1 A CORRELAÇÃO ENTRE OS PRINCÍPIOS DA PUBLICIDADE E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA ATUAÇÃO DA MÍDIA EM FACE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE1 Álisson da Silva Costa 2 Fernando Horta Tavares3 Francis Vanine de Andrade Reis4 Maria Cecília de Moura Lima Jeha5 RESUMO Os princípios representam incontestável importância nos sistemas jurídicos servindo, pois, como orientação no que tange a elaboração das demais regras. Todavia, apresentam uma carga normativa relativamente recente. Na atual principiologia, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, enquanto um dos pilares do Paradigma do Estado Democrático de Direito merece especial destaque em razão da concepção do Homem com um fim em si mesmo. Somese a este o Princípio da Publicidade, essencial para a fiscalização e manutenção de um Estado Democrático. Este último princípio, entrementes, não é de caráter absoluto, sofrendo por vezes, restrições em seu aspecto externo em prol da incidência de outros princípios, como ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente, no qual a publicidade é restringida para preservação da intimidade como um aspecto da dignidade da pessoa humana. PALAVRAS-CHAVE: Princípios; direitos fundamentais; dignidade da pessoa humana; Publicidade; Estatuto da Criança e do Adolescente; Constituição Brasileira de 1988; Estado Democrático de Direito. 1 Este artigo é fruto das pesquisas realizadas pelo Grupo de Estudos em Teoria do Direito, Constituição e Processo José Alfredo de Oliveira Baracho, da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas, no 2º semestre de 2007. 2 Aluno do 8º período do curso de Direito. 3 Bacharel em História e em Direito. Mestre em Direito Processual. Doutor em Direito. Advogado e Professor Universitário. 4 Bacharel em Direito. Especialista em Direito Empresarial. Mestrando em Direito Processual. Advogado e professor universitário. 5 Bacharel em Fisioterapia e aluna do 4º período do curso de Direito. 2 1 INTRODUÇÃO É imperioso, na positividade atual, quando se procura estudar formas de concretização de uma democracia radical a exigir incessante fiscalização, fazer um paralelo entre os princípios da dignidade da pessoa humana e da publicidade. Essa temática assume relevo em relação à atuação da mídia, a qual se encontra limitada de sobremaneira por alguns dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente, no sentido de restrição do acesso à informação, por parte de pessoas não diretamente afetadas pelos procedimentos que envolvam menores. Os constantes excessos dos veículos de informação têm feito com que a mídia passe de um papel de simples informadora para pré-julgadora, sobretudo em relação aos ilícitos penais ocorridos na sociedade. A situação é agravada pela exposição da intimidade de menores envolvidos (ou supostamente) em fatos delituosos. Assim, é necessária uma reflexão sobre quais são os limites de atuação de tais veículos a fim de evitar ofensa à imagem dos envolvidos, mas também, sem privar os demais cidadãos de seu direito à informação. Para tanto, a elucidação da noção contemporânea dos princípios, além da demarcação do significado de dignidade da pessoa humana e publicidade, são imperiosos, visto que, na contemporaneidade, há um reconhecimento, pelos ordenamentos jurídicos em geral, de que o ser humano é o centro, e o fim, do Direito. Esse esclarecimento, por sua vez, propiciará visualizar os limites da aplicação da dignidade e da publicidade, bem como oferecer uma reflexão sobre a constitucionalidade das restrições a essa última, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente. 2 A CONTEMPORÂNEA NOÇÃO NORMATIVA DE PRINCÍPIO Hodiernamente, segundo Fábio Konder Comparato (apud PIOVESAN, 2004, p. 92), os princípios fundamentais6 da Constituição Federal constituem a fonte primordial para a sua interpretação. Têm eles, segundo Flavia Piovesan 6 Há aqui uma mudança em relação à orientação contida na Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/1942) quando, ao dispor, em seu artigo 4º, sobre os princípios gerais do direito, considera-os como uma fonte secundária, subsidiária, do direito, aplicável apenas na omissão da lei. 3 (2004, p. 221), verdadeira função ordenadora, na medida em que salvaguardam valores fundamentais, sendo fonte de orientação axiológica e teleológica do sistema. Andrés Ollero (apud MATTE, 2003, p. 148), destaca que essa função de orientação é imprescindível na atividade de interpretação da lei, considerando que, como o princípio é portador dos valores dominantes na sociedade que o produziu, facilita o consenso hermenêutico por auxiliar o encontro do melhor significado da norma para cada caso. Têm os princípios, assim, função de aclareamento na busca por soluções, mesmo nas questões jurídicas mais complexas, porquanto todas as regras ficam vinculadas aos valores que portam, tornando-os responsáveis pela unidade do ordenamento (BONAVIDES, 2002, p. 232 e BONAVIDES, 1993, p. 110). Ainda na mesma linha, José Afonso da Silva anota que são como mandamentos nucleares condensadores da confluência dos valores e bens constitucionais (1990, p. 82). Para Ronald Dworkin (apud PIOVESAN, 2004, p. 91), no ordenamento jurídico, os princípios estão ao lado das normas legais incorporando as exigências de justiça e dos valores éticos. Constituem a base axiológica que proporciona nexo e simetria não só ao ordenamento, como também à interpretação constitucional. Logo, o autor atenta para a necessidade de tratálos como direito, emparelhando-se aos autores já citados. Vale a pena, ainda nesse sentido, a lembrança de Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias (2004, p. 119), que sustenta serem os princípios normas jurídicas que expressam, através de enunciados sintéticos, o conteúdo rebuscado de idéias científicas e proposições fundamentais caracterizadoras e componentes do ordenamento jurídico. É essa também a posição de Alexy, (apud BRÊTAS C. DIAS, 2004, p. 119-120), ao entender que a expressão normas jurídicas, em noção ampla, inclui as idéias de regras jurídicas (como normas-disposições) e de princípios jurídicos (como normas-princípios). A distinção entre ambos, como dois tipos de normas, está no campo qualitativo. As regras (comandos de definição) ou são válidas e aplicáveis ou são inválidas e não se aplicam, não existindo meio-termo. Já os princípios, como comandos de otimização, admitem uma aplicação mais ou menos ampla 4 na maior medida possível, de acordo com as possibilidades físicas e jurídicas existentes. Dessa forma, são os responsáveis pela concretização de um valor dentro dos limites práticos e jurídicos. (ALEXY apud BARCELLOS, 2000, p. 172). Afirma-se, pelo exposto, a importância dos princípios para todo sistema normativo, de forma que encontrem para cada caso concreto um sentido, mas sem que seu conteúdo mínimo varie. São, portanto, conforme defende Lúcia Helena Bettini (2006, p. 43), os fundamentos para interpretação da Constituição, o que os torna responsáveis por sua efetividade, ao unificarem a visão sobre cada regra, porque irradiam seus valores para as outras normas7. Ana Paula de Barcellos (2000, p. 163-164), nos traz grande contribuição ao entendimento dessa função normativa dos princípios ao afirmar que todas as normas constitucionais, independentemente da sua natureza, são carregadas de imperatividade e coercitibilidade, estando à disposição de todos os jurisdicionados. Os princípios, dessa maneira, também serão impostos coativamente pela ordem jurídica quando não se realizam espontaneamente, como ocorre com as demais normas jurídicas (regras). A opinião tem se tornando um consenso entre diversos autores, dentre os quais, conforme informação da mesma autora (2000, p. 168), podemos citar, na literatura jurídica nacional, Paulo Bonavides; Luís Roberto Barroso; Eros Roberto Grau; e na literatura jurídica estrangeira, Robert Alexy; Ronald Dworkin; Norberto Bobbio; Eduardo Garcia de Enterria; e Gomes Canotilho. Bandeira de Mello (apud BARCELLOS, 2000, p. 170), é ainda mais enfático ao defender que a transgressão à norma principiólogica é mais grave que a desobediência à simples regra, porque não ofende apenas a um mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos8. 7 Vale a pena citação literal dessa idéia da autora: “Cabe ainda falarmos que as normas de direitos fundamentais se conciliam com a conceituação de normas-princípios que são distintas das chamadas normas-regras, pois as primeiras fazem uma referência a valores, podendo-se se afirmar que as regras buscam fundamento nos princípios” (2006, p. 46). 8 Em sentido contrário, a posição de Gomes Canotilho, ao sugerir que tanto os princípios como as regras são normas constitucionais de mesmo patamar hierárquico, porém, os primeiros ganham força valorativa e amplitude em virtude de seu conteúdo, espalhando seus valores a outras normas, possuindo pouca densidade semântica. O autor anota que essa foi a forma normativa utilizada pelo legislador na positivação dos direitos fundamentais (apud BETTINI, 2000, p. 46). 5 Um reparo deve, agora, ser realizado nas opiniões expostas. Em que pese terem os princípios natureza mais genérica e de maior alcance, abrangendo diversas situações, na presente positividade do ordenamento brasileiro não podemos dizer que têm função de abarcar valores da sociedade. Não obstante grande parte da literatura partilhe dessa concepção axiológica, o conceito de princípio não se confunde com o conceito de valor, de forma que deve ser adotada uma concepção deontológica. É a posição defendida por autores como Habermas e Günther (apud GALUPPO, 2002, p. 180-191), os quais destacam não ser possível confundir as normas com valores, já que as primeiras se referem a um agir obrigatório, tendo suas bases na codificação por sua obrigatoriedade absoluta e, os segundos se referem a um agir teleológico, tendo seus fundamentos em pretensões de validade e em uma obrigatoriedade relativa9. Consoante à concepção acima, Dworkin, considera o conceito de Integridade10 como responsável pela atribuição de legitimidade a um sistema jurídico. Dessa forma, assevera que os princípios seriam concorrentes, não sendo, portanto, uma questão de contradição ou de tensão entre direitos, já que podem ser concebidos como independentes entre si. Ou seja, não é uma questão de resolver um conflito pela maior aplicação de um e não aplicação de outro princípio (de forma hierárquica), e sim de que os princípios são normas que podem se excepcionar reciprocamente nos casos concretos, desde que 9 Precisa distinção entre deontologia e axiologia, no campo do direito é realizada por Cattoni, pelo que merece ser citada literalmente: “[...] um direito não pode ser compreendido como um bem, mas como algo que é devido e não como algo que seja atrativo. Bens e interesses, assim como valores, podem ter negociada a sua ‘aplicação’, são algo por que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direitos, não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como bens ou valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso individual” (apud GALUPPO, 2002, p. 183-184). Habermas, na mesma linha, acrescenta: “Normas e princípios (Grundsätze) possuem um poder de fundamentação maior sobre o direito do que a de valores, porque podem fundamentar seu sentido deontológico de validade em uma pretensão de obrigatoriedade universal, e não apenas em uma dignidade especial de preferência; valores têm que ser, caso a caso, empregados numa ordem transitiva de valoração” (apud GALUPPO, 2002, p. 184). 10 Integridade, segundo Dworkin, é um conceito ligado às razões que constituem o substrato das normas jurídicas e que se conecta diretamente com os conceitos de justiça, de imparcialidade (fairness) e de igualdade. Assim, uma decisão somente é justa se respeita a Integridade do direito, isto é, se responde corretamente ou adequadamente para o caso. Assim, baseando-se nesse conceito, Dworkin reitera que os princípios são modelos (standard) que devem ser observados por serem exigências de justiça, de imparcialidade ou de qualquer outra dimensão de moralidade, e não porque asseguram um interesse de cunho econômico, social ou político, entre outros. 6 haja fundamentação suficiente, de modo a reduzir a indeterminação contida em toda e qualquer norma principiológica. (apud GALUPPO, 2002, p. 186). Ademais, partilhando da concepção deontológica dos princípios, podemos então afirmar que estes, uma vez que não representam soluções preconcebidas e não são absolutos, não podem também ser hierarquizados. Sendo distintos das regras, podem ser contrários sem ser contraditórios e sem se eliminarem reciprocamente. Assim, podem subsistir no ordenamento jurídico princípios opostos, os quais estão sempre em concorrência entre si para reger uma determinada situação, podendo ser aplicados nos limites e nos contornos das circunstâncias fáticas (de acordo com a adeqüabilidade)11. No entanto, isso não supõe que sejam determinados por tais circunstâncias, mas sim, que sempre tenham por escopo a busca da imparcialidade na fundamentação na sua aplicação. Finalmente, a concepção dos princípios não pode se distanciar ou desprender-se da Constituição, visto que esta, além da sua supremacia, abarca os princípios gerais do ordenamento e reflete as aspirações do povo. Do exposto, pode-se concluir que, hierarquicamente superiores às regras, os princípios têm, na atualidade, destacada função normativa, como comandos genéricos para construção e aplicação do ordenamento jurídico, atuando na fase de produção das regras e de sua interpretação. Foi essa a técnica de redação da Constituição Brasileira em vigor, preponderantemente principiólogica e de acentuado caráter deontológico, o que representa uma ruptura com o sistema anterior representado pela citada Lei de Introdução ao Código Civil. 3 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Podemos afirmar que, hoje, a dignidade da pessoa humana é uma referência ética a orientar a ordem jurídica interna e internacional. Trata-se de um princípio que é, ao mesmo tempo, base e fim para vários ordenamentos jurídicos mundiais, inclusive o brasileiro. 11 Quando do conflito entre regras, existem três critérios para a solução do mesmo: o hierárquico, o cronológico e o da especialidade. Já em se tratando do conflito entre princípios, outra solução apresentada consiste na utilização do método apresentado por Robert Alexy, em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, o método da Ponderação. Pelo conceito de ponderação “nenhum princípio pode, de maneira absoluta e por si só, pretender ter uma precedência absoluta sobre outro princípio.” (apud BARRETO, 2006, p. 33-35). 7 Desde a Declaração Universal de 1948, quando o movimento de internacionalização dos direitos humanos e sua concepção contemporânea foram por ela introduzidos, a dignidade humana vem sendo firmada como valor que ilumina o universo dos direitos. Desde então, esse valor passou a abranger todo o sistema internacional de proteção conferindo-lhe universalidade e indivisibilidade12 (PIOVESAN, 2004, p. 87). Dessa forma, segundo Flavia Piovesan (2004, p. 87), “sob o prisma jurídico, percebe-se que a primazia da pessoa, fundada na dignidade humana, é resposta à aguda crise sofrida pelo positivismo jurídico”. Tal pensamento ocorreu em um contexto pós-atrocidades do fascismo, nazismo e depois de duas guerras seguidas, o que gerou a emergência de crítica e repúdio à idéia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, captado pela ótica puramente formal. Assim, as constituições européias do pós-guerra aparecem munidas de grande carga axiológica, com destaque ao valor da dignidade da pessoa humana (PIOVESAN, 2004, p. 88). Sucessivamente, as Cartas Constitucionais ocidentais abrem-se aos princípios e o valor da dignidade da pessoa humana adentra nas promulgadas ao longo do processo de democratização política, inclusive no Brasil, como comprova a Constituição Brasileira de 1988. Nesta, a dignidade da pessoa humana confere-lhe unidade de sentido, impondo-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional (PIOVESAN, 2004, p. 91). Sustenta Bonavides (2001, p. 233), que o princípio da dignidade da pessoa humana é o mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição, pois é o responsável por portar a carga semântica de todos os ângulos éticos da personalidade. Concernente ao Brasil, a Constituição de 1988 demarca o processo de democratização do Estado brasileiro, ao estabilizar a ruptura com o regime autoritário militar instalado em 1964 (PIOVESAN, 2003, p. 216). Conclamamos, 12 A universalidade exige a extensão universal dos direitos humanos, já que a pessoa é requisito único para a sua titularidade, e a indivisibilidade sustenta-se na garantia dos direitos civis e políticos como condição para a prática dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa (PIOVESAN, 2001, p. 111). Esse posicionamento é renovado pela Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, a qual reitera a concepção da Declaração de 1948. 8 assim, a “Carta de 1988” como marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos no Brasil, porquanto proporcionou grande avanço na consolidação legislativa dos direitos fundamentais e no amparo de setores vulneráveis da sociedade brasileira (PIOVESAN, 2003, p. 218). No mais, o que configura a força da Constituição é o fato dos direitos fundamentais nela positivados, terem sido elevados à cláusula pétrea, demonstrando a prioridade adotada quanto a essa matéria. Também Canotilho (apud PIOVESAN, 2004, p. 92), reiterando a mesma concepção, define assim o fenômeno do pós-guerra de abertura das cartas constitucionais aos valores e princípios, destacando que estes substituem, no século XX, o papel dos Códigos no Estado de Direito do século XIX. Por este caminho, revela a existência de um novo paradigma centrado na tendência de elevação da dignidade humana à pressuposto ineliminável de todos os constitucionalismos. Então, ainda na posição de Piovesan (2004 p. 94-95), o princípio da dignidade deve ter especial prioridade, pois, além de unificar e centralizar todo o ordenamento jurídico, simboliza um verdadeiro superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o constitucionalismo contemporâneo, nas esferas local e global, dotando-lhe de especial racionalidade, unidade e sentido. Bettini, apoiada em Jorge Miranda (2006, p. 47-49), sustenta que o princípio da dignidade deve ser sempre relacionado ao processo constitucional. Este último, visto como instrumento viabilizador dos direitos fundamentais e verificador da adequação da norma ao citado princípio, que tem como função a averiguação da legalidade e da legitimidade de certa norma. A mesma autora, ainda considera o princípio da dignidade como meta-princípio constitucional, valor unificador de todos os direitos fundamentais, inclusive os implícitos, porquanto tais direitos são os pilares legitimadores das Constituições. Reforçando a afirmação anterior, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra da Silva Martins (apud BETTINI, 2006, p. 49), defendem que a dignidade da pessoa humana comporta em si própria todos os direitos fundamentais. Diante disso, segundo Matte (2003, p. 151), o princípio da dignidade pode ser considerado como absoluto, uma vez que prevalece sobre qualquer outro valor ou princípio jurídico. No entanto, como já mencionado anteriormente, não há, em relação aos princípios o caráter absoluto. Além 9 disso, ressaltamos aqui, a nosso ver e como nas linhas iniciais deste artigo, a concepção da hierarquia superior dos princípios sobre as regras, como mais uma qualidade inerente e consolidativa desse princípio. Ainda, conforme a autora, esse princípio não pode ser excluído por outro e é sempre o critério material último de toda a decisão, o que dificulta de fato a sua violação, na realidade e no caso concreto. Esse posicionamento vai além da forte carga de abstração contida nele. Portanto, a importância suprema do princípio da dignidade da pessoa humana está no fato de ele ser um elemento comum à civilização ocidental contemporânea. É um princípio praticamente aceito no mundo e que vem sedimentando-se ao longo do tempo, historicamente, e que adquiriu um significado relativamente constante no tempo e universal no espaço: o valor do homem como um fim em si mesmo e a idéia de que só é digno aquele que pode fruir de todos os demais direitos fundamentais. 4 O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE De acordo com Firly Nascimento Filho (2002, p. 64), o processo é público, sendo tal regra corolário do Estado de Direito. No entanto, existe a possibilidade de sigilo relativo a determinados documentos e dados (e.g. bancários) das partes, se estes estiverem vinculados à intimidade dos litigantes, que, por sua vez, é também um dos direitos fundamentais13. Para Flávia Rahal (2004, p. 271), a publicidade humaniza o processo, já que protege o indivíduo, garante seus direitos e possibilita sua participação nos 13 Cynthia Semíramis Machado Vianna (2004, p. 103), ao discorrer sobre o conceito de privacidade, afirma ser este bastante controverso. No entanto, nos diversos juristas citados pela autora, vemos a grande relação existente entre a vida privada e a intimidade, mesmo sendo termos distintos. A vida privada seria oposta à vida pública, considerando as pessoas individualmente, singularmente, em oposição à coletividade. E, segundo De Plácido e Silva, citado pela autora, a intimidade seria a qualidade de ligação entre as pessoas, coisas ou fatos, importando na realidade o direito à intimidade, o qual é exercido pela garantia que a pessoa tem de não ter sua vida privada indevassada, podendo estar sozinho ou na companhia de quem quiser. A mesma autora dispõe ainda sobre o tema: “Assim, privacidade envolve não só intimidade e vida privada, mas é a exacerbação desses direitos, que são inerentes à natureza humana. O respeito à privacidade não depende de uma declaração constitucional, mas do reconhecimento de que, sem privacidade, não temos pessoa humana, mas Homo sapiens exposto em um zoológico social”. “[...] a privacidade deve ser um direito que extrapole a intimidade e proteja o ser humano, evitando o medo e a degradação de ser um animal em exposição, facilmente humilhado e controlado”. Concluindo, de acordo ainda com a autora (2004, p. 105), a privacidade, sendo direito inerente à natureza humana, deve ser respeitada e protegida para garantir a auto-estima e integridade do sujeito. 10 procedimentos jurisdicionais. A publicidade dos atos processuais, conforme expõe a autora é, portanto, uma conseqüência do Estado Democrático de Direito. Dessa maneira, o trato da coisa do público não pode ser secreto, deve sim ser acessível a todos e não reservado a determinados grupos hegemônicos. Esta é uma característica do regime democrático: o acesso ao desenvolvimento das atividades administrativas públicas, seja para a defesa de interesses individuais (uti singuli), seja para a defesa de interesses públicos (uti universi) (BINENBOJM, 2006, p. 93). Nesse sentido, a publicidade seria um antecedente necessário à transparência administrativa. E ressaltando esta última, discorre Antônio Carlos Cintra do Amaral (2003, p. 13) que, a noção de publicidade está ligada a uma administração pública transparente a todos quanto a sua lógica interna de organização e funcionamento, que se comunica e expõe ao conhecimento todas as suas decisões. As atividades públicas, do mesmo modo, devem ser realizadas no interesse da coletividade e a sua publicidade deve ser um verdadeiro mandando de otimização, o qual impõe o dever jurídico ao Estado para que este adote medidas progressivas de universalização do acesso das pessoas interessadas e da cidadania em geral às informações oficiais e atos do Poder Público (BINENBOJM, 2006, p. 96)14. Por conseguinte, Almada (2005, p. 17) considera a publicidade como o meio sine qua non de validação da função estatal, sob pena de se operar a subversão dos valores da democracia. Rente a isso, com a promulgação da Constituição em 1988, a publicidade recebeu a classificação de garantia constitucional (RAHAL, 2004, p. 272), com previsão em dois artigos: no 5º (inciso LX15), bem como no 93 (inciso IX16). 14 Vale a pena, aqui citação literal do autor: “Deste modo, ao instituir o princípio da publicidade como norma reitora do funcionamento da Administração Pública brasileira, a Constituição de 1988 impôs aos agentes públicos o dever de adotar, crescente e progressivamente, comportamentos necessários à consecução do maior grau possível de difusão e conhecimento por parte da cidadania dos atos e informações emanados do Poder Público” (BINENBOJM, 2006, p. 96). 15 Art. 5º [...] LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; [...] (grifos nossos). 16 Art. 93. [...] IX- todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos [...], sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à 11 Esse princípio, também está previsto no Título pertinente à Organização do Estado, Capítulo VII, que trata da Administração Pública, conforme redação do artigo 37, caput17. Almada (2005, p. 17), ressalta a existência da publicidade interna e da publicidade externa. A primeira é um instrumento que possibilita o exercício do contraditório, interesse direto dos litigantes a fim de comprovar e clarear a validade e legalidade dos procedimentos adotados pelo Estado. Já, a segunda, vem satisfazer a necessidade popular de verificar a legitimidade do exercício do poder pelos agentes públicos delegados, sendo então, conseqüência direta da soberania e da democracia. Com efeito, o papel da publicidade externa, na condição de garantia do processo é permitir que os atos concernentes a este último sejam acessíveis à opinião pública, para que, assim, possam ser fiscalizados e recebam o atributo de legitimidade pelo consenso público, evitando o arbítrio18. O princípio não é de caráter absoluto haja vista a dicção do Art. 15519 da Lei 5.869 de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, que permite sua restrição nas hipóteses de segredo de justiça, fundamentado no interesse público e na intimidade das partes. Mesmo assim, o terceiro interessado20, em causas pertinentes às Varas de Família21 em que pese não existir a publicidade externa, poderá, mediante a intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) [...] (grifos nossos) 17 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência [...]. (grifos nossos). 18 Essa é a posição de Almada que, pela precisão, merece transcrição literal: “Ausente a publicidade ou suavizada a sua aplicação, a jurisdição deixa de ser atividade pública fundada, ou legitimada, nos ideais democráticos de cidadania, tornando-se instrumento de arbítrio e de falsas promessas de justiça. Presente a publicidade, porém, nos moldes constitucionalmente desejados, a revelar inclusive o respeito dos atos do processo às demais garantias fundamentais do Estado de Direito, será sempre possível lograr o desejável consenso público a respeito dos meios de realização da justiça” (2005, p. 54) 19 Art. 155. Os atos processuais são públicos. Correm, todavia, em segredo de justiça os processos: I- em que o exigir o interesse público; II- que dizem respeito a casamento, filiação, separação dos cônjuges, conversão desta em divórcio, alimentos e guarda de menores. Parágrafo único. O direito de consultar os autos e de pedir certidões de seus atos é restrito às partes e a seus procuradores. O terceiro que demonstrar interesse jurídico, pode requerer ao juiz certidão do dispositivo da sentença, bem como de inventário e partilha resultante do desquite. 20 Terceiro aqui como aquele que não está legitimado à participação em um procedimento no qual se busca a validação e realização de uma pretensão, ou seja, no qual é possível a participação apenas daqueles indivíduos diretamente relacionados ao feito e primeiramente 12 demonstração pronunciamento do interesse decisório jurídico, como requerer também ao certidões juízo certidões relacionadas do aos procedimentos em que tramitam pedidos de inventário e partilha. Já em relação ao Processo Penal, seu Código (Decreto-Lei 3.689 de 03 de outubro de 1941), não trata do tema “segredo de justiça” de modo específico. Segundo Rahal (2004, p. 281-282), limita-se, no §1º do Art. 79222, a permitir que determinado ato seja realizado com as portas fechadas. A interpretação que se tem dado ao presente dispositivo é de que ele é análogo ao supracitado artigo do CPC. Além daqueles procedimentos que tramitam sob segredo de justiça, existem documentos que embora instruam pretensões sujeitas à publicidade externa, também são tratados em regime de sigilo. Esses dizem respeito à intimidade dos envolvidos, intimidade esta e a dos demais cidadãos elevada pelo constituinte originário como direito fundamental23. É, pois, a adequação de um princípio perante a incidência de outro, sem que ocorra qualquer prejuízo na aplicação de ambos. Ainda salienta Rahal (2004, p. 271) que, apesar de sua indiscutível importância, o princípio da publicidade vem sofrendo violações. Cita, por exemplo, a Lei 9.034/95 (Lei dos Crimes Organizados), em seu artigo 2º, inciso III, e artigo 3º, permitia a obtenção de provas secretas, diligências, entre outras medidas que atentavam contra a publicidade. No entanto, a Ação Direta de afetados pelo provimento final. Em outras palavras, a participação nos autos fica restrita às partes e seus procuradores. 21 Consoante o Art. 113 da Constituição do Estado de Minas Gerais, “o Juiz de Direito exerce a jurisdição comum estadual de primeiro grau e integra a carreira da magistratura nas comarcas e juízos e com a competência que a Lei de Organização e Divisão Judiciárias determinar.” A Lei de Organização e Divisão Judiciárias (LODJ) em seu Art. 60 dispõe que “Compete a Juiz de Vara de Família processar e julgar as causas relativas ao estado das pessoas e ao Direito de Família, respeitada a competência do Juiz de Vara da Infância e da Juventude.” 22 Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do o oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. § 1 Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes. (grifos nossos) 23 Art. 5º [...] X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; [...]. (grifos nossos) 13 Inconstitucionalidade (Adin) nº 1.570-224, de 11.11.2004, declarou a inconstitucionalidade do artigo 3º no que se refere aos dados "Fiscais" e "Eleitorais", deixando de lado as informações bancárias e financeiras, norma que, inclusive, foi parcialmente revogada pela LC 105/2001. Essa declaração representou um avanço, ainda que incipiente (porque limitado a apenas a essas duas hipóteses), em defesa da publicidade. Em relação ao direito estrangeiro, ainda consoante Rahal (2004, p. 271), podemos citar como grave limitação à publicidade, os atos patrióticos (Patriot Act’s)25 baixados pelo governo norte-americano após o atentado de 11 de setembro de 2001, ou ainda, a prisão de Guantanamo em Cuba, aonde os moldes da processualística da Inquisição vêm à tona e maculam as conquistas históricas do princípio em análise. A imprensa tem exercido um papel de Ministério Público ou até mesmo de julgadora nos casos em que não haja limitação à publicidade externa. Basta, nesse sentido, que a fase do inquérito policial no processo penal (na qual são verificados os indícios de autoria e provas da materialidade) ou uma ação penal cheguem ao conhecimento dos veículos de comunicação para que a sociedade exerça o seu pré-julgamento. Conseqüentemente, em ocorrendo tal hipótese, é gritante a violação a um outro preceito constitucional de importância primeira no processo penal: o princípio da presunção de inocência, previsto no Art. 5º, inciso LVI, da CR/8826. Diante do exposto, o princípio da publicidade, em que pese sua fundamentação como instrumento de fiscalização dos atos públicos pelo 24 “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. [...] 1. Lei 9.034/95. Superveniência da Lei Complementar 105/01. Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e financeiras. [...] Precedentes. Ação julgada procedente, em parte”. 25 Segundo notícia veiculada na Folha On-line, de autoria do cientista político Samuel Feldberg (2002): “Um mês após os ataques, foram aprovados os chamados ' Atos Patrióticos' , a maior iniciativa de restrição às liberdades individuais desde a época do McCarthismo; foram criados tribunais militares, autorizações quase que automáticas para escutas telefônicas; o governo federal foi autorizado a prender cidadãos suspeitos por até sete dias sem acusações formais; os controles de fronteira foram intensificados e intensificou-se a xenofobia que antes se limitava a questões de imigração ilegal e disputa por postos de trabalho braçal. E o dia a dia daqueles que viajam nunca mais será o mesmo, encerrou-se a era da livre movimentação e de uma sociedade quase sem limites.” (2002). 26 Art. 5º [...] LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; [...]. 14 cidadão e, assim, de legitimação desses mesmos atos, pode ser limitado na presença de ameaças a outro direito fundamental: a intimidade dos envolvidos. Assim, está preparado o terreno para o desenvolvimento da temática principal de nosso pequeno ensaio: quais são os limites para a publicidade envolvendo questões a respeito de crianças e adolescentes. 5 A PRINCIPIOLOGIA DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, DA PUBLICIDADE E A INFLUÊNCIA DA MÍDIA A lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), teve por alicerce principal a chamada “Doutrina da Proteção Integral”. Conforme salientam Rangel e Cristo (1999, p. 15), tal instrução, de cunho filosófico, tem seu princípio gerador advindo da Declaração Universal dos Direitos da Criança, datada de 1959. Nesse diapasão, a Doutrina da Proteção Integral serviu de orientação para todas as ações relacionadas à infância. Volta-se, portanto, para a expressão “the best interest of the child”, que traduzida resulta no “interesse superior da criança ou ainda o melhor interesse da criança.” (RANGEL; CRISTO, 1999, p. 17). Em verdade, também segundo os citados autores (1999, p. 18), a Constituição de 1988, em seu Capítulo VII, destinado à Família, Criança, Adolescente e Idoso, então consagra referida doutrina, conforme dispõe seu artigo 227, caput27. Nos artigos iniciais do ECA, já é perceptível a reiteração no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais à criança e ao adolescente. O Art. 3° reitera que, como pessoas humanas, os protegidos pela citada lei poderão alcançar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, desenvolvimentos estes em plenas condições de liberdade e dignidade. Seus artigos 5º e 15 reforçam esse direito, ao vedarem a exploração de menores, bem como o respeito à sua dignidade. O Estatuto prevê como dever de todos 27 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (grifos nossos). 15 velar por essa dignidade (Art.18)28, pondo os protegidos a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou ainda constrangedor. Condigno ao que fora salientado em linhas iniciais, o princípio da publicidade é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Segundo tal princípio, os procedimentos jurisdicionais são públicos de modo que, qualquer indivíduo pode ter acesso aos autos do procedimento. No entanto, o ECA traz importantes limitações a essa idéia, as quais merecerão, agora, análise detalhada, conforme podemos ver pela redação de seu Art. 143: Art. 143. É vedada a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional. Parágrafo único. Qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome. (Redação dada pela Lei nº 10.764, de 12.11.2003) (grifos nossos). Aqui, pois, estabelecer-se-á a correlação entre os princípios da publicidade e o da dignidade da pessoa humana no tocante ao ECA, em especial consoante à atuação da mídia. A bem da verdade, a criança e o adolescente protegidos de maneira especial pela Constituição Federal, neófitos na cidadania, apresentam neste período da existência a mente em formação29, não tendo, pois, condições de autodeterminar-se e suportar as incriminações advindas do senso comum que, além de ser um senso epidérmico no que toca à ciência de fatos técnicos, é influenciado pela mídia, a qual, na maioria das vezes, faz o papel dos agentes públicos julgadores, mas sem a garantia do devido processo legal. 28 Art. 18, Lei 8069/90: “É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”. 29 A respeito do desenvolvimento da moral e da identidade do indivíduo Habermas trabalha em seu texto “Para a Reconstrução do Materialismo Histórico”, os chamados estágios morais, definidos por Kohlberg: o nível pré-convencional, onde percebemos a orientação por punição e obediência como também a orientação instrumental-relativista; o nível convencional, marcado pela chamada concordância interpessoal ou orientação do “bom moço” como também a orientação “lei e ordem”; e, o nível pós-convencional, também chamado de nível fundado em princípios, onde a orientação passa a ser legalista social-contratual, com acentuações utilitaristas e também a orientação no sentido de princípios éticos universais. Para uma reflexão mais aprofundada sobre o tema consultar o texto original de Jürgen Habermas (1983, p. 4976). 16 Constata-se, diante do caput do Art. 143 do ECA, que a proteção ampla e irrestrita ao menor visa resguardá-lo dos abusos e constrangimentos exercidos pela mídia quando da divulgação dos atos previstos. A atual redação do parágrafo único do mesmo artigo veda qualquer forma de identificação do menor. Aqui, pois, ocorre a limitação à publicidade externa. Roberto João Elias (2004, p. 161-163) salienta que, a questão do sigilo, em se tratando do ECA, tem por escopo a proteção do menor contra as compressões de ordem psicológica, haja vista que as medidas que lhe são impostas objetivam recobrar e restabelecê-lo ao convívio nos meios social e familiar. Mas, por que isso se, afinal, diriam os leigos, ele praticou um crime30, não deveria ter seu nome divulgado em todos os jornais, canais de televisão e emissoras de rádio? No entanto, desde os reformadores do período humanitário do Direito Penal, dentre os quais destacamos Cesare Bonesana (marquês de Beccaria), John Howard e especialmente Francesco Carrara, observa-se uma discussão no diz respeito à questão de ius puniendi, por parte do Estado como também sobre a humanização das penas, no intuito de atribuir a estas o fim ressocializador. Pois, quando uma notícia chega aos ouvidos dos membros de uma comunidade, as interpretações são as mais diversas possíveis, e muitas vezes depois de apresentado o fato, difícil será a sua negação sem uma manifestação contrária dos destinatários. Concernente a isso, a idéia de uma publicidade geral e irrestrita afronta a vida privada, a intimidade do indivíduo e conseqüentemente a sua dignidade, principalmente quando atenta sem limites contra notáveis valores como a honra, moral e o respeito. No caso específico de transgressão à norma do caput e parágrafo único do Art. 143 do ECA, a nosso ver, seria uma afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana. Aqui, faz-se imperiosa uma distinção a respeito do princípio da publicidade em relação ao artigo supracitado. Seu caput determina absoluta vedação à publicidade, haja vista a impossibilidade de divulgação de quaisquer atos judiciais, policiais e administrativos relacionados ao menor ao qual se atribua a prática de ato infracional. 30 No ECA, a palavra foi, por meio de um eufemismo, substituída pelo chamado ato infracional. 17 Entrementes, em relação ao parágrafo único do mesmo dispositivo legal, a vedação é parcial, motivo pelo qual fica autorizada a notícia a respeito do fato em que o menor esteja supostamente envolvido, desde que não haja nenhuma identificação, inclusive por iniciais do nome e sobrenome do indivíduo. Isto se justifica pelo fato de que, tanto a nossa Constituição quanto o ECA explicitam claramente a prioridade da proteção à criança e ao adolescente, dando primazia à defesa contra qualquer forma de discriminação, ofensa, crueldade, opressão e violência. De certa forma, nesse caso, o excesso de publicidade externa, no caso do parágrafo único confronta diretamente a dignidade desses menores, prejudicando seu desenvolvimento e formação na sociedade. Além disso, nesses tempos, em que a mídia exerce papel alienador de mentes, porquanto, por meio de seu poder vinculador, realiza o pré-julgamento de questões judiciais, antes mesmo de uma análise técnica do Judiciário, baseada nas teorias da prova e da cognição, e em que os veículos de informação disputam a quantidade e não qualidade, cogita-se uma provável extinção da vida privada. Ora, com o medo hiperbólico de atentados terroristas como também discussões políticas e étnicas, a tecnologia avançou sobremaneira de modo que a vida privada e a intimidade de uma pessoa não são mais um segredo só seu e sim, por vezes, uma questão de interesse estatal. Diante de tudo isso, faz-se imperioso que a mídia retome o seu papel, papel este essencial à existência do Estado. Ora, é por meio da mídia que surge, na maioria dos casos, a possibilidade de fiscalização das instituições democráticas por parte dos cidadãos. À função judiciária caberá a análise e a formação da culpa, isto é, do conteúdo normativo que define a conduta fora ou dentro de um padrão de licitude do indivíduo que, até a decisão final (trânsito em julgado), e inclusive após esta, terá resguardado o seu direito à vida digna. Assim, a vida digna não é mais uma possibilidade. É um imperativo. Mais grave que tudo, a coisificação do homem pode ser medida em preço. E, a dignidade é qualidade do que preço não tem (ANTUNES ROCHA, 2004, p. 13). Em que pese a inexistência de hierarquia entre os princípios, a verdade é que a dignidade merece especial atenção, isto é deve sempre ser considerada quando da aplicação dos demais princípios, haja vista o fundamento de que representa a exigência de fruição de todos os direitos 18 fundamentais. Em relação à criança e adolescente, potencializa-se a questão, porquanto se tratam de seres em formação, cujo desenvolvimento saudável é essencial para a construção de todo o futuro da sociedade na qual estejam inseridos. 6 CONCLUSÃO Com a nova ordem constitucional instalada em 1988, a função normativa dos princípios, em ruptura com o sentido meramente supletivo de complementação anterior, transforma por completo toda aplicação dessa espécie normativa. Isto se deve, sobretudo, por ter sido a técnica legislativa utilizada para a consagração textual de diversos direitos fundamentais do cidadão, dentre os quais destacamos a dignidade da pessoa humana e a publicidade. Considerando seu caráter de abstração e de referentes lógicos para a confecção das demais regras (comandos de otimização), os princípios possuem, dessa forma, caráter deontológico, no sentido de vincular o legislador e aplicador do direito posto a explicitar seu sentido de forma democrática. A dignidade e a publicidade são assim, normas que não se excluem, mas se complementam no sentido de que a conceituação da primeira demarca a área de atuação da segunda, sempre visando não ferir a intimidade pessoal dos destinatários das decisões. Com efeito, a fiscalização irrestrita na democracia não é prejudicada por limitações à publicidade externa dos atos referentes à vida pessoal dos envolvidos, à sua imagem e honra, porquanto sempre será possibilitada ao destinatário da decisão, a participação discursiva em sua construção. Portanto, fica demonstrada a perfeita adequação das mitigações à atuação da mídia, previstas no ECA, à vigente teoria democrática positivada na Constituição de 1988, visto que não atingem de forma nenhuma a publicidade interna dos atos praticados em relação a todos os envolvidos, de modo a permitir a ampla defesa de seus interesses, em patamar isonômico com o decididor, através do contraditório. A limitação por sua vez, sim, evita que tal principiologia não seja descartada pelos veículos de comunicação simplesmente porque estes adotam, regra geral, a postura de prestar informações, mediante raciocínios apriorísticos e hipotéticos, para 19 pronunciamentos de juízos de valor a respeito de fatos supostamente ocorridos, por entre a vedação (silenciamento) do discurso dos envolvidos. 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMADA, Roberto José Ferreira de. A Garantia Processual da Publicidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O Princípio da Publicidade no Direito Administrativo. Revista Brasileira de Direito Público. Belo Horizonte: Editora Fórum v. 1, n. 2, (jul. 2003), p. 9-16. ANTUNES ROCHA, Cármen Lúcia. O Direito à Vida Digna (coordenação). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. BARCELLOS, Ana Paula de. Normatividade dos Princípios e o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana na Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo. 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