a leitura como escavação

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A LEITURA COMO ESCAVAÇÃO
* Jéferson Assumção
Resumo:
Este artigo pretende expor uma leitura da literatura, a partir de uma interpretação
da fenomenologia do filósofo alemão Edmund Husserl (1859-1938) e do
espanhol José Ortega y Gasset (1883-1955). Também argumenta em favor da
idéia de que, se os escritores possuem uma leitura comum do fenômeno literário,
esta leitura se aproxima da que é possível fazer a partir da redução
fenomenológica de Husserl. Como exemplo usarei uma leitura da peça As Três
Irmãs, do escritor russo Anton Tchecov.
A Rússia é gelada a maior parte do ano. Um lugar distante e com uma língua certamente
incompreensível para a maioria de nós. Vivemos nos trópicos, onde se fala português e se
ouve samba. Aquele país continente, maior até mesmo que o nosso, certamente não tem muito
o que ver com o Brasil do futebol, das praias paradisíacas, do Pantanal e da Amazônia. Nem
com a miscigenação que produziu o povo brasileiro.
Foi lá que Anton Tchecov escreveu e publicou uma de suas mais bonitas peças. As Três
Irmãs foi escrita no final do século XIX e publicada em 1901, um tempo muito diferente do
nosso. Um século e um ano atrás! Não havia televisão, naquela época, nem computador, e o
homem não tinha ido à Lua. Decididamente, um outro tempo, um outro mundo.
Pois naquele mundo e naquele tempo, Tchecov escreve em sua peça uma comovente
passagem em que Macha diz, a sua irmã Olga, que se dera conta de que já estava esquecendo
o rosto da mãe, morta algum tempo antes. Olga também se surpreende. Vê o mesmo vazio que
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a irmã. Então, um terceiro personagem intervém, melancólico e sem perder a elegância.
Lembra que o esquecimento seria o destino de todos eles, os que estavam naquela casa a
centenas de quilômetros de Moscou, e inclusive o do tempo em que viviam. Todos serão
esquecidos um dia, pois estamos indo para um nada. Um grande e deserto nada. É essa a
mensagem principal da peça.
Hoje talvez fique mais difícil, em pleno início do século XXI, imaginar a triste história
narrada por Tchecov - Macha e Olga terem esquecido o rosto da mãe - mas podemos pensar
que, em milhares de anos, somente nos últimos cem temos registros mais abundantes dos
rostos de nossas pessoas queridas, e que, antes do século XX, era bem mais fácil alguém
morrer para sempre, inclusive da memória de alguém. Nem nos túmulos iam fotos. Porque
elas não existiam. Mas o que quero dizer com isso? Bom, As Três Irmãs foi escrita em uma
sociedade determinada, passa-se em uma aldeia a centenas de quilômetros de Moscou, retrata
uma certa família, três irmãs, e uma época que não existe mais. No entanto, a lemos através
dos tempos, inclusive hoje.
Rio, 40 graus
Rio de Janeiro, outubro de 2002, 35º a sombra, parte do comércio da cidade fechado pelo
tráfico de drogas, clima de espera pelas eleições presidenciais, trânsito nervoso, som de
disparos de armas, um brasileiro lê As Três Irmãs. Depara-se com o diálogo de Macha e Olga.
Poderia entendê-lo? Qual a operação que ele faz no momento de ler este texto, que o
possibilite um contato com algo tão estranho a sua cultura, seu espaço e seu tempo? Forma
um túnel ao seu redor, ligando-o diretamente com tão estranha cultura? Coloca o mundo entre
parênteses e separa o que é exterior do que seria a "essência" do que está escrito? Imagino que
sim, e é sobre isso que este artigo pretende tratar, tentando defender uma leitura de ficção
como redução fenomenológica, e uma crítica literária a partir deste mesmo método.
O presente artigo também pretende afirmar que só com a redução é que se pode realmente
entender o texto. As demais leituras seriam laterais, focalizariam elementos menos
importantes para quem está disposto a ler o horror a que Tchecov está se referindo, e que é o
mesmo horror no Rio de Janeiro de 2002, em Tóquio de 1975, Pequim da década de 80,
Buenos Aires nos anos 30, Nova York de 1998, Atenas de 1920. Ou seja, em qualquer tempo
ou lugar o essencial de As Três Irmãs é o mesmo.
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O mundo entre parênteses
O que é uma redução fenomenológica? Bom, a grosso modo, é um método do filósofo
alemão Edmund Husserl, criador da famosa, influente e hoje fora de moda "fenomenologia".
Para simplificar as coisas, a redução fenomenológica consiste em pôr em parênteses o mundo
exterior à consciência, que Husserl chamava de "transcendente" para buscar a "essência" dos
fenômenos. Um exemplo de redução é o que se pode fazer para ler a passagem sobre Olga e
Macha. Retiramos o fato de que o livro foi escrito em outra língua, num país distante, numa
história específica, a muitos graus abaixo de zero, e que está sendo lido mais de um século
depois num país que em nada tem a ver com a Rússia, nem geográfica, nem historicamente,
climaticamente ou o que seja. Pois retirando-se todo este "entulho", tudo o que não interessa,
chega ao leitor uma essência. Talvez seja essa a própria essência da literatura.
É o mesmo que acontece com a tragédia grega, que nos é trágica porque trata da nossa
sinuca de bico existencial, e não apenas da dos gregos, como também se pode ler. No entanto
é tão problemática uma leitura dessas que, a partir dela, seria possível supor que os latinoamericanos, africanos ou asiáticos tivessem suas tragédias diferentes das tratadas por
Sófocles, Eurípedes ou Ésquilo. Ora, é a condição humana que nos faz participar do drama da
humanidade e não o tempo, a cultura, a raça, o país ou as condições econômicas em que
nascemos. Também acontece o mesmo com os personagens de Shakespeare ou Dante, com
Borges e Machado de Assis, em seus países e culturas próprios. Eles não têm pátria, nem
tempo, não porque sejam etéreos, ou por algum misticismo que se costuma fazer, mas porque
a essência do que disseram sobrevive ao circunstancial, ao temporal, ao espacial, ao
econômico e ao psicológico.
Uma crítica tira-entulhos
Aqui está apresentada a idéia central do que passo a desenvolver a seguir e que quero
chamar de uma crítica literária como escavação, a crítica como arqueologia, ou a leitura que
tira entulhos. Uma leitura fenomenológica da história das literaturas, então, talvez pudesse ser
capaz de trazer à tona o substrato, a essência desse amontoado de literaturas a que chamamos
neste artigo, simplesmente, de "Literatura". O conceito de "essência", é preciso lembrar, não
está sendo usado no sentido anterior ao de Husserl. Neste texto, essência é precedida pela
existência, ou seja, é essência feita no "vir-a-ser" ou no "que-fazer" e "vida como problema",
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orteguianos. Não no sentido dos realistas, de uma estrutura universal anterior aplicada à
existência. O conjunto dessas essências, portanto, seria a essência do que foi "feito", não do
que "é" antes de existir e se fazer.
A escavação consiste em olhar para a literatura e, colocando em parênteses o mundo
exterior, ficar apenas com o que é essencial nela: ou seja o fenômeno literário. Feita esta
redução fenomenológica, podemos então proceder às demais reduções, possíveis segundo
Husserl, até chegarmos a um suposto "núcleo", ou essência. Essa seria, então, o que está
soterrado sob toneladas de circunstâncias, tais como a história, as culturas etc.
Recapitulando o método: 1. Separar o fenômeno literário do mundo exterior (colocá-lo
temporariamente em parênteses, sem esquecê-lo para sempre). 2. Proceder às demais
reduções, chamadas "reduções eidéticas", em busca do "eidos", a essência. Na obra literária,
essa redução eidética seria a que se faz colocando entre parênteses, também, sua estrutura, o
enredo, personagens, ambientação, quando esses elementos são externos e não contam para a
essência, mas que, ao contrário, são uma grande casca escondendo o que está dentro.
Poderíamos, assim, chegar a conclusões interessantes como a de que alguns textos são
essenciais e de que outros não têm essência. São vazios forrados apenas por entulhos. Outros
teriam essência como imitação da essência de outros textos, não conseguindo iluminar nem o
tema nem o leitor (o que quer dizer, não são arte). Ao contrário deles, seriam textos superiores
os que iluminam tanto o tema que tratam quanto os leitores. É o caso de Tchecov.
A propósito, a diferença entre filosofia e literatura poderia, inclusive, ser pensada nestes
termos: a filosofia ilumina o tema, a literatura ilumina o tema e o leitor. Há ainda uma
distinção interessante, feita pelo filósofo gaúcho Ernani Maria Fiori, ao diferenciar o artista
do artesão. Para ele, o artesão é o que repete a técnica, a criatividade, a expressão, sem se
interessar expandir a arte para algum lugar. Quem se coloca esse objetivo é artista.
O fenômeno literário é um universal
Essa escavação pretende então possibilitar enxergar também o fenômeno literário como
universal, retirando os escombros culturais e temporais para focar com sua lanterna a arte
literária dentro da casca do mundo. Algumas perguntas em relação ao fazer literário seriam o
que é fazer literatura independente de onde se faça ou quando se faça?, o que é a
especificidade do fazer literário?, e existe literatura universal?
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Para iluminar um pouco este tema, podemos partir de um modelo explicitado pelo
colaborador da New Left Review, o professor Franco Moretti. A pergunta a que ele pretende
responder é se existe ou não uma "literatura mundial". Contra a idéia de "literaturas
comparadas", Moretti afirma que o que existe em termos de literatura não passam de ramos de
uma matriz: a literatura européia. Demonstra, analisando romances, novelas e poemas das
mais distantes partes do mundo que, em nada, ou muito pouco, eles se diferem de seus
modelos europeus. América Latina, Mundo Árabe, África etc importaram, através dos
tempos, a literatura para seus países, dando-lhes, como diferencial em relação ao que se fazia
na capital intelectual, uma certa cor local para seus escritos - até mesmo esse elemento,
aponta Moretti, é essencialmente europeu, pois os europeus sempre encheram de cor local os
seus romances, contos, novelas, poemas etc. Quer dizer: segundo Moretti, nem mesmo
quando acrescentou algo ao modelo europeu a literatura de nenhuma outra parte do mundo
teria feito outra coisa que, realmente, não fosse a literatura feita na Europa.
Foi quase em 1600 que o espanhol Miguel de Cervantes, ao escrever Don Quixote de La
Mancha, criava um gênero literário chamado romance. Europeu, portanto, o gênero foi
exportado aos mais distantes cantos do mundo e, conforme Moretti, mesmo quando chega ao
Oriente Médio - uma cultura bastante diferente da Ocidental – cultivado lá, o romance não se
modifica em nada em relação à matriz. O que dizer, então, da tardia literatura russa, feita não
só na parte européia do país, mas também na asiática? É tão européia quanto a feita na França
ou Inglaterra, e só acrescenta costumes e culturas dos eslavos ao gênero romance. Não
podemos esquecer que Nicolai Gógol, Iván Turgueniev, León Tostói e Fiodor Dostoiévski são
também sublimes romancistas, mestres nessa arte européia.
Antes da Rússia do século XIX, a literatura já havia sido plantada entre nós, na América
Latina. Mas foi no século XX que alguns latino-americanos começaram a ser reconhecidos no
mundo como escritores de primeira grandeza, destacando-se além dos prêmios Nobel – os
famosos representantes da literatura fantástica – os argentinos Borges e Cortázar, entre outros
importantes escritores não-europeus do século. Todos esses acrescentam algo novo à
literatura universal, visto que, não estanque geográfica ou culturalmente, os escritores passam
a fazer em muitos outros lugares do mundo a mesma literatura feita no boom. É impossível
uma literatura comparada, portanto, segundo Moretti, porque Literatura é, antes, um sistema,
que se desenvolve no mundo todo, mas é uma só literatura em qualquer parte em que vá.
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Onda e árvore: dois modelos
Moretti diz haver duas imagens de concepções de cultura. Uma é a de onda, outra a de
árvore. No modelo "onda", as culturas são próprias e movimentam-se a partir de um núcleo
até suas fronteiras, onde inicia outra cultura, como verdadeiras ondas. A comparação entre
elas se dá no nível do comparatismo cultural. É o oposto do modelo "árvore", em que há um
tronco inicial da cultura e todas as outras são ramificações dela. Há diferentes culturas
humanas, mas todas elas são a "cultura humana". Há diferentes civilizações, mas todas elas
formam a humanidade. No modelo "árvore", os galhos das culturas estão presos a uma idéia
inicial, a um sistema com início histórico e geográfico presumíveis. A literatura forma um
sistema.
Moretti coloca o mundo exterior entre parênteses ao expor uma literatura universal que se
expande por todo o mundo, embora tenha raízes na Europa. Mas uma fenomenologia da
literatura colocaria entre parênteses até mesmo esse mundo exterior inicial, a partir do qual
Moretti argumenta. A Europa de onde ela brota não é dona da literatura, mas uma casca
dispensável na hora que se quer os verdadeiros frutos, que brotam com freqüência no Brasil,
Argentina, Canadá etc. Seu modelo de cultura se comportando como árvore interessa para
pensar a literatura e principalmente para mostrar que, numa análise de literatura comparada, a
partir do outro modelo, o de onda, promovem-se cisões na literatura que dificilmente se
sustentem na realidade. Nem língua nem o território parecem delimitar a literatura, a não ser
que o observador a reduza a aspectos circunstanciais como a língua em que foi escrita, o
tempo, a cultura, as condições climáticas em que nasceu etc.
Cores locais podem não ser literatura
Depois de uma redução fenomenológica, as cores locais parecem mais ser aspectos
externos da literatura, circunstâncias que as formam, mas que não são seu todo. As tinturas ou
cores locais, nesses romances, só os acrescentam, mas uma fenomenologia talvez pudesse dar
conta de que até mesmo as cores só acrescentam à literatura quando ultrapassam a
circunstância, o contingente, e passam a ser também carne, também essência da literatura.
Mas como fazer com que a mera cor local ganhe status de arte? Deveríamos usar critérios tais
como de técnica, criatividade e expressão para darmos conta do problema. A questão não é de
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ordem vegetal, cultural ou anima. A pergunta literária é de ordem estética e é respondida no
âmbito estético, não no ético, político ou social.
Como técnica, um autor de determinada cultura, russa, por exemplo, pode inventar uma
forma de contar uma história. Certamente que essa revolução não é o resultado simples e
direto da cultura russa, mas do esforço ou genialidade de um Nicolai Gogol. Muito embora as
cores que utilize sejam russas não é este o fato central em O Capote, por exemplo. E se não é
o central, é secundário, não é o essencial. Essa literatura, mesmo sendo feita em carne russa,
em sua língua e território, não é russa. É universal. O que é essencial em O Capote? A
capacidade de se referir à arte de fazer literatura, com técnica, criatividade e expressão
tamanhas, que praticamente criou toda "uma literatura". "Todos nós saímos do Capote", disse
Dostoiévski, referindo-se aos escritores russos posteriores a Gogol.
Mas O Capote não é mais literatura russa do que universal. É manifestação, na Rússia, de
uma estrutura interna, de uma essência a que podemos captar olhando não para o frio passado
pelo pobre Akaki Akakievich, não para o sofrimento de quem levou mais de um ano
economizando vela para fazer um capote novo, não para o fato de ter comprado até a linha, os
botões e o tecido para que o alfaiate entrasse somente com a mão-de-obra, barateando-o. As
humilhações de Akaki não seriam literatura se ele não vestisse o capote e todos ao seu redor
passassem a tratá-lo não como o obscuro funcionário público, mas como o "dono do capote".
Convidado para festas, quando Akaki o deixava no saguão passava a ser um mortal entre os
outros, sem que ninguém o notasse. Retira-se o mundo externo e aí está algo certamente
essencial, e que podemos enxergar universalmente nos homens dentro de seus carros
brilhantes, apartamentos, choupanas na África, carros de boi da Ásia etc.
Metaforicamente, o que, escrito no Brasil, Chile, França, Rússia, Inglaterra, etc, não
conseguir ultrapassar as reais fronteiras da arte (que não são geográficas, mas as da técnica,
criatividade e expressão), não passam nunca a ser literatura essencial, universal. Estão do lado
de cá, do lado do mundo das coisas prosaicas, são mera circunstância entre as circunstâncias.
Por isso, talvez haja uma literatura que seja apenas literatura brasileira. É aquela que não tem
força suficiente para ultrapassar as fronteiras técnicas, criativas e expressivas de Machado de
Assis, Guimarães Rosa, Dalton Trevisan, João Cabral etc, autores que estão para além do
território em que escrevem. Estão no mundo da literatura.
E há algumas fracas coisas escritas que, mesmo circulando todo o planeta, o fazem por
fora. É-lhes vedada, por abstenção de sua própria parte, a entrada no mundo literário, que
existe além dos mapas e que garantem a universalidade do que é escrito. Foram feitas dentro
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das circunstâncias e são levadas adiante por outras circunstâncias, como o poder do mercado e
o gosto popular (circunstâncias máximas de uma sociedade de massas).
Literatura colorida, algumas das coisas escritas estão saturadas de tintas e cores locais,
como espécie de cosméticos, de pintura facial. Às vezes são camadas imensas de tinta que
formam em seu conjunto um corpo adiposo e flácido recobrindo um esqueleto frágil, sem
técnica, sem criatividade, sem expressão. Quando há uma falta a outra, e assim por diante.
Quanto à técnica, uma redução eidética poderia mostrar que não se trata de uma técnica
européia. Moretti vê o romance ou a poesia como gêneros europeus, mas com uma redução
fenomenológica poderíamos entender que esses gêneros são desenvolvidos no mundo todo
com a contribuição de Borges, Cortázar, Phillip Roth, João Cabral, Sándor Marai etc em seus
países e tempos. E nem todos são europeus.
Literatura como expressão do sujeito transcendental
Contra o que chama de Escola do Ressentimento – o conjunto da maioria das leituras
feitas em nosso tempo, que despreza todas as hierarquizações, verticalizações, validações e
valorizações - o controvertido crítico literário estadunidense Hardold Bloom pretende que
haja uma essência, ou um núcleo, para toda a literatura. Identifica-o com o que chama de
"cânome ocidental". Uma fenomenologia tentaria defender não o cânone de Bloom como
essência da literatura, mas o "sujeito transcendental", o sujeito husserliano, próximo do cogito
cartesiano, como condição de possibilidade e esfera onde se dá o fazer literário. É a solidão
radical, de que somos feitos, segundo Ortega y Gasset.
É possível uma forma de compreensão da literatura como expressão de um eu
transcendental, ou seja: da literatura como resultado de uma estrutura a priori, mas que está
no mundo, como pensam os fenomenólogos e existencialistas, nunca fora das circunstâncias.
Ortega afirma que a vida, como realidade radical, ou seja, como única realidade possível, é
condição de possibilidade e circunstância a partir da qual se pode vivenciar qualquer
fenômeno, inclusive o metafísico, se ele existir. Segundo Ortega, nada há fora dessa
circunstância primeira, a "minha vida". Mesmo depois da morte, o eu só a experimentaria, e o
que pudesse existir para além dela, se estivesse vivo. Portanto essa realidade radical (com
perdão da cacofonia, a vida do "eu", ou a "minha vida") me acompanhará sempre, se eu
existir, e nada pode existir fora dela: claro que nem literatura.
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Esse seria o elemento primordial e verdadeira essência de todo o fazer humano, incluindo
a arte. A pré-condição, portanto, para uma produção literária. Todas as vezes que o ser
humano está fazendo literatura está fazendo expressão dessa sua estrutura a priori, a "minha
vida". Também toda vez que está lendo está em contato com algo feito a partir dessa
estrutura.
Literatura, então, seria feita não a partir do mundo exterior, mas dessa estrutura a priori,
desse eu em sua solidão existencial a qual nem o escritor, nem ser humano algum pode
renunciar nem ultrapassar totalmente, por sua radicalidade. Sua literatura seria, então, a
expressão dessa solidão dentro das outras circunstâncias a que sempre está submetido. Esta
solidão é o eu, o espaço de liberdade que existe para além de todas as outras circunstâncias e
que não é determinado por contingências físicas, sociais, econômicas, segundo Ortega, mas
que é autônomo, se move, decide e é "que-fazer".
Muito antes dos existencialistas franceses, o filósofo espanhol foi contundente em sua
concepção de liberdade. Escreveu "eu não sou meu corpo nem minha alma" (ou psiquismo), o
que quer dizer eu não sou minha pátria, nem a língua que uso agora para escrever e que está
no mundo externo a mim, embora eu tenha me apropriado dela para fazer a conexão do que
está dentro de mim (minha mente), com o que está fora (o mundo ao meu redor). Eu não sou
negro nem branco, nem pobre, nem rico, porque eu não sou as circunstâncias, simplesmente,
por mais que esteja até os olhos enfiado na pobreza ou na riqueza na pele de um branco ou
negro, numa cultura ou outra. Eu sou eu e isso, não só isso, nem só eu.
Todos esses elementos, incluindo meu psiquismo, que me condiciona de fora, as pressões
psicológicas que me moldaram, não são eu, mas circunstâncias nas quais vivo e sobrevivo,
contra as quais me debato e que até me sustentam. Afinal, sem circunstância, também nem eu
seria, porque só sou na circunstância, embora não seja a circunstância. A contingência me
oprime e me sustenta como um frágil espaço de liberdade. É como se cada um de nós, em
nosso núcleo, fôssemos ínfimos espaços de liberdade, como bolhas de ar na imensa
contingência que é o todo, o universo, o sistema solar, a Terra, o Brasil, o Rio Grande do Sul,
a espécie humana, o indivíduo. Lá dentro tem o eu que é eu junto com tudo o que está em
volta, mas que só é eu também porque está para além do que está em volta. Não fosse isso,
seria objeto. A leitura de literatura que desconsidera este fato trata o homem como objeto, não
como sujeito. Essa espécie de vazio, que não é vazio, mas que tem espaço para que sejamos
livres (a essência), Fernando Pessoa identificou em um de seus mais bonitos versos em que
diz: "grandes e desertas são as almas".
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Este é o sentido metafísico da frase de Ortega y Gasset tão famosa quanto
malinterpretada: "Yo soy yo y mis circunstancias". Ela tem duplo significado em sua
filosofia, como já sinalizou Ferrater Mora em "Ortega y Gasset - Etapas de uma Filosofia",
também pedra fundamental de seu raciovitalismo. Um sentido faz uma crítica aos
racionalistas, outro, aos idealistas. Só nos lembramos da primeira talvez por sermos hoje
demais realistas. Depois do século XIX, positivista e massificador, segundo George Simmel,
fica cada vez mais difícil pensar como indivíduo, como o sujeito "condenado à liberdade"
orteguiano, famoso, depois, com Sartre. Condenado pelos existencialistas, também, à solidão.
E está em Sartre ainda o conceito de universal a que nos reportamos. A condição humana, por
exemplo, é um universal a que todos nós pertencemos por sermos humanos, absolutamente,
para além das condições e circunstâncias, das terras e dos tempos. É essa a condição de
possibilidade da leitura da frase de nossa irmã Macha a Olga, escrita por Tchecov.
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