a compreensão da comunidade joanina em raymond e - PUC-Rio

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Departamento de Teologia
A COMPREENSÃO DA COMUNIDADE JOANINA
EM RAYMOND E. BROWN
Aluno: Douglas Nascimento
Orientador: Isidoro Mazzarolo
Resumo
A história da comunidade joanina depois do evangelho continua, nas epístolas.
1Jo não nomeia autor, nem indica o nome de seu destinário, apesar que desde cedo, fora
considerada como obra do Apóstolo e Evangelista João e, para alguns, o prólogo ao
Evangelho 1. As epístolas 2Jo e 3Jo são cartas escritas por um homem que se designa
como πρεσβύτερος (presbytero: 2Jo 1,1). E possuem um traço comum no que diz
respeito ao seu conteúdo e ao estilo, o que nos permite assegurar duas coisas: a
primeira, seriam provenientes do mesmo autor ou da mesma escola teológica 2; e a
segunda, a crise que a comunidade enfrenta é algo que preocupa muito o autor, que
sente que é “a última hora” (1Jo 2,18). Com isso, as epístolas têm como finalidade
fortalecer, instruir e construir os cristãos joaninos. Mesmo que elas evidenciam o mal, o
seu tom é positivo e construtivo3.
A voz de uma dessas das alas dessa disputa se perpetuou como canônica e é
conhecida por nós através da forma final que obteve o Quarto Evangelho (=QE)4 e
também das três epístolas atribuídas a João. A proposta da pesquisa atual, nesta
pesquisa é investigar as duas últimas fases da comunidade joanina, reconstruindo-a
partir das epístolas joaninas e o QE. Tendo em vista que, os seus tópicos antropológicos
e sociológicos, representam elementos fundamentais da teologia cristã e da pregação da
época.
Introdução
Apresentamos até a agora a concepção do biblista norte-americano Raymond
Brown, em seu livro A comunidade do discípulo amado (2006), descrevemos a sua
teoria a respeito da história da comunidade que estava ligada ao Quarto Evangelho (QE)
e as três epístolas de João. Tendo, como base a sua reflexão, delimitamos a história da
comunidade, nas seguintes etapas:
Primeira fase, corresponde ao período pré-evangélico da história joanina
consciente, que acontece entre 50-80 d.C., na Palestina (ou em algum próximo), o grupo
compunha judeus de diferentes grupos, sendo eles: um discípulo que conhecera Jesus
durante seu ministério (discípulo amado), samaritanos, seguidores de João Batista,
opositores ao templo, prosélitos e gentios.
1
MAZARROLO, Isidoro. As três cartas de São João: exegese e comentário. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.17.
2
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado. São Paulo: Paulus, 2011, p. 100.
3
Ibdem, p.227.
4
Ao longo do trabalho usaremos esta sigla QE para referimo-nos ao texto evangélico joanino.
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Segunda fase, seria marcada pela rejeição do judaísmo farisaico (Jâmnia,
aproximadamente 85 d.C) dirigida aos membros dessa comunidade, que já havia sido
expulsos das sinagogas, mas que agora estavam sendo perseguidos (9,22;16,2-3). A
insistência numa alta cristologia torna as lutas com os “judeus” mais intensas, fazendo
com que esta comunidade dirigisse aos judeus da diáspora e aos gentios, situando-se
definitivamente em território gentio (Ásia menor, provavelmente Éfeso), neste período
se dá a principal redação do evangelho, aproximadamente no ano 90 d.C.
Terceira fase, estabelece dentro da comunidade, uma luta entre dois grupos dos
discípulos de João e que estava causando uma espécie de divisão (1Jo 2,19). Estes dois
grupos estão interpretando o evangelho de maneiras opostas, no que se refere à
cristologia, à ética, à escatologia e à pneumatologia. Os temores e o pessimismo
presentes nas epístolas, faz nos entender, que os separatistas estão tendo maior sucesso
numérico (1Jo 4,5) e o autor quer despertar os seus adeptos para se prevenir contra estes
e seus ensinamentos (2,27; 2Jo 1,10-11).
É verdade que, não sabemos as argumentações deste grupo separatista por meio
de textos provindos de seu próprio movimento. Mas, atrás das oposições expressas nas
epístolas joaninas, é possível identificar, pois todo pensamento tem seu avesso, ou “o
pensamento é um espelho duplo e ambas as faces podem e devem ser nítidas e
desempanadas”5. É neste tempo, que as epístolas serão escritas, aproximadamente no
ano 100 d.C.
Quarta fase, os dois grupos tiveram destinos diferentes, se dissolvendo em
movimentos maiores e mais expressivos. A parcela da comunidade representada pela
epístola entraria na “Grande Igreja”, ou no que Inácio de Antioquia chama “a Igreja
católica”, o que demonstra a aceitação crescente da cristologia joanina da pré-existência
do λόγος (Verbo: Jo 1,1). No entanto, esta incorporação deve ter custado o preço da
aceitação joanina da estrutura autoritária do ensino da Igreja 6, porque o próprio
princípio do παράκλητος como mestre (Paráclito: Jo 14,26) não ofereceu a comunidade
defesa suficiente contra os separatistas. O grupo dos separatistas teriam incorporado
para o docentismo, o gnosticismo, o cerintianismo e o montanismo. Isto,
aproximadamente no séc.II, depois que as epístolas foram escritas.
TERCEIRA FASE – QUANDO FORAM ESCRITAS AS EPÍSTOLAS: LUTAS
INTERNAS
Gênero Literário das Cartas
Das 5.437 palavras diferentes no grego do NT, as três epístolas de Jo só utilizam
303 vocabulários distintos7, com estilo direto, simples e com uma sintaxe muito
elementar. A 1Jo não é um escrito volumoso, é um pouco mais que um sétimo do QE,
pouco menos de um quarto do Apocalipse. Todavia, oferece aos seus leitores alguns
temais fundamentais de reflexão, que procuraremos detectar e elucidar. Teologicamente
a 1Jo é a mais importante, pois ela representa um dos pontos mais altos da teologia
neotestamentária, razão pela qual esta não deve ser esquecida na teologia e nem na vida
cristã8 à ela dedicaremos um interesse especial.
5
BAKHTIN, Mikhail/VOLOSHINOV, Valetin. Freudismo. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado. São Paulo: Paulus, 2011, p. 22.
7
MARSHALL, I. H. The Epistles of John. The New International Commentary on the New Testament.
Grand Rapids: Eerdmans, 1978. p. 02.
8
SCHREINER, Josef. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1977. pp.415-416.
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1Jo é considerada uma epístola, porém o seu escrito não tem a forma de uma carta
antiga. Visto que não possui alguns elementos fundamentais, como: Nome do
remetente, destinatário, local dos destinatários, saudação e bênçãos. Fugindo da
característica do estilo grego-romano, em que o autor e destinatário são, normalmente,
conhecidos. O que faz alguns autores acreditar que tais características seriam do Oriente
Médio (mundo semítico) 9. O vocabulário de 1Jo é muito repetitivo, e as 2Jo e 3Jo são
os menores textos do Novo Testamento, todavia apesar de pequenas, elas possuem a sua
importância devido ao seu contexto próprio. Nessas duas epístolas o seu remetente,
apresenta-se como o “Presbítero” (2Jo 1, 3Jo 1).
Há muitas semelhanças no estilo e no vocabulário da 1Jo e o QE que sem dúvida
procedem da mesma tradição. 1Jo adquire melhor sentido se analisado como um escrito
posterior ao período da aparição do QE. 1Jo parece ser um escrito que se assemelha a
um comentário ao QE, uma espécie de carta pastoral a várias igrejas em forma de
instrução, de homilia 10. Isto fica evidente, na forma relacional que o escritor interpela os
seus leitores, com expressões afetuosas e familiares, sendo elas: filhinhos (2,14);
amados (2,7;3,2.21); filhos queridos (2,1.12.28; 3,7.18; 4,4; 5,21); irmãos (3,13); pais e
jovens (2,13-14). 2Jo apesar da sua brevidade, segue o mesmo estilo e vocabulário que
1Jo. Só na 3Jo, que ocorre uma distinção com relação ao vocabulário e temática, que
estaria mais próximo ao estilo paulino do que joanino 11.
Tais características são próprias do estilo joanino o que nos permite afirmar que a
1Jo é um escrito que fora elaborado no mesmo ambiente do QE12.As frases são
entrelaçadas com a conjunção kai ou são simplesmente justapostas. Existem poucos
verbos compostos13. A linguagem e o estilo destes escritos se aproximam muito do QE,
pois dos 298 lexemas das epístolas, 193 são comunis aos dois escritos14. Muitos dos
termos cristológicos característicos do QE se encontram também na 1Jo, vejamos
alguns: λόγος (aplicado a Jesus: Jo 1,1), ἀλήθεια (verdade, dito pelo Espírito: 1Jo 5,6),
μονογενῆ (aplicado a Jesus: 1Jo 4,9), σωτῆρα (salvador, predicado de Jesus: 1Jo 4,14),
σαρκὶ (1Jo 4,2).
Aparecem vocábulos muito específicos do QE: conhecer (ginoskein), testemunho
(martyria), dar testemunho (martyrein) pai (dito de Deus: pater), mundo (kosmos),
guardar (terein), permanecer (menein), manifestar-se (phanerothenai). Se bem que
existam também ausências de expressões importantes e vocabulários característicos do
QE, como: lei (nomos), glória (doxa), glorificar (doxazein), subir e descer (anabainein e
katabainein), elevar (hypsoun), julgar (krinein), etc.
Embora haja semelhanças estilísticas e teológicas profundas entre o evangelho e
as epístolas, há também diferenças insignificantes que levantam dúvidas se o autor das
epístolas era o evangelista, ou seja, o escritor principal 15. É possível que o autor das
epístolas nem foi o evangelista, nem o redator, mas um dos colaboradores menores do
evangelho, ou alguém que não tenha em absoluto participado da redação do evangelho.
9
MAZARROLO, Isidoro. A Bíblia em suas mãos. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2012, p.228.
GASS, Ildo Bohn. As comunidades cristãs a partir da segunda geração. São Paulo: Paulus, 2010,
p.134.
11
MAZARROLO, Isidoro. As três cartas de São João: exegese e comentário. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.15.
12
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas católicas. São Paulo: Ave
Maria,1999. P.157-158.
13
TUÑI, Josep-Oriol; ALEGRE, Xavier. Escritos joaninos e cartas católicas. São Paulo: Ave
Maria,1999. P.157.
14
MAZARROLO, Isidoro. As três cartas de São João: exegese e comentário. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.19.
15
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 99.
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Apesar, de não obtermos uma decisão determinante, haja vista que esta questão ainda
está aberta, podemos supor que o autor de 1Jo pertence ao círculo mais estreito em torno
do evangelista ou que ele dependa diretamente desse círculo 16.
E o fato de os mesmos pontos doutrinais e morais estarem sendo combatidos em
1Jo e em 2Jo e tanto 2Jo quanto 3Jo estarem se ocupando da aceitação de instrutores
itinerantes interligam as epístolas e torna provável que todas as três tenham provindo da
mesma fase da história joanina. Brown vai desenvolver uma tese de uma escola joanina
de escritores que tinham em comum uma posição teológica e um estilo 17.
Local da Comunidade Joanina
A origem da comunidade joanina situa-se na Palestina, tendo o próprio Discípulo
Amado seguido o movimento de João Batista (Jo 1,35-51), que consideramos fundador
da comunidade joanina, manteve-se em contato com os círculos batistas e esforçou-se
por conquistar seus antigos companheiros na fé cristã (Jo 3,22-26). Há uma adesão em
certo momento de samaritanos (4,35-38), que contribuíram com a teologia joanina 18.
Em certo momento, o Discípulo Amado deixa a Palestina (Jo 7,35) para a Diáspora
(provavelmente para Éfeso).
O movimento migratório judaico remota à época da deportação para a Babilônia,
no século VI a.C., e não cessou durante todos os séculos de dominação estrangeira na
Judéia, e intensificou na dominação romana. O período de grandes migrações foi o do
assédio e da ocupação militar romana a partir do século 66 d.C. que concluiu com a
destruição de Jerusalém quatro anos mais tarde. As facilidades representadas pelas
estradas e navegações proporcionadas por Roma coadjuvaram para migrações judaicas
nas mais diversas direções especialmente em busca de um futuro melhor 19. Eusébio
também atesta a fuga dos cristãos de Jerusalém para Pella, no momento da Guerra
Judaica (66 – 70 d.C).
“[...] Também o povo da igreja de Jerusalém, por seguir um oráculo
enviado por revelação aos notáveis do lugar, receberam a ordem de mudar de
cidade antes da guerra e habitar certa cidade da Peréia chamada Pella” 20.
Ficou estabelecido que muitos judeu-cristãos se instalaram em Éfeso e suas
proximidades, mais ou menos nesta época. Numa carta do Polícrates, bispo da igreja de
Éfeso a Vítor, bispo de Roma (cerca de 190 d.C.) podemos perceber isto:
“Os bispos da Ásia, por outro lado, com Polícrates à frente, seguiam
insistindo com força que era necessário guardar o costume primitivo que lhes
fora transmitido desde antigamente. Polícrates mesmo, numa carta que dirige a
Victor e à igreja de Roma, expõe a tradição chegada até ele com estas palavras:
“Nós, pois, celebramos intacto este dia, sem nada juntar nem tirar. Porque
também na Ásia repousam grandes luminárias, que ressuscitarão no dia da
vinda do Senhor, quando vier dos céus com glória e em busca de todos os
santos: Felipe, um dos doze apóstolos, que repousa em Hierápolis com duas
filhas suas, que chegaram virgens à velhice, e outra filha que, depois de viver no
Espírito Santo, descansa em Éfeso. E também João, o que se recostou sobre o
16
17
18
19
20
KÜMMEL, Werner G. Síntese Teológica do Novo Testamento. São Paulo: Teológica, 2003. p. 316.
Ibdem, p. 100.
COTHENET, Edouard. Os escritos de São João e a epistola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988. p.61.
ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João. São Paulo: Paulus, 1997.p. 158.
CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002. III.V.III
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peito do Senhor e que foi sacerdote portador do pétalon, mártir e mestre; este
repousa em Éfeso. E em Esmirna, Policarpo, bispo e mártir. E Traseas, também
ele bispo e mártir, que procede de Eumenia e repousa em Esmirna. E que falta
faz falar de Sagaris, bispo e mártir, que descansa em Laodicéia, assim como o
bem-aventurado Papirio e de Meliton, o eunuco, que em tudo viveu no Espírito
Santo e repousa em Sardes esperando a visita que vem dos céus no dia em que
ressuscitará de entre os mortos? Todos estes celebraram como dia da Páscoa o
da décima quarta lua, conforme o Evangelho, e não transgrediram, mas seguiam
a regra da fé. E eu mesmo, Polícrates, o menor de todos vós, (faço) conforme a
tradição de meus parentes, alguns dos quais segui de perto. Sete parentes meus
foram bispos, e eu sou o oitavo, e sempre meus parentes celebraram o dia
quando o povo tirava o fermento. Portanto, irmãos, eu com mais de sessenta e
cinco anos no Senhor, que conversei com irmãos procedentes de todo o mundo
e que recorri toda a Sagrada Escritura, não me assusto com os que tratam de
impressionar-me, pois os que são maiores do que eu disseram: Importa mais
obedecer a Deus do que aos homens." Logo acrescenta isto que diz sobre os
bispos que estavam com ele quando escrevia e eram da mesma opinião: Poderia
mencionar os bispos que estão comigo, que vós pedistes que convidasse e que
eu convidei. Se escrevesse seus nomes seria demasiado grande seu número.
Eles, mesmo conhecendo minha pequenez, deram seu assentimento a minha
carta, sabedores de que não é em vão que levo meus cabelos brancos, mas que
sempre vivi em Cristo Jesus. 21"
Podemos então falar que uma boa porcentagem das comunidades cristãs das quais
emanou a maioria dos escritos do Novo Testamento encontrava-se na Ásia Menor22.
Calcula-se que pelo menos dois terços dos judeus viviam no século I na diáspora, longe
da Judéia, porcentagem que cresceu consideravelmente a partir da década de 70 d.C.
Segundo Fílon de Alexandria em sua apologia perante Roma, diz:
“Os judeus são tão numerosos que não podem ser contidos num só
país, e por isso se instalaram em muitos dos países prósperos da Europa e
da Ásia”23.
A exclusão dos judeu-cristãos repercute até no livro do Apocalipse, onde se falará
συναγωγὴ τοῦ σατανᾶ. (Ap 2.9). A comunidade joanina, dedicou-se a proclamar a fé
crista num contexto helenista (Jo 3,16-17), mostrando que a fé cristã era a resposta à
aspiração da Verdade fundamental24. Como diz G. MacRae:
“Que João pode ter sido unicamente universalista ao apresentar Jesus
numa grande quantidade de vestes simbólicas, procurando fazê-lo atraente para
21
O testemunho de Polícrates sobre as “grandes luminárias” que ilustram a Ásia - CESARÉIA, Eusébio de.
História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002. V.XXIV. I-VIII. Demonstra o apego pelas tradições
dos bispos, a celebração da Páscoa, e o desenvolvimento das concepções milenaristas que são sinais que
revelam a importância das contribuições judeu-cristãs na Ásia Menor.
22
ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João. São Paulo: Paulus, 1997.p. 157.
23
Fílon de Alexandria, sendo citado em: ARENS, Eduardo. Ásia Menor nos tempos de Paulo, Lucas e João.
São Paulo: Paulus, 1997.p. 159.
24
COTHENET, Edouard. Os escritos de São João e a epistola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988. p.62.
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homens e mulheres de todas as classes e tradições e culturas, de modo a fazer
entender que Jesus transcende a todas as ideologias” 25.
Contexto das Epístolas
O prólogo da 1Jo começa com a apresentação do λόγου, como conteúdo da
tradição e razão do testemunho que esta comunidade recebeu.
Ὃ ἦν ἀπ᾽ ἀρχῆς, ὃ ἀκηκόαμεν, ὃ ἑωράκαμεν τοῖς ὀφθαλμοῖς ἡμῶν, ὃ
ἐθεασάμεθα, καὶ αἱ χεῖρες ἡμῶν ἐψηλάφησαν περὶ τοῦ λόγου τῆς ζωῆς.
(1Jo 1,1)
O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos
olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da Vida.
(1Jo 1,1)
O autor das epístolas apresenta-se como testemunha fidedigna da tradição que
recebeu (1Jo 1,1-4). Se a Carta data do final do século I d.C. é pouco provável que
houvesse algum discípulo vivo. No entanto, é possível que ele tenha sido da segunda
geração, visto e conhecido muitos resultados da ação de Jesus e dos que foram as
testemunhas oculares, como apóstolos e discípulos26. Ele quer, portanto, elucidar que o
seu conteúdo não é fruto da reflexão ou da especulação intelectual, mas da experiência
de vida e da comunhão da comunidade com o λόγου, e que só é possível atingir esse
mistério pela fé (1Jo 1,2)27.
A carta assume características da convivência fraterna, alicerçada no amor, nos
compromissos da vida. Tais relações afetuosas são pautadas pelo Ἐντολὴν καινὴν
(Novo Mandamento: Jo 13,34) que integra os discípulos a amar, que está acima de
qualquer outro conceito. Esta “nova família” pode ser a biológica ou também a própria
comunidade, onde se dá a convivência e o respeito à alteridade, pois estão todos numa
única perspectiva (At 2,42-46), utilizando-se do mesmo ensinamento que é a do
παράκλητος (1Jo 2,20.27). Segundo Schnackenburg, afirmação da opção pelo amor
fraterno implica diretamente numa outra opção que é a rejeição ao mal 28. É passar da
treva do mal para a luz verdadeira que é o próprio Cristo (1Jo 2,8-11). O amor na nova
família é diferente do amor mundano (1Jo 2,16), pois a dinâmica do amor não admite a
convivência com as trevas, o pecado ou a mentira, pois ele é capaz de restabelecer a Luz
entre os irmãos29, fazendo-os viver na dimensão de uma nova realidade mais construtiva
(1Jo 2,5) onde o amor e o perdão encontram lugar privilegiado. Os cristãos são filhos de
Deus, que devem obedecer aos mandamentos de Deus, à santificação e ao amor de Deus
e dos irmãos.
O autor de 1Jo deixa alerta a grande responsabilidade com as igrejas no lugar
onde se encontravam. Pelas cartas joaninas é possível entender que a unidade havia sido
amenizada e que se tinha perdido em parte. E o foco do autor de 1Jo é cisão interna da
comunidade, isto devido aos problemas pastorais que os cristãos joaninos estavam
vivenciando: havia falsos mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. O
25
Brown citando G. MacRae em seu livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado,
São Paulo: Paulus, 1999, p. 60.
26
Ibdem,p.48.
27
CHARPENTIERP, Etienne. Para Leer el Nuevo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 1990. p.133.
28
SCHNACKENBURG, R. Cartas de San Juan – Version, introdución y comentario. Barcelona: Herder,
1980.p. 121.
29
MAZARROLO, Isidoro. A pedagogia na família segundo 1Jo 2,12-14. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v.
85, p. 90-102, 2005.
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autor de 1Jo escreve com tanta urgência não porque esperasse que esses falsos profetas
(4,1) lesse sua obra e se convertesse, mas sim porque tais líderes empregava um esforço
missionário permanente para minar a adesão de seguidores. O autor espera que, através
da sua obra, ele detenha o êxito que estes falsos profetas estão tendo, pois todo o mundo
está lhes escutando (4,5) 30. Esta resistência oferecida pelos opositores do Evangelho e
seus anunciadores, dificultava a implantação da mensagem evangélica. Desde modo, o
autor vai identificar tais pessoas, como sendo ἀντιχρίστου (anticristo: 1Jo 4,3). Por isso
o autor vai advertir que os cristãos não permitam que tais atravessem a porta de sua
casa-igreja (2Jo 1,10).
Nos aspectos teológicos que a epístola vai acentuando, percebemos: a clareza que
Jesus veio “na carne” (4,2). Com o intuito de repreender as tendências que negavam a
encarnação de Jesus Cristo e pretendiam separar “Jesus divino” de “Jesus crucificado”,
isto também é presente no prólogo do QE. Em 1Jo 5,6 diz que: Jesus não veio só pela
“água”, mas também pelo “sangue”, sobretudo se percebemos que o tema da fé em
Cristo está ligado ao amor de Deus. Em 1Jo5,4 diz que: “e a vitória que vence o mundo
é a nossa fé”, destacando a nova formulação faz verdades cristãs. Neste sentido a
epístola ajudou a Igreja a manter-se fiel à sua essência e ao seu “espírito” 31.
Em 2Jo o presbítero tem uma grande preocupação com os pregadores itinerantes
ou visitantes ocasionais, que anunciavam falsas doutrinas aos discípulos de Jesus Cristo,
e confundiam as novas comunidades e os cristão imaturos (2Jo 1,12). As epístolas 1Jo e
2Jo são escritas a diferentes igrejas distantes do autor, que pretende visitá-las (2Jo 1,12;
3Jo 1,14). Percebemos que esta carta está ligada a uma igreja (v.13) 32, mas que escreve
instruções para outra (v.1: “A Senhora eleita e a seus filhos”) o que nos dá entender que
a comunidade joanina não se encontrava numa mesma área geográfica, mas em
diferentes cidades. Podemos entender que isto é possível já que os cristãos primitivos se
reuniam em casas familiares que se tornavam igrejas, que não poderiam ter muitos
membros33.
A primeira aparição de Jesus, logo após a morte, se dá a portas fechadas, na casa
onde eles se encontravam por medo dos judeus (Jo 20,19). Em Pentecostes, eles
estavam também reunidos a portas fechadas, de uma casa, e receberam o Espírito Santo
(At 2,1-2). As comunidades não tinham instituição jurídica, ritos e formulas, mas um
espaço físico onde se celebrava a fé e faz a memória dos ensinamentos recebidos. As
Igrejas, como espaços oficiais, suntuosos e públicos, só aparecem no início do IV
século, quando o cristianismo é assumido como religião oficial do Império Romano 34.
As primeiras Igrejas cristãs nascem num sinônimo de muitas sinagogas, isto
porque, o cristianismo vivia sendo perseguido pelos judeus e logo depois pelo império
romano, assim os cristãos faziam suas reuniões em casas particulares, a fim de
sobreviver e não serem identificados pelos perseguidores. As Igrejas eram as pessoas,
não os ambientes físicos. “Onde estiverem dois ou mais reunidos em meu nome, ali
estou no meio deles” (Mt 18,20). Nos tempos de Paulo, essas Igrejas não tinham
prédios, não tinham manuais, pouquíssimos textos, ausência total de rituais. Tinham a
pregação e a memória dos mestres para debater, discutir ou discernir, divididos,
30
BROWN, R. E. Las Iglesias que lós Apostoles nos dejaron. Bilbao: Desclee de Brouwer,1986,p. 108.
THUSING, Wilhelm. As Epístolas de São João. Petrópolis: Vozes, 1983.p. 10.
32
O termo “igreja” é justificado pelo uso em 3Jo 6.9.10, cito aqui: BROWN, R. E. A Comunidade do
Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 97.
33
O Apóstolo Paulo visitava numerosas casas-igreja na comunidade romana (Rm 16,5.14-15), e talvez
31
em Tessalônica também (1Ts 5,27).
34
MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61.
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provavelmente, em dois momentos: a. a oração; b. a benção e fração do apo (1Co 11,1734). As pregações eram feitas nas casas, nas praças das cidades, nos lugares onde o
povo se encontrava, nos centros de transito e comércio. Um dos locais usados como
ponto de partida eram as sinagogas (At 13,6.14;14,1). Outro eram os lugares públicos,
onde debatiam as teses com o publico ou com estudiosos religiosos, caso fossem
convidados (At 17,19ss), ou nas praças e lugares de comércio (At 17,17)35.
Diferente das outras epístolas, em 3Jo, o presbítero escreve a Gaio elogiando-o
juntamente com seus “filhos” (comunidade) que são fiéis a Verdade e pela sua
hospitalidade para com os missionários itinerantes (vv.1,5-8). Igualmente, Demétrio
recebe louvor pelo seu testemunho e desempenho (v.12). O presbítero se dirige a Gaio,
porque na carta anterior à “Igreja” (v.9) não foi aceita por Diótrefes que ambiciona o
primeiro lugar na Igreja. Este se recusa a receber quaisquer missionários e está
expulsando da Igreja todos os que o fazem (v.10), ignorando assim a acolhida que deve
ser ter com os “enviados” (Jo 13,20), pois estes representavam aquele que os enviou.
Nestas cartas o presbítero promete fazer uma visita o mais depressa possível, mas em
3Jo ele diz que cuidará da hostilidade de Diótrefes contra ele (v.14). As cartas joaninas,
portanto, são uma resposta a essa nova situação crítica dentro da própria comunidade 36.
Escola Joanina
No final do século I em muitas áreas estava se desenvolvendo uma estrutura
eclesial na qual um grupo de “presbíteros” eram responsáveis pela administração e pelo
cuidado pastoral da Igreja, presente no Novo Testamento (At 14,23; 20,17.28-30; 1Pd
5,1; Jd 5,14; 1Ts 3,1-7; 5,17-22; Tt 1,5-11). O termo presbítero pode ser usado para
designar a geração de instrutores depois das testemunhas, ou seja, pessoas que podiam
ensinar numa cadeia de autoridade, porque elas tinham visto e ouvido outras pessoas
que, por sua vez, tinham visto e ouvido Jesus 37.
O Paráclito, Espírito Santo, é o mestre por excelência (Jo 14,26;16,13) da
comunidade. E o mestre humano, mesmo o Discípulo Amado, por sua vez, seria aquele
que agiria como uma testemunha da tradição que o Paraclito interpreta (Jo 19,35;21,24;
1Jo 2,27). A comunidade joanina é aquela que percebe na atuação do Discípulo Amado
a existência do Paráclito, que estava em plena atividade atrás da interpretação da
tradição que era transmitida pelo Discípulo Amado. Depois da morte do Discípulo
Amado, a comunidade entendeu que a obra do Paráclito continuava nos discípulos do
Discípulo Amado que transmitiu a tradição e ajudou a formulá-la.
O segundo sentido de presbítero, modificado pela ótica joanina, poderia explicar
porque o presbítero das epístolas joaninas fala como parte de um coletivo “nós” que dá
testemunho do que fora visto e ouvido desde o princípio (1Jo 1, 1-2), e isto os leva ao
ponto principal da “escola joanina” 38.
É provável que no tempo do Discípulo Amado estabeleceu-se um círculo, cuja
importância se reforçou após sua morte. Este círculo de teólogos e mestres seguiu
cultivando e estudando suas tradições, deste grupo surgiram os escritos joaninos que
percebemos nas afirmações, no plural: “Sabemos que seu testemunho é verdadeiro” (Jo
21,24; 1Jo 1,2-3). Estabelece-se aqui, portanto, uma ligação entre o passado e o começo
e o presente da pregação, num esforço evidente para vincular a tradição e transmitir o
que fora recebido: “O que vimos e ouvimos, isso vos anunciamos” (1Jo 1,3).
35
36
37
38
MAZARROLO, Isidoro. Filemon, a carta da alforria. Rio de Janeiro: Mazzarolo editor, 2011, p.61-62.
GASS, Ildo Bohn. As comunidades cristãs a partir da segunda geração. São Paulo: Paulus, 2010. p.132.
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 105.
Ibdem, p. 104-105.
8
Departamento de Teologia
Desenvolveu-se um cultivo e uma cultura da tradição, que está relacionada com essa
escola39. R. A. Culpepper estende o termo “escola” a toda à comunidade joanina, pois
para ele, todos participam da tradição que veio do Discípulo Amado e dão testemunho
(Jo 15,27)40.
Brown, no entanto, percebe que há um esforço em demonstrar um discipulado
joanino que fosse democrático, pois muita das vezes o autor está se incluindo ao mesmo
nível que seus leitores que são seus ἀδελφοὶ (irmãos: designação que aparece quinze
vezes em 1Jo), contudo, em outras ocasiões seu “nós” representa os transmissores e
intérpretes da tradição que são distintos de um “vós” que são os receptores da
mensagem (1Jo 1,1-5).
Inevitavelmente, alguns teriam estado mais próximos historicamente do Discípulo
Amado, porque alguns eram mais ativos em escrever e dar testemunho. É para este
grupo então, que Brown designa o termo “escola joanina” dentro de uma comunidade
mais ampla. Estes incluem o evangelista, o redator do evangelho, e quaisquer outros
escritores envolvidos, o autor das epístolas, e os transmissores da tradição 41.
O presbítero fala como representante desta escola joanina (1 Jo 1,1) , não porque
ele mesmo tenha sido uma testemunha ocular, mas por causa da aproximação da escola
joanina de discípulos do Discípulo Amado. Assim, podemos dizer que Jesus tinha visto
Deus, o Discípulo Amado tinha visto Jesus, e a escola joanina participa de sua tradição.
No período em que o evangelho foi escrito, o testemunho do Discípulo Amado era
suficiente, e a comunidade estava unida em aceitar esse testemunho. Mas, no período
em que as epístolas foram escritas, notamos que há grupos interpretando a tradição do
Discípulo Amado. Destaca assim, a atuação do presbítero que tenta corrigir seus
adversários como parte de uma escola joanina de discípulos que possuem a doutrina
correta, que realmente conhecem o pensamento do Discípulo Amado, e estes, portanto
são suas testemunhas (1Jo1,1).
Cisma Joanino
A redação desta epístola foi feita pela voz joanina, para o grupo que ficou. Desde
o primeiro capítulo percebemos a maneira como o autor utiliza-se do discurso do outro
grupo para corrigir as supostas distorções consideradas heréticas dos dissidentes e
apascentar o grupo que permaneceu na comunidade, de forma a evitar que outros se
levantassem com o mesmo discurso. Desta maneira, elas constituem este corpo de
pensamento, e nas páginas que seguem, os temas predominantes são: cristologia, ética,
escatologia, pneumatologia (dos separatistas joaninos), vistas através dos olhos do autor
de 1Jo42.
Brown apresenta o ponto de vistas dos separatistas mostrando que eles possuem
uma lógica e um caráter persuasivo, dadas as suas pressuposições. Nas diversas
tentativas de delinear um substrato que explique a teologia separatista, tem se colocado
uma influência externa que levou os cristãos a se desviarem do verdadeiro evangelho
joanino. É comum acreditar que os separatistas tivessem ligações com um movimento
herético do segundo século, conhecido como gnosticismo. Não podemos negar, que o
pensamento reconstituído dos adversários de 1Jo tem certas semelhanças com o
pensamento gnóstico que conhecemos. K. Weiss chamou a atenção para o fato de que a
39
40
GNILKA, Joachim. Teología Del Nuevo Testamento. Madrid: Editorial Trotta, 1998. p. 325.
R. A. Culpepper sendo citado por: BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo:
Paulus, 2011, p. 106.
41
42
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 106.
Ibdem, p. 108.
9
Departamento de Teologia
maior parte das marcas características dos sistemas gnósticos falta completamente no
pensamento dos separatistas, o qual, de fato, contém características às quais se
opuseram os últimos gnósticos 43. Um requinte da teoria gnóstica é que os separatistas
eram docetas que negavam a realidade da humanidade de Jesus 44. Cerinto tinha sido
proposto como seu chefe, com base em tradições do final do século segundo de que ele
era inimigo de João, filho de Zebedeu 45.
Para Brown, o pensamento separatista reconstituído não se enquadra exatamente
nem no pensamento doceta, nem no pensamento cerintiano, paralelos mais perfeitos
encontra-se no pensamento dos adversários de Inácio de Antioquia, que podemos
perceber reconstituindo a critica que ele faz de seus adversários. Uma vez que Inácio
estava diante de situações eclesiais somente uns dez anos depois que as epístolas foram
escritas46.
Examinando a tese de que as ideias separatistas peculiares provieram de um grupo
que tinha sido admitido na comunidade joanina. Algumas vezes joga-se a culpa num
influxo de pagãos ou gentios, frequentemente com a suposição errônea de que não havia
gentios na comunidade joanina quando o evangelho foi escrito. Outros pensam num
grupo judeu de língua grega cujas ideias conteriam uma mistura de religião filosófica
helenista, em virtude da menção de falsos profetas (1Jo 4,1) e da exigência por parte do
autor de testar os espíritos, outros ainda pensaram numa invasão de carismáticos
errantes. Não há como desaprovar tais hipóteses, porém elas não passam de
suposições47.
Brown acredita que tanto o autor das epístolas quanto os separatistas conheciam o
quarto evangelho, mas a interpretavam diferentemente. Os adversários não eram
estranhos denunciáveis à comunidade joanina, mas produto do próprio pensamento
joanino, justificando suas posições com o evangelho joanino e suas implicações 48. Não
está se afirmando que o evangelho joanino levou inevitavelmente à sua posição nem à
posição do autor, tampouco é claro que ambas as posições sejam uma distorção total do
evangelho joanino. Subsequente a Igreja, aceitando 1Jo no cânon da Escritura, mostrou
que aprovou a interpretação do autor e não a dos seus adversários.
43
Brown citando K. Weiss em seu livro: BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo:
Paulus, 2011, p. 110.
44
COTHENET, Edouard. Os escritos de São João e a epistola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988. p.
175: “Antes de tudo, temos de nos lembrar do postulado que sustentava toda a filosofia grega desde
Platão: a perfeição consiste nas ideias invisíveis e eternas; as realidades históricas contingentes trazem,
pelo contrário, a marca da corrupção. A partir deste estado de espírito, a mensagem evangélica era
inaceitável como se apresenta. Não se podia conceber um Deus perfeito que se dê a conhecer sob traços
de homem limitado a um país, a uma época e submetido, sem dúvida, às transformações e à morte. Na
época helenista, podemos ver forte corrente dualista opor a matéria ao espírito, de tal forma que o
homem procura a salvação pelo desapego de tudo o que o conserva preso às coisas da terra; assim
sendo, não convinha a Cristo Salvador subjugar-se ao corpo humano , se o fez para permitir que o
vissem e o ouvissem, convinha estabelecer as distinções necessárias para que seu ser profundo não fosse
atingido. Jesus teria somente a aparência da natureza física”.
45
Conhecemos o nome deste homem e as ideias que professava, através de Ireneu (Adversus Haereses,
livro 1, 26,1).
46
47
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 110.
Ibdem, p.111.
48
Ibdem, p.111.
10
Departamento de Teologia
Na tradição havia textos de ambos os lados do problema. Assim, cada uma das
partes disputantes alegava que sua interpretação do evangelho era a verdadeira. No
estilo de argumentação do autor, ele não nega as afirmações principais de seus
adversários, mas as qualifica. Se as afirmações principais de seus adversários são tiradas
da tradição joanina, elas são também verdadeiras para o autor. E assim ele deve procurar
mostrar que seus adversários não estão se atentando às implicações destes princípios
(1Jo 2,4.6.9s). Algumas alusões, absolutamente explícitas aos adversários da fé,
caracterizam duas seções (2,18-26; 4,1-6); em outra passagem, podemos perceber ser
ainda retomada e condenada a pretensão deles, como por exemplo, em 1,8: “Se
dissermos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos e a verdade não está em
nós”, ou em 2,9: “Aquele que diz estar na luz, mas odeia seu irmão está nas trevas até
agora” 49.
As advertências sobre os inimigos fazem, alguns exegetas, acreditarem serem os
mesmos combatidos por Inácio de Antioquia, na época, se salientaram Cerinto e os
Nicolaítas como opositores das teses cristãs. Esses inimigos viscerais do Evangelho
eram conhecidos como anticristos (1Jo 2,18.22;4.3;2Jo 1,7), pois, como Paulo fala,
eram também inimigos da cruz de Cristo (Fl 3,17-21), e podem ser os mesmos do
ambiente do Ap 2,2-4, onde eram denunciados os que se diziam apóstolos mas não o
eram, eles não passavam de mentirosos visto que se infiltravam nas comunidades cristãs
ensinando coisas diferentes, exigindo a observância de costumes judaicos concernentes
aos alimentos e ritos (um exemplo disso aconteceu na Antioquia, relatado em Gl 2, 114), de modo análogo, os Nicolaítas, representantes da insubmissão e oposição à
autoridade e de rituais de sacrificios não cristãos (Ap 2,20). Outra corrente de perigos
vinha pela gnose, com aqueles que se dizem dos nossos, mas não o são (2,19),
rompendo com a fidelidade da comunidade. Nunca pertenceram à comunidade, mas de
fato quem são eles? O que eles ensinam na está dito no texto, mas se percebe que não
reconhecem e não confessam Jesus como o Cristo, e, por isso, o autor os denomina de
“anticristos” (1Jo 2,18;4,3). Eles também são caracterizados como mentirosos e
enganadores (1Jo 2,21.22.26-27;3,7).50 Entre os esses inimigos estavam certamente os
docetistas, os gnósticos e os poderosos do império que espalhavam teorias dualistas,
ficcionistas e fantasiosas a respeito da paixão e da ressurreição de Jesus51. Eusébio,
citando Ireneu, afirma que a Besta ou anticristo já era conhecido de todos na época:
"Nós pois, não nos arrisquemos a manifestarmo-nos de maneira segura
sobre o nome do anticristo, porque, se houvesse sido necessário na presente
ocasião proclamar abertamente seu nome, ter-se-ia feito por meio daquele que
também tinha visto o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas
quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano. 52"
49
COTHENET, Edouard. Os escritos de São João e a epistola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988.
p.170.
50
TILBORG S. van. “Primeira Carta de João”, in: TEVSEN, G. et alii. “Cartas de Pedro, João e Judas. São
Paulo, Loyola, 1999.p. 187.
51
MAZARROLO, Isidoro. As três cartas de São João: exegese e comentário. Rio de Janeiro: Mazzarolo
editor, 2010, p.23.
52
CESARÉIA, Eusébio de. História Eclesiástica. São Paulo: Novo Século, 2002. V.VIII. VI
11
Departamento de Teologia
A crise na comunidade de João começa quando os falsos mestres se levantam e
ensinam novas teorias, diferentes das postuladas pela tradição joanina (1Jo 1,4;2,7ss) 53.
Esses falsos mestres não são dos nossos (1Jo 2,19). Podemos perceber, que o autor está
em desvantagem em sua argumentação, e suas refutações são curiosamente indiretas. Os
seus adversários poderiam dar a impressão que de conhecer o evangelho joanino, mas,
em sua opinião, eles estão distorcendo precisamente porque ignoram a tradição que
constitui o seu substrato54. O autor preocupado com a situação considera de extrema
importância escrever a comunidade, a fim de que fiquem firmes no ensinamento dos
apóstolos e naquilo que ele mesmo havia ensinado 55.
I- AS ÁREAS DE DEBATE
Segundo Brown56, as áreas de cristologia, de ética, de escatologia, e
pneumatologia, foram os principais pontos de conflito entre o autor e seus adversários.
Descreveremos então a posição dos separatistas para ver se ela pode ter saído do
evangelho joanino, e também a interpretação do autor que se opõe as separatistas. O que
está em jogo não é diretamente a conduta moral, mas, antes de tudo, a própria definição
do cristianismo, a autenticidade do novo relacionamento entre Deus e os homens
instituídos por Jesus Cristo57.
A. Cristologia
Uma cristologia muito elevada foi o ponto central das lutas históricas da
comunidade joanina com os judeus e com os outros cristãos, na época em que o
evangelho foi escrito. A crença na preexistência do Filho de Deus foi à chave da
contenda joanina de que o verdadeiro crente possuía a própria vida de Deus, e o QE foi
escrito par fortalecer a fé dos cristãos joaninos sobre este ponto (20,31).
O autor insiste claramente que Jesus é o Cristo (Messias), o Filho de Deus; e todo
aquele que negar isto é mentiroso e um anticristo (2,22). O autor que crê que a “Vida
eterna que estava com o Pai nos apareceu” (1Jo 1,2), que o “Filho de Deus se
manifestou” (3,8), que “Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo” (4,9), que “o Pai
enviou seu Filho como Salvador do mundo” (4,14), que Jesus é aquele que veio
(5,5.20), e que Jesus é o “verdadeiro Deus” (5,20). Contudo, o autor desafiará as
conclusões erradas que seus adversários tiraram desta teologia encarnacional
comumente admitida, e assim ele tem o cuidado de acompanhar as afirmações que
implicam a preexistência com outras afirmações que salientam a carreira do Verbofeito-carne, uma ênfase mais formal e explícita do que se encontra no QE58.
No prólogo de 1Jo e o prólogo do QE, aparecem os mesmos termos (“princípio”,
“palavra”, vida”), mas com uma significação diferente. Enquanto para o QE (1,1) o
“princípio” é antes da criação , para a epístola (1,1) “o que era desde o princípio” é
53
Uma crise semelhante a esta pode ser encontrada em Filipos (Fl 1,16-17) e na Galácia (Gl 1,6-9),
onde aparecem falsos missionários infiltrados nas comunidades e criando confusões nos ensinamentos
de Paulo.
54
55
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 112.
MARSHALL, H. The Epistles of John,p.14
Daqui para frente iremos basear nossa pesquisa no livro: BROWN, Raymond E. A Comunidade do
Discípulo Amado, São Paulo: Paulus, 1999, pp. 114-171.
56
57
COTHENET, Edouard. Os escritos de São João e a epistola aos hebreus. São Paulo: Paulinas, 1988.
p.171.
58
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, p. 125.
12
Departamento de Teologia
paralelo ao “o que ouvimos...o que vimos...o que contemplamos... e nossas mãos
apalparam”, em outras palavras, o princípio do ministério, quando Jesus começou o seu
primeiro relacionamento com os seus discípulos. Em outras palavras para o autor da
epistola a Palavra da vida é a mensagem evangélica da carreira vivificante de Jesus
entre os homens. o autor está tentando eliminar seus adversários insistindo numa
confissão pública de que este envio ou esta vinda foi em carne humana (1Jo 4,2; 2
Jo1,7). Sem esta modalidade humana, o autor afirma, a vida eterna não se teria
manifestada a nós (1,1-2)59.
B. Ética
Se a cristologia foi o primeiro campo de batalha entre o autor e os separatistas,
houve também escaramuças sobre as implicações da cristologia no comportamento
cristão.
1- Intimidade com Deus e impecabilidade
Em 1Jo 1,8 e 10 há uma afirmação dupla dos adversários de ausência de pecado,
que é a primeira vista ser estranha a tradição joanina. Os separatistas estavam baseandose no QE para justificar a sua ausência de pecado, numa analogia entre os cristãos e
Jesus. Jesus é o Filho de Deus, e os que creem nele são filhos de Deus (Jo 1,12). Os
separatistas podem ter afirmado que, tornando-se filhos de Deus, eles ficariam sem
pecado, exatamente como o Filho de Deus era sem pecado (8,46) e que o Espírito que
eles receberam dava-lhes o poder sobre o pecado (20,22)? Que aquele que crer no Filho
não será julgado (3,18; 5,24)? Os adversários, no seu perfecionismo, vêem a ausência de
pecado como realidade e não como uma obrigação. O autor então na sua afirmação
associa o desafio da ausência do pecado com o fato de ter nascido de Deus (1Jo 3,5-6;
3,9). O autor então vê a ausência do pecado como a própria implicação da geração
divina e por isso uma obrigação do cristão. Entendendo, que o seu “cometer pecado”
significa “não cometer consequentemente pecado”, pois noutra parte ele reconhece que
os cristãos podem pecar, refutando o perfecionismo dos seus adversários (1Jo 2,1)60.
2- Observância dos mandamentos
Outra maneira de como o autor de 1Jo contesta o perfecionismo dos adversários é
relacioná-lo com “a observância dos mandamentos” (2,3;3,22 e 24:5,2-3). Sem mais
cerimônias ele chama de mentiroso quem disser: “Eu conheço Deus sem observar os
mandamentos” (2,4). A explicação mais plausível para da atitude dos separatistas diante
dos mandamentos é que eles não dão nenhuma importância salvadora ao
comportamento ético, e que esta posição tenha derivado da sua cristologia. O autor
então apela para o exemplo geral da vida terrena de Jesus como modelo da vida dos
cristãos, argumento que está em harmonia com a diferença entre a sua cristologia e a de
seus adversários, mas se torna necessário então à permanência de “andar exatamente
como Cristo andou” (1Jo 2,6), de purificar-se para ver Deus (1Jo 3,3) e de agir “assim
como ele é justo” (1Jo 3,7)61.
3- Amor Fraterno
Na tradição joanina só existe um único mandamento que incluía todos os outros
mandamentos, a exigência de amar (Jo 13,35; 15,12). O autor da epistola também,
59
60
61
Ibdem, p. 128.
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, pp. 131-132.
Ibdem, pp.133-136.
13
Departamento de Teologia
embora fale de mandamentos (no plural), traduz tudo em amor fraterno (3,2224;4,21;5,3). Consequentemente, o único pecado que especifico que o autor menciona,
quando ataca os separatistas e seu descaso em observar os mandamentos, é não amar os
irmãos (2,9-11; 3,11-18; 4,20). A chave do problema está na definição de “irmãos”.
Para o autor da comunidade joanina que estavam em comunhão (koinõnia) com ele e
que aceitavam a sua interpretação do evangelho joanino. Os separatistas tinham-se ido e
já não eram irmãos, eles são demoníacos, anticristos, falsos profetas e encarnam a
malignidade escatológica ou a iniquidade (1Jo 2,18.22; 4,1-6; 3,4-5). Com efeito, a sua
própria separação era sinal de falta de amor pelos irmãos do autor (1Jo 4,20)62.
C. Escatologia
Como o autor das epístolas é fiel a tradição, não há nenhuma surpresa que ele
também professasse uma escatologia realizada (1Jo 1-3.7.14; 2,5.9-10; 3,1;4,15) o autor
toma as duas medidas para prevenir que esta escatologia realizada encoraje seus
adversários. Em primeiro lugar ele vincula uma necessidade ética de exigência de
escatologia realizada (1,7; 2,5. 10; 3,10). Em segundo lugar, ele apela para a escatologia
futura (3,3), ou seja, ele está acentuando bênçãos futuras porque elas dependem da
maneira como os cristãos vivem (1Jo 2,28; 3,18-19), e a escatologia futura pode,
portanto ser empregada como um corretivo ético dos separatistas63.
D. Pneumatologia
O autor de 1Jo assegura que a seus ouvintes: “Não tendes a necessidade de que
alguém vós ensine” (2,27) e adverte como “muitos falsos profetas vieram ao mundo”,
eles “devem examinar os espíritos para ver se são de Deus” (4,1). Isto nos leva a
suspeitar que os adversários devem ter-se arvorado em doutores e profetas e devem ter
afirmado que falavam sob a orientação do Espírito. O sucesso lhes teria provado que
eles eram a verdadeira comunidade joanina que realizava oração de Jesus que previu
uma cadeia de conversões (Jo 17,20). Eles estariam convencidos de que convertidos
eram o dom do Pai a Jesus que está assim tornando o seu nome conhecido como um
sinal ao mundo (17,23 e 26). No lado desfavorável das estatísticas, o autor vê o sucesso
de seus adversários sob outra luz. Como o Paráclito é “o Espírito da Verdade, que o
mundo não pode acolher, porque não o vê nem o conhece” (Jo 14,17), e é o Espírito que
julga que o mundo é culpado (Jo 16,8-10), o sucesso dos separatistas no mundo é sinal
de que eles não examinaram os espíritos. O espírito deles não é o Espírito da Verdade;
eles pertencem ao Príncipe deste mundo, Jesus havia ordenado os seus seguidores (Jo
15, 18-19). O sucesso é um sinal de que os adversários não pertencem a Cristo, é um
sinal que se junta à convicção pessimista do autor de que a “ultima hora” está próxima
(1Jo 2,18)64.
QUARTA FASE – DEPOIS DAS EPÍSTOLAS: DISSOLUÇÕES JOANINA
O autor das epístolas parece ter sido profético quando afirmou que a divisão entre
seus adeptos e os separatistas marcava a “ultima hora”. Os escritos joaninos e alguns
elementos do pensamento joanino são confirmados no século segundo, mas depois das
epístolas não há mais nenhum vestígio de uma comunidade joanina distinta e separada.
Não se pode negar a possibilidade de ter sobrevivido realmente uma comunidade que
62
63
64
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, pp. 136-141.
Ibdem, pp.141-144.
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado, São Paulo: Paulus, 2011, pp. 144-150.
14
Departamento de Teologia
procedia quer dos adeptos do autor, quer dos separatistas (ou comunidades provinientes
de ambos), mas esta comunidade não deixou nenhum vestígio na história. Aliás, é muito
mais provável que os dois grupos fossem absorvidos respectivamente pela “Grande
Igreja” e pelo movimento gnóstico. Os adeptos do autor teriam dado a sua própria
contribuição joanina à Grande Igreja. Os separatistas teriam dado a sua contribuição ao
gnosticismo. Mas em ambos os casos a comunidade joanina adptara de tal modo a sua
própria herança em favor do grupo mais amplo, que a identidade peculiar do
cristianismo joanino, que conhecemos pelo QE e pelas epístolas, teria deixado de
existir.
Se parte da comunidade joanina do autor se fundiu gradualmente com os cristãos
apostólicos integrando-se a Grande Igreja, levou consigo a alta cristologia joanina da
preexistência, precisamente porque, na sua luta contra os separatistas, o autor das
epístolas tinha salvaguardado aquela cristologia contra qualquer interpretação que
levasse o docetismo ou ao monofisitismo. Contudo, o próprio fato de que uma
eclesiologia centralizada no Paráclito não oferecia nenhuma proteção real contra os
cismáticos fez, em última análise, com que seus seguidores aceitassem a estrutura de
magistério autoritária de bispo – presbítero, a qual no século segundo se tornou
dominante na Grande Igreja, mas era inteiramente estranha à tradição joanina. Os
separatistas, privados desta influencia moderadora que os adeptos do autor poderiam ter
apresentado, se não tivesse acontecido o cisma, foram mais além na sua cristologia
ultra-elevada em direção do verdadeiro docetismo. Tendo pensado que a carreira terrena
de Jesus não tinha uma importância salvífica real, deixaram então de pensar nela como
real. Rendo pensado de si mesmos que eram filhos de Deus através da fé em Jesus
Cristo pela escolha do Pai, eles começaram então a colocar esta escolha antes de suas
vidas terrenas e pensaram que eles próprios eram divinos por sua origem, à imitação de
Jesus Cristo. Como o Filho, eles também vieram ao mundo, mas eles perderam o seu
caminho, enquanto ele, não, e era agora a sua missão mostrar-lhes o caminho para a
casa, o céu.
O fato de estes separatistas trazerem o evangelho joanino com eles, oferecia aos
docetas e gnósticos, de cujo pensamento agora eles participavam, uma nova base sobre
a qual construir uma teologia, na verdade, servia como catalisador para o crescimento
do pensamento gnóstico cristão. A Grande Igreja tinha aceitado elementos da tradição
joanina, quando aceitou os cristãos joaninos que compartilhavam dos pontos de vista do
autor, no começo teve muita cautela com o QE porque ele tinha dado origem a erros e
estava sendo usado em apoio dos erros. Eventualmente, contudo, tendo juntado as
epístolas ao evangelho, como um guia de interpretação correta, a Grande Igreja (pela
voz de Irineu, aproximadamente no ano 18 d.C.) defendeu o evangelho como ortodoxo
contra os intérpretes gnósticos65.
Conclusão
O grande avanço que podemos notar desta pesquisa é que o QE foi redigido em
etapas, concomitantes com os momentos mais conflitivos da historia da comunidade
unidade em torno da tradição do discípulo amado. Estas redações se sucederam numa
trajetória que foi desde a formação da comunidade ainda no marco institucional do
judaísmo, ao longo período entre o ministério de Jesus e a Guerra Judaica (compilação
de tradições básicas autônomas), passando pela ruptura dolorosa com a instituição
sinagogal no período pós-guerra (primeira e mais importante redação do Evangelho),
seguindo por um período de tensão ainda maior, em virtude de perseguição vivenciada
65
BROWN, R. E. A Comunidade do Discípulo amado. São Paulo: Paulus, 2011. pp. 151-153.
15
Departamento de Teologia
no contexto do império romano e sem a mediação amortecedora da sinagoga (segunda
edição, revista e ampliada, do Evangelho), e concluindo no confronto da comunidade
joanina com as comunidades apostólicas em vias de institucionalização (edição, revisão
e pequena ampliação, com a junção progressiva das três Epístolas, em vista da
harmonização do QE com as representações mentais das comunidades apostólicas).
A comunidade do Discípulo Amado teve conflitos com grupos inimigos ou
diferentes da comunidade, mas também viu conflitos dentro da própria comunidade. Na
comunidade e na tradição do discípulo amado nasceu uma tendência helenizante e (pré)
gnóstica, que fez uma interpretação espiritualista do evangelho. As assim chamadas
cartas de João são escritas para corrigir esta tendência dissidente. O autor das três cartas
tem uma interpretação do evangelho contraposta à interpretação dos dissidentes
helenizantes e espiritualistas.
A primeira carta é uma espécie de comentário do evangelho, que o interpreta a
partir da tradição do Discípulo A mado (“oque era desde o princípio...”), para combater
a interpretação errada dos dissidentes espiritualistas. Os dissidentes levarão consigo o
evangelho e o difundirão nos ambientes gnósticos do século II. O comentário mais
antigo do evangelho é do gnóstico Heracleão (160-180 d.C.). Até o dia de hoje existe
esta interpretação gnóstica, helenizante e espiritualista do Quarto Evangelho. Por isso a
importância desta primeira carta para resgatar o espírito autêntico e original da tradição
do discípulo amado e da comunidade.
O ponto fundamental de conflito, dentro da comunidade com os dissidentes, era a
cristologia. Os dissidentes acentuavam a divindade de Jesus e davam pouco valor a sua
humanidade. Fazem uma leitura unilateral do evangelho. O Jesus histórico – sua vida e
suas obras, inclusive sua morte na cruz – não era importante para os dissidentes. Esta
posição espiritualista e helenizante encontrava em certo sentido um fundamento no
próprio evangelho, pois este apresenta um Jesus transfigurado, revelador da glória do
Pai. Sua própria morte é apresentada como uma glorificação, como uma ida ao Pai. O
problema é que, quando é escrito o evangelho, a humanidade de Jesus era o óbvio, o que
todos aceitavam. O que era preciso provar era sua divindade. Por isso, o evangelho
acentua a divindade. Na época posterior, quando ocorre o problema com os dissidentes
e se escreve a carta, a acentuação da divindade de Jesus leva à supervalorização de sua
humanidade. A preocupação central do evangelho é mostrar que Jesus homem era Filho
de Deus. Agora a preocupação da primeira carta é demonstrar que o filho de Deus é o
homem Jesus.
O segundo ponto de conflito com os dissidentes era a ética, sobretudo o amor ao
próximo. Os dissidentes espiritualistas pretendiam ter tal intimidade com Deus que
pensavam ser perfeitos e sem pecado; descuidavam o cumprimento dos mandamentos,
sobretudo o do amor mútuo. Por isso a primeira carta insiste tanto no amor fraterno
(3,14). O amor de Deus não permanece naquele que fecha seu coração ao irmão que
padece necessidade (cf. 3,17) ou naquele que tem a arrogância do dinheiro (2,16).
Um terceiro ponto de conflito era a escatologia. Os dissidentes defendiam uma
escatologia realizada: eles já estavam na luz, possuíam a vida eterna, estavam em Deus.
A primeira carta não desconhece esta realização, mas a condiciona a guardar sua
Palavra, à prática do amor fraterno, à confissão dos pecados. A carta introduz um
espírito apocalíptico, chamando atenção sobre a última hora antes do fim, quando o
crente deve fazer um discernimento entre os crentes e os anticristos (3,18-28), entre os
que confessam Jesus vindo em carne e os falsos profetas (4,1-6). Outro ponto de
conflito era a pneumatologia. Os dissidentes seguem a mestres e profetas que dizem
possuir o Espírito. O autor da carta não se opõe a eles com um eu autoritário e sim
lembrando que todos os crentes são mestres, com o Espírito e no Espírito (2,20.27).
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Departamento de Teologia
O autor deixa transparecer a consciência de uma grande responsabilidade com a
comunidade, as questões pastorais na época não eram tranquilas: haviam muito falsos
mestres, muitos opositores e manipuladores da verdade. Por isso, acompanhando as três
composições de Jo (1Jo,2Jo e 3Jo, sendo esta um pouco separada das outras duas),
percebemos a dificuldade e a resistência oferecidas pelos opositores. Em virtude dessa
resistência dos “anticristos”, o autor precisa afirmar seu crédito e sua autoridade como
testemunha ocular da tradição joanina (1Jo 1,1-3).
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