Freud nocauteia Platão1

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Freud nocauteia Platão1
Richard Rorty
No livro de Jonathan Lear o fundador da psicanálise enfrenta um dos maiores
filósofos de todos os tempos.
Filosofia e psicanálise são tão relacionadas como a fusão e a fissão.
Filósofos procuram traços em comum, psicanalistas idiossincrasias. Desde Platão,
filósofos têm tentado responder a pergunta “Que é para o ser humano uma vida
boa?”. Essa interrogação pressupõe uma “medida” adequada para todos – que
todos nós temos incorporado o mesmo mecanismo (“razão”, “natureza humana”)
que nos direciona para um mesmo objetivo. Todos nos estaríamos aqui com um
mesmo propósito. A filosofia nos ajudaria a entender qual é este propósito. Isto
seria feito nos redirecionando da aparência para a realidade – de uma perspectiva
dos que olham o mundo de uma maneira meramente subjetiva, para uma
perspectiva que busca o que realmente é, e da direção do que meramente nos
parece bom, para o que é realmente bom.
Jonathan Lear é psicanalista e professor de filosofia na Universidade de
Chicago. Ele começou sua carreira como comentador de Platão e Aristóteles, mas
logo ficou fascinado por Freud. Freud disse que cada um de nós direciona sua vida
por mecanismos diferentes, partindo de um capricho excepcional, em grande parte
por fantasias inconscientes. Estas fantasias foram instaladas em nós muito cedo
como resultado da interação de nossos genes com nossas experiências infantis,
nossas circunstâncias familiares e coisas do gênero. Elas determinam o que cada
um de nós considerara felicidade, uma vida plena.
Lear tem gasto muito de sua carreira intelectual tentando dar conta da
tensão entre a afirmação de Platão e Aristóteles de que algumas metas são naturais
para o ser humano e a dúvida freudiana sobre como podemos classificar a vida de
quem tem fetiche por pés, do avarento acumulador (gold-hording), o penitente
auto-flagelador, o pedófilo, o amante socrático da sabedoria, o poeta romântico e o
que aspira governar o mundo em termos de maior ou menor naturalidade. Freud
pode admitir como certo que a sociedade pode intervir parar prevenir a
concretização de alguns desses objetivos (do pedófilo e do aspirante ao poder, por
exemplo). Mas deixando de lado a utilidade social, existe pouco espaço em Freud
para um pensamento imparcial, neutro e livre de fantasias de como os objetivos de
pedófilos, penitentes e filósofos podem ser hierarquicamente ordenados.
Essa diferença profunda entre a perspectiva de um platônico, um
aristotélico e um freudiano, é ocultada pelo fato de que Freud teve fantasias de ser
um cientista cabeça-dura à procura da verdade objetiva, e também por sua
afirmação de que a psicanálise pode trazer os pacientes de volta à realidade. Mas a
realidade em questão não é o “realmente real” de Platão. Quando a utilidade social
é deixada de lado, a realidade em questão é justamente aquela que seria melhor
para o paciente acreditar para evitar ser internado ou se tornar um pouco menos
infeliz. Por todas essas razões, não muitas pessoas tem igual admiração por Platão
e Freud e menos ainda conseguem se mover de um lado a lado entre as discussões
dos filósofos contemporâneos e profundamente técnica literatura psicanalítica
facilmente como Lear – uma facilidade que ficou evidente em sua coleção de
ensaios muito admirada Open Minded (Havard University Press, EUA), publicada
dois anos atrás.
1
Resenha do livro de Jonathan Lear Felicidade, morte e o restante da vida (Hapiness, death and the
Remainder of life ) publicada em Outubro de 2000 no New York Times.
Rorty, R. (2000, October 22). Freud KO’s Plato. New York Review of Books, p. 14. (Disponível
em:http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=9D01E7DF143FF931A15753C1A9669C8B63&sec=
&spon=&pagewanted=1).
O novo livro de Lear, Felicidade, morte e o restante da vida (Hapiness,
death and the Remainder of life), é muito mais audacioso e provocador que seu
predecessor. Em seu brilhante último capítulo Lear se posiciona firmemente,
inclusive com entusiasmo, em favor de Freud contra Platão. Este capítulo se centra
no “Mito da Caverna” – a história contada por Platão em sua República, sobre como
o uso da razão pode nos libertar das correntes que nos mantém na escuridão da
caverna, no mundo da aparência, onde só podemos ver sombras como que
projetadas em uma tela, e nos guiar em direção ao verdadeiro mundo, onde os
objetos podem ser vistos como realmente são, iluminados pela luz que emana do
que Platão chamou de Bem. Essa história de um movimento de ascensão em
direção à luz, culminando em uma gloriosamente unificada visão da totalidade, foi
desenvolvida mais detalhadamente por Agostinho, Spinoza e Hegel. Esta se tornou
a metáfora central – a fantasia central – da filosofia Ocidental.
Na descrição de Lear, Freud caiu nesta fantasia até o momento em que
escreveu Além do princípio do prazer, “mas, na perspectiva dessa obra, a metáfora
da caverna gera uma falsa imagem da totalidade das possibilidades humanas.”
Freud em seu último período nos ajudou a ver “que toda metáfora da caverna (...)
é uma das mais restritas visões da totalidade”. Abandonando essa metáfora, disse
Lear, Freud alcançou “uma profunda rejeição (...) do entendimento teleológico do
ser humano.” Ele nos fez ver que qualquer suposto limite na gama de
possibilidades humanas, qualquer tipo de classificação dos objetivos dos seres
humanos, sempre será uma projeção a partir de algumas escolhas particulares
dentre essas possibilidades, a exteriorização de uma fantasia particular, uma
imagem da existência humana a partir de uma perspectiva particular.
A lição que Lear retira da conquista de Freud não é como a de Sartre de
que “o homem é uma paixão fútil”, mas alguma coisa mais próxima da feliz
percepção de Nietzsche de que o horizonte se move sempre que nos movemos, que
deve existir um contexto para além de todo contexto, uma perspectiva que
transcende qualquer perspectiva anterior. Tanto Nietzsche como Lear admitiriam
que essa imagem de uma expansão interminável é ela mesma provocada por uma
perspectiva particular, personificando uma fantasia particular e que não pode
alegar representar o único verdadeiro objetivo da vida humana.
Lear vai além de Freud em vários sentidos, caminhos que Nietzsche teria
alegremente endossado. Ele escreve, por exemplo, que “se observamos a
civilização em si mesma como um desenvolvimento que passa pelo judaísmo,
cristianismo, psicanálise (...), então poderemos ver a psicanálise como herdeira dos
problemas de seus antepassados. Mas isso seria para a psicanálise prender-se ela
mesma em uma fantasia edipiana (...) Se o judaísmo é o pai e o cristianismo é a
mãe, como eu poderia encontrar meu lugar? A resposta certa não é – como fez
Freud – tentar responder a essa questão, mas desvencilhar-se da fantasia que ela
propõe. Desistindo da fantasia de que a civilização teria uma estrutura de
desenvolvimento.” Deste modo, poderíamos abandonar a idéia de que a reflexão
nos revelára um objetivo que foi determinado antes de nós, também da idéia de
que a civilização ou a espécie estaria seguindo uma trajetória que seria de algum
modo marcada antes de seu avanço. Deveríamos abandonar a teleologia tanto em
pequena quanto em grande escala.
Nesta passagem, e em muitas outras, Lear é crítico quanto a muitas idéias
estranhas do Freud tardio. Ele pensa que o “instinto de morte” não é um bom nome
para indicar o impulso que nos leva a traduzir e transcender toda visão oferecida do
bem, e não concorda com Freud que o processo de acumulo de agressividade
inevitavelmente provocaria o colapso da civilização. Argumenta que a agressividade
não é produzida por um impulso especial, ela “surge do fracasso da mente em seu
esforço de construir significado”, da incapacidade de abarcar todas as coisas em um
conjunto sem restos. Este fracasso talvez seja “o que ocasiona a agressividade,
mas talvez, além disso, seja ocasião para criatividade e crescimento. Poderia ser
também motivo para que coisa nenhuma acontecesse em relação à totalidade,
sendo somente uma interrupção no desenvolvimento comum das atividades
mentais.” Como resultado deste “fracasso”, continua ele, podemos ter o
desenvolvimento de uma psicose permanente, a conversão da religiosidade para o
ateísmo, o início de um tratamento psicanalítico de sucesso, a construção de um
novo sistema filosófico ou somente um soluço em meio ao ranger de dentes
cotidiano.
Lear é muito original e frutífero na maneira em que junta filosofia e
psicanálise partindo da analogia entre a falha dos filósofos em descrever a natureza
humana incluindo nela todas as suas possibilidades e a falha da fantasia de quem é
analisado de manter afastado todas as coisas que preferia não saber. O tipo de
visão absoluta e incorrigível da totalidade que Platão procurava nunca será
experimentada exatamente, assim como nunca existiu o que Lear chama de “a
pessoa de sabedoria psicológica”, alguém que teria alcançado a “absoluta
normalidade psíquica”. O fato de que tal pessoa não pode existir, diz ele, “não é,
contradizendo Freud, uma limitação da psicanálise, mas uma celebração das
possibilidades humanas.”
O livro de Lear é, desafortunadamente, um pouco lento para decolar.
Começa com uma controversa, embora imaginativa, leitura da Ética a Nicomâco de
Aristóteles – um livro que somente professores de filosofia podem amar. Mas seus
possíveis leitores não devem ficar desanimados com o inexplicável título e nem com
a rota de ziguezague até o seu capítulo final, o lugar do enfrentamento de Platão e
Freud. A encenação desse embate é admirável, por isso, este livro despertará o
interesse de qualquer um que tenha sido tocado por qualquer um destes dois
homens.
© Texto do Portal Brasileiro da Filosofia, cedido pelo autor.
Tradução de Marcos Lopes.
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