986, p. 51) a dicotomia básica é o cru e o
cozido, nos processos de composição esta dicotomia básica poderia ser
representada pela natureza do material composicional a superação deste
através de suas sistematizações, sendo que o resultante, a obra artística,
estaria em outro patamar, aquem da cultura.
Na Introdução de O cru e o cozido, Lévi-Strauss utiliza-se da metáfora
cósmica para se referir às transformações dos sistemas mitológicos:
À medida que a nebulosa se expande, portanto, o seu núcleo se
condensa e se organiza. Filamentos esparsos se soldam, lacunas
se preenchem, conexões se estabelecem, algo que se assemelha
a uma ordem transparece sobre o caos. Como numa molécula
germinal, seqüências onde ondas em grupos de transformações
vêm agregar-se ao grupo inicial, reproduzindo-lhe a estrutura e as
determinações. Nasce um corpo multidimensional, cuja organização
é revelada nas partes centrais, enquanto em sua periferia reinam
ainda a incerteza e a confusão. (Lévi-Strauss, 1986, p. 21).
Ao considerar os sistemas mitológicos como sistemas em transformações, entende-se que a análise dos mitos somente é possível de ser feita
por seus fragmentos, pois «trata-se de uma realidade instável permanentemente à mercê dos golpes de um passado que a arruina e de um futuro que a modifica” (Lévi-Strauss, 2006, p. 21). A teoria transformacional
de Chomsky influenciou Lévi-Strauss que por analogia buscou o termo
mitema para designar uma unidade constitutiva do mito.1 A partir da
1
Noam Chomsky – professor do Massachussets Institute of Technology, em Boston – publicava o livro Syntatic structures (Haia, Mouton & Co., 1957), responsável “pela ampliação dos modelos já existentes ao se estipularem [...] as regras de transformação – pedra angular da teoria
chomskyana – e ao postularem dois tipos de estruturas ligadas pelas regras de transformação:
a estrutura subjacente e a estrutura de superfície” (Lemle e Leite [orgs.], Novas perspectivas
lingüísticas, Petrópolis, Vozes, 1970, p. 6) apud Roque de Barros Laraia: Claude Lévi-Strauss,
499
formulação transformacionista, entende-se que a análise dos mitos somente é possível de ser feita por seus fragmentos, pois “trata-se de uma
realidade instável permanentemente à mercê dos golpes de um passado
que a arruina e de um futuro que a modifica (idem, 2006, p. 21)
Em 1988, em entrevista a Didier Eribon, Lévi-Strauss explicou por que
em sua Abertura faz referência a Wagner, a quem reconhece como uma
grande influência em sua formação. Afirmou que “Wagner não só construiu suas óperas sobre mitos, mas deles propõem um recorte que o emprego dos leitmotive torna explícito: o leitmotiv prefigura o mitema (da
mesma natureza do fonema)”. (Laraia, 2006)
2. Retrato de Cora e a Lógica da Montagem por Analogia
Aos 25 anos, Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908) chega ao Japão para
assumir a cadeira de Filosofia na Universidade de Tóquio (posteriormente chamada de Universidade Imperial de Tóquio). Orientalista, filósofo
de formação atravessa o oceano em 1878 para ministrar aulas de filosofia
e economia política, no Japão recém-descoberto ao mundo após dois séculos e meio de reclusão peninsular decretado pelo xogunato Tokugawa.
O estudo que Fenollosa realiza sobre a vida cultura e artes japonesas e
da poesia chinesa através dos mestres japoneses representa um encontro de saberes e valores; de um lado a lógica aristotélica, em latu sensu,
formadora da base do pensamento ocidental e do outro a lógica analógica chinesa, que se articula em uma linguagem baseada em relações.
Escrito pouco antes de sua morte em 1908 em Londres e editado postumamente em 1919 por intermédio de Esra Pound, o ensaio “Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia” servem de base
para a Antologia de cinco ensaios introduzida por Haroldo de Campos,
utilizados no corpo teórico das análises aqui apresentadas. O fundamento da escrita ideográfica tem no pensamento de “síntese” e “fusão” a mais
quatro décadas depois: as mitológicas. http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0102-69092006000100010 consulta 22.8.2013
500
ampla vocação transcultural fenollosiana no sentido de intercâmbio
Oriente/Ocidente (Campos, 2004, p. 18). A preponderância da relação
entre os objetos gera um leque de imagens via a metáfora da função poética, o que implica em uma ação ou um processo de elaboração grafo-semântica das palavras. O significado do ideograma, expressa assim
um conceito ou um contexto intelectual, e não a somente a somatória dos
seus componentes semânticos. A lógica da correlação, que privilegia a
interrelação entre os objetos, a complementaridade de contrários dada
a relação entre os semas que compõe o ideograma e das relações entre
signos na concatenação não linear de ideias. O conceito é uma fórmula
pura e simples; sua ornamentação (uma expansão devida aos materiais
adicionais) transforma a fórmula em imagem - uma forma acabada (Eisenstein, 1929, apud Campos, 1994).
A metáfora, o jogo de imagens é a essência da escrita ideográfica, que se
articula em uma linguagem de relações baseada na analogia da correlação ou da dualidade correlativa, que privilegia a interrelação entre os objetos em nexo de complementaridade entre contrários interdependentes,
em contraponto à lógica aristotélica, base do pensamento ocidental latu
sensu, que se articula em proposições concatenadas em termos de sujeito e predicado, em que a noção de substância, da qual deriva a causalidade, gera o átomo, princípio do Materialismo. Em “O Princípio Cinematográfico”, de 1929, o diretor russo Serguei Eisenstein, evidencia, assim
como Fenollosa, a correlação entre o principio de montagem ideográfica
e o principio de montagem cinematográfica, quando dois objetos (ou tomadas) se combinam para gerar um conceito ou um contexto intelectual.
3. Pequena análise dos processos
composicionais do Retrato de Cora
O material desta peça compõe-se de dois pares de oitavas intermediados por um intervalo de quinta (e de quarta na inversão) que remetem
indubitavelmente à reminiscências tonais: La, mi, lá e dó, sol, dó. Embora
501
contenha reminiscências e referências tonais, esse material não é transformado segundo as regras do sistema tonal nem possui cadências que
o caracterizem como tal. A transformação ocorre em pequenos fragmentos:
Figura 1. Compassos de 1 a 4
Os quatro primeiros compassos são repetidos de 5 ao 8, e do compasso
9 ao 16 as transformações ocorrerão por camadas de “rimas” de dois em
dois compassos ou em proporção 3 compassos – 1 compasso.
Figura 2. Compassos de 9 a 16
As transformações geradas nos primeiros 24 compassos conterão o repertório de “rimas”
Figura 3. Expansão das transformações
502
que culminarão na criação do canto do pássaro nos compassos 38-39 e
42-43 que é uma citação imaginária de um pássaro imaginário cujo canto
foi completamente criado a partir dos materias da peça: a ornamentação
(uma expansão devida aos materiais adicionais) transforma a fórmula
em imagem, reiterando aqui Eisenstein. A combinatória de construção e
expansão dos fragmentos assume nos compassos de 37 a 53 uma nova
forma, onde os pedais são citados nos compassos 37 e 39 e 42 e 44, mas
suprmidos nos outros compassos, muito embora continuem como reminiscentes.
As transformações das oitavas iniciais conduzem a novas trasnformações como as citações das notas Mib, Solb e Sib (ascendentes) e Reb, Sib
e Solb (descendentes) que são sobrepostos em movimentos por espelhamento com transformações métricas e supressões
Figura 4. Ornamentação e canto do pássaro
que conduzirão à reexposição dos primeiros compassos e Coda,
Figura 5. Condução por espelhamento
503
que evidencia a correlação entre o principio de montagem ideográfica
e o principio de montagem cinematográfica principalmente no tocante
à decomposição “natural” em desproporcionalidades para efeitos de expressividade, tal como a fragmentação cronológica dos acontecimentos
no eixo do tempo ou do espaço em planos ou retardamento de ações e
movimentos, resultante da oposição de dois elementos.
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Mitológicas 1. São Paulo, CosacNaify.
Lima, Elder Rocha, 2008. Itinerário Cora
Coralina, Elder Rocha de Lima. Brasília
Suzuki 1995
504
Música – sabor na língua
e carícia na pele
Déa E. Berttran
Mestre em Psicologia Clínica – Instituto de Psicologia, IP-USP
505
Música e gosto, paladar e sabor – a brasileira, para mim, tanto em sua forma musical quanto culinária, desponta por sua variedade e capacidade
de despertar uniões insuperáveis...
Os maliciosos lundus e maxixes irrequietos casam perfeitamente com a
canjiquinha quente; o samba, em todas as suas vertentes, do terreiro, da
roda, da zona sul carioca, das comunidades alojadas nos morros, ai ai ai,
deliciosamente se harmoniza com todas as variações de bolinhos – bacalhau, camarão, carne seca... Óleo fervente que atiça as ancas e faz soltar
os pés!
Forró e macaxeira, xaxado e manteiga de garrafa, xote e milho assado a
estalar nos dentes! O baião correndo solto junto às tapiocas de coco ou
queijo coalho... E o choro e a feijoada, encantando ouvidos e gostos pelos sábados afora? ‘Travessia’, ‘Andança’, ‘Ronda’ nas vozes noturnas em
centenas de barzinhos com seus shows ao vivo, hoje já substituídas, por
vezes, pela façanha de ‘Ai se te pego’, acompanhadas de opções infindáveis de porções apetitosas. O rock tupiniquim em meio à cozinha internacional no centro de poder brasileiro, o pop que a todos convoca com
a marcação de seus sintetizadores e suas baquetes em meio aos burgers
e cheeses, e a vanguarda paulistana a expandir seus agudos em meio ao
consumo compulsivo de pipocas quentinhas, sob a garoa...
Música e gosto, o gosto da música e o gosto do que alimenta, sacia, nutre
e apazigua, música e alimento enquanto fontes de prazer e comunhão.
Em minha clínica psicológica, caminho para as partes sensíveis do ser,
intocadas pela racionalidade.
506
Festa do Divino em Mogi
das Cruzes: o percurso
da Fé e a conquista do
alimento santificado
Luci Bonini
UMC - GRUPPU
Eliana Meneses de Melo
UMC- GRUPPU
Resumo
Com olhar voltado às manifestações culturais populares, o estudo avalia o percurso do
sagrado em território urbano onde a tradição recorta caminhos possíveis entre as novas
edificações, alterando o cotidiano da cidade, as antigas canções constroem diálogos com o
presente em cerimoniais de Fé no Divino Espírito Santo. Contemplando as representações
simbólicas, analisam-se as etapas que formam o percurso semiótico que tem início com a
evocação da Santidade, a personificação da Fé no sujeito participante e a trajetória ritualística,
que comina na saciedade do corpo pelo alimento. A novena ao Divino Espírito Santo caminha
pelas ruas desde as cinco da manhã até às seis, quando então, os devotos se alinham em
fila diante do salão paroquial para o café, alimentando o corpo depois de ter alimentado a
alma rezando e cantando a Coroa do Divino. Revestido pelo sagrado, o sentido do gosto
expressa a fechamento da manifestação e situa o sujeito participando no nível de servidor
da fé, que, após o justo trabalho, é merecedor do sagrado alimento. O que se observou foi
que embora os componentes da festividade façam parte da tradição do evento, o alimento
servido dialoga diretamente com o contemporâneo. Neste sentido o gosto adicional está
contido na crença no sagrado e nos ritos. Por fim, o estudo de natureza interdisciplinar foi
realizado privilegiando a Semiótica. É o resultado desta leitura que se pretende apresentar.
Palavras-chave
semiótica, cultura popular, territorialidade, Festa do Divino
507
Apresentação
Pesquisas em semiótica se destacam entre as que buscam elementos reflexivos nas fronteiras entre as disciplinas. Diversos olharem realizam
percursos que vão da estética e das pesquisas nas ciências sociais e políticas, de forma que se possa descobrir como diferentes áreas iluminam
pontos sobre a vida em sociedade. Quando se tem o interesse investigativo votado para as manifestações culturais populares, a multiplicidade
das produções populares são reveladores das dimensões subjetivas nas
quais encontramos o humano traduzido em seus valores em um diálogo
constante com a natureza,com profano, com o sagrado.
Este estudo abarca as manifestações populares no universo das Políticas Públicas, ao ter como corpus a Festa do Divino em Mogi das Cruzes,
visa essencialmente o patrimônio cultural que ao mesmo tempo em que
preserva tradições, alia-se ao urbano em desenvolvimento. Em essência,
é o humano nas delimitações do território cultural aliado ao universo
religioso que demarca os caminhos trilhados nesta pesquisa.
Qual o gosto no universo do sagrado? Por quais caminhos o gosto se
sacraliza? O permitido e proibido manifestam-se nos rituais da Festa do
Divino? Em busca das emanações de sentido voltadas ao gosto, o recorte escolhido foram os cantos das rezadeiras realizados no período o antecede o principal dia da festividade. As marcas temporais recaem sobre a
alvorada, antecedendo o espaço destinado ao café da manhã santificado
pelo evento em sua complexidade.
O discurso da festa e a festa enquanto discurso conduziram as leituras a
serem expressas neste artigo. Entre as características das linguagens humanas está a intercomunicação entre os diferentes universos de discursos que se configuram como uma rede sistêmica de sentidos produzidos
nas convergências e conexões das diversidades culturais, sociais. Acultura, assim como a linguagem, se entretece de signos que se alimentam,
ao longo de eras, de inúmeros significados. Para além dos interdiscursos
508
intensificados pelos aparelhos tecnológicos contemporâneos, faz parte
da cultura e da evolução humana a criação e a recriação. Discursos se sobrepõem, negam-se, afirmam-se, transformam-se nas dinâmicas sociais.
1. Cenário ambulante e o patrimônio imaterial
As heranças imateriais são dignas de preservação porque estão ligadas
à identidade de uma nação, de uma região ou de uma comunidade. No
caso da Festa do Divino Espírito Santo no Brasil, muitos são os fazeres
nas diversas celebrações ao longo de todo território nacional que merecem ser tombados como patrimônios, antes que a cultura de massa anule
completamente as diferenças.
Esta festa originária de Portugal se espalhou pelo Brasil e, em cada região, foi adquirindo singularidades que fazem de cada uma delas uma
celebração que conserva as mesmas vibrações religiosas da fé, por um
lado, e por outro, tão diferentes em seus fazeres e saberes.
Em Mogi das Cruzes, cidade localizada na região do Alto Tietê do estado de São Paulo, a devoção ao Divino Espírito Santo é a mais antiga do
Brasil, documentos encontrados nos arquivos da Câmara Municipal demonstram que em 1613 a população da Vila da Senhora de Santa Ana, já
mantinha a devoção por ocasião da celebração de Pentecostes (CAMPOS,
2013).
Entre os vários eventos desta festa, alguns já foram objetos de pesquisas
mais profundas como é o caso da Entrada dos Palmitos, uma procissão
que serpenteia pelo centro da cidade na véspera do dia de Pentecostes,
com milhares de devotos segurando suas bandeiras, carros de boi enfeitados e inúmeros grupos folclóricos que agradecem as graças recebidas.
Esta procissão foi alvo de visita do escritor e defensor da cultura brasileira Mario de Andrade no ano de 1936. (RODRIGUES F° & DE CARLO F°; s/d).
Este estudo preliminar faz parte de um projeto de pesquisa que busca
inventariar as referências culturais da região do Alto Tietê, suas festas
509
folclórico-religiosas, entre as quais se destaca a Festa do Divino Espírito
Santo de Mogi das Cruzes, de modo que este registro seja uma forma de
convidar a uma reflexão mais profunda sobre a importância dos registros do patrimônio imaterial das expressões folclórico-religiosas da região em questão para o fortalecimento de políticas culturais adequadas
de preservação da memória coletiva.
As discussões sobre patrimônio imaterial no Brasil ainda são recentes.
As preocupações mais antigas com a herança cultural são aquelas ligadas aos bens materiais, já que seus valores podem ser mais facilmente
percebidos.
Para KUUTMA (2009) o debate sobre a preservação de bens imateriais é
recente e vem crescendo de forma global, porém, faz emergir uma contradição, pois a herança cultural imaterial é uma abstração e por isso
mesmo está sujeita ao caráter subjetivo que cada legado tem para os sujeitos. São diversas interpretações possíveis diante de fazeres e saberes,
e, cabe aos pesquisadores decidirem quais devem ser preservadas, o que
não é tarefa fácil. O autor ainda afirma que a expansão da preocupação
com a preservação do passado e com o legado patrimonial popular vem
num movimento crescente desde que veio a lume A Convenção para
proteção do patrimônio mundial cultural e natural na Conferência Geral
da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura,
(UNESCO), de 1972, e depois de três décadas, em 2013, com A Convenção
para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial.
Segundo o Instituto Nacional de Patrimônio Histórico e Artístico, IPHAN:
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco) define como Patrimônio Cultural Imaterial “as
práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas
– com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais
que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em
alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante
de seu patrimônio cultural.” Esta definição está de acordo com
510
a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio
Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em março de 2006. A herança é o produto de um emaranhamento temporal: embora haja
um apelo ao ‘enraizamento diacrônico’, a concepção de sua salvaguarda
é um produto novo: é o presente pensando de que forma o futuro vai ver
o passado preservado (KUUTMA, 2009).
Por ser novo é carregado de significados contemporâneos e ideologias
que despejam novos olhares recheados de novos valores e reificados
com a intenção de manifestar a etnicidade, a localidade, a história e as
políticas culturais envolvidas no processo de catalogação, de armazenamento, descrição etc., de algo que já surgiu num tempo remoto, que pode
estar em extinção ou não, que vem sendo valorado com o olhar de agora.
Recentemente a defesa de valores como qualidade de vida, proteção do
meio ambiente e a preservação de referências culturais passou a ser entendida como direito do cidadão, pois por meio das garantias de preservação dos bens culturais é que grupos, antes sem voz própria, começam
a ter reconhecidos seus direitos de preservar seu sentimento de pertencimento. (FONSECA, 2000)
Por isso, a herança cultural, para KUUTMA (2009), só se torna real quando alguém a identifica como tal. Assim, o que é intangível passa a ter
importância para alguém que mantenha um olhar mais atento e mais
especulativo aos fenômenos culturais. As questões culturais têm sido objeto de pesquisa sob vários aspectos: antropológicos, sociológicos, psicológicos, semióticos, museológicos, folclóricos e por causa disto mesmo,
é que entendemos que este recente despertar para os estudos ligados à
questão da herança cultural é um desafio multi e interdisciplinar. Várias
áreas do conhecimento têm concorrido para o debate acerca das políticas de cultura no mundo, uma vez que já se sabe que a evolução das sociedades, altamente influenciadas pela cultura de massa, vem sufocando
certas práticas rituais e muitos fazeres: alguns beiram à extinção, outros
511
já desapareceram e nem mesmo uma memória dos mais velhos pode,
sequer, recuperar.
A massificação desenfreada que ocorre no ocidente vem contaminando
lentamente outras culturas e práticas de consumo oferecidas pela industrialização, mais ‘higiênicas’, menos duradouras e mais ‘espetacularizadas’ e que chamam mais atenção do que certas práticas consideradas antiquadas pelos mais jovens, adeptos das tecnologias que oferecem uma
gama de produtos culturais efêmeros e plenos de significados das culturas desenvolvedoras destes produtos. Há um medo crescente de que
as culturas ao redor do mundo venham a se tornar mais uniformes, justamente por causa da globalização, que por seu turno vem conduzindo,
lentamente a uma diminuição da diversidade cultural e da riqueza que
advém dela. (PIETROBRUNO, 2009)
Diferentemente destes bens culturais passageiros, as heranças culturais,
sejam materiais ou imateriais, falam de um lugar, trazem um sentimento
de pertencimento, por isso, o primeiro passo para preservá-las é ativar
nos representantes das comunidades a sua importância, pois só assim,
cria-se uma responsividade pública que alerte as autoridades para sua
preservação.
FONSECA (2000) afirma que para que se protejam as referências é necessário conhecer, identificar suas características mais evidentes, adentrar
seus detalhes e suas características intrínsecas. Enunciando-se, assim os
detalhes, as minúcias, a fim de preservar traços culturais.Quando se trata de preservar traços de cultura, também, se trata de demonstrar poder,
da mesma forma que na medida em que uma comunidade demonstra
sua vontade de perpetuar seus saberes, ela está sob uma ótica política de
poder, é uma resposta responsável às autoridades políticas para a reafirmação do seu sentimento de pertencimento.
Os desejos da comunidade vêm referendando a proteção dos bens culturais por duas vertentes: a primeira delas é a vontade de pesquisadores
512
de preservar certos fazeres e saberes e daí estimulam as comunidades
a participar de pesquisas onde há relatos de vida, da mesma forma que
esses intelectuais e pesquisadores ficam encarregados de construir e gerenciar museus, e, uma segunda vertente que é aquela em que líderes
dessas comunidades percebem que a cada dia que passa, certos saberes
despontam interesses econômicos ao redor do turismo, e que isso produz uma economia local que pode salvaguardar não só os bens culturais
como prover recursos, mudar a economia de uma determinada localidade, como vem acontecendo no país.
FERRETTI (2005) afirma que identificar um repertório de manifestações
culturais que merece ser alcançado pelas políticas de salvaguarda, por
ratificarem o amplo sentido da diversidade cultural do país e a identidade étnica desses grupos é de extrema importância e o Brasil, embora
venha se preocupando de modo geral, tem ainda um grande caminho
a percorrer, dada a diversidade fazeres espalhada por todo o território
nacional. O que se percebe num olhar mais rápido sobre as pesquisas é
que, na maioria dos casos, há um jogo de interesses quando da escolha
do que é prioridade, ou melhor, é difícil escolher quais são os bens merecedores de salvaguarda.
2. O percurso do espetáculo e as rezadeiras: os
sujeitos na construção do sagrado
A devoção ao Espírito Santo tem suas origens em Portugal, com a Rainha
Isabel, esposa de D. Diniz (1261-1325), com o viés da caridade e do agradecimento pelas graças recebidas, à fartura. Para Mariano (2005; 99):
“Mesmo subordinada à religião católica, a festividade mantinha o caráter
de culto dos vegetais e à natureza, incorporada, entre outros momentos,
nas homenagens ao Divino Espírito Santo.” Este é apenas um exemplo
de outras celebrações católicas que sufocaram festas e comemorações
pagãs na Europa.
513
A Festa do Divino de Mogi das Cruzes tem características próprias
(ARAUJO, 2004), pois vem se mantendo há mais de um século com características bem demarcadas, ainda que dentro de uma cidade que esta
bem demarcada pela verticalização e com forte influência da mídia, que,
no contexto atual, transformou a festa num espetáculo midiático bem
conhecido na região do Alto Tietê.
Campos (2013) aponta que em 1613, a cidade de Mogi das Cruzes já cultivava a devoção ainda na categoria de Vila de Santa Ana de Mogi Mirim,
pois um documento oficial da câmara revela que os moradores deveriam
se dispor a arrumar o caminho de entrada da vila, depois do Espírito
Santo.
Esta festa é um evento que dura dez dias e termina no domingo de Pentecostes, mas não é só isso. Há uma série de eventos que precedem estes
dez dias, entre eles as coroas do divino, uma reza que visita a casa dos
devotos e se estende do mês de janeiro até a semana que precede a festa. As rezas têm dois objetivos: i) preparar os devotos para a celebração
maior e ii) buscar fundos para auxiliar as despesas da festa.
Como as muitas festas populares, esta não é diferente, pois apresenta
uma divisão de atividades, que podem ou não trazer provisionamento
de fundos, que podem ser folclóricas ou religiosas, nosso foco está nesta
última.
A festa de Mogi das Cruzes é uma das maiores e mais antigas do Brasil, e
como todos os grandes eventos que atualmente interferem na estrutura
econômica e turística de uma localidade, fez emergir a Associação Pro
Festa do Divino, formada por ex-festeiros com o objetivo de auxiliar os
mais jovens. Acompanhando a modernidade, a organização criou um
site na internet onde divulga algumas ações e notícias veiculadas pela
mídia. Embora esta fonte de informação não venha sendo atualizada
constantemente, é possível encontrar dados históricos, notícias e endere-
514
ços úteis que fundamentam os eventos folclóricos e religiosos que juntos
fazem a festa.
Segundo o site da associação, a festa se compõe dos seguintes eventos: preparativos e abertura da festa, alvoradas e passeatas, quermesse,
entrada dos palmitos e procissão. Os preparativos vão desde a escolha
dos festeiros para o ano seguinte, tão logo se encerre a festa, promovem-se eventos mensais para angariar fundos um deles é a pré-novena que
acontece no segundo domingo de cada mês, com a Coroa do Divino com
as rezadeiras, na casa da festa, como é conhecida a sede da Associação.
Neste evento mensal, que tem início em Agosto, logo após a reza, é servido um café e realiza-se um bingo. Há também pré-novenas nas casas
dos devotos. As rezadeiras vão Há também pré-novede casa em casa,
orando e recolhendo os pedidos dos devotos e captando doações.
A abertura da festa se dá 10 dias antes do domingo de Pentecostes, numa
quinta feira com a passeata das bandeiras que inaugura o Império, altar
construído na praça principal da cidade em frente à catedral, para onde
todos os devotos se dirigem a fim de receberem as bênçãos em suas bandeiras, durante os dez dias que seguirão o Divino Espírito Santo reinará
na cidade.
Nas madrugadas que seguem acontecerão as Alvoradas, uma procissão
que começa às cinco horas da manha partindo do Império e caminhando pelas ruas da cidade, durante a semana, este evento atrai em torno de
500 a 800 pessoas, já nos finais de semana e no Domingo de Pentecostes,
há em média 1200 pessoas, calculados pelos organizadores do café, que
é distribuído no salão paroquial, tão logo termine a procissão. Durante
as Alvoradas reza-se a Coroa do Divino, mesma oração entoada pelas
rezadeiras. Para cada dia são convidados os puxadores da reza, que são
pessoas e organizações ligadas à festa. Como o número de pessoas vem
aumentando ao longo dos anos providenciou-se um carro de som para
que todos ouçam e respondam a oração.
515
2.1. Rezadeiras: emanações femininas na Festa do Divino
A presença e valorização do universo feminino nas manifestações populares são recobertas pelo lugar permitido e pela conquista construída a
partir da respeitabilidade conquistada na comunidade. O saber/poder
dialogar com a universo mágico de forma mais intensa que os demais
legitima o feminino no sagrado popular . Assim são as rezadeiras e a
forma como elas empreendem o fortalecimento da fé dos devotos, captam recursos para auxiliar nas despesas da festa e como se desdobram
nas suas atividades nos quase cinco meses que antecedem a festa que
movimenta, mais de duzentas mil pessoas, entre turistas, devotos e voluntários.
A história das rezadeiras é recente em relação às outras atividades que
se desenrolam na festa do Divino de Mogi das Cruzes. Suas atividades
surgiram no ano de 1974 a pedido de uma das voluntárias da equipe que
servia o café na casa paroquial, depois das alvoradas. (CAMPOS, 2013)
No dizer de COSTA & CASTRO (2008:128):
Patrimonializar uma tradição local atribuindo a ela importância de
relevância nacional para a construção da memória, da identidade
e da formação da sociedade brasileira por mais venerável que
seja é, de certa forma, expropriar as experiências vivenciadas
possibilitando que esses saberes não mais se vinculem às paixões
individuais que os mantêm vivos no interior do seu grupo portador.
Por esta razão, este trabalho procura descrever e avaliar o saber-fazer
das rezadeiras gerando conhecimento a respeito de sua existência a importância no contexto da festa, porque, embora recente, este patrimônio
imaterial é uma referência cultural que partiu de um representante do
povo, uma devota que obteve autorização do Bispo, em 1974, para levar a
imagem do Divino às casas de outros devotos.
516
A atitude de D. Rita se espalhou, e, alguns anos depois, em 1989, às pessoas que já rezavam o terço, passaram a fazê-lo com apenas sete ave-marias, uma para cada dom atribuído ao Espírito Santo (CAMPOS, 2013).
SANTOS & REGATO (2010:25) assim descrevem a precursora das rezas:
Dona Rita, que faleceu em outubro de 2008, foi uma das precursoras
dos grupos de rezadeiras – antigamente formado só por mulheres,
mas, que hoje também admitem homens. Orgulhava-se de nunca ter
deixado de participar da festa durante toda sua vida. Segundo ela, que
nunca revelou a idade, eram as andanças, orando de casa em casa,
que renovavam sua fé no Divino e, principalmente no ser humano.
Dois anos depois se criou a Reza comunitária do Terço do Divino Espírito Santo, com um texto que enfatizava os sete dons e na conta maior
rezava-se: “Oh Maria, que por obra do Divino Espírito Santo, concebestes
o Salvador, rogai por nos!”. A prática estendeu-se pelos bairros da cidade,
havia os pedidos dos devotos para a realização das rezas ou em função
da festa que estava por vir ou para agradecer as graças recebidas.
A relação que se estabelece entre Deus e os homens sempre vem intermediada pelas orações ou pelas rezas. O verbo rezar, etimologicamente
vem do latim – recitare, que por sua vez denota falar em voz alta, de modo
claro e cadenciado. Justamente a tarefa das rezadeiras: puxar a reza de
todos que querem em uníssono pedir ou dar graças ao Espírito Santo.
Em 1993, uma das rezadeiras e voluntarias da festa, Amália Manna de
Deus, cujo nome batizou um dos museus da cidade, numa viagem para
Minas Gerais, aprendeu a Coroa do Divino, trouxe para Mogi das Cruzes
e apresentou ao bispo. A reza foi autorizada oficialmente, a partir de então todos os anos, os folhetos são impressos em papel couche vermelho,
que traz na capa que o logo da festa, os nomes do casal de festeiros e do
casal de capitães do mastro, na contra capa vem uma palavra do bispo,
na quarta capa, vêm o endereço da página na web da Associação Pro
Festa do Divino.
517
As primeiras páginas trazem as sete divisões da coroa, uma para cada
dom do Espírito Santo, e em seguida aparecem outras orações que podem ser feitas escolhidas pelas rezadeiras ou pelos donos da casa que as
recebe. Algumas letras de música também acompanham as orações, são
músicas conhecidas entre os devotos que entoam as canções ao final da
coroa.
A coroa do Divino leva este nome em homenagem ao símbolo real, memória de sua origem portuguesa, e é uma oração, em parte cantada, em
parte recitada. Algumas partes apenas pelas rezadeiras, outras por todos
os presentes, neste percurso percebem-se as dimensões coletivas e individuais bem demarcadas pela hierarquia entre a rezadeira/rezador, pessoa escolhida pelas suas virtudes, pelas suas constantes presenças como
voluntários dedicados à festa, exatamente como manda a tradição. São
os voluntários mais devotados que recebem a missão de ser rezadeira ou
rezador.
Em 2013, quando se celebraram os 400 anos de devoção, a missa do envio das rezadeiras, que acontece sempre em janeiro, contava com quase
cem membros. Do mês de janeiro até uma semana antes da festa elas
agendam suas visitas nas casas dos devotos, que o fazem com antecedência com a rezadeira.
3. Linguagem, alimento: a configuração do gosto
O universo da religiosidade contempla em si o sagrado e um alto nível de
simbolizações. O sagrado, o mítico elo entre o divino e o humano composto por signos intermiados nas práticas do cotidiano e os espaços de
rupturas. O alimento no espaço do sagrado conduz o pedido, o sentido
materializado da fé no não visível. Neles há um diálogo com o cotidiano
na medida em que conduzem substâncias das celebrações.
No contexto do gosto no universo do sagrado observa-se a presença de
dois eixos o gosto afirmado na celebração diante do não visível e a au-
518
sência do gosto para ter proximidade com o divino No caso das festas
populares fundadas na religiosidade, o gosto é motivado na dimensão da
alegria ,da felicidade. O alimento é resultado de uma conquista, após o
trabalho: ganhar o pão.
Barthes (2003,p.208/9) analisa o alimento em três níveis: os ritmos, as
substancias, as práticas. Nestes termos destaca os horários das refeições nas comunidades, os alimentos proibidos ( o interdito no alimento).
A circularidade desses elementos atuam na formação do gosto, ou de
uma semiologia para este estudo, nos termos de Barthes:
O sujeito leitor ouvinte tem uma relação diferenciada com com
as palavras e função de seus referentes.Esta seria uma via de
pesquisa da filologia ativa,desejada por Nietzsche: filologia das
forças,das diferenças,das intencionalidades.( op,cit,p.208)
Assim, o alimento em termos simbólico tem um percurso que passa
por três universos de discursos: o discurso construído a partir do natural que se reveste em religioso e que se transfigura com novos traços
de sentido motivados a partir das aparências sociais, fator que carrega
o gosto em polissemias. Uma vez que o gosto carrega em si marcas do
discurso afetivo construído a partir do contexto de ocorrência gerador
de subjetividades .
Na Festa do Divino, o café teve seu cardápio formado a partir de doações
e acompanhou o próprio crescimento do café como parte integrante do
evento. Foi o gosto popular que trouxe o bolo de fubá, o pão, a mortadela, o bicoito cangalhinha. Subverte aspecto rítmico da alimentação na
medida em que se situa no pós trabalho: trabalho religioso, sagrado. Portanto a denotação da metáfora “ ganhar o pão de cada dia”. Em termos de
linguagem, uma desconstrução metafórica.
Um dos elementos aparente contraditórios nas manifestações culturais
reside no contraditório assinalado no par conservação/mudança. Parte
definidora do estatuto discursivo das festas populares, a presença do outro,
519
realimenta o processo discursivo de tal forma que gera modificações,seja
pela presença do turista, seja pelos elementos midiáticos em circulação.
No caso de Mogi, a alimentação /realimentação também é observada,
mas de uma tradição a outra.
Em 2013, quando se celebraram os 400 anos de devoção, a missa do envio das rezadeiras, que acontece sempre em janeiro, contava com quase
cem membros. Do mês de janeiro até uma semana antes da festa elas
agendam suas visitas nas casas dos devotos, que o fazem com antecedência com a rezadeira mais próxima da sua casa. As rezadeiras da festa
do Divino de Mogi das Cruzes fazem o trabalho preparatório para a realização das promessas.
A oração, objeto de análise, é dividida em três partes: o rito inicial, os
pedidos pelos dons do Divino Espírito Santo e o rito final.O rito inicial
contém as invocações ao Divino, em seguida faz-se a leitura do Evangelho do dia, não havendo necessidade de interpretações, todo este ritual
contém falas da rezadeira e dos devotos.
A segunda parte é composta de sete orações, cada uma se refere a um
dom, e ela está dividida numa invocação cantada por todos, numa fala
individual, por um leitor convidado pelo dono da casa ou pelo próprio
dono, e a fala conjunta, em que todos irmanados, se concentram e se
preparam para seus pedidos e agradecimentos. Para compor este ritual, normalmente a rezadeira pede ao dono da casa que escolha entre os
presentes os leitores para os dons e para as invocações à Maria. Normalmente quem recebe as tarefas de leitores, sentem-se honrados pelos
donos da casa.
Assim se divide esta parte:
1° Mistério: Dom da Sabedoria, onde todos entoam o cântico:
Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos sabedoria, que faz ver tudo como Deus
520
quis, e assim faremos da Eucaristia o grande meio de ser feliz. Dános Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus!’
Em seguida o primeiro leitor, lê a explicação sobre o dom da sabedoria,
explica que sua cor e o azul claro e pede:
Leitor no. 1: ‘Vinde Espírito da Sabedoria, desprendei-nos das
coisas da Terra e infundi-nos o amor pelas coisas do céu.’
Todos repetem por sete vezes:
Vinde Espírito Santo, enchei os corações de vossos fieis e acendei
neles o fogo do vosso amor, vinde e renovai a face da Terra.’
Ao final, todos dizem:
‘Oh Maria, que por obra do Espírito Santo,
concebestes o Salvador, Rogai por nos!’
Na sequência vêm os outros mistérios, cada um apresentando o pedido
de um dom e as jaculatórias que se repetem:
2º Mistério
Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, o entendimento, que tudo ajuda a
compreender para nós vermos como é alimento o pão e o vinho que
Deus quer ser. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o
pão é Jesus!
Leitor no. 2: Vinde Espírito de Entendimento, iluminai a nossa
mente com a luz da Eterna Verdade e enriquecei-a de puros e santos
pensamentos.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
521
3º Mistério
Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, o teu conselho, que nos faz sábios para guiar:
homem, mulher, jovem e velho, nós guiaremos ao santo altar. Dá-nos
Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus!
Leitor no. 3 Vinde Espírito de Bom Conselho, fazei-nos dóceis às
Vossas santas aspirações e guiai-nos no caminho da salvação.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
4º Mistério
Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos a fortaleza, a santa força do coração. Só
quem vencer vai sentar-se à mesa: para quem luta Deus quer ser pão.
Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus!
Leitor no.5: Vinde Espírito de Fortaleza, dai-nos força, constância e
vitória nas batalhas contra os nossos inimigos espirituais e corporais.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
5º Mistério
Cântico: ‘Senhor, vem dar-nos a divina ciência, que como o eterno, faz
ver sem véus: Tu vês por fora, Deus vê a essência, pensas que é pão,
mas é nosso Deus. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos
que o pão é Jesus!
Leitor no.5: Vinde Espírito de Ciência, sede o Mestre de nossas almas
e ajudai-nos a praticar os Vossos santos ensinamentos.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
522
6º Mistério
Cântico: ‘Dá-nos, Senhor, filial piedade, a doce forma de amar enfim:
para que amemos quem na verdade, aqui amou-nos até o fim. Dá-nos
Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é Jesus!
Leitor no.6: Vinde Espírito de Piedade, vinde morar em nossos
corações, tomai conta deles e santificai todos os seus afetos.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
7º Mistério
Cântico: ‘Dá-nos, enfim, temor sublime, de nãO AMÁLOS COMO
CONVÉM: O Cristo-Hóstia, que nos redime, o pai celeste, que nos quer
bem. Dá-nos Senhor, este dom esta luz, e nos veremos que o pão é
Jesus!
Leitor no.7: Vinde Espírito do Santo Temor de Deus, reinai em nossa
vontade e fazei que estejamos sempre dispostos a antes sofrer e morrer
que Vos ofender.
Vinde Espírito Santo, … (sete vezes)
Ó Maria, …
Encerrada esta segunda parte, vem o rito final, onde há as três invocações a Maria, Oração ao Divino Espírito Santo, a oração do Pai Nosso e
a oração final.
3.1 Do rito ao café:o gosto nas dimensões do pão
O cântico em análise se apresenta como discurso vocativo.É um chamamento à Jesus, configurado em relação metonímica na qual o pão é
Jesus, posto ser ele o alimento. O pão é o alimento básico, se é Jesus, o
523
alimento é desprovido do gosto terreno da saciedade dos sentidos gustativos. Remete ao gosto por estar vivo através e em Jesus. Neste caso, há
uma outra estância de sentido para onde se desloca o prazer.
O café da manhã, após a caminhada e cânticos da alvorada, atua como a
materialidade do simbólico. Celebração e Festa, não nos termos dionisíacos, mas sim no sentido cristão da comunhão.Compartilha-se o alimento
por todos consagrado e que traz para o tempo do café a presença de
Jesus.
Ao gosto terreno é somado o sagrado. O cheiro do café domina o lugar
,o pão quente atua como um sujeito personificado que chama todos para
a comunhão. O prazer se manifesta na satisfação do dever cumprido que
envolve de legitimidade o alimento.
Considerações finais
Revisitar o território do sagrado a partir das festas populares, faz com
que o pesquisador esteja presente a muitas possibilidades de leituras. A
Festa do Divino em Mogi das Cruzes se situa no amplo cenário da diversidade cultural brasileira. O recorte aqui apresentado é apenas um
demonstrativo desta riqueza. Canções religiosas são formadas por elementos simbólicos que se repetem, posto serem representativos de uma
visão de mundo que se reafirma a partir dos símbolos ritualísticos. Em
outros termos: o discurso religioso é um discurso conservador.
Por outro lado, apesar de conservador, é um discurso dinâmico. Reside,
portanto, nas mudanças sociais a inovação na materialidade dos signos na elaboração da significação.As referências culturais aqui descritas,
levam a outras reflexões sobre a herança imaterial que cada uma leva
junto de si: os cânticos, as entonações de vozes, a escolha de vozes para
complementar ou modular os tons, a escolha das músicas, cantadas ou
tocadas eletronicamente, as diferentes concepções na criação dos alta-
524
res, dos terços de sete mistérios e das bandeiras que complementam os
rituais.
As referências culturais imateriais ou intangíveis não são peças acabadas de museu, são, sim, organismos vivos, em constante processo de mutação, dada a singularidade de cada um, de seus aprendizes e sucessores
que se renovam e se recriam nos rituais, nos objetos e nas orações, mesmo, pois na história das rezadeiras vê-se que elas chegaram a um modelo anos depois de a ideia ter sido colocada em prática, foi um constante
movimento para se chagar a um padrão de texto, vozes e papéis que
cada um dos presentes desempenha no ritual e isto não cabe como peça
de museu.
O registro destes bens deve ser constante, ser realizado diferentemente
do que vem sendo feito com o patrimônio material, não se pode quantificar celebrações, ofícios, formas de expressão e modos de fazer porque
se corre o risco de separá-los do fenômeno complexo de que fazem parte.
Há que se considerar que novas formas de registro e armazenamento
destas informações, assim como profissionais preparados para lidar com
novos métodos de catalogação, descrição e armazenamento, para que
se dê o devido trato na divulgação destas referências. Tradições orais,
práticas sociais, saberes e fazeres que representam a identidade de uma
comunidade, que mantêm um sentimento de pertencimento precisam
ser preservados.
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. De todas as cruzes de Mogi – O
Divino Espírito Santo também faz
festa em Biritiba Ussu. XIX Encontro
526
O exótico no Banquete de Mário
de Andrade – discussão sobre a
negritude e o projeto de recepção
da música erudita nacional
Theophilo Augusto Pinto
FFLCH-USP
[email protected]
Resumo
Mário de Andrade, em 1943, imaginou um banquete onde um grupo de comensais
discute questões ligadas à música de sua época. Um compositor erudito, uma cantora
lírica, um estudante de direito, um político e a rica anfitriã são usados pelo autor
para tipificar a recepção da música nacional pelo público estrangeiro que, segundo
o autor, está interessado no “vatapá” musical brasileiro, isto é, no exótico.
Palavras-chave
música, etnicidade, nacionalismo
527
‘O quê que esses críticos musicais estrangeiros pedem de nós? Negro,
só negro! E o quê que os brasileiros pedem? Branco, só branco!
E durma-se com um barulho desses! São todos uns idiotas!’1
Apresentação
Janjão é um compositor erudito que tem a simpatia da rica Sara Light,
que promove um banquete. Para a ocasião, são convidados um político, uma cantora e um estudante de direito. O objetivo da senhora Light é apresentar o compositor a esses distintos membros da sociedade.
Ao longo da reunião, esses personagens vão tecendo comentários sobre
música e estética e também sobre como esses assuntos são tratados no
cotidiano do meio artístico brasileiro indicando como o autor, Mário de
Andrade, pensa tudo isso em 1943, ano em que saíram esses artigos na
Folha da Manhã. Uma reflexão importante sobre o texto como um todo
está na edição de 1977, onde Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas
apresentam-no e o localizam dentro da obra do autor. Aqui, vamos nos
concentrar no trecho em epígrafe, que revela alguns pontos que pretendemos desenvolver mais amiúde ao longo deste texto. Em primeiro lugar,
há a expectativa aparentemente conflituosa de dois grupos de pessoas
cujos interesses em comum são a música: os estrangeiros e os brasileiros.
O objeto desse conflito é outro ponto: de um lado há o que é chamado
de ‘tradição europeia’, perseguida pelos brasileiros e do outro o ‘exótico’,
‘estranho’ e, claro, ‘negro’ vistos pelos estrangeiros como características
inerentes à nossa identidade nacional.
Este debate sobre música erudita ambientado em um banquete será extendido a outras áreas da música como aquela veiculada pelo rádio – uma
música popular, sim, mas, aos olhos do escritor e de outros, excessivamente comprometida com as mediações que o meio urbano, a tecnologia
e a motivação comercial impõem.
1
ANDRADE, M. O Banquete. São Paulo: Duas Cidades, 1977
528
A questão do negro e do exótico
Quando Mário de Andrade falou pela boca de Janjão que os estrangeiros
pedem ‘Negro, só negro!’2, ele não está se referindo simplesmente a uma
questão racial ou cultural, mas falando metaforicamente sobre algo que
se dá por meio do estranhamento, quando alguém externo a uma cultura sente uma diferença em relação à sua própria quando confrontado
com elementos daquela. Contextualizando, Mário relativizou a música
erudita produzida no Brasil como algo nem tão estranhável assim como
também não totalmente de acordo com padrões europeus estabelecidos:
‘O Brasil não é nenhuma esquimolândia, nem a nossa música é o gamelã
[sic] javanês! Nossa tradição é europeia, nossa vida de arte erudita é a da
civilização contemporânea...’3. Claro, Mário tentou, nessa frase, mostrar
exemplos extremos onde o estranhamento seria evidente: uma suposta
terra habitada por esquimós e/ou uma música feita por um conjunto de
instrumentos de percussão bastante particular, encontrado na Indonésia
(da qual Java faz parte, ainda que não contenha todas as manifestações
de gamelão existentes). De qualquer forma, foi exposta a ideia de que a
música brasileira não seria tão radicalmente estranha assim aos ouvidos
dos (críticos) estrangeiros. Mário citou primeiro Boris de Schloezer, crítico francês de origem russa que cobrara de Villa Lobos uma música que
não se utilizasse da orquestra sinfônica, pois, segundo ele (apud Mário
de Andrade), tal orquestra seria a manifestação de cultura europeia, ‘que
burrada!’. O modernista segue argumentando os motivos para que a orquestra não seja assim considerada e, por isso, possa ser utilizada para
a criação de uma música legitimamente brasileira. Independentemente
dos seus argumentos, ele parece não acreditar que eles venham a mudar
a opinião daqueles críticos. ‘... essa é a visão geral, realmente tonta, da crítica europeia a nosso respeito e do Brasil: somos uns exóticos [...] querem
vatapá, querem gamelão’.
2
Idem.
3
Todas as próximas referências são do mesmo livro.
529
O vatapá e o gamelão citados por Janjão/Mário são os equivalentes aos
‘Camelos de Borges’, animais que, de tão comuns na Arábia, nem seriam
citados em livros genuinamente árabes por fazerem parte do cenário,
sendo desnecessária sua menção por parte de um autor nativo como Maomé4. Imagens como essas são comumente simplificadas e demonstram
certa pobreza em suas concepções estereotipadas mas, ao mesmo tempo,
fascinam a imaginação coletiva e colaboram para produzir a identificação nacional. Dentro desse raciocínio, pensa-se nesses elementos – metaforicamente citados como o vatapá ou o negro - como ‘naturalmente’
nacionais, ‘genuínos’ da cultura e/ou da nação onde se localizam. Mário
de Andrade jogou com essas ideias citando dois elementos considerados
não-europeus, o vatapá brasileiro e o gamelão javanês. Esses elementos
não interessam tanto pela nacionalidade original que carregam, mas sim
pelo estranhamento e interesse que causariam ao europeu.
Dentro desse diálogo que pensa o estranho e o exótico, Mário de Andrade fez, pela boca de Janjão, uma espécie de salto generalizador: ‘Negro,
só negro!’5, isto é, converteu o exótico esperado pelo estrangeiro e metaforizado no vatapá e no gamelão em algo que pode ser entendido tanto
no substantivo quanto no adjetivo, a palavra ‘negro’. Ora, por que ele não
continuou citando esquimós ou javaneses que poderiam lhe dar inclusive uma ‘unidade temática’ maior ao texto? Por que voltar-se à ideia do
negro numa discussão sobre a música erudita brasileira?
Uma explicação possível está na ideia do ‘negro’ usada por Mário de Andrade como um símbolo tácito associado ao estranho, ao exótico e ao nacional. Esta associação foi construída ao longo dos séculos no Ocidente e
4
Essa ideia, escrita no texto ‘El escritor argentino y La tradición’, tem sido bastante utilizada
para ilustrar a questão do estranhamento e do típico. Por exemplo, ela aparece em SALIBA,
E. T. Raízes do Riso - a representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos
primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002 e FISCHERMAN, D. Efecto
Beethoven: Complejidad y valor en la música de tradición popular (Coleção Diagonales). Buenos Aires: Paidós, 2004 .
5
(Andrade, op. cit.)
530
vem desde pelo menos a época dos descobrimentos. Um cenário bastante
interessante e geral foi pintado por Felipe Fernández-Armesto6. Diz ele
que, embora até a Idade Média fosse possível acreditar que não houvesse nenhuma associação particular entre a negritude a escravidão, isso
mudou a partir do século XV não só por causa do sistema escravista mas
também por conta do descobrimento de reinos e comunidades negras
pobres ou rústicas. A familiaridade com reinos ricos embora decadentes
posteriormente gerou desprezo e zombaria, caso de Mali onde o rei, antes
visto como poderoso, passou a ser retratado como vulgar, pouco inteligente e com atributos físicos caricatos7. A implantação da escravidão exclusivamente de pessoas negras8 contribuiu também para um desprestígio e até mesmo um afastamento dessas pessoas em relação aos brancos.
Nessa ‘era dos encontros’9, onde as navegações mostraram aos europeus
culturas bastante diferentes da sua, o negro, em especial os membros de
sociedades como os hotentotes (com quadris muito grandes) ou os aborígenes australianos passaram a ser considerados sub-humanos pelo estranhamento que causavam ao que os europeus consideravam até então
como humano. Do ponto de vista cultural, as religiões da maioria das
sociedades negras eram vistas não apenas como não-cristãs, mas pagãs
ou mesmo demoníacas, jogando seus membros ainda mais para fora da
civilização europeia10. A filosofia kantiana buscou afastar a humanidade
europeia por oposição a todas as demais sociedades humanas, colocando os negros num degrau inferior em relação ao branco na escada da
6
FERNÁNDEZ-ARMESTO, F. Então você pensa que é humano? Uma breve história da humanidade (R. Eichemberg, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007 [2004].
7
(FERNÁNDEZ-ARMESTO, op cit.: 76-7)
8
Op cit:73-7. Para Manuela C. Cunha, um ‘africano livre’ era uma contradição em termos. Tentava-se coincidir status e cor de pele CUNHA, M. C. Negros, estrangeiros - os escravos libertos
e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense, 1985 .
9
Idem:80
10 Idem p. 102
531
532
evolução11. Quando começam as grandes navegações com circuitos de
produção e circulação de mercadorias produzidas em sistema de plantation, valendo-se exclusivamente do negro como escravo, vem a reboque a
experiência do ‘terror racial’12, algo inexprimível para muitos narradores,
por ser muito dolorosa. Dando estofo a essa ideia do terror estão momentos singulares na vida daqueles que se tornaram escravos, como a travessia da África para a América pelo Atlântico – chamada ‘passagem’ por
alguns escritores - e a fragmentação da coesão identitária de grandes grupos num termo emprestado da experiência do exílio judaico, a ‘diáspora’.
Esses termos que tentam encapsular e transmitir como único e extremo a
experiência desse sofrimento, uma ‘narração da experiência’, vivida, lembrada, subjetiva e, num certo sentido, intransferível. Se é possível construir a história com base numa experiência - na memória, como propõe
Walter Benjamin - outros críticos levantam o problema de que a dos velhos pode ser intransferível para futuras gerações. Sua reconstrução pelo
relato tornou-se frágil e o estruturalismo ganhou terreno, embora acabe
havendo uma consolidação da primazia do sujeito e das subjetividades13.
No entanto, se esse terror da escravidão é indizível, não é inexprimível, e
uma das maneiras de expressá-lo está na música14. Nesse mundo de coisas dos escravos negros, a palavra e a literatura perdem parte da importância, pois, como Rodolfo Vilhena observa, objetos de folclore, poesia
ou literatura oral no país terão pouca representatividade, já que a língua
principal é a do colonizador. Outras formas de expressão como música,
dança e gesto parecem ter mais contribuições de diversos segmentos
11
GUIMARÃES, A. S. A. (2004?). Intelectuais negros e modernidade no Brasil, (artigo online).
disponível em: http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/. Acessado em 28/11/2008.
12 GILROY, P. O Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência (C. Knipel, Trad.). São Paulo,
Rio de Janeiro: Ed. 34, Univ. Candido Mendes, 2001 [1993].
13
SARLO, B. Tempo Passado - Cultura da Memória e guinada subjetiva (R. Freire, Trad.). São
Paulo, Belo Horizonte: Companhia das Letras, UFMG, 2007
14 (GILROY, op cit: 159-164)
533
culturais15. Mas, se por um lado a música ‘negra’ pôde ser vista como
uma manifestação cultural distinta da branca, por outro, ela foi chamada
de ‘primitiva’ devido ao etnocentrismo. Essa manifestação cultural distinta - ou expressiva, como chama Gilroy - guarda funções de culto e podem invocar a antimodernidade com sua anterioridade pró-escravista16.
O que havia de tão exótico assim nessa música que exprime negritude?
Por que Mário de Andrade se lembrou dessa palavra como um resumo
para suprir as expectativas de estranhamento dos críticos estrangeiros? Talvez o referido ‘salto metafórico’ não tenha sido dele, e sim nosso.
Mesmo assim, cremos que vale a pena continuar desenvolvendo a ideia
genérica de negritude associada ao exótico na música para depois detalharmos mais a música feita para o disco e o rádio. Antes, é preciso
fazer uma observação sobre o elencar elementos típicos de uma música
qualquer, sob o risco de trazer essencialidade a uma manifestação cultural construída ao longo do tempo. Alguns autores afirmam que africanismos consistem mais em princípios gerais do que elementos específicos17.
Para citar alguns desses princípios, há a participação coletiva, que tende
a promover o talento musical num grau maior do que nas sociedades estratificadas, o uso de certos ritmos de maneira diferenciada em relação
à Europa (por exemplo, a síncopa e o uso mais intenso e recente de instrumentos de percussão18); o aspecto de pergunta e resposta19 e também
15 VILHENA, L. R. Projeto e Missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro:
Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997
16 (GILROY, op cit: 129-130)
17
ALVARENGA, O. Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Globo, 1950 , (MANUEL, BILBY, &
LARGEY, 1995:7)
18 Para uma ótima descrição etnomusicológica da síncopa no samba e sua ‘africanização’, isto
é, o gradual incremento de instrumentos percussivos nessa música, ver SANDRONI, C. Feitiço
Decente - transformações do samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
e UFRJ, 2001
19 Obviamente não se está buscando aqui uma ‘origem’ desses elementos numa África imaginada, mas na incorporação destes no Brasil por meio dela. Para ficarmos num exemplo de
como essa perseguição ao ‘mito das origens’ é infinita lembramos que Peter Fryer propõe que
534
o uso de riffs ou padrões mais do que formas contrastantes europeias
como a Sonata20. Um outro fator de estranhamento, podemos dizer, está
no fato de que a essa música africana está negado seu caráter histórico,
ao contrário da música Ocidental, que ‘evolui’ constantemente:
Todos os europeus e seus descendentes brasileiros seriam
históricos, civilizados, brancos, superiores, dominantes. Todos
os outros, no caso do Brasil, índios e negros, seriam nãohistóricos, fetichistas, bárbaros, inferiores, dominados.21
Esse não-historismo cultural não só é esperado como também é cobrado
na forma de uma construção de uma autenticidade apoiada numa tradição, invocada para asseverar o parentesco de diversas práticas culturais
dentro da diversidade da experiência negra. Ela é uma espécie de ‘biombo fechado para a tempestade do modernismo que se abate lá fora’22; especificamente, uma música diferente da europeia entre outras coisas por
não caminhar se modificar ao longo do tempo23. Uma música estranha
ao modernismo, onde este se fascina com ela ao mesmo tempo em que a
pretende conservá-la assim.
o ‘canto desafio’ do Nordeste teria uma tripla paternidade, ou seja, africana, árabe e portuguesa. FRYER, P. Rhytms of Resistance - African Musical Heritage in Brazil. Hanover: Wesleyan
University Press, 2000
20 MANUEL, P.; BILBY, K.; & LARGEY, M. Caribbean Music - From Rumba to Reggae. Philadelphia:
Temple University Press, 1995
21 IANNI, O. A ideia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1992].
22 (GILROY, op. cit: 352)
23 Essa assunção não é privilégio da música negra. Houve um tempo onde cria-se que as culturas não ocidentais tinham na música uma estabilidade absoluta e qualquer mudança seria
considerada um distúrbio causado principalmente pela intervenção de sociedades mais fortes, como a europeia NETTL, B. The Study of Ethnomusicology - Twenty-nine Issues and Concepts. Urbana e Chicago: University of Illinois Press, 1983 .
535
O exótico e a modernidade no Brasil
Se o negro e sua cultura foram vistos como exóticos – ou, pelo menos,
usados como metáfora – por Mário de Andrade, isso estava inserido em
um debate muito maior do que uma discussão estético-musical. Desde
a década de 1920 começaram a aparecer em várias partes do Ocidente
movimentos rumo à inserção das identidades negras rumo à modernidade. Note-se que usamos a palavra ‘identidades’ no plural, pois a palavra ‘negro’ ou ‘negritude’ pode abranger diversas personas não necessariamente juntas entre si, como o escravo, o liberto, o africano, o crioulo,
o mestiço, o mulato etc. Esse movimento também não foi homogêneo
em todo o mundo – nem mesmo na periferia. Guimarães, por exemplo,
mostrou como esta modernidade é diferente em lugares como os EUA, o
Caribe e a América Latina, por exemplo24. No caso brasileiro, essas identidades estão enlaçadas na ideia de mestiçagem. ‘Vistas como negras
pelos europeus e vendo-se a si mesmas como brancas’. Mas, ao invés de
‘negro’, o que que se criou foi o ‘popular’, muitas vezes confundida com o
‘nacional’25. Esse nacional-popular específico acabou tendo um discurso
onde as classes subalternas se fizeram ouvir através dele, mas a um preço, ou seja, com a criação de um discurso de massa, reconhecível pelas
maiorias26, onde, independentemente do caráter econômico ou ideológico desse discurso, vale a pena estudar suas mediações, isto é, o espaço cultural onde se articula o sentido daquele. Escolhemos como ponto
privilegiado desse estudo a música como elemento capaz de incorporar
negros e mulatos, isto é, pessoas pertencentes à sociedade mas considerados anteriormente como ‘cidadãos de segunda categoria’27.
24 GUIMARÃES. Intelectuais negros e modernidade no Brasil.disponível Acessado em.
25 Idem.
26 MARTÍN-BARBERO, J. Dos Meios às Mediações - Comunicação, Cultura e Hegemonia (R. Polito & S. Alcides, Trad.). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997
27 ORTIZ, R. Cultura Brasileira & Identidade Nacional 5ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2003 [1994].
536
Uma boa parte deste espaço de mediação – o disco e o rádio -, ainda que
com uma penetração limitada na década de 1920 e 1930 em relação ao
que terá um pouco mais tarde, foi cenário para a atuação de diversas
forças. Na virada dos anos 1920 para 1930, a crise econômica e a política tornaram forte a corrente do populismo que, por sua vez buscou sua
legitimação como representante do que podemos chamar de popular. O
popular, por sua vez, quis em troca de seu apoio o reconhecimento oficial de sua cidadania, e este veio, dentre outras formas, pelo rádio e por
parte da música que dele emanava, a música negra (uma parte cada vez
maior e cada vez mais nacional). No meio desse processo, genericamente falando, essa música negra precisou negociar barreiras como a que a
‘verdadeira’ música estaria ligada ao meio rural, menos corrompido pelos
modernos meios de comunicação. De fato, muitos comentaristas e estudiosos mostram como isso foi um ponto de tensão muito forte28.
O rádio passou, portanto, a ser um destino para a música e músicos negros, num processo bastante diferenciado em relação a outros setores
destas empresas. ‘O negro... passa a ser o seu assunto predileto, embora
não o exclusivo’29, numa imbricação de interesses políticos e ideológicos com vistas a alcançar a chamada democracia racial: ‘Rádio e poética
popular não conseguem escapar aos envolvimentos de interesses mais
amplos que passam a dominar em diferentes fases históricas’30. Se o rá28 Uma lista mais ou menos compreensiva de fontes que ilustram essa ideia seria por demais
extensa para o propósito deste trabalho. No entanto, uma breve discussão sobre como os intelectuais viam essa necessidade de se voltar para a parcela rural e não urbana, pode ser vista
em WISNIK, J. M. Getúlio da Paixão Cearense. IN: Música. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004
[1982]. p. 192., MCCANN, B. Hello, Hello Brazil - Popular Music in the Making of Modern Brazil.
Durham: Duke University Press, 2004 , em especial nas pgs 222-223, ANDRADE, M. Ensaio
sobre a Música Brasileira 4ª ed. (Coleção Excelsior, vol. 42). Belo Horizonte: Editora Itatiaia,
2006 [1928]. e (ALVARENGA, op cit)
29 PEREIRA, J. B. B. O Negro e o Rádio de São Paulo 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2001 Nos setores
técnicos e administrativos a incidência de pessoas negras ainda tendia a ser bem menor,
mostrando como todo esse processo não era tão inclusivo assim, isto é, filtrava pessoas e
culturas para pontos onde lhe interessava. (Idem: 147)
30 (Idem: 207-8)
537
dio deu notoriedade e dinheiro, também contribuiu para a manutenção
do negro como um sujeito social e politicamente afastado de debates
mais ‘sérios’, como se ele não fosse percebido como sujeito social e político, mas apenas artístico31. Ligado a esta ideia esteve um dos primeiros
estereótipos do negro no rádio, o malandro. Neste figura está o ‘orgulho
em ser vadio’32, proprietária de uma ética oculta onde o ócio é uma conquista para alguém que foi associado à escravidão. Claro que isso não
durou muito, pois com o Estado Novo apareceu a intenção da ‘erradicação’ deste mal, embora esse samba malandro ‘regenerado’ continuasse
com suas síncopas e gírias de intenções ambíguas para com o regime
em voga33. No entanto, esse malandro ‘ambíguo’ não foi a única figura
que pode ser incorporada a esse grupo. Há também o que Gilroy e Sansone chamaram de ‘dupla consciência’, isto é, o sentimento de sentir-se
negro e brasileiro ao mesmo tempo, ‘comprometidos tanto com a nação
quanto com seus irmãos de cor’34.
Até o fim da 2ª Guerra Mundial o rádio passou a ter uma posição bastante significativa na construção do imaginário nacional. Desde o início da
década de 1940, programas jornalísticos como o Repórter Esso, a criação
do Ibope e a consolidação da Rádio Nacional como principal emissora no
país, dentre outros fatores, incrementaram a penetração do rádio no cotidiano da sociedade brasileira. O samba, cujo processo de nacionalização
teve um importante momento na década de 193035, aproveitou-se desse
31 CHAUÍ, M. Brasil - Mito Fundador e Sociedade Autoritária. Fundação Perseu Abramo, 2000
32 Trecho do samba ‘Lenço no Pescoço’, de Wilson Batista, gravado por Silvio Caldas em 1937.
33 Sobre o chamado ‘samba malandro’, ver MATOS, C. Acertei no Milhar - Malandragem e Samba no Tempo de Getúlio (Coleção Literatura e Teoria Literária, vol. 46). Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1982 .
34 SANSONE, L. Negritude sem Etnicidade - o local e o global nas relações raciais e na produção
cultural negra do Brasil. Salvador, Rio de Janeiro: EDUFBA/Pallas, 2004
35 VIANNA, H. O mistério do Samba 4ª ed. (Coleção Antropologia Social). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar/UFRJ, 1995
538
novo veículo, naturalmente. As representações36 do negro pela sociedade
brasileira assim foram mediadas intensamente. Note-se que não estamos
falando de uma representação do negro para si, mas sim de outra que a
própria sociedade cria: ‘quem inventa o negro do branco é o branco’37.
Um exemplo da representação do negro pelo rádio
A título de ilustração, pretendemos mostrar como algumas dessas ideias
citadas acima apareceram em apenas um programa radiofônico de
194738. Nas Asas de um Clipper foi um programa radiofônico semanal,
e, além do Brasil, produzido localmente no México, na Argentina e em
Cuba durante o ano de 194739. No Brasil, foi transmitido às sextas-feiras,
às 21:30 com meia hora de duração, ocupando, portanto, o horário nobre
da programação. Como muitos outros programas do período, era realizado ao vivo com uma orquestra – chamada Típica Corrientes - associada
ao maestro argentino Eduardo Patané, mas com a regência de um dos
mais importantes maestros da Nacional, Radamés Gnattali. Além da orquestra, cantores do meio artístico brasileiro e eventualmente dos outros
países participantes faziam suas apresentações, conduzidas por dois locutores de modo a criar um ambiente dinâmico e vivo ao longo do programa. Assim como outros programas da Rádio Nacional nesse horário,
este tinha uma enorme popularidade. Cada um dos três países – Argentina, Cuba e México – era ‘ilustrado’ no programa durante seis semanas.
Foram duas rodadas pelos quatro países ao longo de 1947.
36 CHARTIER, R. A História Cultural - entre práticas e representações (M. M. Galhardo, Trad.)
(Coleção Memória e Sociedade). Rio de Janeiro: Bertrand, 1990 [1987].
37 IANNI. A ideia de Brasil Moderno.
38 Esta série foi estudada por mim mais detalhadamente e apresentada no XXIV Simpósio Nacional de História, 2007, em São Leopoldo – RS.
39 Coincidentemente, foram esses os quatro países apontados por GUIMARÃES. Intelectuais negros e modernidade no Brasil.disponível Acessado em. como os que mais contribuíram para
dar um ‘tingimento latino’ às cores da música popular americana .
539
Alguns ritmos40 foram citados pelos locutores do programa. O mais frequente deles foi a rumba, descrita como uma dança “...que nasceu espontânea, que é como uma chama viva nascida do sol tropical, ardente
como o verão antilhano, contagiante, embriagadora”41. Ou, como diz a
letra da música ‘Escandalosa’42, ‘a rumba por si é maliciosa... escandalosa’. Um ritmo sensual, portanto, como foi conhecido também o samba
brasileiro. Sensualidade e negritude são dois aspectos importantes nas
duas representações desses ritmos. Negros idealizados que passaram
pelo sofrimento da escravidão, que ajudaram a construir uma pátria ou
que se esquecem das durezas da vida dançando rumbas ou sambas são
encontrados nas narrativas entre uma e outra música do programa, de
modo a uni-las tematicamente. Como exemplos de temas ligados à negritude, cite-se Ruy Rey cantando ‘Tabu’, de Margarita Lecuona e ‘Yo Soy el
Batalá’43, atribuída a Ruy Rey. Em outro programa Jorge Fernandes canta ‘Banzo’, de Heckel Tavares, seguido de ‘Babalu’, de Margarita Lecuona
– esta cantada em português.
Para todas essas músicas havia uma breve apresentação pelo locutor do
assunto ao qual elas se referiam. Apresentando ‘Banzo”, o locutor diz:
Os mesmos navios negreiros que trouxeram para o Brasil o
ritmo binário dos tan tans africanos levaram para Cuba a
nostalgia dos negros cativos. No Brasil, o negro trabalhou nas
casas de ouro, plantou os cafezais, ajudou a ganhar as guerras
e a construir a paz. Fez tudo isso e cantou. Banzo, a doença
da saudade, reflete a alma doída do negro brasileiro.44
40 A classificação de músicas pelo seu ritmo ou gênero em música popular não se baseia apenas
em aspectos técnico-musicais e deve ser examinada com muita cautela, como já se falou no
caso dos africanismos. No entanto, para o propósito do texto, cremos ser apropriado o uso da
terminologia que os próprios atores envolvidos deram a essas músicas.
41 Extraído do programa NADC: 9/5/1947.
42 NADC: 23/5/1947
43 NADC: 16/5/1947
44 NADC: 12/9/1947
540
Há, por parte do texto, uma intenção em associar parte da experiência
inexprimível do negro a um ritmo binário ou a um instrumento de percussão, naturalizando o terror da escravidão num som musical. Uma das
consequências desse raciocínio seria pensar que a música negra (e, por
extensão qualquer outra música) estaria irremediavelmente atada a uma
experiência que lhe daria um significado inerente, ainda que subjetivo.
Não foi diferente a apresentação de “Tabu”.
“A influência do negro se faz notar a cada passo na arte cubana
principalmente na música do país centroamericano. Ouçam,
por exemplo, Tabu, um lamento cubano em que o negro
deixou à sombra do seu vulto e o calor de seu sangue” 45
Veja-se também “Babalu”
“Em Cuba, esse mesmo negro africano plantou fumo,
cuidou dos canaviais imensos, ajudou a construir uma
pátria e cantou...Babalu é um lamento negro; saiu como
um gemido do peito largo do negro cubano” 46
Todas essas referências ao lamento, ao gemido, à saudade e à dor mostram como o terror pode ser ‘exprimível’, ainda que pelas palavras do
branco, consumidor final dessa temática (afinal, o programa era transmitido com o patrocínio de uma empresa aérea norte-americana onde os
únicos negros que apareciam nos cartazes estavam trabalhando, carregando cargas ou vendendo quitutes nas praias47).
A temática da sensualidade também apareceu em diversas músicas. Ruy
Rey e Nuno Roland cantaram, em dias distintos, versões de ‘Param-pam45 NADC: 23/5/1947
46 NADC: 12/9/1947
47
A referência que tenho sobre isso foi extraída do site da nova Pan Am, onde há alguns cartazes da década de 1940 e onde se pode comprovar esse dado. Veja a seção histórica do site
http://www.panam.org.
541
-pam’48, de Sérgio Di Karlo e ‘Negra consentida’49, de Joaquin Pardavé.
Houve até uma rumba composta por Ruy Rey, ‘Ana Martí’50, falando de
uma musa sensual adorada pelo cantor. Isso fora músicas como ‘Sambolândia’51, de Pedro Caetano e a referida ‘Escandalosa’, cuja letra fala
de uma mulher que, ao dançar uma rumba em Cuba foi assim chamada.
Nesse sentido, a mulher e a rumba se equivaliam como pontos focais de
uma representação da sensualidade natural.
Ao longo deste texto, tentou-se indicar como a música recebe uma série
de atributos que não lhes são inerentes, mas que são passados como tal.
Dentre eles, foram encontrados nos programas radiofônicos uma categorização para a música onde ela podia ser ouvida como moderna ou como
arcaica, negra ou branca, europeia ou africana, ingênua ou sofisticada,
variando-se conforme a temática. Algumas pessoas que a escutaram e
fizeram sua significação de modo mais específico, se tiveram acesso à
produção crítica ou historiográfica, fizeram valer sua opinião. Quero dizer com isso que a historiografia pode enfatizar em maior ou menor grau
determinado tema ou movimento, em função daquilo que se pretende
especificamente. Parte dela escolheu enfatizar algumas descontinuidades históricas e, desse modo, passou a ‘saltar’ a narrativa, salto que às vezes passou por cima da Era do Rádio. Mas isto é assunto para um estudo
bem maior.
Referências bibliográficas
48 NADC: 9/5/1947 e 19/9/1947
49 NADC: 12/9/1947 e 17/10/1947
50 NADC: 16/5/1947
51 NADC: 23/5/1947
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