Artigo Original Adesão ao tratamento da tuberculose pela população de baixa renda moradora de Manguinhos, Rio de Janeiro: as razões do im(provável) Adherence to tuberculosis treatment by low-income people living in Manguinhos, Rio de Janeiro: the reasons for the (un)likely Jaqueline Ferreira1, Elyne Engstron2, Luciana Correia Alves3 Resumo Este artigo apresenta o estudo de dois casos de pacientes que aderiram ao tratamento da tuberculose no território de Manguinhos, Rio de Janeiro. Os dados foram levantados do livro de Registros de Pacientes e Controle de Tratamento dos Casos de Tuberculose do Centro de Saúde Escola Germano Sinval Faria. A amostra constitui-se por pacientes que obtiveram alta ou abandonaram o tratamento e saíram do programa em 2009. Foram realizadas 20 entrevistas semidiretivas, que seguiram a forma de roteiro etnográfico. Foram abordadas questões relativas ao diagnóstico da tuberculose, relação entre profissionais e serviços de saúde e representações sobre a doença, medicação e tratamento. A interpretação das respostas busca os significados a partir da construção de categorias temáticas, visando a sua articulação em categorias mais amplas. Os casos aqui apresentados foram selecionados por constituírem-se de indivíduos cujas condições materiais de existência, aliadas aos elementos de ordem simbólica, eram adversas à adesão ao tratamento. Tal adesão foi possível, devido à mediação de um profissional de saúde. O estudo sugere que, para o sucesso do tratamento da tuberculose, deve-se considerar a importância das práticas interpessoais – entre profissionais, famílias e indivíduos doentes – promotoras de vínculo e do cuidado singular. Palavras-chave: tuberculose; adesão à medicação; acolhimento. Abstract This article presents two case studies of patients who adhered to tuberculosis treatment in Manguinhos, Rio de Janeiro. Data were gathered from the book Records of Patients and Control Cases Treatment of Tuberculosis of Germano Sinval Faria’s Health Center. The sample consists of patients who were discharged from treatment or interrupted it, and left the program in 2009. Twenty semi-direct interviews were accomplished, following the ethnographic script. This article addresses issues relating to tuberculosis diagnosis; relations between professionals and health services; and representations of the disease, medication and treatment. The reading of the answers tries to find meanings, by the construction of thematic categories, in order to coordinate them into broader ones. The cases presented here were selected for being constituted of individuals whose material conditions of existence – coupled with the elements of the symbolic order – Trabalho realizado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 1 Doutora em Antropologia Social pela Ecole des Hautes Études em Sciences Sociales – Paris, França; Professora Adjunta do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 2 Doutora em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) – Rio de Janeiro (RJ), Brasil; Pesquisadora da ENSP/FIOCRUZ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. 3 Doutora em Saúde Pública pela ENSP/FIOCRUZ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil; Pesquisadora da ENSP/FIOCRUZ – Rio de Janeiro (RJ), Brasil. Endereço para correspondência: Jaqueline Ferreira – Avenida Horácio Macedo, s/n – próximo à Prefeitura Universitária da UFRJ, Ilha do Fundão – Cidade Universitária – CEP: 21941-598 – Rio de Janeiro (RJ), Brasil – E-mail: [email protected] Fonte de financiamento: foi desenvolvido com apoio do Fundo Global Tuberculose Brasil (FGTB), Edital Fundo Global Tuberculose Brasil/Fundação para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Saúde (Fiotec)/ENSP/FIOCRUZ/Ministério da Saúde (MS) nº 1/2009. Conflito de interesses: nada a declarar. Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 211-6 211 Jaqueline Ferreira, Elyne Engstron, Luciana Correia Alves were adverse to treatment adherence. Such accession was made possible by the mediation of a health professional. In conclusion, it argues that, for a successful tuberculosis treatment, the importance of interpersonal practices (among professionals, families and patients), as bonding and meticulous care promoters, must be considered. Keywords: tuberculosis; medication adherence; user embracement. INTRODUÇÃO Após mais de 30 anos da instituição de tratamento gratuito, a tuberculose continua tendo alta incidência no Brasil, e o abandono e a não adesão ao tratamento têm sido apontados como as principais dificuldades implicadas no controle da doença. A grande preocupação com a efetividade do tratamento deve-se à alta contagiosidade da doença. Doentes que não buscaram tratamento ou que o fizeram de forma irregular, além de não se curar, podem se tornar resistentes às drogas, e o risco de isso acontecer é 10,23 vezes maior em pacientes previamente tratados, comparativamente aos virgens de tratamento1. Este estudo faz parte do projeto Fundo Global Tuberculose Brasil (FGTB), que objetivou realizar uma ampla pesquisa (epidemiológica e antropológica) sobre os fatores associados ao desfecho do tratamento da tuberculose em pacientes de uma unidade de atenção primária – Centro de Saúde da Escola Germano Sinval Farias (CSEGSF), da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A pesquisa FGTB analisou os desfechos do tratamento da tuberculose em indivíduos atendidos no CSEGSF, que recebe a população residente no território do complexo de favelas de Manguinhos, município do Rio de Janeiro. Os dados aqui apresentados dizem respeito à abordagem antropológica apresentando o estudo de dois casos de pacientes que aderiram ao tratamento, a despeito das condições socioeconômicas e culturais adversas. Tanto “adesão”, como “abandono” do tratamento são termos apontados pela literatura, tais como: cumprimento, obediência (compliance ou observance), desistentes (dropped out), faltosos (defaulters), falhas (fails) e adesão (adherence) 2,3. Nossa abordagem parte da perspectiva do paciente, tanto daquele que adota as prescrições terapêuticas desde o primeiro diagnóstico de tuberculose, como dos que abandonam o tratamento, e depois o retomam. Adotamos assim o termo “adesão”, à medida que ele se refere à perspectiva do paciente como um ser capaz de tomar uma decisão mais consciente4. Os estudos, em geral, têm se voltado para as causas de não-adesão ao tratamento, o que reforça a ideologia vigente de déficit dos grupos de baixa renda, coloca-os no campo da carência e do fracasso. O objetivo aqui é superar o senso comum de que os grupos de baixa renda têm comportamentos e crenças incompatíveis com a racionalidade biomédica e são, portanto, propensos a não aderir às terapias medicamentosas 212 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 211-6 propostas. A decisão de entrevistar pacientes já curados foi motivada pelo pouco valor dado nos estudos a essas situações. A análise dos dois casos indica que mesmo que a experiência da doença e, consequentemente, a adesão ao tratamento seja singular, os resultados não estão isolados em um esquema em que o contexto individual é compreendido no tecido de imbricações sociais do doente, no qual os profissionais de saúde assumem papel fundamental. Essa perspectiva é pertinente, à medida que é importante refletir sobre os programas de saúde pública, em que os doentes são compreendidos como sujeitos de direito, mas, ao mesmo tempo, é atribuído a eles a responsabilização frente aos riscos que tais programas podem apresentar, tanto à coletividade, como ao paciente. Assim, acreditamos que esta pesquisa contribua para o debate sobre adesão ao tratamento da tuberculose. Tuberculose e responsabilidade A adesão ao tratamento da tuberculose é um fenômeno multidimensional, determinado pela inter-relação de fatores relacionados aos indivíduos, doença, socioeconômicos, tratamento propriamente dito e ao sistema de saúde e profissionais1. Vários estudos qualitativos compartilham a ideia que as reflexões sobre a não adesão ao tratamento da tuberculose estão muitas vezes centradas na lógica biomédica e nas expectativas dos profissionais de saúde, e prepondera a responsabilização do indivíduo por sua doença. Nesse sentido, Leite e Vasconcellos5 referem que: Neste último caso a responsabilidade pela não-adesão ao tratamento é definida como ignorância dos pacientes ou responsáveis por eles sobre a importância do tratamento, a pouca educação da população (presumindo que seria um comportamento típico de classes menos privilegiadas) ou como simples desobediência de “ordens médicas”. De fato, a responsabilização do indivíduo por sua doença foi construída na história. A descoberta do agente etiológico associou a tuberculose às condições de moradia e de higiene, tornando o indivíduo responsável pela transmissão e pelo controle da doença, em nome do bem-estar social. O termo “perigo social” para as doenças contagiosas, na verdade, dizia respeito ao maior controle sobre os doentes do que sobre as doenças. Nesse sentido, Gonçalves2 desenvolve uma reflexão Adesão ao tratamento de tuberculose sobre a dificuldade dos profissionais de “modificar comportamentos” dos pacientes: Todavia, modificar comportamento é a parte mais complexa da atuação dos profissionais de saúde, visto que o comportamento não é influenciado unicamente pela doença atual. A adesão, para uns, requer também uma mudança comportamental (não beber, evitar fazer esforço, manter uma disciplina e um horário para tomar os medicamentos), isto pode ser particularmente difícil quando o paciente não associa seu tratamento ao seu diagnóstico, ou à inexistência de sintomas corporais antes associados à doença. No que diz respeito à relação entre adesão e profissionais de saúde, alguns estudos referem a falta de atenção ou de acolhimento dos profissionais de saúde. O trabalho de Sá et al.6 demonstra como acolhimento e vínculo são essenciais para a continuidade do tratamento da doença. Segundo essa pesquisa, realizada em uma unidade de saúde da família em João Pessoa, os fatores envolvidos no abandono do tratamento são complexos e incluem desde características do usuário até a própria organização da assistência à saúde. No que diz respeito à relação médico-paciente e adesão ao tratamento, alguns trabalhos demonstram como as informações sobre os medicamentos transmitidas aos pacientes variam em sua amplitude, de acordo com as características dos profissionais de saúde ou pacientes7. Estudos como o de Hulka et al.8 sobre o tratamento da hipertensão podem dar pistas de como o comportamento do médico pode ser determinante para o seguimento ou não do tratamento pelo paciente. Os autores mostram que é preciso que os médicos discutam as informações sobre a prescrição com os pacientes, pois as questões permanecem superficiais e não objetivam discutir os efeitos e objetivos da terapia. Assim, os pacientes obtêm informação fragmentada sobre a medicação, mesmo após várias visitas de acompanhamento. METODOLOGIA Este estudo é de cunho qualitativo com referencial na teoria socioantropológica. Os estudos qualitativos são de vital importância para a pesquisa sobre adesão ao tratamento, permitindo obter resultados aprofundados com uma amostra populacional relativamente pequena sobre fatores culturais e socioeconômicos dos atores envolvidos nesta questão. Quanto ao cenário da pesquisa, o complexo de favelas de Manguinhos tem cerca de 45.000 moradores, que vivem em uma área com um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) da cidade (IDH=0,726). Dentre os diversos agravos de saúde, observam-se proporções elevadas de desfechos negativos no tratamento da tuberculose, como, por exemplo, 25% de abandono do tratamento, na análise do período 2004–20089. Foram realizadas 20 entrevistas semidiretivas com pacientes de tuberculose do CSEGSF, em 2009, detectados no livro de Registros de Pacientes e Controle de Tratamento dos Casos de Tuberculose. Doze finalizaram o tratamento e oito não o finalizaram. A escolha dos dois casos aqui apresentados dentre as entrevistas realizadas deu-se pelos mesmos evidenciarem o fato de que apesar das condições sociais e culturais adversas, o vínculo familiar e com os profissionais de saúde propicia a adesão ao tratamento da tuberculose. As entrevistas seguiram a forma de roteiro etnográfico, em que o entrevistador teve a oportunidade de desenvolver suas observações e impressões em cada item específico e observar o modo de vida e as relações familiares e de vizinhança dos pacientes, uma vez que a maioria das entrevistas foi realizada na moradia deles. O emprego dessas técnicas combinadas (entrevista e observação) segue a perspectiva de Beaud10, segundo a qual as entrevistas são por si só um contexto de observação da cena social (espaço e pessoas) e fornecem assim elementos para interpretação. As variáveis demográficas buscadas foram: sexo, idade e cor da pele. As variáveis socioeconômicas foram: estrutura familiar residencial, escolaridade, religião, renda, ocupação e trabalho, formas de lazer e sociabilidade, percepções sobre a moradia (se saudável ou não) e representações de doenças em geral, a fim de compreender o contexto, o modo de vida, o entendimento sobre a doença e a repercussão dela em seu cotidiano. Sobre a tuberculose propriamente dita, foram abordadas questões relativas ao diagnóstico, relação com profissionais e serviços de saúde, as representações sobre a medicação e a compreensão sobre o tratamento. A interpretação das respostas buscou os significados a partir da construção de categorias temáticas, visando a sua articulação em categorias mais amplas, que se relacionem com conceitos representativos da teoria antropológica. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP da FIOCRUZ sob o número de protocolo 0038.0.031.000-09 e todos os participantes assinaram um termo de consentimento informado. Os nomes aqui usados são fictícios, para preservar o anonimato. A pesquisa não apresenta riscos para os envolvidos. Representações e práticas reveladas nas cenas de adesão ao tratamento Para abordar as concepções e práticas relativas ao tratamento da tuberculose, a preocupação da pesquisa foi compreender as representações sociais relativas à doença e ao Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 211-6 213 Jaqueline Ferreira, Elyne Engstron, Luciana Correia Alves tratamento e como elas interferem no cotidiano dos doentes. Nessa perspectiva, o mais particular ou singular de cada indivíduo será entendido na rede de imbricações sociais com os outros. Então, os casos apresentados a seguir ilustram como é no âmbito das relações sociais com a família e profissionais de saúde que o desfecho positivo pode ser concretizado. Jairo Jairo, 41 anos, é negro, mora sozinho em uma casa própria. No momento da pesquisa, estava desempregado e procurava trabalho, e havia dois anos que sobrevivia de “biscates”. Quando surgiram os sintomas da doença, ele procurou o centro de saúde, orientado por um vizinho: “Eu tava com uma tosse de cachorro e o meu vizinho me mandou procurar um médico, porque isso podia espalhar para outras pessoas. Eu tava magro, bastante magro, tinha perdido bastante peso. Tava com 60 kg. Hoje eu tô com 74 kg”. A experiência da doença para Jairo está muito associada à fraqueza e à incapacidade de realizar suas atividades cotidianas: É uma coisa muito ruim, é uma coisa que você não tem força pra nada, uma coisa que não tem razão pra vida, é uma coisa muito difícil explicar. É uma sensação que a pessoa não tem atitude pra nada. Emagrece, é dor de cabeça, é febre, só quer saber de ficar deitada num canto. Não te dá força nem pra caminhar. As dificuldades físicas e socioeconômicas agravaram-se pela dificuldade de permanecer no trabalho: “Essa doença me trouxe isso, o desemprego”. Igualmente, ele afastou-se dos amigos, quando foi informado no centro de saúde sobre a possibilidade de transmissão da doença para outras pessoas, o que aumentou seu sentimento de solidão. Tema presente na entrevista foi a separação de sua mulher e dos dois filhos, que ele relatava com muita emoção. Dessa maneira, ao sofrimento físico associava-se o sofrimento moral, causado pelo isolamento e, sobretudo, pelo abandono pela companheira. Um sintoma recorrente na fala de Jairo é a “fraqueza”. A linguagem escolhida pelos doentes para descrever os sintomas é elucidativa das representações de doença11. No caso do sintoma fraqueza, há vários significados que abarcam a natureza do indivíduo (constituição física, alimentação e cansaço) e o caráter moral: falta de vontade, mediocridade, suscetibilidade à opinião alheia e a constrangimentos externos. Isso fica evidente no caso de Jairo: sua fraqueza agravou-se com a separação da esposa, perda de emprego e da posição de provedor da família. Melhor dizendo, o caráter físico e moral do sofrimento é de tal forma manifesto no indivíduo, que ele se sente enfraquecido para trabalhar, de maneira que isso tende 214 Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 211-6 a agravar sua situação econômica e consequentemente seu reconhecimento social. A análise desse sintoma, sob o prisma antropológico da oposição forte/fraco como um princípio das atitudes relacionadas ao corpo, à saúde e à doença, é frequente. A relação que se estabelece entre trabalho, força e alimentação é igualmente indissociável. De acordo com Loyola12: A representação de saúde está intimamente associada à ideia de força – força utilizável no trabalho –, que a comida mantém e estimula. Eis por que “a sensação mórbida tende a ser descrita como um estado de fraqueza. No caso de Jairo, isso é relevante, uma vez que ele manteve o tratamento, apesar dos efeitos colaterais dos medicamentos (diarreia), pois eles lhe restituíram o apetite e, assim, a força, de forma que ele sentiu-se novamente capaz de ser novamente um provedor dos filhos: Tenho que estar forte pra amanhã ou depois [...] dar alguma coisa pra eles. Jairo iniciou o tratamento logo após o diagnóstico, sendo muito “bem orientado” pelos profissionais do centro de saúde, mas chegou a abandoná-lo, por sentir-se sem “razões para viver”: Esse negócio de separação, sabe como é que é, né? A gente sofre um bocado. Eu relaxei e deixei me levar. Aquela coisa: eu quero morrer, sabe?. Mas os profissionais de saúde foram a sua casa e o convenceram a voltar ao tratamento: Eles insistiram em mim, vieram aqui na porta quando eu relaxei, apostaram todas as ficham em mim. E graças a Deus, eu, com a minha cabeça dura, eu me tratei. Depois que eu pensei... a equipe do Dr. Mário tá querendo me curar, vou fazer por onde também. Assim, para Jairo, sua cura deve-se à equipe de Saúde da Família coordenada pelo Dr. Mário: Foi a equipe do Mário que ajudou a me livrar dessa doença. Eles insistiram muito em mim, apostaram todas as fichas em mim, que iam me curar, e me curaram. Jairo é um exemplo de sucesso de adesão ao tratamento que, em relação aos critérios sociológicos habitualmente considerados (situação familiar, renda, profissão e emprego), não Adesão ao tratamento de tuberculose parece poder auxiliar na conclusão do tratamento. Neste caso, a equipe dos profissionais de saúde desempenha papel central. Ele encontrou acolhimento na equipe de saúde que, em um momento particular de sua vida, representou apoio, escuta e amizade. A equipe “acredita” nele, “aposta todas as fichas nele”, em um momento em que seu papel social masculino de provedor está desacreditado, e é nessa interação que se constrói a possibilidade concreta de cura. A preocupação com atender às expectativas da equipe de saúde deve-se muito a essa atenção específica, dada a ele no âmbito da relação profissional. Isso fica claro na entrevista, à medida que tal preocupação se traduz por uma espécie de apresentação muito positiva de si, reforçada pela relação próxima que estabeleceu com seu médico, Dr. Mário, a quem ele se refere constantemente. Esse caso corrobora a hipótese de que, menos do que acompanhamento nas instituições de saúde, a adesão diz respeito a uma sociabilidade fundamentada em relações informais, independentemente das diferenças sociais evidentes e das questões técnicas de tratamento. Paula Paula, 17 anos, parda, vive com a avó desde que a mãe faleceu. Moram na casa mais quatro pessoas: dois tios, uma irmã e um sobrinho. Somente os dois tios trabalham, perfazem renda de dois salários mínimos para toda a família. O diagnóstico de tuberculose foi aceito com dificuldade por Paula e sua avó. Para Paula, essa dificuldade estava relacionada às limitações causadas pela doença: “Não estava aceitando que eu tava com tuberculose, coisa ruim, porque não podia sair pra canto nenhum, tinha que ficar dentro de casa”. Diante do agravamento dos sintomas, foi necessária a internação, que só se concretizou devido à intervenção efetiva dos profissionais de saúde do centro. No entanto, após receber alta, Paula abandonou tratamento: Quando eu comia, eu vomitava, aí, saía aquele pó vermelho do remédio. Eu achava que era sangue, aí eu parei. Aí eu falei: “Vou parar de tomar”, e parei. Também era muito remédio, eu não sou acostumada a tomar remédio. Gonçalves2 já havia observado como os pacientes avaliam as características dos medicamentos (gosto, cor, tamanho), seu poder de afetar significativamente outras partes do corpo e, a partir daí, avaliar se vale a pena seguir ou não o tratamento. Os sinais visíveis da doença (no caso, o emagrecimento) terminam por estigmatizar Paula em seu ambiente escolar, e isso se tornou determinante para que ela retornasse ao seguimento das prescrições médicas. O medo de sofrer estigmas por parte da rede social foi muitas vezes maior do que o medo de estar com tuberculose e morrer por causa dela: A relação situacional entre estar doente e ser visto como doente demonstra a importância da dimensão física e moral e da sua condição como sujeito social, para a manutenção de uma imagem que tem de si e que corresponde à que outros têm para consigo2. Para Paula, a adesão ao tratamento também está condicionada à aceitação da própria doença, ou seja, a adesão ao tratamento depende da aceitação e do entendimento que o paciente, sua rede familiar e comunitária têm sobre a doença e, consequentemente, sobre o tratamento13. Assim, não é necessariamente a presença de sintomas e sinais que leva automaticamente à aceitação da doença e de seu tratamento, mas sim as repercussões que estes trazem para a vida social do paciente. Nesse caso, a atuação dos profissionais de saúde também foi determinante para o desfecho de cura do paciente. Após a intervenção na internação de Paula, a equipe seguiu seu acompanhamento, deu suporte psicológico, valorizou as suas dificuldades, o que permitiu que a mesma aceitasse a sua condição de doente e o tratamento. Assim é de fundamental importância a intervenção multidisciplinar junto às famílias que apresentam condições socioeconômicas adversas e aspectos culturais que contribuem para o agravamento da doença e impedem a adesão ao tratamento. CONCLUSÃO Os estudos qualitativos são relevantes para avaliar o sucesso do tratamento da tuberculose, à medida que as representações sociais do enfermo, visto ora como vítima ora como responsável pela doença e propagação dela, externam as normas e valores da biomedicina, da política e da economia. Isso sugere que o processo de responsabilização em relação ao tratamento obedece a interesses complexos de ordem individual, relacional ou sociocultural. Eles devem ser levados em conta para compreender as múltiplas facetas da adesão ao tratamento. Quando nos defrontamos com os casos singulares considerados em sua complexidade, percebemos que é falsa a premissa de que os grupos populares não são naturalmente predispostos a aderir à terapia medicamentosa e são os únicos responsáveis por sua condição e propagação da doença. Tomar a perspectiva dos que aderiram ao tratamento contribuiu para uma reflexão sobre esse assunto. Em conclusão, tem-se que as causas da adesão ao tratamento só podem ser compreendidas se reconstruirmos as Cad. Saúde Colet., 2012, Rio de Janeiro, 20 (2): 211-6 215 Jaqueline Ferreira, Elyne Engstron, Luciana Correia Alves redes de interdependência entre os fatores que influem na percepção de doença, no julgamento e avaliação das terapias e na maneira pela qual esses elementos podem reagir no cotidiano de interações sociais do indivíduo doente. Assim, considera-se que, para além da implantação de programas e ações, o sucesso do tratamento da tuberculose deve levar em conta a as práticas interpessoais – entre profissionais, famílias e indivíduos doentes –, promotoras de vínculo e do cuidado singular. Essas práticas são a essência das estratégias promotoras de adesão. No que tange a esses aspectos, este artigo espera contribuir para a reflexão dos serviços de saúde e programas de controle da tuberculose. REFERÊNCIAS 1. World Health Organization. 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Recebido em: 30/04/2011 Aprovado em: 17/02/2012