MACHADO E O CONTO A menina em Lá: o absoluto bipolar de Maria Regina Lilia Loman Doutora em Teoria da Crítica pela Universidade de Nottingham (Inglaterra). Atualmente desenvolve projeto de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. Trio: composição para três instrumentos ou vozes. Lá Menor: única escala que, juntamente com sua relativa, Dó maior, não possui acidentes. Adagio Cantabile: Vagaroso Cantante. Como um prelúdio, a música prepara e precede a narrativa em “Trio em Lá menor” (tlm). Antes do verbo, o leitor entra em contato com as vozes, os instrumentos, a tonalidade, o andamento. Com o início da narrativa, instaura-se, paradoxalmente, o silêncio. Como uma pausa que antecede o real início do espetáculo, o parágrafo introdutório não introduz, mas silencia e enclausura: todos se recolhem e da protagonista não se pode arrancar uma palavra. O leit motiv surge na revelação do narrador acerca da verdade “abominável” (TLM, 283) sobre Maria Regina. Sua caracterização resume-se em uma palavra “uma esquisita ou para falar como as amigas do colégio, uma desmiolada” (TLM, 283). A onisciência do narrador é fundamental: 44 não pelo poder de revelação, mas pelo detalhamento dos fatos, pela informação desnecessária, pela opinião sem precedentes, pelo comentário sutil e até indiscreto, através dos quais ele guia o leitor, como em um par de dança. Machado de Assis faz do apelo musical não só um elemento notável, mas um fator literalmente irresistível em “Trio em Lá menor”. Às margens da narrativa, o autor dita os andamentos e marca o compasso ternário do trio que se desmancha no minueto final. O objetivo desta breve reflexão, entretanto, não é tecer uma análise específica sobre a musicalidade de “Trio em Lá menor”. Partindo da concepção do texto como uma “partitura verbal”, enfoque será dado ao papel da questão musical como elemento problematizador do conto, com atenção especial à figura desconstrutiva de Maria Regina como heroína de uma “única” nota: lá – o lá da alteridade, de um lugar outro, o mesmo e o outro. Neste contexto, a inconstância da protagonista será vista como inconstância do próprio texto, em cujas marcas de desestruturação serão discutidas a interface entre realidade e ilusão. www.fatea.br/angulo Essencialmente, a leitura é orquestrada pelo largamente discutido elemento musical do conto, que configura o texto como uma partitura verbal. Assumindo um papel ao mesmo tempo ativo e passivo, o leitor é o intérprete guiado por uma constelação de notações que desconstrói a aparente linearidade narrativa. Machado leva-nos ao “dia seguinte”, mas, ao mesmo tempo, força-nos a parar, a pausar: a divisão do texto em partes, por exemplo, cria naturalmente um ritmo de leitura, marcado por interrupções e pausas, que somos forçados – até visualmente – a acompanhar. Tal ritmo é igualmente delineado pelos andamentos musicais que nomeiam cada parte do conto - Adagio Cantabile (vagaroso cantante), Allegro ma non troppo (alegre mas não muito), Allegro Appassionato (alegre apaixonado), e Minueto. Juntam-se a estes elementos, a pontuação, a distribuição do discurso direto e indireto, entre outros. As diversas interrupções que ocorrem ao longo do conto merecem atenção. Em primeiro lugar, é notável a ênfase na teatralidade decorrente do seccionamento do texto e também da alternância de trechos musicados e falados que, como afirma Cunha (2006, p. 118), possibilita a “conversão do conto machadiano em uma símile de libreto da ópera ligeira ou opereta.” Tal paralelo é particularmente notável na tripartição sugerida pela alternância entre música e fala, pela qual a segunda e a terceira parte – Allegro ma non troppo e Allegro Appassionato – agrupamse em um bloco central distinto, delimitado pelo fim e o início da sonata, ou ainda, o início e o fim da conversação. Criando soluços, hiatos na superfície textual, interrupções pontuam o conto com vácuos significativos que simultaneamente esvaziam e preenchem, criando um descompasso no processo interpretativo. Tais intervalos ocorrem não só entre as partes, com a demarcação dos andamentos, mas também no corpo do texto. Por vezes, o silêncio é verbalizado, como é o caso do início da quarta parte, o minueto, quando a indefinição temporal acompanha a imobilidade e a suspensão dos sons: DEZ, VINTE, trinta dias passaram depois da- ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 44-49. quela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia certa; melhor ficar no vago. A situação era a mesma. (TLM, 289) Há, em seguida, um ralentando que expressa a gradativa perda de interesse pelos dois pretendentes – Esta os viu ir pouco a pouco. A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais. As noites foram passando, passando... - até o rompimento – ou desaparecimento – final: “Maria Regina compreendeu que estava acabado.” (TLM, 289) Mais comumente, a pontuação rege os intervalos no corpo do texto, em especial de reticências: - A senhora tem cinco trunfos de espadilha e manilha, tem rei e dama de copas... Maria Regina ia descambando da admiração ao fastio [...]. (TLM, 287) MACHADO E O CONTO A performance de uma partitura verbal De fato, há aqui, uma diluição do sentido que acompanha a interrupção do som: Maria Regina deixa de “escutar” e passa simplesmente a “ouvir” enquanto “descamba”, “escorrega”. A pausa, espasmo súbito, é também suspensão, um silêncio momentâneo, porém com sentido e duração indeterminados – uma fermata. O mesmo se aplica ao uso de reticências em referência à cronologia incerta do narrador em “As noites foram passando, passando...” e, notavelmente, da sonata do absoluto, que se estende por toda eternidade em três notas: “lá, lá, lá...” Recorrendo à comparação com o teatro, percebe-se, assim, que a própria concepção do fim da narrativa é posta em suspensão. O fim faz ecoar a sonata do delírio de noites anteriores – ele não é o último ato. A segunda parte inicia-se com um novo dia – o fim da noite, o fim do delírio. Acompanhando o andamento allegro, o ritmo intensifica-se com os diálogos que se concentram unicamente nas partes centrais do conto. Em Allegro ma non troppo, pequenos diálogos de frases curtas destacam-se do corpo textual, criando um efeito semelhante ao staccato. Com o início do “movimento” Allegro Appassionato, as frases tornam- 45 MACHADO E O CONTO se mais longas, criando um senso de fluxo corrente da conversação, pouco interrompido pelo narrador que suprime quase todo comentário. Nos trechos centrais, os fatos da narrativa desenrolam-se e as personagens presentificam-se por meio do discurso direto. Este é o único momento em que, com os diálogos, a ação, como no teatro, ocorre diante dos olhos do leitor, uma vez que o narrador se afasta momentaneamente e dá a palavra às personagens. A aceleração denunciada pelo andamento também se dá, assim, pelo imediatismo das cenas em contraste com o início lento, marcado pela predominância absoluta do pretérito da voz do narrador. Os tempos verbais transformam-se, e o leitor é ilusoriamente levado ao presente da enunciação – à performance dos fatos da narrativa, que deixam de ser simplesmente colocados diante de seus olhos pelo narrador. A grande protagonista dos diálogos é, entretanto, a avó, que cochila durante as sonatas, mas adora saber notícias de sociedade. Maria Regina faz uso do discurso direto não mais do que três vezes – ela contempla, observa, imagina; descamba no fastio. Embora ela também converse “alegremente” (TLM, 283) com seus pretendentes, ela o faz através do narrador, permanecendo, assim, uma presença em ausência na voz do outro. A pequena frase de Maria Regina A teatralidade dos diálogos em “Trio em lá menor” não é proporcional à sua influência no desenrolar dos fatos da narrativa. Suplementares e até redundantes, os diálogos ecoam – às vezes literalmente – a voz do narrador, integrando a trilha musical do conto: [...] Maciel recusou, agradecendo a carruagem que elas lhe ofereciam, e despediu-se até a noite. - Até à noite! repetiu Maria Regina. Esperou ansiosa. Ele chegou, por volta das oito horas, trazendo uma fita preta enrolada na mão, e pediu desculpa de vir assim; mas disseram que era bom pôr alguma cousa e obedeceu. 46 - Mas está melhor! - Estou bom, não foi nada. O jogo metonímico estabelecido entre as partes sugere, de fato, uma subversão do papel da ação na narrativa, possibilitando considerar a segunda e a terceira parte - Allegro ma non troppo e Allegro Appassionato - como um interlúdio do devaneio de Maria Regina no início e no fim do conto. O espaço da narrativa passa a ser, desta forma, a interface entre a superficialidade e a ilusão. Secundário, o interlúdio é paradoxalmente essencial. Como o sono ou um desmaio, o interlúdio pertence à categoria do intersticial e sua existência – ou não existência – depende e se merge com os elementos que separa: é um intervalo, um vazio preenchido, uma ponte entre “um” e “outro”. Daí a imprecisão velada do “dia seguinte” (TLM, 284) que marca o início das partes centrais, superpondo-se ao delírio acompanhado por uma sonata cujos ecos ainda estavam em suspensão – reticências, fermata. Na medida em que o silêncio se inunda de sons e a conversação infinita entre Maciel e a avó se perde no vácuo, há um embaralhamento entre parte e intervalo, música e palavra, realidade e devaneio. Desta maneira, o aceleramento do ritmo de Allegro ma non troppo para Allegro Appassionato não leva a um crescendo culminando em um grand finale. O narrador assume a palavra novamente e o diálogo é substituído por reticências na medida em que Maria Regina “ia descambando da admiração no fastio” (TLM, 287). Com a chegada de Miranda, a conversa é logo substituída por uma sonata, pelo sono da avó e por devaneio. Este é a única ocasião no conto que Maria Regina efetivamente toca a sonata – até o momento em que a música torna a ficção “viva e acabada”. É importante notar que, ao contrário de personagens como Nhinhinha, de Guimarães Rosa, comumente associadas à esquizofrenia, não há qualquer sugestão aqui de que a protagonista sofra de um quadro de psicose. Ela é, afinal, descrita como “uma esquisita”, “uma desmiolada” (TLM, 283), mas não insana. Ao contrário, a voluntariedade diante da ilusão e a consciência do irreal são essenciais para o pa- www.fatea.br/angulo A música é, evidentemente, o catalisador. Nota-se que nas duas outras ocasiões em que surge a sonata, Maria Regina não a toca, somente ouve (mentalmente): Maria Regina, à força de recompor a noite, viu ali dois homens ao pé dela, ouviu-os e conversou com eles durante uma porção de minutos, trinta ou quarenta, ao som da mesma sonata tocada por ela: lá, lá, lá... (TLM, 284) Maria Regina acompanhou a avó até o quarto, despediu-se e recolheu-se ao seu. NO DIA SEGUINTE (...) DEZ, VINTE, trinta dias passaram depois daquela noite, e ainda mais vinte, e depois mais trinta. Não há cronologia certa (...) lá, lá, lá... (...) sem advertir que a cabeça era de burro. lá, lá, lá... “No dia seguinte” e “daquela noite” tornam-se igualmente imprecisos na medida em que se referem não mais a uma noite em particular, mas a devaneios, ou seja, momentos sem limites ou caráter diacronicamente definidos. O trinado absoluto de Maria Regina remete à “petite phrase de la sonate de Vinteuil” (a pequena frase da sonata de Vinteuil) de Proust (1992, p. 326). Em busca do tempo perdido, Swann ouve a “pequena frase”, que considerava um hino de seu amor por Odette, ser tocada e, sentindo como se ela estivesse ao seu lado, passa a recriar a tristeza e outros sentimentos “incomunicáveis”. Maria Regina não sente impressões como as pétalas de crisântemo jogadas por Swann ou as gotas de tempestades de certas primaveras - ela vê os dois homens ao pé dela, ouve-os e conversa com eles. Ela não só ouve a música, ela é também intérprete – é agente e paciente. A duplicidade de papéis permite que Maria Regina, ao contrário de Swann, manipule o efeito da sonata tocada por ela – ma non troppo. Ela também é ouvinte, afinal. Adagio Cantabile funciona como um prelúdio do conto que, como tal, anuncia os temas a serem desenvolvidos. Já nos primeiros parágrafos, o leitor fica a par do trio amoroso, da idade dos pretendentes, da reputação de Maria Regina de “desmiolada”, do gosto musical da avó, da polidez de Maciel, da cultura de Miranda. Surgem também as polaridades individualmente imperfeitas e irreconciliáveis que regerão a dança dos absolutos, tendo Maria Regina como vértice: velho/novo, belo/feio, popular/clássico, feminino/masculino, interno/externo, realidade/ ilusão, ausência/presença, um/outro, etc. Em si, os parágrafos iniciais de Adagio Cantabile já antecipam o primeiro devaneio de Maria Regina: são um prelúdio dentro de um prelúdio. Eles armam a cena, preparam o leitor – “com as pernas estendidas, os pés cruzados, pensando” (TLM, 283) – para o resumo da narrativa e o delírio, tornado duplo. Em “Trio em Lá menor”, o jogo entre o ativo (agente) e o passivo (paciente) está também indissociavelmente interligado à desestruturação espaço-temporal. Como mencionado anteriormente, a imprecisão temporal é sugerida tanto pelo ritmo como pelo significado das palavras. A imprecisão é exacerbada pelo seccionamento, seja pelas interrupções ou, principalmente, pelos(a) (ausência de) indicadores temporais que delimitam as partes 1 : O paradoxo de todo prelúdio reside no fato em que ao antecipar o que lhe antecede contém em si também o fim. Adagio Cantabile contém, de fato, aspectos intercambiáveis com o seu extremo oposto, o Minueto, parte final do conto. Ambos terminam com a suspensão trazida pela sonata do absoluto – “tocada” por Maria Regina, mas apenas ouvida por esta; ambos ocorrem em recolhimento. Vale notar que o conto se inicia com a protagonista fechando-se no quarto e calando-se. O início e o fim da narrativa são o ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 44-49. MACHADO E O CONTO radoxo que a envolve. Machado de Assis cria um jogo entre o ativo e o passivo que (des)norteia a relação de Maria Regina com a realidade. Sentada ao piano diante de Miranda – o “velho ruim” (TLM, 288), ela toca a sonata. Porém, o seu aparente virtuosismo permite que a mente se desligue do movimento das mãos e, logo, há uma cisão: ela passa a ser pianista e também apenas ouvinte. Uma vez tornada “viva e acabada”, a ficção torna-se um espetáculo irresistível e Maria Regina sua audiência única. 47 MACHADO E O CONTO isolamento e o silêncio – é daí que a sonata do absoluto soa, onde prelúdio e coda, início e fim, se equivalem. Com a escolha do “Minueto” para a quarta parte, ao invés da terceira, Machado de Assis, faz uma inversão da forma tradicional da sonata. A escolha por um ritmo de compasso ternário certamente não é acidental, marcando, assim, a oscilação de Maria Regina entre as estrelas duplas. Nem tão menos é acidental a referência à Titânia, a Rainha das Fadas, vítima de encantamento em Sonho de uma noite de verão2. Durante a sonata que precede a quarta parte, o “Minueto”, na medida em que a ficção superpõe à realidade através da música, Maria Regina personifica Titânia, enamorada com as belas formas de sua ilusão, “sem advertir que a cabeça era de burro” (TLM, 289). Entretanto, como sugerido anteriormente, Maria Regina não é vítima de insanidade ou encantamento. Sua incapacidade de ver é indissociavelmente atrelada à sua capacidade de – voluntariamente – ver ou não ver. Neste contexto, a parte final do conto é marcada não apenas de sons e pontos de silêncio, mas, essencialmente, de luzes (ver), sombras (não ver) e reflexos (ilusões). A compreensão do fim – que é, de fato, enquanto sua “pena”, oscilação, a impossibilidade do fim – ocorre em uma noite sem lua, mas paradoxalmente “clara”, “luminosa” (TLM, 289). Seria a claridade o reflexo das retinas de Maria Regina? Que, como a lua, que tanto a aborrecia, refletiam, brilhavam de empréstimo? A interface entre a realidade e a ilusão aqui se entrelaça ao jogo entre o ver e o não ver: Maria Regina olha o céu, mas não vê a estrela dupla; fecha os olhos e a vê dentro de si mesma; abre os olhos e não a vê, pois o firmamento é tão alto. A partir deste momento, ver torna-se uma alucinação consciente: No muro da chácara viu então uma cousa parecida com dous olhos de gato. A princípio teve medo, mas advertiu logo que não era mais que a reprodução externa dos dous astros que ela vira em si mesma e que tinham ficado impressos na retina. [...] Não dormiu logo, por causa de duas rodelas de opala que estavam incrustadas na parede; percebendo que era ainda uma ilusão, fechou os olhos e dormiu (TLM, 290). 48 Porém, a ilusão se restringe ao que a protagonista vê refletido exteriormente: o que ela vê dentro de si é real, prova disto é a impressão deixada em sua retina. Os reflexos são apenas reproduções que ainda são uma ilusão. Maria Regina não é Titânia, a Rainha das Fadas, nem tão pouco tem os astros ao alcance da mão. Entretanto, ela tem o absoluto dentro de si (Regina = rainha) e o busca incessantemente. Mas o absoluto não lhe basta, pois pressupõe inevitavelmente seu absoluto polar, cuja concomitância é uma impossibilidade. Ela busca, assim, um supremo unindo duas polaridades em harmonia e perfeição, uma estrela dupla e única. Porém ao uni-las cria “simultaneidades impossíveis”, desencadeando relações, novas estrelas, galáxias fora do alcance de sua mão. Considerações finais A estrela dupla e única que seduz Maria Regina é a mesma que ilumina e ofusca o leitor por todo o conto. Sob a superficialidade do leitmotiv, o trio amoroso, há um convite para o absoluto e seu duplo, resultando no inevitável jogo de polaridades. O que é o ver e o não ver? O objeto e o reflexo? Como definir o papel do interlúdio enquanto elemento essencial e o prelúdio como antecipação do fim? Seria o devaneio um interlúdio para os trechos falados – a “realidade” – ou vice-versa? Estas questões, geradas pelo próprio texto, desestruturam seus limites aparentes, problematizando-os. Se, para Julio Cortázar, o conto assemelha-se a uma fotografia, para Machado, ele se aproxima de uma sonata: relativamente curta, porém divida em partes e pontuada por repetições que fazem do mesmo outro e do fim, a sua própria impossibilidade. Como a própria sonata nas mãos de intérpretes diferentes, o conto se recria a partir da “notação” deixada pelo autor – ele se descontrói e demanda sua desconstrução enquanto inscrição do ato de leitura: reflexos de nossas retinas. O leitor, como Maria Regina, é uma “alma curiosa de perfeição” (TLM, 290), cuja “sonata do absoluto” é o próprio processo de interpretação orquestrado pelas marcas do teatro textual. Como aponta Derrida (1995, p. 62), a leitura da www.fatea.br/angulo À semelhança das estrelas duplas de Maria Regina, o conto machadiano oferece a sua pena como segredo por um lado exemplar e único e, por outro, múltiplo, exemplo exemplar de outros exemplos – a estrela dupla e única. A irremediável insatisfação da protagonista é, assim, refletida – por suas retinas, talvez - na busca incessante do leitor pelo objeto de desejo, o referente, que, sendo jamais alcançado, é deslocado para um fim sempre resilível. A cada fim inalcançado, desdobra-se, assim, um outro fim, um outro absoluto – uma outra alteridade: lá, lá, lá... MACHADO E O CONTO literatura é “ao mesmo tempo uma interpretação sem fim, uma fruição e uma frustração [meu grifo] sem medida: ela pode nos querer dizer, ensinar, dar mais do que o faz ou, em todo caso, outra coisa.” Para Derrida (1995, p. 61-62), a possibilidade do objeto literário está diretamente relacionada ao seu “segredo exemplar, sua estrutura de exemplaridade, pelo qual o “sentido estrito” sempre é ampliado: a dissociação entre “eu e ‘eu’, entre a referência a mim e a referência a (um) ‘eu’ no exemplo do meu eu”, que “não precisa estar marcada nas palavras”. Assim, “lá”, para Maria Regina, logo se tornava exemplo de outro “’lá’”, outro absoluto, entre os quais ela é condenada a oscilar. NOTAS 1. Uso aqui a divisão sugerida em três blocos. 2. Titânia é enfeitiçada por Puck, empregado de seu marido, Oberon, e apaixona-se pelo tecelão Nick Bottom, sem perceber que um encantamento havia lhe dado uma cabeça de burro. Referências ASSIS, Machado de. Trio em Lá menor. In: Seus 30 melhores contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. CUNHA, Auristela Crisanto da Cunha. Machado de Assis em contos: uma constelação de partituras. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2006. DERRIDA, Jacques. Paixões. Campinas: Papirus, 1996. PROUST, Marcel. À la recherche du temps perdu: v. 1: Du cote de chez Swann. Paris: Gallimard, 1992. ângulo 113, abr./jun., 2008, p. 44-49. 49