Controle da TB no Brasil - Departamento de Medicina Social FMRP

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Jornal de Pneumologia
Print version ISSN 0102-3586
J. Pneumologia vol.26 no.4 São Paulo July/Aug. 2000
doi: 10.1590/S0102-35862000000400001
Controle da tuberculose no Brasil:
dificuldades na implantação do programa
O presente texto se propõe a fazer algumas reflexões pertinentes às dificuldades
envolvidas, em diferente níveis dos serviços de saúde bem como no aparelho
formador de recursos humanos para estes serviços, na implantação do programa
de controle da tuberculose (PCT) no país.
O que dificulta1 (verbo) a entender as dificuldades2 (substantivo) é a forma difícil3
(adjetivo) de abordar/refletir sobre o problema.
Como compreender o problema em pauta? De que perspectiva será focalizado? Do
médico? Do serviço? Do paciente? Do aparelho formador de recursos humanos?
Ribeiro (1994)(1) refere que um pajé, ensinando os membros da sua tribo quanto
à relatividade na interpretação dos fatos, tomava três frascos de barro, um dos
quais com água quase fervendo, outro com água à temperatura próxima de zero
grau. Pedia a um dos jovens que colocasse, simultaneamente, uma mão no frasco
quente e a outra no frasco frio. Imediatamente, vertia as águas quente e fria no
terceiro frasco vazio e solicitava agora que o mesmo jovem imergisse as duas
mãos nesse terceiro frasco. Interpretação do jovem: a mão anteriormente no
frasco quente sentia agora frio; aquela no frasco frio sentia calor. Interpretação
do pajé de que o mesmo indivíduo, frente à mesma situação, tem duas versões
opostas, mostrando que a interpretação está marcada pelo que antecede ao fato
presente.
INTERPRETAÇÃO DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
Num trabalho pertinente ao tema, Ruffino-Netto e Pereira (1982)(2) apresentam
um esquema (Esquema 1), em que localizam os diferentes níveis que se têm
colocado na interpretação do processo saúde-doença e suas implicações. É
evidente que quanto mais se dirige para direção célula e/ou intracelular, mais
reducionista é a visão e, de maneira geral, estes trabalhos na área da
epidemiologia são bastante conservadores em suas interpretações e, portanto,
muito a serviço de uma ideologia. Por outro lado, uma visão ampla do todo, ou
seja, holística, permitiria perceber efetivamente que estruturas deveriam ser
transformadas para se levar à saúde. Atitude muito mais de transformação e,
portanto, utópica do problema.
Breilh e Granda (1989)(3) mostram exemplos ilustrativos para investigação de
transtornos vasculares de como a colocação do problema, as hipóteses formuladas
com diferentes marcos teóricos, levou a conclusões diferentes segundo os vários
enfoques metodológicos4.
A partir também das transformações que ocorreram ao nível econômico, político,
social, foi analisada a tendência da mortalidade da cidade do Rio de Janeiro no
período de 1860 a 1980. Observa-se que as explicações daí emanadas
ultrapassam aquelas que são oferecidas simplesmente pela análise biológica do
problema(4).
A TUBERCULOSE
A descrição da tuberculose tem sido apresentada de forma esquemática da
seguinte maneira (Esquema 2). As pessoas são classificadas em cinco categorias
mutuamente exclusivas: os virgens de infecção (V), os já infectados (I), os
doentes não bacilíferos (D), os doentes bacilíferos (B) e aqueles que evoluíram
para óbito (O).
As passagens de um estado para outro estão bem estudadas e definidas e são
chamadas de indicadores epidemiológicos da doença. Assim, a passagem do
estado V para o I é chamado de risco de infecção. Este valor varia de um país
para outro e mesmo dentro do Brasil tem ampla variação de 0,3 a 2,5%, à
medida que se vai da região Sul para o Nordeste do país. A passagem de I para D
é conhecida como incidência da doença. Em geral de 10 a 20% das pessoas que
se infectam vão evoluir para a doença D. Destes, 50% adoecerão no primeiro ano,
80% em três anos e os outros 20% terão o restante da vida para essa evolução.
Dos doentes D, em média 50% evoluirão para categoria B (nos adultos esse valor
é ao redor de 70% e, nas crianças, de 10%). Dos doentes, bacilíferos ou não,
evoluirão para óbito cerca de 5% (ou valores um pouco maiores, dependendo das
condições do programa de controle local da doença).
No esquema assinalado (Esquema 2), observam-se os pontos de interferência
técnica na dinâmica do processo: imunização para a categoria V, quimioprofilaxia
para categoria I e diagnóstico e tratamento para as categorias D e B. Os impactos
causados por esses meios técnicos são sobejamente conhecidos(5).
Sabemos que estes esquemas apresentam as categorias em que as pessoas se
enquadrariam em um determinado tempo fixo. Contudo, ao se observar a
população em geral, questões surgem. Por exemplo: como é o comportamento
das pessoas e quais são os determinantes que fazem com que algumas delas
sejam enquadradas num determinado estado e não em outro? Como são
catalogadas? Quais o elementos que interferem nessa classificação?
Numa primeira aproximação, poderíamos imaginar uma população P (Esquema 3),
em que existem X1 casos de tuberculose espalhados pela comunidade. Destes
casos, apenas X2 demandam assistência médica num serviço de saúde. Esta
demanda é explicada por determinantes geográficos, políticos, econômicos,
educação em geral (sanitária em particular), antropológicos (religiosos, culturais)
e conhecimentos popular, mítico, etc.
Ao se comparar a prevalência da tuberculose entre sintomáticos respiratórios (SR)
segundo a duração dos sintomas, observamos variações que traduzem muito mais
diferenças de níveis culturais que propriamente diferenças epidemiológicas(6). Por
exemplo, cotejando-se dados do Chile, Índia, Argélia e Brasil, notamos diferenças
muito grandes entre estas prevalências. No Chile a prevalência foi de 3,8% entre
os SR por mais de três semanas. Argélia mostrava uma prevalência de 9,2% para
SR por mais de uma semana. Na Índia, é de 11,3% por mais de duas semanas.
No Brasil é de 4,1% no SR por mais de duas semanas. Este fato foge a tudo
quanto é esperado em termos epidemiológicos. O mais provável é que este
período assim chamado de SR seja na realidade entendido pelos argelinos como o
período a partir do qual de fato o paciente se deu conta e se preocupou com um
sintoma que, embora o acompanhasse há muito tempo, não lhe chamara a
atenção até então. No trabalho anteriormente citado é mostrada a positividade da
baciloscopia entre SR segundo as diferentes regiões do Brasil e em diferentes
períodos. Sabemos também que dados da Índia mostram que 70% dos pacientes
tuberculosos apresentavam pelo menos um dos quatro sintomas: tosse,
expectoração, febre e hemoptise; 95% dos doentes se davam conta do seu estado
anormal; 75% sentiam-se preocupados com sua saúde; e 52% já haviam
procurado por serviços de saúde.
Ainda sobre a demanda, vejamos alguns aspectos relacionados num modelo de
atenção para o SUS, elaborado por Goulart (1999)(7), adaptando esquemas
propostos por Silva Jr. (1998)(8). Numa enumeração de dimensões de análises e
características dos modelos tecno-assistenciais de saúde no Brasil assinala-se:
concepção de saúde-doença, níveis de referência, integralidade na oferta de
serviços, articulação intersetorial, universalidade x seletividade, regionalização,
hierarquização nível primário, níveis de referência, integralidade na oferta de
serviços e articulação intersetorial.
De forma bastante resumida, poderíamos identificar três grandes determinantes
nessa demanda: o conceito de saúde-doença, o padrão de prática médica vigente
e o saber médico (pesquisas que estão sendo feitas na área). Estes três
elementos localizam-se num plano de conhecimentos abarcado pela sociologia
médica. Esta, por sua vez, é função da macroestrutura da sociedade, em que os
determinantes político-econômico-ideológicos vão efetivamente conduzir o saber
médico, conceito de saúde-doença, pesquisas, etc., e, portanto, a própria
demanda dos serviços de saúde.
Dos pacientes que demandam assistência médica (X2) serão atendidos pelo
sistema apenas X3. Esta absorção depende da organização dos serviços e da
política de saúde vigente. No parágrafo anterior foram enumerados estes
determinantes.
Dependendo da capacidade técnica dos serviços, seja em equipamentos e/ou
recursos humanos, X4 casos serão diagnosticados como portadores de
tuberculose. Deve-se lembrar que para esta doença os exames diagnósticos são
relativamente simples, de baixa complexidade e de baixo custo. Estes facilmente
podem ser integrados aos serviços gerais de saúde. Deve-se ressaltar, contudo,
que os serviços de saúde pouco se lembram de pesquisar esta patologia. Em
trabalho anterior, Ruffino-Netto(9) mostra que mesmo há cerca de 20 anos, apenas
aproximadamente 50% dos SR eram examinados. Em 1997 esses valores caíram
mais ainda, para 13%. Isso mostra de certa forma a crença num falso mito criado
de que tuberculose é doença do passado. Por assim acreditar, ela não é procurada
e tampouco encontrada. Esta crença permeia os serviços de saúde, assim como as
universidades, escolas formadoras de recursos humanos para a saúde.
Após o diagnóstico X4, efetivamente iniciar o tratamento em X5 depende da
agilização dos serviços e da burocracia interna dos mesmos. Às vezes a distância
da residência do paciente é grande, dificultando seu retorno e, portanto, havendo
o abandono antes de iniciar o tratamento. Há também razões de ordem
burocrática internas ao serviço que dificultam o atendimento do paciente. O antigo
Dispensário de Tuberculose da rua do Resende, no Rio de Janeiro, chegava há
algum tempo a perder ao redor de 10% dos doentes, antes de iniciar o
tratamento5, assim como tivemos a oportunidade de observar que a unidade de
referência para atendimento para tuberculose em Teresina, e para o Estado do
Piauí, atende os pacientes apenas das sete às nove horas da manhã. Sem dúvida,
este fato dificulta muito a agilização do serviço.
Dos pacientes que iniciam o tratamento X5 apenas X6 chegam ao final do mesmo.
A melhora imediata dos sintomas faz com que muitos pacientes se sintam bem e,
por extensão, "curados", quando na realidade não o estão. Contudo, uma série de
determinantes explica o altíssimo nível de abandono que encontramos no Brasil.
De 1977 até 1997, este valor foi sempre ao redor de 14%. Uma série bem grande
de estudos quantitativos tem sido feita analisando o abandono e/ou adesão ao
tratamento. Vale ressaltar dois estudos recentes, feitos através de metodologia
qualitativa, que muito elucidam o problema em pauta. Perini (1997)(10), em Belo
Horizonte, e Bertolozzi (1998)(11), em São Paulo (em estudos que se
complementam), apresentam uma série de conclusões pertinentes para o
entendimento e, portanto, apontando para possíveis soluções. É importante
distinguir as razões do abandono ligadas ao paciente e aquelas ligadas ao serviço.
Deve-se ressaltar também a importância do tratamento supervisionado. Este
aumenta a chance de exposição do paciente ao serviço de saúde e, portanto,
oportunidade para esclarecer suas dúvidas sobre a doença, o tratamento e
também para educação sanitária em geral. No país já existem atualmente 672
unidades de saúde fazendo o tratamento supervisionado e, neste último ano, já se
verificou um declínio do percentual de abandono para 12%.
A experiência mais antiga de tratamento supervisionado no Brasil é da Fundação
Serviço Especial de Saúde Pública, na década de 60. Mais recentemente, a
experiência com maior tempo de seguimento e maior número de casos estudados
é da cidade de Cuiabá, MT, que reduziu o percentual de abandono de 50% para
4%.
Dos pacientes que chegam ao término do tratamento, X7 estarão efetivamente
curados. Este percentual de curas está ligado à eficácia terapêutica do esquema
de tratamento utilizado.
IMPACTO SOBRE A MAGNITUDE DA TUBERCULOSE
O impacto total (I) que se obtém no programa do controle da tuberculose (PCT)
poderá ser obtido dividindo-se o número de casos efetivamente curados (X7) pelo
número de casos existentes na comunidade (X1), ou seja:
Esta proporção poderia ser desmembrada e escrita de outra maneira, qual seja:
Se chamarmos estas proporções de:
observa-se então que:
Na Tabela 1 são apresentados os impactos observados para diferentes
composições destas proporções. É claro que, se qualquer uma destas proporções
for igual a zero, o impacto final será 0%.
Se todas as proporções fossem 50%, o impacto final seria de 1,5%.
Se mantivermos todas as proporções de 100%, exceto a adesão em 50%, o
impacto será apenas de 5%. Se imaginarmos até uma diminuição na cura para
85%, porém com aumento da adesão para 95%, o impacto aumenta para 49%
(dez vezes maior).
Com os dados disponíveis para o Brasil, estimamos os valores que são
apresentados na ultima linha da Tabela 1, onde se observa um impacto máximo
de 36%.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Torna-se evidente que as grandes dificuldades na implantação/implementação de
um programa de controle da tuberculose no Brasil estão permeadas de
determinantes de diferentes campos: decisão política de implementá-lo, decisão
nos diferentes níveis dos serviços de saúde; decisão política das academias para o
ensino sobre o tema, desfazendo o mito de que é problema do passado, ampliar a
visão essencialmente biológica e reducionista do agravo, para uma visão mais
holística. Se esquemas terapêuticos têm papel primordial no tratamento, não
esquecer que o impacto sobre a epidemiologia da doença somente será obtido
implementando a demanda, atendimento, meios diagnósticos ágeis, fáceis e de
baixo custo, agilizando serviços e aumentando a adesão.
Em síntese, há problemas que estão no nível macrossocial: econômico, político,
ideológico, e aqueles que estão no plano da sociologia médica: conceito de saúdedoença que permeia a sociedade, o saber médico e os padrões de práticas
médicas vigentes.
ANTONIO RUFFINO-NETTO
Coordenador Nacional de Pneumologia Sanitária Ministério da Saúde
E-mail: [email protected]
REFERÊNCIAS
1. Ribeiro L. Auto-estima. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 1994;112p.
2. Ruffino-Netto A, Pereira JC. O processo saúde-doença e sua interpretações. Rev
Hosp Clin Fac Med Sao Paulo 1982;15:1-4.
3. Breilh J, Granda E. Saúde na sociedade. São Paulo: Ed. Cortez, 1989.
4. Ruffino Netto A, Pereira JC. Mortalidade por tuberculose e condições de vida: o
caso do Rio de Janeiro. Revista Saúde em Debate 1981; 12:27-34.
5. Comitê Técnico-Científico de Assessoramento à Tuberculose. Manual de Normas
Técnicas para o Programa de Controle da Tuberculose. 5ª Edição  revista e
ampliada. Brasília: Ministério da Saúde, 2000.
6. Ruffino Netto A. Tuberculose. Rev Hosp Clin Fac Med Sao Paulo 1991; 24:225240.
7. Goulart FA A. Cenários epidemiológicos, demográficos e institucionais para
modelos de atenção à saúde. Informe Epidemiológico do SUS 1999;8:17-26.
8. Silva Jr A. Modelos tecno-assistenciais em saúde: o debate no campo da saúde
coletiva. São Paulo: Hucitec, 1998.
9. Ruffino Netto A. Impacto da reforma do setor saúde sobre os serviços de
tuberculose no Brasil. Boletim de Pneumologia Sanitária 1999;7:7-18.
10. Perini E. O abandono do tratamento da tuberculose: transgredindo regras,
banalizando conceitos. Tese de Doutoramento apresentada na Escola de
Veterinária  Faculdade de Farmácia  Universidade Federal de Minas Gerais,
1997;271p.
11. Bertalozzi MR. A adesão ao programa de controle da tuberculose no Distrito
Sanitário de Butantã-SP. Tese de doutoramento apresentada na Faculdade de
Saúde Pública da USP, 1998.
1 DIFICULTAR  tornar difícil, custoso de fazer, má vontade.
2 DIFICULDADE  caráter ou qualidade que é difícil, obstáculo, impedimento,
complexidade, relutância, repugnância.
3 DIFÍCIL  que representa dificuldade, árduo, custoso, penoso, triste, delicado,
embaraçoso, intratável, áspero, improvável.
4 COLOCAÇÃO DO PROBLEMA EM TRÊS ESTUDOS: 1) Qual é o efeito da atividade
simpática sobre a hipertensão arterial e stress? 2) Quais hábitos e condutas são
os causadores da enfermidade coronariana, da hipertensão e do stress? 3) Como
a organização social determina o aparecimento de mortalidade por stress?
HIPÓTESES DOS ESTUDOS: 1) existe associação entre maiores níveis de atividade
simpática por stress e a hipertensão; 2) padrão de conduta coronariana é
fundamento do stress, hipertensão e enfermidade coronariana; 3) a organização
produtiva "moderna" por causa do trabalho conflitivo e da destruição de formas
solidárias
produz
stress
e
mortalidade.
OBSERVAÇÃO: 1) correlação positiva de níveis de neoepinefrina com níveis de
pressão arterial; 2) correlação positiva de hábitos (agressividade, fumar, pouca
atividade motora, dieta) com stress; 3) estudo da organização social, grupos de
maior risco e associação com comportamento do stress e mortalidade.
CORRELATOS: 1) Fármacos e parte para outros estudos; 2) psicoterapia,
educação, dieta. Parte para outro estudo mais geral; 3) prática integral de
transformação.
5 Informação pessoal do Dr. José Antonio Nunes de Miranda, da CNCT.
© 2009 Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Departamento de Patologia
Laboratório de Poluição Atmosférica
Av. Dr. Arnaldo, 455
01246-903 São Paulo SP Brazil
Tel: +55 11 3060-9281
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